Direito Eleitoral: Sociedade, Política e Poder

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Direito Eleitoral Sociedade, Política e Poder Coordenadores Ezilda Cláudia de Melo Organizadores José Flor de Medeiros Júnior Laryssa Mayara Alves de Almeida Vinícius Leão de Castro Yulgan Tenno

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A presente produção intitulada Direito Eleitoral: Sociedade, Política e Poder reúne estudiosos de várias instituições de ensino superior brasileiras, os quais assinam cada capítulo desta obra coletiva, para apresentar olhares e reflexões inovadoras no âmbito das Ciências Jurídicas.

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Direito EleitoralSociedade,Política e Poder

CoordenadoresEzilda Cláudia de Melo

OrganizadoresJosé Flor de Medeiros JúniorLaryssa Mayara Alves de Almeida Vinícius Leão de CastroYulgan Tenno

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CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA

Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO

Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

LUCIANO DO NASCIMENTO SILVA

Coordenador Acadêmico da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

MARIA CEZILENE ARAÚJO DE MORAIS

Coordenador Acadêmico - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

VALFREDO DE ANDRADE AGUIAR FILHO

Coordenador de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

NÁJILA MEDEIROS BEZERRA E YULGAN TENNO DE FARIAS

Coordenadores-Adjuntos de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB

CNPJ 12.955.187/0001-66

Acesse: www.abarriguda.org.br

CONSELHO CIENTÍFICO

Adilson Rodrigues Pires

Adolpho José Ribeiro

Adriana Maria Aureliano da Silva

Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira

André Karam Trindade

Alana Ramos Araújo

Bruno Cézar Cadê

Carina Barbosa Gouvêa

Carlos Aranguéz Sanchéz

Cláudio Simão de Lucena Neto

Daniel Ferreira de Lira

Elionora Nazaré Cardoso

Ely Jorge Trindade

Ezilda Cláudia de Melo

Felix Araújo Neto

Fernanda Isabela Oliveira Freitas

Gisele Padilha Cadé

Glauber Salomão Leite

Gustavo Rabay Guerra

Herry Charriery da Costa Santos

Hipolito de Sousa Lucena

Ignacio Berdugo Gómes de la Torre

Javier Valls Prieto

Jeremias de Cássio Carneiro de Melo

José Flôr de Medeiros Júnior

Karina Teresa da Silva Maciel

Laryssa Mayara Alves de Almeida

Luciano do Nascimento Silva

Ludmila Douettes Albuquerque de Aráujo

Marcelo Alves Pereira Eufrásio

Marcelo Weick Pogliese

Maria Cezilene Araújo de Morais

Raymundo Juliano Rego Feitosa

Rodrigo Araújo Reül

Rômulo Rhemo Palitot Braga

Samara Cristina Oliveira Coelho

Suênia Oliveira Vasconcelos

Talden Queiroz Farias

Thamara Duarte Cunha Medeiros

Valfredo de Andrade Aguiar Filho

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EZILDA CLÁUDIA MELO

COORDENADORA

JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR, LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E

VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO

ORGANIZADORES

1ª EDIÇÃO

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB

2014

DIREITO ELEITORAL:

SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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©Copyright 2014 by

Editor-chefe

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E LUCIANO NASCIMENTO SILVA

Coordenação do Livro

EZILDA CLÁUDIA MELO

Organização do Livro

JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR, LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E VINÍCIUS LEÃO

DE CASTRO

Capa

YULGAN TENNO DE FARIAS

Editoração

JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA

VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO

Diagramação

JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA

VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO

O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D597

Direito eleitoral: sociedade, política e poder/ Ezilda Melo

(Coord.); Laryssa Mayara Alves de Almeida (Coord.). –

Campina Grande: AREPB, 2014.

143 p.

ISBN 978-85-67494-04-3

1. Direito Eleitoral I. Título.

CDU 342.82

Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB.

Foi feito o depósito legal.

Data de fechamento da edição: 10-11-2014

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O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável

pela Revista Jurídica e Cultural “A Barriguda”, foi criado na cidade de Campina Grande-PB,

com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a

Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito.

A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em torno da

Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar o estudo do Direito enquanto Ciência, de maneira

inter e transdisciplinar unido sempre à cultura. Resgatando, dessa maneira, posturas

metodológicas que se voltem a postura ética dos futuros profissionais.

Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e nutridos do

objetivo de criar um novo paradigma de estudo do Direito se motivaram para construir um

projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se estabeleceu como uma revista

eletrônica, para incentivar o resgate do ensino jurídico como interdisciplinar e transversal,

sem esquecer a nossa riqueza cultural.

Nosso sincero reconhecimento e agradecimento a todos que contribuíram para a

consolidação da Revista A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa.

Acesse a Biblioteca do site www.abarriguda.org.br

e confira E-Books gratuitos.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO ............................................................................................................................... 9

O PARLAMENTARISMO PORTUGUÊS E O SEU DIREITO ELEITORAL:

INSTITUIÇÕES, DESAFIOS E PERSPETIVAS ............................................................... 12

PERDA DO MANDATO POR CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM

JULGADO: CASSAÇÃO OU EXTINÇÃO DO MANDATO? UMA VISÃO

COMPARATIVA DE CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA E DE REVALORIZAÇÃO

DE PRINCÍPIOS .................................................................................................................... 37

A EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA DE DEMOCRACIA À LUZ

DA CARTA DEMOCRÁTICA INTERAMERICANA ...................................................... 50

ELEIÇÕES NO BRASIL: DEUSES, CÉSARES E IGUALDADE DE

OPORTUNIDADES ............................................................................................................... 60

A AUSÊNCIA DA PRÁTICA CIDADÃ NO PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO:

A QUESTÃO PARTICIPAÇÃO X VOTO .......................................................................... 81

MEMÓRIA E VERDADE: DIREITOS ESSENCIAIS AO PROCESSO DE

DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS ......................................................................................... 94

O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES: GARANTIA OU RESTRIÇÃO À

LIBERDADE? ...................................................................................................................... 108

NECESSIDADE DE EXAME DA GRAVIDADE DA CONDUTA NAS

REPRESENTAÇÕES POR DOAÇÃO ELEITORAL IRREGULAR ............................ 118

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APRESENTAÇÃO

A revista jurídica A Barriguda iniciou suas atividades em 2011 a partir dos esforços

conjuntos de graduandos e professores do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade

Estadual da Paraíba. Desde o seu nascedouro, na Cidade de Campina Grande – Estado da

Paraíba, vem reunindo em seu conselho científico pesquisadores de diferentes áreas e países

comprometidos com o desenvolvimento do conhecimento humano em prol da Sociedade.

Em 2014, com oito títulos registrados na Fundação Biblioteca Nacional, A Barriguda

iniciou suas atividades como editora, disponibilizando aos seus leitores uma Biblioteca

Virtual gratuita no site www.abarriguda.org.br/bibliotecavirtual que reúne as publicações de e-

books e edições especiais, com abordagens temáticas específicas do periódico científico, com

ISSN 2236-6695.

A presente produção intitulada Direito Eleitoral: Sociedade, Política e Poder reúne

estudiosos de várias instituições de ensino superior brasileiras, os quais assinam cada capítulo

desta obra coletiva, para apresentar olhares e reflexões inovadoras no âmbito das Ciências

Jurídicas.

Março de 2015.

Laryssa Mayara Alves de Almeida e Vinícius Leão de Castro

Campina Grande – PB

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PREFÁCIO

Esta edição traz sete estudos de direito e política – todos relevantes e instigantes, ainda

que nem sempre presentes no cotidiano da reflexão e da prática profissional.

A sociedade brasileira nunca se engajou para dar cor de verdade à sua representação

democrática. Ainda não reagiu à simulação na gênese do direito eleitoral: a única norma de

direito público cujo redator é o seu próprio destinatário. Ainda não reagiu ao fato de que o

direito eleitoral é produto circunstancial e casuístico da maioria eventual que se componha na

noite de votação no Congresso Nacional. Ainda não reagiu à seleção legislativa das hipóteses

de inelegibilidade – fotograficamente escolhidas pela maioria eventual para afastar do pleito

eleitoral personalidades e circunstâncias pré-determinadas.

Esse quadro de aridez ética impõe ao Judiciário e ao Ministério Público eleitorais a

tarefa hercúlea de compatibilizar as normas da legalidade, impessoalidade, publicidade,

eficiência, legitimidade, de proteção à probidade administrativa e da moralidade para o

exercício do mandato – todas fundamentais no texto da Constituição, com os casuísmos e

circunstâncias da lei eleitoral. Se o capítulo da lei geral das eleições sobre as condutas

vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais – à primeira vista, pretende responder

às normas constitucionais, sua longa lista de exceções e os curtos prazos de sua incidência –

todavia, abrem avenida larga à sagacidade dos agentes comprometidos com o resultado. Põe-

se aí o clássico e desafiador confronto entre a lógica ético-jurídica do Julgador (refém da

ordem normativa) e a lógica do interesse no resultado aritmético dos candidatos, dos partidos

políticos e dos seus financiadores (sequestradores da representação democrática).

É esta gama de questões que a leitura da revista me trouxe à memória – a repisar fatos

e perspectivas visitadas em quase quatro décadas de trabalho na Justiça Eleitoral.

Os estudos versam sete temas. Um, homenageia a independência e harmonia dos

poderes como compreendida pelo Supremo Tribunal Federal, porém cobra coerência de seus

precedentes quanto aos efeitos da condenação criminal definitiva sobre os mandatos

parlamentares – cassação ou extinção?

Outro traz tema raro no discurso constitucional das liberdades políticas: a relação entre

a Igreja e o Estado formalmente laico, reconhecendo àquela a capacidade de impedir aos seus

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clérigos – no seu ordenamento jurídico interno, qualquer atividade político-partidária sob

pena de suspensão das ordens.

Um terceiro trabalho visita o tema crucial da memória histórica da política brasileira e,

com argumento ético irretocável, desafia uma reflexão sobre a Lei da Anistia em face dos

imperativos fundamentais da dignidade da cidadania em contraste com as razões de estado

que à época de sua edição deram conformação jurídica ao acordo político possível de

transição para a democracia.

Um quarto estudo informa sobre o parlamentarismo português e seu sistema eleitoral e

traz conclusão arguta - “todos os países estão mais ou menos descontentes com o seu

sistema”, o que faz do direito comparado – em especial o português, um instrumento

importante de interação cultural.

Há também uma bem lançada pesquisa sobre ser a separação de poderes uma garantia

ou uma restrição à liberdade. Postos os parâmetros do estado liberal burguês e sua

transformação, questiona-se se o controle social pela via legislativa não tenderia mais a

restringir do que ensejar o exercício da liberdade individual em face do estado.

Por fim, dois outros estudos afirmam a insuficiência ou mesmo a ausência de uma

sociedade civil ativa a efetivamente impor contraste à vontade estatal – sociedade em que o

cidadão não seja “meramente pessoa no sentido jurídico”. Têm por insuficientes e formais os

plebiscitos de 1993 e 2011 e o referendo de 2005 – há que se buscar outros meios de

participação efetiva. Inaceitável para os autores que, em 2014, num universo de 142 milhões

de eleitores registrados, trinta milhões não tenham comparecido às urnas.

Contrasta-se a prática democrática brasileira com a Carta Democrática Interamericana,

promulgada pela OEA em 2001, para concluir por sua carência e insuficiência porquanto

limitada ao voto obrigatório sazonal, longe ainda da autodeterminação política.

Aliás, acresço que a Carta foi inspiração do presidente Jimmy Carter – prêmio Nobel

da Paz, que, em razão dela, criou um grupo “ad hoc” de ‘Amigos’ para guarda de sua eficácia

e composto por ex-mandatários e ex-magistrados das Américas e do qual faço parte.

A provocação erudita dos estudiosos autores – bem documentada nos fatos e rica nas

fontes acadêmicas, põe em cheque muito do que se tem assentado na poeira dos precedentes

judiciais e no desleixo dos procedimentos legislativos.

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É leitura que se impõe aos brasileiros interessados no seu futuro; àqueles cidadãos

responsáveis que se dispõem à construção nunca acabada da democracia representativa

substantiva.

TORQUATO JARDIM

Advogado

Ministro do Tribunal

Superior Eleitoral (1992-96)

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O PARLAMENTARISMO PORTUGUÊS E O SEU DIREITO ELEITORAL:

INSTITUIÇÕES, DESAFIOS E PERSPETIVAS1

Paulo Ferreira da Cunha2

SUMÁRIO: 1. Introdução: eleições, democracia e partidos em Portugal, hoje. 1.1

Direito Eleitoral e democracia. 1.2 Da atual questão partidária em Portugal. 2. Da

eleição do parlamento em Portugal. 2.1 Composição, inelegibilidades e

incompatibilidades. 2.2 Círculos eleitorais e representatividade. 2.3 Candidaturas

partidárias e papel dos "independentes". 2.4 Assembleia da República, presidente e

governo. 3. Propostas de alterações no sistema eleitoral. 3.1 Antiparlamentarismo.

3.2 Eleições primárias nos partidos? 3.3 Das candidaturas independentes ao grande

chefe. 3.4 Reforço da cidadania e reinvenção dos partidos. 4. Conclusão.

1 INTRODUÇÃO: ELEIÇÕES, DEMOCRACIA E PARTIDOS EM PORTUGAL,

HOJE

1.1 DIREITO ELEITORAL E DEMOCRACIA

Comecemos com a vox populi. Diz-se proverbialmente (e o que é proverbial pouco se

discute, aceitando-se o tópico como um dogma: o que é, além do mais, muito pouco

democrático) que a democracia é o melhor de todos os maus regimes. Contudo, a prática, a

experiência (madre de todas as cousas, como já ensinava o clássico Esmeraldo de situ Orbis)

mostra que é mesmo o melhor de todos, sem precisar de se comparar com regimes muito

maus. Não é perfeito, mas é sem dúvida o melhor.

No regime político democrático3 avultam as eleições e há até quem confunda

democracia e regime de eleições, o que não é de modo nenhum rigorosa verdade. A partir de

1 O presente artigo repensa, atualiza, reorganiza e desenvolve algumas reflexões anteriores esparsas sobre esta

matéria, especialmente em Direito Constitucional Anotado, Lisboa, Quid Juris, 2008, livro que se encontra

presentemente esgotado, e Constituição & Política, Lisboa, Quid Juris, 2012, inter alia. 2 Catedrático e Diretor do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. 3 As confusões entre regime e sistema político são imensas. Optamos por dizer que regime é democracia ou

ditadura, monarquia ou república, e sistema são desinências dentro dessas duas magnas divisões. Sobre a

pulverização designatória, um interessante resumo de posições pode colher-se in LEITE PINTO, Ricardo /

MATOS CORREIA, José de / ROBOREDO SEARA, Fernando — Ciência Política e Direito Constitucional.

Teoria Geral do Estado e Formas de Governo, 3.ª ed. – revista e ampliada, Universidade Lusíada Editora, 2005,

pp. 199-200..

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um certo momento, mesmo ditaduras ferozes começaram a fazer simulacros de eleições.

Portanto, as eleições não são pedra de toque absoluta de democracia. São um seu elemento,

importantíssimo, são sua conditio sine qua non, mas há outros traços a ter necessariamente em

consideração. E é muito importante que se trate de eleições verdadeiramente livres. Ao menos

não fraudulentas.

É certo que as eleições das ditaduras são facilmente reconhecíveis: limitações graves à

existência e à atividade de verdadeiros e autônomos partidos políticos (com ideologia,

princípios, e com eles consequentes), pressões (por vezes gravíssimas, que chegam ao

assassinato pessoal ou de familiares e correlegionários) sobre os candidatos e sobre os

eventuais eleitos, quando folcloricamente se permita alguma eleição oposicionista, porque as

mais das vezes a eleição é ganha com uma percentagem altíssima (em geral, na casa de mais

de 80%, ou 90%) pelo governo ou seus candidatos.

Uma das características dos Direitos Fundamentais e Humanos é precisamente o de

serem direitos contramajoritários4: permitindo a minorias terem os seus direitos, não na

penumbra, mas à luz do dia, de cabeça levantada. Por isso é que, por exemplo, fazer

referendos para decidir desses direitos é contrário aos grandes princípios. Sabe-se que, em

geral, as minorias não são bem vistas (por preconceito) pelas maiorias, que raramente lhes

dariam razão em referendo.

O referendo é, assim, uma forma de votação muito ambígua: parecendo ser o

suprassumo da democracia é também, em muitos casos, o lugar onde a demagogia e a

confluência fortuita de contrários (uma vera coincidentia oppositorum) acaba por triunfar,

quando, pelo contrário, por vezes se chegaria alternativamente a melhores soluções pela

negociação entre representantes. A verdade é que, na escuridão da urna os votos não dialogam

entre si, e as posições extremam-se. Por isso tantos pretendem derrubar constituições

democráticas por referendos populistas.

Aliás, as eleições e o princípio maioritário têm de ser inteligentemente integrados num

clima geral de vivência democrática.

A democracia eleitoral só funciona, só funcionará, como complemento e corolário da

democracia civil e da democracia plena, numa sociedade ao mesmo tempo governada pelo

4 Cf. uma boa explanação desta ideia in CASALMIGLIA, A. — Ensayo sobre Dworkin, prólogo à edição em

língua castelhana de Taking rights seriously, trad. de Marta Guas

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rigor da representatividade e da representação (democracia representativa), pela dialética da

explicitação de motivações e da procura de consensos (democracia deliberativa), e pela ação

empenhada de cada cidadão na coisa pública (democracia participativa). Além disso, uma

democracia plena não pode ser só política, mas cultural, social, e econômica (democracia

social, lato sensu). Sabe-se, como é evidente, que democracias debilitadas no plano social não

funcionam bem eleitoralmente. E, desde logo, a falta de alfabetização, cultura ou

esclarecimento de certos eleitorados resultam em escolhas péssimas. A falta de estabilidade

econômica e de tempo, e de inquitação cívica da esmagadora maioria dos cidadãos, em muitos

países, fazem com que da sociedade civil não se elevem partidos e movimentos

regeneradores, e a eleição seja quase sempre uma escolha entre males menores. "Mais do

mesmo" é uma expressão recorrente nestes casos. Tal leva a uma democracia morboso, a que

preferimos contudo chamar democracia crepuscular.

Daí que em alguns países haja o voto obrigatório (se não o houvesse pergunta-se de

quanto seria a abstenção) e noutros, como em Portugal, haja vozes autorizadas, como a do

Prof. Freitas do Amaral, antigo Vice-Primeiro Ministro e antigo Presidente da Assembleia

Geral da ONU, que o advogam. Realmente, quando não há consciência cívica suficiente, pode

parecer que a obrigatoriedade do voto seria uma forma de a ir suprindo. Resta saber se o voto,

assim, não seria de protesto pura e simplesmente, e sempre desinformado. Ou, talvez pior

ainda, uma obrigação que se cumpre pela simples necessidade legal de ser cumprida, sem

informação, sem intencionalidade. O voto é uma arma que infelizmente poucos sabem

manejar...

E do mesmo modo que muitos assinalam em muitas universidades do primeiro mundo

um sentimento blasé de desinteresse de muitos estudantes, a par de um frenesim aturdido de

professores em busca de popularidade, fama, ou simplesmente manutenção do emprego - num

visível desequilíbrio - poderia também mal comparar-se a situação dos candidatos sem sono,

usando mil artifícios e gastando milhões para tentar cativar um eleitorado descrente, cansado,

indiferente.

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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1.2 DA ATUAL QUESTÃO PARTIDÁRIA EM PORTUGAL

A democracia portuguesa, que se reencontrou5 há quarenta anos (pela revolução de 25

de abril de 1974) não está de plena saúde, porque alguns não estão a cumprir o seu papel no

contrato social.

Em plena crise, muito agravada pelos pseudoremédios da dita austeridade (que

patentemente só a agravaram), como é normal e vem sido corroborado por autoridades

económico-financeiras independentes, eleva-se um coro reacionário e revanchista contra os

partidos. A História repete-se. Eles seriam os culpados por tudo, e há quem reclame a volta do

ditador Oliveira Salazar, ou de D. Sebastião, o mítico rei que viria numa manhã de nevoeiro

(desde o séc. XVI que é esperado pelos saudosistas, mesmo fora de Portugal6) um salvador de

mão de ferro qualquer. É grave sintoma de falta de formação cívica e política. Mas também

uma grande prova tristemente real contra os usufrutuários do regime (é a lei de bronze - ou de

ferro - das oligarquias7) que vivem num ingénuo (ou não) otimismo e se recusam a considerar

os déficits reais que existem: desde logo na qualidade da representação, ou da educação.

Adoram estatísticas e comparações com países com sistemas com que não se pode comparar.

Apesar, obviamente, de, tanto num como noutros dos domínios referidos se estar muito

melhor que antes da revolução dos cravos, como seria de esperar.

5 Contudo, a democracia portuguesa é antiga, embora não sob a forma moderna, evidentemente. Cf., v.g., desde

logo, CORTESÃO, Jaime — Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal, 4.ª ed., Lisboa, Livros

Horizonte, 1984. 6 BERCE, Yves-Marie — Le roi caché. Sauveurs et imposteurs. Mythes politiques populaires dans l'Europe

moderne, Paris, Fayard, 1990; BESSELAAR, José van den — O Sebastianismo — História Sumária, Lisboa,

Instituto de Cultura e Língua Potuguea, 1987; QUADROS, António — Poesia e Filosofia do Mito

Sebastianista, I. O Sebastianismo em Portugal e no Brasil, Lisboa, Guimarães, 1982; II. Polémica, história e

teoria do mito, Lisboa, Guimarães, 1983; SOUSA, Maria Leonor Machado de — D. Sebastião na Literatura

Inglesa, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1985; AZEVEDO, J. Lúcio de — A Evolução do

Sebastianismo, Lisboa, Livraria Clássica Edit., 1918. 7 MICHELS, Robert — Sociologia dos Partidos Políticos, trad. port., Brasília, Universidade de Brasília, 1982,

máx. p. 23 “A Constituição de oligarquias no seio das múltiplas formas de democracia é um fenômeno orgânico

e por consequencia uma tendência à qual sucumbe fatalmente toda organização, seja socialista ou mesmo

anarquista. Haller já tinha observado que, sob toda forma de convivência social, a natureza cria por si mesma

relações de dominação e de pendência. A supremacia dos chefes nos partidos democráticos revolucionários é um

fato que deve ser levado em conta em qualquer situação histórica presente ou futura.". E não se trata apenas de

chefes de partidos democráticos revolucionários. Há a criação de uma "classe política", com o tempo cada vez

menos revolucionária, e que pode até perder o élan democrático. Sem prejuízo, evidentemente, de haver sempre

revolucionários ou meramente democratas idealistas sempre fiéis aos seus ideais, e que não se acomodam. E no

Portugal de hoje há alguns exemplos, infelizmente incompreendidos pela massa que calunia frequentemente

esses veneráveis anciãos, apenas porque os inveja e com o único argumento de que estão velhos, e deveriam

trocar a ágora pelas pantufas e pelos netos. É no que resulta a falta de consciência cívica.

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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Os partidos não se encontram acima de toda a suspeita, nem isentos de todas as culpas.

É preciso ver a realidade de alguma degenerescência: muitos partidos por vezes se enquistam

e não há a sensação de que estejam a ser suficientemente abertos e cabalmente democráticos.

Algumas perguntas são pedra de toque:

Há verdadeiro debate interno?

As vozes discordantes, quando existam, têm meios de se fazer ouvir? São respeitadas?

De onde partem as políticas: do topo ou da base?

De onde parte a nomeação dos candidatos? Das bases ou de comitês, centrais ou locais?

Há militância real?

Há opiniões novas e possibilidade de discordar de vagas de fundo?

Seria útil a transparência, com dados objetivos. A imagem que passa para a sociedade

civil, mesmo para as pessoas informadas e cultas, é que os líderes supremos e em segundo

lugar as máquinas burocráticas dominam os partidos, e que as propostas realmente políticas e

as escolhas realmente políticas escasseiam, num quase unanimismo em que se permite uma

desinência quase apenas clubística...

Apesar de boas intenções de alguns (que não se negam), os líderes supremos e os

aparelhos parecem dominar, e de eleição para eleição resulta uma mesmidade de caras

apresentadas ao eleitorado que chega a cansar... e a desesperar. Alguns, decerto, excelentes

profissionais já. Mas onde a renovação? E por vezes nem se recandidata a competência.

Ora a renovação não se consegue simplesmente com panaceias, como a (natural)

ascensão das juventudes partidárias, ou as flores-na-botoeira dos independentes, que tanto

irritam militantes de base que dão o corpo ao manifesto e se veem assim ultrapassados por

outsiders, criando até mau clima nas candidaturas. E em geral pouco trazendo de novo,

cremos que nem sequer em votos.

Há infelizmente pelo mundo fora líderes que estarão decerto persuadidos que o

aparelhismo, com os seus múltiplos truques e fraudes, será uma doença incurável com que se

teria sempre que conviver. E por isso não apenas não a atacam decisivamente (preferindo

eventualmente paliativos), como até, em certos casos, parece irem alimentando a fera, decerto

para que se não torne muito agressiva. Esta é normalmente uma política eticamente suicida,

embora haja que reconhecer-se que o vírus em causa é útil em algumas circunstâncias na

conquista do poder - interno e / ou externo. Mas fiar-se e apoiar-se nele acaba por ser fatal

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para a boa política.

Ao pensarem os partidos entregues a vivaços e videirinhos, intriguistas e corruptos

(alguma comunicação social e forças políticas querem inculcar essas imagens) as gentes de

bem fogem deles e estigmatizam-nos, contribuindo para o descrédito geral da democracia, que

não pode existir sem organizações partidárias, chame-se-lhes o que se lhes chamar. Recorde-

se que mesmo as ditaduras ferozmente antipartidárias têm os seus partidos únicos, ainda que

se lhes chame outra coisa. O Estado Novo português chegou ao requinte de criar o seu partido

único "União Nacional" por impulso ministerial, numa clara hibridação e conúbio entre

partido e Estado. Os Estatutos da União Nacional são apresentados com fonte no na

Secretaria-geral do Ministério do Interior, dando todo o caráter “orgânico” ao “partido”, e

vêm significativamente a lume na véspera8 da publicação do projeto de Constituição de 1933.

Para recordar as memórias históricas curtas, valerá certamente a pena deixar registado o art.

1.º dos referidos Estatutos. Algo como isto não pode deixar de ser o almejado pelos que

querem acabar com os partidos:

A União Nacional é uma associação sem carácter de partido e independente do

Estado ((o que mal se compatibiliza com a referida génese)), destinada a assegurar,

na ordem cívica, pela colaboração dos seus filiados, sem distinção de doutrina

política ou de confissão religiosa, a realização e a defesa dos princípios consignados

nestes estatutos, com pleno acatamento das instituições vigentes.

Do mesmo modo, a mensagem que os partidos lançam nem sempre é serena e séria, mas

em muitos casos uma transposição mediática da clássica agitprop.

Um clima instalado de agitação e propaganda cria caldo de cultura propício à eclosão de

totalitarismo ou, no mínimo, a um apertado cerco ao pluralismo de opinião.

Uma degeneração cancerígena é possível, num pano de fundo de colonização mental

das massas acríticas, que poderão vir a apoiar um pseudosalvador, na verdade um medíocre

voluntarioso erguido mediaticamente e ao serviço dos grandes interesses (sempre opacos aos

olhos de um povo narcotizado e desesperado), ou pura e simplesmente um fanático louco, que

a breve trecho, como a História tem dado abundantes exemplos, poderá mesmo mostrar os

8 RIBEIRO, Maria da Conceição Nunes de Oliveira – O Debate em torno do Projeto de Constituição do Estado

Novo na Imprensa de Lisboa e Porto (1932-1933), in “Anuário Português de Direito Constitucional”, Coimbra,

Coimbra Editora, II, 2002, p. 241.

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seus instintos criminosos9.

Se ao nível micro- pululam os pequeninos tiranetes, estará a sociedade de novo

preparada para grandes tiranias? Se não houver quem enfrente esses pesadelos, sim. Se não,

não! Espera-se que não. Mas é sintomático que, nas vésperas da comemoração dos 40 anos do

25 de abril de 1974, data da revolução dos cravos, faltando pela terceira vez os militares que

fizeram a revolução às rotineiras comemorações oficiais, em que, em 2014, se lhes negou

explicitamente a palavra, nomes como Diogo Freitas do Amaral e Mário Soares (que se

chegaram a defrontar em eleição presidencial) pareçam convergir num diagnóstico terrível do

estado da democracia portuguesa. E o primeiro de algum modo apele à criação de novos

partidos, enquanto o segundo espera que a renovação venha das eleições europeias de finais

de maio de 2014, ou depois10...

2 DA ELEIÇÃO DO PARLAMENTO EM PORTUGAL

2.1 COMPOSIÇÃO, INELEGIBILIDADES E INCOMPATIBILIDADES

Em Portugal, o Parlamento é unicameral (as anteriores experiências, de Câmara dos

Pares, Senado e Câmara Corporativa não provaram os seus especiais méritos: embora haja um

hábito mediático de chamar senadores a políticos séniores, e alguns deles não parece

desgostarem do título informal), chamando-se, por curiosa iniciativa de um constituinte então

independente (o Professor catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra, Doutor Carlos

Alberto da Mota Pinto), ao que se diz inspirado num grito vindo das galerias, Assembleia da

República. Pelo menos miticamente é uma origem popularíssima da designação para a Casa

da Democracia.

A Constituição explicita, como lhe cumpre, a composição desse órgão de soberania com

dimensão parlamentar, que constitucionalmente tem – enquanto não prevalecerem novas

9 Tem passaso injustamente pouco apercebido o notável estudo, de análise e de sinal de alarme de RIEMEN, Rob

— De eeuwige terugkeer van het fascisme, trad. port. de Maria Carvalho, O Eterno Retorno do Fascismo, trad.

port., Lisboa, Bizâncio, 2012. V. ainda PAXTON, Robert O. — The Anatomy of Fascism, Vintage, Nova

Iorque, 2004. 10 LOPES, Maria — Mário Soares quer governo derrubado; Freitas pede novo partido. Ed. online:

http://www.publico.pt/politica/noticia/mario-soares-quer-governo-derrubado-freitas-pede-novo-

partido1633042http://www.publico.pt/politica/noticia/mario-soares-quer-governo-derrubado-freitas-pede-novo-

partido1633042. Consultado em 24 de abril de 2014.

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tendências revisionistas que sempre clamam por menos deputados, logo, por maior

representação relativa dos partidos maiores e tendência para a eliminação parlamentar das

minorias -, por enquanto, de cento e oitenta a duzentos e trinta membros (art. 148.º). Como

um elemento que debilita o jogo democrático, os deputados são eleitos segundo leis eleitorais

que estão excessivamente na dependência das maiorias, ou dos governos, desde o tempo da

monarquia constitucional. Ao ponto de os resultados poderem ser previamente submetidos a

uma engenharia (ou manipulação, diriam alguns), por via das leis eleitorais.

Na monarquia constitucional tal era muito habitual, sobretudo pelo método de juntar ou

separar freguesias urbanas e rurais. O mesmo terá ocorrido recentemente com uma alteração

do mapa local (com inúmeras fusões), tendo a fusão de freguesias beneficiado largamente (e

enquanto tal se mantiver) os partidos do governo atual, sem que as oposições visivelmente

hajam suficientemente protestado, o que é pelo menos surpreendente. O benefício é visível

nas eleições locais, autárquicas. Está ainda por estudar em que medida possa ter influência em

resultados em que os círculos eleitorais não coincidem com as freguesias.

A Constituição eximiu-se a determinar um rol fechado e total de inelegibidades (estas,

em geral, no art. 50.º, 3) e incompatibilidades, remetendo para a lei eleitoral (art. 150.º) e para

a lei em geral (art. 154.º, 2). Mas dela decorrem, ou da natureza das coisas, algumas

incompatibilidades naturais, especificamente emergentes do princípio da separação dos

poderes, ainda que a lei eleitoral nada dissesse. Contudo, ainda assim nesta sede se assinala a

incompatibilidade resultante de se ser candidato por mais de um círculo eleitoral da mesma

natureza (ressalvado o círculo nacional, quando exista), ou de o mesmo candidato figurar em

mais de uma lista candidata (art. 151.º, 2).

Além das incompatibilidades que implicam inelegibilidade, há que considerar

incompatibilidades supervenientes. Como as que resultam de nomeação de um deputado para

o Governo: a partir desse momento, não poderá exercer o mandato até à cessação de tais

funções, sendo entretanto substituído na Assembleia da República (art. 154.º, 1).

Note-se que, ao contrário de outras soluções, em Portugal os membros do governo não

necessitam de ser (de ter sido eleitos previamente) deputados. Houve até há não muito tempo

um episódio eloquente: um então poderoso Ministro de Estado e das Finanças (hoje diretor de

assuntos orçamentais do Fundo Monetário Internacional) corrigiu uma deputada

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publicamente, no Parlamento, afirmando que não tinha sido eleito "coisíssima nenhuma"11. Os

comentários e interpretações não se fizeram esperar. Por exemplo, um conhecido comentador,

Pedro Mexia, teria considerado que o “'coisíssima nenhuma' demostra uma clara repugnância

pelo escrutínio popular, pela ideia de ter sido eleito"12. Houve porém quem considerasse este

comentário benevolente13. O que interessa não é o fait divers em si, e muito menos a questão

pessoal e partidária: é o pano de fundo de tensão social e de mentalidades, que talvez não

devesse estar em causa 40 anos depois de uma revolução democrática.

A verdade é que há vantagens e desvantagens na exigência de eleição prévia de um

futuro membro do governo. A favor da não necessidade da eleição milita a questão da

preparação técnica. Mas (e agora estamos pensando muito além e fora do episódio relatado,

como é óbvio, que é gota no ocenano de nomeações ao longo dos tempos) por vezes ocorre

que algum distanciamento (e até enquistamento) dos tecnocratas precisaria de um banho

termal de povo. O que uma eleição propiciaria, ao menos em parte. Por outro lado, é

recorrente a crítica (muitas veze justa) da falta de preparação técnica (e até cultural: mas isso

também afeta os tecnocratas frequentemente) de muitos dos que são populares no sufrágio.

Contudo a questão da popularidade, em Portugal, com o sistema de voto em listas

fechadas por chapa ou símbolo eleitoral (vota-se num partido, que previamente apresenta uma

lista ordenada de candidatos, afixada no exterior da sala da assembleia de voto) é muito

menos relevante. Há imensas figuras que jamais seriam eleitas se não fossem guindadas aos

lugares pelos jogos palacianos internos nos partidos. O que também tem prós- e contras,

evidentemente. Portanto, não é líquido que a submissão ao sufrágio, num sistema assim, dê

qualquer contacto com a realidade do País ou com o Povo. Um candidato pode tranquilamente

nem fazer campanha, fiando-se na dos seus colegas de lista e mais latamente de partido, e na

capacidade persuasiva do símbolo, em grande medida clubístico (sobretudo os mais velhos,

votam ainda por "amor à camisola", como se diz em Portugal).

Quanto às referidas inelegibilidades, elas também são apresentadas constitucionalmente

de forma muito vaga: rementendo para a lei, que, contudo, deve restringi-las ao necessário

para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos

respetivos cargos.

11 Gravação in: https://www.youtube.com/watch?v=GSdhT9yeFOg . Consultado em 24 de abril de 2014. 12 Apud http://www.portais.ws/index.php?page=art_det&ida=40141. Consultado a 24 de abril de 2014. 13 Apud ibidem.

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2.2 CÍRCULOS ELEITORAIS E REPRESENTATIVIDADE

Hoje, a Constituição (art. 149.º, 1) dá abertura para a futura possível existência de

círculos eleitorais uninominais (a par dos existentes, plurinominais, com número de deputados

proporcional aos eleitores em cada círculo inscritos – art. 149.º, 2), que alguns creem ser

panaceia para a sempre alegada “distância entre eleitos e eleitores”, ritualisticamente repetida,

mas que não se conseguirá resolver de forma simples... E que em muitos casos é apenas álibi

(como muitas reformas no macro- e no micropolítico) para a conhecida "dança das cadeiras".

O nosso sistema não é ideal, não é perfeito. Mas há alternativas que claramente não

serviriam: por exemplo, se os círculos eleitorais para as eleições parlamentares fossem

reduzidos, deixando de ser distritais como agora, a representatividade, na riqueza do seu largo

espectro, diminuiria muito. Se houvesse que ser eleito um único candidato por círculo

eleitoral (ou mesmo que fossem poucos) apenas prejudicaria (em alguns casos anularia) a

representação das minorias, e mesmo de minorias que podem ser muito vastas.

Além disso, beneficiaria uma bipolarização partidária, assim artificialmente criada,

tanto mais que os partidos que sempre têm sido maioritários, desde há 40 anos (PS - Partido

Socialista, da Internacional Socialista e integrado no Partido Socialista Europeu, e PSD / PPD

- Partido Social Democrata, anteriormente Partido Popular Democrático, integrado no Partido

Popular Europeu) se reclamam de ideologias semelhantes (embora seja certo que, na prática,

as suas histórias políticas e os seus aliados internacionais os afastem muito e os

contradistingam)14. Entraríamos num sistema político novo, de centrão instalado, irremovível,

num bloco central certamente imobilista, atirando para as margens do regime os mais

inconformistas, à direita e à esquerda, certamente desesperando de uma solução alternativa,

realmente alternativa, no seio do statu quo. Aliás, mesmo com o sistema atual, é o que já se

teme, com um Partido Socialista que, para muitos (e mesmo muitos socialistas) não estará a

14 Para uma rápida abordagem do panorama partidário e ideológico português, cf. FERREIRA DA CUNHA,

Paulo — O espectro Político-ideológico Português Contemporâneo: Tradições, Assimetrias e Paradoxos

(1974-2006), in Pensamento, Experiência e Formas Políticas em Portugal e no Brasil (sécs. XIX e XX), Atas do

VII Colóquio Antero de Quental, 11 a 16 de setembro de 2006, São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil,

Universidade Federal de São João Del-Rei, UFSJ / Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 2007, pp. 342-360. Ou

Idem — Repensar a Política. Ciência & Ideologia, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, p. 287 ss. Para as

ideologias em geral, Ibidem, p. 225 ss.

