Direito Penal - Abandono de incapaz - Atipicidade da conduta

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Superior Tribunal de Justiça AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 236.162 - MS (2012/0206562-7) RELATOR : MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR AGRAVANTE : MARIA ABADIA DE SOUZA SILVA ADVOGADO : ELIAS CESAR KESROUANI - DEFENSOR PÚBLICO E OUTROS AGRAVADO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL EMENTA PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ABANDONO DE INCAPAZ. DENÚNCIA NÃO RECEBIDA NA SENTENÇA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. REFORMA NO ACÓRDÃO. ELEMENTARES DO CRIME DE ABANDONO DE INCAPAZ. INEXISTÊNCIA. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO O RECURSO ESPECIAL. 1. Pela narrativa feita na denúncia, não houve, de fato, demonstração de ato de abandono, que tenha exposto em perigo concreto e material, a vida ou a saúde dos menores, filhos da recorrente. Atipicidade da conduta. 2. Agravo conhecido e provido o recurso especial. DECISÃO Agravo contra inadmissão do recurso especial interposto por Maria Abadia de Souza Silva, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição Federal. Narram os autos que a agravante foi denunciada como incursa nas sanções do art. 133, § 3º, II, do Código Penal, ao fundamento de ter abandonado os filhos, em idades entre 3 e 17 anos, sendo a mais velha portadora de necessidades especiais ("Síndrome de Morth"), não podendo cuidar dos irmãos menores. Na sentença, a denúncia não foi recebida, ao fundamento de ausência de dolo, não estando configurado o crime de abandono de incapaz, nos termos do art. 395, II, do Código de Processo Penal (fls. 50/52). A Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul deu provimento ao recurso do Ministério Público, para receber a denúncia. Esta, a ementa do julgado (fl. 130): Documento: 30054383 - Despacho / Decisão - Site certificado - DJe: 05/08/2013 Página 1 de 6

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Pela narrativa feita na denúncia, não houve, de fato, demonstração de ato de abandono, que tenha exposto em perigo concreto e material, a vida ou a saúde dos menores, filhos da recorrente. Atipicidade da conduta.

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Superior Tribunal de Justiça

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 236.162 - MS (2012/0206562-7)

RELATOR : MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIORAGRAVANTE : MARIA ABADIA DE SOUZA SILVA ADVOGADO : ELIAS CESAR KESROUANI - DEFENSOR PÚBLICO E

OUTROSAGRAVADO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO

GROSSO DO SUL EMENTA

PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ABANDONO DE INCAPAZ. DENÚNCIA NÃO RECEBIDA NA SENTENÇA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. REFORMA NO ACÓRDÃO. ELEMENTARES DO CRIME DE ABANDONO DE INCAPAZ. INEXISTÊNCIA. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO O RECURSO ESPECIAL.1. Pela narrativa feita na denúncia, não houve, de fato, demonstração de ato de abandono, que tenha exposto em perigo concreto e material, a vida ou a saúde dos menores, filhos da recorrente. Atipicidade da conduta.2. Agravo conhecido e provido o recurso especial.

DECISÃO

Agravo contra inadmissão do recurso especial interposto por Maria

Abadia de Souza Silva, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição

Federal.

Narram os autos que a agravante foi denunciada como incursa nas

sanções do art. 133, § 3º, II, do Código Penal, ao fundamento de ter

abandonado os filhos, em idades entre 3 e 17 anos, sendo a mais velha

portadora de necessidades especiais ("Síndrome de Morth"), não podendo

cuidar dos irmãos menores. Na sentença, a denúncia não foi recebida, ao

fundamento de ausência de dolo, não estando configurado o crime de

abandono de incapaz, nos termos do art. 395, II, do Código de Processo

Penal (fls. 50/52).

A Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso

do Sul deu provimento ao recurso do Ministério Público, para receber a

denúncia. Esta, a ementa do julgado (fl. 130):

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RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - ABANDONO DE INCAPAZ - DENÚNCIA REJEITADA - PRESENÇA DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ARTIGO 41 DO CPP - INDÍCIOS DE AUTORIA - DENÚNCIA QUE DEVE SER RECEBIDA - RECURSO PROVIDO.

Preenchidos os requisitos previstos no artigo 41 do Código de Processo Penal, bem como havendo indícios da autoria, bem como de que as vítimas, supostamente abandonadas, permaneceram em situação de perigo concreto, impõe-se o recebimento da denúncia, para fins de se apurar, durante a instrução processual, a prática ou não da ação delitiva.

Inconformada, a recorrente interpôs recurso especial, no qual

apontou negativa de vigência ao art. 133, § 3º, II, do Código Penal. Sustentou,

em síntese: a) acertada a sentença quando não recebeu a denúncia, por

atipicidade de conduta; b) inexistência de abandono de incapaz, porquanto a

mãe saiu apenas para trabalhar, e iria retornar à sua residência; c) não

ocorrência de risco efetivo para a vítima; d) ausência de justa causa, pois

comprovado nos autos de que todos os filhos estudam, pela manhã, e

recebem da mãe a assistência necessária à sua subsistência.

