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Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Graduação Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques Pró-Reitora de Orientação e Assistência ao Estudante Eurilda Dias Roman Pró-Reitor de Desenvolvimento Comunitário Ely Carlos Petry Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Representação Institucional Martim Carlos Warth Pró-Reitora das Unidades Externas Jussará Lummertz DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Editor Plauto Faraco de Azevedo Editor Associado César Augusto Baldi Conselho Editorial Airton Sott (ULBRA) Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) Altayr Venzon (ULBRA) Etienne Picard (Université de Paris I/França) Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR) Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha) José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS) Luís Afonso Heck (ULBRA) Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ) Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA) Vladimir Passos de Freitas (UFPR) DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Vol. 3 - Número 2 - 1º semestre de 2002 ISSN 1518-1685 U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do Brasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000. Semestral 1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil - Ciências Jurídicas. CDU 34 CDD 340 Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen CORRESPONDÊNCIA/ADDRESS Universidade Luterana do Brasil PROGRAD/Divisão de Publicações Periódicas a/c Paulo Seifert, Diretor Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 127 92420-280 - Canoas/RS - Brasil E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. ENDEREÇO PARA PERMUTA: Universidade Luterana do Brasil Biblioteca Martinho Lutero Setor de aquisição Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 05 92420-280 - Canoas/RS E-mail: [email protected] O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte.

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ReitorRuben Eugen BeckerVice-ReitorLeandro Eugênio BeckerPró-Reitor de GraduaçãoNestor Luiz João BeckPró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoEdmundo Kanan MarquesPró-Reitora de Orientação e Assistência ao EstudanteEurilda Dias RomanPró-Reitor de Desenvolvimento ComunitárioEly Carlos PetryPró-Reitor de AdministraçãoPedro MenegatPró-Reitor de Representação InstitucionalMartim Carlos WarthPró-Reitora das Unidades ExternasJussará Lummertz

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas – ULBRA

EditorPlauto Faraco de AzevedoEditor AssociadoCésar Augusto Baldi

Conselho EditorialAirton Sott (ULBRA)Aldacy Rachid Coutinho (UFPR)Altayr Venzon (ULBRA)Etienne Picard (Université de Paris I/França)Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA)Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha)José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS)Luís Afonso Heck (ULBRA)Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ)Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas – ULBRAVol. 3 - Número 2 - 1º semestre de 2002

ISSN 1518-1685

U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana doBrasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000.

Semestral

1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil- Ciências Jurídicas.

CDU 34CDD 340

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Índice

03 EditorialEditorialEditorialEditorialEditorial

Artigos

7. Direito Sanitário, de Sueli Gandolfi Dallari.

43. É o recurso especial um recurso extraordinário?, de Airton Sott

55. Regularização de assentos informais: o grande desafio dos municípios, dasociedade e dos juristas brasileiros, de Edésio Fernandes.

73. Lavagem de dinheiro e o problema da prova do delito prévio, de AndréCallegari.

83. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade dodireito do direito à saúde na Constituição de 1988, de Ingo WolfgangSarlet.

105. Assistência familiar como um direito fundamental, de Bruno Canísio Kich.

123. O meio ambiente e a jurisprudência do STJ, de Ruy Rosado de Aguiar.

143. Poder Judiciário e política, de Marta Beatriz Tedesco Zanchi.

151. Reflexões sobre o direito ambiental e sua aplicação, de MônicaMelquíades Soares.

161. Manuel de Rivacoba y Rivacoba, de Luiz Luisi.

165. Islã e direitos humanos, de Asghar Ali Engineer.

181. A incorporação dos tratados e convenções internacionais no direitobrasileiro: repercussões no âmbito do Mercosul, de Lenice MoreiraRaymundo.

197. Política y dogmática jurídico penal, de Eugenio Raúl Zaffaroni.

Documento Histórico

219. Convenção Interamericana contra a corrupção

235235235235235 Normas EditoriaisNormas EditoriaisNormas EditoriaisNormas EditoriaisNormas Editoriais

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Editorial

Segundo uma sutil intuição de Boaventura de Sousa Santos, “o mapa,o poema e o direito, embora por diferentes razões, distorcem as realidadessociais, as tradições ou os territórios, e todos os fazem segundo certasregras”1 . Associando cartografia e a ciência jurídica, passa a tratar o campodo direito como um mapa e, portanto, sujeito às regras da escala, da pro-jeção e da simbolização. A primeira implica uma decisão sobre o grau depormenorização da representação; a segunda define as fronteiras e orga-niza o seu espaço interior; e, por fim, a terceira diz respeito aos símbolosgráficos usados para assinalar os elementos e as características da realida-de espacial apresentada.

Não é aqui o espaço adequado para desenvolver todas as virtualidadesdesta utilização literal de uma metáfora, mas ela consegue captar a ne-cessidade de buscar uma nova imaginação jurídica para resolução dosproblemas e conflitos com que nos defrontamos, um repensar dos própriosmecanismos de definição do que consideramos como jurídico, uma releiturada realidade que tematize outros ângulos, outros modos de ver, que cruzefronteiras, que não se encontre presa ao solo fácil das respostas prontas,que utilize novas escalas, uma concepção jurídica que esteja atenta àprópria linguagem utilizada, sem se tornar escrava do formalismo, masatenta aos mecanismos simbólicos.

Acostumados que estamos aos parâmetros de ordem, temos dificulda-des de lidar com a desordem, com o imprevisto ou, como dizem algumasteorias científicas atuais, com o caos. Este sempre foi visto como a própriaausência de estrutura: na realidade, “ a ordem é o tamanho da desordema que estamos habituados. O tamanho é uma função da escala”, e cadagrupo social trabalha com escalas diferenciadas de ação, transformando“a ordem em desordem ao mesmo tempo que criam as condições deinteligibilidade de novos tipos de ordem”2

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente; contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento,p. 184.

2 Idem. Fatalidade ou fractalidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, (36): 5, fevereiro de 1993.

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A escala de ação, por exemplo, para resolução dos problemas do ambientetem sido, rotineiramente, a escala nacional, que é, contudo, incapaz de darconta de uma questão que, cada vez mais, deve ser pensada globalmente.Aqui, ao contrário, os instrumentos de análise utilizados pelos artigos seleci-onados trabalham em escalas diferenciadas, adequadas às respectivas ques-tões: se o artigo do Ministro Ruy Rosado de Aguiar analisa uma fonte dodireito- a jurisprudência- circunscrevendo-se aos Tribunais Superiores, paraverificar como, em escala local, é tratado um problema translocal, na contri-buição de Mônica Melchíades Soares, ainda que circunscrita ao âmbito danorma jurídica, a escala é ampliada de forma a retrabalhar os conceitos, naaplicação, tendo em vista a magnitude do próprio meio ambiente.

Se as configurações de ordem, no século passado, tinham comoparâmetros as metáforas da medicina- daí a criação de uma física socialpara estudar a “anatomia” e a “fisiologia” do corpo social-, a atual “fomede imortalidade do corpo faz com que hoje sejamos cada vez mais revolu-cionários a respeito dos males individuais e cada vez menos revolucioná-rios a respeito dos males sociais”3

E a situação é mais paradoxal ainda quanto a própria questão do direi-to fundamental à saúde, que reclama uma universalidade de ação. IngoSarlet, neste particular, busca, analisando dimensões positivas e negati-vas do direito à saúde, incentivar mecanismos que lhe dêem maior eficá-cia e efetividade, numa verdadeira medicina profilática contra os bisturisque procuram podar toda a fundamentalidade dos direitos sociais. SueliGandolfi Dallari, por sua vez, faz uma radiografia da autonomia do Direi-to Sanitário, destacando objeto, método, princípios e a própria história dadisciplina, evidenciando sua insofismável relevância.

Se o aumento da criminalidade tem-se convertido em verdadeira chagana sociedade atual, não é menos verdade que, como demonstra EugenioRaúl Zaffaroni, as opções de política criminal tem padecido de uma mi-opia e deficiência teórica, quando não de uma real alienação política domodelo vigente. Paradoxal, portanto, que um modelo civilizacional quevalorize tanto o visual, o imagético, produza tanta cegueira teórica. Alavagem de dinheiro, tematizada por André Callegari, demonstra bem adespreocupação, que vinha caracterizando a Ciência Penal, no que dizrespeito à própria realidade das estruturas criminosas.

3 Idem. A saúde da doença e viceversa. Revista Crítica de Ciências Sociais, (23): 11, setembro de 1987.

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A desordem, que caracteriza nossa imagem dos conflitos sociais, dei-xando algumas pessoas, por medo da violência, prisioneiras de verdadei-ras “cidades-fortaleza” em suas próprias casas, é também a ordem queprocura disciplinar as novas configurações para as assimetrias e regulari-zação dos assentos informais, tratados, no presente número, por EdésioFernandes, agora à luz dos novos pressupostos instituídos e configuradospelo Estatuto da Cidade. Neste sentido, o próprio reconhecimento dodireito à cidade não se encontra separado da garantia do meio ambienteecologicamente equilibrado e, portanto, de novas exigências de “saúde”urbanística.

Se as escalas determinam a visualização do próprio objeto de conheci-mento, as projeções dão a dimensão do que é visto. Desta forma, o perigocomunista, na época da Guerra Fria, fez com que se “inflasse” o tamanhoda URSS, compatível, portanto, com o medo que se procurava incutir. Osmapas mentais pós-11 de setembro têm estabelecido um clima de belige-rância, um grau tal de desordem nas relações internacionais, que a lin-guagem tem sido maximizada, para considerar o terrorismo com um malincomensurável. Numa era de novos fundamentalismos, contudo, não énada saudável transformar o “diferente” em monstruoso. O texto de AsgharAli Engineer, ao tematizar a Declaração Universal dos Direitos Humanosà luz dos ensinamentos do Alcorão e do islamismo, procura desvendarpreconceitos e incentivar a busca de um diálogo intercultural, sem abdi-car, contudo, de sua visão não-ocidental. Seria irônico se não fosse trági-co, reconhecer que uma civilização que tanto critica o véu utilizado pe-las mulheres muçulmanas, crie novos véus, talvez piores que a burka dostalibãs, para o tratamento das culturas não-ocidentais.

Este reconhecimento do princípio de solidariedade, talvez a bandeiramais adormecida da Revolução Francesa, está, por sua vez, no cerne dadiscussão proposta por Bruno Canísio Kich, a respeito do dever de assis-tência familiar, no tocante a alimentos. Em nível internacional, é a pró-pria criação de uma verdadeira comunidade jurídica no âmbito da Amé-rica do Sul que se coloca em questão, de modo que não se reduza tão-somente a uma zona de livre comércio, união aduaneira ou mera reduçãode barreiras alfandegárias. Neste particular, Lenice Moreira Raymundoanalisa os impasses para tal implementação, considerando as distintasconcepções, no Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, no tocante à in-corporação dos tratados internacionais no direito pátrio.

Este dever de cooperação, por sua vez, é o que determina a escolha do

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presente documento histórico, relativo à corrupção, que, em alguns paí-ses, se converteu em verdadeiro câncer, necessitando, portanto, de me-canismos positivos de prevenção e combate.

A atuação do Poder Judiciário, neste sentido, somente pode ser tidacomo profícua, se a própria concepção a respeito da politicidade destePoder for convenientemente apreendida. Esta é a contribuição de MartaBeatriz Tedesco Zanchi.

Por fim, os dois últimos artigos tratam de questões absolutamente dis-tintas, mas igualmente relevantes. Luiz Luisi analisa a vida e obra deManuel Rivacoba y Rivacoba, procurando destacar os pontos altos de suacontribuição para a ciência jurídica. Airton Sott, por sua vez, discute, àluz da teoria dos recursos adotada pelo direito brasileiro, se o recursoespecial é, efetivamente, um recurso extraordinário ou meramente ordi-nário.

Configurada a ordem dos textos em plena desordem relativamente àprópria aparição de cada um, procura-se a reconfiguração do espaço jurí-dico, que deve ser visto como plural. Em verdade, “ a ordem que não sabepensar a desordem acaba sempre por ser pensada pela desordem” 4

Plauto Faraco de Azevedo

César Augusto Baldi

4 Idem, Fatalidade ou fractalidade, op. cit., p. 7.

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Direito Sanitário

Sanitary Law

SUELI GANDOLFI DALLARI

Livre-Docente em Direito Sanitário (USP), Diretor Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário eProfessor Titular da Faculdade de Saúde Pública da USP

RESUMO

O artigo tem por objeto a evolução histórica, conceito e objeto do DireitoSanitário, tendo em conta as normas constitucionais asseguradoras do direito àsaúde e o papel do Ministério Público a este respeito. Palavras-chave: Direito Sanitário, Direitos fundamentais, Ministério Público

ABSTRACT

The article deals with the historical evolution, concept and object of SanitaryLaw, taking into account the constitutional rules that guarantee the right ofhealth as well as the role of the Public Ministry in such a matter.Key words: Health Rights, Fundamental Rights, Public Ministry.

Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.257-41

Artigos

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1. CONCEITO DE SAÚDE PÚBLICACONCEITO DE SAÚDE PÚBLICACONCEITO DE SAÚDE PÚBLICACONCEITO DE SAÚDE PÚBLICACONCEITO DE SAÚDE PÚBLICA

A evolução histórica mostra que o atual conceito de saúde públicacomeça a se delinear no Renascimento, correspondendo praticamente aodesenvolvimento do Estado Moderno. É muito curioso – porque absoluta-mente desprezado – verificar a aproximação histórica da idéia de saúdedaquela de exercício físico (ginástica) e dieta, isso porque a saúde não éoriginalmente um conceito científico, mas uma idéia comum, ao alcancede todos. Para a antigüidade grega o termo hygieia significa “o estadodaquele que está bem na vida” e tem um sentido eminentemente positi-vo. Mesmo com a incorporação do sentido de cura e, portanto, com aformação da medicina, ainda a higiene alimentar e o exercício físico sãocaracterizados como importantes elementos de cura1 . Platão (A Repúbli-ca IV, 444b-c) alarga um pouco mais a idéia de saúde acrescentando-lheo campo da alma e a necessidade de que ele mantenha relação adequadacom o corpo. Assim, o estado de equilíbrio interno do homem e dele coma organização social e a natureza é sinônimo de saúde para a antigüidadegrega. Durante a Idade Média, o saber culto continua a privilegiar oequilíbrio na definição de saúde (como ensina Maimônides, 1990), trata-dos de ginástica e dietética são publicados como receitas de saúde paraos não-médicos (Rauch, 1995), mas a reação coletiva à epidemia é aimagem mais marcante desse período. Assim aparecem os primeiros con-tornos da idéia de prevenção, implicando o respeito seja aos signos dozodíaco, seja ao desenrolar das estações, seja ao relacionamento adequa-do entre o clima e o corpo humano, mas, sobretudo, o afastamento doscontactos impuros – a melhor forma de prevenção.