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representar atualmente uma real alternativa de oposição ao presente governo do PSD e do

CDS / PP (Centro Democrático Social - Partido Popular - Partido integrado, com o PSD, no

Partido Popular Europeu) que, segundo o insuspeito Prof. Freitas do Amaral (que foi

Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs) é o mais direita desde a Revolução

dos Cravos15.

Apesar de muita vozearia em prol de alterações, aos longo dos anos, a Constituição

mantém inalterado o princípio do sistema eleitoral proporcional (aliás limite material ou

cláusula pétrea de revisão constitucional, art. 288.º, h), especificando-se a utilização da média

mais alta de Hondt para a conversão dos votos em número de mandatos dos diferentes

partidos votados (art. 149.º, 1).

E podemos ver na Constituição uma vontade de impedir a nociva concentração de

representação nos maiores partidos, com sacrifício das margens ou minorias partidárias (os

pequenos partidos), por exemplo logo no art. 152.º, 1, segundo o qual a lei não pode exigir

uma percentagem de votos nacional mínima como limite à conversão dos votos em mandatos.

Esse teto ou barreira é uma das formas de afastar forças politicas por vezes importantes. Na

Alemanha, por exemplo, o Partido Liberal (FDP) está muitas vezes em risco de o não

franquear, e é uma das forças mais antigas, importantes e, na verdade, uma das mais

representativas da sociedade alemã (com os sociais-democratas / socialistas democráticos do

SPD, os democratas cristãos / sociais cristãos da CDU e do CSU, e mais recentemente, os

Verdes).

2.3 CANDIDATURAS PARTIDÁRIAS E PAPEL DOS “INDEPENDENTES”

Outra das alegadas soluções mágicas para a alegada crise do Parlamento - crise essa

que é, mais que uma realidade, um tópico antidemocrático e antiliberal muito comum no

pensamento autoritário e conservador - seria o alargamento a independentes da capacidade de

propositura de candidaturas.

A própria expressão “independente” é reveladora de certos pressupostos de uma cultura

antidemocrática, antiparlamentar e sobretudo antipartidária, que vigorou em Portugal durante

15 "Este é o 'Governo mais à direita dos últimos 40 anos', diz Freitas do Amaral", apud TSF, 21 de abril de 2014,

ed. online: http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Portugal/Interior.aspx?content_id=3822223. Consultado em 24 de

abril de 2014.

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não muito longínquos 48 anos (de 1926 a 1974). Como se as pessoas que aderem a partidos

(outra expressão perversa é “pertencentes a partidos”: como se os partidos democráticos

pudessem possuir as pessoas) perdessem, ipso facto, a sua independência. O problema é que

as direções partidárias pensam muitas vezes que tal ocorre e deve ocorrer. Desde logo com a

imposição de disciplina de voto aos deputados.

Pode haver quem perca a liberdade de espírito e se autolimite nos seus movimentos ao

pertencer a uma organização qualquer, como um partido. Há infelizmente casos em que tal

ocorre. Mas um partido ou uma organização qualquer que o obrigasse não seria compatível

com a cultura democrática do Estado Constitucional em que queremos viver. Desde logo

afirma a lei dos partidos (Lei Orgânica n.º 2/2003 de 22 de agosto):

Artigo 23º - Disciplina Interna 1. A disciplina interna dos partidos políticos não

pode afectar o exercício de direitos e o cumprimento de deveres prescritos na

Constituição e na lei.

Não cremos que a emergência de independentes (no sentido de pessoas não filiadas em

partidos) vá resolver nada (podendo até complicar as coisas), dadas as dificuldades de

agenciamento de meios por tais grupos, no caso se serem mesmo independentes. Se

dependerem do poder económico, ou se o representarem mesmo (probabilidade muito

plausível), mais ou menos diretamente, a política cairá ainda mais no descrédito: onde estará,

então, a tão alegada independência? Em todo o caso, o risco de aumento de candidatos

populistas, prometendo “bacalhau a pataco” é maior em quem não tem o peso e a

responsabilidade de uma ideologia, ou, no mínimo, a observação crítica institucional de

companheiros de partido. É também de esperar a candidatura de personalidades mediáticas:

locutores de televisão, artistas, etc.. Cremos que os exemplos estadunidenses de eleição de

antigos artistas de cinema são esclarecedores a esse respeito.

Para já, a Constituição reserva o monopólio das candidaturas nas eleições legislativas

aos partidos políticos (art. 151.º, 1) abrindo a possibilidade de haver igualmente candidaturas

independentes apenas para os órgãos das autarquias locais – art. 239.º, 4, in fine). Nada

impediria que se abrisse a disputa eleitoral a grupos de cidadãos com um mínimo de

assinaturas reconhecidas de apoiantes equivalentes a por exemplo metade do número de

pessoas necessárias para a legalização de um partido. Seria uma prova de abertura

democrática, e uma forma de matar o álibi antipartidário, que se enquista no argumento do

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monopólio partidário. E poderia ser que algo de novo surgisse... Embora sejamos a tal

propósito muito cético.

Enquanto tal não ocorre (e pode ser que não ocorra tão cedo, porque, no fundo, os

partidos terão quiçá algum receio de que o descontentamento os possa varrer o minimizar por

essa via da cena parlamentar), fica à responsabilidade e livre alvedrio de cada partido ou

coligação concorrente convidar ou aceitar para as suas listas cidadãos não filiados nesses

partidos.

A inclusão de independentes, assim como de militantes de outros partidos não

concorrentes autonomamente ao ato eleitoral em causa (mas sem coligação formal com o

partido de acolhimento) é assim possível, e tem sido utilizada, designadamente como tentativa

de alargar o eleitorado para além dos normais eleitores, e contribuindo assim para o reforço da

pluralidade de pontos de vista na Assembleia, quando ocorre (e tem sido o caso), que tais

independentes ou membros de outros partidos ou associações políticas sejam eleitos.

Há, assim, quatro principais situações possíveis, de iure constituto (art. 151.º, 1):

a) a candidatura autónoma de um partido,

b) a candidatura de uma coligação de partidos,

c) a candidatura de partido ou coligação com inclusão de independentes, e a

d) candidatura de partido ou coligação com participação de outro ou outros partidos ou

associações políticas através de membros seus a título de independentes.

Já não parece ser curial a simples participação de um membro de um partido nas listas

de outro sem o conhecimento e a anuência do primeiro, tendo mesmo havido processos

disciplinares partidários por tal facto, o que parece legítimo se se considerar, além da própria

natureza das coisas, o lugar paralelo da lei dos partidos políticos (Lei Orgânica n.º 2/2003 de

22 de agosto), que afirma, no seu art. 21.º, 2, a incompatibilidade de pertença simultânea a

dois partidos. Mas não é só uma questão legal: por que razão, em normalidade, alguém filiado

num partido, sem o consentimento dos seus correlegionários, haveria de concorrer no limite

contra esse mesmo partido?

Outro caso se coloca também, agora em eleições autárquicas e presidenciais: um

militante de um partido que concorra contra candidato(s) oficial(is) do partido, ainda que

como independente. Cremos que é questão que deve ser considerada mais venial, e no caso de

eleição presidencial totalmente possível (e já ocorreu). Porquanto a eleição do presidente da

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República não deve ser partidarizada, e portanto (embora seja fragilizador para o partido e

potencialmente desgastante e penalizador para as várias candidaturas) deve ser livre a

candidatura de candidatos vários do mesmo partido. Ainda que o partido opte por um. Já nas

eleições autárquicas, tem havido processos de expulsão de candidatos que concorrem contra o

próprio partido, como independentes. Embora a sanção seja muito forte, afigura-se-nos que

não é muito curial este procedimento. Mas são situações que devem ser consideradas caso e

caso, e certamente por comissõe disciplinares nacionais, e não locais, para haver total isenção

dos julgadores.

2.4 ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, PRESIDENTE E GOVERNO

A Assembleia da República é um órgão com múltiplas funções, como aliás é corrente

nos tempos que correm: legislativo, de debate político e de fiscalização da atividade

governativa. Esta fiscalização é tanto mais legítima e vital para a democracia quanto é da base

do apoio parlamentar que resulta, por seu turno, a legitimidade governamental. Não elegemos

diretamente o governo, mas sim aqueles (os deputados) que decidirão da sua manutenção em

funções, depois de indigitado pelo Presidente da República, que para tal indigitação deve ter

em conta os resultados eleitorais.

Ou seja: não sendo o Governo eleito pela Assembleia, dela depende, contudo, a sua

constituição (mesmo antes da revisão constitucional, e mesmo na experiência gorada dos

governos de iniciativa presidencial: em que a Assembleia não aceitou governos que não

tivessem real expressão partidária) e a sua manutenção em funções. Obviamente que também

depende da nomeação presidencial do Primeiro-Ministro (mas tendo em conta os resultados

eleitorais) e da confiança (ainda que eventualmente possa ser uma simples confiança passiva)

do Presidente da República.

Mas esta ligação do Presidente da República com o Governo por sua vez depende, em

boa medida e na prática, da própria estabilidade e aceitação do Governo pelas forças

parlamentares. Não apenas da existência de uma maioria, mas da capacidade dessa maioria

dialogar e conseguir alguma legitimidade para além de si, junto mesmo das minorias. Apenas

um Presidente excessivamente comprometido, dependente ou apoiante de uma maioria não

terá em conta apelos das minorias. E não ouvirá o clamor das ruas, mesmo, em caso de graves

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atropelos. O Presidente da República é garante do regular funcionamento das instituições

democráticas, e deve demitir o Governo ou dissolver a Assembleia sempre que (o que será

situação gravíssima e excecional) um governo, ainda que com legitimidade de título (apoiado

por uma maioria parlamentar) haja perdido a sua legitimidade de exercício (por exemplo, por

reiterada política anticonstitucional).

Por menos, muito menos que o cenário hipotético que acabamos de referir, já se chamou

o Povo a de novo pronunciar-se em eleições legislativas. Tal ocorreu com o Governo de Pedro

Santana Lopes, que, tendo embora maioria no Parlamento, não conseguiu acolhimento ou

acatamento quiçá mesmo da parte de membros do principal partido que o compunha e deveria

em princípio apoiar. Tendo-se o próprio então Primeiro-ministro queixado dessa falta de

apoio, e da forma como se teria maltratado o governo, qual bebé no berço16, metáfora na

altura muito difundida.

Assim, o Presidente Jorge Sampaio decidiu pôr fim a esse Governo. Mas,

sintomaticamente, foi à Assembleia da República que dissolveu e não ao governo que

demitiu. Para permitir, certamente, uma renovação da decisão popular, e uma clarificação dos

apoios, que tão confusos parecia estarem. Note-se que Pedro Santana Lopes fora levado à

presidência do governo antes de mais por "indicação" do seu partido ao Presidente da

República, na sequência da saída, para Presidente da Comissão Europeia, do então Primeiro-

ministro, José Manuel Durão Barroso.

Embora, no sistema eleitoral português, o Primeiro-ministro não seja eleito diretamente,

é praxe constitucional (se é que não é mesmo um vero costume constitucional, para mais com

a contraprova das reprovações parlamentares de governos de iniciativa presidencial, com

Primeiros-ministros da confinça exclusiva do Presidente da República) que seja convidado o

rosto que o partido mais votado apresentou ao eleitorado como seu "candidato (obviamente

informal) a Primeiro-ministro", que quase invariavalmente (e invariavelmente para os grandes

partidos) tem sido o Presidente ou o Secretário-geral (conforme seja a figura ativa mais

importante no respetivo partido) do partido. Assim, Durão Barroso tinha tido esse fumus de

legitimação pessoal (talvez até mais que simples fumus), mas a legitimidade de Santana Lopes

16 Só conseguimos localizar ecos dessas declarações, de 2004, in : "(...) ex-PM que usou em 2004 a imagem de

um bebé no berço a ser atirado ao chão". Ed. online:

http://sol.sapo.pt/inicio/Politica/Interior.aspx?content_id=74503 . Mais recentemente aludiu a "cicatrizes" e

"facadas nas costas": «Tenho as costas cheias de cicatrizes das facadas que levei», ed. online:

http://www.tsf.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=770230. Ambos consultados em 24 de abril de 2014.

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decorria sobretudo do seu importante lugar no Partido ganhador das eleições, e da decisão

indigitadora do respetivo órgão diretivo. Esta situação não explicará a debilidade que

subsequentemente se sentiu nesse governo, mas será este talvez um dado contextual a ter em

conta na interpretação da situação, certamente. Sublinhe-se que, constitucionalmente, a

decisão do então Presidente da República de escolher o n.º 2 do partido vencedor das eleições,

para mais por ele indicado, se revelou prudente. Assim como nada haverá no plano

constitucional a objetar à decisão de dissolução da Assembleia.

Claro que, em casos como estes, de ação ou omissão presidenciais, muito se pode

discutir, pró- e contra, no plano político e partidário, mas isso são outros contos, que aqui não

cabem.

3 PROPOSTAS DE ALTERAÇÕES NO SISTEMA ELEITORAL

3.1 ANTIPARLAMENTARISMO

As propostas de revisão constitucional, ou mesmo de substituição (com golpe,

evidentemente, com rutura) constitucional são em geral a aborrecidamente repetitivas e faltas

de imaginação. As mesmas panaceias de sempre, algumas com velho currículo autoritário ou

mesmo ditatorial renascem numa democracia que não soube acautelar-se de corrupções e

gastos indevidos, e se encontra nas mãos dos credores, a braços com o garrote orçamental,

pelo menos. O que aumenta o descontentamento, pois coloca na pobreza ou no seu limiar

milhões de cidadãos.

É assim fácil fazer da Constituição e dos representantes o bode expiatório.

Incapazes de ver os enormes buracos financeiros de bancos que fizeram magicamente

desaparecer verbas astronómicas, que dariam para pagar, por exemplo, vários anos de gastos

na saúde, há opinadores vítimas de alienação e propaganda (não serão todos, mas certamente

alguns) que acreditam que colocar o País no são se consegue com retoques cosméticos

atacando precisamente pilares da democracia.

Há quem pense, como aflorámos supra, que uma mudança constitucional fundamental

seria a diminuição do número de deputados. Como se o que se gasta com eles fosse relevante.

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Houve já quem temesse que o passo seguinte viesse a ser a proposta de abolição das eleições,

pelo dinheiro que consomem.

Mas analisemos a proposta em si mesma. Depende, evidentemente, de que diminuição,

para quantos...

A diminuição do número de deputados na Assembleia da República pode não ser

conseguida por via de revisão constitucional, mas simplesmente por lei ordinária. Com efeito,

o art.º 148.º da Constituição em vigor já coloca um intervalo para o número de membros da

Assembleia da República: prevendo que os deputados serão entre 180 e 230. Menos de 180

implicaria, isso sim, como é óbvio, revisão constitucional. Tal como mais de 230.

E o curioso é que, com cerca de 10 milhões de habitantes, em termos percentuais face à

sua população, Portugal é dos países com menos deputados, está abaixo da média17. Os que

sempre gostam de se louvar no exemplo alheio esquecem-se deste pequeno grão na

engrenagem do seu discurso. Desde, e de outros do género...

Apesar de tudo, a diminuição do número dos deputados, pelo seu simbolismo (e a

Constituição tem inegavelmente, além das demais, uma fulcral função simbólica18), mesmo

por lei ordinária, aproxima-se, “perigosamente” daquelas matérias que poderíamos considerar

materialmente constitucionais posto que formalmente ordinárias. Embora as consequências

práticas de tal quiçá não sejam relevantes, porquanto, indicando a própria letra da

Constituição a possibilidade de diminuição do número de deputados, não se nos afigura

possível qualquer controlo da constitucionalidade no caso de diminuição, sendo forçada a

invocação de que se trataria de norma constitucional “menos constitucional” (ou

“inconstitucional”), categoria que, como é sabido, coloca não poucos problemas, mesmo para

questões de outra natureza19.

17 Cf., v.g., CORREIA, Pedro — Portugal abaixo da média no número de deputados, in "Diário de Notícias", 22

de setembro de 2006, ed. online: http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=646404. Consultado em 24 de

abril de 2014. 18 Cf., por todos, NEVES, Marcelo — A Constitucionalização Simbólica, São Paulo, Acadêmica, 1994. E os

nossos estudos Mito e Constitucionalismo. Perspetiva Conceitual e Histórica, Coimbra, 1988, Separata do

“Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra“, vol. III, Coimbra, 1990 (tese de Mestrado);

Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico-Constitucional nas Utopias Políticas, Coimbra, Faculdade de

Direito de Coimbra, Studia Iuridica, Coimbra Editora, 1996 (tese de doutoramento); Teoria da Constituição, vol.

I. Mitos, Memórias, Conceitos, Lisboa, Verbo, 2002; Traité de Droit Constitutionnel. Constitution universelle et

mondialisation des valeurs fondamentales, Paris, Buenos Books International, 2010 (também com edição em e

book); La Constitution naturelle, Paris, Buenos Books International, 2014. 19 Recorde-se sempre o clássico BACHOF, Otto — Normas Constitucionais Inconstitucionais?, trad. portuguesa

de J. M. Cardoso da Costa, Atlantida, Coimbra, 1977.

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Constitucional é, pois, uma diminuição do número de deputados até ao limite mínimo

de 180 (o que nos colocaria na situação de uma revisão meramente aparente: e não efetiva). A

questão é se tal é conveniente, útil e justo.

E se porventura o espírito da Constituição (também se lhe pode chamar o seu cerne, ou

o seu programa, embora em rigor haja diferenças), pelo menos nos tempos que correm, atenta

a constituição real de composição partidária (assim não seria se houvesse um claro

bipartidarismo: e temos que pensar que a Constituição, se quiser durar, tem de prever, de

olhar para o futuro), não ficaria um tanto ferido com a diminuição do número de deputados. A

considerarmos este último argumento, até a só aparente revisão acabaria por ser uma forma de

revisão real, efetiva, contudo não por via do processo de revisão normal...

Embora sejam sempre muito temerárias estas vias hermenêuticas, por poderem abrir

caminho a grande subjetivismo. Para os perigos de um "psicologismo", em sede de

hermenêutica constitucional, e louvando-se já em Roberto Lyra Filho, alertou ainda

recentemente Lenio Streck20. Sem entrarmos no cerne do problema concreto que levanta, não

deixamos de nos preocupar sempre quando ao positivismo mecanicista21 se substitui algo que

se abeire do direito livre. Se é o caso concreto ou não, são questões de avaliação casuística,

evidentemente.

Ou seja, voltando ao nosso caso: o intervalo de número de deputados permitido pela

Constituição é constitucional, formalmente e materialmente, e neste último caso até na

medida até em que prevê possibilidades futuras. Mas atualmente o mais consentâneo com o

espírito pluralista da Constituição seria manter o número de representantes no Legislativo.

Inclinamo-nos para essa perspetiva, que tem a vantagem teórica, aliás, de suscitar a questão de

eventuais desconformidades constitucionais não absolutas no tempo, mas temporalmente

localizadas...

Analisemos um pouco o problema nos seus pressupostos políticos, sociológicos e sócio-

mentais.

A retórica da diminuição dos deputados é, numa certa ordem de ideias, apenas o

primeiro passo para diminuí-los radicalmente, ou seja, a zero. Há, obviamente, algumas

20 STRECK, Lenio Luiz — Eis porque abandonei o “neoconstitucionalismo”, in "Consultor Jurídico", 13 de

março de 2014, ed. online: http://www.conjur.com.br/2014-mar13/senso-incomum-eis-porque-abandonei-

neoconstitucionalismo. Consultado a 23 de abril de 2014. Consultado em 24 de abril de 2014. 21 POUND, Roscoe — Mechanical Jurisprudence, “Columbia Law Review”, vol. VIII, 1908, p. 608.

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pessoas bem intencionadas nessa campanha. Talvez até a grande maioria dos que opinam no

sentido da concentração o faça na melhor das intenções, desde logo de contenção de custos e

de elevação do nível dos representantes. Como se num país desenvolvido não houvesse duas

centenas e meia de valores... Há esse número e muito mais: assim conseguissem vencer as

barreiras da mediocridade e as rasteiras de alguns dos políticos profissionais que se pretendem

eternizar e aos seus nos lugares.

Mas o que está por detrás daquela ideia de redução, de corte, como pano de fundo não-

dito, é a mentalidade antiparlamentar, que entre nós tem raízes. E a que o salazarismo-

caetanismo deu grande força22.

Como temos dito, isto não quer dizer que tudo esteja bem no mundo dos partidos que

segregam os deputados. Pelo contrário. Há muita coisa mal, e o teste de conhecimentos de

História que há anos se fez aos deputados de então foi a nosso ver um exemplo do que se

deveria fazer: mas antes de os guindar às listas candidatas... A imagem de muitos deputados

que responderam parece que não ficou lá muito bem... Infelizmente, esse argumento (falível,

sensacionalista, mas apesar de tudo concreto, objetivo) não é muito invocado, antes se agitam

teses perigosas e muitas erróneas e até caluniosas (como a da pretensa inoperosidade dos

deputados). Pior ainda são as acusações de que a Casa da Democracia seria afetada pelas não

incompatibilidades profissionais de alguns deputados, e de que se fariam negócios na mesma.

Tudo teria, obviamente, que ser provado. Mas, em vez disso, paira a acusação, sem que se

prove para um lado ou para o outro. O que é insalubre para a Democracia. Suspeições deste

género não podem subsistir. A menos que se levem à conta de simples propagands política, ou

"declarações não sérias". Mas precisamente isso é uma das coisas que a ética republicana não

poderia, a nosso ver, tolerar: que se esgrimam acusações e argumentos graves sem

consequências de qualquer tipo.

De qualquer forma, muitos parecem não ter dúvidas de que pelo menos alguns dos

eleitos não terão grande preparação. O teste de História seria como uma prova real. Mas

outras haveria, designadamente certas declarações que têm sido criticadas. Mesmo

descontando a paixão partidária...

22 Cf.., por todos, o nosso Dos direitos fundamentais e da representação política na Constituição portuguesa de

1933, in As Constituições Republicanas Portuguesas Direitos fundamentais e representação política (1911-

2011), org. de Ana Maria Belchior, Lisboa, Mundos Sociais, 2013, p. 45 ss..

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Já Oliveira Martins deplorava que para qualquer pequeno emprego público seja preciso

alcavalas de diplomas e nada se reclame para governar (lato sensu, claro):

Confunde-se hoje a soberania com o poder, a autoridade com o governo. Todo o

cidadão é, sem dúvida, cabal, completa e igualmente, uma fonte de autoridade e um

poço de soberania; mas que todo o cidadão seja também virtualmente um homem

capaz de exercer os supremos cargos da república, eis aí um dos paradoxos que farão

sem dúvida estalar de riso os nossos vindouros. Requerem-se montanhas de

habilitações e atestados para o exercício da mais ridícula função: nada,

absolutamente se requer, nem folha corrida, nem exame de instrução primária, para

se ser deputado ou ministro23.

Essa confusão entre as habilitações do funcionário e as do político, e o nada se requerer

para este último é que é o grande problema, aliado ao da Ética, da nossa República24.

E contudo é preciso ter em conta que pode haver, e historicamente houve e há, em

vários países, grandes políticos sem especiais habilitações literárias. Est modus in rebus. Tudo

tem que ser ponderado e moderado pela prudentia. Infelizmente, nestas questões políticas,

que deveriam ser muito mais prudenciais, há a tendência para recuperar sempre velhos mitos e

utopias, e criar normas rígidas, que não convêm à mutabilidade dos reptos sempre

surpreendentes.

3.2 ELEIÇÕES PRIMÁRIAS NOS PARTIDOS?

Uma hipótese a considerar para uma pré-seleção partidária seriam as eleições

primárias... Uns amam-nas, outros odeiam-nas. Cremos que seriam necessários mais estudos

sobre os seus resultados, conforme as suas diferentes modalidades. E estudos que pudessem

ser pensados em termos háneis, porque o que importa é saber se certas soluções serão

adaptáveis a cada país.

Há porém, a nosso ver, um grande perigo em instaurar eleições partidárias primárias

para escolha de candidatos em alguns casos, como o português. Nomeadamente permitindo-se

23 MARTINS, Oliveira — O Descrédito da Política, “O Repórter”, Lisboa, 19-I1888, ano 1, n.º 19. 24 Cf. os nossos livros Nova Teoria do Estado. Estado, República, Constituição, São Paulo, Malheiros, 2013,

Prefácio de Paulo Bonavides, e Para uma Ética Republicana. Virtude(s) e Valor(es) da Republica, Lisboa,

Coisas de Ler, 2010, Prefácio de Eduardo Bittar.

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qualquer tipo de caciquismo (v.g. por via do pagamento de quotas aos mais carenciados

inscritos).

E cremos que esse perigo seria agravado se meros “simpatizantes” pudessem votar –

neste caso, com o risco adicional de eles poderem ser fornadas de infiltrados de grupos

políticos, religiosos, ou económicos (ou outros) adversos ao partido de portas já não abertas,

mas escancaradas...

Quiçá um remédio para caciquismos internos com base económica fosse a solução,

decerto não perfeita, mas sem grande alternativa visível, de tornar as quotas dos inscritos nos

partidos contribuições meramente facultativas, já que os pedidos de isenção são sempre mais

ou menos vexatórios. Não cremos que uma tal medida pudesse arruinar os cofres partidários.

Mas não nos iludamos: ou muda a mentalidade nos partidos, ou os líderes nacionais

deles se impõem a lógicas localistas, aparelhistas e corporativas internas (e naturalmente à

"corte" que tenderá a rodeá-los), e veem com olhos de ver quem mandam para o Parlamento,

ou então, com poucos ou muitos representantes, sempre teremos, atrás de vultos

inegavelmente de admirar, muitos back benchers (ou até por vezes saltando para a ribalta) que

deixam muito a desejar...

Também de nada serve pensar-se que infiltrar voluntariamente as listas de

independentes (sem partido) resolveria a questão. Isso acaba por criar apenas mal-estar

interno e normalmente é vã a ilusão que um partido alarga a sua base de apoio com um ou

outro nome, ainda que mediático. Nem sequer cremos que dê votos, a não ser os dos próprios.

Por outro lado, é corrente que um independente eleito deputado acabe por se filiar nele.

3.3 DAS CANDIDATURAS INDEPENDENTES AO GRANDE CHEFE

Outra panaceia a que brevemente aludimos já é a possibilidade de candidaturas de listas

independentes de partidos, não só, como hoje sucede, para eleições autárquicas, mas também

nacionais. Outra esperança que cremos prometer mais do que iria dar, embora não nos

opunhamos a que se faça a experiência. Pensamos, até por indícios que estão aí já, que a

eleição de independentes só favoreceria caciquismos, ou figuras mediáticas, ou muito

abastadas.

Quem é conhecido?

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Quem pode pagar uma campanha eleitoral eficazmente?

E na base de tudo: quem tem tempo para conseguir dedicar-se a uma tal empresa?

O problema é que as pessoas, feridas, acossadas, contrariadas, verdadeiramente

infelizes, arrimam-se a umas soluções miraculosas para irem levando a vida cinzenta e

maçadora, por vezes trituradora25. Desilusão, uma vez mais: não há soluções miraculosas,

como não há salvadores.

Sim, porque o próximo passo seria aplaudir o grande líder, o grande chefe, etc., etc. E

como os grandes salvadores têm pés de barro! A História no-lo conta abundantemente. Em

variadíssimos países.

Tudo sinais de menoridade política. É muito fácil a um Povo demitir-se e confiar no

grande chefe, e depois, vista a fraude (e é muito curto o estado de graça real – depois é só

medo de represálias), dizer mal dele. Mesmo dizer mal dele acaba por ir sendo solução. Mas

triste solução essa.

3.4 REFORÇO DA CIDADANIA E REINVENÇÃO DOS PARTIDOS

Quando assumiremos nas mãos as nossas responsabilidades como pessoas e cidadãos?

A questão da qualidade dos deputados não se resolve com a diminuição do seu número.

Diríamos quase que pelo contrário. Há quem diga que excelentes deputados acabam por entrar

(ou nem entrar) só depois dos aparelhómetros... (descontando as figuras de proa, que são

“cabeças” e “pescoços” de lista). Ou seja, os melhores tecnicamente, culturalmente, etc.

Têm sempre que dar o lugar aos dos aparelhos... Que, magnanimamente, os podem

deixar entrar em lugar do final das listas. Seria interessante verificar a hipótese, e ver se quem

fala e quem trabalha no Parlamento mais (e melhor) não serão os do princípio e os do fim das

listas... É apenas uma hipótese de pesquisa.

No caso de partidos pequenos, a qualidade sobe sempre, porque ficam só “cabeças” e

“pescoços” de lista. Mas nos grandes, tinha que pensar-se seriamente numa regeneração

25 Num sentido semelhante, mas a propósito da sanha mão dura penal do homem comum: GIULIANI NETO,

Ricardo — Pedaços de Reflexão Pública. Andanças pelo Torto do Direito e da Política, Porto Alegre, Verbo

Jurídico, 2009, p. 60.

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partidária profunda, uma verdadeira reinvenção dos partidos26, na mais lídima fidelidade

democrática, como é óbvio: sem subverter o seu essencial sentido e funções.

Mas repensar os partidos é fundamental, e não apenas trocar as voltas às regras

eleitorais, para que, tudo mudando, acabe por tudo permanecer na mesma. Até porque se sabe

que a génese dos partidos não foi para um tempo como este27, e há desafios não só do mundo

moderno como das próprias instituições atuais que não se sintonizam com alguns avatares.

Não é nada fácil. Porque depende de pessoas, das suas mentalidades, da sua moral, dos

seus comportamentos. E isso não se reforma por decreto.

De novo, a tentação é dizer que é preciso mais educação. Educação profunda, e não

mera instrução. Educação até do caráter. As tais pessoas “de um só parecer” de que falava Sá

de Miranda28, faltam muito, por toda a parte, prevalecendo as gentes de corte, na capital ou

“na aldeia” (para recordar Francisco Rodrigues Lobo)...

A sem-cerimónia com que o antigo chefe se curva, servilmente, ante o novo, e bajula

quando já o bajularam, sem que cuide que tal é falta de dignidade, a facilidade com que o

empregado muda de opinião porque o patrão tem outra ideia, uma geral moral elástica, e a

convicção de que, afinal, servilismo é só servilismo e vénias não passam de mesuras, podendo

assim prodigalizar-se sem prejuízo próprio, são sinais de grave embotamento da alma.

Mas voltemos ao nosso tema. A única possibilidade de diminuir o número de deputados

e manter a “beleza da borboleta” parlamentar, na variedade das suas cores, para relembrar a

comparação de Álvaro de Campos, seria encontrar uma engenharia compensatória, por via da

lei eleitoral (no respeito pela Constituição), que permitisse que, mesmo com menos

deputados, ainda assim, os partidos mais pequenos não perdessem a sua representatividade.

Não esqueçamos nunca, porém, que o Parlamento abunda em comissões especializadas,

não sendo raro que o mesmo deputado pertença a várias.

26 Colocando a questão, v.g., CAGGIANO, Monica Herman Salem — É possível reinventar o partido? O

Partido Político no Século XXI, in Direito Constitucional, Estado de Direito e Democracia. Homenagam ao

Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, coordenadores Carlos Bastide Horbach, Fernando Dias Menezes de

Almeida, José Levi Mello do Amaral Júnior Roger Stiefelmann Leal, São Paulo, Quartier Latin, 2011, p. 539 ss.,

máx. p. 567 ss.. 27 Recordemos, por todos, a agudíssima reflexão do nosso saudoso Mestre português EHRHARDT SOARES,

Rogério — Sentido e Limites da Função legislativa no Estado Contemporâneo, in A Feitura das Leis, coord. de

Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1986, 2 vols, vol. II , p.

429 ss.. 28 SÁ DE MIRANDA — Carta I, XXIV: «Homem de um só parecer / Dum só rosto, uma só fé, / De antes

quebrar que torcer, / Ele tudo pode ser, / Mas de corte, homem não é.»

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Com o exponencial crescimento da burocracia e dos dossiers para ler (aliás, a

superabundância de documentação fornecida é um já consabido truque, a todos os níveis, para

fazer passar medidas que só por sorte um ser humano teria ensejo de ter lido, para mais com

prazos sempre "para ontem"29), uma diminuição do número dos parlamentares iria ainda

tornar menos assídua a presença a todas as comissões, obrigar a mais acumulações (ou reduzir

o número das comissões, o que talvez não seja fácil, dada a profusão temática que a

complexidade hodierna gera naturalmente), tornar o tempo dos representantes do Povo mais

escasso ainda. E a sua vida ainda mais infernal. Porque, na verdade, o deputado que queira

estar presente e cumprir, no Parlamento e fora dele tem uma vida ocupadíssima e danada, ao

contrário do que os mitos urbanos e mediáticos propagam. Na verdade, além de o estudo da

documentação virtualmente lhe tomar o tempo todo, sem falar das discussões em comissões e

a presença no plenário, é chamado para muitas coisas fora dele, desde logo pelo seu partido,

onde também certamente mil punhais o esperam, à espera de deslize para futura substituição.

Por tudo isto, não será que usar a possibilidade do art.º 148.º diminuindo o número de

deputados, agora, é uma falta de atenção à realidade constitucional presente? Sem prejuízo de

se louvar a Constituição por prever a hipótese para o futuro, não manietando o legislador e

nem sequer o obrigando a uma revisão constitucional para se adaptar a novas circunstâncias,

que podem ser de muito diverso tipo.

4 CONCLUSÃO

Quando se comparam empiricamente os sistemas eleitorais de vários países conclui-se

um dado sociológico muito curioso: todos os países estão mais ou menos descontentes com o

seu sistema, todos acham que os seus representantes, no mínimo, poderiam ser melhores, e

todos alvitram (embora divergente e pluralmente) que um ou outro sistema de um ou outro

país (normalmente aqueles face aos quais à complexo de inferioridade, ou então curiosidade

exótica) seria muito melhor para o próprio, e que se deveria importar. Com mais ou menos

retoques, normalmente pro domo da força política a que pertence ou com que simpatize o

opinador.

29 Uma artimanha do género se poderá encontrar num dos episódios da série televisiva britânica Yes Prime

Minister. Cf. LYNN, Jonathan / JAY, Antony — Yes Prime Minister, Londres,1986.

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A questão das alternativas dos sistemas eleitoriais parece assim resolver-se com mais

direito comparado. E com o reconhecimento de que não há soluções estruturais perfeitas.

Assim como a grande conclusão é sempre a de que o mais importante é o bom senso e

esclarecimento populares, que permitam, seja qual for o sistema, eliminar nas urnas os

candidatos corruptos e incompetentes e premiar com a eleição os honestos e competentes.

Evidentemente que leis do tipo "Ficha Limpa" podem ajudar. Mas, como se sabe desde a mais

velha história, "pensada lei, pensada malícia". É preciso, mais que terapêutica, e antes dela,

profilaxia, medicina preventiva.

Mas além destas precauções básicas, outra importantíssima há. Não basta ser reto e

competente. É preciso ter tenacidade e outras virtudes sem as quais um político não leva a sua

àvante. E é acima de tudo preciso que o seu programa, fundado numa ideologia, seja

adequado ao país e à situação e, em geral, favorável à generalidade do Povo. São muitos

predicados a avaliar em cada candidato. Mas a experiência, a História e a intuição podem ser

de grande ajuda.

Alguém disse que não se importaria muito de ser julgado por leis injustas se os juízes

fossem justos30. É o que ocorre, mutatis mutandis, com as leis eleitorais e com os candidatos e

o eleitorado: com um eleitorado esclarecido e bons candidatos, as leis eleitorais até podem ser

más. Agora podem as leis ser excelentes, se o Povo está iludido ou desiludido, e se os

candidatos não buscam servir, mas servir-se, tudo está perdido...

30 Cf. TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva — Duas Palavras, in O que é a Filosofia do Direito, AA. VV.,

coord. de Eduardo Carlos Bianca Bittar, Barueri, SP, Manole, 2004, p. 29. No mesmo sentido, em geral,

embora colocando exemplos nacionalmente mais concretos, PEREIRA MENAUT, Antonio-Carlos — El

Ejemplo Constitucional de Inglaterra, Madrid, Universidad Complutense, 1992.

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PERDA DO MANDATO POR CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM

JULGADO: CASSAÇÃO OU EXTINÇÃO DO MANDATO? UMA VISÃO

COMPARATIVA DE CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA E DE REVALORIZAÇÃO

DE PRINCÍPIOS

Carina B. Gouvêa1

Lincoln A. Rodrigues2

Sumário: 1 Introdução. 2 A perda do mandato por cassação, o procedimento

constitucional. 3 A perda do mandato por extinção, o procedimento constitucional. 4

Perda do mandato por condenação criminal transitada em julgado: controvérsias

constitucionais cassação ou extinção do mandato? 5 Uma visão comparativa de

democracia representativa – a corte constitucional decidindo de forma direta. 6

Caminhos para a uma construção democrática. 7 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Dialogar com a possibilidade de perda do mandato parlamentar é trazer à tona o

sentido de aplicação da Carta Constitucional e as possibilidades e procedimentos que poderão

ensejar a perda de mandato. Além disso, há de ampliar as fronteiras para um olhar mais

democrático sobre o que determina a Carta.