O recurso especial foi inadmitido pela Corte de origem, sob o

fundamento de aplicação da Súmula 7/STJ, em relação à existência de justa

causa (fls. 177/178).

Instado a se manifestar, o Ministério Público Federal opinou pelo

provimento do recurso, por entender atípica a conduta narrada na denúncia,

que não teria especificado qual o efetivo e concreto perigo que sofreram os

menores. Eis a ementa do parecer (fl. 225):

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ABANDONO DE INCAPAZ. ANÁLISE SOBRE OS REQUISITOS DO TIPO PENAL PREVISTO NO ART. 133 DO CP. NECESSIDADE OU NÃO DE NARRATIVA, PELA ACUSAÇÃO, DE PERIGO CONCRETO ÀS VÍTIMAS. QUESTÃO QUE NÃO EXIGE INCURSÃO EM SEARA PROBATÓRIA, MAS SIMPLES LEITURA DA DENÚNCIA. INAPLICABILIDADE DA DECISÃO AGRAVADA. DELITO QUE EXIGE, PARA SUA CARACTERIZAÇÃO, A OCORRÊNCIA DE RISCO CONCRETO À INTEGRIDADE FÍSICA DOS OFENDIDOS. DOUTRINA.

A análise sobre os requisitos legais caracterizadores do crime de abandono de incapaz não exige incursão em seara probatória. Inaplicabilidade da Súmula 7/STJ.

O crime do art. 133 do CP exige, para sua caracterização, a ocorrência

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de perigo concreto às vítimas abandonadas. Doutrina.PARECER PELO PROVIMENTO DO AGRAVO E DO RECURSO

ESPECIAL.

É o relatório.

Presentes os requisitos de admissibilidade, o recurso merece ser

conhecido.

Ao oferecer a denúncia contra a recorrente, trouxe o Ministério

Público do Estado de Mato Grosso do Sul a seguinte narrativa sobre a

conduta da denunciada (fl. 3):

Apurou-se que a denunciada Maria Abadia de Souza Silva deixou os filhos menores em casa, para trabalhar em uma lanchonete, ocasião em que o Conselho Tutelar foi acionado mediante informação apócrifa, e foi até o local, constatando a veracidade do abandono dos filhos que têm idade entre 17 (dezessete) e 3 (três) anos, sendo que a mais velha, de 17 (dezessete) anos é portadora de necessidades especiais e não tem condições de cuidar dos menores.

A despeito da observação feita pela autoridade policial, evidente o risco a que foram expostas as crianças, tanto que, por ocasião da chegada das Conselheiras Tutelares, os menores encontravam-se sujos e descalços, de modo a gerar perigo para si e para os outros irmãos.

Na sentença, a denúncia não foi recebida, ante a inexistência de

tipicidade na conduta da recorrente (fls. 50/52).

Ao dar provimento ao recurso em sentido estrito do Ministério

Público estadual, assim manifestou-se o Tribunal local (fls. 132/133):

[...]Não fosse só isso, há, indícios da prática do delito pela recorrida, isso

porque, consta da denúncia e das provas extrajudiciais até então colacionadas aos autos, que essa deixava os seus filhos, todos menores (sendo que um deles, inclusive, especial, já que portador de "Síndrome de Morth"), sozinhos em casa, em situação de desleixo e, em possível situação de perigo concreto, já que, ela própria, ao prestar as suas declarações perante a autoridade policial, aduziu que os menores foram encontrados sujos pela Conselheira Tutelar, pois brincavam na rua - situação, que sem dúvidas os expunha a perigo, pois podiam ser atropelados, ou mesmo sofrerem outros prejuízos.

[...]

Verifica-se nas razões recursais, que a controvérsia gira em torno

de ter ou não a recorrente agido de forma a praticar o delito do art. 133, § 3º, Documento: 30054383 - Despacho / Decisão - Site certificado - DJe: 05/08/2013 Página 3 de 6

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II, do Código Penal, não se tratando portanto de reexame fático a matéria aqui

tratada. Nesse ponto, importante transcrever o parecer do Ministério Público

Federal, que fez minuciosa análise do tipo penal, inclusive com posição

doutrinária (fls. 227/228):

A conduta narrada pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul é a de uma mãe que, ao sair para trabalhar, deixou 4 filhos menores em casa, um deles portador de necessidades especiais, os quais foram encontrados sujos e descalços na própria residência em que habitam.

A única questão a ser debatida nos autos é se a conduta narrada configura ou não, em tese, o crime previsto no art. 133 do CP.

Trata-se, assim, de questão meramente de direito, não havendo que se falar em necessidade de reapreciação fática para sua análise.

Logo, merece provimento o agravo para dar seguimento ao recurso especial, a seguir analisado.