No Renascimento, um fato importante para a compreensão do conceitode saúde pública foi a preocupação das cidades em prestar cuidados aosdoentes pobres em seus domicílios ou em hospitais, aumentando o poderdas cidades em matéria de higiene. Por outro lado, novas concepções desaúde favorecem a limpeza e os exercícios corporais que evitam o recursoaos medicamentos (Montaigne, Essais, II, 37; II, 2), enquanto outras ten-dem a mecanizar o corpo, trabalhando com um conjunto de fatores queconstituem a saúde (eliminação dos resíduos, apetite, facilidade de diges-tão). E a valorização do exercício como elemento essencial para uma vidasaudável encontra reforço no romantismo, que estimula maior aproxima-

1 A medicina hipocrática é formada pela dietética ou ciência dos regimes e pela ginástica ou ciência dosexercícios.

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ção da natureza. Entretanto, a experiência das epidemias deixou sua mar-ca, elaborando o conceito de perigo social, “usado mais como pretexto paraum controle sobre as pessoas e não somente sobre as doenças do que paramedidas específicas de prevenção” (Berlinguer, 1988, p. 82). É nesse perío-do que, na Alemanha, se define a idéia de polícia médica, em plena coe-rência com o cameralismo2 . Não tendo os alemães participado ativamentedas grandes navegações e da colonização decorrente, o principal objetivodo mercantilismo foi aumentar a força interna do Estado - particularmentedepois que o império germânico foi esfacelado nos Tratados de Paz daWestphalia (1648) - para o que foi importante o conceito de polícia. Con-cordando com a ideologia hegemônica na Alemanha no final do séculoXVII, que afirmava ser o crescimento populacional a manifestação primei-ra da prosperidade e bem-estar de um povo e que, portanto, um bom gover-no deve agir para proteger a saúde de seus súditos, Leibnitz sugeriu, em1680, ao imperador Leopoldo I, a criação de um órgão administrativo en-carregado dos assuntos de polícia, o que implicava a existência de um con-selho de saúde. Logo após (1685), Frederico-Guilherme de Hohenzollern –o Grande Eleitor de Brandenburgo – cria, nos territórios que viriam a cons-tituir o reino da Prússia, um Collegium sanitatis, definindo uma autoridademédica para supervisionar a saúde pública3 .

Nesse período, pode-se observar, também, que o ensino do cameralismona Universidade – iniciado sob o reinado do, então, imperador Frederico-Guilherme I – favorecendo o desenvolvimento do ramo da Administra-ção Pública conhecido como ciência da polícia, forneceu as bases para adefinição da polícia médica, a ele estruturalmente vinculada. Assim, ateoria política do contratualista barão de Pufendorf – revelada no Direitonatural e direito das gentes, de 1672 – além de insistir em que “a força deum Estado consiste no valor e nas riquezas dos Cidadãos: ..(e que o Sobe-rano, portanto,).. não deve nada negligenciar, para promover o cuidadoe o aumento dos bens dos particulares”(Pufendorf, 1732, L 6, cap. IX, p.349), dedica um capítulo a “Os deveres do homem com relação a elemesmo, tanto para o que respeita ao cuidado de sua alma, quanto paraaquilo que concerne ao cuidado de seu corpo e de sua vida”( idem L2,cap. IV). Nesse trecho ele afirma ser necessário “trabalhar para ter asaúde com bom senso”, lembrando que a saúde encerra todos os outros

2 Ensinam os historiadores da civilização que o mercantilismo alemão, interessado sobretudo em aumentar asrendas do Estado, ficou conhecido como “cameralismo”, uma vez que Kammer significa tesouro real.

3 É o que nos ensina George Rosen na obra Da polícia médica à medicina social (Rio de Janeiro: Graal, 1980. p. 151-3)

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bens (ibidem, p. 244). E seus seguidores, como von Justi, escrevendo noauge do despotismo esclarecido4 (exercido na Alemanha por Frederico II– 1740/86), advogavam que o soberano fizesse todo o possível para preve-nir as doenças contagiosas e para, em geral, diminuir as doenças entre ossúditos. Para isso deveria, empregando o aparato administrativo do Esta-do, estimular a prática da medicina, da cirurgia, do partejo, da farmáciae regulamentar o exercício dessas atividades para evitar abusos e ocharlatanismo. Deveria, também, promover a pureza da água e dos ali-mentos, assim como, assegurar a higiene do meio, regulando, inclusive,as edificações em solo urbano (Rosen, 1980, p. 159).

Fica claro que a sistematização da polícia médica resulta, especial-mente, da profunda influência exercida – durante todo o século XVIII –pela filosofia do Iluminismo, que considera a razão o único caminho paraa sabedoria. Assim, ao não admitir as explicações sobrenaturais para osfenômenos naturais, o Iluminismo promove a ampla aceitação da obriga-ção do Estado de controlar o exercício das práticas médico-cirúrgicas efarmacêuticas, combatendo o charlatanismo. Do mesmo modo, por bus-car empregar o método científico na descrição das doenças e na determi-nação dos tratamentos, essa filosofia eleva o exercício das ciências médi-cas (como das demais profissões liberais) a uma condição de dignidadeinimaginável na Idade Média, o que justifica plenamente a regulamenta-ção estatal do ensino médico. E, também, ao advogar a possibilidade deplanejamento da atividade estatal somada à exaltação crescente dos di-reitos naturais do homem – que permitiu consagrar mais atenção aos in-fortúnios das classes mais pobres – o Iluminismo estimulou a drenagem depântanos, a abertura de canais, favorecendo a prevenção de epidemias.

A noção contemporânea de saúde pública ganha maior nitidez de con-torno no Estado liberal burguês do final do século dezoito. A assistênciapública, envolvendo tanto a assistência social propriamente dita (forne-cimento de alimentação e abrigo aos necessitados) como a assistênciamédica, continuou a ser considerada matéria dependente da solidarieda-de de vizinhança, na qual o Estado deveria se envolver apenas se a açãodas comunidades locais fosse insuficiente. Pode-se colocar nessa atuaçãosubsidiária do Estado um primeiro germe do que viria a ser o serviço pú-blico de saúde. Entretanto, tomando-se o exemplo francês, verifica-se

4 Suas obras sobre a administração do Estado e os fundamentos da ciência da polícia datam de 1755 e 1756,respectivamente.

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que a grande transição revolucionária - que passa tanto pela supremaciados jacobinos quanto pela militarização napoleônica - retarda o início dainstauração efetiva da assistência à saúde como objeto do serviço públi-co, para o período conhecido como Restauração* .

Por outro lado, a proteção da saúde é admitida no elenco das ativida-des do Estado liberal e recebe, portanto, um status constitucional. Issosignifica que, apesar do empirismo que caracteriza a regulamentação dasatividades de interesse para a proteção da saúde, as medidas de políciaadministrativa relativas a tal proteção devem estar sob o manto da lei.Apareceram, assim, durante a Restauração (para ficar no exemplo fran-cês) as primeiras leis que tratavam organicamente da higiene urbana, danoção de estabelecimento insalubre e do controle sanitário de frontei-ras5 . Não se pode ignorar, contudo, que, tanto o controle do ensino e doexercício da medicina e da farmácia - profissões cuja regulamentaçãoestatal era advogada há cerca de 50 anos - quanto a manutenção doshospitais pelas comunas, também, receberam acolhida constitucional, umavez que o Estado liberal e burguês daquele final de século legislou sobreesses assuntos6 . Em suma, as atividades do Estado relacionadas à vigilân-cia sanitária, durante a implantação do liberalismo, eram em tudo coinci-dentes com os interesses da burguesia vitoriosa: valorizando sobremanei-ra o individualismo dominante, limitá-lo apenas naquilo estritamentenecessário à preservação da segurança individual, com o mais absolutorespeito à lei - condição do Estado de Direito.

Entretanto, é apenas a partir da segunda metade do século dezenoveque a higiene se torna um saber social, que envolve toda a sociedade efaz da saúde pública uma prioridade política. São desse momento as pri-meiras tentativas de ligar a saúde à economia, reforçando a utilidade doinvestimento em saúde (veja-se, por exemplo, o trabalho de Chadwick,1965). Por outro lado, inúmeros trabalhos de pesquisa conformes aoparadigma científico vigente revelam claramente a relação direta exis-

* 1814 (1ª queda de Napoleão) -1830 (revolução de julho, queda de Charles X)5 Ver o trabalho de Jean-Michel Lemoyne de Forges intitulado L’intervention de l’Etat en matière sanitaire: quelques

repères historiques, publicado no Rapport Public 1998 do Conseil d’Etat (Paris: La documentation Française,p.489-501)

6 Na França, leis de 10 de março (medicina) e 11 de abril (farmácia) de 1803 e a lei de 16 vendémiaire na V, queintroduz um modelo de gestão comunal (os diversos estabelecimentos e casas de caridade são re-agrupadossob um estabelecimento público comunal, dirigido por uma comissão administrativa municipal, destinadoexclusivamente aos doentes locais)

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tente entre a saúde e as condições de vida. Assim, proteger a saúde dascamadas mais pobres, modificar-lhes os hábitos de higiene, passa a ser umobjetivo nacional, pois simultaneamente se estaria lutando contra a misé-ria que ameaça a ordem pública. A idéia de prevenção encontra, então,ambiente propício à sua propagação. Inicialmente fomentada por associa-ções7 , a prevenção se transforma tanto em objetivo político quanto social.Tratava-se de encontrar os sinais precursores da doença para evitá-la.Nesse sentido, a vacinação e a descoberta de Pasteur, com o posteriorisolamento do germe, provoca uma verdadeira revolução na prevençãode moléstias, pois proteger contra a infecção permite simplificar a precau-ção. São criados os Comitês de Vacinação e se verifica que, politicamen-te, o risco de contrair doenças se sobrepõe ao da própria moléstia, trans-formando-a de episódio individual em objetivo coletivo, principalmentepor meio da disseminação dos meios estatísticos na avaliação da saúde.

O início do século vinte encontra instaurada a proteção sanitária comopolítica de governo. E são hierarquizadas três formas – hoje clássicas – deprevenção (veja-se, especialmente, a obra de Leavell e Clark, 1976): aprimária, que se preocupa com a eliminação das causas e condições deaparecimento das doenças, agindo sobre o ambiente (segurança nas es-tradas, saneamento básico, por exemplo) ou sobre o comportamento indi-vidual (exercício e dieta, por exemplo); a secundária ou prevenção espe-cífica, que busca impedir o aparecimento de doença determinada, pormeio da vacinação, dos controles de saúde, da despistagem; e a terciária,que visa limitar a prevalência de incapacidades crônicas ou de recidivas.O Estado do Bem-estar social da segunda metade daquele século reforçaa lógica econômica, especialmente em decorrência da evidenteinterdependência entre as condições de saúde e de trabalho, e se respon-sabiliza pela implementação da prevenção sanitária. Instituem-se, então,os sistemas de previdência social, que não se limitam a cuidar dos doen-tes, mas organizam a prevenção sanitária. Inicialmente, eles pressupu-nham uma diferenciação entre a assistência social – destinada às classesmais desfavorecidas e baseada no princípio de solidariedade e, portanto,financiada por fundos públicos estatais – e a previdência social, um me-canismo assecuratório restrito aos trabalhadores. Entretanto, exatamenteporque a prevenção sanitária era um dos objetivos do desenvolvimento

7 Tomando o exemplo francês, basta lembrar a Société française de tempérance, organizada em 1873, para lutarcontra o alcoolismo; a Société protectrice de l’enfance, organizada em 1865, militando pela alimentaçãocom leite materno; ou o Comitê de défense contre la tuberculose, criado em 1896.

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do Estado, logo se esclarece o conceito de seguridade social, que englobaos sub-sistemas de assistência, previdência e saúde públicas8 . Trata-se,portanto, de identificar a responsabilidade a priori do Estado. Assim, mes-mo no que respeita aos estilos de vida, verifica-se um grande investimen-to estatal9 .

Os últimos anos do século vinte, contudo, revelam uma nova concep-ção da saúde pública, fortemente influenciada seja pelo relativo fracassodas políticas estatais de prevenção, que não conseguiram superar os limi-tes impostos pela exclusão social, seja pela constatação – agora científica– da importância decisiva de comportamentos individuais no estado desaúde. Por outro lado, o predomínio da ideologia neo-liberal provocouuma diminuição do papel do Estado na sociedade em favor dos grupos eassociações e da própria responsabilidade individual. A evolução da or-ganização dos cuidados relativos à AIDS – na grande maioria dos Estadoscontemporâneos – é um exemplo eloqüente dessa nova concepção. Comefeito, prevaleceu a idéia de que a proteção contra a doença é responsa-bilidade individual e que os grupos – de doentes ou de portadores dovírus ou de familiares ou amigos de deles – devem organizar a prestaçãodos cuidados de saúde, ficando o Estado subsidiariamente responsávelpelo controle da qualidade do sangue, fator importante na cadeia dacausalidade, mas, certamente, não o único. Reforça-se, assim, o papeldos comportamentos individuais e não se questionam as estruturas eco-nômicas e sociais subjacentes. De fato, o que se verifica, então, é que asestruturas estatais de prevenção sanitária passam a estabelecer suas prio-ridades, não mais em virtude dos dados epidemiológicos, mas, principal-mente, em decorrência da análise econômica de custo/benefício. E isso,por vezes, acaba implicando a ausência de prevenção, elemento histori-camente essencial ao conceito de saúde pública.

2. SAÚDE COMO DIREITO E DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO E DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO E DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO E DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO E DIREITO ÀSAÚDESAÚDESAÚDESAÚDESAÚDE

O reconhecimento do direito à saúde, nas sociedades contemporâne-as, tem sido objeto de polêmicas envolvendo políticos, advogados, cien-

8 Modelo adotado, por exemplo, na Constituição federal brasileira de 1988 (art.195)9 Considerem-se, por exemplo, os investimentos dos Estados contemporâneos na luta anti-tabagista.

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tistas sociais, economistas e profissionais de saúde. Discute-se, especial-mente, a eficácia do argumento jurídico em relação aos direitos sociais eas externalidades que não podem ser internalizadas na avaliação da saú-de enquanto bem econômico. Entretanto, nos novos Estados e naquelesradicalmente reformados10 , assim como nas sociedades mais tradicionaise desenvolvidas, existe interesse inafastável no tratamento da saúde comodireito. De fato, a universalização do acesso às ações e serviços de saúde- componente essencial do direito à saúde - é tema da pauta de reivindi-cações populares e de fora científicos, tanto nos Estados Unidos da Amé-rica11 quanto na África do Sul12 .

Para que se possa compreender a argumentação atual, distinguindo asrazões de ambos os lados - por vezes antagônicos - da polêmica, é precisoexaminar o aparecimento e a evolução do conceito de direito à saúde.Muito já se escreveu a respeito da conceituação da saúde durante a his-tória da humanidade. Entretanto, o reconhecimento de que a saúde deuma população está relacionada às suas condições de vida e de que oscomportamentos humanos podem constituir-se em ameaça à saúde dopovo e, conseqüentemente, à segurança do Estado, presente já no come-ço do século XIX, fica claramente estabelecido ao término da chamada“IIª Guerra Mundial”. Sem dúvida, a experiência de uma guerra apenasvinte anos após a anterior, provocada, em grande parte, pelas mesmascausas que haviam originado a predecessora e, especialmente, com capa-cidade de destruição várias vezes multiplicada, forjou um consenso. Ca-rente de recursos econômicos, destruída sua crença na forma de organi-zação social, alijada de seus líderes, a sociedade que sobreviveu a 1944sentiu a necessidade ineludível de promover um novo pacto, personifica-do na Organização das Nações Unidas. Esse organismo incentivou a cri-ação de órgãos especiais destinados a promover a garantia de alguns di-reitos considerados essenciais aos homens. A saúde passou, então, a serobjeto da Organização Mundial de Saúde, que a considerou o primeiroprincípio básico para a “felicidade, as relações harmoniosas e a segurançade todos os povos”13 . No preâmbulo de sua Constituição, assinada em 26de julho de 1946, é apresentado o conceito de saúde adotado: “Saúde é o

10 Veja-se, por exemplo, a Constituição portuguesa de 1972 e a Constituição da República do Gabão de 1975.11 Freqüentemente referida nas reuniões anuais da American Public Health Association durante os últimos

decênios, foi concretizada no President’s Report to the American People, de outubro de 1993.12 Especialmente abordada durante as discussões da nova Bill of Rights sul-africana.13 Cf. Constituição da Organização Mundial de Saúde, adotada pela Conferência Internacional da Saúde,

realizada em New York de 19 a 22 de julho de 1946.