O Supremo Tribunal Federal tem se deparado frequentemente com casos que

envolvem a perda de mandato parlamentar e, consequentemente, um velho paradigma

continua vivo: a perda de mandato por condenação criminal.

Neste caso, qual o procedimento será considerado constitucional? A cassação ou a

extinção do mandato, já que há previsibilidade constitucional nos dois artigos mencionados?

O olhar precisa estar centrado na democracia e na força imperativa do poder popular.

1 Carina Barbosa Gouvêa, Doutoranda em Direito pela UNESA; Mestre em Direito pela UNESA; Pesquisadora

Acadêmica do Grupo "Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional"; Professora da Pós Graduação em

Direito Militar; Professora de Direito Constitucional, Direito Eleitoral e Internacional Penal; Pós Graduada em

Direito do Estado e em Direito Militar, com MBA Executivo Empresarial em Gestão Pública e Responsabilidade

Fiscal; Advogada; E-mail: [email protected] 2 Lincoln Almeida Rodrigues, Advogado; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera

– UNIDERP; Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais; E-mail: [email protected]

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Um caso paradigmático, envolveu o Senador Demóstenes Torres, alvo de um processo

disciplinar aberto, por unanimidade, pelo Conselho de Ética e Disciplina do Senado Federal.

Este processo, que poderia ensejar a perda de mandato, foi decorrente de representação do

Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na qual o Senador foi acusado de ter quebrado o

decoro parlamentar por ter mantido relações com o contraventor Carlos Cachoeira.

A Carta Constitucional traz uma leitura que poderá gerar equívoco, quando afirma em

seu artigo 55: “[...] que perderá o mandato o Deputado ou Senador que[ ...]”. Neste sentido, a

leitura a ser feita é: “poderá perder o mandato o Deputado ou Senador que”. Esta segunda

leitura é a que deve ser feita, porque a perda de mandato é consequência de procedimento

próprio, que poderá ou não ensejar a perda do mandato.

Assim, a carta confere procedimentos diferentes ao rol delimitado no art. 55, que prevê

a possibilidade de perda de mandato.

2 A PERDA DO MANDATO POR CASSAÇÃO, O PROCEDIMENTO

CONSTITUCIONAL

Neste sentido, por disposição do rol estabelecido no artigo 55, poderá perder o

mandato aquele que infringir quaisquer das proibições estabelecidas no artigo 54, quais sejam:

1) Desde a expedição do diploma:

- firmar ou manter contrato com empresa que exerça função pública, seja da

administração direta ou indireta. O objetivo dentre outros é evitar o tráfico de influências.

Comportando exceção ao contrato de adesão, pois neste caso, não existe possibilidade de

“conchavos”; e

- aceitar cargo, função ou emprego público remunerado.

2) Desde a posse:

- não pode o deputado ou senador ser proprietário, controlador ou diretor de

empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público;

- ocupar cargo ou função, inclusive de confianças nas entidades que exerçam

função pública; e

- advogar em causas que estejam ligadas as entidades que exerçam função

pública e ser titular de mais de um cargo ou mandato público eletivo.

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Poderá perder o mandato, também, aqueles cujo procedimento for declarado

incompatível com o decoro parlamentar. Será considerada quebra de decoro, de acordo com a

Carta, os enunciados determinados pelos respectivos Regimentos Internos, o abuso de

prerrogativas e a percepção de vantagem indevida. Desta forma, as possibilidades da quebra

de decoro são vislumbradas no Regimento Interno do Senado Federal, em seus artigos 32 e 33

e, no caso da Câmara dos Deputados, são elencadas no artigo 231, § 8º e 240.

Também aquele deputado ou senador que sofrer condenação criminal transitada em

julgado poderá perder o mandato.

Nestes casos, ou seja, na infringência de quaisquer dos itens previstos nos artigos 54,

de quebra de decoro parlamentar e/ou condenação criminal, os Deputados e Senadores

poderão perder o mandato pelo procedimento de cassação. Neste procedimento, os

parlamentares decidirão, por voto secreto e maioria absoluta, se o mesmo perderá ou não o

mandato, assegurada ampla defesa. Natureza, portanto, constitutiva.

Cabe, aqui, uma ressalva, passível de reflexão: poderá um parlamentar, condenado

criminalmente atuar em nome deste povo constitucional? Ou, ainda, poderá o Senador

Demóstenes não ser cassado por quebra de decoro parlamentar?

Esta submissão da decisão de perda de mandato parlamentar à Casa Legislativa a qual

pertence o Deputado ou Senador condenado criminalmente em decisão já transitada em

julgado, não pode ser entendida como forma de diminuir a imperatividade das decisões

emanadas pelo Poder Judiciário? Apesar da imperatividade da Carta Constitucional, há a real

necessidade de reanalisar o preceito constitucional3.

Pensemos que o voto é secreto e de maioria absoluta, o que é um grande avanço, pois

angariar 42 votos no caso dos Senadores e 257 no caso dos Deputados não é tarefa fácil! Já se

manifestou o decano da Corte, Ministro Celso de Mello, quanto ao voto secreto: “Não há, no

regime democrático, a possibilidade de se preservar e se cultuar o mistério” e, ainda, “Não há

razão para que se mantenha o sigilo de votações. Os ministros do STF, os juízes e magistrados

votam (publicamente), proferindo decisões em questões delicadas, e, nem por isso, perdem

sua independência, nem por isso se expõem a pressões indevidas”.

3 RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 83

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3 A PERDA DO MANDATO POR EXTINÇÃO, O PROCEDIMENTO

CONSTITUCIONAL

Já nos casos de não comparecimento à terça parte das sessões legislativas, perda ou

suspensão dos direitos políticos e quando decretado pela justiça eleitoral, o procedimento para

a perda de mandato é denominado de extinção. Neste caso, haverá declaração pela mesa

diretora da respectiva casa, assegurada ampla defesa. Natureza, portanto, declaratória. Neste

caso, a perda do mandato não está adstrita a vontade dos parlamentares, mas por determinação

da Carta o presidente deverá declarar assegurada a ampla defesa, sendo esta medida mais

rigorosa.

Pensemos. Seria possível, caso haja decretação da Justiça eleitoral, que a mesa não

declare a perda de mandato? O presente já ocorreu, no caso exemplificativo do Senador

Expedito Júnior, em que, apesar da decretação feita pela Justiça Eleitoral, que havia cassado

seu diploma por captação ilícita de sufrágio, a mesa do Senado simplesmente não declarou a

perda de mandato. E mais uma vez, a Justiça cumprindo seu papel!

O que significa assegurar ampla defesa? Que o Deputado ou Senador se valerá de peça

de defesa contra decisão judicial? A Corte se manifestou no sentido de que “uma vez

comunicada à Casa Legislativa, deve ser cumprida imediatamente, por ato de caráter

meramente declaratório, sem que se possa cogitar da abertura de qualquer procedimento

administrativo interno que vise a reapreciar, em juízo político, a decisão judicial”. Seria esta

uma violação da harmonia e independência dos poderes, ou uma determinação constitucional?

4 PERDA DO MANDATO POR CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM

JULGADO: CONTROVERSIAS CONSTITUCIONAIS CASSAÇÃO OU EXTINÇÃO

DO MANDATO?

A possibilidade de perda de mandato por condenação criminal encontra guarida em

dois dispositivos constitucionais. Seja no art. 55 IV, cuja previsibilidade está na perda ou

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suspensão dos direitos políticos; como no VI, onde prevê a perda aquele que sofrer

condenação criminal em sentença transitada em julgado.

O artigo 15, inciso III da Constituição Federal de 1988, dispõe acerca da perda ou

suspensão dos direitos políticos, onde uma das possibilidades para a perda é em virtude de

sentença criminal condenatória transitada em julgado.

Esta controvérsia pode ser considerada um conflito entre normas jurídicas

constitucionais, pois duas normas que pertencem a um mesmo ordenamento jurídico e tratam

de mesma matéria se contradizem.

Isto é possível, de acordo com Dimoulis, pois o legislador pode “emitir duas ordens

contraditórias para a mesma pessoa e o mesmo caso” e assim, “ambas serão formalmente

válidas.”4

Com relação ao conflito entre normas, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do

Recurso Extraordinário nº 179.502, em 1995, decidiu pela aplicação do “princípio da

especialidade”, onde o entendimento de que a redação do art. 15, III da CRFB/88 é

autoaplicável, considerando esta uma norma geral. Assim, os parlamentares encontram-se

submetidos à disposição do art. 55, VI, §2º da CRFB/88 por ser esta de norma de caráter

especial5.

Neste sentido, o Tribunal Superior Eleitoral, sob o comando do Presidente Ministro

Nelson Jobim destacou acerca desta questão nos seguintes termos:

A norma inscrita no art. 55, §2º, da Carta Federal, enquanto preceito de direito

singular, encerra uma importante garantia constitucional destinada a preservar, salvo

deliberação em contrário da própria instituição parlamentar, a intangibilidade do

mandato titularizado pelo membro do Congresso Nacional, impedindo, desse modo,

que uma decisão emanada de outro (o Poder Judiciário) implique, como

consequência virtual dela emergente, a suspensão dos direitos políticos e a própria

perda do mandato parlamentar.

Não se pode perder de perspectiva, na analise da norma inscrita no art. 55, §2º da

Constituição Federal, que esse preceito acha-se vocacionado a dispensar efetiva

tutela ao exercício do mandato parlamentar, inviabilizando qualquer ensaio de

ingerência de outro poder na esfera de atuação institucional do Legislativo (JOBIM

apud RAMAYANA, 2012, p. 84)

4 DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito: definição e conceitos básicos, norma

jurídica. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 201. 5 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 813.

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Na decisão acima, é possível vislumbrar o entendimento da Corte Eleitoral, no sentido

de preservar a independência e autonomia dos poderes do Estado constante no artigo 55,

parágrafo segundo da Carta brasileira.

Poderia ser considerado esta uma construção democrática? De fato, permitir que a

perda do mandato advinda de sentença criminal transitada em julgado seja processada pela via

do procedimento de “cassação” não enseja uma deturpação do próprio sentido de

representação popular? Poderá haver um parlamentar condenado, preso e ainda exercendo o

mandato.

No caso do procedimento de extinção de mandato, há um maior endurecimento, já

que, condenado, haverá a perda de seus direitos políticos e nesta sequência, a perda do

mandato eleitoral, sem possibilidade de escolha pelos pares.

Não pretende afrontar a independência dos poderes, mas perceber o sentido

constitucional a que necessita uma sociedade democrática.

5 UMA VISÃO COMPARATIVA DE DEMOCRACIA REPRESENTATIVA – A

CORTE CONSTITUCIONAL DECIDINDO DE FORMA DIRETA

Dentre os países latino-americanos, apenas o Chile atribui ao Poder Judiciário a

competência plena de julgar os parlamentares e atribuir aos mesmos a perda de seus

mandatos, sem a necessidade de submeter a Casa Legislativa6.

Esta perspectiva não está vocacionada a inviabilizar a atuação institucional do

legislativo, mas de dar sentido as determinações constitucionais.

Os artigos 58, 59 e 60 da Carta Constitucional chilena prevêm de forma sucessiva as

incompatibilidades, os impedimentos e a possibilidade de perda de mandato eleitoral.

Nestes casos, será por determinação da Carta a responsabilidade da Corte

Constitucional, conforme art. 93, 14.º, pronunciar-se sobre as incompatibilidades,

desincompatibilizações e causas de perda de mandato parlamentar, de forma direta.

Citando um precedente, o Tribunal, em 2011, decretou a perda de mandato

parlamentar da Senadora Ena Von Baer, pois, após ter sido Ministra de Estado, tomou posse

no cargo de Senadora antes de completar 01 ano após a saída do Ministério que ocupava, o

6 FERNANDES e PONTES, 2006, p. 03

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que a tornou inabilitada para o exercício do mandato7, em razão da violação ao artigo 57 da

Carta.

A decisão confirmou que a história constitucional chilena enaltece a importância de

uma forma de governo “republicana e democrática representativa”. Para tanto a modalidade

eletiva é o princípio essencial de sua democracia representativa. O princípio democrático está

configurado com o regra de organização dos poderes do Estado. Um princípio que tem um

papel diretivo e informador do ordenamento jurídico e a respeito do qual devem desenhar as

interpretações constitucionais que resultem contraditórias com os princípios e valores.

Desta forma, frente as diversas interpretações possíveis do alcance da proteção

constitucional de um direito fundamental, deve-se excluir a que admita o legislador no seu

regular exercício, que na prática impossibilite a plenitude do valor consagrado e que sejam

inconciliáveis com a sua prática de representatividade.

Assim, “a democracia não pode ser separada do que a democracia deve ser”8. Portanto,

a remoção do ideal democrático acaba ferindo gravemente a realidade do sistema político e é

evidente que uma destas abordagens diz respeito à origem dos representantes.

Este princípio é equivalente ao reconhecimento da soberania popular na fonte do

poder democrático sob um parâmetro constitucional livre, eleições competitivas.

Portanto, eles são democraticamente eleitos pelo povo de forma direta, sem a

mediação das mesas de voto ou eleitores parlamentares. (Anuário de Direito Público

Yearbook 2011, Universidad Diego Portales , 2011, p. 173) .

Neste sentido, a democracia é a competição pelo poder num contexto pluralista e “a

nossa definição de democracia implica que não há tribunais ou autoridades que não são o

resultado de processos democráticos no qual todos os cidadãos podem participar de forma

eficaz”9.

A Corte ainda refletiu sobre o alcance do princípio da separação de poderes e como ela

se manifesta na nossa ordem constitucional fundamental. Para ela,

doutrinariamente, este é um conceito jurídico que a ciência política delimitou como

um princípio organizador, e é a aplicação mais plausível de regimes presidencialistas.

7Tribunal Constitucional chileno. Julgamento do Rol nº 2087-11-INH. Disponível em:

http://www.tribunalconstitucional.cl/wp/ver.php?id=2277. Acesso em: 06 de Out. de 2014. 8 SARTORI, Giovanni. Teoria da Democracia I. Debate contemporâneo. Rei: Argentina, 1988, p.26. 9 LINZ, Juan José. Os problemas da democracia e da diversidade de democracias. Madrid: Alianza Editorial,

1998, p 228.

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Para Ferrajoli10 é entendido como “independência funcional orgânica ( na formação de

órgãos) e (no exercício de funções )”. Por sua vez, Geoffrey Marshall resume o alcance do

conceito de separação de poderes , dizendo que “a frase aparentemente simples ‘separação de

poderes’ reflete um conjunto de ideias que se sobrepõem e refletem mais de um núcleo, como

por exemplo, ‘distribuição’, ‘diferenciação’, ‘isolamento’, ‘confronto’. Nem todos esses

termos são sinônimos e as implicações de algumas delas são mutuamente inconsistentes.”11

A noção clássica de separação de poderes aponta para o que Loewentein12 chama de

corpos crivados de constitucionalismo de controles inter e intra-órgãos. Neste sentido, a ideia

de Constituição democrática tem como um de seus elementos essenciais o mecanismo “que

estabelece uma cooperação planejada dos diversos detentores de poder. Dispositivos e

instituições, na forma de freios e contrapesos significa simultaneamente uma distribuição e,

assim, limitar o exercício do poder político”. Um mecanismo de controle que também impede

que os respectivos poderes, dentro de sua autonomia, com o fim de evitar que um deles, caso

não atue, possa haver a resolução do impasse. Sob o impacto da ideologia democrática da

soberania popular, o constitucionalismo alcançou o ponto em que o árbitro supremo nas

disputas entre aqueles em conjunto poder foi incorporado ao eleitorado soberano.

Deve-se, por óbvio, salvaguardar a “independência e dignidade da função

parlamentar”. Neste sentido, está assentado na Corte chilena que este objetivo visa proteger o

Parlamento contra qualquer pressão política, social e econômica, preservando a dignidade do

cargo.

A divisão de poderes reflete a dimensão institucional das garantias de liberdade

política, com as reservas acima mencionadas, a independência do parlamento é a dimensão

subjetiva necessária para que desempenhe a sua função com total liberdade, que é guardado

pelo sistema de inelegibilidade e incompatibilidade prevista na Constituição do Chile.

A divisão dos poderes, portanto, não será violada se guardar pertinência com as

atribuições constitucionais.

10 FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Madri:Trotta, 2006, p. 98. 11 MARSHALL, Geoffrey. Teoria da Constituição. Madrid:Calpe,1982, p. 136-137. 12 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria da Constituição. 4ª ed. Barcelona, 1986 , p 153.

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6 CAMINHOS PARA A UMA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA

Uma democracia precisa, necessariamente, de formas mais autônomas de participação

política. Neste sentido, as pessoas constitucionais devem agir como ator informal e formal,

pouco a pouco pelas atividades e engajamentos. Os novos movimentos sociais são fatores

preponderantes, nas ondas emancipatórias que trazem significação às lutas democráticas de

participação.

Mas seria este modelo adotado pela Carta de 1988 a ideal? Poderemos adotar um

modelo cuja fiscalização do mandato parlamentar se desse de modo mais direto pelos eleitores

que elegem estes parlamentares?

Os modelos democráticos possuem algumas variações no que tange ao sistema de

controle popular. Assim, a Carta colombiana possui um modelo que se adequa a uma forma

“mais democrática de controle do mandato parlamentar”, assim denominado “revocatória de

mandato”.

Tal instituto foi regulamentado pela Lei 134/1994, onde o art. 6º13 dispõe que os

eleitores colombianos poderão, por meio de votação, retirar o mandato conferido ao eleito14.

Tal revocatória se dá do seguinte modo:

(...) exige, para a iniciativa, grupo de cidadãos em número não inferior a 40% dos

votos obtidos pelo governante respectivo. Depois disso, a revocatória irá a voto

popular, sendo o recall aprovado caso pelo menos 60% dos participantes votarem

nesse sentido. Para surtir seus efeitos, deverão participar do pleito ao menos 60%

dos votos registrados à época em que o mandatário foi eleito. (ARAÚJO,

FERNANDES e FEDALTO, 2012, p. 177)15

Apesar da Lei nº 134/1994, em seus artigos 6416 e 6917, exigir um quórum elevado, o

modelo de controle do mandato não deixa de ser um importante instrumento democrático.18

13 Art. 6º Revocatória del mandato. La revocatória Del mandato es un derecho político, por médio del cual los

ciudadanos dan por terminado el mandato que le han conferido a un gobernador o a un alcade. 14 ARAÚJO; FERNANDES; FEDALTO, 2012, p. 177 15 ARAÚJO, FERNANDES e FEDALTO, 2012, p. 177 16 ARTICULO 64. Revocatoria del mandato. Modificado por el art. 1º de la ley 741 de 2002. Previo el

cumplimiento de los requisitos exigidos por esta ley para la presentacion e inscripción de iniciativas legislativas

y normativas, um número de ciudadanos no inferior al 40% del total del votos válidos emitidos em la elección

del respectivo mandatário, podrá solicitar ante la Registraduría del Estado Civil correspondente, la

convocatoria a la votación para la revocatória del mandato de um gobernador o um alcalde. Solo podrán solicitar

la revocatória quienes participaron en la cual se eligió al funcionário correspondiente.

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De 1994 a 2009, cem revocatórias de mandato foram propostas e nenhuma logrou

êxito, de acordo com Araújo19. Isto não afasta a importância de tal medida como instrumento

assegurado pela Constituição colombiana e que garante a participação popular direta dos

cidadãos. Afinal de contas, se todo o poder emana do povo, a ele também deve atribuir o seu

retorno.

Os movimentos sociais emancipatórios, como se sabe, são aqueles que emergem da

fragmentação da sociedade, podendo ser enxergados em mobilizações de toda ordem havidas

no seu seio; lutas por reivindicações traduzidas em ações coletivas que denunciam a vontade

popular. Constituem-se, assim, em instâncias organizativas conscientes que, no campo da

prática social, vão externar novas formas de cidadania e democracia.

No âmbito da autonomia e da liberdade, forjam conquistas sociais que refletirão a

vontade comum, fazendo com que as obrigações a todos impostas ora sejam contrapostas ao

sujeito Estado, ora sejam compartilhadas com o mesmo, trazendo reciprocidade e simetria no

campo da implementação das políticas públicas que refletirão as reais necessidades sociais.

Desta forma, o princípio da comunidade funda novas energias emancipatórias,

traduzindo a participação horizontal na relação estatal, trazendo solidariedade e participação

concreta da vontade geral. Vislumbra-se a cidadania coletiva como segmento de

universalização e concretização dos direitos fundamentais. Vê-se, portanto, o nascimento da

democracia moderna, no qual o homem não mais aparece como objeto, mas como sujeito do

poder político.20

Muller21 traz a prática onde evidenciou-se que, no âmbito do Estado Democrático e

social de direito, o “povo”, aqui compreendido na dimensão de pessoas constitucionais, se

apresenta em diversos nexos e graus de operações legitimatórias. Nexos e graus estes que

variam, dependendo do âmbito funcional, como ativo, instância de atribuição de tipo global,

17 ARTICULO 69. Aprobación de la revocatória. Modificado por el art. 1º de la ley 741 de 2002. Se considerará

revocado el mandato para gobernadores y alcaldes, al ser ésta aprobada em la votación respectiva por um

número de votos no inferior al sesenta por ciento (60%) de los ciudadanos que participen em la respectiva

votación, siempre que el número de sufrágios no sea inferior al sesenta por ciento (60%) de la votacion

registrada el dia em que se eligió al mandatário, y unicamente podrán sufragar quienes no hayan hecho em la

jornada em la cual se eligió al respectivo gobernador o alcalde. 18 ARAÚJO, FERNANDES e FEDALTO, 2012, p. 177 19 ARAÚJO, FERNANDES e FEDALTO, 2012, p. 178 20 AGAMBEN, Giorgio. Homem Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 1 ed. Minas Gerais: UFMG, 2001,

p.16. 21 MULLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 6 ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2011, p. 75.

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destinatários de padrões civilizatórios da cultura constitucional democrática que envolvem

direitos e resistência ao Estado e direitos de prestações por parte do mesmo, assim no plano da

realidade das pessoas constitucionais ativas, legitimantes, destinatários e participantes.

Assim, demanda o Estado brasileiro novas formas de manifestações que compreendam

um dinamismo carente atualmente em nossa sociedade, que acorde uma população

adormecida, como é o caso da Petição Eletrônica22, subscrita pelos eleitores brasileiros e

destinada ao Congresso Nacional.

O objetivo, assim enunciado em seu artigo 1º, é de solicitar que os congressistas votem

em caráter de urgência, com a finalidade de dar direito legal e constitucional aos eleitores

brasileiros de poder iniciar processo de depuração e cassação, através de votação popular, de

todo e qualquer político que foi eleito e que tenha qualquer desvio de conduta durante o

período em que estiver exercendo função pública eletiva, seja no executivo ou legislativo.

7 CONCLUSÃO

A Corte Constitucional brasileira tem-se manifestado de forma a alterar os sentidos

para a perda do mandato parlamentar no caso de condenação criminal transitada em julgado.

Quais as razões que ensejam esta mudança de posicionamento?

Recentemente, no caso da Ação Penal 470, o plenário da corte, por cinco votos a

quatro, concluiu que os parlamentares acusados no esquema de compra de votos perderiam o

mandato automaticamente quando fossem condenados, aqui utilizando o art. 55 IV e § 3º.

Já no caso da Ação Penal 565, o senador Ivo Cassol foi condenado pelo crime de

fraude a licitações, contudo, diferentemente da Ação Penal 470, o plenário da Corte deixou

para a Casa Legislativa a decisão sobre a perda de mandato parlamentar, neste caso pela

aplicação do art. 55, inciso VI e § 2º, ficando vencidos os ministros Marco Aurélio, Gilmar

Mendes, Celso de Mello e Joaquim Barbosa, que votavam pela perda imediata do mandato

com o trânsito em julgado da condenação.

22 O sítio eletrônico fornece alojamento online gratuito para abaixo-assinados (petições públicas), pretendendo

constituir um serviço público de qualidade a todos os cidadãos brasileiros. Disponível em <

http://www.peticaopublica.com.br/default.aspx>. Acesso em 30 de maio de 2012. Vale a visita, pois além da

petição informada, existem muitas outras relevantes à construção dos direitos em nosso território.

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E quais seriam as razões para a mudança de posição da Suprema Corte Constitucional?

No caso do Senador Ivo Cassol, ao que parece, envolve a circunstância de que os crimes que

foram atribuídos a ele são de natureza política, o que não acarretaria o efeito automático da

perda de mandato.

Mas isso acaba por ser premissa nesta inconstância de posicionamento, de autoridade

da Corte?

A questão é definir qual o sentido democrático e qual é o sentido da representação

popular, neste caso primando absolutamente pelos valores e princípios democráticos, onde

não se vislumbra um representante popular condenado por sentença criminal transitada em

julgado.

E qual o nosso papel? Esta é a pergunta fundamental! Mostra-se digna, a um país

democrático, a manifestação popular que traduz o novo destinatário de sua vontade: do povo

para o povo.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homem Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 1 ed. Minas Gerais:

UFMG, 2001, p.16.

ARAÚJO, Eduardo Borges, FERNANDES, João Marcos Silva e FEDALTO, Thayse.

Instrumentos de democracia direta na América Latina: uma breve incursão no direito

comparado. – 2012. Disponível em: <http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-pr-

parana-eleitoral-revista-2-artigo-5-araujo-fernandes-e-fedalt> Acessado em novembro de

2014.

DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito: definição e conceitos

básicos, norma jurídica... / Dimitri Dimoulis. – 3. Ed. ver. Atual. e ampl. – São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2010.

FERNANDES, Márcio Silva, PONTES, Roberto Carlos Martins. Competência para decidir

sobre a perda do mandato parlamentar no Direito Comparado. – 2006. Disponível em:

<http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2222/competencia_decidir_perda_fer

nandes.pdf?sequence=1> Acessado em novembro de 2014.

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LINZ, Juan José. Os problemas da democracia e da diversidade de democracias. Madrid:

Alianza Editorial, 1998, p 228.

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MARSHALL, Geoffrey. Teoria da Constituição. Madrid: Calpe, 1982, p. 136-137.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes,

Inocêncio Martires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 4. Ed. rev. e atual. – São Paulo:

Saraiva, 2009.

MULLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 6 ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 75.

RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral – 13ª Edição / Marcos Ramayana – Rio de Janeiro:

Impetus, 2012.

SARTORI, Giovanni. Teoria da Democracia I. Debate contemporâneo. Rei: Argentina,

1988, p.26.

Tribunal Constitucional chileno. Julgamento do Rol nº 2087-11-INH. Disponível em:

<http://www.tribunalconstitucional.cl/wp/ver.php?id=2277> Acesso em outubro de 2014.

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A EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA DE DEMOCRACIA À LUZ

DA CARTA DEMOCRÁTICA INTERAMERICANA

Raoni Lacerda Vita1

Alcindo Gonçalves2

Sumário: 1 Introdução. 2 O que é Democracia? 3 A OEA e a Carta Democrática

Interamericana. 4 A experiência democrática contemporânea brasileira. 5 Conclusão.

Referência.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva discorrer sobre o conceito histórico-evolutivo de

democracia, com especial ênfase para a visão da Organização das Nações Unidas e da

Organização dos Estados Americanos acerca do tema. Dentro dessa discussão, cumpre ser

estudada a realidade brasileira contemporânea e verificada a adequação de tal experiência ao

modelo proposto mundialmente.

A importância de tal estudo se dá em virtude da contínua evolução do conceito

jurídico em questão, devendo, ao mesmo tempo, as autoridades constituídas efetuar essa

observação e adequar os modelos existentes às garantias mínimas necessárias ao contínuo

desenvolvimento da humanidade.

2 O QUE É DEMOCRACIA?

Desde longínquos tempos, muito se discute em toda a literatura mundial a respeito da

delimitação e do alcance do conceito de democracia. Temos, no entanto, como estável a ideia

de que se trata de um regime que se origina no povo e por este é gerido direta ou

indiretamente – isso até em razão da própria etimologia da palavra (demo, no grego, significa

povo, e kratos, poder).

1 Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB; Pós-graduado em Direito

Processual Civil pela Universidade Anhaguera-Uniderp; Mestrando em Direito Internacional pela Universidade

Católica de Santos – UNISANTOS; Advogado. 2 Doutor em Ciência Política pela USP, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu –

Mestrado e Doutorado – em Direito da UniSantos – Universidade Católica de Santos e coautor

do livro Governança Global e Regimes Internacionais (Ed. Almedina).

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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51

A partir do nível dessa participação popular, tem-se a divisão entre democracia direta e

representativa.

Na primeira, também chamada de pura, o povo tem interferência imediata e sem

interlocutores em todas as decisões que afetem a comunidade. Tal sistema político possui

como exemplo clássico a cidade-estado de Atenas, onde todos os cidadãos (com as severas

restrições desta categoria à época) que desejassem participar formavam uma assembleia, em

geral semanalmente, que definia através do voto igualitário os rumos sobre temas importantes.

Considerando as óbvias e inerentes dificuldades do modelo direto, o desenvolvimento

e crescimento das nações demandou a criação do sistema representativo, no qual os cidadãos

elegem periodicamente mandatários que devem votar as matérias segundo o interesse

daqueles.

Bobbio3, por sua vez, faz alusão à democracia semidireta, que seria uma forma

intermediária entre os dois regimes clássicos, na qual haveria um equilíbrio que permite uma

participação popular mais efetiva, mesmo com a existência de representantes, assemelhada ao

caso hodierno da Suíça. Segundo Bonavides4, esta é uma maneira de limitar a alienação

política da vontade popular.

Pelos preceitos da Organização das Nações Unidas, a comunidade internacional

moderna deve preservar a democracia como forma de garantir diversas liberdades – de

expressão, pensamento, consciência, religião, associação, assembleia, imprensa e informação.

Isso porque, neste sistema, o povo possui mecanismos de controle para evitar que o

soberano se exima de se submeter às leis do Estado de Direito. Além disso, mesmo sendo

respeitada a vontade da maioria, a dignidade e os direitos fundamentais das minorias também

são protegidos.

A defesa da ONU pela democracia encontra amparo e serve como reforço ao princípio

da autodeterminação dos povos, que é tido pelo Direito Internacional como a pedra de toque

na relação entre as nações para fortalecer a paz universal – tanto assim que está previsto no

artigo 1º da Carta das Nações Unidas como um dos seus objetivos.

3 BOBBIO. Estado, governo, sociedade. p. 459. 4 BONAVIDES. Ciência política. p. 275.

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52

Em linhas gerais, este princípio tem como uma de suas facetas a garantia da

possibilidade do povo se autogovernar livremente e com segurança, sem intervenções

externas.

O imperativo democrático foi reforçado na Declaração da Conferência Mundial sobre

Direitos Humanos de Viena (1993), na qual se defendeu que a sociedade deve ser fundada “no

desejo livremente expresso dos povos em determinar os seus próprios sistemas políticos,

econômicos, sociais e culturais e a sua participação plena em todos os aspectos das suas

vidas” (§8º).

Com isso, há uma ligação indissociável do sufrágio universal e igualitário como

fundamento de validade da democracia, agregado à oportunidade aberta de candidatar-se aos

cargos eletivos, além da institucionalização de mecanismos de controle dos governos.

Desse modo, a democracia é tida como um direito fundamental da pessoa humana,

prevista inclusive no art. 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos5 (1948) e

reafirmada pela Resolução 1999/57 do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos

Humanos (Promotion of the right to democracy).

Dentro de tal contexto, mas de modo mais aprofundado e específico, os países

signatários da Organização dos Estados Americanos aprovaram, em 2001, a Carta

Democrática Interamericana, cabendo-nos doravante analisar quais devem ser os reflexos de

todo esse arcabouço nos ordenamentos jurídicos internos e na prática das nações,

especialmente, para o presente estudo, no caso brasileiro.

3 A OEA E A CARTA DEMOCRÁTICA INTERAMERICANA

Para verificar a realidade brasileira sobre o tema em discussão, cumpre analisarmos o

contexto histórico e social da Organização dos Estados Americanos.

A OEA, quando de seus movimentos precursores de consolidação, cuidava mais de

tentar criar uma ampla área de cooperação regional que defender princípios como o direito à

5 “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos negócios públicos do seu país, quer diretamente,

quer por intermédio de representantes livremente escolhidos. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições

de igualdade, às funções públicas do seu país. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes

públicos; e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e

igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto”.

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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democracia – até mesmo porque vários, senão a maioria, dos seus futuros signatários não

adotavam esse modelo como base.

A primazia econômica deste bloco é muito bem explicada por Mello6, que identificou

características facilitadoras (além da proximidade física) para a união de quase toda a

América, tais como a existência de uma hostilidade latente entre nações, o que ocasionou a

formação de Ligas para fortalecimento e proteção mútuos, e o fato de serem quase todos esses

países subdesenvolvidos e compostos por imigrantes.

Neste compasso, após uma larga evolução de pactos e acordos multilaterais, e com o

objetivo de consolidar essa identidade, firmou-se, na Conferência de Bogotá (1948), a Carta

da OEA, cuja construção se deu já num momento de avanço democrático, sendo

contemporânea da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de sorte que os seus artigos

segundo, terceiro e nono consagraram:

Artigo 2. Para realizar os princípios em que se baseia e para cumprir com suas

obrigações regionais, de acordo com a Carta das Nações Unidas, a Organização dos

Estados Americanos estabelece como propósitos essenciais os seguintes: (...)

b) Promover e consolidar a democracia representativa, respeitado o princípio da não-

intervenção;

Artigo 3. Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios: (...)

d) A solidariedade dos Estados americanos e os altos fins a que ela visa requerem a

organização política dos mesmos, com base no exercício efetivo da democracia

representativa;

Artigo 9. Um membro da Organização, cujo governo democraticamente constituído

seja deposto pela força, poderá ser suspenso do exercício do direito de participação

nas sessões da Assembléia Geral, da Reunião de Consulta, dos Conselhos da

Organização e das Conferências Especializadas, bem como das comissões, grupos

de trabalho e demais órgãos que tenham sido criados.

Vê-se, portanto, o compromisso inescusável da organização com os preceitos

democráticos, cuja desobediência enseja inclusive a suspensão da participação de suas

atividades dos países porventura descumpridores desta cláusula.

Seguindo esse autointitulado desenvolvimento progressivo, após diversos novos

pactos assinados, como o Compromisso de Santiago (1991), a Declaração de Nassau (1992) e

6 MELLO. Curso de direito internacional público. p. 27-28.

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de Manágua (1993), e levando em conta a redemocratização de vários países signatários, a

Assembleia Geral da OEA aprovou a Carta Democrática Interamericana (Inter-American

Democratic Charter) na sessão plenária realizada em 11 de setembro de 2001 em Lima, Peru.

Numa leitura detida já das suas considerações iniciais, percebe-se tratar não de uma

simples Resolução, mas de verdadeira atualização e aprofundamento da Carta da OEA,

passando-se dali em diante a ser exigido dos países membros uma postura cada vez mais

madura sobre as garantias democráticas, não bastando agora a mera previsão de sufrágio

universal.

Por essa ótica, e cingindo-se aqui à parte que mais interessa ao objeto do presente

estudo (não desmerecendo os grandes avanços na preservação da institucionalidade

democrática e das missões de observação eleitoral, que por si só dão ensejo a um trabalho

próprio), a Carta Democrática traz uma posição firme no sentido de acrescentar uma nova

dimensão às condições necessárias para o exercício pleno da democracia.

Trata-se da exigência contida no artigo sexto, de participação efetiva do cidadão na

tomada de decisões além da tradicional eleição periódica para escolha de representantes. Ao

povo deveria, portanto, ser garantida a possibilidade de sair da posição passiva para se tornar

verdadeiro ator nas transformações sociais:

Artigo 6. A participação dos cidadãos nas decisões relativas a seu próprio

desenvolvimento é um direito e uma responsabilidade. É também uma condição

necessária para o exercício pleno e efetivo da democracia. Promover e fomentar

diversas formas de participação fortalece a democracia.

Revela-se oportuno, para fixar o espírito que inspirou a confecção do multicitado

documento, transcrever trecho da declaração do Embaixador Odeen Ishmael, da Guiana, na

sessão do Conselho Permanente da OEA durante as discussões sobre a Carta Democrática

Interamericana:

A nosso ver, os habitantes deste Hemisfério prosperarão sob a democracia que

avançar progressivamente. Embora a democracia representativa por meio de eleições

livres e eqüitativas seja louvável, não deve ser estática. Cumpre lembrar que se trata

de um conceito existente na época da adoção da Carta da OEA. É essencial que

progrida para tornar-se abrangente – não apenas representativa mas também

consultiva e participativa. Com a democracia participativa estamos atribuindo poder

às pessoas na base. É uma democracia que, além dos direitos civis e políticos,

garante também os direitos sociais e culturais.