Dispõe o art. 133 do CP:Art. 133. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda,

vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos.Leciona a doutrina sobre o crime em questão:Classificação doutrináriaCrime próprio (pois o tipo penal aponta quem pode ser considerado

como sujeito ativo, bem como aqueles que poderão figurar como sujeito passivo); de perigo concreto (não basta demonstrar o ato de abandono, mas, sim, que esse comportamento trouxe perigo para a vida ou saúde da vítima); [...] (GREGO, Rogério. Código Penal Comentado. 5. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2011, p. 314 - grifo nosso)

[...] Além da transgressão da relação particular de assistência entre agente e vítima, é indispensável a existência - ainda que momentânea - de perigo concreto. [...] (PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 434 - grifo nosso).

Fica claro, portanto, que o Ministério Público do Mato Grosso do Sul narrou conduta atípica em sua denúncia, pois não especificou qual o efetivo e concreto perigo que sofreram os menores, limitando-se a afirmar que os menores estavam descalços e sujos, o que, por si só, não traduz qualquer situação de risco.

Com efeito, pela narrativa feita na denúncia, não houve, de fato,

demonstração de ato de abandono, que tenha exposto em perigo concreto e

material, a vida ou a saúde dos menores, filhos da recorrente. A denúncia

narra que os menores estavam sujos e descalços (fl. 3). Por outro lado,

consta nos autos que todas as crianças frequentam a escola, inclusive a

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que é portadora da mencionada síndrome, não se podendo falar em

ausência de assistência. O fato de as crianças estarem sozinhas, em casa,

enquanto a mãe trabalhava, não significa abandono, no sentido literal da

palavra, mas sim desleixo ou descuido, por parte da mãe, caso a ser

resolvido, talvez, por uma assistente social, mas não pela justiça criminal, que

deve atuar apenas em último caso (princípio da intervenção mínima). Diante

disso, adoto, como fundamentos, para decidir, trecho da sentença, que, além

de estudar o tipo penal, também abordou a presente situação em um contexto

cultural e social (fls. 50/51):

[...]Impende observar que o que se tem nos autos é que as denúncias

chegam ao Conselho Tutelar sempre de forma anônima; que a mãe, na época das denúncias, trabalhava em dois locais, num frigorífico da região e numa lanchonete nesta cidade;

O só fato das crianças ficarem sozinhas, não significa, definitivamente, que a mãe as tivesse abandonado, no sentido emprestada ao termo pelo legislador ordinário.

Não significa que a tivessem colocado, dolosamente, em situação de perigo iminente. Perigo havia, sim, porque perigosa é a sociedade em que vivemos.

O que ocorreu com as crianças, na situação posta, foi que a mãe, arrimo de família, trabalhava dia e noite para sustentá-los, decorrência natural do mundo desordenado que vivemos, pais pobres e sem instrução.

As supostas vítimas não foram deixadas perigosamente a suas próprias sorte, elas ficam em casa enquanto a mãe trabalha.

Precisamos analisar com cautelas os fatos, pois, se todas as vezes que uma família tal qual a dos autos, tiver que deixar filhos em casa, ainda que sozinhos, mas sob os olhos de um adulto, ainda que não se aprove, teríamos, então, todos os dias, todas as horas, que indiciar vários pais pela prática de crime da mesma natureza.

Releva dizer que o elemento subjetivo do tipo é o dolo específico, traduzido na vontade de abandonar, o que, por tudo que restou provado nos autos, não ocorreu no caso vertente.

Que a mãe, ora denunciada foi descuidada, não se nega, contudo afirmar por isso, que ela abandonou seus filhos, ao meu sentir não é razoável.

Consignei acima que são elementares constitutivas do crime de abandono de incapaz: a) o abandono; b) a violação do especial dever de assistência; c) a superveniência efetiva de perigo concreto à vida ou à saúde do abandonado; d) a incapacidade de defender-se da situação de perigo; e) a vontade e a consciência de abandonar incapaz expondo-o a perigo.

Registro que o só abandono - e as vítimas não foram abandonadas, Documento: 30054383 - Despacho / Decisão - Site certificado - DJe: 05/08/2013 Página 5 de 6

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repito - não realiza a figura típica, sendo indispensável que dele resulte perigo concreto para a vida e a saúde da pessoa. Trata-se, pois, de perigo concreto, que precisa ser comprovado. Os autos não dão notícia desse perigo.

Para configuração do crime em comento, é indispensável que a vítima, efetivamente, fique exposta ao perigo, mas perigo concreto, repita-se. Não vale o perigo abstrato, ou meramente presumido. A eventual exposição da vítima ao perigo, não abrangido pelo dolo, não configura o crime de abandono de incapaz.

[...]

Assim, entendo estar violado o art. 133, § 3º, II, do Código Penal,

pois, na presente hipótese, não estão presentes as elementares constitutivas

do crime de abandono de incapaz.

Ante o exposto, com fundamento no art. 544, § 4º, II, c, do Código

de Processo Civil, c/c o art. 3º do Código de Processo Penal, conheço do

agravo e dou provimento ao recurso especial, para restabelecer a

sentença de primeiro grau, e rejeitar a denúncia contra a recorrente, Maria

Abadia de Souza Silva (art. 395, II, do Código de Processo Penal).

Publique-se.

Brasília, 1º de agosto de 2013.

Ministro Sebastião Reis Júnior Relator

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