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estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a au-sência de doença”. Observa-se, portanto, o reconhecimento daessencialidade do equilíbrio interno e do homem com o ambiente (bem-estar físico, mental e social) para a conceituação da saúde, recuperandoa experiência predominante na história da humanidade, de que são re-flexos os trabalhos de Hipócrates, Paracelso e Engels, por exemplo.

O conceito de saúde acordado em 1946 não teve fácil aceitação. Diz-se que corresponde à definição de felicidade, que tal estado de completobem-estar é impossível de alcançar-se e que, além disso, não é operacional.Vários pesquisadores procuraram, então, enunciar de modo diferente oconceito de saúde. Assim, apenas como exemplo, para Alessandro Seppilli(apud Berlinguer, 1988, p. 34) saúde é “a condição harmoniosa de equilí-brio funcional, físico e psíquico do indivíduo integrado dinamicamenteno seu ambiente natural e social”; para John Last (1983) saúde é umestado de equilíbrio entre o ser humano e seu ambiente, permitindo ocompleto funcionamento da pessoa, e para Claude Dejours, convencidode que não existe o estado de completo bem-estar, a saúde deve ser en-tendida como a busca constante de tal estado (Dejours, 1986). Esses exem-plos parecem evidenciar que, embora se reconheça sua difíciloperacionalização, qualquer enunciado do conceito de saúde que ignorea necessidade do equilíbrio interno do homem e desse com o ambiente, odeformará irremediavelmente.

É curioso notar a diferença essencial das declarações de direitos doséculo dezoito, com seus antecedentes mais famosos (Magna Carta e aEnglish Bill of Rights). Com efeito, a justificativa para a declaração dedireitos das revoluções burguesas era a existência de direitos inerentes atodos os seres humanos e por isso mesmo inalienáveis, que poderiam sercoerentemente enumerados e, portanto, denominados “direitos humanos”.Não mais se tratava de concessões extorquidas do governante, o que re-velava disputa entre diferentes grupos de interesse. Assim, o respeito aosdireitos humanos tornava mais eficiente o governo da sociedade, evitan-do-se a discórdia excessiva e, conseqüentemente, a desagregação daunidade do poder (Aron, 1981, pp. 289-291). Esse individualismo perma-neceu a característica dominante nas sociedades reais ou históricas quesucederam àquelas diretamente forjadas nas revoluções burguesas. Nemmesmo o socialismo ou as chamadas “sociedades do bem-estar” elimina-ram a predominância do individualismo, uma vez que são indivíduos ostitulares dos direitos coletivos, tais como a saúde ou a educação. Justifi-ca-se a reivindicação encetada pelos marginalizados de seus direitos hu-

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manos frente à coletividade, porque os bens por ela acumulados deriva-ram do trabalho de todos os membros dessa coletividade. Os indivíduostêm, portanto, direitos de crédito em relação ao Estado - representantejurídico da sociedade política.

Embora o individualismo permanecesse como principal característicados direitos humanos enquanto direitos subjetivos, foram estabelecidosdiferentes papéis para o Estado, derivados da opção política pelo liberalis-mo ou pelo socialismo. De fato, para a doutrina liberal o poder do Estadodeve ser nitidamente limitado, havendo clara separação entre as funçõesdo Estado e o papel reservado aos indivíduos. Já o socialismo, impressio-nado com os efeitos sociais da implementação do Estado liberal - e doegoísmo capitalista que lhe serviu de corolário - magistralmente apresen-tados por Charles Dickens14 , por exemplo, reivindicava para o Estadopapel radicalmente oposto. Com efeito, os socialistas do século dezenovelutavam para que o Estado interviesse ativamente na sociedade para ter-minar com as injustiças econômicas e sociais. Entretanto, nem mesmo ossocialistas ignoraram o valor das liberdades clássicas, do respeito aos di-reitos individuais declarados na Constituição.

O mundo contemporâneo vive à procura do difícil equilíbrio entre taispapéis heterogêneos, hoje, indubitavelmente, exigência do Estado democrá-tico. Todavia, o processo de internacionalização da vida social acrescentoumais uma dificuldade à consecução dessa estabilidade: os direitos cujo sujei-to não é mais apenas um indivíduo ou um conjunto de indivíduos, mas, todoum grupo humano ou a própria humanidade. Bons exemplos de tais direitosde titulariedade coletiva são o direito ao desenvolvimento15 e o direito aomeio-ambiente sadio16 . Ora, a possibilidade de conflito entre os direitos deuma determinada pessoa e os direitos pertencentes ao conjunto da coletivi-dade pode ser imediatamente evidenciada e, talvez, os totalitarismos do sé-culo vinte, supostamente privilegiando os direitos de um povo e, nesse nome,ignorando os direitos dos indivíduos, sejam o melhor exemplo de uma dasfaces da moeda. A outra face pode ser retratada na destruição irreparáveldos recursos naturais necessários à sadia qualidade de vida humana decor-rente do predomínio do absoluto direito individual à propriedade.

14 Como em Oliver Twist.15 Objeto da Declaração sobre o direito ao desenvolvimento, adotada pela Assembléia Geral da ONU em 4 de

dezembro de 1986.16 Objeto da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, da ONU.

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Apesar do grande conteúdo político abrigado na expressão direitoshumanos - responsável pelo interesse primário dos filósofos - foi necessáriaa gradual positivação desses direitos para torná-los eficazes. Assim, não sepôde prescindir do estabelecimento do Estado de Direito, contemporâ-neo da adoção da Constituição - limite para todas as atividades - públicase privadas - que pudessem ser exercidas no âmbito de atuação do poderestatal17 . O Estado de Direito se consolida na doutrina jurídica clássicacomo “um Estado cujos atos são realizados em sua totalidade com base naordem jurídica” (Kelsen, 1959, p. 120). Para a efetivação dos direitos hu-manos, a gradual positivação acima referida envolveu, também, a criaçãode um sistema legal específico para a proteção desses direitos. A obviedadede tal afirmação decorre do reconhecimento do potencial conflituoso dosdireitos envolvidos, já mencionado. Portanto, apenas se poderá alcançarum equilíbrio entre os direitos humanos e o poder político quando todasas partes estejam submetidas a reais limitações, que, sem dúvida, serãoestabelecidas pela autoridade política. A partir das revoluções liberais doséculo dezoito, houve, então, uma introdução progressiva das declara-ções de direitos nos textos constitucionais ao ponto em que a teoria cons-titucional passou a considerar que “as Constituições dos ... Estados bur-gueses estão ... compostas de dois elementos: de um lado, os princípios doEstado de Direito para a proteção da liberdade burguesa frente ao Esta-do; de outro, o elemento político do qual se deduzirá a forma de governo... propriamente dita” (Schmitt, 1934, p. 47).

A aceitação da existência de direitos que pertencem a toda a huma-nidade ou a parte dela que não está contida em apenas um Estado fezcom que a lei que abriga os direitos humanos tivesse um caráter interna-cional. Contudo, não foi essa a origem das normas internacionais de di-reitos humanos no século vinte. Szabo (1984, p. 50) afirma que “o queconduziu finalmente à adoção ‘oficial’ de medidas tendentes a assegurara proteção internacional dos direitos humanos foi a quantidade de atro-cidades cometidas contra a humanidade pelos poderes fascistas durantea segunda guerra mundial”, referindo expressamente à declaração do pre-sidente Roosevelt18 que enumerava quatro liberdades básicas: liberdadede opinião e expressão, liberdade de culto, direito a ser libertado da misé-

17 Tal é a lição de Rousseau, no Contrato Social ( livro II, XII ), totalmente absorvida no processo de elaboraçãoe ratificação da primeira Constituição escrita: a Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787.Cf., especialmente, Hamilton, A., Madison, J., Jay, J. O Federalista ( artigo 27 )

18 Em 26 de janeiro de 1941

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ria e garantia de viver sem ameaças. Dessa forma, quando na conferênciade São Francisco, em 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas-ONU, ficou estabelecida a necessidade de redigir um documento sobreos direitos humanos que deveria expressar claramente todos os direitoshumanos, inclusive os direitos econômicos, sociais e culturais, e que sedeveria criar uma Comissão de direitos humanos como uma das principaisda nova Organização.

Em 10 de dezembro de 1948, a 3ª Assembléia geral da ONU adotou aDeclaração Universal dos Direitos do Homem, que não tem, no sistemalegal internacional, caráter vinculante, tendo apenas valor moral. Entre-tanto, apesar da força apenas moral, a Comissão de direitos humanos doConselho econômico e social reconheceu a necessidade de redigir umconvênio sobre direitos humanos, onde os Estados se comprometeriam arespeitar os direitos declarados, aumentando a força vinculante do con-teúdo daqueles direitos humanos. Em 1966, a Assembléia geral da ONUaprovou dois pactos de direitos humanos: o Pacto de direitos civis e polí-ticos e o Pacto de direitos econômicos, sociais e culturais, curiosamentecontrariando o estabelecido pela própria Assembléia geral em sua primei-ra sessão. Com efeito, havia-se decidido, em 1950, que “o desfrute dasliberdades civis e políticas e dos direitos econômicos, sociais e culturaissão interdependentes” e que “quando um indivíduo é privado de seusdireitos econômicos, sociais e culturais, ele não caracteriza uma pessoahumana, que é definida pela Declaração como o ideal do homem livre”19 .É importante observar que as convenções são, ainda, o modo mais eficazpara o estabelecimento dos direitos humanos na esfera internacional. Asaúde é indiretamente reconhecida como direito na Declaração Univer-sal de Direitos Humanos (ONU), onde é afirmada como decorrência dodireito a um nível de vida adequado, capaz de assegurá-la ao indivíduo eà sua família(art.25). Entretanto, o Pacto Internacional de Direitos Eco-nômicos, Sociais e Culturais, que entrou em vigor em 3 de janeiro de1976, dispõe que:

“1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem odireito de toda a pessoa ao desfrute do mais alto nível pos-sível de saúde física e mental.

19 Assembléia Geral, resolução 543, 6

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2. Entre as medidas que deverão adotar os Estados Partesno Pacto a fim de assegurar a plena efetividade desse direi-to, figuram as necessárias para:

A redução da natimortalidade e da mortalidade infantil, eo desenvolvimento saudável das crianças;

A melhoria em todos os seus aspectos da higiene do traba-lho e do meio ambiente;

A prevenção e o tratamento das enfermidades epidêmicas,endêmicas, profissionais e de outra natureza, e a luta con-tra elas;

A criação de condições que assegurem a todos assistênciamédica e serviços médicos em caso de enfermidade.”(art.12)

Pode-se verificar, portanto, que o conceito de saúde adotado nos docu-mentos internacionais relativos aos direitos humanos é o mais amplo possí-vel, abrangendo desde a típica face individual do direito subjetivo à assis-tência médica em caso de doença, até a constatação da necessidade dodireito do Estado ao desenvolvimento, personificada no direito a um nívelde vida adequado à manutenção da dignidade humana. Isso sem esquecerdo direito à igualdade, implícito nas ações de saúde de caráter coletivotendentes a prevenir e tratar epidemias ou endemias, por exemplo.

3. DO DIREITO DA SAÚDE AO CONCEITO DEDIREITO SANITÁRIO

Atualmente, a humanidade não hesita em afirmar - ainda que o mati-zando - que a saúde é um direito humano, e que, como os demais direitoshumanos, exige o envolvimento do Estado, ora para preservar as liberda-des fundamentais, principalmente por meio da eficiente atuação do Po-der Judiciário, ora para eliminar progressivamente as desigualdades, es-pecialmente planejando e implementando políticas públicas (veja-se, por

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exemplo, Comparato, 1989). Trata-se, então, da reivindicação do direitoà saúde. Por outro lado, tendo o Estado assumido inicialmente a presta-ção de cuidados de saúde como prestação de um serviço público, grandequantidade de textos legais rege a execução desse serviço. Isso porquetoda atividade administrativa do Estado moderno é realizada sob a lei.Com efeito, sendo a administração pública nesse Estado limitada pelosprincípios da supremacia do interesse público sobre o privado e pelaindisponibilidade dos interesses públicos e sendo o interesse público defi-nido pela própria sociedade, o administrador não pode trabalhar senãocom o conhecimento do interesse público que ele deve realizar. Ora, ointeresse público no moderno Estado de Direito, porque sob leis, é defini-do pela sociedade em forma de textos legislativos que representam a von-tade geral dessa sociedade. Assim, o administrador público deve agir gui-ado por uma série de leis orientadas para o perfazimento do interessepúblico que, no que respeita aos cuidados sanitários, delimitam os objeti-vos da atuação do Estado na área da saúde e os meios a serem emprega-dos para atingi-los.

Contudo, como já se viu, a saúde não tem apenas um aspecto indivi-dual e, portanto, não basta que sejam colocados à disposição das pessoastodos os meios para a promoção, proteção ou recuperação da saúde paraque o Estado responda satisfatoriamente à obrigação de garantir a saúdedo povo. Hoje, os Estados são, em sua maioria, forçados por disposiçãoconstitucional a proteger a saúde contra todos os perigos. Até mesmocontra a irresponsabilidade de seus próprios cidadãos. A saúde “pública”tem um caráter coletivo. O Estado contemporâneo controla o comporta-mento dos indivíduos no intuito de impedir-lhes qualquer ação nociva àsaúde de todo o povo. E o faz por meio de leis. É a própria sociedade, pordecorrência lógica, que define quais são esses comportamentos nocivos edetermina que eles sejam evitados, que seja punido o infrator e qual apena que deve ser-lhe aplicada. Tal atividade social é expressa em leisque a administração pública deve cumprir e fazer cumprir. São, também,textos legais que orientam a ação do Estado para a realização do desen-volvimento sócio-econômico e cultural. Conceitualmente, a sociedadedefine os rumos que devem ser seguidos para alcançá-lo, estabelecendonormas jurídicas cuja obediência é obrigatória para a administração pú-blica20 . E como a saúde depende também desse nível de desenvolvimen-

20 É o que afirma o artigo 174 da Constituição do Brasil, por exemplo: “... o Estado exercerá, na forma da lei, asfunções de ... e planejamento, sendo este determinante para o setor público ...”

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to, as disposições legais que lhe interessam estão contidas em tais planosde desenvolvimento do Estado.

O direito da saúde pública é, portanto, parte do que tradicionalmentese convencionou chamar de direito administrativo, ou uma aplicação es-pecializada do direito administrativo. É parte do direito administrativoporque refere sempre atuações estatais orientadas, o mais exaustivamen-te possível, pela própria sociedade, por meio do aparelho legislativo doEstado. Em termos práticos, ao direito da saúde pública assenta perfeita-mente o rótulo de direito administrativo porque se trata de disciplinanormativa que se caracteriza pelo preenchimento daqueles princípiosbásicos da supremacia do interesse público sobre o particular e daindisponibilidade do interesse público (cfe. Bandeira de Mello, 1980, p.5). Entretanto, a referência ao direito administrativo não é suficiente,uma vez que na aplicação peculiariza-se o direito da saúde pública: orasão as atuações decorrentes do poder de polícia, ora a prestação de umserviço público, ora, ainda, um imbricamento de ambos, como no caso davacinação obrigatória realizada pelos serviços de saúde pública, que vi-sam, principal ou exclusivamente, promover, proteger ou recuperar a saú-de do povo (ver Moreau, 1982).