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O pai do movimento de independência da Guiana, o falecido Doutor Cheddi Jagan,

resumiu essa qualificação da democracia ao falar na Cúpula de Desenvolvimento

Sustentável, de Santa Cruz, Bolívia, em 7 de dezembro de 1996. Afirmou ele: "A

democracia deve ter como objetivo ‘vida, liberdade e busca da felicidade’. Isso será

conseguido quando abraçar não somente o aspecto representativo (cinco minutos de

votação), mas também o consultivo e o participativo, especialmente no caso da

mulher, e quando forem respeitados os direitos não apenas civis e políticos, mas

também econômicos, sociais e culturais. Uma pessoa deve exercer o seu direito de

voto, mas esse direito somente será exercido se houver o alimento necessário para a

vida.

O atual projeto de Carta Democrática que estamos examinando também destaca a

democracia representativa, como o fez a Carta da OEA.

É, portanto, uma nova faceta da democracia, passando esta agora a ser não só

representativa, mas também participativa.

Como consequência desse novo status, devem os ordenamentos internos ser adaptados

a fim de efetuar tal estímulo aos cidadãos, mas, sobretudo, comprometendo-se os governos a

sair de sua condição estática e encarar essa realidade como uma obrigação de trazer o povo

para o seio das discussões.

4 A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

O Brasil, após um longo e tormentoso caminho, que passou por inúmeros avanços e

retrocessos, encontra-se atualmente num período de razoável estabilidade na sua forma de

governo e de Estado autointitulado democrático.

Dos fundamentos da República Federativa do Brasil explicitados já no artigo 1º da

Constituição Federal de 1988, destaca-se o célebre princípio de que “todo o poder emana do

povo”.

Aliás, o regime democrático aparenta ser tão caro à referida Carta Política que seu

ferimento é elencado como a primeira das causas extremamente restritas de intervenção da

União nos Estados e no Distrito Federal (art. 34, VII, a).

No entanto, mesmo com esses destaques de caráter fundante do mencionado princípio,

é muito tímida sua exploração prática ao longo dos 250 artigos da Constituição. Não há uma

noção concreta, ou mesmo exemplificativa, de como deve se dar essa democracia no âmbito

da participação popular no poder, senão mediante o voto para escolha de representantes e a

possibilidade do cidadão se candidatar.

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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No mais, existem algumas raras passagens nas quais se dá ao povo uma condição

meramente passiva de sujeito receptor de benefícios.

Contudo, na parte que mais interessa ao presente trabalho, temos apenas três pontos

que se propõem a complementar e arrematar a democracia além-sufrágio, quais sejam os

incisos contidos no artigo 14, que preveem o plebiscito, o referendo e a lei de iniciativa

popular.

Além de ser acanhado o número e a profundidade desses mecanismos que tendem a

garantir a participação democrática, ainda assim eles sequer são utilizados ou fomentados na

prática, como demonstra a experiência brasileira contemporânea.

Com efeito, desde a promulgação da Constituição de 1988, apenas um plebiscito foi

realizado em âmbito nacional (aliás, ainda assim porque previsto e com data marcada no

próprio Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), no ano de 1993, quando foi

definida a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo

(parlamentarismo ou presidencialismo) do país.

Houve outro caso localizado de realização de plebiscito restrito aos eleitores do estado

do Pará, no ano de 2011, para decidir sobre sua subdivisão em novos estados de Carajás e

Tapajós, tendo sido negativa a resposta e mantendo-se unida tal população.

No que tange ao referendo, também uma única experiência foi garantida aos cidadãos

brasileiros, quando se opinou, em 23 de outubro de 2005, sobre o artigo 35 do Estatuto do

Desarmamento, que proibia a comercialização de armas de fogo e munição em todo o

território nacional, tendo a maioria dos eleitores respondido no sentido de permitir tal prática.

Já quanto às leis de iniciativa popular, há somente quatro registros pós Constituição de

1988 de casos em que efetivamente foram aprovadas e se transformaram em lei, sendo o caso

mais recente o da Lei Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010).

Tal número, contudo, é tão baixo que chega a ser inexpressivo quando observamos

que desde a promulgação da Carta Magna até 05 de outubro de 2012, foram aprovadas mais

de 157 mil normas federais no Brasil, dentre as quais 76 emendas constitucionais, 83 leis

complementares e 4.981 leis ordinárias, segundo um estudo apresentado pelo Instituto

Brasileiro de Planejamento Tributário.

Aliás, essa forma de participação é tão frágil que a Constituição prevê apenas a

possibilidade de projeto de lei popular, sendo vedada a propositura de emenda constitucional

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diretamente pelos cidadãos, ao mesmo tempo em que confere tal prerrogativa aos

parlamentares, num nítido contrassenso principiológico.

Esses são, portanto, os únicos elementos práticos do exercício democrático brasileiro

contemporâneo pelo cidadão médio, além do ato de votar em candidatos que se apresentam

em geral a cada dois anos para, na sua respectiva esfera, tentar representá-lo nos Poderes

Executivo e Legislativo.

5 CONCLUSÃO

Vê-se, diante dos subsídios apresentados, que não há na experiência dita democrática

brasileira uma prática efetiva deste princípio, mormente quando diversos itens polêmicos da

própria Constituição Federal não foram sequer alvo de referendo até o momento atual.

De igual modo, não se tem como falar em democracia, nos termos expostos pela Carta

Democrática OEA, num país em que inexiste a utilização dos mecanismos mínimos previstos

no seu ordenamento na tentativa de garantir alguma participação popular na tomada de

decisões. A evolução do referido conceito simplesmente não foi acompanhada pela classe

política do Brasil.

Percebe-se que a realidade brasileira estancou no segundo dos “três modelos

normativos de democracia” previstos por Habermas7, limitando-se a sustentar o direito ao

voto como suficiente para o exercício da autodeterminação política, quando, em verdade, o

terceiro modelo apresentado pelo sociólogo alemão vai muito além, chegando, através da

“teoria do discurso”, a demonstrar resultados racionais satisfatórios diante da comunicação

entre os indivíduos nas esferas particular e pública a fim de participarem do processo de

efetiva criação do direito.

Neste diapasão, é possível observar uma aproximação de tal proposta com o conceito

de democracia participativa e consultiva apresentado pela Carta Democrática Interamericana,

e que não é, repita-se, exercida no Brasil.

Seguindo uma ótica de certo modo semelhante, a defesa de Dworkin8 tem muita

propriedade, pois o povo precisa se manifestar sobre itens importantes da Constituição e

7 HABERMAS. Três modelos normativos de democracia. p. 39-53. 8 DWORKIN. Constitucionalismo e Democracia. p. 2-11.

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também quanto a diversos temas de grande repercussão (aborto, maioridade penal, pena de

morte, prisão perpétua, união de pessoas do mesmo sexo), e não relegar tais funções para o

Poder Judiciário, como sói acontecer no Brasil, onde se observa a Corte Suprema

reiteradamente decidindo sobre assuntos que a Carta Magna não prevê, ou em muitos casos

apresentando uma interpretação que prostitui completamente a intenção do legislador

constituinte.

Esse ativismo é duplamente pernicioso nestas hipóteses, pois além de usurpar o poder

legiferante, acaba por ser uma ação de pessoas não escolhidas pelo sufrágio e que solapam a

democracia e a possibilidade de construção popular, agravando o modelo brasileiro falido de

falsa representatividade, no qual os mandatários geralmente não levam às instâncias

apropriadas o sentimento do povo, mas sim os seus interesses intrínsecos que entendem

corretos sob sua ética particular.

Na verdade, em decorrência do próprio espírito e texto da Carta Democrática

Interamericana, à qual o Brasil deve obediência, os grandes temas devem ser submetidos com

maior frequência à população, o que é possível até mesmo na formatação constitucional atual,

bastando, para tanto, seu efetivo fomento pela classe política, bem como estudos logísticos

que afastem os altos custos dessa mobilização, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos,

onde as consultas comumente são inseridas de maneira concentrada dentro dos pleitos

ordinários, precedidas de um amplo debate com a sociedade – o que torna ainda mais legítima

e interessante tal utilização.

Esses apontamentos, por óbvio, não encerram as possibilidades de outros grandes

avanços democráticos, como a adição do recall de mandatos eletivos dos políticos que não

correspondam aos anseios neles depositados, mas, pelo contrário, tentam trazer a sociedade

para dentro dos problemas, a fim de que esta contribua e agregue mais ideias objetivando a

melhor solução para tais conflitos.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e Democracia. Traduzido por Emílio Peluso Neder

Meyer. Publicado originalmente no European Journal of Philosophy, nº3:1, p. 2-11, em 1995.

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Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/49642931/DWORKIN-Ronald-Constitucionalismo-

e-Democracia>. Acesso em: 02 de agosto de 2013.

HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. CEDEC. Lua Nova.

Revista de Cultura e Política, nº 36, 1995.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 10. ed. Rio de

Janeiro: Renovar, 1994. vol. I. 714.

ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Carta das Nações Unidas. Disponível em:

<http://www.fd.uc.pt/CI/CEE/pm/Tratados/carta-onu.htm>. Acesso em: 03 de agosto de 2013.

ORGANIZAÇÃO dos Estados Americanos. Carta da Organização dos Estados

Americanos. Disponível em: <http://www.oas.org>. Acesso em: 02 de agosto de 2013.

_____________. Carta Democrática Interamericana. Disponível em: <http://www.oas.org>.

Acesso em: 02 de agosto de 2013.

_____________. Declaração do Embaixador Odeen Ishmael, da Guiana, na sessão do

Conselho Permanente da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org>. Acesso em: 03 de

agosto de 2013.

_____________. Declaração e Programa de Ação de Viena: Conferência Mundial sobre

Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org>. Acesso em: 02 de agosto de 2013.

INSTITUTO Brasileiro de Planejamento Tributário. Quantidade de Normas Editadas no

Brasil: 24 anos da Constituição Federal de 1988. Disponível em:

<https://ibpt.org.br/noticia/63/Em-23-anos-de-Constituicao-pais-edita-4-3-milhoes-de-

normas>. Acesso em: 04 de agosto de 2013.

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ELEIÇÕES NO BRASIL: DEUSES, CÉSARES E IGUALDADE DE

OPORTUNIDADES

Rogério Magnus Varela Gonçalves 1

Sumário: 1. Introdução. 2. A inexistência de restrição aos religiosos na legislação

eleitoral. 3. A possibilidade de restrições eleitorais impostas pelo grupamento

religioso e a sua abrangência. 4. A não existência de uma legislação geral que

discipline o fenômeno religioso no Brasil. 5. A desincompatibilização imposta aos

ocupantes de cargos públicos ou privados de trabalho. 6. A igualdade de

oportunidades na seara eleitoral. 7. Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

O arcebispo do estado da Paraíba, Dom Aldo di Cillo Pagotto, uma vez iniciado o

calendário eleitoral brasileiro do ano de 2014, divulgou um documento eclesiástico (Nota

Normativa da Arquidiocese da Paraíba) no qual aborda três temas centrais, a saber: a filiação

de Cléricos em partidos políticos; a participação dos religiosos como candidatos a cargos

eletivos e a participação dos padres em atividades político-partidárias.

O documento religioso em testilha afirma que os religiosos que desejarem disputar

cargos eletivos serão suspensos do uso das Ordens na Circunscrição Eclesiástica da

Arquidiocese da Paraíba. Igualmente, assevera que lhes é vedado o exercício do ministério

plesbiterial e de quaisquer cargos eclesiásticos (ficando impedidos de celebrar os

Sacramentos) e na hipótese de serem eleitos os padres continuariam suspensos do uso de

Ordem e de quaisquer funções eclesiásticas enquanto durar o período do mandato para o qual

tenham sido eleitos.

É interessante registrar que a recomendação surge em um momento em que é crescente

a participação de líderes religiosos na cena política, o que pode ser comprovado pela

formação da chamada “bancada religiosa” no Congresso Nacional brasileiro.

1 Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Pela Universidade Federal

da Paraíba. Docente do Centro Universitário de João Pessoa e da Fundação Escola Superior do Ministério

Público da Paraíba (FESMIP/MP). Membro permanente do programa de pós-graduação (strictu sensu) do Centro

Universitário de João Pessoa. Ex-Juiz do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba. Advogado.

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O presente estudo pretende analisar a referida iniciativa do líder religioso católico,

fazendo-o do ponto de vista jurídico (e não eclesiástico) e com especial atenção ao primado

constitucional da laicidade do Estado brasileiro, bem como tendo em conta a Lei da Separação

entre o Estado e as Religiões (Decreto 119-A, de 1890).

Para tanto será utilizado o discurso jurídico-constitucional e não o discurso teológico-

confessional. Com efeito, as questões que envolvem o Estado e a religião comportam,

prioritariamente, duas abordagens discursivas: a teológico-confessional e a jurídico-

constitucional, eis que a ciência dogmática do direito2 não possui a exclusividade de

tratamento do assunto. Como é natural, os cultores da teologia empregam uma linha

argumentativa e linguística distinta daquela aplicada pelos juristas.

As páginas seguintes serão dedicadas a uma abordagem de cunho predominantemente

constitucional e eleitoral do fenômeno religioso. Longe de ser um menoscabo da visão

religiosa da matéria, a opção é clara decorrência da formação acadêmica do autor. A primazia

do olhar jurídico-constitucional ou, em outras palavras, a matriz constitucionalista do texto

que ora se inicia não tem o intuito de apequenar a importância ou o relevo dos estudos de

cariz teológico.

Registre-se que o tema da interligação entre o poder político e o poder religioso volta a

despertar o interesse social e jurídico, porquanto se vislumbra uma retomada de um diálogo

mais constante e ameno entre o Estado e as religiões, superando-se a rigidez da secularização

estrita3. Com efeito, autores, como Berger, falam da existência de um verdadeiro processo de

2 A expressão “ciência dogmática do direito” decorre de posição de concordância com o pensamento de Karl R.

Popper. Segundo ele, muitas áreas de investigação humana, dentre as quais o direito, têm, indevidamente, se

afirmado como verdadeira e pura ciência. Na verdade, o direito não é ciência pura, eis que não se pode aplicar

aos estudos jurídicos a teoria da refutabilidade científica. Os cultores do direito caíram na tentação de se

colocarem como cientistas, talvez acreditando que a admissão do contrário seria uma diminuição de sua

importância. Longe disso. Ocorre apenas o fato de o mundo jurídico ser composto, predominantemente, de uma

atividade de argumentação e de aplicação normativa. Logo, os operadores do direito mais se aproximam de

artesãos do que propriamente de cientistas. Para esclarecimentos adicionais, são indicadas as seguintes obras

básicas: POPPER. Karl R. A vida é aprendizagem: epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de

Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 2001; POPPER. Karl R. O mito do contexto: em defesa da ciência e da

racionalidade. Tradução de Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 1999; POPPER. Karl R. O realismo e o objectivo

da ciência. Tradução de Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997. Para outras leituras

acerca do caráter não-cientificista do direito (teoria do ceticismo científico-jurídico), vide DINIZ, Maria Helena.

Compêndio de introdução à ciência do direito. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. pp. 32/33 (nota de rodapé 61).

Nessa obra se encontrará uma listagem de mais de quinze autores que defendem a mesma linha de pensamento. 3 SCHLEGEL, Jean-Louis. « Revenir de la sécularisation ? ». In: Esprit. Números 4 e 5, 1986. pp. 9/23.

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dessecularização, demonstrado no ressurgimento (com maior força, peso e importância) da

religião no espaço público4.

O texto ora principiado, para além da questão de se respeitar a existência de espaços

próprios para os Deuses e para os Césares, também irá analisar a questão do ponto de vista da

igualdade de oportunidades entre os que disputam os cargos eletivos.

2 A INEXISTÊNCIA DE RESTRIÇÃO AOS RELIGIOSOS NA LEGISLAÇÃO

ELEITORAL

A legislação eleitoral brasileira, ao estabelecer as restrições aos que disputam os

cargos eletivos, não fez qualquer menção restritiva aos ministros de culto ou outros líderes

religiosos.

Entretanto, possui diversas limitações aos ocupantes de cargos, empregos ou funções

públicas que resolverem disputar as eleições. Igualmente, limita o exercício da atividade

política até mesmo em atividades privadas, quando os trabalhadores tiverem grande

visibilidade social (radialistas, apresentadores de televisão, dentre outros).

Tomemos por paradigma um radialista que se candidate a um cargo eletivo. Se o

fundamento do afastamento de suas atividades radiofônicas é o de que seria desigual e a ele

favorável ter contato com uma grande quantidade de ouvintes (algo que os seus concorrentes

ao pleito não teriam), parece igualmente razoável que se estabeleça alguma restrição

semelhante aos ministros de culto, eis que eles têm contato diário com centenas ou milhares

de seguidores e tal fato tem a potencialidade de influenciar a seu favor no resultado das

eleições. A ideia acima indicada tem por fito garantir uma igualdade material em face dos

outros candidatos. Tal tema será tratado em tópico próprio, nomeadamente na perspectiva da

busca pela igualdade de oportunidades entre os que disputam os cargos eletivos.

Voltando os indivíduos que optaram pela vida religiosa e a sua interface com a seara

eleitoral, parece que o Estado brasileiro agiu bem em não inibir a geral e completa

participação política dos ministros de culto.

4 BERGER, Peter L. (organizador). The desecularization of the World: resurgent religion and world politics.

Washington: Ethics and public policy center and Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1999. pp. 01/18.

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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Os religiosos não são subcidadãos ou cidadãos de segunda categoria. Tampouco detém

uma participação ativa nas decisões estatais e institucionais da órbita eleitoral, como ocorre

com os magistrados e promotores, que por esse fator estão inibidos do exercício da atividade

político-partidária (ex vi dos artigos 95, inciso III e 128, § 5º, alínea “e”, da atual Constituição

Federal).

Logo, uma vez preenchendo os requisitos estabelecidos pela legislação constitucional

(arts. 14 e 15 da vigente Lei Fundamental de 1988) e não estando enquadrados em qualquer

hipótese de inelegibilidade prevista na Lei Complementar 64/90, forçoso que lhes seja

atribuída a possibilidade do exercício ativo da vida político-partidária.

Em uma visão prospectiva da legislação é que se poderia imaginar a elaboração de

uma nova norma eleitoral que vedaria aos ministros de culto se candidatar aos cargos políticos

na área de circunscrição em que exercem a sua atividade religiosa ou, de modo alternativo, e

nas hipóteses de disputarem o pleito no local do exercício de seus afazeres religiosos que

tenham que se desincompatibilizar de tais funções, tudo no afã de preservar o princípio da

igualdade de oportunidades entre os candidatos.

E que não se venha com o argumento de que tal restrição, de cunho eleitoral, teria o

condão de macular o próprio princípio constitucional da liberdade religiosa. É que todos os

direitos, mesmo os fundamentais, hão de conviver com restrições ou limitações. Não existe

direito absoluto.

3 A POSSIBILIDADE DE RESTRIÇÕES ELEITORAIS IMPOSTAS PELO

GRUPAMENTO RELIGIOSO E A SUA ABRANGÊNCIA

Indaga-se se é permitido ao grupamento religioso, a exemplo do que ocorreu com a

recomendação firmada pelo Arcebispo Católico no estado da Paraíba, ter normativas internas

(soft law) no sentido de restringir a atividade eleitoral de seus integrantes?

A reposta requer uma breve paragem prévia no campo da “regulação” ou da

“regulamentação” (para fins do presente estudo serão utilizadas com sinonímia as duas

expressões), aqui compreendida como o tipo de regulação social que passa pelo canal do

direito, produzida pelo Estado e atributo de sua soberania. Logo, existe inequívoca diferença

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de acepção com relação à regulação técnica, de natureza preponderantemente econômica,

consolidada constitucionalmente5.

O Brasil não possui uma lei que discipline o exercício da liberdade religiosa. Contudo,

esse fato não pode ser considerado como completa ausência de balizas na manifestação dos

sentimentos religiosos. Com efeito, a matéria persiste no campo dos poderes

autorregulamentadores do campo religioso.

Sendo assim, é oportuno fazer uma breve referência aos dois tipos mais destacados de

regulação: a autorregulação e a heterorregulação. O ponto de partida, contudo, consiste na

aceitação de “normas jurídicas de origem privada”, uma vez que está pacificada na doutrina a

quebra do monopólio público da produção das normas jurídicas.

Parte-se da ideia cada vez mais forte de que, além das normação jurídica pública

(normas editadas por entidades públicas ou privadas no exercício de poderes públicos),

também existe uma normação jurídica privada (um direito dos privados), composta pelo

conjunto de normas jurídicas no exercício de um poder normativo privado6.

Para Vital Moreira, o conceito de autorregulação está longe de ser unívoco. Apesar

disso, pode-se afirmar que ela se consubstancia no sistema sobre o qual as regras são

estabelecidas por aqueles a quem elas serão aplicadas, ou seja, a regulação levada a cabo

pelos próprios interessados.

O citado autor destaca três características da autorregulação, a saber: a) é uma forma

de regulação e não ausência desta (a autorregulação é uma espécie do gênero regulação); b)

trata-se de uma forma de regulação coletiva, na qual são impostas aos membros de

determinada categoria certas regras de conduta (como não existe autorregulação individual,

não se pode confundir tal instituto com os regramentos interna corporis de cada confissão

5 No mesmo sentido defendido no presente escrito, vide FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer.

Paradigmas inconclusos: os contratos entre a autonomia privada, a regulação estatal e a globalização dos

mercados. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. pp. 26/27. A autora salienta, contudo, que existem interações entre

a regulação jurídica e a econômica. Para ela, a relação entre ambas vem destacada na crise do paradigma da

exclusividade da lei e no abandono do dogma do monopólio dos instrumentos estatais na aplicação do direito.

Enfatiza que o modelo da regulação jurídica estatal, acusado de sobrecarga, ineficiência e de perda de sua força

vinculante, deveria ser substituído pela regulação social setorial, na concretização da fórmula “mais sociedade,

menos Estado”. (p. 27). 6 GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005. p. 695. Para o

autor, é mais clara a permanência do monopólio ou da exclusividade do reconhecimento da juridicidade (a

validação estatal das normas oriundas dos particulares), consistente na prerrogativa pública de conferir caráter

jurídico a normas editadas por terceiros.

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religiosa); c) é uma forma de regulação não-estatal, podendo ser definida como uma regulação

não pública (sentido administrativo do verbete).

O doutrinador português destaca, em uma perspectiva mais econômica, que existe uma

ligação estreita entre autorregulação e autorregulamentação. Esclarece que esta última é

compreendida como a faculdade normativa das entidades dotadas de poder de autorregulação,

constituindo-se na mais nobre dimensão desse instituto. Por fim, enfatiza que as relações entre

a autorregulamentação privada (códigos de conduta, regras deontológicas e formas afins) e a

regulamentação estatal (leis, regulamentos, etc.) podem ser de três ordens: preempção (a

primeira dispensa a segunda); substituição (a primeira ocupa o lugar da segunda) e adição (a

primeira incorpora elementos à segunda)7.

O presente estudo reitera e recepciona a utilização das expressões “regulação” e

“regulamentação” no contexto de normatividade jurídica. A regulação privada vem

conquistando, nos últimos anos, maior destaque na paleta multiforme das fontes do direito.

Observa-se que são cada vez mais usuais as manifestações normativas de agentes de produção

privados, com progressiva importância como instâncias regulativas de interesses e litígios dos

particulares8.

A heterorregulamentação, por sua vez, é vislumbrada quando o Estado avoca a missão

de, por meio de elaboração normativa, ordenar e conformar a vida em sociedade. A regulação

jurídica estatal está intimamente atrelada ao conceito de juridificação, que se consubstancia no

fato de uma determinada esfera da vida, até então juridicamente não regulada, passa a ser

regulada juridicamente9.

Existem, como é natural, supostas vantagens da autorregulamentação e da

heterorregulamentação. Façamos uma breve listagem delas, visando uma tomada de posição.

Como principais vantagens da autorregulamentação10, são apontadas as seguintes: a) os

elaboradores do regramento são conhecedores da temática11 objeto da regulamentação; b) a

7 MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e administração autónoma (A organização institucional do

vinho do Porto): Volume I. Coimbra: tese de doutoramento policopiada, 1996. pp. 58/59 e 74/75. 8 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p.

705. 9 MOREIRA, Vital. Op. cit. p. 123. 10 Sobre as vantagens e as desvantagens da autorregulação, vide FIDALGO, Joaquim Manuel Martins. O lugar

da ética e da auto-regulação na identidade profissional dos jornalistas. Braga. Universidade do Minho. Tese de

Doutoramento, 2007 (especial interesse pp. 449/489). Para o autor, a autorregulação seria, pelo menos em tese e

no específico campo da mídia, o melhor caminho para se equilibrar a responsabilidade e a liberdade. Isto porque,

ao conferir aos próprios protagonistas do processo midiático a responsabilidade de livremente estabelecerem os

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autorregulamentação promove um processo de práticas e de sanções menos formais, o que

teria o condão de diminuir o custo e o lapso temporal das decisões (inclusive as punitivas); c)

há uma maior adesão dos interessados na temática regulamentada (no caso do estudo, a

religiosa), eis que eles se sentiriam coparticipes da gênese e do dever de cumprimento do

regramento.

Em contraposição, poder-se-ia alegar que a heterorregulamentação possui a vantagem

de evitar que pessoas diretamente interessadas na matéria e sem a necessária isenção de ânimo

tivessem a legitimidade de elaborar uma legislação. É que nela se poderia favorecer o

pensamento religioso dominante em detrimento daqueles que tivessem pouca ou nenhuma voz

ativa no processo de elaboração das normativas atinentes ao campo religioso. Dessa forma, a

heterorregulação teria a vantagem de transformar o Estado, como um terceiro teoricamente

desinteressado em favorecer este ou aquele agrupamento religioso, em guardião das

liberdades religiosas. Em qualquer caso, não se pode perder de vista a necessidade de

estabelecer limites e impor responsabilizações para a hipótese de eventual descumprimento do

dever de isenção estatal acerca das cláusulas da legislação religiosa. Uma vez constatado que

o Estado não agiu com a imparcialidade que era suposto dele esperar, privilegiando uma

religião em detrimento das demais ou olvidando a natureza constitucional laica da República

Federativa do Brasil, emerge a natural possibilidade de se questionar a constitucionalidade da

norma infraconstitucional.

O presente estudo entende que, em vários núcleos temáticos (a regulamentação

profissional, o mercado de capitais, dentre outros), deve-se estimular a autorregulamentação,

até como forma de diluição da responsabilidade legiferante. Como se sabe, no plano do Poder

Judiciário e especificamente da interpretação constitucional, vivencia-se uma sociedade aberta

de intérpretes da constituição (Peter Häberle). Da mesma forma, até por questão de coerência,

deve-se defender a maior participação dos indivíduos na formulação dos comandos

normativos que irão disciplinar a vida em sociedade. Logo, em significativa parcela das

relações sociais é de se incentivar a autorregulamentação.

limites de sua atuação profissional, evitar-se-ia a presença da mão externa estatal e da natural tentativa de o

poder público cercear o direito fundamental de informação. 11 No específico aspecto da normação dos sentimentos religiosos, o fato de os elaboradores serem conhecedores

da temática tem a potencialidade de fazer com que seja elaborada uma normatividade mais consentânea com a

realidade do fenômeno religioso.

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Contudo, no que diz respeito, especificamente, ao fator religioso, este trabalho se

posiciona no sentido de prestigiar o Estado legislativo em detrimento do cidadão legislador. E

assim entende como forma de evitar segregações religiosas e seus reflexos (violências

religiosas e congêneres). Além disso, parece que a imaturidade e a intolerância social acerca

da questão religiosa conferem maior legitimidade ao Estado para estabelecer os regramentos

no campo específico dos sentimentos religiosos. Essa parece ser a melhor solução para o

enfrentamento normativo da temática nos hodiernos dias.

Já dentro de uma visão prospectiva, não se pode deixar de observar que, com o avanço

da sociedade e com a sedimentação dos ideais de tolerância, liberdade e hospitalidade

religiosas, o futuro pode permitir que se estabeleça uma co-regulamentação (em momento de

transição), até que seja possível chegar-se a uma autorregulamentação. Esse processo decorre

do agigantamento da normação privada no multiforme universo das fontes do direito.

Para Gomes Canotilho, como salientado anteriormente, a cada dia que passa, vão

surgindo manifestações normativas de agentes de produção privados, com progressiva

importância, como instâncias regulativas de interesses e litígios dos particulares12. Tal fato se

justifica porque, ao lado das normas jurídicas formais, provenientes do Parlamento, convivem

outras diretivas comportamentais. Existe, pois, uma tendência no sentido da regulação

autônoma dos interesses, tudo em decorrência da pluralidade de regimes jurídicos que

caracterizam os dias atuais13.

Ao fim, e tendo por base a ideia de quebra do monopólio do estado legislativo, pode-se

concluir que é perfeitamente possível ao movimento religioso ter regras internas limitadoras

da atividade eleitoral. Contudo, a abrangência e as consequências de se infringir estas

recomendações se limitam ao próprio grupo religioso, não tendo o condão de servir de base

para a decretação estatal de inelegibilidade.

As condicionantes e as eventuais punições para os que não atenderem aos comandos

internos das confissões religiosas serão circunscritas à associação religiosa e encontram

12 Acerca do gradativo processo de maior espaço concedido às normas privadas, vide CANOTILHO, J. J.

Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 705. 13 Sobre a diversidade de regimes jurídicos e a queda do império da lei formal, vide ZIPPELIUS, Reinhold.

Introdução ao estudo do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey,

2006 (especial interesse pp. 99/12 e 35/39). No mesmo sentido, vide MONCADA, Luís S. Cabral de. Ensaio

sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

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guarida na autoregulação que lhes é permitida para fins de disciplinamento dos seus assuntos

interna corporis.

4 A NÃO EXISTÊNCIA DE UMA LEGISLAÇÃO GERAL QUE DISCIPLINE O

FENÔMENO RELIGIOSO NO BRASIL

Nunca é demasiado lembrar, em reforço da importância da problemática investigada,

que o direito tende a regulamentar as questões socialmente relevantes. Como se sabe, a

religião ocupa lugar cimeiro no cotidiano das pessoas. Portanto, nada mais natural que se

edificar, no território brasileiro, uma legislação específica para o tratamento do fenômeno

religioso, como forma de superar a incômoda cegueira decorrente de não se saber, com a

clareza devida, quais os direitos e os deveres ligados ao tema.

O presente texto acompanha, nesse aspecto, a opinião de Suarez Pertierra, para quem

não se devem fazer objeções em face da densificação normativa infraconstitucional das linhas

centrais ditadas pela Constituição acerca do tratamento do fato religioso. Segundo esclarece, a

liberdade religiosa pode exigir alguma norma específica que facilite aos indivíduos o seu

exercício nas melhores condições de liberdade e de igualdade14. Assim, também é de se

defender a ideia de que deve ser criado um direito especial para a liberdade religiosa, no

ordenamento jurídico brasileiro.

Como já ficou sobejamente registrado, este trabalho pretende indicar que contornos

deve assumir a relação entre o poder político e o poder religioso. Busca também clarificar a

atitude do Estado que se acredita mais recomendável para com o fenômeno religioso15. Nesta

abordagem, a matriz dogmática resta inconteste. Mesmo sem ignorar importantes contributos

filosóficos para o estabelecimento das ligações entre o poder político e o poder religioso, o

trabalho se inclina a recomendar uma mudança na legislação eleitoral brasileira,

especificamente no que diz respeito ao direito da religião.

No caso do Brasil, é de se registrar que não obstante se trate da mais antiga forma de

regulação social, a autorregulação não teve o condão de conferir à comunidade política, dentre

14 SUÁREZ PERTIERRA, Gustavo. “La cuestión religiosa: vigencia de la Constitución, 25 años después”. In:

Cuadernos Constitucionales de la Cátedra Fradrique Furió Ceriol. Nº 40, 2002. pp. 45/55 (especial interesse p.

52). 15 Acerca da delimitação do problema normativo fundamental, vide ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade

religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002. p. 13.

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dos preceitos da certeza e da segurança jurídicas, a listagem de seus direitos e deveres de

cunho religioso.

Noutras palavras, o presente estudo busca densificar o direito fundamental da

liberdade religiosa prevista na Carta Magna de 1988. Objetivando afivelar a máscara de um

positivismo reflexivo, sugere a elaboração de uma lei geral de liberdade religiosa para o Brasil

e que nela seja inserido um dispositivo no sentido de determinar que os líderes religiosos não

possam se candidatar a cargos eletivos nos locais em que exercem sua atividade eclesiástica.

Como medida legislativa alternativa, e na hipótese de se aceitar que o ministro de

culto se candidate no local onde exerce suas atividades religiosas, que seja ao menos exigida a

desincompatibilização do exercício de suas tarefas eclesiásticas em prazos semelhantes aos

exigidos dos que ocupam cargos privados de grande visibilidade social.

5 A DESINCOMPATIBILIZAÇÃO IMPOSTA AOS OCUPANTES DE CARGOS

PÚBLICOS OU PRIVADOS DE TRABALHO

A legislação eleitoral demonstra preocupação com o exercício de cargos (privados e

públicos) que possam desequilibrar a disputa eleitoral. Tanto isso é fato que é voz corrente

que o objetivo da desincompatibilização é o de garantir maior lisura ao processo eleitoral,

impossibilitando que o candidato se utilize da função, cargo ou emprego, de natureza pública

ou privada, em benefício de sua candidatura, a fim de evitar a prática de abuso de poder

político ou econômico e proteger a normalidade e legitimidade das eleições.

A matéria da desincompatibilização para fins eleitorais e os seus respectivos prazos

estão disciplinados no art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Já a

Resolução do Colendo Tribunal Superior Eleitoral de nº 23.405, em seu art. 27, inc. V, afirma

que o formulário de requerimento de registro de candidatura (RRC) deverá ser apresentado

acompanhado da prova de desincompatibilização (quando for o caso).

Já se utilizou como exemplo, ao longo do presente texto, o caso de um radialista que

se lança candidato a um cargo eletivo. A desincompatibilização a ele imposta tem lastro no

fato de que ele terá grande contato com os eleitores, o que teria a potencialidade de

desequilibrar a disputa eleitoral em seu favor.

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Se tal favorecimento poderia ocorrer com um radialista, com muito maior razão pode

ser vislumbrado com o líder religioso e aqui com um agravante: o exercício da atividade de

líder religioso é visto, por uma grande quantidade de cidadãos, como possuindo uma ligação

com o divino. Logo, seria uma disputa eleitoral travada entre o profano e o divino.

Muitos eleitores, que tenham forte pertença religiosa, também ficarão tentados a eleger

um ministro de culto para fins de aumentar a representatividade política de sua igreja. A

escolha no pleito eleitoral não seria pautada, necessariamente, em propostas de mudanças para

a sociedade civil como um todo e sim em busca ou em prol de melhorias para aquela

comunidade religiosa especificamente considerada.

Por todos esses fatores, parece adequado que se estabeleça um prazo de

desincompatibilização das lideranças religiosas que desejem se lançar como candidatos a

cargos eletivos.

O tratamento aqui sugerido aos líderes religiosos não destoa, por exemplo, do que a

legislação eleitoral já dedica aos dirigentes sindicais, que devem se desincompatibilizar quatro

meses antes do pleito.

A recomendação religiosa aqui investigada mais parece uma espécie de

desincompatibilização ética. Sim, se o direito estatal brasileiro não regulou o afastamento dos

líderes religiosos das atividades eclesiásticas em locais em que se candidataram aos cargos

políticos, é permitido às próprias organizações religiosas buscar a igualdade de oportunidades

na seara eleitoral.

Em suma, a desincompatibilização, seja para cargos públicos, seja para cargos da

iniciativa privada, parece ter por fundamento o preceito da igualdade de oportunidades na

seara eleitoral. É esse mesmo aspecto de igualdade material que precisa ser estendido, pelo

legislador eleitoral, aos líderes religiosos. Sendo assim, forçoso tecer breves considerações

acerca do cânone da simetria.

6 A IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NA SEARA ELEITORAL

Não se pode fazer um estudo específico do primado da igualdade de oportunidades na

seara eleitoral, sem que se lhe anteceda uma análise, mesmo que breve, do sentido genérico

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do cânone jurídico da igualdade16. Impõe-se, portanto, tecer considerações específicas acerca

do preceito constitucional da simetria (lato sensu). Nesse contexto, lança-se um olhar geral

para o primado da igualdade, desde já se antecipando que não era suficiente uma igualdade

meramente jurídica (no sentido formal e clássico), exigindo-se, mais do que isso, uma

isonomia fática (em sua acepção material), decorrente da moderna ideologia de igualdade de

oportunidades17.

Acerca da conquista do ideal de igualdade (sentido amplo), faz-se mister afirmar que

foi (e ainda continua a ser em numerosos países) labiríntico e sinuoso o caminho percorrido

para a sedimentação do ideal da igualdade entre os seres humanos. Com efeito, o conceito de

igualdade sempre foi marcado por uma ideia cambiante18, visto que era seguidamente

adaptável ao dinamismo das carências e das reivindicações sociais. Fazendo-se o

acompanhamento histórico do sentido jurídico do princípio da igualdade, observa-se que a

sociedade evoluiu desde um estágio em que se entendia como sendo natural a desigualdade,

passando pela defesa da igualdade formal e alcançando a igualdade material (igualdade de

oportunidades)19.