O direito sanitário se interessa tanto pelo direito à saúde, enquantoreivindicação de um direito humano, quanto pelo direito da saúde públi-ca: um conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a promoção,prevenção e recuperação da saúde de todos os indivíduos que compõem opovo de determinado Estado, compreendendo, portanto, ambos os ramostradicionais em que se convencionou dividir o direito: o público e o pri-vado. Tem, também, abarcado a sistematização da preocupação ética vol-tada para os temas que interessam à saúde21 e, especialmente, o direitointernacional sanitário, que sistematiza o estudo da atuação de organis-mos internacionais que são fonte de normas sanitárias e dos diversos ór-gãos supra-nacionais destinados à implementação dos direitos humanos.Afirmar que o direito sanitário é uma disciplina nova não significa negara existência de legislação de interesse para a saúde desde os períodosmais remotos da história da humanidade ou a subsunção da saúde nosdireitos humanos, de reivindicação imemorial. Significa, porém, reco-nhecer que “desde o fim do século XIX e sobretudo nos últimos cinqüen-

21 Veja-se, por exemplo, a freqüente publicação de livros dedicados aos dois temas, como: Hall & Ellman, 1990e Bourgeault, 1990.

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ta anos, as relações de direito público no campo sanitário e social foramconsideravelmente ampliadas, multiplicadas, enriquecidas a ponto deproduzir esse “”precipitado”” que será ainda relativamente novo em 1990”(Moreau & Truchet, 1990, p. 6).

Há muito a Organização Mundial de Saúde se interessa pelo direito ea legislação sanitária, tanto no plano internacional como nos diferentesEstados. Todavia, o desenvolvimento contemporâneo desse interesse é,também, recente. Apenas em 1977, durante a 30ª Assembléia Mundialde Saúde, ficou resolvido que “reconhecendo que uma legislação sanitá-ria adaptada aos imperativos nacionais tende a proteger e melhorar asaúde do indivíduo e da coletividade” se “pede ao Diretor Geral quereforce o programa da OMS no campo da legislação sanitária para ajudaros Estados membros ... estude e coloque em prática os melhores meios dedifusão da informação legislativa nos Estados membros objetivando inspi-rar a formulação ou a revisão de textos de leis relativos à saúde”22 . TalResolução provocou a manifestação da 33ª Assembléia Mundial de Saú-de (1980) que, durante sua 17ª Sessão Plenária manifestou-se sobre o“rapport” do Diretor Geral, nos seguintes termos: “Notando que uma le-gislação sanitária apropriada é um elemento essencial dos sistemas deserviços de saúde e de higiene do meio ambiente”, “pede ao Diretor Ge-ral ... a elaboração de um programa detalhado de cooperação técnica ede transferência de informação em matéria de legislação sanitária”23 .

O Escritório Regional para a Europa, da Organização Mundial de Saú-de, criou, em conseqüência dessas recomendações, um Comitê Consulti-vo de Legislação Sanitária que, considerando que “para atuar a políticade saúde que deseja, um governo pode apoiar-se ... na legislação e regu-lamentação propriamente ditas”, decidiu realizar uma pesquisa sobre oensino do tema. O estudo tinha os seguintes objetivos: “rever e analisar asituação européia concernente aos programas e meios de formação emdireito e legislação sanitária; comparar a situação nos diferentes países daEuropa com relação às instituições concernentes e os conteúdos dos pro-gramas de ensino; indicar as tendências atuais na Europa quanto a esse

22 Word Health Assembly, 30th, Geneva, May, 1977. [Resolution] WHA 30.44. IN: World Health Organization.Handbook of resolutions and decisions of the World Health Assembly and the Executive Board: 1973-1984. Geneva, 1985. V.2

23 Word Health Assembly, 33rd , Geneva, May, 1980. [Resolution] WHA 33/17. IN: World Health Organization.Handbook of resolutions and decisions of the World Health Assembly and the Executive Board: 1973-1984. Geneva, 1985. V.2

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ensino; formular as recomendações para encorajar tal ensino e promoverseu reconhecimento e sua utilização ótima pelos Estados membros” (Auby,1984, pp. 5-7). Os resultados dessa pesquisa apontam a existência de inú-meros cursos, tanto em escolas de formação médica como jurídicas e mes-mo em institutos de nível superior agregados ou não às Universidades.

Em 1984, o direito sanitário era ensinado em todos os Estados da Comu-nidade Econômica Européia de então, com a única possibilidade de exce-ção do Luxemburgo (onde o Comitê não conseguiu a informação). Os maisamplos programas de pós-graduação na matéria eram encontrados na Itáliae na França. A Faculdade de Direito da Universitá degli studi di Bolognaorganizou em 1962 um curso de aperfeiçoamento em direito sanitário, que,em 1979, originou a Scuola de Perfezionamento in Diritto Sanitário, agre-gada àquela Faculdade de Direito. Esse curso, realizado em dois anos, comum mínimo de 110 horas, oferece um diploma de aperfeiçoamento em direi-to sanitário, para graduados em várias áreas (direito, ciência política, eco-nomia, medicina, veterinária, farmácia, engenharia, por exemplo), desejo-sos de receber formação especializada em direito sanitário. Na França, oCentro de Direito Sanitário, da Universidade de Bordeaux I, permite aostitulares de mestrado em direito público ou privado ou graduados em medi-cina, farmácia, odontologia, entre outros, conquistarem o Diploma de Es-tudos Especializados em Direito Sanitário que lhes dá o direito de, apósdois anos, obter o grau de doutor, pela redação de uma tese. O programatem a duração de um ano, com 145 horas.

Nas Américas, a Faculdade de Saúde Pública da Columbia University,nos Estados Unidos, uma das primeiras escolas de saúde pública no mun-do, mantém regularmente disciplinas como: legislação de saúde pública,aspectos legais da administração dos serviços de saúde, regulamentaçãodos cuidados de saúde e legislação e política populacional. Nelas sãoabordados, por exemplo, os seguintes temas: direitos humanos e aspectoslegais do aborto, da esterilização compulsória e do acesso à contracepção;análise jurídica do estado atual e das tendências observáveis da legisla-ção das organizações de prestação de cuidados de saúde. Também nosEstados Unidos da América, o relatório da “Comissão sobre Educaçãopara Administradores de Saúde” incluiu como o primeiro elemento cha-ve para a gerência administrativa em saúde e atenção médica o conheci-mento da “legislação que envolve todos os tipos de instituições, agênciase programas de saúde e atenção médica” (Kellog Foundation, 1974). E aLei 94-484, de 1976, conhecida como “The Health Profession EducationalAssistance Act”, orientou as iniciativas do governo federal para incluí-

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rem entre seus objetivos específicos “o apoio ao desenvolvimento ou ex-pansão do conteúdo ou linha mestra de programas especializados em po-lítica e legislação” (Hatch & Holland, 1980).

Mais recentemente, a Organização Panamericana de Saúde, escritó-rio regional para as Américas da Organização Mundial de Saúde, bus-cando contribuir para a reorganização e reorientação do setor saúde, pormeio da descentralização e da participação social, publicou o documento“Desenvolvimento e Fortalecimento dos Sistemas Locais de Saúde: aAdministração Estratégica”, onde afirma ser a legislação um dos meiospara que a saúde se converta em ingrediente fundamental do processo dedesenvolvimento. Assim, considera que “a legislação não é apenas o ins-trumento formal por meio do qual se deve re-estruturar o setor saúde afim de permitir seu adequado funcionamento, senão, também, o marcoadequado para gerar as condições de pleno desenvolvimento físico e men-tal das pessoas e para que elas se integrem no processo como atores ebeneficiários”, acrescentando que ela representa um meio para alcançaro desenvolvimento, global e interrelacionado, devendo, portanto, ser ana-lisada no contexto internacional, nacional e local (1992, p. 27).

No Brasil, deve-se reconhecer o pioneirismo de alguns estudiosos dodireito sanitário (veja-se Dias, 1979; Pasold, 1978) e do trabalho da-quele grupo de professores e profissionais das áreas do direito e da saú-de pública que introduziram seu estudo sistemático como disciplina doconhecimento na Universidade de São Paulo, a partir de 1987. As dife-rentes origens acadêmicas geraram as sessões em que se discutiu emprofundidade o conceito de saúde e o conceito de direito, apresenta-dos, respectivamente, por professores de saúde pública e direito. Taisencontros foram o germe das Reuniões Científicas que caracterizaramos primeiros anos do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitá-rio-CEPEDISA24 . A partir daí, definiu-se o que deveria ser o currículobásico para um curso de especialização25 , que – discutido com professo-res estrangeiros com experiência no ensino do direito sanitário - foi im-plantado regularmente na Universidade de São Paulo, a partir de 1989.

24 Órgão científico de apoio ao ensino, à divulgação, pesquisa e prestação de serviços à comunidade, tanto daFaculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, quanto da Faculdade de Direito da Univer-sidade de São Paulo (Estatuto do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário-CEPEDISA, art. 1º)

25 Introdução à Filosofia e à Sociologia do Direito Sanitário; Ética em Saúde; Meios de Controle em DireitoSanitário; Direito Internacional Sanitário; Direito Sanitário do Trabalho e da Previdência Social; DireitoPúblico Sanitário; Direito Penal Sanitário; Direito Civil Sanitário.

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A necessidade de institucionalização de grupos interdisciplinares fezcom que a Universidade de São Paulo, ao reformar seus Estatutos em1988, oferecesse abrigo aos Núcleos de Apoio, criados “com o objetivo dereunir especialistas de um ou mais órgãos e Unidades em torno de pro-gramas de pesquisa ou de pós-graduação de caráter interdisciplinar”26 .Por meio da primeira Resolução do Magnífico Reitor destinada à cria-ção de núcleos de apoio à pesquisa, foi criado o Núcleo de Pesquisas emDireito Sanitário (Nap-DISA)27 destinado a dar apoio à pesquisa emDireito Sanitário28 .

4. AUTONOMIA CIENTÍFICA DO DIREITOSANITÁRIO E SUA INTERAÇÃO COM OUTRASÁREAS DO CONHECIMENTO

Para que se possa discutir a eventual autonomia do direito sanitáriocomo ramo do conhecimento é necessário que se enfrente a enigmática eangustiante experiência contemporânea do direito e das leis. Com efeito,constata-se, inúmeras vezes, a existência de um conjunto de leis válidase que exercitam o poder de império, obrigando aos comportamentos queprescrevem, e que não guardam qualquer vinculação com o sentimentode justiça preponderante entre as pessoas submetidas a determinado sis-tema normativo. Talvez seja essa uma das razões a explicar a existênciade leis que – na linguagem popular brasileira – não pegam. E os estudio-sos do direito constroem, então, teorias para explicá-lo como um sistemafechado em si mesmo29 , permitindo que se continue cinicamente a expli-car o funcionamento do sistema jurídico no conforto proporcionado pelaabstração dos constrangimentos éticos e políticos que definem o direitode cada sociedade. Não se pode negar, contudo, a capacidade que têmessas teorias para realizar a tarefa a que se propõem. Entretanto, compre-ender o sistema jurídico responde apenas a um dos sentidos do termodireito, palavra analógica que designa três realidades: o sistema normativo,

26 Cf. Estatuto da Universidade de São Paulo, art.7º27 Cf. Resolução nº 3.658, de 27 de abril de 1990, do Magnífico Reitor da Universidade de São Paulo28 Regimento do Núcleo de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo, art. 2º29 É o caso, por exemplo, de uma corrente de teóricos do direito, originada na Alemanha na segunda metade do

século vinte, que tem como expoentes Niklas Luhmann e Gunther Teubner

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as permissões dadas por meio de normas jurídicas para a prática de atos (ochamado direito subjetivo) e a qualidade do que é justo30 .

Curiosamente, o sentido que primeiro se desenvolveu na civilizaçãoocidental é exatamente aquele para o qual os teóricos e profissionais dodireito vêm dedicando, historicamente, cada vez menos atenção: um idealde comportamento social, qualificado, então, como justo. De fato, para osgregos, o justo (o direito) significava o que era visto como igual, mas naRoma Antiga já se podiam identificar duas palavras para traduzir a mesmasituação: jus e derectum e - como para reforçar o caráter predominantemen-te prático daquela civilização - em pouco tempo o termo derectum se sobre-pôs ao jus. Afastavam-se, assim, os juristas romanos das teorias abstratassobre o justo em geral e construíam um modo operacional para examinar oque é justo. A preocupação com a identificação do direito com a justiçapassou a ser, então, interesse do filósofo do direito e, com a afirmação dopositivismo científico, eliminou-se mesmo do curriculum dos cursos jurídi-cos a disciplina filosofia do direito, em alguns Estados modernos31 . Isso nãofoi suficiente, contudo, para que se afastasse o desconforto que acometetoda a pessoa comum que deve definir o que seja o direito em uma dadasituação, uma vez que ele se pode examinar sob mais de um prisma, inclu-sive, sob a ótica de sua correspondência ao senso comum de justiça.

Talvez a melhor forma de tornar clara a implicação semântica, privilegi-ando-se o sentido dos direitos subjetivos, sejam os direitos humanos. Comefeito, na lição de Goffredo Telles Júnior, – sempre que assegurados emnormas jurídicas – os direitos humanos configuram permissões para a fruiçãodos bens a que a generalidade dos seres humanos atribui máximo valor.Ora, o elenco dos valores mais importantes para cada sociedade é histori-camente construído e comunga, em suas raízes, com o sentido imperantede justiça. Trate-se, portanto, de defender – no sistema jurídico vigente –a vida, a saúde ou a liberdade de reunião ou de associação, por exemplo,sempre se estará atuando um direito subjetivo absolutamente permeado devalores sociais. Esse sentido do direito é bastante explorado, hodiernamente,pela teoria da argumentação jurídica. Os profissionais do direito empregama argumentação jurídica para construir uma verdade ideal, aceita pelaspartes em conflito, fundando seu discurso persuasivo naqueles valores.

30 Entre outras, na excelente lição de Goffredo Telles Júnior em Iniciação na ciência do direito (São Paulo: Saraiva,2001)

31 É o caso da França, por exemplo (Garapon, 1995).

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As normas jurídicas podem ser examinadas, também, como objetos,uma ordenação a que as pessoas devem se sujeitar. Aqui, apesar de seremmuitas as fontes dessas normas, sobressai em importância – especialmentea partir do liberalismo político – a lei. Hoje é difícil compreender o verda-deiro culto à lei, que a humanidade já praticou. Apenas para ilustrar, éconveniente lembrar que na Grécia Antiga (século IV a.C.) havia umaação nominada (graphè paranomon) para punir aquele que tivesse propos-to uma lei à Assembléia, que aprovada e implementada se revelasse noci-va aos interesses da cidade (Ferreira Filho, 1968, p. 23). Para os revoluci-onários burgueses do final do século dezoito, a forma ideal de oposição aogoverno monárquico e absoluto era o estabelecimento da democracia,onde a vontade do povo estaria representada na lei. E como só é lei aquiloque interessa verdadeiramente à organização social e que é definido pelopovo, encontrando-se um mecanismo que impeça a instauração de qual-quer outra ordem que não a legal se estará resolvendo o desafio formula-do por Rousseau, ao iniciar o Contrato Social: “encontrar uma forma deassociação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associadocom toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, sóobedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto an-tes”32 . As revoluções burguesas procuraram essa fórmula no desenvolvi-mento da doutrina da separação de poderes, na afirmação da Constitui-ção como o mais importante documento político de um povo, na formula-ção da doutrina do Estado de Direito e na idéia moderna de democracia.Assim, o ensinamento da experiência – mostrando que a especializaçãono exercício de qualquer função implica mais eficiência33 – foi associadoà interdição formal de que “aquele que faz as leis as execute”34 e erigidoem verdadeiro dogma35 . É, igualmente, a origem revolucionária que per-mite compreender o grande valor que foi dado à forma – muitas vezes emprejuízo do próprio conteúdo – na elaboração da doutrina do Estado deDireito. Com efeito, aos líderes revolucionários bastava que se declaras-sem extintos os privilégios e instituída a igualdade perante a lei para quea burguesia vencedora fosse realmente livre. Isso porque os obstáculos até

32 Rousseau, J.J. Op. cit. Livro primeiro, cap. VI33 É a conclusão de Aristóteles em A política, Livro III, cap. XI; John Locke, no Segundo tratado sobre o governo,

XII, XIII e XIV; e Montesquieu, n’ O espírito das leis, VI, entre outros.34 Rousseau, J. J. Op.cit., livro terceiro, cap. IV35 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da revolução francesa de 1789, afirmava, no artigo 16:

“ Toda sociedade na qual a garantia de direitos não está assegurada, nem a separação dos poderesdeterminada, não tem Constituição”

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então postos ao exercício da liberdade burguesa decorriam dos privilégiosoutorgados à aristocracia e da insegurança dos direitos que tinham comoúnica fonte a vontade do soberano (por isso mesmo, dito absoluto) e nãoda falta de recursos materiais para tal exercício.

Instaurada a democracia liberal burguesa verificou-se – durante o sé-culo dezenove, no mundo ocidental – que apenas a garantia de igualdadeformal (perante a lei), característica do Estado de Direito, não atendia aoanseio de liberdade real de todos aqueles que haviam sido excluídos doprocesso de elaboração legislativa. De fato, já a primeira Constituição fran-cesa, ao estabelecer quem pode participar da feitura da lei, tanto compon-do o Parlamento como elegendo representantes para compor o Parlamento,excluiu inicialmente todas as mulheres e em seguida os homens que nãopossuíssem patrimônio ou renda superior a determinado valor36 . Desenvol-ve-se, então, novo período revolucionário, pois ficava claro que os assalari-ados da indústria nascente, por exemplo, embora formalmente iguais aosproprietários, perante a lei, não possuíam as mesmas condições materiais deexercício do direito à liberdade que seus patrões. Assim, as revoluções ope-rárias do final do século dezenove e começo do século vinte introduzem oadjetivo social para qualificar o Estado de Direito. Buscava-se corrigir adeformação do processo legislativo e, conseqüentemente, da idéia moder-na de democracia, causada pelo predomínio da forma. É importante notarque esses revolucionários continuaram a valorizar a igualdade formal comouma conquista fundamental, que deveria, entretanto, ser acrescida daspossibilidades de sua efetiva realização. Tratava-se, portanto, de reconhe-cer a existência de desigualdades materiais que inviabilizavam o gozo dosdireitos liberais e de responsabilizar o Estado pelo oferecimento – inicial-mente aos trabalhadores e, em seguida, a todos aqueles que necessitassem– daquelas condições que permitissem a igualdade real, de oportunidades.Caracterizam as conquistas desse período, a adoção do sufrágio universal37

(garantindo a todos o direito de participar no processo de elaboração dasleis, por meio da eleição de representantes), a inclusão de um capítulo nasConstituições garantindo direitos trabalhistas38 e a implementação do cha-

36 Constitution de 1791, Chapitre premier, Section II, Art.2 & Section III, Art.337 Introduzido na Constituição francesa de 1793, não foi praticado. Embora com menos restrições foi essa a

situação até 1919, na Inglaterra e 1920, nos Estados Unidos da América, com a admissão do voto feminino.38 Introduzido, pela primeira vez, na Constituição do México de 1917. Entretanto, com maior repercussão

doutrinária – porque buscou efetividade – assinale-se o Livro II da Constituição de Weimar (Constituiçãoalemã de 11 de agosto de 1919) dedicado aos “Direitos e deveres do cidadão alemão”

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mado “Estado do Bem Estar Social”, que presta serviços públicos para ga-rantir direitos39 , entre outras.

A experiência do Estado Social de Direito revelou, contudo, que aampliação da participação no processo legislativo, de modo a garantirque todos tomem parte na feitura da lei, não “assegurou a justiça socialnem a autêntica participação do povo no processo político” (Silva, 1989,p. 105). Verificou-se que a exigência de formalidade combinada com agrande ampliação das esferas de atuação do Estado, atingindo quase to-dos os setores da vida social, colocou em risco a democracia. Já não eraapenas a lei – fruto da atividade dos Parlamentos – que regulava a vidasocial, mas, cada vez mais essa função era realizada por atos normativosemanados pelo Poder Executivo. Observou-se, sobretudo, que a forma dalei afastou-a de seu conteúdo ético. A lei passou a atender a interesses degrupos, a partes da sociedade e não mais ao interesse público. Assim, opapel que os fundadores dos Estados Unidos da América reservaram parao Poder Judiciário (na determinação final da teoria da separação dos pode-res) de controlar a obediência à lei, que representava a vontade geral,tornou-se impossível de ser cumprido: ora exigia-se a estrita observânciada legalidade em casos onde a lei não mais abrigava a idéia de justiça,ora deixava-se enredar pelos vários documentos normativos que expres-savam interesses particulares, tornando aleatória a obediência ao princí-pio da legalidade. A lembrança da Alemanha nazista ou da Itália fascistaé suficiente para evidenciar que sem a “efetiva incorporação de todo opovo nos mecanismos de controle das decisões e a real participação detodos nos rendimentos da produção” (idem, ibidem) não se pode adequara idéia de democracia aos tempos de hoje.

Desse modo, o conceito de Estado Democrático de Direito reconhe-ce, respeita e incorpora as conquistas representadas pelo Estado de Di-reito e pelo Estado Social de Direito, mas soma à igual possibilidade departicipação na elaboração das normas gerais que devem reger a orga-nização social o controle de sua aplicação aos casos particulares. Trata-se, enfim, de instaurar a cidadania, onde o “cidadão é aquele que temuma parte legal na autoridade deliberativa e na autoridade judiciária”,como ensina Aristóteles40 . Idealmente, portanto, supera-se a angústia eresolve-se o enigma inicial, uma vez que as leis assim elaboradas e apli-

39 A expressão foi forjada na Inglaterra nos anos 1940.40 Aristóteles. Op.cit. Livro III, cap. I, § 8

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cadas se aproximam verdadeiramente do sentido do justo imperante emuma sociedade.

Já se verificou, também, que dada a complexidade do conceito desaúde, o estudo do direito sanitário envolve – necessariamente – seuexame sob várias óticas. É, então, a partir dessas exigências contemporâ-neas que se deve discutir a eventual autonomia do direito sanitário comoramo do conhecimento. Um exame, ainda que superficial da doutrinasobre a classificação dos chamados “ramos do direito”, revela que ela seaplica apenas ao direito compreendido como um objeto. É o sistema denormas jurídicas que admite sejam divididos seus componentes em diver-sas partes. Ora, todas as classificações dependem do interesse ou da ne-cessidade do estudioso e a elas não se aplica o qualificativo de falso ouverdadeiro, uma vez que são, somente, úteis ou inúteis. Tradicionalmen-te os estudiosos dos sistemas jurídicos consideraram útil sua divisão empartes bem discriminadas. A primeira divisão, sempre recordada, datados romanos, que o dividiram em direito público e privado (ver, entreoutros, Reale, 1976, pp. 335ss; Telles Jr., p. 231ss). Entretanto, os mesmosautores que argumentam com a conveniência de tal método para trataradequadamente seu objeto de estudo verificam o aparecimento de “ra-mos” que não são ou públicos ou privados, mas “baseados em normasparcialmente públicas e parcialmente privadas.”41 Identifica-se, assim,uma crítica séria à classificação proposta, uma vez que dirigida exata-mente à sua utilidade. A maior crítica à árvore do conhecimento huma-no foi trazida por Popper, no início dos anos sessenta do século vinte. Emuma conferência na universidade de Oxford, ele explicava que o cresci-mento do conhecimento humano tem uma estrutura extremamente dife-rente e que sendo obrigado a manter a metáfora da árvore, teria que“representar a árvore do conhecimento como que brotando de incontáveisraízes que crescem no ar em vez de embaixo e que, no fim de contas,tendem a unir-se num tronco comum” (Popper, 1975, p. 240). Pode-sedizer que essa teoria é ainda a que melhor explica o conhecimento huma-no, levando o professor Boaventura de Souza Santos, por exemplo, a afir-mar que “no paradigma emergente o conhecimento é total” (Santos, 1992).

Por outro lado, contemporânea à crítica de Popper é a conclusão deKuhn sobre a estrutura das revoluções científicas, que ele afirma aconte-

41 Essa observação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2000, p. 24) tratando do direito econômico é apenas umexemplo, entre vários outros que poderiam ser citados.. +-

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cerem quando os especialistas não podem mais ignorar as anomalias quecorrompem a tradição estabelecida pela prática científica, dando, assim,origem “a investigações extraordinárias que os conduzem finalmente aum novo conjunto de convicções” (Kuhn, 1983, p. 23). Um dos líderesdessas pesquisas que assinalam a mudança de paradigma é Pierre Bourdieu,que introduziu, em 1975, a noção de campo científico, ou seja o espaçorelativamente autônomo no qual se inserem os agentes e as instituiçõesque produzem, reproduzem ou difundem a ciência. Essa compreensão docampo científico permite que se supere a alternativa entre “ciência pura,totalmente livre de toda necessidade social e ciência aplicada, sujeita atodas as exigências político-econômicas” (Bourdieu, 1997). Ora, o direi-to sanitário representa, sem qualquer dúvida, uma evidência da mudan-ça de paradigma no campo do direito. Com efeito, para sua definiçãotanto é necessária a discussão filosófica ou sociológica que permite afir-mar a saúde como um direito (abarcando seus aspectos individuais, oscoletivos e, igualmente, aqueles difusos, derivados do desenvolvimentosocial), como é indispensável que se dominem os instrumentos adjetivosque possibilitam a realização efetiva do direito à saúde. Por isso, pode-seafirmar que o direito sanitário expressa um sub-campo do conhecimentocientífico – dotado de leis próprias, derivadas dos agentes e instituiçõesque o caracterizam – que facilita a superação da divisão (hoje inconveni-ente) entre ciência pura e aplicada.

5. DIREITO SANITÁRIO E O DIREITOREGULATÓRIO

Examinar a possível correspondência do direito sanitário ao direitoregulatório exige uma série de esclarecimentos iniciais, que se reportamaos diversos significados hodiernos dos termos regulação, regulador eregulatório em sua relação com o direito. Dada sua grande difusão, sendolargamente empregados nas ciências sociais, sobretudo, na economia, naadministração e no direito – configurando verdadeiramente um novoparadigma científico – é necessário que se atente, inicialmente, para aadvertência conhecida como a lei de Aristóteles, segundo a qual a ex-tensão de um termo é inversamente proporcional à sua compreensão. Assim,é conveniente uma rápida observação histórica de seu emprego. O con-ceito de regulação, no século dezoito, está ligado à técnica, expressandoum sistema de comando destinado a manter constante o valor de uma

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grandeza, quaisquer que sejam as perturbações que a possam fazer variar,como, por exemplo, o termostato. No século dezenove, ele se difunde pelafisiologia, significando os equilíbrios dinâmicos do corpo e assim, defi-nem-se seus traços essenciais: “manter um ambiente equilibrado; apesardas perturbações exteriores; graças a um conjunto de ajustamentos”(Chevallier, 1995). Seu uso só se dissemina nas ciências sociais, entretan-to, durante o século vinte, sob influência do desenvolvimento da ciber-nética, que implica sempre um mecanismo de autoregulação, permitindoaos sistemas organizados corrigir suas ações por meio das informações so-bre seus resultados recebidas do ambiente. É, então, a teoria dos sistemasque se introduzirá na teoria das organizações, na economia, na sociolo-gia, na ciência política e no direito.

O conceito de regulação, no direito, deve ser examinado sob duasóticas: visto de fora, o direito será considerado um meio de regulação doscomportamentos; internamente ao sistema (entendendo-se, portanto, odireito como um sistema), a regulação se refere aos mecanismos destina-dos a eliminar as contradições eventuais e a reforçar sua coerência. Pro-curando compreender quando se faz uso do termo regulação em direito,pode-se verificar o seu emprego em períodos de crise, para remediar oupropor uma solução para o disfuncionamento da ordem estabelecida, es-pecialmente quando os mecanismos corretores dessa ordem já não conse-guem resolve-los. Buscam-se, então, novos modos de regulação, desen-volvendo-se uma competição institucional para conquistar novas posi-ções de regulação, o que pode explicar o fato da “auto-proclamação docaráter regulador de alguns órgãos” (como sugere Austin, 1995). Ficaclaro, assim, que a grande popularização do termo regulação no direito ena ciência política revela uma inadequação geral dos fundamentos polí-tico-jurídicos do Estado moderno às necessidades jurídicas e políticas doEstado contemporâneo (nomeado, por alguns, Estado propulsivo).

Conforme se verificou acima, já a partir do século dezenove, com aimplementação do Estado do Bem-Estar Social, instaura-se um direitoessencialmente diferente daquele advogado pelos burgueses revolucio-nários: um direito público mais amplo, porém menos coator (direito dosserviços públicos); misturando o público e o privado; desigual (desprezan-do a igualdade formal em nome da igualdade material); comportandodireitos subjetivos ao recebimento de prestações; e cuja eficácia deve seravaliada (institucionaliza-se a avaliação da administração pública, quepermite sua fiscalização pelos parlamentos). Com a generalização do

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intervencionismo do Estado, que se serve do direito para orientar outrossistemas sociais (economia, educação, cultura, etc.) à conformidade como interesse geral e não às exigências do mercado, prevalece a idéia deregulamentar as políticas privadas, assinalando-lhes uma finalidade (épocaáurea do planejamento). O direito passa a ser, então, bastante detalhado(portarias e circulares destinadas ao público externo) e dirigido pela ad-ministração pública (as agências independentes, nos Estados Unidos, re-únem o poder legislativo e o executivo) e se caracteriza como um direitode princípios diretores, o que exige que seus aplicadores realizem umaescolha entre os diversos interesses presentes no caso concreto. Assim sepode afirmar que o planejamento introduz no direito uma lógicadiametralmente oposta àquela que caracteriza o direito moderno.