Tributa-se aos estóicos e ao cristianismo a superação da ideia de desigualdade

natural20. Os iluministas, por seu turno, chegaram a uma mais efetiva normatização do

primado da igualdade. Com efeito, o advento das declarações de direitos dos finais do século

XVIII (mormente a da Virgínia, de 12 de junho de 1776, e a dos Direitos do Homem e do

16 Toma-se por base a abordagem metodológica proposta por WOITYCZEK, Krzysztof. “Les religions et le

principe d’égalité”. In: Revue Europeenne de Droit Public. Vol. 17, n° 1, 2005. pp. 117/148. 17 Observando o quanto pode ser perversa a situação de igualdade de direito enquanto persiste uma

discriminação de fato, Tove Stang Dahl desenvolve suas reflexões numa perspectiva de igualdade jurídica entre

os homens e as mulheres, demonstrando o hiato entre esta previsão normativa e a realidade cotidiana. DAHL,

Tove Stang. O direito das mulheres: uma introdução à teoria do direito feminista. Tradução de Teresa Beleza e

outras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1993. pp. 58/62. 18 Acerca da compreensão dinâmica do conceito de igualdade, vide GARRIDO GÓMEZ, María Isabel. “Los

planos de vigencia de la igualdad material en el contexto de una comprensión compleja de la igualdad”. In:

Derechos y Libertades. Nº 20, Época II, 2009. pp. 57/78 (especial interesse pp. 58/64). 19 Acerca da evolução histórica do sentido jurídico do princípio da igualdade, vide DRAY, Guilherme Machado.

O princípio da igualdade no direito do trabalho: sua aplicabilidade no domínio específico da formação dos

contratos individuais de trabalho. Coimbra: Almedina, 1999. pp. 18/99. 20 Acerca da importância do cristianismo e dos estóicos na sedimentação do ideal de igualdade, vide Ibidem. p.

23. Já para Jónatas Machado, ao tratar da igualdade e sua ligação com o pensamento judaico-cristão, assim se

pronunciou: “A premissa judaico-cristã de igual dignidade de todos os homens e mulheres diante de Deus esteve

na base de séculos de reflexão política e jurídica. Ela tem o seu fundamento na criação de todos os seres

humanos, homens e mulheres, à imagem e semelhança de Deus. Ela é o fundamento dos direitos de liberdade

individual e da autodeterminação coletiva, constituindo também uma limitação moral ao respectivo exercício”.

Vide MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o

(neo)ateísmo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013 (especial interesse p. 48)

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72

Cidadão, de 26 de agosto de 1789), foi de suma relevância para a abolição de privilégios.

Essas declarações propiciaram o florescimento do ideal, então revolucionário, de igualdade

perante a lei, sendo induvidoso que influenciaram, fortemente, as modernas constituições que

lhe seguiram21 e que passaram a constitucionalizar o preceito da igualdade.

As repúblicas democráticas que se instalaram sob os ideais iluministas estabeleceram a

igualdade como um dos seus preceitos mais caros. Como lembrava João Barbalho, ao

comentar a primeira constituição republicana brasileira, a desigualdade, além de injusta e

injurídica, é impolítica. Para o autor, não existe fundamento justificador para que uma

organização política conceda mais direitos, mais garantias ou mais vantagens a uns do que a

outros membros da mesma comunidade. Concluía ele que, de todas as formas de governo, é a

república a mais própria para o domínio da igualdade, sendo mesmo a única verdadeiramente

compatível com ela22.

É inegável o fato de que a evolução social trouxe a constatação de que era insuficiente

o ideal de uma igualdade formal, sendo premente a cotidiana aplicabilidade da igualdade

material.

Foi o refinamento da ideia e dos pensadores que fez decantar as teses do direito a um

igual tratamento (equal treatment) e do direito a ser tratado como igual (treatment as an

equal). Não obstante exista uma progressiva sedimentação do ideal ao direito do igual

tratamento em face de todos os indivíduos e dos grupos sociais, há ainda quem teorize que o

princípio jurídico da igualdade é ausente de qualquer conteúdo. Alguns chegam até a

considerá-lo uma fórmula vazia (Leerformelcharakter)23, o que o tornaria ineficaz na

pretendida missão de combater excessos praticados no exercício dos poderes públicos ou

particulares e que afrontassem a simetria no tratamento.

21 O verbete “igualdade” foi bem explicado no Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional, para o qual se

remete o interessado em leitura complementar do tema. Dele se extrai a seguinte ideia das declarações e da

igualdade formal: “Nessas declarações, a igualdade consagrada era a igualdade perante a lei (isonomia), ou

seja, a garantia de um mesmo tratamento jurídico para todas as pessoas que se encontravam em uma situação

determinada ou apresentavam características semelhantes, que era legitimada, à época, com fulcro no direito

natural. Embora essa concepção fosse revolucionária, no dado momento histórico, ela não visava a estabelecer

uma igualdade plena e efetiva entre os indivíduos em certos domínios, sob a ótica da justiça social (igualdade

material); em vez disso, almejava a erradicação dos privilégios nobiliários e de classes, de maneira que as

inegáveis diferenças pessoais pudessem emergir naturalmente, mas apenas em razão (e na proporção) das

aptidões de cada um. Desse modo, ela apenas garantia a aplicação igualitária da lei” MENEZES, Paulo Lucena

de. “Igualdade”. In: VVAA. Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 175. 22 CARVALHO, João U. C. Constituição Federal brazileira: Comentários. Rio de Janeiro: Typographia da

Companhia Litho-Typographia em Sapopemba, 1902. pp. 303/304. 23 WESTEN, Peter. “The empty idea of equality” In: Harvard Law Review, 1982. p. 537.

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Longe de aceitar a tese de que a igualdade seria uma fórmula sem qualquer préstimo

jurídico, acredita-se que ela é uma fórmula carregada de múltiplos sentidos e significações24.

Para tanto, foi necessário ultrapassar o pensamento liberal clássico (com as achegas de ideias

sociais e democráticas, próprias do comunitarismo) de igualdade meramente jurídico-

normativa, desconectada da intencionalidade da norma e apenas preocupada com a justiça da

aplicação da lei. Com efeito, para que fosse possível dar maior valia jurídica à fórmula da

igualdade, foi necessário buscar a igualdade jurídico-política, preocupada não apenas com o

critério material de qualificação igual para efeitos de tratamento jurídico, mas também, de

outra banda, com a própria intencionalidade da norma. Foi justamente esse entendimento

alargado que propiciou uma maior confiança social e jurídica nas potencialidades do princípio

da igualdade no combate às injustiças. Resta, portanto, perfeitamente compreensível a

crescente invocação do preceito da igualdade quando se pretende promover a justiça.

O princípio da igualdade não é vislumbrado em dimensão única. Ao contrário, existem

três dimensões principais em torno das quais é analisado. A dimensão clássica liberal, a

dimensão democrática e a dimensão social.

A primeira se preocupa, fundamentalmente, com o tratamento normativo igualitário,

sem que se permita qualquer beneplácito ou perseguição em relação a qualquer indivíduo (em

face da lógica da impessoalidade estatal). A segunda não admite qualquer discriminação (aí se

incluindo as discriminações positivas, que formam uma política de ação afirmativa) na vida

social. Já a última defende a eliminação das desigualdades fáticas, buscando uma igualdade

material e não apenas formal25.

A tendência mundial é a busca pela igualdade de oportunidades. Com esse propósito,

retoma-se o pensamento de Aristóteles, no sentido de que se deve tratar igualmente aqueles

que são iguais e desigualmente os que são díspares, na exata proporção ou medida de suas

desigualações. Nessa mesma trilha, evoca-se Rui Barbosa, para quem a regra da igualdade

consistiria em aquinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam.

Segundo esclarecia, nessa desigualdade social, proporcional à desigualdade natural, é que se

encontra a verdadeira lei da igualdade. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com

24 A partir daqui, seguir-se-á o trajeto intelectivo pavimentado por GARCIA, Maria Glória F. P. D. Estudos

sobre o princípio da igualdade. Coimbra: Almedina, 2005. pp. 29/73. 25 Para maiores desdobramentos sobre o princípio constitucional da igualdade, vide CANOTILHO, J. J. Gomes;

MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. Volume I. 1 ed. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais; 4 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. pp. 336/337.

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Arremata afirmando que os

apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo que não se

devia dar a cada um na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se

equivalessem26.

No campo das tendências hodiernas, parece incontornável afirmar que o princípio da

igualdade (e uma igualdade mais ampla, com um olhar inclusivo e com o devido respeito

pelas diferenças), no constitucionalismo ocidental, tem sido edificado ao patamar de um

princípio constitucional fundamental. Nas palavras de Bruno Galindo, a “própria ideia de

Estado democrático de direito é indissociável do princípio da igualdade”27.

Na seara eleitoral brasileira, o legislador ouve por bem defender o princípio da

igualdade de oportunidades entre os disputantes dos cargos eletivos. Com efeito, o preceito

em análise foi alvo de expressa proteção no art. 73 da Lei nº 9.504/97 (a lei geral das

eleições), que tem a seguinte redação:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas

tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos

eleitorais:

I - ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens

móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos

Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a

realização de convenção partidária;

II - usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que

excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que

integram;

III - ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta

federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para

comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o

horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado;

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou

coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou

subvencionados pelo Poder Público;

V - nomear, contratar ou de qualquer forma admitir, demitir sem justa causa,

suprimir ou readaptar vantagens ou por outros meios dificultar ou impedir o

exercício funcional e, ainda, ex officio, remover, transferir ou exonerar servidor

público, na circunscrição do pleito, nos três meses que o antecedem e até a posse dos

eleitos, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados:

a) a nomeação ou exoneração de cargos em comissão e designação ou dispensa de

funções de confiança;

26 BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 2 ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949. p. 21. 27 GALINDO, Bruno. “Cidadania complexa e direito à diferença: repensando o princípio da igualdade no estado constitucional contemporâneo”. In FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão; NEWTON, Paulla Christianne da Costa (org.). Cidadania plural e diversidade: a construção do princípio fundamental da igualdade nas diferenças. São Paulo: Editora Verbatim, 2012. pp. 19/31 (especial interesse p. 21).

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75

b) a nomeação para cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais

ou Conselhos de Contas e dos órgãos da Presidência da República;

c) a nomeação dos aprovados em concursos públicos homologados até o início

daquele prazo;

d) a nomeação ou contratação necessária à instalação ou ao funcionamento inadiável

de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa autorização do Chefe do

Poder Executivo;

e) a transferência ou remoção ex officio de militares, policiais civis e de agentes

penitenciários;

VI - nos três meses que antecedem o pleito:

a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e

dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os

recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra

ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender

situações de emergência e de calamidade pública;

b) com exceção da propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no

mercado, autorizar publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e

campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas

entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade

pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral;

c) fazer pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, fora do horário eleitoral

gratuito, salvo quando, a critério da Justiça Eleitoral, tratar-se de matéria urgente,

relevante e característica das funções de governo;

VII - realizar, em ano de eleição, antes do prazo fixado no inciso anterior, despesas

com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das

respectivas entidades da administração indireta, que excedam a média dos gastos nos

três últimos anos que antecedem o pleito ou do último ano imediatamente anterior à

eleição.

VIII - fazer, na circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores

públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do

ano da eleição, a partir do início do prazo estabelecido no art. 7º desta Lei e até a

posse dos eleitos.

§ 1º Reputa-se agente público, para os efeitos deste artigo, quem exerce, ainda que

transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação,

contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo,

emprego ou função nos órgãos ou entidades da administração pública direta,

indireta, ou fundacional.

§ 2º A vedação do inciso I do caput não se aplica ao uso, em campanha, de

transporte oficial pelo Presidente da República, obedecido o disposto no art. 76, nem

ao uso, em campanha, pelos candidatos a reeleição de Presidente e Vice-Presidente

da República, Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal,

Prefeito e Vice-Prefeito, de suas residências oficiais para realização de contatos,

encontros e reuniões pertinentes à própria campanha, desde que não tenham caráter

de ato público.

§ 3º As vedações do inciso VI do caput, alíneas b e c, aplicam-se apenas aos agentes

públicos das esferas administrativas cujos cargos estejam em disputa na eleição.

§ 4º O descumprimento do disposto neste artigo acarretará a suspensão imediata da

conduta vedada, quando for o caso, e sujeitará os responsáveis a multa no valor de

cinco a cem mil UFIR.

§ 5o Nos casos de descumprimento do disposto nos incisos do caput e no § 10, sem

prejuízo do disposto no § 4o, o candidato beneficiado, agente público ou não, ficará

sujeito à cassação do registro ou do diploma.

§ 6º As multas de que trata este artigo serão duplicadas a cada reincidência.

§ 7º As condutas enumeradas no caput caracterizam, ainda, atos de improbidade

administrativa, a que se refere o art. 11, inciso I, da Lei nº 8.429, de 2 de junho de

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76

1992, e sujeitam-se às disposições daquele diploma legal, em especial às

cominações do art. 12, inciso III.

§ 8º Aplicam-se as sanções do § 4º aos agentes públicos responsáveis pelas condutas

vedadas e aos partidos, coligações e candidatos que delas se beneficiarem.

§ 9º Na distribuição dos recursos do Fundo Partidário (Lei nº 9.096, de 19 de

setembro de 1995) oriundos da aplicação do disposto no § 4º, deverão ser excluídos

os partidos beneficiados pelos atos que originaram as multas.

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens,

valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de

calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados

em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o

Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira

e administrativa.

§ 11. Nos anos eleitorais, os programas sociais de que trata o § 10 não poderão ser

executados por entidade nominalmente vinculada a candidato ou por esse mantida.

§ 12. A representação contra a não observância do disposto neste artigo observará o

rito do art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, e poderá ser

ajuizada até a data da diplomação.

§ 13. O prazo de recurso contra decisões proferidas com base neste artigo será de 3

(três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial.

Ao analisar a listagem das condutas vedadas elencadas no art. 73 da Lei das Eleições

parece evidente que diversas das hipóteses legais desequilibram o pleito eleitoral em menor

escala ou dimensão do que a fala de um líder religioso a defender, mesmo que de modo

subliminar, a sua candidatura a um cargo político.

Logo, seria recomendável a vedação de que líderes religiosos pudessem se candidatar

nos locais em que exercem suas atividades eclesiásticas ou ainda que tenham que se

desincompatibilizar caso queiram se candidatar na localidade em que atuam como religiosos.

Tal medida se impõe ante o poder (até mesmo psicológico, em face das teorias de

programação, desprogramação e reprogramação dos adeptos) que a entidade religiosa exerce

sobre os fiéis, transformando-os em entes fragilizados na relação estabelecida, o que poderia

ser utilizado para propósitos eleitorais (desequilibrando a disputa e ferindo o princípio da

igualdade de oportunidades entre os candidatos).

7 CONCLUSÃO

Ao cabo de todas as ponderações firmadas acima, permite-se formular as seguintes

considerações:

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77

a) A recomendação do líder da Igreja de Roma para o estado da Paraíba parece ter levado

em consideração a existência de espaços próprios (não, necessariamente, sem qualquer

comunicação) para que o poder político e o poder religioso se constituam em um dos

postulados do constitucionalismo dos dias presentes.

b) Vislumbra-se que a nota normativa da arquidiocese da Paraíba parte da premissa de

que a esfera política é autônoma da seara religiosa, de modo que o Estado e a religião

devem ser separados, mantendo-se um distanciamento respeitoso.28

c) O atual modelo brasileiro de laicidade é o de uma “quase nenhuma laicidade”, na

medida em que aceita, dentre outras distorções (e aqui listadas apenas as questões

envolventes a seara eleitoral), as seguintes: permite que os líderes religiosos se

candidatem a cargos eletivos, mesmo nos locais em que exercem suas funções

eclesiásticas (o que parece ferir o princípio da igualdade de armas entre os disputantes

das eleições), além de permitir a existência de partidos políticos com cartas

programáticas assumidamente religiosas e com nome ou símbolos de identificação

com conotações religiosas.

d) A legislação eleitoral brasileira tem, de forma geral, mostrado preocupação no sentido

de propiciar uma igualdade de oportunidades entre os candidatos aos cargos eletivos.

e) Não existe, ainda, a restrição do estado legislativo no sentido de exigir uma

desincompatibilização dos líderes religiosos de suas atividades eclesiásticas na

hipótese de se candidatem aos postos políticos.

28 AMARAL, Maria Lúcia. A forma da República: uma introdução ao estudo do direito constitucional.

Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 45. Para a doutrinadora portuguesa, existem nove postulados que são

tributáveis ao constitucionalismo moderno (dentre os quais se insere a separação entre o Estado e as religiões): 1)

o poder político exercido em uma determinada comunidade é proveniente da vontade dos seus integrantes e não

de qualquer realidade que lhe seja transcendente; 2) a ordem jurídica fundamental da comunidade deve ser

consubstanciada em uma constituição escrita, que venha a refletir a decisão soberana do elemento subjetivo do

Estado; 3) a legitimidade dos poderes soberanos do Estado decorre da observância aos ditames constitucionais,

eis que, quando exercidos em descompasso com a previsão supralegal, tornam-se ilegítimos e desacompanhados

da razão; 4) a exigência de uma condicionante genérica para que alguém seja considerado pertencente à

comunidade política, evitando-se que apenas pequenas castas sociais, religiosas, políticas ou econômicas possam

desfrutar da cidadania; 5) os direitos fundamentais hão de possuir maior peso e importância do que os demais

direitos que eventualmente com eles possam concorrer ou colidir, sendo que o poder político não deve descuidar

da sua efetividade; 6) a separação entre o poder político e o religioso; 7) a diluição de responsabilidades dentro

do poder político (evitando-se os absolutismos), devendo existir uma fragmentação das esferas de competência

entre os poderes políticos legitimamente constituídos; 8) a supremacia da lei, a ser elaborada por um Parlamento

escolhido por meio da vontade livre, espontânea e consciente dos cidadãos, eis que a ninguém é permitido deixar

de cumprir os comandos normativos (decorrência do Estado de direito); 9) a primazia da vontade da maioria

(decorrência do Estado democrático).

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78

f) Diante da lacuna normativa diagnosticada o presente estudo defende que seja vedado

ao líder religioso se candidatar na localidade em que exerce sua atividade eclesiástica

e como medida legislativa alternativa, e na hipótese de se aceitar que o ministro de

culto se candidate no local onde exerce suas atividades religiosas, que seja ao menos

exigida a desincompatibilização do exercício de suas tarefas eclesiásticas em prazos

semelhantes aos exigidos dos que ocupam cargos privados de grande visibilidade

social.

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A AUSÊNCIA DA PRÁTICA CIDADÃ NO PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO:

A QUESTÃO PARTICIPAÇÃO X VOTO

José Flôr de Medeiros Júnior1

Laryssa Mayara Alves de Almeida2

“O Brasil não tem povo, tem público.”

Lima Barreto

Sumário: 1 Introdução. 2 A ausência da prática cidadã no brasil contemporâneo. 3

Se todo o poder emana do povo onde está o povo? 4 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O brasileiro vem assistindo de algum tempo na seara eleitoral o debate sobre a

obrigatoriedade, ou não, do voto. Necessário considerar que em consonância com o Art. 1º,

Parágrafo Único, do texto constitucional está explícito que todo o poder emana do povo, que

o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Situação que vem do constituinte originário e tem, enquanto princípio constitucional,

conceder ao cidadão brasileiro o direito de exercer o poder oriundo da prática cidadã. Não

podemos deixar de expor que o voto no Brasil é um exercício obrigatório, um dever.

E reside neste ponto um dos maiores problemas no âmbito eleitoral dentro do direito

brasileiro e será dele que procuraremos traçar um diálogo com o elemento ausente na

sociedade brasileira: o povo. Consideramos que não pode existir democracia sem a presença

do povo, enquanto cidadão, como partícipe do processo eleitoral. Não é bastante a existência

do povo. A participação deste com prática cidadã é um dos fundamentos da democracia.

E neste sentido a democracia brasileira é afetada por uma situação de ordem cultural,

social e histórica a refletir no terreno político contemporâneo. Esta vem a ser a presença de

que a maioria do eleitorado é público e não povo.

1 Graduado em História pela UEPB, Especialista em História do Nordeste pela UEPB, Mestrado incompleto pela

UFPB, Professor de Ética, Filosofia, Sociologia, Humanidades e Ciência Política na Faculdade Maurício de

Nassau, graduando em Direito pela FACISA, consultor na Área de Educação e Ética Geral e Profissional. E-

mail: [email protected] 2 Advogada. Especialista. Aluna Especial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB. E-

mail: [email protected]

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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A discussão não é nova em se tratando de ausência de participação política por parte

da sociedade brasileira. Desde os primórdios da República, para não irmos até os textos legais

do Império3 que excluíam a população como partícipe do conjunto de decisões do Estado, que

a não participação do povo em seu próprio destino chama a atenção de escritores, juristas e

sociólogos.

O historiador José Murilo de Carvalho no texto Os Bestializados: Rio de Janeiro e a

República que não foi, fez uma análise profunda do quanto à sociedade brasileira era, na

realidade ainda é, apartada da prática cidadã. Com olhar voltado para o ano de 1890 no Rio de

Janeiro o citado autor chamou a atenção de que “A exclusão de 80% da população do direito

político do voto já é um indicador do pouco que significou o novo regime em termos de

ampliação da participação” (CARVALHO, 1987, p. 85).

Consideremos, entretanto, a existência de um quadro de exclusão das pessoas do

exercício da prática cidadã. As pessoas eram, à época, impedidas, em sua maior parte, de

discutir questões em relação à Res Publica. Pela legislação existente estavam, repito,

excluídos os menores de 21 anos, as mulheres, os analfabetos, as praças de pré e os frades.4

Existindo, portanto, uma exclusão legal não podemos, em tese, cobrar destas pessoas sua

participação no mundo político. Por outro, ângulo devemos olhar para aqueles que tinham o

direito à participação cidadã.

E neste ponto chegamos ao fato de que “pelo critério da participação eleitoral, pode-se

dizer que de fato não havia povo político no Rio de Janeiro.” (CARVALHO, 1987, p. 86).

Tal fato, registrado na história e no conjunto legal existente à época, somente reforça o

argumento de que, mesmo tendo o direito à participação a maior parte formava um público

deixando as decisões a parcela menor a decidir em nome do povo. A prática cidadã não se

constrói com leis ou decretos. A prática cidadã se constrói com a participação.

E, sendo assim, vale registrar que a prática cidadã não pode ser reduzida ao ato de

votar em um candidato de algum partido.

3 A Constituição de 1824 trazia em seu texto o voto censitário como condição de “participação” residia, portanto,

a questão econômica. 4 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo,

Companhia das Letras, 1987. Pág. 85

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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2 A AUSÊNCIA DA PRÁTICA CIDADÃ NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

O espaço compreendido pela denominação de República Velha (1891 – 1930) é

conduzido pela Constituição de 1891 onde o caráter excludente em relação à participação na

Res Publica tornava mais fácil entender o motivo do pequeno número de pessoas, não de

cidadãos, a ter condições legais de exercer o direito de voto no Brasil. Menor, ainda, o

número dos que participavam da vida do Estado5. O movimento de 1930 e a ascensão de

Vargas retira o caráter democrático do Estado brasileiro e, paradoxalmente, aumenta o

número de eleitores quando tal situação é posta para as mulheres.

Dentro do pensamento político brasileiro o período, compreendido entre 1946 e 1964 é

concebido como democrático. Este período recebeu ao longo do tempo diversas

denominações, como "democracia controlada" (COHN APUD COSTA, 1968, p. 27) ou

"democratização do Estado" (IANNI, APUD COSTA, 1985, p. 27). Importa neste diálogo

tanto o substantivo democracia quanto os adjetivos a ela imputados.

A importância dos adjetivos ao termo democracia reside na dissociação entre

sociedade civil e Estado que as conceituações demonstram. Ou seja, o controle pela via

democrática da participação política e, inclusive, da legalidade de partidos políticos, caso do

PCB, colocado na ilegalidade em 1946, início do “intervalo democrático” entre a ditadura de

Vargas e o Golpe Militar de 1964.

O advento do Golpe Militar retirava dos poucos que participavam da vida política do

Estado este direito. Entre 1964 e 1985 a ausência de participação política era clara como a

presença dos militares no poder. Contrariando a situação de ausência de liberdade política

imposta pelo Estado o aumento do número de eleitores crescia com o alistamento eleitoral. A

obrigatoriedade do voto posta no Art. 7º do Código Eleitoral6.

5 Não estamos a considerar o ato de votar, puro e simples, como participação. Consideramos como participação

na vida do Estado a ideia de ser dever do homem político ser o participe do conjunto de decisões dentro do, e no,

Estado. É um dever a participação. 6 Estamos aqui a fazer referência ao Código Eleitoral de 1965, instituído pela Lei Nº 4.737 de julho de 1965 e

não ao Código Eleitoral de 1932. O Código Eleitoral de 1932 considerava para fins de alistamento militar o

cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo. É neste sentido ampliado o direito de voto às mulheres ao

tempo que trata como cidadão toda pessoa. Tal equívoco é mantido até os dias de hoje quando se confunde o ato

de votar com o ato de participar. Importante ressaltar, ainda, que é o Código de 1932 que cria a Justiça Eleitoral

no Brasil. Esta foi mantida pela Carta de 1934, extinta quando do Estado Novo e recriada por Decreto-Lei em

1945 e mantida com alterações nas Constituições seguintes.

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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER

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84

Com o processo de redemocratização, que pôs término ao Regime Militar instaurado

no Brasil em 1964, a nação brasileira assistia o crescimento de seu eleitorado junto a um

processo de apatia participativa crescente. E não seria equívoco afirmarmos que a democracia

brasileira estava, naquele momento, em sua menoridade7. Reside o problema de que ela não

conseguiu atingir, ainda, a maioridade. Deter o direito de eleger e não participar do processo

do debate, do diálogo, da Ágora, é ser um não cidadão. Não luta por si e prejudica os outros.

Em entrevista publicada em 1985 o advogado, jurista, historiador e analista político

Raymundo Faoro definiu bem como a sociedade brasileira “participa” da Res Publica ao

afirmar que

Nós temos a tendência de não ler jornal, de não estudar os discursos, os escritos do

político, de quem está no poder. A tendência que nós temos é achar que aquilo é

realizado para efeito moralmente eleitoral, ocasional, não tendo maior significação.

(FAORO, 2008, p. 37)

Aponta, assim, para o quanto ausente no cotidiano político e eleitoral está o “cidadão”

brasileiro. A apatia do eleitor brasileiro, da sociedade brasileira, leva a reflexão da necessária

discussão sobre o ser político brasileiro no sentido aristotélico do termo. Em sua obra Política

o pensador grego afirma que “o homem é um animal político” (ARISTÓTELES, 2003, p. 14)

e na definição posta é necessário perceber que o homem brasileiro procura distanciamento da

prática cidadã, da participação na vida da Pólis. Novamente nos firmamos em Aristóteles ao

escrever ser:

(...) evidente, portanto, que a cidade participa das coisas da natureza, que o homem é

um animal político, por natureza, que deve viver em sociedade, e que aquele que,

por instinto e não por inibição de qualquer circunstância, deixa de participar de uma

cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Esse indivíduo é merecedor, segundo

Homero, da cruel censura de um sem-família, sem leis, sem lar. Pois ele tem sede de

combates e, como as aves rapinantes, não é capaz de se submeter a nenhuma

obediência. (ARISTÓTELES, 2003, p. 14)

E ainda:

7 Usamos, aqui, o pensamento kantiano a respeito de menoridade e maioridade. Segundo Foucault, em O

Governo de si e dos outros, “estamos em estado de menoridade porque somos covardes e preguiçosos, e não

podemos sair desse estado de menoridade, precisamente porque somos covardes e preguiçosos.” (FOUCAULT,

Michel. O Governo de si e dos outros: curso no College de France. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo,

Editora WMF Martins Fontes, 2010).

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Ora, o que não consegue viver em sociedade, ou que não necessita de nada porque

se basta a si mesmo, não participa do Estado; é um bruto ou uma divindade.

(ARISTÓTELES, 2003, p. 15)

Perfeita, e precisa, definição para a ausência da prática cidadã no processo eleitoral

brasileiro onde o eleitor acredita que ao depositar sua confiança, fazer uso do poder do voto, é

participar. É, também. Mas, na realidade, participar é ir ao ensinamento de Faoro, ao

pensamento de Aristóteles. A prática cidadã é cotidiana e, portanto, não tem uma data fixada

no calendário eleitoral, não. O ato de votar, sim, necessita de um planejamento dentro do

processo de que é parte.

O ato de votar deveria ser posto como a maioridade dentro da prática cidadã e não seu

ponto de partida. Afinal, o homem que apenas exerce o direito de voto é aquele que não

participa da vida do Estado. Reside distante do público e da coisa pública. E esta posição é

prejudicial ao amadurecimento de qualquer democracia.

A participação na, e da, vida do Estado é, por outro olhar, um problema ético quando

esta se encontra ausente. Neste sentido é imperioso refletir sobre o exposto pelo filósofo

brasileiro José Arthur Gianotti ao perguntar:

Por que a ética voltou a ser um dos temas mais trabalhados do pensamento filosófico

contemporâneo? Nos anos 60 a política ocupava esse lugar e muitos cometeram o

exagero de afirmar que tudo era político. (GIANOTTI, 1992, p. 239)

Enquanto que o Prof. Luis Alberto Barroso discutindo Kant afirmar que:

a ética, por sua vez, tem por objeto a vontade do homem, e prescreve leis destinadas

a reger condutas. (...) Em lugar de apresentar um catálogo de virtudes específicas,

uma lista do que fazer e do que não fazer, Kant concebeu uma fórmula, uma forma

de determinar a ação ética. (BARROSO, 2013, p. 301 - 302)

Marx, Kant, Gianotti e Barroso não estão distantes em suas posições. É imperioso

reaver o homem do local onde cometeu o pecado original. Na dialética marxista é necessário

discutir o homem coisificado para compreender o processo que o coisificou e, somente assim,

romper com a situação de apatia. Em Kant veremos a importância em discutir valor e preço.

Afinal, as pessoas têm algo que não pode ser comercializado. A sua dignidade.

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A participação na vida do Estado é um valor e não um preço8.

Não é uma coisa, um objeto.

Diante desta constatação não existe equivalente à participação cidadã em um processo

eleitoral e nem dela pode o cidadão se ausentar sob pena de não ser cidadão.

A não participação na vida cotidiana como cidadão é um problema a ser abordado,

também, no campo da ética. É neste sentido que Gianotti nos encaminha a olhar que a ética

vem sendo (re)discutida e existe inquietação no mundo contemporâneo com os valores éticos.

Estes são valores, por natureza, humanos. Recuperar o espaço ético é, em outras palavras,

trazer à tona o homem e colocá-lo com chances de recuperar sua autonomia.

No caso da ausência de participação cidadã no processo eleitoral brasileiro é fazer o

homem ser cidadão. Ser presente nas discussões e debates inerentes à vida do Estado. E neste

ponto concordamos com o Prof. Gianotti ao afirmar que:

(...) um ser humano está sempre participando de vários sistemas de normas,

aceitando uns e rejeitando outros, de sorte que sua individualidade não se resume

naquela encruzilhada de determinações de um certo jogo de linguagem, que faz do

indivíduo o suporte de uma função social. Sua individualidade é diferente daquela

do bispo ou da torre no jogo de xadrez, ou ainda daquela que lhe marca papéis e

ações num sistema social. Tudo isso nos leva a distinguir o sujeito do agente.

(GIANOTTI, 1992, p. 241)

Perceba que Gianotti utiliza o vocábulo participando em relação ao ser humano e o

homem brasileiro ainda não conseguiu, em sua maior parte, atingir a denominação posta por

Aristóteles9 e continua a se distanciar da maioridade no sentido kantiano10.

Caso o homem brasileiro continue no processo de distanciamento da participação do

processo político e sendo partícipe apenas do processo eleitoral através do ato de votar

terminará como os vários primatas que foram subjugados pelo primata kubrickiano no filme

2001: Uma Odisséia no Espaço.

É relevante mencionar que o primeiro primata kubrickiano a usar a osso passa a

8 Nos referenciamos aqui em Kant e sua discussão sobre dignidade. (KANT, Immanuel – "Fundamentação da

metafísica dos costumes e outros escritos"; tradução de Leopoldo Holzbach – São Paulo: Martin Claret, 2004. 9 Ver referências ao homem como animal político na obra de Aristóteles neste texto. 10 Para Kant ““A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro

indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de

entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. (LEITE,

Flamarion Tavares. 10 lições sobre Kant. 4ª Ed. Petropólis, Vozes, 2010)

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controlar o grupo. Isto significa, em outras palavras, o controle político de um grupo de

macacos até então com a vivência ordenada pela convivência na proteção de uns aos outros. A

invenção/inovação do osso trouxe consigo a disputa. Esta passou a ser entre grupos e depois

dentro do próprio grupo.

A área territorial onde residia o grupo passa a ser controlada para manutenção do

mesmo e como forma de evitar que outros grupos concorrentes viessem a matar sua sede junto

a única fonte com água existente na região. Fonte que atraia outros animais que terminavam

sendo abatidos para servir de alimento e seus ossos, agora, reaproveitados.

A não participação na vida do Estado é parte do processo de coisificação do homem e

o abandono por este de sua (nunca existente) liberdade.

3 SE TODO O PODER EMANA DO POVO, ONDE ESTÁ O POVO?

A promulgação da Constituição de 1988 trouxe avanços políticos, sociais,

econômicos, educacionais e culturais impensáveis para o momento em que foi redigida. Não

podemos esquecer que o país estava saindo de mais um Regime Ditatorial com origem na

crise do populismo no início dos anos 60 e culminando com o Golpe Militar de 31 de Março

de 1964.

Em seu Art. 1º, Parágrafo Único, o texto constitucional aponta para a origem do poder

no Estado Brasileiro. Significando dizer que o poder de decisão não reside apenas naqueles a

deter um assento no Parlamento, não. O poder pode, e deve, ser exercido de forma direta pelo

povo, como afirma o próprio texto constitucional.

Retornamos ao termo apatia e a ausência de prática cidadã para afirmar ser o homem

brasileiro apenas uma pessoa e não um cidadão. Ao não fazer o exercício da cidadania o

mesmo está deixando que outros pensem por ele e terminem agindo por si sem consulta prévia

justificação feita de que receberam o voto do “povo” brasileiro.

Em parte tal postura é correta.

Afirmamos em parte pelo simples motivo de não estarmos enxergando onde reside o

povo. Sim, onde está o povo? Não podemos considerar como povo apenas quem, para evitar

uma sanção, utilizam do voto enquanto instrumento de defesa sem ter convivido com os

poucos cidadãos existentes no Estado.

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Um exemplo de tal situação vem a ser a última eleição presidencial onde quase 30

milhões de pessoas aptas a votar simplesmente não compareceram ao local de votação e aqui

não estamos a contabilizar os votos brancos e nulos11. Quando os números consolidados do

último pleito nacional foram apresentados no Plenário do TSE a discussão voto obrigatório x

voto facultativo ganhou ainda mais força.

Se considerarmos apenas os votos válidos ainda teríamos que analisar dentro deste

universo as pessoas e os cidadãos separando-os por grupo. Se tal situação fosse possível

criaríamos dois grupos tomando de empréstimo a frase de Lima Barreto12 e alocando-os em

POVO, como sendo o partícipe da vida do Estado, e PÚBLICO, como sendo o que vive a

assistir os atos decisórios do Estado.

De acordo com Dirley da Cunha Júnior, com quem estamos a concordar em posição

teórica, em seu Curso de Direito Constitucional é nítido que:

A Constituição de 1988 consagra a Soberania Popular com Princípio Fundamental,

ao destacar, no parágrafo único do art. 1º, que “Todo o poder emana do povo, que o

exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta

Constituição”.

Adota, assim, uma Democracia representativa, que combina representação e

participação popular direta, tendendo para uma democracia participativa. Vejamos.

Quando a Constituição afirma que o povo exerce o seu poder por meio de

representantes eleitos, ela explicita a Democracia representativa; contudo, quando

indica que o povo exerce o seu poder diretamente, ela exprime a Democracia direta.

Da conjugação da Democracia representativa e Democracia direta temos um modelo

misto de Democracia semidireta, que nada mais é senão uma Democracia

representativa com alguns institutos ou mecanismos de participação direta do povo

na formação da vontade política nacional. Da Democracia semidireta se desenvolve

a chamada Democracia participativa. (CUNHA JR.,2013, p. 521)

11 De acordo com os números oficiais apresentados pelo TSE o quadro de ausência do eleitorado chega a ser

preocupante em um país que tem o voto como obrigatório. Segundo o TSE “O ministro lembrou também que a

chapa composta por Dilma Rousseff e Michel Temer recebeu 54.501.118 votos (51,64% dos votos válidos) e a

chapa integrada por Aécio Neves e Aloysio Nunes Ferreira obteve 51.041.155 votos (48,36% dos votos válidos).

Segundo outros dados apresentados no relatório consolidado do dia 27 de outubro, dos 142.822.046 eleitores

aptos a votar, foram apurados 112.683.879 votos. Desse total, constam 105.542.273 votos válidos, 1.921.819

votos em branco e 5.219.787 votos nulos, e nenhum voto de seção anulado ou apurado em separado.” (Fonte:

http://www.tse.jus.br/noticias-tse/2014/Dezembro/plenario-do-tse-proclama-resultado-definitivo-do-segundo-

turno-da-eleicao-presidencial)

12 “O Brasil não tem povo, tem público.” (Lima Barreto)

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89

Percebe-se o espaço não ocupado (ausência de prática cidadã) pelo homem brasileiro.

Não existe a falta de espaço legal para que haja cidadania, para que possamos atingir a

maioridade13.