São os teóricos do direito como um sistema autopoiético que julgam ne-cessário identificar uma fase do desenvolvimento do direito – reflexivo – paradescrever a operação do sistema social corporativo, que assegura a mediaçãoentre o Estado e a sociedade civil, no Estado Democrático de Direito. Defato, se observa que a generalização dos mecanismos de democracia diretaexige grande dose de concertação, pois, incluindo os destinatários na forma-ção e na aplicação das regras, os programas compatibilizam os sistemas jurídi-co e regulado. O direito nesse período apresenta as seguintes características:pouca transparência (a negociação não se submete à publicidade do direitodo Estado e seleciona as pessoas ou grupos que dela participam); marcadasetorialização (regulamenta parcelas que interessam a determinados gruposem prejuízo do interesse de toda a sociedade); muita seletividade e desigual-dade (privilegia os grupos sociais organizados e os que têm interesses de curtoprazo); necessidade de uma disciplina para a elaboração e interpretação dasnormas (processos complexos de formação das normas: informação, audiênci-as e consultas públicas, além da complexidade científica dos temas a seremlegislados ou julgados)42 . É a esse tipo de Estado que assenta bem o rótulo deregulador, pois ele deve “definir as regras do jogo e harmonizar os comporta-mentos dos agentes econômicos e sociais” (Chevalier, 1996, p. 158).

Alguns autores chamam de estimulador o Estado contemporâneo, essen-cialmente implementador de políticas públicas. Tal denominação é bastanteatraente, pois seus instrumentos de governo são, sobretudo, a persuasão e ainformação – que orientam a auto-organização da sociedade – empregando

42 Os traços do direito em cada uma das fases apresentadas baseia-se, em grande parte na obra de Morand(1999).

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o constrangimento apenas para garantir os valores fundamentais da socieda-de e o respeito ao pactuado. Entretanto, trata-se de uma idealização que tempor função realçar a introdução de um quase-direito do Estado, que editarecomendações, faz acordos amigáveis, enuncia princípios desprovidos de forçadecisória, somente para satisfazer a opinião pública, uma vez que, sem dúvi-da, o Estado contemporâneo se baseia no emprego do direito, ainda que sereconheça a influência crescente dos mecanismos de persuasão em sua ação.

Desvendando-se o substrato ideológico da regulação (harmonia de in-teresses, racionalidade da organização social e necessidade de que existaum terceiro-árbitro, seja ele o Estado ou o mercado) e aceitando que asaúde pública não pode ser adequadamente protegida pela mediação domercado –conforme a experiência histórica demonstrou – deve-se identifi-car o direito sanitário com o direito regulatório. Entretanto, é indispensá-vel que se tenha claro que essa adjetivação nada mais faz que denominartodo o direito do Estado contemporâneo. Assim, a regulação que caracteri-za o direito no Brasil de hoje, pode ser encontrada, igualmente, no sistemade saúde brasileiro. De fato, ele envolve a operação de autarquias que seauto-apresentam como “agências reguladoras”43 ; sua normatização é es-sencialmente derivada dos mecanismos de democracia direta, servindo comoexemplo ideal dessa afirmação a Norma Operacional da Assistência à Saú-de (NOAS-SUS 01/2001), fruto da colaboração do Conselho Nacional deSecretários Estaduais de Saúde CONASS, do Conselho Nacional de Se-cretários Municipais de Saúde CONASEMS e do governo e aprovada naComissão Intergestores Tripartite CIT e no Conselho Nacional de Saúde; aconsulta pública faz parte do cotidiano da ANS e da ANVISA; e as confe-rências de saúde servem de palco para as reivindicações específicas decada grupo de interesses. Portanto, apesar de não se constituir numa carac-terística peculiar ao direito sanitário, pode-se concluir que o direito sanitá-rio corresponde ao direito regulatório do Estado contemporâneo.

6. ADVOCACIA EM SAÚDE

A instauração do Estado Democrático de Direito, com a implementaçãodos mecanismos de democracia direta, é concomitante à disseminação

43 Agência Nacional de Saúde Suplementar (criada pela Lei federal n° 9.961/00) e Agência Nacional deVigilância Sanitária (criada pela Lei federal n° 9.782/99)

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das chamadas organizações não governamentais. Com efeito, a possibili-dade de participar efetivamente das decisões sobre a vida da cidade esti-mulou a organização de inúmeros grupos de interesse, especialmente noschamados países em desenvolvimento, que haviam recentemente con-quistado sua re-democratização. Entretanto, não se pode negar que oativo envolvimento das organizações sociais nas lutas contra as ditadurasmilitares foi um dos fatores determinantes da queda desses regimes. As-sim, é bastante difícil precisar a influência exercida por modelos estran-geiros sobre tais grupos de interesse. O fato é que, com a implantaçãogeneralizada do direito que acima se denominou reflexivo e a conse-qüente internacionalização das demandas sociais, as organizações nãogovernamentais passam a desempenhar uma função essencial à afirmaçãoe à garantia dos direitos.

No seio do movimento de retorno ao direito das duas últimas décadasdo século vinte, verifica-se um alargamento crescente do campo jurídico,pois, o direito é visto como uma garantia e uma proteção, que dá seguran-ça aos relacionamentos sociais. Assim, parece lógico que as organizaçõessociais buscassem inicialmente a afirmação legal de direitos e, em segui-da, sua efetivação, exercendo a advocacia, como diziam seus congêneresestadunidenses, com vinte ou trinta anos de antecedência. Ali, a ativi-dade de qualquer grupo de interesse visando influir na definição ou naimplementação de uma política pública é qualificada de advocacy ou lobby,conforme o nível da renda tributável dessa organização. Fica claro, por-tanto, que uma organização não governamental que advoga uma causatem por objetivo influir para que determinado comportamento seja reco-nhecido e garantido como um direito. E grande número desses grupossociais – com atuação local, regional, nacional ou internacional – têmdefinido entre seus objetivos a realização da advocacia, termo que temfigurado nas resoluções dos últimos grandes encontros de tais organiza-ções, realizados paralelamente às Conferências das Nações Unidas44 .

44 Apenas para exemplificar, informa o sr. Mark Malloch Brown (administrador do UNDP), que na Conferência doRio (1.992) foi determinado que o UNDP assumisse a liderança do desenvolvimento de capacidades nos paísesem desenvolvimento e que durante os anos 1990, o UNDP ajudou mais de 160 países a ligar sua preocupaçãoambiental às suas necessidades de desenvolvimento sustentável, governança democrática e eliminação dapobreza. Ele informa, também, que sendo uma respeitada fonte de pareceres baseados no conhecimento e umadvogado para uma economia global mais inclusiva, o UNDP é a principal organização do sistema ONU voltadapara o desenvolvimento de capacidades. A função de sua agência em relação à próxima Conferência sobre oDesenvolvimento Sustentável, que se realizará em Johannesburg de 26 de agosto a 4 de setembro de 2.002, é decombinar a advocacia com os serviços de desenvolvimento de capacidades e de informação estratégica paraajudar os países em desenvolvimento na implementação do desenvolvimento sustentável (www.undp.org.wssd)

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Em saúde, o exercício da advocacia foi recomendado expressamente pelaAssociação Americana de Pediatria, em 1975. Esse documento45 , além deapresentar uma primeira conceituação, descreve as principais ações quedevem caracterizar a advocacia em favor da criança. No Brasil, a Revista deSaúde Pública publicou um artigo, em 1996, no qual se pretende sistemati-zar as características que permitem a definição do termo: a existência deum direito ainda não-positivado ou a ineficácia de um direito legalmentereconhecido, seja por falta de regulamentação ou por falta de execuçãomaterial da prestação prevista, ainda que devida à existência de conflitosculturais; a viabilidade ética da reivindicação desse direito; e o objetivo deadvogá-lo, com todas as conseqüências dele derivadas, tais como a previ-são dos meios para apurar o ambiente político e as razões técnicas envolvi-das na disputa, para adequar a defesa às esferas de atuação necessárias(legislativa, administrativa, judiciária ou cultural) e, principalmente, parapermitir a construção de uma sólida argumentação (Dallari, 1996).

Quando se considera a grande quantidade de ações e serviçossubsumida na expressão direito sanitário e o alcance da advocacia em saú-de, fica evidente o amplo campo de intersecção desses saberes. De fato, omesmo movimento que permitiu, no Brasil, o reconhecimento expressoda saúde como direito de todos, criou vários mecanismos constitucionaisque viabilizam e mesmo estimulam o exercício da advocacia em saúde.Assim, a Constituição federal afirmou que todas as normas que definemdireitos e garantias individuais têm aplicação imediata (C.F.art.5º,§ 1º),implicando, inclusive, a possibilidade de ação especial junto ao SupremoTribunal Federal quando não houver aplicação de qualquer preceito le-gal cujo conteúdo ajude a definir o direito a saúde, em qualquer esferade governo (C.F. art.102,§1°). Para operacionalizar a participação popu-lar na gestão do Estado, previu-se que a capacidade legislativa pertenceaos representantes eleitos e a quem os elegeu, que pode propor projetosde lei (C.F.art.61,§2º), participar de audiências para debatê-los(C.F.art.58,§2º,II), referendar uma lei ou se manifestar - em plebiscito -sobre assuntos considerados relevantes pelo Congresso Nacional(C.F.art.49,XV). Do mesmo modo, o povo organizado em confederaçãosindical ou entidade de classe ou pertencendo a partido político podepedir a retirada do mundo jurídico de uma lei que contrarie o que ficouestabelecido na Constituição (C.F.art.103,VIII e IX).

45 Khan, A. J.; Kamerman, S. B.; Mac, G.; Brenda, G. Child Advocacy: report of a national baseline study.(DITEW publication N.O. (OCD) 73-18).p. 7-95

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Também favorece a advocacia em saúde o funcionamento regular dopoder legislativo, representante tradicional do povo nas democracias li-berais burguesas, que - por meio dos Tribunais de Contas - mantêm umaligação direta com o povo, pois foi legitimada a capacidade do cidadão,dos partidos políticos, das associações e dos sindicatos para, fiscalizando acontabilidade, os financiamentos, o orçamento das entidades administra-tivas, denunciarem irregularidades aos Tribunais de Contas (C.F.art.74,§2º). Além disso, é oportuno lembrar a importância da participação dosparlamentares, não só nos parlamentos nacionais, como – de especial in-teresse para a advocacia em saúde – nas Assembléias Legislativas estadu-ais e nas Câmaras de Vereadores. Particularmente porque o tratamentosimétrico dispensado à totalidade dos Municípios e Estados-membros daFederação, supondo a homogeneidade deles, faz com que a distribuiçãoconstitucional de competências e, portanto, de responsabilidades, quetrata igualmente entes políticos, cuja desigualdade de condições sócio-culturais e econômicas é óbvia, e dificulta o emprego de instrumentos,em princípio, eficazes. Portanto, é necessário que se reafirme a importân-cia dos legislativos regionais e locais e a possibilidade que detêm de ade-quar os mecanismos de controle social à realidade para que sirvam efeti-vamente como instrumentos de garantia de direitos.

Os constituintes criaram também mecanismos de participação diretana Administração Pública, instituindo órgãos populares com funções dedireção administrativa, como é o caso da participação popular no sistemade saúde (C.F.art.198,III) ou da subordinação de todo o planejamento daatuação estatal no Município a cooperação das associações (C.F.art.29,X).As Conferências de Saúde são “instâncias colegiadas...(com)...a Repre-sentação dos vários segmentos sociais, para avaliar e propor as diretrizespara a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes” (Leinº 8 142 art.1º). Os Conselhos de Saúde são o outro mecanismo previstopara assegurar o cumprimento do mesmo mandamento constitucional (par-ticipação da comunidade na organização do sistema). Eles têm caráterpermanente e deliberativo e são órgãos colegiados integrados por repre-sentantes do governo, dos prestadores de serviço, dos profissionais de saú-de e dos usuários. Devem atuar na formulação de estratégias e no contro-le da execução da política de saúde - inclusive nos aspectos econômicose financeiros - da esfera política correspondente e suas decisões serãohomologadas pelo chefe do Poder Executivo nessa esfera (Lei nº 8 142art.1º, §5º). Facilita, igualmente, a realização da advocacia em saúde adefinição como crime de responsabilidade do Presidente da República

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dos atos que atentem contra o “exercício dos direitos políticos, individu-ais e sociais” (C.F.art.85,III).

O enorme alargamento das possibilidades de acesso ao Judiciário éoutro mecanismo que facilita e estimula a advocacia em saúde. Assim, deum lado, para proteger direito desrespeitado por autoridade pública ouassemelhados previu-se o mandado de segurança, que pode ser impetradopelo indivíduo ofendido ou por partido político, organização sindical, en-tidade de classe ou associação na defesa de seus membros ou associados(C.F.art.5º,LXIX e LXX); e para garantir o acesso à informação e o esta-belecimento de sua veracidade permitiu-se apenas ao interessado o usodo habeas data (C.F.art.5º,LXXII). Só o indivíduo é, também, legitimadopara propor ação que vise anular ato lesivo ao patrimônio publico ampla-mente considerado (C.F.art.5º,LXXIII). O mandado de injunção poderiaser outro instrumento de grande utilidade para os esforços da advocaciaem saúde, pois permitiria que qualquer pessoa pudesse pedir que o juizfizesse valer o direito criado pelo constituinte e não regulamentado pelolegislador ou nem aplicado pelo administrador (C.F.art.5º,LXXI). Consi-derando que as associações também estariam legitimadas para utilizar talinstrumento, é fácil imaginar sua utilidade. Entretanto, interpretação dadaa esse dispositivo pelo Supremo Tribunal Federal46 terminou por anulá-lo.

Por outro lado, foram claramente definidas as funções do órgão especi-almente voltado para “a defesa da ordem jurídica, do regime democráti-co e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” (C.F.art.127 a 130).Trata-se do Ministério Publico que, junto a qualquer Juízo, é o advogadodo povo na defesa dos direitos assegurados na Constituição. Ele é, igual-mente, um investigador privilegiado, uma vez que ao Ministério Publicoé garantido o acesso às informações necessárias ao exercício de suas fun-ções, mesmo quando elas estejam sob a guarda da Administração. E foi,também, instituída a Defensoria Pública para a “orientação jurídica e adefesa, em todos os graus dos necessitados” (C.F.art.134). Especialmenteem virtude da expressão constitucional “relevância pública”, o Ministé-rio Público revela-se um interlocutor privilegiado para o exercício da ad-vocacia em saúde. Com efeito, em 4 de outubro de 1991 algumas das maisexpressivas figuras do meio jurídico nacional assinaram um documento

46 Conforme o voto vencedor do Ministro Relator Moreira Alves, que – em síntese – afirma não deter oJudiciário poder legislativo, devendo-se, portanto, entender que a concessão do mandado de injunçãoimplica apenas uma ordem ou recomendação dirigida à autoridade competente para que produza a normafaltante.

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externando seu entendimento da expressão “relevância pública”, adota-da na Constituição da República Federativa do Brasil em 1988. Eminen-tes professores de Direito, dirigentes das Procuradorias da República e daJustiça do Estado de São Paulo e da Associação dos Magistrados Brasilei-ros, juizes federais, desembargadores, procuradores da República e pro-motores públicos concordaram que “A correta interpretação do artigo 196do texto constitucional implica o entendimento de ações e serviços desaúde como o conjunto de medidas dirigidas ao enfrentamento das doen-ças e suas seqüelas, através da atenção médica preventiva e curativa,bem como de seus determinantes e condicionantes de ordem econômicae social.”. E que tem o Ministério Publico “a função institucional de zelarpelos serviços de relevância pública, dentre os quais as ações e serviçosde saúde, adotando as medidas necessárias para sua efetiva Prestação,inclusive em face de omissão do Poder Público.”(Dallari, 1992).

Verifica-se, portanto, examinando apenas o campo restrito daformalização constitucional que já ocorreu no Brasil o reconhecimentoda saúde como um direito (C. F. art.6°), direcionando as ações de advoca-cia em saúde para a busca de sua eficácia, existindo vários mecanismoscapazes de viabilizar tal reivindicação junto ao Poder Legislativo e juntoà Administração Pública e mesmo no Judiciário. Entretanto, as mudan-ças sociais não derivam apenas da criação constitucional dos mecanismosque as possibilitem, mas, principalmente, do uso de tais instrumentos. Acapacitação das organizações sociais para exercerem com competênciasuas funções de advogados da saúde pública e o efetivo envolvimento doMinistério Público na luta pelo respeito aos direitos assegurados na Cons-tituição podem conduzir à democracia, instaurando efetivamente o Esta-do Democrático de Direito no Brasil.

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É o recurso especial um recursoextraordinário?

Is the Special Recourse an Extraordinary Recourse?

AIRTON JOSÉ SOTT

Mestre e doutor pela PUC – SP. Professor da ULBRA – CANOAS – RS.

RESUMO

Este artigo procura demonstrar que o recurso especial não pode ser classificadocomo recurso extraordinário, porque a classificação aceita em doutrina e ajurisprudência entre recursos desta natureza e recursos ordinários não encontraamparo em nosso ordenamento jurídico.Palavras-chaves : Processo Civil, Recursos, Recurso Especial.

ABSTRACT

This article tries to demonstrate that the special recourse cannot be classified asan extraordinary recourse, because the accepted classification in the doctrineand jurisprudence on the relation between such recourses does not find supportin Brazilian juridical order.Key words: Civil Process, Recourses, Special Recourse.

Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.293-54

ESCLARECIMENTO. O presente artigo foi retirado de parte do item sete da nossa tese de doutorado – “OJuízo de Admissibilidade do Recurso Especial” – defendida junto a Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo PUC – SP, defendida em 2.000. Sob orientação da à professora Dr.ª Thereza Celina Diniz deArruda Alvim. O presente texto representa pesquisa da época, mas parece ser atual e de grande importân-cia a compreensão do recurso especial

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Grande parte da doutrina nacional classifica os recursos em ordiná-rios e extraordinários. Esta classificação tem origem na Europa,1 -2 naqual se fala em Corte de Cassação e/ou Corte de Revisão para julgartais recursos.3

Na Itália, por exemplo, dependendo do momento em que o recurso éinterposto, ele é considerado ordinário ou extraordinário. Se interpostodurante o itinerário da relação processual, ele será ordinário, ou seja,mezzi ordinari; depois de transitada em julgada a sentença será extraordi-nário, ou seja, mezzi straordinari.4

O mesmo ocorre em Portugal, conforme o Código de Processo Civilportuguês, com as alterações introduzidas pelos decretos-leis nºs 329-A/95 e 180/96, prescreve o artigo 656.º “Espécies de recursos 1 – Asdecisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos. 2- Osrecursos são ordinários ou extraordinários; são ordinários a apelação,a revista e o agravo; são extraordinários a revisão e a oposição deterceiro.” Mais adiante, no que diz a respeito da Revisão, o artigo771.º prescreve: “A decisão transitada em julgado só pode ser objetode revisão nos seguintes casos:...”; já no que tange à oposicão deterceiro, o artigo 778.º prescreve “Fundamento do recurso 1 – Quando

1 Nesse sentido, Ovídio A. Baptista da Silva (1998, p. 411/412), “esta é uma classificação freqüente tanto na doutrinabrasileira quanto na lição dos processualistas europeus. Os critérios seguidos pelos sistemas jurídicos europeus,no entanto, não correspondem, quanto a esta questão, aos aceitos pelo direito brasileiro. Para determinadossistemas europeus – como é o caso do direito italiano e português -, são ordinários todos os recursos quecorrespondam a meios de impugnação formulados na mesma relação processual, capazes de prolongar a pendên-cia da causa evitando a formação da coisa julgada; enquanto consideram-se extraordinários os recursos interpos-tos contra uma sentença já trânsita em jugado, (...)Tendo em vista o conceito de recurso que acaba de ser exposto,consagrada pelo direito brasileiro, seríamos forçados a admitir que, para nós, todos os recursos seriam ordinários,no sentido em que os definem os sistemas jurídicos europeus, uma vez que não consideramos como recursostodos os meios autônomos de impugnação, como a ação rescisória e os embargos de terceiro que poderiam serassimilados a essas formas de ataque às sentenças existentes naqueles sistemas processuais.”

2 Ver por todos José Carlos Barbosa Moreira, 1998, p. 251.3 Alerta Alfredo Buzaid: “os modelos europeus eram a Côrte de Cassação e o Tribunal de Revisão. Êste foi

adotado pela Alemanha e Portugal; aquêle, pela França e Itália. A revisão alemã se distingue dacassação do tipo francês. Nesta se reexaminam as questões jurídicas contidas na sentença; naquela,pelo menos quando se trata de violação de direito material, examina-se tôda a sentença. A Côrte deCassação sòmente pode anular a sentença; o Tribunal de Revisão desce ao mérito e julga a controvérsia.O objeto da revisão é a aplicação da norma jurídica, tal como consta da sentença; os fatos consideradosprovados pelo Tribunal de Apelação vinculam o Tribunal de Revisão, salvo se aquêle, na apreciação dosmesmos, infringiu a lei.” (1956, p. 182).

4 Sobre este assunto ver José Carlos Barbosa Moreira, 1998, p. 251 e 252, com indicação de farta bibliografiaalienígena.

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o litígio assente sobre um acto simulado das partes e o tribunal nãotenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 665º, por se não terapercebido da fraude, pode a decisão final, depois do trânsito em jul-gado, ser impugnada mediante recurso de oposição do terceiro quecom ela tenha sido prejudicado”.

Releva notar, como deflui da verificação das legislações alienígenasreferidas, que a classificação tem como referência essencial o trânsito ounão em julgado da sentença.5 -6 -7

Na doutrina nacional, outro é o critério normalmente aceito paraa classificação dos recursos em ordinário e extraordinário. SegundoSergio Bermudes, “os primeiros têm como objeto próximo a proteçãodo direito subjetivo (apelação, agravo, embargos). Os últimos visama proteger o direito objetivo (recurso extraordinário, embargos de

5 José Carlos Barbosa Moreira (1998, pp. 252/3) esclarece que “a distinção entre recursos ordinários erecursos extraordinários, a que alude a parte final do art. 467, é nítida e importante em alguns sistemasjurídicos: por exemplo, ,no português, onde à vista de texto expresso (Código de Processo Civil, art.677), os recursos chamados extraordinários (revisão e oposição de terceiro) se diferenciam com toda aclareza dos ordinários pelo fato de que a interponibilidade de qualquer destes últimos impede otrânsito em julgado, ao passo que a decisão já se considera passada em julgado mesmo que aindasuscetível de impugnação por algum dos primeiros. Também na Itália costuma-se falar-se em mezziordinari e mezzi straordinari para designar, respectivamente, os remédios que obstam ao trânsito emjulgado e aqueles que, ao contrário, o pressupõem. Expressões equivalentes, com o mesmo sentido,usam a doutrina espanhola e a suíça.” E arremata o citado autor: “diversa é a sistemática doordenamento brasileiro, no qual a mencionada distinção não tem relevância teórica e nem prática.Merece ela, em nossa opinião, ser arquivada para todo e sempre, além do mais, pelos equívocos queé capaz de gerar, e de fato tem gerado, mercê da constante e notável flutuação dos critérios doutri-nariamente sugeridos para fundá-la. A rigor, não existe entre nós uma classe de recursos que se possaaplicar, segundo critério preciso do ponto de vista científico e útil ao angulo prático, a denominaçãogenérica de extraordinários. Há, sim, um recurso a que (sem qualquer preocupação de ordem dogmática)se acertou de dar esse nome, assim como há outro (a rigor, um conjunto heterogêneo de figurasrecursais) que a vigente Carta Federal rotula de ordinário (arts. 102, nº II, e 105, nº II).”

6 Nesse sentido, também Roberto Carvalho de Souza, concordando com José Carlos Barbosa Moreira,assevera, “de qualquer sorte, e naquilo que interessa ao tema agora desenvolvido, é possível asseverarque o recurso especial, sucedâneo do extraordininário, é, como este, um recurso ordinário.” RecursoEspecial, p. 45.

7 João Bonumá lecionava, “entre outras classifições dos recursos está a que os divide em ordinários e extraor-dinários, divisão adotada, às vezes, pelas legislações, mas cujos característicos diferenciais são imprecisose variam segundo o ponto de vista em que se coloca o estudioso;...” (1946, p.21).

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divergência) e só reflexamente, secundariamente, o direito da par-te.”8 -9 -10 -11 -12

Entendemos, entretanto, seguindo a lição de José Afonso da Silva eBarbosa Moreira, entre outros, que esta classificação em recurso ordiná-rio e extraordinário carece de utilidade prática e de cientificidade,13 -14 -

8 Comentários ao Código de Processo Civil Vol. 7, p. 34.9 Lopes da Costa (p. 256/257), referindo-se ao recurso extraordinário, mas que aproveita neste particular ao

recurso especial, “o Recurso extraordinário é, sem dúvida, um recurso processual, pois que por êle a partepode obter situação mais favoravel ao que aquela que lhe houver sido atribuida pela sentença recorrida.”Entretanto conclui, “este resultado, porém, é indiretamente alcançado, porque a finalidade do recurso é“manter a autoridade e a unidade das leis nacionais”.”

10 Athos Gusmão Carneiro (1998, p. 92/93) acentua que “os recursos, como curial, podem ser classificados erecursos comuns e recursos extraordinários. Sem maior análise doutrinária, poder-se-á dizer que os recursoscomuns respondem imediatamente ao interesse do litigante vencido em ver reformada a decisão que odesfavoreceu; como regra geral, assim, fundamental para a admissão do recurso é apenas o fato da sucumbência,em determinados casos exigindo-se um plus, como, v.g., o da existência de voto divergente como pressupostoao cabimento dos embargos infringentes do julgado oponíveis contra acórdão.(...) Já o recurso extraordinário,no direito brasileiro, é manifestado como recurso propriamente dito (interposto, portanto, no mesmo processo) efundado imediatamente no interesse de ordem pública em ver prevalecer a autoridade e a exata aplicação daConstituição e da lei federal. Tem, pois, um caráter político, como observou Enrique Vescovi.”

11 João Bonumá, ao lecionar, preso à função do recurso extraordinário, chega a exagerar ao afirmar que: “decorreisso de sua finalidade processual. Ao contrário da apelação e dos embargos, que devolvem ao juízo ad quemo reexame da relação litigiosa, tutelando, assim, o direito da parte e colimando uma melhor e mais exataaplicação do direito aos fatos da demanda —, o recurso extraordinário destina-se a assegurar a unidade dodireito nacional e a restaurar o império da lei, sem se preocupar com os interêsses particulares dos litigantes.”E conclui, “o recurso extraordinário, como o writ of error americano, a cassação e a revista, pertence àcategoria dos remédios processuais cuja finalidade última é resguardar o direito em tese e não o direito emhipótese.” (1946, p. 174.) Ora, quem fala em finalidade última, reconhece que existe outra, e portanto écontraditório com a afirmação de que esse recurso não se preocupa com os interesses das partes.

12 Jorge Americano (1993, p. 118/119), enfaticamente, conclui, “do exposto, afasta-se a possibilidade de consi-derar o Supremo Tribunal Federal como uma terceira instância constituida pelo recurso extraordinário.Não podendo apreciar a causa sob a feição do direito da parte, do direito subjetivo, mas só sob a feiçãoobjetiva, norteada pelo princípio da ordem pública, da unidade do direito nacional, o Supremo TribunalFederal, no recurso extraordinário, funciona politicamente na defesa das instituições, embora, resolvendoentre partes, dentro do processo, possa indiretamente afetar ao direito subjetivo dos litigantes.”

13 José Afonso da Silva esclarece, “com o nosso dito extraordinário se verifica o mesmo que sucede com osrecursos ordinários, ou meios de gravame. O Supremo Tribunal, acolhendo-o, julga a causa, decide a lide,que viera do juízo recorrido, na mesma relação processual. Insistimos nesse ponto, porque se tem tirado,do equívoco do seu nome, conseqüências, que a sua natureza de recurso ordinário não autoriza,...” earremata, “em conclusão: qualquer outra classificação dos recursos ordinários e extraordinários não temfundamento, dentro do Direito positivo brasileiro, nem na doutrina, porque ilógica.” (1963, p. 97).

14 José Carlos Barbosa Moreira (1998, p. 253) elucida que “as peculiaridades do chamado recurso extraordinário nãobastam para servir de base a uma classificação científica ou praticamente valiosa . À semelhança dos outros, orecurso extraordinário obsta, quando admissível, ao trânsito em julgado da decisão, consoante resulta dadisposição expressa do próprio art. 467. É desprovido de efeito suspensivo (arts. 497, 1ª parte, e 542, § 2º), masessa característica também se depara, v.g., na apelação interponível contra qualquer das sentenças arroladas noart. 520, 2ª parte, nºs I a VI. Nem mesmo a circunstância de interpor-se para o Supremo Tribunal Federalsingulariza o recurso extraordinário: feita abstração de recursos admissíveis contra acórdãos já proferidos poraquele órgão, era ainda para ele que se interpunham, em certos casos, no regime anterior, a apelação e o agravode instrumento contra decisões de juízos inferiores, e hoje o recurso batizado de... ordinário pela própriaConstituição (art. 102, nº II).”

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15 -16 uma vez que, se o interesse imediato fosse a proteção do direitoobjetivo, estaríamos diante de um interesse quase que exclusivamentepúblico, e, como tal, não poderia ficar ao talante da parte interpor ou nãoo recurso, ou não só ao seu talante.17 Pois, como observa Walter J. Habs-cheid, “... quando o escopo do processo civil é a proteção dos direitos priva-dos subjetivos, deve-se fazer prevalecer o princípio dispositivo. Mas se, aoreverso, estão no processo interesses públicos, o Estado deve tomar a inici-ativa diretamente, preordenadamente à abertura e ao impulso do processo,fazendo-se aplicação aqui do princípio inquisitório.” (1977, p.125/126).

Nosso sistema já conheceu esta possibilidade, ou seja, o recurso extra-ordinário devia ser “interposto” pelos tribunais ou pelo Procurador-Geralda República. Com efeito, prescrevia o artigo 1º do Decreto nº 23.055 de9 de agosto de 1933, “as justiças dos Estados, do Distrito Federal e doTerritório do Acre devem interpretar as lei da União de accôrdo com ajurisprudência do Supremo Tribunal Federal.” E seu § 1ª dispunha “sem-pre que os julgamentos das mesmas justiças se fundarem em disposição ouprincípio constitucional, ou decidirem contrariamente a leis federais, oudecretos ou actos do Governo da União, o presidente do Tribunal ou daCamara respectiva, a quem couber, recorrerá “ex-offício” para o Supremo

15 Para Liebman (1976, p. 89), que também parece negar a classificação, “não será o caso de reproduzir aqui ahistória do recurso extraordinário, assaz conhecida; de qualquer modo, o adjetivo “extraordinário” temaqui a função de um nome que lhe foi dado por falta de outro melhor, e não para designar a sua natureza,tanto é verdade que se pretende classificar a revista entre os recursos extraordinários embora não tenhaeste qualificativo em sua denominação.” E conclui que, “em tais condições não é possível fazer referênciaà doutrina estrangeira, escrita na vigência de direitos positivos que consignam expressamente a distinçãoentre recursos ordinários e extraordinários.”