No caso em tela o ausente é o povo ao não usufruir do espaço legal a ele concedido no

texto constitucional adentrando, assim, em um processo de isolamento em relação às decisões

por parte do Estado e caminhando para deixar de ser considerado homem político para ser

apenas homem. A discrepância entre o homem, que deveria ser cidadão, e a prática cidadã

cria um abismo a reforçar o poder estatal frente aos governados...dos outros.

Acreditamos ser mais importante expor a crise existente na ausência de participação

cidadã no processo eleitoral brasileiro que a discussão se é mais importante o voto facultativo

que obrigatório.14 E neste caminho concordamos com o Professor Alex Muniz Barreto em seu

texto Direito Constitucional Positivo ao afirmar que a cidadania:

Consubstancia-se na inafastabilidade da participação popular nas decisões políticas

do Estado, mediante o sistema de democracia participativa. A intervenção e a

colaboração dos cidadãos nos negócios públicos são imanentes ao regime

democrático, sendo que este opera diretamente no ambiente social construído a

partir do princípio da dignidade da pessoa humana, onde o destinatário imediato dos

direitos e da proteção normativa é o ser humano e não o Estado (antropocracia).

(BARRETO, 2013, p. 195)

Percebe-se nas palavras do Professor Alex Muniz a importância da participação

popular como elemento indissociável da democracia. Em outras palavras, a democracia

brasileira somente poderá avançar e consolidar-se dentro de um processo participativo

daqueles que ainda não chegaram à condição de cidadãos. São meramente pessoas no sentido

jurídico do termo.

4 CONCLUSÃO

A democracia pressupõe a presença do povo, enquanto cidadão, como partícipe do

processo eleitoral. Mas numa sociedade apartada da prática cidadã, como a brasileira, a

13 Aqui expressa no sentido kantiano do termo e discutido linhas acima. 14 Sobre a discussão entre o voto facultativo e/ou obrigatório cremos ser de suma importância o embate entre as

duas correntes: a que defende o voto obrigatório e a contrária. Lançaremos nossa exposição sobre o tema em

breve. Antecipamos, entretanto, sermos contrário à obrigatoriedade do voto.

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obrigatoriedade do voto se transforma em um dever que a cada dois anos condiciona o

cidadão brasileiro (ou sua caricatura) a um gesto simbólico de patriotismo.

Ora, a prática cidadã não se constrói com leis ou decretos nem pode ser reduzida ao ato

de votar em um candidato de algum partido. Tal fato, deixa claro que mesmo tendo o direito à

participação a maior parte do povo brasileiro prefere deixar as decisões sob a responsabilidade

de um pequeno grupo. E isso pode ser percebido em vários momentos na história, um deles é

com o processo de redemocratização, no qual a nação brasileira assistiu ao crescimento de seu

eleitorado junto a um processo de apatia participativa crescente.

Logo, o direito de eleger e a não participação no cotidiano político e eleitoral é parte do

processo de coisificação do homem e o abandono por este de sua (nunca existente) liberdade.

A prática cidadã é cotidiana e, portanto, não pode ter uma data fixa no calendário

eleitoral. A ausência do povo, ao não usufruir do espaço legal a ele concedido no texto

constitucional, o isola em relação às decisões por parte do Estado e cria um abismo entre o

homem, que deveria ser cidadão, e a prática cidadã, reforçando o poder estatal frente aos

governados.

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MEMÓRIA E VERDADE: DIREITOS ESSENCIAIS AO PROCESSO DE

DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS

Andrea Tourinho Pacheco de Miranda1

Ezilda Claudia de Melo2

SUMÁRIO: 1. A Hermenêutica e a Verdade: o Direito à memória e à verdade

como direitos fundamentais. 2. Memória, verdade e justiça de transição. 3. As

primeiras políticas públicas de justiça de transição no Brasil. 4. O trabalho da

Comissão da Verdade no Brasil. 5. Conclusão. 6. Referências.

1 A HERMENÊUTICA E A VERDADE: O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE

COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Na Antiguidade Clássica, recorria-se a Hermes, o mensageiro dos Deuses, pela busca

da verdade escondida. Hermes foi retratado por Homero (no livro "Odisseia") e Hesíodo (na

obra "Os trabalhos e os dias") por suas habilidades e considerado benfeitor dos mortais,

portador da boa sorte e também das fraudes. Autores clássicos também adornaram o mito com

novos acontecimentos. Esquilo mostrou Hermes a ajudar Orestes a matar Clitemnestra sob

uma identidade falsa e outros estratagemas, e disse também que ele era o deus das buscas, e

daqueles que procuram coisas perdidas ou roubadas. Seu atributo característico era

a ambiguidade, pois ao mesmo tempo que era mensageiro dos deuses, era também fiel

mensageiro do mundo das trevas. Não é de se estranhar que a palavra "hermenêutica"

encontre consentâneos nas palavras "hermeneuein" (interpretar), "hermeneia" (interpretação),

"hermeios" (sacerdote do oráculo de Delfos) e "Hermes" (o mensageiro, na mitologia antiga

ocidental). A verdade é em si ambígua, ou será que não a enxergamos?

1 Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2006). Aluna do Doutorado em Direito da

Universidade de Buenos Aires, Argentina( 2009). Aluna da Pós-Graduação do Curso Master Internacional em

Segurança Pública da Universidade Estadual da Bahia em convênio com a Università degli Studi di Padova(

2013). Cursos de Extensão em Business Law,-Law School- Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados

Unidos ( 1992-UCLA). Graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente é

docente do curso de graduação em Direito da Faculdade Ruy Barbosa-Devry Brasil -Bahia. Ex Diretora da

Escola Superior da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Docente da Escola Superior da Defensoria Pública

do Estado da Bahia. Pesquisadora CNPQ-Grupo TIPEMSE/UNEB. 2 Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público. Professora e

Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Ruy/Devry Brasil. E-mail: [email protected]

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A interpretação que se faz do mundo é uma atividade de compreensão. O jurista deve

considerar o ordenamento jurídico dinamicamente, pois a interpretação é que mantém a vida

da lei e das outras fontes do Direito. Interpretar um fato corretamente requer, antes de tudo,

visão sobre nós mesmos. Quem somos? Sobre quais valores ético-morais temos nossa base

fincada? O que queremos para o mundo? Somos pessoas boas? Tratamos bem nossos

semelhantes? Cultivamos a semente do bem? Não nos apropriamos de nada que não nos

pertence?

Uma das maiores desobediências que podemos cometer ético-jurídica-filosófica-

política-religiosa é o furto. Retirar algo de alguém. Algo que não nos pertence. O furto está

nas origens das piores barbaridades: nas questões de vida, como no caso dos homicidas ou dos

abortos; nas questões de bens, públicos ou privados, como no caso dos corruptos; nas

questões pessoais, que envolvem o "furto" de sentimento e de emoção, como num caso de

uma mãe não permitir que uma filha tenha laços com o pai, ocasionando a alienação parental,

ou nas questões que envolvem o direito à memória e à verdade. O furto é abominável. Sendo

assim, continuemos analisando as verdades no Direito. O que elas são? O que

representam? Quem pode interpretá-las?

Para TRAVERSO (2007, p.14), “a memória coletiva surge quando opera sobre o

passado ema seleção e interpretação de acordo com as sensibilidade culturais, dilemas éticos e

conveniências políticas”.

Para responder a essa indagações precisamos falar um pouco mais sobre as verdades:

muitas delas permanecerão ocultas até que um olho mágico consiga decifrar a mensagem.

Nem todos conseguem alcançá-la. É assim em qualquer área. No Direito pesa sobre as vidas

das pessoas, especialmente na hora de um julgamento judicial que tenta rastrear o passado, tal

qual Sherlock Holmes, em busca de vestígios, pistas de momentos já vivenciados. Sendo

assim, constata-se que o trabalho é frustrado desde o nascedouro, não desmerecendo a

importância de provas que são colhidas para exemplificar parte da "verdade". No filme

"Versões de um Crime", o grande questionamento é, justamente, o que é verdade.

Poeticamente, ANDRADE (2003, p.50), esclarece que a verdade é sempre uma metade dela

mesma, contida em sua parte de exatidão, complementada pela outra parte não anunciada:

A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só

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trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio

perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em

metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Para tudo pode existir diferentes versões, mas só há uma verdade. Ela ocorreu. E o

passado é quem viu.

Então, que direito é esse? O termo direito, como diz MIAILLE (2005, p. 63), “é

simultaneamente o conjunto de regras jurídicas que regem o comportamento dos homens em

sociedade e o conhecimento que se pode ter dessas regras”. Mas ele é, em primeiro lugar, um

conjunto de técnicas para reduzir os antagonismos, refletindo as incertezas dessa técnica de

pacificação social. O direito é uma ciência, mas uma ciência aproximativa, apesar de tudo.

O Direito à memória e à verdade podem ser vistos como essenciais, nesta perspectiva,

porque sustentam a vontade da descoberta necessária de fatos passados que deixaram

manchas na história do país. Resgatar esses fatos, dando a importância e a consecução de uma

postura democrática é tornar esses direitos fundamentais ao cidadão. Nesta seara, as lições de

BEZERRA (2012, p.58 -60), quando nos diz que:

O mero reconhecimento da previsão legal, mesmo que constitucional, é insuficiente

para uma realidade mais concreta dos direitos fundamentais (...). O maior desafio no

campo dos direitos humanos e fundamentais é a distância que existe, porque a temos

produzido entre o discurso que os afirma, a norma que os reconhece e seu

cumprimento efetivo.

Portanto, torna-se necessário para o Estado Democrático Brasileiro, além de elucidar,

proteger quem foi vítima de um dos momentos de maior repressão da nossa história. Tratar

dessa problemática é percebera necessidade de um discurso que valorize a memória e a

verdade como direitos humanos, e, portanto, como direitos fundamentais, trazidos na nossa

carta de valores.

2 MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO.

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KUNDERA (1984, p.02), ao falar sobre o eterno retorno nietzschiano, reflete sobre a

efemeridade do existir e da fugacidade dos momentos, sejam eles, bons ou ruins, difíceis ou

fáceis, alegres ou tristes:

O eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, colocou muitos

filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e

que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito

insensato? (...) Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma

perspectiva na qual as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas nos

parecem sem a circunstância atenuante de sua fugacidade. Essa circunstância

atenuante nos impede, com efeito, de pronunciar qualquer veredicto. Como

condenar o que é efêmero?

Insuportável seria o fardo metafísico do eterno retorno a um período de ditadura,

tortura e violações de toda natureza aos direitos humanos. A ditadura, no Brasil, aconteceu

uma única vez e trouxe muitos prejuízos. No entanto, a ditadura militar brasileira não foi um

fato isolado na história da América Latina. Pelo contrário. Na mesma época, regimes

semelhantes nasciam de rupturas na ordem constitucional de outros países, tendo as Forças

Armadas assumido o poder em consonância com a lógica da Guerra Fria. Esse contexto

histórico regional trouxe a generalização de regimes políticos repressivos em todos os países

do Cone Sul, a exemplo: Brasil (1964), Argentina (1966 e 1976), Uruguai (1973), Chile

(1973).

A busca da verdade pelos familiares das pessoas que morreram na luta contra o regime

militar é uma história longa e repleta de dificuldades. Muitas pedras no caminho, mas as

conquistas são inerentes para quem tem o ideal de justiça como meta.

Memória e verdade são princípios essenciais do direito positivo brasileiro, estes

compreendidos desde o direito a preservação da identidade cultural dos povos até o direito á

informação, essenciais para a formação do estado democrático de direito3.

3 No dia 31/05, juntamente com a Professora Andrea Tourinho apresentou-se no CONPEDI uma análise sobre os

direitos à memória e à verdade, enquanto atividade que faz parte das discussões do Grupo de Pesquisa da

Faculdade Ruy Barbosa, “Direito, Verdade e Justiça de Transição”, para tanto fez-se uma discussão sobre o

que é memória, numa perspectiva histórica, e sobre o que é verdade numa abordagem filosófica-artística-

histórica.O hard case utilizado para discutir memória foi Marighella, numa perspectiva de construção de duas

imagens sobre a mesma pessoa, em dois períodos distintos: na década de 60 inimigo número 01 da nação, hoje

um grande representante dos direitos humanos,e a consolidação das políticas públicas sobre memória com a

promessa do governo do Estado da Bahia em fazer um memorial para homenagear Marighella. E o outro estudo

de caso, já no aspecto do que é verdade, baseou-se no que está acontecendo com o jornalista Emiliano José que

responde a um processo de calúnia, por ter informado em um artigo publicado neste ano de 2013 o nome de um

torturador. É verdade o que Emiliano José afirma no artigo ou ele tem que ter provas de tortura? Como diria o

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Procuramos, nesse trabalho, demonstrar a maneira pela qual o Brasil, marcado pelos

abusos do período da ditadura militar, com acentuadas violações de direitos humanos busca

alcançar o caminho para consolidar a democracia. Esse período de mudanças, em que se

responsabiliza a criminalidade do passado ditatorial brasileiro é denominado de justiça de

transição ou justiça transacional cuja importante tarefa tem sido a de estabelecer estratégias e

mecanismos para enfrentar o legado de violência do passado e atribuir responsabilidades aos

Estados, no presente.

Sobre o conceito de justiça de transição nos valemos do conceito trazido por

DIMOULIS (2006, p. 30), que diz tratar-se de “um processo de julgamentos, depurações e

reparações que se realizam após a mudança de um regime jurídico para um outro”.

Dessa maneira, a justiça de transição4, enquanto marco histórico das duas realidades

políticas, a do passado e a do presente, além de exigir a efetividade do direito à memória e à

verdade, deve iniciar a persecução de perpetradores das atrocidades do antigo regime,

preservar o direito fundamental da verdade e desenvolver um conjunto de reparações para

fortalecer as instituições democráticas a fim de garantir que violações de direitos humanos

não se tornem práticas recorrentes no âmbito social.

Dentre os quatro pilares que sustentam a justiça de transição, o Brasil só construiu a

reparação, através da Lei 9.140, de 04 de dezembro de 1995, quando estabeleceu a

indenização devida à família dos mortos e desaparecidos durante o regime militar. Não

divulgou a verdade, visto que mantém os arquivos daquele período fechados, nem realizou a

justiça desejada por todos, punindo os torturadores do regime de exceção. O Brasil, a partir do

argumento de que não condenou nenhum dos violadores do regime militar, contribuiu para a

impunidade. Por outro lado, o Chile levou a sério a justiça de transição, quando julgou

Pinochet em 2005. A Argentina, por sua vez, iniciou seu processo de justiça de transição,

julgando os generais do regime ditatorial, episódio que ficou popularmente conhecido como

Nurembeg argentino.

Poeta Drummond de Andrade "A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada

vez". Que a visão de Nietszche sobre a circularidade do tempo não seja uma verdade. Tudo passa tão rápido e

parece ser perdoado por antecedência já nos disse Milan Kundera na abertura do livro "A insustentável leveza do

ser”. 4 Em Dezembro de 2012, o grupo de pesquisa “Direito, Verdade e Justiça de Transição”, organizou a I

Semana Jurídica de Direitos Humanos da Faculdade Ruy Barbosa, e contou com a participação de muitos

estudiosos do tema e representantes da Comissão da Verdade da Bahia.

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Vale salientar que não existe um consenso na doutrina internacional, nem um modelo

único para o processo de justiça de transição, pois cada país tem seu processo peculiar para

lidar com o legado de violência do passado totalitário e implementar mecanismos que

garantam a efetividade do direito à memória e à verdade. A Comunidade Internacional, no

entanto, menciona quatro obrigações comuns para os Estados, quais sejam: adotar medidas

razoáveis para prevenir violações de direitos humanos; oferecer mecanismos e instrumentos

que permitam a elucidação de situações de violência; dispor de um aparato legal que

possibilite a responsabilização dos agentes que tenham praticado as violações e; garantir a

reparação das vítimas, por meio de ações que visem à reparação material e simbólica.

O Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ), organização não

governamental que oferece assistência a países os quais enfrentam um legado de violência dos

direitos humanos, destaca, dentre os enfoques básicos de justiça de transição – memória,

verdade e justiça –, algumas iniciativas importantes como estratégias, a saber: interposição de

ações penais contra torturadores e violadores dos direitos humanos; instauração de comissões

da verdade; instauração de programas de reparação em favor das vítimas e de familiares;

acesso e abertura dos arquivos do período da repressão, além de reforma institucional. O

ICTJ sinaliza que essas medidas não são exaustivas, já que cada país sabe a melhor forma de

lidar com o seu passado violento e desenvolver estratégias para avançar no processo

democrático.

Os objetivos da justiça de transição giram em torno do reconhecimento do passado

totalitário, e da condição humana, analisada por ARENDT (2007) para que se possa dar

efetividade aos direitos fundamentais. Como bem assinala DIMOULIS (2010, p. 94) em

relação aos pilares da justiça de transição:

Forma-se assim um triângulo de modelos de tratamento jurídico dos problemas

transicionais: responsabilização (punição)- verdade (memória) - anistia (perdão). (...)

os vários modelos possuem um elemento comum: se realiza uma reavaliação do

passado, modificando julgamento e mudando a postura oficial perante

acontecimentos e pessoas.

O Brasil adotou um modelo de justiça de transição que afasta o jus puniendi dos

autores dos crimes, fundamentado na errônea interpretação da Lei 6.683/79 - Lei de Anistia,

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que não alcançou a responsabilização criminal dos torturadores do período ditatorial, não

havendo, até a presente data, nenhuma condenação na justiça criminal.

Os crimes perpetrados pelos violadores dos direitos humanos – sequestros, ocultação

de cadáveres, torturas, homicídios, entre outros – não foram apreciados pela justiça criminal

do Brasil. Tais crimes deveriam ser interpretados como delitos de lesa humanidade.

Destarte, a responsabilização penal por esses atos é considerada essencial para que se

possa realmente consolidar a democracia brasileira e realizarmos o nosso “nunca mais”. Mais

de vinte anos se passaram e até o presente momento, não existe nenhuma condenação contra

os agentes da repressão brasileira no período da ditadura militar.

Algumas políticas públicas de transição no Brasil, no entanto, merecem considerações

a saber: abertura de arquivos do período em alguns Estados brasileiros; a atuação da

Comissão Especial de Mortos Desaparecidos (Lei 9.140/95), que tem um acervo importante

sobre vítimas e sobre as atrocidades cometidas pelos torturadores e que deu origem a

instauração da Comissão nacional da Verdade em 2012; o trabalho da Comissão de Anistia no

âmbito do Ministério da Justiça (Lei 10.559/02), a publicação do livro Direito à Memória e à

Verdade, lançado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República

em 2007, a criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, denominado

Memórias Reveladas, institucionalizado pela Casa Civil da Presidência da República e

implantado no Arquivo Nacional e a instituição do 3º Programa Nacional de Direito

Humanos- PNDH pelo Decreto Presidencial nº 7.037/09 em 2009, e finalmente a instauração

da Comissão Nacional da Verdade em 2012.

A Comissão da Anistia do Ministério da Justiça lançou, em abril de 2008, a Caravana

da Anistia, com o objetivo de percorrer todos os estados brasileiros para difundir o

conhecimento histórico do passado ditatorial e julgar os pedidos de indenizações de

perseguidos políticos, fomentando exposições e debates sobre o tema.

Em outros países, como a Argentina, o período da ditadura militar foi bastante cruel,

com indicadores de que aproximadamente 30 mil argentinos foram sequestrados e torturados

pelos militares e várias crianças foram arrancadas de seus pais e entregues a famílias de

militares ou a orfanatos.

A sociedade argentina, por meio dos organismos de direitos humanos, partidos de

esquerda e movimentos sociais, como Las Madres de La Plaza de Mayo, foi bastante atuante

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para que se realizasse a justiça de transição na Argentina, enquanto movimento social para

consolidação da democracia no país.

As condenações dos militares argentinos ainda continuam sendo alvo de discussões da

população sofrida. O ex-presidente Jorge Rafael Videla recebeu, em dezembro de 2010, sua

segunda condenação à prisão perpétua e, no dia 23 de março de 2011, o General Luciano

Benjamin Menéndez também foi condenado, pela segunda vez, à pena de prisão perpétua pela

prática de crimes contra a humanidade.

Em 2012, o movimento “Hijos” (H.I.J.O.S - Filhos e Filhas pela Identidade e a Justiça,

Contra o Esquecimento e o Silêncio, na sigla em espanhol, que se traduz por FILHOS em

Córdoba, teve seu reconhecimento quando um dos seus representantes foi escolhido com

Secretário de Direitos Humanos da Argentina5.

3 AS PRIMEIRAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO

BRASIL

A justiça de transição no Brasil teve como pilar principal a reparação. As reparações

são instrumentos de suma importância para a justiça de transição, e podem ser feitas por meio

de benefícios financeiros, de assistência psicológica ou de outras medidas.

As políticas públicas de memória e verdade no Brasil debruçaram-se para as violações

de direitos humanos ocorridas durante os anos de 1964 a 1985, época da ditadura militar do

país. Destarte, podemos dizer que a justiça de transição no Brasil, teve o ano de 1985 como

período inicial, apesar de 1979, com a promulgação da Lei de Anistia (Lei 6.683/79), já

possamos dizer que o Brasil deu seus primeiros passos no tocante a formação do Estado

democrático.

Apesar desta Lei, resultante dos movimentos sociais opositores a ditadura, ter sido

marco no processo de abertura política, como reivindicação da anistia para os presos políticos,

foi adotada com um texto ambíguo, que incluía aqueles delitos “conexos com os políticos”,

tendo sido mal interpretada pelos tribunais de forma que, entre o rol dos delitos anistiáveis, se

incluiria aqueles cometidos por funcionários da ditadura militar, para reprimir a opositores

5 Martín Fresneda, Secretário de Direitos Humanos é filho de desaparecidos, tendo sido, quando criança junto

com seu irmão, testemunha do sequestro de seus pais durante a chamada “Noite das Gravatas” É advogado e em

Córdoba, foi denunciante em vários dos processos pelos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado.

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políticos, incluindo crimes de lesa humanidade como a tortura, o sequestro e desaparecimento

forçado e execuções sumárias. Esta divergência de interpretação teve suas consequências no

futuro, ou melhor, no presente, momento em que se questiona a constitucionalidade da

referida lei. Assim, não podemos dizer que a Lei de Anistia brasileira6, apesar de ter sido

desejada para ser “ampla, geral e irrestrita” pelas vítimas e familiares de militantes políticos,

teve a sua completa eficácia.

A falta de julgamento dos responsáveis pelas graves violações dos Direitos Humanos,

diferente o Brasil dos outros países latino-americanos que também sofreram violações de

Direitos Humanos no período ditatorial. O caso brasileiro se caracterizou pela ausência de juízos

penais que condenaram os agentes da repressão7.

Ademais, só no ano de 2012 foi que se instaurou a Comissão Nacional da Verdade Brasileira,

embora já houvesse comissões que buscavam a reparação no País, como: a Comissão Especial sobre

Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) de 1995, a Comissão de Anistia do Ministério de Justiça

de 2002, além do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).

Antes da instauração da Comissão Nacional da Verdade, poderíamos dizer que o direito

brasileiro, no tocante a reparação se resumiria num verdadeiro direito de anistia., entendido como um

direito do militante político de ter sido declarado oficialmente anistiado político. Esta declaração do

anistiado é considerada como um gesto oficial de pedidos de desculpa pelo Estado que reconhece que

perseguiu politicamente um cidadão.

Apesar de esse ato ser individual, há que se reconhecer que já houve um pedido de desculpas

coletivo registrado pela Caravana da Anistia, como ocorreu quando “a Caravana da Anistia” realizou

em junho de 2009, em praça pública do município de Santo Domingo de Araguaia/Pará, na presença

de más de 600 habitantes da região. Essa atividade inaugurou o primeiro ato público de pedido de

desculpas coletivo por parte do Estado brasileiro, aos campesinos perseguidos e torturados durante o

período da repressão militar contra o movimento de resistência conhecido como a “Guerrilha do

Araguaia”.·.

O art. 1º de la Lei 6.683/79 d 22 de agosto de 1979, estabelece “É concedida anistia todos quantos, no período

compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo

com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da

Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes

Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com

fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado) [...]”.

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal de Brasil reafirmou a constitucionalidade da interpretação da Lei de

Anistia, a qual foi interpretada de maneira benéfica para os agentes da repressão, sendo estes absolvidos. Vide

sentença do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental No. 153, de 29 de

abril de 2010, In: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf.

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Outro passo para a reparação, pode ser ilustrado no caso da família do jornalista

Vladimir Herzog, morto em razão de torturas, nos porões do DOI-CODI, em 1975. A causa

mortis na certidão de óbito de Herzog foi modificada. Na certidão, revisada após

determinação da Justiça, passa a constar como causa da morte "lesões e maus tratos sofridos

durante o interrogatório em dependência do 2º Exército (DOI-Codi)", que substitui

formalmente a versão de "asfixia mecânica por enforcamento".

Ainda no tocante as políticas públicas relativas a reparação, podemos destacar algumas

políticas de nível federal que tem impacto local, como o Projeto Direito à Memória e à Verdade da

Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que inclui a criação de

monumentos e montagem de exposição em todo o Brasil, em parceria com algumas instituições como

Prefeituras, universidades, centros de estudos e ONG.·

Verifica-se a existência de algumas políticas públicas relacionadas com a memória e verdade,

correspondente aos anos de 1990 e 1993. A primeira corresponde a Comissão Parlamentar de

Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo sobre a fossa comum de Perus, no Cemitério Dom

Bosco, na Capital. A descoberta desta fossa comum com mais de 1000 corpos de opositores políticos,

contribuiu para por em debate público o problema dos mortos e desaparecidos políticos. Vale salientar

que esta Comissão de Investigação não emitiu de forma imediata nenhum informe concludente sobre a

questão, até 2012.

O ano de 1995 teve um marco para a justiça de transição do Brasil, a aprovação da lei 9.140,

que reconheceu como mortas às pessoas desaparecidas em razão da sua participação em atividades

políticas entre 1961 e 1979. A referida Lei dispunha de três importantes reconhecimentos: Firmou o

reconhecimento expresso por parte do Estado brasileiro na responsabilidade sobre a morte e

desaparecimento de opositores políticos da ditadura., listando 136 pessoas sequestradas a partir do

Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964 elaborado por organizações de

familiares das vítimas;

4 O TRABALHO DA COMISSÃO DA VERDADE

As Comissões da Verdade são instrumentos importantes para se garantir à

sociedade – como forma de resgate da cidadania – o direito a ter conhecimento dos motivos

pelos quais esses crimes foram cometidos no passado, num regime distante do atual.

A lei que a institui a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, (Lei 12.528) foi

instaurada oficialmente em 16 de maio de 2012, mediante iniciativa oficial, tendo como

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objetivo investigar e registrar as violações ocorridas durante o período militar, com vistas a

reparar as famílias dos militantes mortos ou desaparecidos.

Sete membros compõem a Comissão Nacional da Verdade: José Carlos Dias (ex-

ministro da Justiça), Gilson Dipp (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Rosa Maria

Cardoso da Cunha (advogada), Cláudio Fonteles (ex-procurador-geral da República), Paulo

Sérgio Pinheiro (diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José Cavalcante Filho (jurista).

Os critérios para a escolha dos membros se fundaram em alguns pontos principais, tais como

pessoas "de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificadas com a defesa da democracia

e institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos".

A coleta de provas da Comissão Nacional da verdade é realizada a partir do

depoimento das vítimas, testemunhas, documentos, tendo ainda o dever de fazer com que a

sociedade e os próprios violadores reconheçam as injustiças cometidas e peçam perdão.

A comissão terá o direito de convocar vítimas ou acusados das violações para

depoimentos, mesmo que a convocação não tenha caráter obrigatório, além de ter acesso a

arquivos e documentos do poder público sobre o período, porém não tem o poder de punir ou

recomendar que acusados que praticaram crimes durante a ditadura.

A comissão deverá colaborar com as instâncias do poder público para a apuração de

violação de direitos humanos, além de enviar aos órgãos públicos competentes dados que

possam auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos, podendo proceder a

vistorias em locais considerados “sítios de tortura”, e além de identificá-los, devem apontar

instituições e circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos daquele

período.

A comissão, proposta em 2010, passou por diversas mudanças, principalmente para

atender as queixas dosa gentes públicos repressores da época, substituindo alguns termos

descritos no seu texto, como "repressão política", além de prevê o "exame" de violações de

direitos humanos, diferente da versão de 2010, que previa a "apuração" dos fatos ocorridos

durante o período de 1964 a 1985, englobará fatos que ocorreram entre os anos de 1946 e

1988.

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5 CONCLUSÃO

O tempo presente reflete sobre a verdade. Mas, é o futuro quem dirá o que se deve

fazer. Só o tempo ganha. Não adianta travar lutas contra ele. As medidas estabelecidas pela

Comissão de Justiça de Transição devem ser aplicadas, preferencialmente, de forma

integrada, a fim de não comprometer a credibilidade do processo, buscando sempre o caminho

para alcançar a democracia, desde que sejam levadas em consideração a prevalência dos

direitos humanos e a obediência ao cumprimento de princípios fundamentais.

Exemplo bem claro aconteceu em 05 de dezembro de 2011 com o anistiamento a

Marighella. Quem foi Marighella na época da ditadura, senão um criminoso? Hoje, a história

já apresenta nova versão sobre Marighella e em alguns círculos, chega-se a considera-lo um

herói, como umm homem que lutou por um Brasil melhor. Em 1969 Marighella foi

assassinado. E o que se contou foi outra versão. Nosso presente nos traz novas informações,

muitas delas perdidas para sempre, porque tiraram tudo de Marighella, inclusive seus

pertences pessoais, seus registros, suas fotos. Afastando-se um pouco mais de 40 anos do

ocorrido, já se pode identificar/pensar as “verdades” a despeito do ocorrido.

Sobre a verdade ainda temos muito a refletir, seja filosófica, poética ou juridicamente

falando. No entanto, acredita-se que o direito de acesso à informação é determinante para a

construção dos direitos e valores fundamentais da cidadania e da democracia participativa.

Embora ainda haja muitas dificuldades enfrentadas pela justiça de transição no Brasil,

a memória e a verdade não podem ser afastadas do conhecimento da nova geração, sobretudo

para que as atrocidades do regime totalitário não voltem a se repetir.

Mesmo sem a abertura dos arquivos da ditadura, no Brasil, em algumas regiões, como

na Bahia, onde prevalece o silêncio, a Comissão da Verdade vem se firmando na luta pela

democracia e no reconhecimento das violações dos direitos humanos, mas a verdade sobre um

passado sofrido um dia será mostrada.

Os remédios democráticos como o Habeas data e as ações de reparação podem

confirmar que a luta existiu, que pessoas morreram porque acreditaram na possibilidade de

um regime democrático em nosso país.

À medida que os governos são surpreendidos com a memória revelada, estes podem

conceder compensações financeiras às famílias. Embora tais reparações não possam trazer de

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volta aqueles que um dia deram a vida pelo ideal de justiça, ao menos essas famílias podem

ver os sonhos dos seus filhos concretizados no ideal democrático. Um grande avanço, sem

dúvida, no Brasil é a entrada em vigor da Lei 12.527/2011. Temos muito caminho a percorrer.

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O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES: GARANTIA OU RESTRIÇÃO À

LIBERDADE?

Vinícius Leão de Castro1

Sumário: 1 Introdução. 2 Uma teoria jurídico-política do Estado Liberal. 2.1 A

separação de poderes montesquiana. 3 A relativização de um princípio: os

federalistas. 4 Liberalismo: conexões entre sociedade, indivíduo e Estado. 5

Separação de poderes: o poder e os novos poderes. 5.1 Uma garantia ou uma

restrição? 6 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O princípio da separação de poderes2 atravessou o passar do tempo e chegou aos dias

atuais revestido de aspectos provenientes dos acontecimentos históricos que lhes são

pertinentes, todavia as transformações que ressignificaram a sociedade impuseram uma nova

abordagem ao estudo deste instituto, que levasse em consideração o aparecimento de novos

poderes3, que contrabalançam influências na clássica separação tríade.

Dessa maneira, observar como este princípio se apresenta a partir da associação entre

Estado, sociedade e indivíduo na evolução do liberalismo, enquanto uma teoria jurídico-

política é demonstrar o conflito entre a feição programática da liberdade e uma contínua

redução no espaço de decisão individual pelo fortalecimento dos novos poderes, que sem

sombra de dúvidas é a grande proposta deste trabalho.

Para isso, desenvolver questionamentos desta natureza é propor uma análise

interdisciplinar de um princípio fundamental do Direito Constitucional à luz da observação

das intersecções entre os fenômenos sociais e do seu respectivo comportamento diante das

modificações que atualmente se apresentam. Desse modo, fundamenta-se a pesquisa em

1 Pesquisador nas áreas de Teoria do Estado, Poder Constituinte, Teorias da Democracia e Decisão Judicial. E-

mail: [email protected] 2 O vocábulo separação sofreu uma flexibilização ao passo que se refere a uma distinção entre as formas pelas

quais o poder é exercido, que se limitam através de dispositivos que freiam ou obrigam o seu exercício e não a

uma separação rígida e absoluta. 3 Entende-se por relações de poder oriundas de instituições e organizações que modificaram-se com base nas

novas práticas sociais, as quais emergiram nos últimos tempos.

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autores clássicos e seus comentadores como aporte para a continuação de um estudo crítico a

respeito do Estado Constitucional de Direito e da liberdade.

Nesse sentido, parte-se de um breve esboço da construção cognitiva elaborada por

Thomas Hobbes, John Locke e Montesquieu de maneira que se evidencie a formação do

Estado Liberal pari passu aos fatos históricos que ensejaram aquelas observações ao mesmo

tempo em que se trazem as ideias que inspiraram a fundação dos Estados Unidos da América

e a percepção que os estudiosos contemporâneos têm deste arcabouço para que seja possível

discutir a separação de poderes como garantia e restrição da liberdade.

2 UMA TEORIA JURÍDICO-POLÍTICA DO ESTADO LIBERAL

O Estado Liberal é uma construção teórica elaborada a partir do rompimento com os

pensamentos que atribuíam a fatores alheios ao ser humano a organização política e jurídica

da sociedade ao mesmo tempo em que se constatou a necessidade de uma instituição que

regulasse as relações sociais perante um novo arcabouço que se estruturava em meio a

emergência de novas práticas econômicas, por isso, delimitou-se este estudo a partir do

pensamento de Hobbes, Locke, Montesquieu e dos Federalistas em associação com os

acontecimentos históricos que respaldaram essas mudanças.

Em primeiro lugar, Thomas Hobbes contraria a defesa do zoon politikón para defender

um Estado forte com proteção aos indivíduos através da renúncia a um rol de direitos e

garantia da defesa da vida. Para o autor, na inexistência de lei previamente estabelecida o

soberano poderia agir “de acordo com o que considerasse mais condizente para estimular os

homens a servirem o Estado ou afastá-los de qualquer ato contrário ao mesmo” (HOBBES,

2009, p.132), justificando que os incômodos pertinentes ao poder absoluto eram bem mais

convenientes do que aqueles relativos à guerra civil e ao estado de natureza.

Hobbes (2009) atesta que a liberdade dos súditos está, somente, naquelas coisas

permitidas pelo soberano ao regular suas ações, ou seja, no silêncio das leis está a

possibilidade de ação das pessoas.

A Revolução Gloriosa de 1688 e o Bill of Rigths foram pontos culminantes que

permitiram, por intermédio de um amálgama entre nobreza e burguesia, a hegemonia do

parlamento sobre a coroa. É nesse contexto que a defesa da agenda política dos whigs por

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Locke se insere, com a proposta da redução dos poderes da instituição estatal para que

houvesse espaço para o desenvolvimento do capitalismo e garantias da livre iniciativa e da

propriedade.

Na obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil, o consentimento da população

origina o poder político, nesse caso, distinto do hobbesiano, já que a sociedade governar-se-á

“mediante leis estabelecidas, promulgadas e conhecidas do povo, e não por meio de decretos

extemporâneos” (LOCKE, 2009, p.86), assim, o estabelecimento do Estado é a aceitação em

ceder a capacidade legislativa em benefício da comunidade, por isso o legislativo situa-se

como poder supremo na sociedade e o império de um direito positivo regulado pelo direito

natural como garantia da liberdade.

Logo, percebe-se no Estado hobbesiano os indícios do Estado Liberal, os quais se

consolidam com Locke, ambos, guardadas as suas especificidades, estabelecendo a liberdade

como objeto último da sociedade. O primeiro ao defender a existência de um espaço de

autodomínio pré-determinado pelas leis enquanto moduladoras para garantir segurança e

liberdade individuais e o segundo ao considerar um dos objetivos do Estado a preservação da

liberdade, protegida pelo direito natural e pelas leis civis.

O acontecimento de 1688 marcou o fim das pretensões absolutistas e o início das

ideias em torno do enfraquecimento do Estado que ganharam corpo com o Iluminismo e

consolidou-se na Revolução de 1789, refletindo o mito burguês de liberdade irrestrita a toda a

população e a realidade de um Estado guardião da propriedade privada e da liberdade de

iniciativa.

A queda do regime absolutista consolidou o projeto de Estado da burguesia, ou seja, o

Estado Liberal, como uma teoria jurídico-política que se tornou cânone do direito

constitucional, juntamente com o princípio da separação de poderes, enquanto um instituto de

limitação constitucional da autoridade, inscrito em todos os diplomas constitucionais

modernos.

2.1 A SEPARAÇÃO DE PODERES MONTESQUIANA

Destarte, apareceu o pensamento de Montesquieu em Cartas Persas, no qual tratava

dos costumes e da organização política francesa, criticava Luís XIV e revelava indícios da

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separação de poderes4, e Do Espírito das Leis, após a sua viagem à Inglaterra a 1730, na qual

conheceu o pensamento lockiano por meio das ideias difundidas pelo Visconde de

Bolingbroke, no qual define o seu princípio mais famoso.

A separação de poderes, nesse sentido, origina-se da confluência histórica da política

prática, das disputas entre grupos humanos, e da reflexão sobre essa prática tendo em vista

aperfeiçoá-la ou modificá-la, como uma solução política à disputa entre os interesses e os

poderes, regulando a participação da sociedade e limitando ou justificando o poder do Estado

(GROHMANN, 2001).

A influência de Locke fica ainda mais evidente quando Montesquieu (2009b) sustenta

que liberdade significa ser governado por suas leis, fazer tudo aquilo que elas facultam. Para

ele, essa liberdade se encontra nos governos moderados, sem concentração e abuso de poder,

em que a lei se obriga a ampliar a independência individual dos cidadãos ao liberá-los do

medo e atuar como barreira de contenção frente à violência, o que é possível apenas quando o

poder reprime o poder5.

Observando a Constituição da Inglaterra, o autor revelou a existência de três poderes

distintos, mas complementares, condenou o acúmulo e assegurou que nos grandes Estados o

poder deve ser exercido por representação.

Montesquieu é o ponto alto na evolução da teoria da separação de poderes, enxergando

que um equilíbrio entre as forças sociais6 só seria possível com a divisão do Estado em

poderes com competências bem delimitadas. Desse modo, esta moderação é condição

essencial para a existência da liberdade em um esquema de limitação recíproca das

competências, assim, ao passo que a teoria se definiu como garantidora de uma liberdade

negativa ela se tornou um dos pilares do constitucionalismo moderno.

3 “Infeliz do rei que só tem uma cabeça! Se na aparência reúne em si todo o poder, é para indicar ao primeiro

ambicioso o lugar onde há de achar todo inteiro” (MONTESQUIEU, 2009a, p.152). 5 Segundo Weffort (1997) as forças sociais devem ter poderes independentes e capazes de se contrapor, pois

quando isso não acontece, elas cercearão a liberdade. 6 “A ‘separação de poderes’ não passa da divisão ponderada do poder entre potências determinadas: o rei, a

nobreza e o ‘povo’.” (ALTHUSSER apud. GRAU, 2005, p.234).

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3 A RELATIVIZAÇÃO DE UM PRINCÍPIO: OS FEDERALISTAS

Como resultado da Convenção Constitucional, na Filadélfia, para ratificar a

Constituição estadunidense, nasceu O Federalista, um interlúdio entre o Estado unitário e a

Confederação, ampliando a participação popular no que diz respeito ao controle dos

governantes, afastando, em tese, a corrupção e a ineficácia, além de propor em bases

concretas a possibilidade de uma limitação recíproca entre os poderes por meio da

relativização da rigidez do princípio consolidado por Montesquieu.

Os autores apresentam um ponto de vista diferenciado daquele defendido por Locke

em relação à supremacia do legislativo ao declarar que a preponderância deste se dará por

seus poderes constitucionais serem mais extensos e menos suscetíveis de ser circunscritos em

limites certos, e por ser o único que pode achar o caminho para o bolso do povo

(HAMILTON et. al., 2003).

A essência da separação montesquiana é mantida nesta obra, pois a reunião dos três

poderes em um só indivíduo forma a tirania, a junção de dois destes extingue a liberdade do

Estado, então, haverá necessariamente, uma ligação que dê a cada um deles o direito

constitucional de fiscalizar os outros, ou seja, a proposta do check and balances.

Ademais, dissertam que os representantes de um poder não podem influenciar na

nomeação dos membros dos outros poderes, para que se mantenha a independência no

desempenho das suas funções. Deste contexto, surge “a ideia de Estado Mínimo perante a

autonomia privada, ao serviço de cuja ‘minimização’ estaria o princípio da separação dos

poderes, entendido como sistema de freios e contrapesos intra-estaduais” (PIRRAÇA, 1989,

p. 148).

Logo, é o sentido da relativização que se confirmou na atualidade com competências

originárias de um poder presentes em outro e surgindo um diálogo com novas formas de

poder, presentes na sociedade, provenientes das relações de poder que são indissociáveis da

mesma, reconhecendo, portanto, que existem influências que não foram detalhadas pelos

autores clássicos durante a construção de uma separação dos poderes de caráter rígido, mas

que existem desde sempre.

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4 LIBERALISMO: CONEXÕES ENTRE SOCIEDADE, INDIVÍDUO E ESTADO

1688, 1776 e 1789 prepararam o arcabouço teórico para uma nova modalidade de

Estado, a qual comungava com a ideologia burguesa na medida em que serviu para a

concretização de uma nova ordem político-social, desse modo, o princípio da separação de

poderes inseriu-se como elemento fundamental.

Esta transformação aconteceu a partir do estabelecimento de um Direito positivo que

regulasse as ações do Estado e a utilização do poder político para a defesa dos interesses da

burguesia ao mesmo tempo em que a própria instituição estatal se transformava por

intermédio desse novo discurso de verdade que se contrapunha ao absolutismo, no campo

político, e ao mercantilismo, na economia.

O Estado Liberal surge, dessa forma, como um esforço cognitivo que pretendia

analisar a sociedade em sua totalidade, isto é, produzir um conhecimento que se originava em

um novo modelo de racionalidade através do qual se torna possível saber que é a verdade em

oposição ao que é falso.

O individualismo é crucial enquanto componente do liberalismo, isto é, quando o

indivíduo se projeta como valor supremo, quando suas regras pessoais movem sua existência

pretendendo unicamente a satisfação pessoal e as necessidades individuais frente à sociedade

e ao Estado. Assim, é cabível dizer que o projeto liberal dependia de uma nova concepção de

indivíduo, a qual se adequasse aos propósitos de acumulação da burguesia.

Dessa maneira, se torna possível uma associação entre a noção de sujeito e ego, pelo

fato de “antes do ego”, quando o homem ainda não se enxergava como “eu”, como ser

individual, o Estado era fortemente controlador. Já no ego moderno projeta-se o “eu”

cartesiano (cogito ergo sum), ao mesmo tempo em que, Locke escreve o Segundo Tratado

sobre o Governo Civil e, na Inglaterra, se proclama o Instrument of Government e a

Revolução Gloriosa estabelece o Bill of Rigths. Do mesmo modo, consolida-se o liberalismo e

começa a se materializar o individualismo atual que se corporifica com o eu contemporâneo

(lacaniano) vislumbrando uma sociedade cada vez mais individualista, com relações mais

líquidas, e uma diminuição do alcance do Estado com as funções regulatórias.

Destarte, comprova-se a relação entre sociedade, indivíduo (ressignificação do sujeito)

e Estado e a delimitação do período anterior ao ego pelo ego moderno e a ressignificação

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deste pelo ego contemporâneo, em uma ênfase das experiências individuais mediante a

comprovação da realidade, da qual se aprende que o aparecimento do Estado Liberal, como

uma teoria jurídico-política foi possível por meio de uma conexão entre a própria instituição

estatal, a sociedade e o indivíduo, os quais ressignificaram-se para, em seguida, fundamentar

o estabelecimento de uma nova ordem.

5 SEPARAÇÃO DE PODERES: O PODER E OS NOVOS PODERES

Tomando por base que poder é algo fluído que perpassa toda a sociedade e através das

práticas presentes nela se difunde em meio aos indivíduos contraria-se a concepção de que ele

pode ser repartido e entende-se por separação, a divisão de competências na organização

política do Estado.

Paralelamente, os “novos poderes”, podem ser vistos como agrupamentos de relações

de poder que se exteriorizam através de instituições e exercem influência na agenda do

Estado. De acordo com Paulo Bonavides (2000) pode se falar em poder partidário e poder

“politizado” que se metamorfoseiam em grupos de interesse e pressão e o Quarto Poder, além

destes vislumbram-se novas organizações sociais que a partir da Internet alcançam efeitos

globais e decisivos na produção de verdades.

O poder partidário é aquele em que a bancada de um partido específico que compôs

uma coligação com um candidato vitorioso que exige em troca dos votos que “transferiu”,

cargos, recursos para o seu “reduto eleitoral” e a aprovação de suas proposições, em um

cenário de democracia de coalização. Alguns empresários que enxergam vantagens na eleição

de um político formam um grupo de interesse, dessa forma, após a contribuição e a vitória

daquele candidato se transformam em um grupo de pressão, pois passam a cobrar as benesses

decorrentes daquele primeiro apoio, criando, portanto, um “poder politizado”.

O quarto poder é a imprensa, os meios de comunicação em massa, empregados com o

objetivo de modificar a opinião que se tem sobre determinado tema, afastando as pessoas de

uma realidade social e política distinta dos interesses que a patrocinam. Em relação às outras

organizações sociais, o WikiLeaks é um exemplo que por meio de contribuições anônimas

divulga uma percepção diferenciada sobre a mesma realidade, isto é, um novo discurso.

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Os desdobramentos são notórios, como, por exemplo, o prejuízo aos interesses dos

eleitores que escolheram seus representantes, baseados em suas propostas, posto que o norte

destes consubstancia-se nas aspirações daqueles que o financiaram e em suas próprias e a

formação de uma opinião pública inepta, fora isso se acrescenta que um poder político

independente não existe, ele sempre depende de quem o momento histórico favorece como

classe dominante, independentemente da forma de governo.

5.1 UMA GARANTIA OU UMA RESTRIÇÃO?

Com o estabelecimento do liberalismo clássico, o conceito de liberdade se abrevia

para o uso e garantia da propriedade privada e para a permissão das atuações dentro das leis,

recebendo a garantia de que o Estado atuará conforme os postulados do direito natural e, por

conseguinte, a liberdade individual estará garantida.

Mas, na verdade, liberdade deve ser enxergada para além deste cenário, de modo que

concretize uma escolha e uma ação conscientes, sem obstáculos impostos por nenhuma força

externa, o que aponta para uma liberdade parcial, restrita por direitos e princípios.

Nesse ínterim, os novos poderes são forças sociais que estão em permanente conflito

com a tripartição clássica, e nela estão inseridos, por isso, é insuficiente afirmar que o

princípio da separação de poderes garante a liberdade dos seres humanos em um Estado

Constitucional de Direito.

O prejuízo ao interesse dos eleitores destrói a eficácia do voto, porquanto o

pressuposto do cumprimento do projeto político inicial o fundamenta, a confusão entre forças

sociais e representantes populares que concretiza a ineficácia em meio a verdades que são

convenientes apenas para um dos jogadores são elementos que corroboram esta restrição.

6 CONCLUSÃO

O princípio da separação de poderes facilitou a instalação da sociedade burguesa,

materializando-a no Estado Liberal. O controle exercido pelo Estado determinou a tônica das

relações sociais e reforçou o individualismo. Atualmente, a separação de poderes está

relativizada não apenas por uma concepção que atravessa a definição de competências, mas

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pela aceitação de que existem relações de poder em todos os níveis e estas contrabalançam

uma separação que essencialmente é impossível.

Desse modo, o que se deve pretender é a ampliação da participação popular a partir da

fiscalização dos representantes, observando a prestação de contas e os gastos públicos,

assistindo as sessões legislativas, integrando associações e Organizações Não-

Governamentais (ONGs) voltadas a esses aspectos e, em última instância, protestando

pacificamente.

Perceber a liberdade para além da inexistência de influências externas, mas como

reação as relações de poder presentes na sociedade é o cenário que permitirá enxergar a

transição entre uma restrição a uma garantia.

Os elementos descritos como fundamentais à concretização de uma restrição limitam,

portanto, o poder de transformação presente em cada ser humano a fim de que seja perceptível

aos olhos cegos garantia de direitos e uma liberdade plena, que incorpora a própria restrição,

afinal o que é liberdade se não um discurso firmado por aqueles que estão autorizados a dizer

o que é verdadeiro ou falso.

REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2000.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução por Roberto Machado. São Paulo: Graal,

2007.

GRAU, Eros Roberto. Direito Posto e Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2005.

GROHMANN, Luís Gustavo Mello. A Separação de Poderes em países presidencialistas: a América

Latina em perspectiva comparada. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 17, pp. 75-106, Nov.

2001.

HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista. Tradução por Hiltomar

Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003.

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.

Tradução por Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009.

LACAN, Jacques. Seminario 2: el yo em la teoria de Freud. Tradução por Irene Agoff. Buenos

Aieres: Paidós, 1983.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução por Alex Marins. São Paulo: Martin

Claret, 2009.

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MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Cartas Persas. Tradução por Mário Barreto. São Paulo:

Martin Claret, 2009a.

_________________. Do Espírito das Leis. Tradução por Jean Melville. São Paulo: Martin Claret,

2009b.

PIRRAÇA, Nuno. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional: um

contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra Editora, 1989.

WEFFORT, Francisco C. (org.). Os Clássicos da Política: I. São Paulo: Ática, 1997.

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NECESSIDADE DE EXAME DA GRAVIDADE DA CONDUTA NAS

REPRESENTAÇÕES POR DOAÇÃO ELEITORAL IRREGULAR

Lincoln Mendes Lima116

Antônio Sérgio Meira Barreto117

Sumário: 1 Introdução: Considerações sobre o financiamento das campanhas

eleitorais. 2 Fontes de recursos e limite legal para realização de doações eleitorais.

2.1 Fontes vedadas. 2.2 Fontes permitidas e seus limites. 3 Representação por

doação eleitoral acima do limite. 4 Necessidade de exame da gravidade para

declaração de inelegibilidade. 5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O FINANCIAMENTO DAS

CAMPANHAS ELEITORAIS

O financiamento das campanhas eleitorais é tema de grande preocupação dentre os

estudiosos e aplicadores do Direito, porquanto se trata dos “recursos materiais empregados

pelos candidatos com vistas à captação dos votos dos eleitores”, sendo “impensável a

realização de campanha eleitoral sem dispêndio de recursos, ainda que pouco vultosos”

(GOMES, 2011, p. 284).

Historicamente, o que se tem observado é uma crescente evolução, majoração do

dispêndio de recursos financeiros nas campanhas eleitorais, principalmente com profissionais

de marketing político, agências de publicidade, transportes, impressos.

Ao lado do aumento de gastos legalmente autorizados, também podemos identificar,

inclusive em nossa história recente, a massiva arrecadação de recursos sem contabilização

(denominado caixa dois), e a realização de gastos vedados pela legislação eleitoral.

Olivar Coneglian (2014), analisando o quadro da arrecadação de fundos e dos gastos

em uma campanha eleitoral, de modo interessante, estabelece que “a questão do dinheiro [...]

se situa em três vertentes: a) a vertente ideal; b) a vertente real; c) a vertente formal” e segue

comentando sobre cada uma delas:

116 Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Pós-graduação em andamento em

nível de especialização em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. E-mail:

[email protected]. 117 Advogado. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa. Licenciado em Letras pela

Universidade Federal da Paraíba. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Católica de

Pernambuco.

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A vertente ideal é aquela que se estabelece no campo de lei a ser feita (de lege

ferenda) e dis respeito àquilo que seria ideal em matéria de arrecadação de fundos e

gastos de campanha. Ela fica para os sonhadores, para os idealistas, mas se afasta

dos legisladores que tiveram ao seu dispor um arsenal de projetos de lei, porém

temeram estabelecer regras claras sobre esse assunto. Há muito tempo o Congresso

discute a implantação do financiamento de campanha, mas nunca chega a ponto

ideal.

[...]

A vertente real é aquela que se situa no campo da prática e diz respeito à

arrecadação real e aos gastos reais de um partido, durante o processo eleitoral. Ela

fica para os coordenadores financeiros de campanha, com seus livros verdadeiros e

os secretos, com as caixinhas, com as chantagens de candidatos, com a abordagem a

empresários, banqueiros, empreiteiros. Trata-se de um mundo de segredos profundos

e eternos, inatingível à grande parcela dos coordenadores de campanha. Envolve

contratos simulados, notas fiscais irreais, declarações falsas. É bom que se diga: essa

vertente não é de um partido, ou de outro, mas pertence a todos os partidos, em grau

maior ou menor.

A vertente formal é aquela que se situa dentro dos comitês financeiros dos partidos e

que retrata a arrecadação explícita de recursos e os gastos declaráveis à Justiça

Eleitoral. Ela se traduz nos formulários que os partidos fornecem à Justiça Eleitoral,

tudo bem pautadinho, tudo bem feito do ponto de vista contábil. Os partidos

preenchem esses formulários e fingem que eles refletem os gastos, e a Justiça

Eleitoral os recebe e, desde que estejam formalmente perfeitos, declara bem

prestadas as contas.

O conflito entre a real e a formal é constante. Isto porque, a legislação nacional adotou

o sistema misto de financiamento das campanhas eleitorais, consubstanciado pela presença de

dinheiro público, direcionado a formação do Fundo Partidário e ao custeio dos horários

eleitorais gratuitos para fins de propaganda, e de recursos oriundos da iniciativa privada,

representadas pelas doações de pessoas físicas e jurídicas.

Além do mais, qual seria o verdadeiro escopo por trás de expressivas doações

realizadas pelas pessoas físicas e jurídicas, senão a expectativa de retorno que pode ser

proporcionado pelo eleito.

Carlos Eduardo de Oliveira Lula anota:

Para a sociologia jurídica, os problemas relativos à relação entre as doações feitas

em campanha e os recursos públicos repassados futuramente à iniciativa privada

para a consecução das obras e investimentos da administração é campo fertilíssimo,

e que, se estudado a fundo, revela, não raramente, espúrias e nefastas confabulações.

As doações das empresas seguem antes uma lógica econômica que ideológica.

Com efeito, os que ‘doam’ permanentemente às campanhas eleitorais quase sempre

‘cobram’ do futuro administrador público um preço muito mais alto que o valor

doado. [...] (LULA, 2014, p. 617).

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Na mesma linha, José Jairo Gomes assevera que “ninguém (sobretudo as pessoas,

físicas ou jurídicas, que doam expressivos recursos) contribui financeiramente para uma

campanha sem esperar retorno do agraciado, caso seja eleito” (GOMES, 2011)118.

Nesse contexto, mesmo de modo insatisfatório, com a finalidade de evitar a influência

perniciosa do dinheiro nas eleições, o legislador criou diversas regras minudentes que

disciplinam a arrecadação, os gastos e a prestação de contas, prevendo formas de arrecadação,

fontes vedadas, limite de gastos, despesas permitidas e proibidas tanto para o candidato como

para o partido, limites de doação, responsabilidades (RODRIGUES; JORGE, 2014).

José Jairo Gomes (2011) explica que

[...] o terreno econômico é onde mais se cogita do uso abusivo de poder nas eleições,

o que acarreta grave desequilíbrio da disputa. Por isso, o legislador intervém,

fazendo-o com o fito de conferir equilíbrio ao certame. Quer-se impedir que a

riqueza dos mais abastados interfira de forma decisiva no resultado das eleições.

Com isso também se cumpre o princípio constitucional da isonomia, pois, se todos

são iguais perante a lei, justo não seria que houvesse grande diferença de

oportunidades para a ocupação de cargos públicos.

Não à toa que foram alçados como valores caros à sociedade brasileira, dignos de

proteção na Constituição Federal, disciplinados no § 9º do art. 14, a probidade administrativa,

a moralidade para o exercício do mandato, a normalidade e a legitimidade das eleições. Veja-

se:

Art. 14. [...]

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de

sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para

exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e

legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do

exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Demais disso, a Constituição não tratou especificamente do financiamento das

campanhas eleitorais, porém proibiu, em seu art. 17, que os partidos políticos possam receber

recursos de entidades ou governos estrangeiros, além de exigir a prestação de contas à Justiça

Eleitoral.

118 O referido autor continua sua análise expressando que “sob o aspecto ético, o único ‘retorno’ que se poderia

esperar do mandatário público assenta-se na própria representação democrática ou promoção de ideais político-

sociais de seus apoiadores; [...] No entanto, condena-se o desvio do sentido da representação. Para muitos, a

doação de campanha constitui verdadeiro investimento, do qual se espera retorno econômico-financeiro. A

experiência tem mostrado que aí reside um dos focos (existem outros!) relevantes da corrupção endêmica que

assola o País”.

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121

Como expressão da proteção à legitimidade e à normalidade do pleito, encontramos

um sistema intrincado e bastante instrumental previsto pela Lei nº 9.504/97, a partir do art. 17

a 32, e do art. 79 a 81, que foram sensivelmente alterados pelas leis nº 11.300/2006,

12.034/2009 e, por último, pela Lei nº 12.891/2013, bem assim, pela Lei Complementar nº

64/90, principalmente pelas alterações trazidas pela Lei Complementar nº 135/2010, passando

a punir com maior rigor os candidatos condenados por abuso de poder econômico, como os

responsáveis por doações ilegais.

A Lei das Eleições (LE), Lei nº 9.504/97, prescreve as regras para as doações de

pessoas físicas e jurídicas nos arts. 23 e 81, estabelecendo que se ultrapassados os limites

legalmente impostos os doadores estarão sujeitos a pena de multa, proibição de contratar com

o poder público.

No art. 30-A da LE, encontramos a possibilidade de promoção de investigação judicial

eleitoral contra o candidato pela realização de arrecadação e/ou gastos ilícitos na campanha

eleitoral, sujeitando-os ao cancelamento do registro ou perda do diploma, bem assim, tornar-

se-ão inelegíveis por oito anos em decorrência do disposto na alínea j do inciso I do art. 1º da

Lei das Inelegibilidades (LI), Lei Complementar nº 64/90.

Tanto o doador pessoa física como os dirigentes das pessoas jurídicas, além das

penalidades de multa, estarão ainda sujeitos a inelegibilidade de oito anos, disposta na alínea

p do inciso I do art. 1º da Lei das Inelegibilidades (LI), Lei Complementar nº 64/90.

O referido dispositivo da Lei de Inelegibilidades exige que para a imposição de

inelegibilidade, a representação que vise a apurar se a doação é irregular ou não siga o rito

disposto no art. 22 da mesma lei. O mesmo ocorrendo em relação ao procedimento da

representação para o reconhecimento do ilícito previsto no art. 30-A, por força do disposto no

seu § 1º.

Entretanto, no ponto particular das doações ilícitas, diante de apenas existir, na Lei das

Eleições, previsão expressa no §4º do art. 81, de obediência do rito do art. 22 da LI, parte da

doutrina defende que o procedimento da ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) deve

ser seguido apenas para o caso de doações realizadas por pessoas jurídicas, dispensando

tratamento diferenciado para as pessoas físicas, que poderia seguir o iter processual

disciplinado no art. 96 da LE, que ainda assim, o doador estaria sujeito a inelegibilidade.

Estaria?

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Assim, diz-se que a aplicação da inelegibilidade é efeito secundário da sentença,

bastando a condenação a multa para que seja o doador ou dirigente de pessoa jurídica

considerado inelegível.

Pode o doador ser considerado inelegível sem que o processo tenha tramitado segundo

o procedimento descrito no art. 22 da LI, mesmo havendo previsão legal que exige o rito?

De outra banda, importante anotar que a doutrina é divergente em todos os aspectos

enfocados, assim como, também não explica totalmente em que medida o rito do art. 22 da

Lei Complementar nº 64/90 deve ser obedecido, ou quais fases do procedimento devem ser

respeitadas. Se alguma fase for suprimida será possível se falar em inelegibilidade? Onde se

encerra o rito do art. 22 da LC nº 64/90? A sentença condenatória da representação por

doação eleitoral ilícita deve declarar a inelegibilidade? Cabível a aplicação dos princípios da

proporcionalidade e razoabilidade? Se sim, qual o alcance? A gravidade da conduta pode ou

deve influenciar na futura declaração de inelegibilidade?

Sobre esta última pergunta, observamos na jurisprudência e na doutrina um tratamento

diferenciado entre o dispensado ao doador e o concedido ao donatário quanto à verificação da

gravidade da conduta para declaração de inelegibilidade, pois, ao candidato beneficiado pela

doação ilícita é dada a oportunidade de somente ser punido e tornar-se inelegível se a conduta

for grave o suficiente para macular o pleito, aplicando a proporcionalidade e razoabilidade em

seu grau máximo de eficiência.

Em relação ao doador, privilégio de igual envergadura lhe tem sido negado. Posto que,

de modo objetivo, é punido por ultrapassar o limite por menor valor que o seja, bem assim,

não lhe é possibilitado o exame da gravidade de sua conduta para afastar a inelegibilidade de

oito anos. Devemos então estender o alcance do exame da gravidade para o doador?

2 FONTES DE RECURSOS E LIMITE LEGAL PARA REALIZAÇÃO DE DOAÇÕES

ELEITORAIS

2.1 Fontes vedadas

Pelo art. 17, II da Constituição Federal, nenhum partido pode receber recursos de

governo ou entidade estrangeira. Como forma de obedecer ao mandamento constitucional,

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bem como, evitar o uso de recursos públicos para fins particulares (LULA, 2014), pela Lei

das Eleições, segundo o art. 24,

É vedado, a partido e candidato, receber direta ou indiretamente doação em dinheiro

ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie,

procedente de:

I - entidade ou governo estrangeiro;

II - órgão da administração pública direta e indireta ou fundação mantida com

recursos provenientes do Poder Público;

III - concessionário ou permissionário de serviço público;

IV - entidade de direito privado que receba, na condição de beneficiária,

contribuição compulsória em virtude de disposição legal;

V - entidade de utilidade pública;

VI - entidade de classe ou sindical;

VII - pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior.

VIII - entidades beneficentes e religiosas;

IX - entidades esportivas;

X - organizações não-governamentais que recebam recursos públicos;

XI - organizações da sociedade civil de interesse público.

Parágrafo único. Não se incluem nas vedações de que trata este artigo as

cooperativas cujos cooperados não sejam concessionários ou permissionários de

serviços públicos, desde que não estejam sendo beneficiadas com recursos públicos,

observado o disposto no art. 81.

Some-se a estas, a vedação do recebimento de recursos provenientes de cartórios de

serviços notariais e de registro, que foram prescritos a partir da Resolução do Tribunal

Superior Eleitoral (TSE) nº 22.715/2008.

Nestas fontes, o partido e o candidato não podem beber, atingindo a proibição tanto

doações em dinheiro como quaisquer outras que tenham valor econômico, recebimentos

indiretos, inclusive por publicidade de qualquer espécie (CONEGLIAN, 2014).

Nestas hipóteses, em que não há justificativas para seu recebimento, presume-se de

forma absoluta em desfavor do partido ou candidato beneficiado a captação ilícita de recursos,

abuso de poder econômico, impondo-se a rejeição das contas de campanha, a incidência do

art. 30-A da Lei nº 9.504/97, com a consequente cassação do diploma ou do registro, quando

for o caso (RODRIGUES; JORGE, 2014).

2.2 Fontes permitidas e seus limites

A campanha eleitoral pode ser abastecida por recursos como dinheiro, bens e serviços

estimados em dinheiro, possuindo como receitas lícitas os recursos próprios, doações de

pessoas físicas ou jurídicas, doações de outros candidatos, comitês financeiros ou partidos,

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repasses originários do Fundo Partidário e, por último, receitas decorrentes da

comercialização de bens e realização de eventos.

Rodrigues e Jorge (2014) expõem:

Todo e qualquer objeto que agregue valor à uma campanha eleitoral e puder ser

estimado em dinheiro pode ser objeto de doação. Excluídas as fontes vedadas do

art. 24 da Lei 9.504/1997, poderá ser doado às campanhas eleitorais o dinheiro

em espécie, títulos de crédito, prestação de serviços (locutores, editores e vídeo,

cartazes, publicidades de todo gênero etc.), bens móveis e imóveis (v.g. gasolina,

carros, casas, galpões etc.) etc (grifo nosso).

Insta-nos, inicialmente, citar o art. 19 da Resolução TSE nº 23.406/2013:

Art. 19. Os recursos destinados às campanhas eleitorais, respeitados os limites

previstos nesta Resolução, somente serão admitidos quando provenientes de:

I – recursos próprios dos candidatos;

II – doações financeiras ou estimáveis em dinheiro, de pessoas físicas ou de pessoas

jurídicas;

III – doações de partidos políticos, comitês financeiros ou de outros candidatos;

IV – recursos próprios dos partidos políticos, desde que identificada a sua origem;

V – recursos provenientes do Fundo de Assistência Financeira aos Partidos Políticos

(Fundo Partidário), de que trata o art. 38 da Lei nº 9.096/95;

VI – receitas decorrentes da:

a) comercialização de bens e/ou serviços realizada diretamente pelo candidato,

comitê financeiro ou pelo partido;

b) promoção de eventos realizados diretamente pelos candidatos, comitês

financeiros ou pelo partido;

c) aplicação financeira dos recursos de campanha.

O candidato é considerado de maneira autônoma possuindo personalidade distinta de

sua pessoa física, para fins jurídico-eleitorais (GOMES, 2011; RODRIGUES; JORGE, 2014).

Os recursos próprios, como se observa da própria denominação, tratam-se de ‘doações’ feitas

pelo próprio candidato a sua campanha, cujo limite é o valor máximo de gastos fixados pelo

seu partido, o que está disposto no art. 23, §1º, II da Lei nº 9.504/97, in verbis:

Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em

dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei.

§1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas:

[...]

II - no caso em que o candidato utilize recursos próprios, ao valor máximo de

gastos estabelecido pelo seu partido, na forma desta Lei. (grifo nosso).

Interessante inovação trouxe a citada Resolução TSE nº 23.406/2013, ao estabelecer

no parágrafo único do indigitado art. 19 que

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a utilização de recursos próprios dos candidatos é limitada a 50% do patrimônio

informado à Receita Federal do Brasil na Declaração de Imposto de Renda da

Pessoa Física referente ao exercício anterior ao pleito (arts. 548 e 549 do Código

Civil)119.

Em se tratando de doações realizadas em dinheiro ou estimáveis em dinheiro por

pessoas físicas, disciplina o art. 23, §1º, inc. I que devem estar limitadas a 10% (dez por

cento) dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior ao da eleição. Porém, às doações

estimáveis em dinheiro aplica-se, como limitador, o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil

reais), conforme disposto no §7º do mesmo artigo.

Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em

dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei.

§1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas:

I - no caso de pessoa física, a dez por cento dos rendimentos brutos auferidos no

ano anterior à eleição;

[...]

§ 7º O limite previsto no inciso I do § 1º não se aplica a doações estimáveis em

dinheiro relativas à utilização de bens móveis ou imóveis de propriedade do

doador, desde que o valor da doação não ultrapasse R$ 50.000,00 (cinquenta

mil reais) (grifo nosso).

Origem das maiores somas pecuniárias e, por isso, as mais polêmicas, às pessoas

jurídicas é imposto o limite de 2% (dois por cento) do faturamento bruto do ano anterior ao

pleito, conforme reza o art. 81, § 1º da LE, pouco importando se a doação é feita a um ou

mais candidatos (GOMES, 2011).

Art. 81. As doações e contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais

poderão ser feitas a partir do registro dos comitês financeiros dos partidos ou

coligações.

§ 1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas a dois

por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição. (grifo nosso).

Por expressa disposição do art. 44, III, da Lei nº 9.096/95 - Lei dos Partidos Políticos

(LPP) é permitido às agremiações partidárias empregar recursos provenientes do Fundo

Partidário nas campanhas eleitorais, que estão sujeitos apenas aos limites de gastos imposto

para os candidatos beneficiários dos repasses.

119 Importante salientar que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral fundou-se nos arts. 548 e 549 do Código

Civil Brasileiro, pelos quais “é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a

subsistência do doador”, assim também o é “a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento

da liberalidade, poderia dispor em testamento”.

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Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:

[...]

III - no alistamento e campanhas eleitorais;

Do mesmo modo, os partidos ainda podem repassar/doar aos seus candidatos recursos

de origem diversa do Fundo Partidário. Isto porque os recursos do grêmio podem ter gênese

em outras fontes como doações de pessoas privadas e comercialização de produtos no

mercado, permitido pelo §5º do art. 39.

Art. 39. Ressalvado o disposto no art. 31, o partido político pode receber doações de

pessoas físicas e jurídicas para constituição de seus fundos.

[...]

§ 5o Em ano eleitoral, os partidos políticos poderão aplicar ou distribuir pelas

diversas eleições os recursos financeiros recebidos de pessoas físicas e jurídicas,

observando-se o disposto no § 1º do art. 23, no art. 24 e no § 1o do art. 81 da Lei no

9.504, de 30 de setembro de 1997, e os critérios definidos pelos respectivos órgãos

de direção e pelas normas estatutárias.

Permitida, ainda, que sejam realizadas doações de valores ou bens por comitês

financeiros de outros partidos, ligados pela existência de uma coligação em torno de um

objetivo comum, que não encontra limite especificamente fixado em Lei, mas que possui o

limite natural o valor do teto fixado para os gastos de cada cargo em disputa (RODRIGUES;

JORGE, 2014).

Através da comercialização de bens e pela realização de eventos, prevista no art. 26,

IX da LE, forma-se uma das mais relevantes e costumeiras fontes de recursos para uma

campanha eleitoral, cujo limite é o estabelecido para doações.

Por último, a que penso menos útil à campanhas eleitorais, a receita decorrente de

aplicações financeiras, porquanto o intervalo temporal em que se desenvolve a campanha não

é capaz de satisfazer, através da percepção de rendimentos, a velocidade/necessidade dos

gastos eleitorais.

Para o estudo em apreço, nos interessa discutir os casos de transgressão pela

transposição dos limites impostos na legislação pelos doadores pessoas físicas e jurídicas.

3 REPRESENTAÇÃO POR DOAÇÃO ELEITORAL ACIMA DO LIMITE

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Conforme visto, a teor do § 3º do Art. 23 da Lei das Eleições, “a doação de quantia

acima dos limites fixados neste artigo sujeita o infrator ao pagamento de multa no valor de

cinco a dez vezes a quantia em excesso”, para os casos de pessoa física, e, para os casos que

envolvam pessoa jurídica, aplica-se o disposto no § 2º do art. 81, pelo qual, “a doação de

quantia acima do limite fixado neste artigo sujeita a pessoa jurídica ao pagamento de multa no

valor de cinco a dez vezes a quantia em excesso”.

A pessoa jurídica estará sujeita ainda às penalidades descritas no § 3º do art. 81 da Lei

nº 9.505/97, quais sejam, a “proibição de participar de licitações públicas e de celebrar

contratos com o Poder Público pelo período de cinco anos”.

A fim de que se promova a punição pecuniária aos infratores, viabilize o equilíbrio na

disputa eleitoral, evite o financiamento à margem da lei e atenue a influência do poder

econômico sobre as eleições, surge como instrumento e meio adequado a representação

eleitoral por doação acima do limite legal (ESMERALDO, 2012).

Acontece que, junto com as inovações trazidas pela Lei da Ficha Limpa – Lei

Complementar nº 135/2010, que promoveu alterações na Lei Complementar nº 64/90,

aumentando o lapso temporal de restrição da capacidade eleitoral passiva, bem assim, criando

novas hipóteses de inelegibilidade etc, dentre as quais, a que nos interessa, disposta na alínea

p do inciso I do art. 1º.

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

[...]

p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações

eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão

colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão,

observando-se o procedimento previsto no art. 22;

De acordo com a parte final do citado dispositivo legal, serão considerados inelegíveis,

“a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações ilegais”,

somente se o processo adotar o rito disposto no art. 22 da mesma lei.

Inexistem dúvidas sobre qual rito processual seguir para a imputação de multa às

pessoas jurídicas, bem assim, para que seus dirigentes sejam considerados inelegíveis, tendo

em conta que o § 4º do art. 81 da LE impor o seguimento do art. 22 da Lei Complementar nº

64/90 o que se coaduna com a redação da alínea p do inciso I do art. 1º da LI.

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Art. 81. [...]

§ 4o As representações propostas objetivando a aplicação das sanções previstas nos

§§ 2o e 3o observarão o rito previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de

maio de 1990, e o prazo de recurso contra as decisões proferidas com base neste

artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário

Oficial.

No caso de apuração de suposta ilegalidade cometida pela pessoa física em sua

doação, é onde nasce o primeiro problema que enfrentamos, pois alguns autores entendem que

basta seguir o rito sumário eleitoral descrito no art. 96, para as representações em geral, tanto

para imposição de multa como para a declaração de inelegibilidade, ante o silêncio do

legislador no art. 23.

Art. 96. Salvo disposições específicas em contrário desta Lei, as reclamações ou

representações relativas ao seu descumprimento podem ser feitas por qualquer

partido político, coligação ou candidato, e devem dirigir-se:

I - aos Juízes Eleitorais, nas eleições municipais;

II - aos Tribunais Regionais Eleitorais, nas eleições federais, estaduais e distritais;

III - ao Tribunal Superior Eleitoral, na eleição presidencial.

§ 1º As reclamações e representações devem relatar fatos, indicando provas, indícios

e circunstâncias.

§ 2º Nas eleições municipais, quando a circunscrição abranger mais de uma Zona

Eleitoral, o Tribunal Regional designará um Juiz para apreciar as reclamações ou

representações.

§ 3º Os Tribunais Eleitorais designarão três juízes auxiliares para a apreciação das

reclamações ou representações que lhes forem dirigidas.

§ 4º Os recursos contra as decisões dos juízes auxiliares serão julgados pelo Plenário

do Tribunal.

§ 5º Recebida a reclamação ou representação, a Justiça Eleitoral notificará

imediatamente o reclamado ou representado para, querendo, apresentar defesa em

quarenta e oito horas.

§ 6º (Revogado pela Lei nº 9.840, de 1999)

§ 7º Transcorrido o prazo previsto no § 5º, apresentada ou não a defesa, o órgão

competente da Justiça Eleitoral decidirá e fará publicar a decisão em vinte e quatro

horas.

§ 8º Quando cabível recurso contra a decisão, este deverá ser apresentado no prazo

de vinte e quatro horas da publicação da decisão em cartório ou sessão, assegurado

ao recorrido o oferecimento de contra-razões, em igual prazo, a contar da sua

notificação.

§ 9º Os Tribunais julgarão o recurso no prazo de quarenta e oito horas.

§ 10. Não sendo o feito julgado nos prazos fixados, o pedido pode ser dirigido ao

órgão superior, devendo a decisão ocorrer de acordo com o rito definido neste

artigo.

Pedro Paulo Grubits Gonçalves de Oliveira (2014, p.82) aduz que

[...] a ressalva do final da alínea – observar o procedimento do art. 22, que trata da

Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) – serve apenas quando houver

condenação de pessoas jurídicas [...], visando identificar judicialmente a

responsabilidade pessoal de seus dirigentes, para incidência da inelegibilidade.

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Tratando-se de pessoa física, a sentença condenatória é suficiente para delimitar a

responsabilidade para incidência da inelegibilidade.

Esse também parece ser o entendimento de José Jairo Gomes (2011, p. 194):

A cláusula final do dispositivo em apreço enseja a interpretação de que a

inelegibilidade não surge automaticamente da decisão que multar o doador; não se

trata, pois, de efeito secundário da sentença. Ela deve resultar de decisão autônoma,

em processo que tenha observado o rito do art. 22 da LC nº 64/90. Isso, porém, só

faz sentido quando o doador for pessoa jurídica. É que aí o réu na ação por

doação irregular será a pessoa jurídica, enquanto a inelegibilidade afetará os

dirigentes desta; por óbvio, isso não acontece na hipótese de doação irregular

feita por pessoa física. [...] (grifo nosso)

No Tribunal Superior Eleitoral havia se firmado o entendimento pela impossibilidade

de extensão do preceito do § 4º do art. 81 da LE para os processos que envolvessem doadores

pessoas físicas, nos seguintes termos:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. EXCESSO. LIMITE DE

DOAÇÃO. PESSOA FÍSICA. REPRESENTAÇÃO. ELEIÇÕES 2006. PEDIDO.

EXTENSÃO. RITO. PESSOA JURÍDICA (ARTIGO 81, § 4º, DA LEI Nº

9.504/97). IMPOSSIBILIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

EXTEMPORÂNEOS. PRAZO DE 24 HORAS PARA AJUIZAMENTO (ARTIGO

96, § 8º, DA LEI DAS ELEIÇÕES). INTEMPESTIVIDADE REFLEXA DO

RECURSO ESPECIAL. DESPROVIMENTO.

1. A Lei nº 12.034/2009, ao estabelecer o rito previsto no artigo 22 da LC nº

64/90 para o processamento das representações por excesso de doação, assim o

fez tão somente em relação a pessoas jurídicas, não havendo falar em extensão,

por analogia, ou ainda sob o argumento de isonomia, do preceito inserto no § 4º

do artigo 81 da Lei das Eleições também para pessoas físicas.

2. O artigo 23 da Lei nº 9.504/97, que trata de doações a candidatos feitas por

pessoas físicas, não prevê expressamente o rito processual a ser adotado para a

apuração do ilícito de doação acima do limite legal, razão pela qual, na

ausência de disposição específica em contrário, o procedimento a ser observado

para a aplicação da multa prevista no § 3º do citado dispositivo é o do artigo 96

do mesmo diploma, e não o do artigo 22 da LC nº 64/90. [...] (TSE, AgR-REspe

nº 124656 - Maceió/AL. Acórdão de 08/03/2012. Relator(a) Min. GILSON

LANGARO DIPP. Publicação: DJE, Tomo 73, Data 19/04/2012, Página 40) (grifo

nosso)

Tal assertiva somente pode ser considerada correta se estivermos a tratar

exclusivamente de multa, conforme, inclusive aduzido por Coneglian (2014, p. 192), que “tal

multa é aplicada pela Justiça Eleitoral, através do devido processo legal” e que esse

procedimento para aplicação da multa é disposto no art. 96.

Sobre a situação retratada, Marcelo Abelha Rodrigues e Flávio Cheim Jorge

comentam:

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No tocante ao rito processual a ser seguido para as ações condenatórias por doação à

campanhas eleitorais feitas por pessoas físicas e jurídicas acima do limite legal, a lei

das eleições cometeu um lapso legislativo, pois previu o procedimento do art. 22 da

LC 64/1990 (rito ordinário eleitoral) para as demandas que envolvam doação de

pessoas jurídica, mas silenciou acerca do procedimento a ser seguido quando se

tratar de representação proposta por pessoa física. Até poderia ser argumentado que

as sanções feitas à pessoa jurídica são mais severas do que a sanção à pessoa física,

pois contra a primeira não há apenas a condenação ao pagamento de quantia, mas

também sanções restritivas de direito que poderão levar a extinção da pessoa

jurídica, e, que por isso o rito ordinário eleitoral seria o adequado. Mas nos parece

que este argumento é idôneo para sustentar a incidência do rito ordinário eleitoral

para as pessoas jurídicas, mas não para impedir ou afastar este mesmo rito das

representações contra as pessoas físicas, mormente quando há silêncio do legislador,

como neste caso.

[...]

[...] mesmo havendo posição do TSE a este respeito, pensamos que o ordenamento

jurídico eleitoral prevê sim a possibilidade de que as representações contra as

pessoas físicas sejam processadas pelo rito do art. 22 da LC 64/1990. Para tanto, o

caminho exegético está no art. 1º, I, p, da LC 64/1990. [...]

Como visto a doutrina é vacilante quanto à escolha do procedimento adequado à

representação, mesmo diante do encerramento do assunto, desde 2011, através da Resolução

nº 23.367, pelo Tribunal Superior Eleitoral, que pacificou a matéria dispondo, em seu art. 21

(posteriormente repetido nas resoluções que tratam da matéria para às eleições que

sobrevieram), que “as representações que visarem à apuração das hipóteses previstas nos arts.

23, 30-A, 41-A, 73, 74, 75, 77 e 81 da Lei nº 9.504/97 observarão o rito estabelecido pelo art.

22 da Lei Complementar nº 64/90” (PELEJA JÚNIOR; BATISTA, 2014, p. 289/290).

Portanto, com a finalidade de atender de maneira mais eficaz aos fins de proteção a

legitimidade e normalidade dos pleitos, bem como, as garantias do devido processo legal, da

ampla defesa e do contraditório, tanto para as pessoas físicas quanto para as jurídicas sempre

deve ser adotado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90120, mesmo

que se trate apenas da aplicação de multa.

4 NECESSIDADE DE EXAME DA GRAVIDADE PARA DECLARAÇÃO DE

INELEGIBILIDADE

Mister relembrar a problemática traçada alhures sobre o fato de que a doutrina não

explica totalmente em que medida o rito do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 deve ser

120 Seguem essa linha: LULA (2014, passim), ESMERALDO (2012, passim), RODRIGUES; JORGE (2014,

passim).

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obedecido, onde se encerra, se a sentença condenatória da representação por doação eleitoral

ilícita deve declarar a inelegibilidade, qual o alcance de aplicação dos princípios da

proporcionalidade e razoabilidade, fazendo com que a gravidade da conduta possa influenciar

na futura declaração de inelegibilidade.

Pois bem. Definido está que é aplicável o procedimento previsto no art. 22 da Lei

Complementar nº 64/90, mas qual o alcance, a natureza de sua aplicação, apenas instrumental

e burocrático ou verdadeira ação de investigação judicial eleitoral?

O procedimento do art. 22 da LI está assim prescrito:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público

Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou

Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir

abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder

econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios

de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido

o seguinte rito:

I - o Corregedor, que terá as mesmas atribuições do Relator em processos judiciais,

ao despachar a inicial, adotará as seguintes providências:

a) ordenará que se notifique o representado do conteúdo da petição, entregando-se-

lhe a segunda via apresentada pelo representante com as cópias dos documentos, a

fim de que, no prazo de 5 (cinco) dias, ofereça ampla defesa, juntada de documentos

e rol de testemunhas, se cabível;

b) determinará que se suspenda o ato que deu motivo à representação, quando for

relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficiência da medida,

caso seja julgada procedente;

c) indeferirá desde logo a inicial, quando não for caso de representação ou lhe faltar

algum requisito desta lei complementar;

II - no caso do Corregedor indeferir a reclamação ou representação, ou retardar-lhe a

solução, poderá o interessado renová-la perante o Tribunal, que resolverá dentro de

24 (vinte e quatro) horas;

III - o interessado, quando for atendido ou ocorrer demora, poderá levar o fato ao

conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, a fim de que sejam tomadas as

providências necessárias;

IV - feita a notificação, a Secretaria do Tribunal juntará aos autos cópia autêntica do

ofício endereçado ao representado, bem como a prova da entrega ou da sua recusa

em aceitá-la ou dar recibo;

V - findo o prazo da notificação, com ou sem defesa, abrir-se-á prazo de 5 (cinco)

dias para inquirição, em uma só assentada, de testemunhas arroladas pelo

representante e pelo representado, até o máximo de 6 (seis) para cada um, as quais

comparecerão independentemente de intimação;

VI - nos 3 (três) dias subseqüentes, o Corregedor procederá a todas as diligências

que determinar, ex officio ou a requerimento das partes;

VII - no prazo da alínea anterior, o Corregedor poderá ouvir terceiros, referidos

pelas partes, ou testemunhas, como conhecedores dos fatos e circunstâncias que

possam influir na decisão do feito;

VIII - quando qualquer documento necessário à formação da prova se achar em

poder de terceiro, inclusive estabelecimento de crédito, oficial ou privado, o

Corregedor poderá, ainda, no mesmo prazo, ordenar o respectivo depósito ou

requisitar cópias;

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IX - se o terceiro, sem justa causa, não exibir o documento, ou não comparecer a

juízo, o Juiz poderá expedir contra ele mandado de prisão e instaurar processo s por

crime de desobediência;

X - encerrado o prazo da dilação probatória, as partes, inclusive o Ministério

Público, poderão apresentar alegações no prazo comum de 2 (dois) dias;

XI - terminado o prazo para alegações, os autos serão conclusos ao Corregedor, no

dia imediato, para apresentação de relatório conclusivo sobre o que houver sido

apurado;

XII - o relatório do Corregedor, que será assentado em 3 (três) dias, e os autos da

representação serão encaminhados ao Tribunal competente, no dia imediato, com

pedido de inclusão incontinenti do feito em pauta, para julgamento na primeira

sessão subseqüente;

XIII - no Tribunal, o Procurador-Geral ou Regional Eleitoral terá vista dos autos por

48 (quarenta e oito) horas, para se pronunciar sobre as imputações e conclusões do

Relatório;

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos

eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam

contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as

eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se

verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente

beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder

de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao

Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso,

e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

XV - (Revogado pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de

o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o

caracterizam.

Parágrafo único. O recurso contra a diplomação, interposto pelo representante, não

impede a atuação do Ministério Público no mesmo sentido.

Importa dizer que quando não observado o aludido art. 22, não existe possibilidade de

inelegibilidade, consoante já decidiu o Tribunal Superior Eleitoral em processos de registro de

candidatura sob a relatoria dos Ministros Marco Aurélio e Marcelo Ribeiro, nos indicados

leading cases: Recurso Especial Eleitoral nº 694-57.2010.6.02.0000 (Classe 32), oriundo de

Maceió (AL) e Recurso Ordinário nº 1485-84.2010.6.25.0000 (Classe 37), oriundo de Aracaju

(SE). In verbis:

REGISTRO - INELEGIBILIDADE - SUPERVENIENTE. Cumpre à Justiça

Eleitoral, enquanto não cessada a jurisdição relativamente ao registro de candidato,

levar em conta fato superveniente - inteligência do § 10 do artigo 11 da Lei nº

9.504/1997.

INELEGIBILIDADE - DOAÇÃO ILÍCITA - PROCEDIMENTO - DECISÃO -

PRECLUSÃO MAIOR. A teor do disposto na alínea p do inciso I do artigo 1º da Lei

Complementar nº 64/1990, que a ilustrada maioria entende aplicável às eleições de

2010 - entendimento em relação ao qual continuo a guardar reservas -, A

INELEGIBILIDADE RESULTANTE DE DOAÇÕES ELEITORAIS TIDAS

POR ILEGAIS PRESSUPÕE A OBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO

PREVISTO NO ARTIGO 22 DA CITADA LEI COMPLEMENTAR e o

trânsito em julgado da decisão. (TSE, RESPE nº 694-57, Acórdão de 16/11/2010,

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Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Publicação:

PSESS - Publicado em Sessão, Data 16/11/2010) (grifo nosso)

RECURSO ORDINÁRIO. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO

ESTADUAL. INELEGIBILIDADE. ART. 1º, I, p, DA LC Nº 64/90. DOAÇÃO

ACIMA DO LIMITE LEGAL. REQUISITO. OBSERVÂNCIA DO

PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 22. DESPROVIMENTO.

1. NOS TERMOS DA ALÍNEA P DO INCISO I DO ART. 1º DA LC Nº 64/90,

PARA A INCIDÊNCIA DA CAUSA DE INELEGIBILIDADE NELE

PREVISTA, É NECESSÁRIA NÃO APENAS A CONDENAÇÃO POR

DOAÇÃO ELEITORAL TIDA POR IRREGULAR, MAS, TAMBÉM, QUE O

PROCEDIMENTO OBSERVADO NA RESPECTIVA AÇÃO TENHA SIDO

O PREVISTO NO ART. 22 DA LC Nº 64/90.

2. Recurso ordinário desprovido. (Recurso Ordinário nº 148584, Acórdão de

28/10/2010, Relator(a) Min. MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA,

Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data 28/10/2010) (grifo nosso)

Colhe-se do voto condutor do Ministro Marcelo Ribeiro nos autos do Recurso

Ordinário nº 1485-84/SE o seguinte:

[...] o dispositivo em análise, recentemente incluído pela LC nº 135/2010, ERIGIU

COMO CONDIÇÃO PARA A INCIDÊNCIA DA HIPÓTESE DE

INELEGIBILIDADE NELE ELENCADA NÃO APENAS A CONDENAÇÃO

POR DOAÇÃO ELEITORAL TIDA POR ILEGAL - POR DECISÃO

TRANSITADA EM JULGADO OU PROFERIDA POR ÓRGÃO

COLEGIADO DA JUSTIÇA ELEITORAL MAS, TAMBÉM, QUE O

PROCEDIMENTO OBSERVADO NA RESPECTIVA AÇÃO TENHA SIDO

O PREVISTO NO ART. 22 DA LC Nº 64/90.

[...]

Essa é, a meu ver, a interpretação mais lógica que se infere do dispositivo em

análise, e também a mais consentânea com os corolários do devido processo legal,

uma vez que o procedimento previsto no art. 22 da LC n° 64/90 oportuniza ao

representado defesa bem mais ampla que a do rito do art. 96 da Lei nº 9.504/97.

Registre-se, ainda, que as decisões limitativas de direitos devem ser interpretadas

estritamente, não podendo prevalecer, por esse motivo, o argumento do recorrente

no sentido de que, para a incidência da causa de inelegibilidade em exame, é

suficiente a condenação judicial que reconheça a doação como irregular, ao

argumento de que "a questão do rito é meramente pano de fundo [...]" (fl.194).

Efetivamente, restrições civis de tamanha envergadura, como a exclusão do processo

eleitoral por oito anos em virtude do reconhecimento de causa de inelegibilidade,

não devem originar-se de condenações proferidas em procedimento sumário, em

observância, inclusive, ao princípio da adequação processual, decorrente da cláusula

do devido processo legal, segundo o qual a construção do rito processual a ser

seguido deve corresponder às peculiaridades do objeto do processo, sobretudo à

natureza do direito material discutido [...] (grifos nossos).

Logo, como bem disseram os Ministros Marco Aurélio e Marcelo Ribeiro, dois são os

requisitos indispensáveis para a inelegibilidade, a saber: o trânsito em julgado ou a

condenação colegiada e a estrita observância ao procedimento do artigo 22 da Lei

Complementar nº 64/90.

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No mesmo sentido e, mais recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral confirmou

decisão do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba que, em sede de ação de Querela Nullitatis

anulou sentença de representação por doação eleitoral irregular, ante o malferimento do rito

do art. 22 da LI.

ELEIÇÕES 2012. RECURSOS ESPECIAIS. QUERELA NULLITATIS

INSANABILIS. CABIMENTO. DOAÇÃO ACIMA DO LIMITE LEGAL.

OFERECIMENTO. PRAZO. ALEGAÇÕES FINAIS. REPRESENTADO.

AUSÊNCIA. NOTIFICAÇÃO. SENTENÇA. DEVIDO PROCESSO LEGAL.

VIOLAÇÃO. SÚMULA Nº 283/STF. INCIDÊNCIA. DESPROVIMENTO.

1. É de rigor a impugnação a cada um dos fundamentos autônomos adotados pela

Corte Regional, sob pena de subsistirem as suas conclusões. Súmula nº 283/STF. In

casu, não foi atacado o fundamento segundo o qual o próprio MPE, autor da

representação, pugnou pela sua improcedência e, portanto, renunciou ao direito

sobre o qual se fundava a ação.

2. "A relativização da coisa julgada é admissível, ao menos em tese, apenas nas

situações em que se evidencia colisão entre direitos fundamentais, fazendo-se uma

ponderação dos bens envolvidos, com vistas a resolver o conflito e buscar a

prevalência daquele direito que represente a proteção a um bem jurídico maior.

Precedentes." (REspe nº 9679-04, Rel. Min. Nancy Andrighi, de 8.5.2012).

3. Na espécie, é plenamente cabível a relativização da coisa julgada, haja vista que,

conforme delineado na moldura fática do acórdão regional, o processo alusivo à

doação acima do limite legal, cuja sentença se busca tornar inexistente, porquanto

eivada de vício transrescisório, não tramitou dentro da normalidade, em virtude da

violação aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, os quais

possuem envergadura constitucional.

4. Recursos a que se nega provimento. (TSE, REspe - Recurso Especial Eleitoral n

27081 - Esperança/PB. Acórdão de 24/06/2014. Relator(a) Min. LUCIANA

CHRISTINA GUIMARÃES LÓSSIO. Publicação: DJE, Tomo 159, Data

27/08/2014, Página 55-56).

Em seu voto, a Ministra Luciana Lóssio deixou claro que a não abertura da fase de

alegações, previsto no art. 22, X da Lei Complementar nº 64/90, para o representado é vicio

insanável e que macula a sentença, considerada inexistente.

Entrementes, os precedentes acima citados dizem respeito à natureza instrumental do

procedimento, relacionados às fases e seus respectivos prazos, mas não aos requisitos e

consequências advindos com a adoção do rito.

Esse último aspecto serve prioritariamente para definir o alcance da sentença

condenatória por doação ilícita, especialmente no que tange à declaração de inelegibilidade,

tida pela maior parte da doutrina e pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral como efeito

secundário ou anexo da sentença, de automática incidência.

ELEIÇÕES 2012. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. REGISTRO DE

CANDIDATURA. CANDIDATO A VEREADOR. INELEGIBILIDADE DO ART.

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1º, INCISO I, ALÍNEA p, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/1990. DECISÃO

COLEGIADA QUE APLICOU MULTA POR DOAÇÃO ACIMA DO LIMITE

LEGAL SUSPENSA POR LIMINAR DE MINISTRO DO TSE.

INELEGIBILIDADE SUSPENSA CONSEQUENTEMENTE. INCIDÊNCIA DO

ART. 26-C DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/1990. PROVIMENTO DO

RECURSO.

1. A inelegibilidade do art. 1º, inciso I, alínea p, da Lei Complementar nº

64/1990 não é sanção imposta na decisão judicial que condena o doador a pagar

multa por doação acima do limite legal (art. 23 da Lei nº 9.504/1997), mas

possível efeito secundário da condenação, verificável se e quando o cidadão se

apresentar como postulante a determinado cargo eletivo, desde que presentes

os requisitos exigidos. [...] (TSE, REspe nº 22991 - Palmas/TO. Acórdão de

22/05/2014. Relator(a) Min. GILMAR FERREIRA MENDES. Publicação: DJE,

Tomo 142, Data 04/08/2014, Página 54/55) (grifo nosso).

Para Elmana Viana, em linha de afinidade com o Tribunal Superior Eleitoral, o

reconhecimento da inelegibilidade “não se trata de sanção a ser imposta na decisão, mas de

consequência da condenação e apuração da responsabilidade pela doação ilegal

(ESMERALDO, 2012)”.

Peleja Júnior e Batista (2014) asseveram que

[...] a inelegibilidade cominada pela Lei Complementar 64/90, em seu art. 1º, I, ‘p’,

é medida que sempre se imporá, quer a pessoa física, que aos dirigentes da pessoa

jurídica, não cabendo ao intérprete optar ou não por aplica-la, por se tratar de

inelegibilidade imposta por Lei.

Também concordam Rodrigues e Jorge (2014, p. 367/368):

Tem-se efeito secundário da condenação por doação acima do valor legal, tanto para

a pessoa jurídica, quanto para a pessoa física, a hipótese de inelegibilidade descrita

no art. 1º, I, p [...]. Segundo pensamos, esta sanção constitui efeito anexo da

sentença condenatória fixada na ação por doação acima do valor legal.

Em sentido oposto, José Jairo Gomes (2011, p. 194), mesmo de modo superficial,

afirma que a inelegibilidade não decorre automaticamente da imposição de multa ao doador,

que “não se trata, pois de efeito secundário da sentença. Ela deve resultar de decisão

autônoma, em processo jurisdicional que tenha observado o rito do art. 22 da LC nº 64/90”.

Qual seria o processo autônomo capaz de reconhecer a inelegibilidade? A Ação de

Investigação Judicial Eleitoral.

Nessa linha, a qual nos filiamos, Olivar Coneglian explica:

[...] se a interpretação for de que, condenado o doador a pagar a multa, pode ser-lhe

também imposta a inelegibilidade, então essa imposição depende de fundamentação

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e não é automática, funcionando como efeito secundário da condenação. Não sendo

automática, e devendo ser fundamentada, pode não ser aplicada, se a gravidade da

conduta do agente não levar a tanto.

[...]

Como, em tese, a conduta ilícita da doação pode levar à decretação da

inelegibilidade, a referência ao art. 22 da LC 64/90 deixa de ser apenas escolha de

um rito já existente, para se tornar verdadeiramente uma ‘investigação judicial

eleitoral’, em toda sua carga e com todas as suas consequências (CONEGLIAN,

2014).

Da interpretação do texto legal, vê-se que ao julgar procedente a demanda, isto é,

decidir pela aplicação da multa, caberá ao julgador, ainda, declarar a inelegibilidade do

infrator e de quantos hajam contribuído para o ilícito, inclusive, o candidato.

Para tanto, exige-se o exame da gravidade das circunstâncias que caracterizam o ato

ilícito, que nada mais é do que pura aplicação do princípio da proporcionalidade e da

razoabilidade.

Explicam Peleja Júnior e Batista (2014, p. 128) que “o princípio da razoabilidade ou

proporcionalidade objetiva verificar a justa medida entre a adequação e a necessidade, entre

meios e fins”, fundamentados na lição de Gilmar Mendes (apud PELEJA JÚNIOR;

BATISTA, 2014, loc. cit.), segundo a qual,

os meios utilizados pelo legislador devem ser adequados e necessários à consecução

dos fins visados. O meio é adequado se, com a sua utilização, o evento pretendido

pode ser alcançado; é necessário se o legislador não dispõe de outro meio eficaz,

menos restritivo aos direitos fundamentais.

Vejamos a redação dos incisos, XIV e XVI do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90:

Art. 22. [...]

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos

eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos

hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade

para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se

verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente

beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder

de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao

Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso,

e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

[...]

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade

de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias

que o caracterizam.

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A exegese sobre a norma parte exatamente da exigência imposta na alínea p do inciso

I do art. 1º da Lei das Inelegibilidades, quanto ao seguimento do procedimento do art. 22 da

mesma Lei, que somente se encerra e pode ser considerado cumprido com a expedição do

decreto condenatório, que possui como requisito, após o julgamento procedente, a declaração

de inelegibilidade, levando-se em consideração a gravidade da conduta.

Sabe-se que os dispositivos tratam do abuso de poder, mas entendemos que podem e

devem ser aplicados às representações pela doação eleitoral irregular, porque, de modo

semelhante à ação de investigação judicial eleitoral, visa-se “impedir o abuso do poder

econômico e proteger a igualdade entre os candidatos e a higidez das campanhas eleitorais.

Busca-se, com essa norma, assegurar a legitimidade, transparência e moralidade da disputa

eleitoral [...]” (ESMERALDO, 2012).

E isto é totalmente possível, porquanto aceitável nas representações com fundamento

nos arts. 30-A, 41-A e 73 e ss, da Lei das Eleições, cujo julgamento procedente com

imposição de inelegibilidade decorre do exame da proporcionalidade e da razoabilidade sobre

a conduta típica, como exigido pela alínea j do inciso I do art. 1º da LI.

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

[...]

j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por

órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita

de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou

por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que

impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a

contar da eleição;

Sobre a hipótese de inelegibilidade acima, vale trazer os comentários de José Jairo

Gomes e de Rodrigo López Zílio, respectivamente:

Só há geração de inelegibilidade se houver efetiva cassação de registro ou de

diploma. E, ainda, se os fatos forem graves. A aplicação isolada de multa não

acarreta inelegibilidade. Atende-se com isso ao princípio constitucional de

proporcionalidade, pois se se entender como adequada tão só a aplicação de

multa, a conduta considerada certamente terá pouca gravidade. Nesse caso, a

lesão ao bem jurídico não é de tal gravidade que justifique a privação da cidadania

passiva [...] (GOMES, 2011, 176) (grifo nosso).

[...] Deve-se ponderar que somente quando a sanção originária das

representações específicas (arts. 30-a, 41-a, 73, 74, 75 ou 77 da lei nº 9.504)

veicular cassação do registro ou do diploma é que é possível perquirir da

inelegibilidade octonal. Neste diapasão não incide a inelegibilidade sob comento

quando a representação por conduta vedada prevista no art. 73 da lei nº

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6.504/97, com base no princípio da proprocionalidade, aplicar apenas a sanção

de multa [...] (ZÍLIO, 2012, 203) (grifo nosso).

Observemos que para o candidato, flagrado pelo recebimento de doação eleitoral

ilícita ou que tenha executado gastos irregulares na campanha, é garantido o exame da

gravidade, por aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, a fim de que se

afaste a punição de cassação de registro ou diploma e, consequentemente, a inelegibilidade.

ELEIÇÕES 2010. RECURSO ORDINÁRIO. REPRESENTAÇÃO. ART. 30-A

DA LEI N. 9.504/97. CAPTAÇÃO OU GASTO ILÍCITO DE RECURSOS.

DEPUTADO ESTADUAL. DOAÇÃO DE FONTE VEDADA.

CONCESSIONÁRIA. ART. 24, III, DA LEI Nº 9.504/97. NÃO

CARACTERIZAÇÃO. PESSOA JURÍDICA QUE É MERA ACIONISTA DA

EMPRESA QUE EFETIVAMENTE CONTRATOU COM O PODER

PÚBLICO. DOAÇÃO QUE REPRESENTA APENAS 5,4% DO TOTAL DOS

RECURSOS ARRECADADOS. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA

PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. PRECEDENTES.

PROVIMENTO.

1. In casu, embora tenha sido a empresa doadora que participou do processo

licitatório para a exploração de serviço público, temse que, antes mesmo da

assinatura do contrato, transferiu para subsidiária todos os direitos e obrigações da

concessão, não figurando, portanto, como contratada, o que afasta a vedação do art.

24, III, da Lei nº 9.504/97, cuja interpretação é estrita.

2. Ademais, a doação questionada representa apenas 5,4% do total de recursos

financeiros de campanha arrecadados, atraindo, assim, a incidência dos

princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, os quais

recomendam não seja aplicada a grave sanção de cassação do diploma.

3. Recurso ordinário provido. (TSE, RO nº 581 - Goiânia/GO. Acórdão de

05/08/2014. Relator(a) Min. LUCIANA CHRISTINA GUIMARÃES LÓSSIO.

Publicação: DJE, Tomo 154, Data 20/08/2014, Página 71) (grifo nosso).

Nos casos que apurem doações eleitorais em excesso, o Colendo TSE e diversos

autores têm aceitado a aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade apenas

em relação à fixação do quantum da multa e, em alguns casos, também para as penalidades

impostas às pessoas jurídicas de proibição de participar de licitações e de celebrar contratos

com o poder público.

Sobre esse particular, assim tem entendido o Tribunal Superior Eleitoral, quando se

trata de doação por pessoa física:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. DOAÇÃO ACIMA DO

LIMITE LEGAL. PESSOA FÍSICA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO

ESPECÍFICA. PRAZO DE 180 DIAS, CONTADOS A PARTIR DA

DIPLOMAÇÃO. LICITUDE DA PROVA. AUSÊNCIA DE

PREQUESTIONAMENTO. REEXAME. VIOLAÇÃO AO ART. 150, IV, DA CF.

AFASTADA. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA

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RAZOABILIDADE. MULTA INFERIOR AO MÍNIMO LEGAL.

IMPOSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO.

[...]

5. A jurisprudência desta Corte firmou-se pela impossibilidade de aplicação da

sanção em valor inferior ao mínimo legal, estando a aplicação dos princípios da

proporcionalidade e da razoabilidade adstrita aos limites mínimo e máximo

estabelecidos em lei. [...] (TSE, AgR-REspe nº 54915 - Cuiabá/MT. Acórdão de

27/03/2014. Relator(a) Min. JOSÉ ANTÔNIO DIAS TOFFOLI. Publicação: DJE,

Tomo 86, Data 12/05/2014, Página 476) (grifo nosso).

Nos casos de doações realizadas por pessoas jurídicas:

DOAÇÃO - SANÇÕES - ARTIGO 81, PARÁGRAFOS 2º E 3º, DA LEI Nº

9.504/1997 - AUSÊNCIA DE CUMULATIVIDADE OBRIGATÓRIA. As sanções

previstas no artigo 81 da Lei nº 9.504/1997 não são cumulativas, podendo haver

a aplicação apenas de multa, considerados os princípios da proporcionalidade e

da razoabilidade. Precedente: Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº

32841, Relator Ministro Castro Meira. (TSE, AgR-REspe nº 62406 - Arapiraca/AL.

Acórdão de 22/10/2013. Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE

FARIAS MELLO. Publicação: DJE, Tomo 230, Data 3/12/2013, Página 30) (grifo

nosso).

Rodrigues e Jorge (2014, p. 367), aceitam a aplicação do juízo de proporcionalidade e

de razoabilidade apenas para a sanção pecuniária121, nos seguintes termos:

Quando se tratar de doador pessoa física, a sanção prevista pelo legislador é de

multa, podendo variar entre 5 a 10 vezes a quantia doada em excesso. O preciso

quantum poderá ser o máximo [...], o mínimo [...], ou ainda um outro valor que

esteja entre o mínimo e o máximo dependendo do juízo de proporcionalidade e

razoabilidade segundo o cotejo de elementos da causa como dolo, culpa etc. [...]

[...]

De outra parte, quando o doador é uma pessoa jurídica, a sanção – também

determinada pelo legislador – constitui a imposição multa e as obrigações de não

fazer. Aqui concessa maxima venia, o entendimento que vem sido sufragado pelo

TSE, as sanções são cumulativas, sendo expressa a vontade do legislador nesse

sentido.

Enfim, análise sob o viés da proporcionalidade e razoabilidade, como no caso

anterior de pessoas físicas, só deve ser feito para a aferição do valor da multa e

desde que entre os limites máximo e mínimo fixados pela lei. [...]

Imaginemos a seguinte situação. Uma determinada empresa doa para um candidato a

quantia de R$ 100.000,00 (cem mil reais), mas, na verdade, só poderia ter doado R$

99.000,00 (noventa e nove mil), ou seja, com excesso de R$ 1.000,00 (mil reais).

Julgando-se procedente a representação eleitoral, aplicando-se o princípio da

proporcionalidade e da razoabilidade nos moldes atualmente definidos pelo TSE, ser-lhe-ia

121 Em contraponto, concordando in totum com a posição adotada pelo egrégio TSE: LULA (2014, p. 641),

PELEJA JÚNIOR; BATISTA (2014, p. 285 et seq) e ESMERALDO (2012, p. 223).

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imposta multa no valor mínimo de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), mas seus dirigentes

responsáveis pela doação considerada irregular estar-se-iam inelegíveis, caso pretendessem

disputar alguma eleição.

Como visto anteriormente, o mesmo não ocorreria com o candidato beneficiário pela

doação irregular, porque, para ele, o TSE entende ser possível, pela aplicação da

proporcionalidade afastar a cassação de registro e a inelegibilidade que decorria da

condenação.

Veja-se que a irregularidade comentada se deu em apenas 1% (um por cento) e, no

caso paradigma, o TSE deixou de punir um candidato porque a irregularidade perfez o

montante aproximado de 5% (cinco por cento).

O quanto mais grave e prejudicial ao pleito é a realização de uma doação que

ultrapasse em ínfimos 1% (um por cento) o limite legal, por pessoa física ou jurídica, do que o

recebimento da mesma doação irregular pelo candidato?

Parece-nos ser possível ao candidato manter a inaceitável prática de “caixa dois” desde

que em parâmetros razoáveis de até 5% (cinco por cento), mas à pessoa física e jurídica deve

ser imposto maior rigor. Não penso ser esse o entendimento que mereça prevalecer.

Entre nós, pensamos ser necessário evoluir a jurisprudência para aceitar que os

princípios da proporcionalidade e da razoabilidade sejam aplicados com maior alcance nas

representações por doações eleitorais acima do valor legal, promovendo o exame da gravidade

da conduta do doador, em cumprimento ao disposto no art. 22, XIV e XVI, sob pena,

inclusive, de nulidade do processo.

Afinal, seguir o procedimento previsto no indigitado artigo, não se resume ao

cumprimento das fases e prazos para apresentação de defesa, realização da audiência para

inquirição das testemunhas, promoção de diligências, apresentação de alegações finais.

Seguir o rito, nesse caso, é também fundamentar a sentença condenatória de modo

fundamentado, conferindo eficácia máxima aos preceitos de proporcionalidade e

razoabilidade, para além da quantificação da sanção pecuniária, promovendo exame da

gravidade da conduta ilícita do doador, a fim de afastar ou declarar-lhe a inelegibilidade, que

futuramente poderá ser incurso em processo de registro de candidatura.

5 CONCLUSÃO

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A presença em massa de capital privado nas campanhas eleitorais deve ser tratada com

bastante atenção pelo legislador eleitoral, que, inclusive previu a possibilidade da

temporariedade através de recursos originados de pessoas jurídicas, no art. 79 da Lei das

Eleições, a fim de garantir sempre a proteção à probidade administrativa, à moralidade para o

exercício do mandato, à normalidade e legitimidade das eleições, emanada na Constituição

Federal contra o abuso de poder político e econômico.

Como mecanismo de atenuação à influência do capital sobre os pleitos, a consideração

das fontes vedadas e a imposição de limites às doações realizadas por pessoas físicas e

jurídicas podem funcionar de modo eficaz, mas é necessário aperfeiçoamento dos sistemas de

controle e sancionamento.

As alterações legislativas e de posicionamento dos tribunais passaram a punir com

maior rigor tanto os candidatos condenados por abuso de poder econômico, como os

responsáveis por doações ilegais. Mas não basta punir por punir ou penalizar em excesso,

marginalizando preceitos fundamentais que somente podem sofrer restrições se não houver

outro meio eficaz.

Verificamos divergência jurisprudencial e doutrinária quanto ao procedimento a ser

adotado para averiguação da doação irregular e aplicação de sua correspondente punição,

apesar de já pacificado pelo próprio TSE que deva ser utilizado o procedimento previsto no

art. 22 da Lei Complementar nº 64/90.

Assim, com o fito de garantir verdadeira proteção à legitimidade e à normalidade das

eleições, valores caros ao Estado Democrático de Direito, pensamos que o procedimento

prescrito no art. 22 da LI, para ser considerado atendido em sua totalidade, culminando na

declaração de inelegibilidade do doador, deve examinar a gravidade da conduta, em estreita

homenagem ao devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, a proporcionalidade e

a razoabilidade entre a conduta ilícita e o a sanção a ser imposta.

Isto, também, para haver harmonização entre o tratamento dispensado aos candidatos,

destinatários das doações, que se processados com fundamento no art. 30-A da LE, ante a

realização de arrecadação e/ou gastos ilícitos na campanha eleitoral, somente se sujeitarão ao

cancelamento do registro ou perda do diploma e tornar-se-ão inelegíveis se a conduta for

grave o suficiente para macular o pleito.

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Neste diapasão, reforça-se que enxergamos como cabível a aplicação dos princípios da

proporcionalidade e razoabilidade em seu grau máximo de eficiência, para que a gravidade da

conduta deva influenciar na futura declaração de inelegibilidade.

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