16 Nesse sentido, também Roberto Carvalho de Souza, “de qualquer sorte, e naquilo que interessa ao tema agoradesenvolvido, é possível asseverar que o recurso especial, sucedâneo do extraordinário, é, como este, umrecurso ordinário.” Recurso Especial, p. 45.

17 Neste sentido, Alfredo Buzaid, referindo-se ao recurso de cassação italiano, “quando as partes deixam deinterpor o recurso no prazo legal, ou dêle desistem, o procurador-geral junto à Côrte pode propor orecurso, pedindo seja cassada a sentença no interêsse da lei. Êste recurso não repercute sôbre o direitosubjetivo da parte (jus litigatoris), antes visa a preservar a unidade do direito objetivo (jus consitutionis), demodo que se a Côrte cassa a sentença não produz nenhum efeito prático no processo, permanecendoinalterada a situação das partes como fôra estabelecido pela sentença cassada. O recurso no interêsseda lei, de uso aliás muito raro, tem efeitos puramente teóricos.” (1972, p. 128 e 129). Veja-se que nestecaso o interesse público está tutelado, em não sendo proposta a cassação pela parte, pode o Procurador-Geral propô-la.

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Tribunal Federal, com efeito suspensivo, dentro do prazo de tres dias con-tados da publicação do respectivo acórdam.”18

Entretanto esta, digamos, “legitimidade” dos tribunais e do Procura-dor-Geral foi extinta pela Constituição de 1946, e nunca mais figurou nostextos constitucionais posteriores.19- 20

Segundo a idéia mais corrente em doutrina, o recurso especial servepara que se mantenha a “inteireza positiva, a autoridade, a validade e auniformidade de interpretação da legislação infraconstitucional” (Pon-tes de Miranda, 1947, p. 233). Esta função foi atribuída ao recurso ex-traordinário. No entanto, após as modificações constitucionais, a maté-ria infraconstitucional federal passou ao recurso especial. Passou-se aentender, em doutrina, que tal função está agora jungida ao recurso

18 Paulo Joel Bender Leal e Valdir Porto Alegre escrevem a respeito: “ à época de vigência da referidanorma, ao que parece, a intenção do legislador era manter intacta a competência do STF de dar aúltima palavra na interpretação de lei federal, Constituição ou atos do governo e, embora tratasse dotema sob a denominação de recurso, o instituto não passava de um mero reexame das decisões, sob aótica do Supremo Tribunal Federal.” E arrematam que, “não se tratava de obrigar a mais umaapreciação do mérito da decisão em face da relevância da matéria “sub judice”, como nos casos do art.475 do atual Código de Processo Civil, mas de típico controle pela cúpula das decisões dos tribunaisinferiores, aos quais era vedado discordar da jurisprudência do STF, contrariar lei ou ato do governoe até mesmo dar a última palavra sobre matéria regulada na constituição, pois bastava que a decisãofosse fundada em “disposição ou princípio constitucional” para que o “recurso” com efeito suspensivo fosseobrigatório.” (1999, p. 67/68).

19 Conforme informa Alfredo Buzaid, “parte legítima para interpor o recurso, havendo divergência de interpre-tação da lei federal, não era apenas o interessado, vencido na justiça local, senão também qualquer dostribunais ou o Procurador-Geral da República. Êste fundamento de recurso, semelhante ao que na Europaera autorizado “no interesse da lei”, haveria por certo de aumentar o volume de causas no SupremoTribunal”. (1972, p. 141).

20 José Carlos Barbosa Moreira informa que, “com a reforma constitucional de 1926, ampliaram-se ashipóteses de cabimento; uma das inovações, fadada a perdurar por muitos anos, foi a concessão dorecurso com fundamento na divergência de interpretação da mesma lei federal por dois ou maistribunais locais (art. 60, § 1º, letra c), caso em que ele poderia “ser também interposto por qualquerdos tribunais referidos ou pelo Procurador-Geral da República”. Tinha-se, destarte, um recursoextraordinário ex-officio, com caráter facultativo).” Depois como ainda informa o autor, “inovaçãointeressante, mas de curta duração , foi a do Dec. nº 23.055, de 9.8.1933, art. 1º, que contemplou afigura do recurso extraordinário ex-officio, já agora obrigatório, a ser interposto, em determinadoscasos, pelo Presidente do Tribunal local ou da Câmara julgadora. Na esteira da reforma de 1926, aConstituição de 1934, art. 76, parágrafo único, permitia a interposição do recurso também peloPresidente do Tribunal local ou pelo Ministério Público, quando o fundamento fosse diversidade deinterpretação da lei federal entre as justiças estaduais, ou entre alguma delas e a Corte Suprema ououtro tribunal federal. As Cartas posteriores não reproduziram a norma.” (1998, p. 563).

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especial.21 -22 Por isso, entendem os defensores desta tese que a inter-pretação do referido recurso deve guardar sintonia com a função preco-nizada pela doutrina, que deve nortear toda a matéria afeta ao recursoespecial.23

Para nós, o recurso especial é, como todos os outros recursos, uma exten-são do direito de agir que os legitimados processuais exercem dentro doprocesso. Conforme José Carlos Barbosa Barbosa Moreira (1998, p.567), “noseu âmbito, contudo, parece excessivo negar que sirva de instrumento àtutela de direitos subjetivos das partes ou de terceiros prejudicados.”

Trata-se, assim, o recurso especial de um recurso que serve como umaextensão do direito subjetivo do recorrente.24 Não se nega, entretanto,que o recurso especial não tenha a função de manter a unidade e autori-dade do direito objetivo.

No entanto não há que se falar em supremacia de um interesse sobre ooutro. Conforme lição de José Afonso da Silva, escrevendo sobre o recur-so extraordinário, mas que se aplica integralmente ao caso, “do recursoExtraordinário se pode afirmar o mesmo que dissera CALAMANDREI dacassação italiana: Permite ao Supremo Tribunal fazer com que marchem,

21 A este propósito, escreve Athos Gusmão Carneiro (1998, p.92): “como premissa maior, está a de que o recursoespecial é um recurso extraordinário e, assim, lhe são incidentes, via de regra, as já consolidadas construçõesdoutrinárias e jurisprudenciais sobre a natureza, finalidade e admissibilidade do Recurso Extraordinário,tal como conceituado já anteriormente à lei Maior de 1988.”

22 Nesse sentido, Francisco Cláudio de Almeida Santos (1991, p. 94): “esta finalidade é evidenciada, pois, pelafunção exercida pelo recurso especial no sentido de garantir a inteireza positiva da lei (alínea a), a suaautoridade (alínea b) e sua uniformidade de interpretação (alínea c), para usar as expressões consagradaspor Pontes de Miranda, a respeito do extraordinário.”

23 Athos Gusmão Carneiro (1998, p. 93) sustenta que “o interesse privado do litigante vencido funciona, então,mais como móvel estímulo para a interposição do recurso extremo, cuja admissão, todavia, liga-se à existênciade uma questão federal, à defesa da ordem jurídica no plano do direito federal, assegurando-lhe, como referiuPontes de Miranda, a “inteireza positiva”, a “autoridade” a “validade” e a “uniformidade de interpretação”.

24 Pontes de Miranda, referindo-se ao recurso extraordinário e discordando de que os juízes tem “faculdade” dedecidir, explicita seu posicionamento que pode se aplicar ao recurso especial, “em matéria de recurso nãohá arbítrio judicial, nem nunca houve, fora dos recursos de graça real, aos tempos do absolutismo político:há, em vez disso, pretensão do legitimado a que o Supremo Tribunal Federal, como outro qualquer juízo,conheça do recurso cujos pressupostos foram satisfeitos (pretensão processual recursal). Quem vai, emrecurso extraordinário, ao Supremo Tribunal Federal, pedindo respeito a regras jurídicas que a Constitui-ção mesma cercou desses cuidados, exerce direito subjetivo constitucional à pretensão de direito constitucional.Recurso, ou cabe, ou não cabe; nenhum tribunal pode falar, em regimes democrático-liberais, de faculdadede admitir ou não admitir. Os que têm pretensão processual recursal, nos regimes democrático-liberais,tem algo acima do Príncipe: a Constituição.” (1975, Tomo VIII, p. 156/157).

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a igual passo, o interêsse individual na justiça do caso singular e o inte-resse público na interpretação exata da lei em abstrato.”25 E complemen-ta o citado autor: “seu fundamento e sua finalidade são, pois, político-constitucionais. Mas isto não lhe tira o caráter, eminentemente, proces-sual. É um meio processual que o Estado pôs à disposição das parte(sic),para que, defendendo o próprio interesse subjetivo, dêem ao Pretório Ex-celso o instrumento de controle da unidade do Direito nacional e, sobre-tudo, da supremacia da constituição.” (Silva, 1963, p. 106/107).

Nessa mesma linha de raciocínio, já lecionava Giuseppe Chiovenda(1965, v. III, p. 298) a respeito do recurso de cassação italiano, que guar-da certa similitude com a função do nosso recurso especial: “assim é quea querela, em todos os tempos, encerrou em si um elemento político,associando a defesa do particular (ius litigatoris) à do interêsse geral (iusconstitutionis)...”

Registre-se ainda a opinião de Cândido Rangel Dinamarco, falando arespeito do recurso extraordinário, mas que se coaduna com os assuntoaqui tratado: “o recurso extraordinário brasileiro não se confunde, emsua destinação institucional, com o chamado recurso no interesse da lei,contemplado no art. 363 do Código de Processo Civil italiano, para o qualé legitimado exclusivo o Ministério Público e cujo julgamento não afeta ojulgamento da causa em que é interposto. Vale apenas como precedente,este sim com vistas exclusivas ao interesse público. Mas o nosso recursofederal, de iniciativa dos litigantes e determinando novo julgamento dacausa, é do interesse deles e não “da lei”. O confronto com os contornosdaquele recurso do sistema italiano concorre para demonstrar as diferen-tes finalidades de um e de outro.” (1991, p. 251)

Constata-se, assim, que não se demonstra razoável e fundada a tesedos que defendem que o recurso especial possui um objetivo imediato eum mediato, pois o recurso especial é exercitado pelo próprio legitimadorecorrente no qual busca melhorar sua situação jurídica. Trata-se, pois,de um recurso, como qualquer outro, exercido dentro do mesmo proces-so, tendente a melhor tutelar um interesse subjetivo do legitimado.

25 Em nota de roda-pé, José Afonso da Silva (1963, p. 107) cita a passagem de Calamandrei, “eis o texto deCALAMANDREI: “remedio que permite a la Corte de casación hacer que marchen a igual paso el interésindividual en la justicia del caso singular y el interés público en la interpretación exacta de la lei enabstracto, es el recurso de casación.” (op. cit., pág. 16)”.

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Enrico Tullio Liebman, escrevendo sobre o recurso extraordinário, tam-bém não parece desautorizar este entendimento, ao lecionar que o recursoextraordinário “converteu-se, dêsse jeito, numa fase do processo ordinário e,não obstante a limitação do conhecimento do Supremo Tribunal, que só poderever a decisão da quaestio iuris, sôbre a base dos fatos como foram fixados nasentença recorrida, representa uma autêntica terceira instância. O recursoextraordinário aproxima-se, com efeito, mais da revisão germânica26 do queda cassação francesa e italiana, porque o Supremo Tribunal não se astringe(sic) a anular a decisão viciada por um êrro de direito, mas decide, êle pró-prio, a controvérsia, quando possível. O Supremo Tribunal Federal coopera,portanto, com os outros Tribunais do país no exercício da função jurisdicionale o recurso extraordinário é, como os demais recursos, um meio oferecido àspartes para obterem mais exata decisão da contenda.”27

Assim como nas demais demandas e recursos apresentados peranteo Poder Judiciário, no recurso especial também encontramos, no mes-mo patamar, a tutela do interesse subjetivo do legitimado processual edo interesse público. Releva notar, repetimos, que com isso não senega que o recurso especial não tenha, ao lado da função de estendero direito subjetivo dos recorrentes ao Superior Tribunal de Justiça,também outras funções que a doutrina lhe atribui, principalmente ade manter a proteção ao direito objetivo infraconstitucional federal ede manter a ordem pública, função esta que não é apenas do SuperiorTribunal de Justiça, mas de todos os órgãos do Poder Judiciário.28

26 Aproximamo-nos assim do sistema alemão no qual, conforme Buzaid (1972, p. 130): “a revisão germânica, conformeo entendimento dos autores, serve o interêsse das partes, para resolver, de modo justo e correto, a causa; mas servesobretudo ao interêsse público para realizar a unidade da jurisprudência. O recurso é admissível contra sentençasdefintivas proferidas pelo Tribunal de Apelação; nas causas patrimoniais, um dos pressupostos é que ela seja devalor superior a 6.000 marcos. O Tribunal de revisão é verdadeiro órgão jurisdicional...”

27 Notas às Instituições de Direito Processual Civil de Giussepe Chiovenda, 1965, volume III, p. 296.28 Nesse sentido, Enrico Tullio Liebman, “o que, na realidade, se verifica, é uma autonomia da União e dos

Estados na instituição e nomeação das próprias autoridades judiciárias; mas, tôdas juntas, essas autorida-des exercem uma função única, nos limites das respectivas atribuições , como órgãos de um só entesoberano, que é a nação. Em outros têrmos, a pluralidade das jurisdições é de caráter puramente adminis-trativo; do ponto de vista da função jurisdicional, que exercem, há entre os órgãos federais e locais simplesdistribuições de competência. Por isso, no exercício dessa função, comporta-se o Brasil, para todos osefeitos, como uma organização unitária: as várias formas de assistência judiciária de órgão a órgão, aautoridade da coisa julgada, a eficácia executória da sentença, a exceção de litispendência, e assim pordiante, ocorrem também de Estado para Estado, em todo o território da República, indistintamente. E é damesma forma que se explica poderem ser as justiças locais competentes para conhecer de controvérsias emque seja parte a Administração Pública federal.” Notas às Instituições de Direito Processual Civil deGiuseppe Chiovenda, 1965, volume II, p. 4.

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Na fase moderna, contudo, em que a função de distribuição da “justi-ça” passou a ser monopólio do Estado, todos os julgadores devem preser-var a ordem pública,29 pois esta é sua função,30 ao lado da função detutelar os direitos subjetivos.

O recurso especial, portanto, não é um recurso extraordinário, porquesua classificação não guarda simetria com a classificação criada nos siste-mas europeus, ou seja, não se trata de um recurso interposto contra deci-são transitada em julgado que instaura novo processo;31 e, ainda, porquesua classificação não pode ser fundamentada na supremacia da proteçãodo direito objetivo sobre a proteção do direito subjetivo.

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29 Athos Gusmão Carneiro, escrevendo sobre jurisdição, leciona, “como Função estatal, foi exercida pelosantigos reis de direito absoluto, por si ou por intermédio de delegados. Entre certos povos primitivos, cabiaà assembléia da tribo ou do clã, conforme “prática entre os germanos, ao que nos informam as narrações deTácito, e entre os gregos dos tempos homéricos, ao que se diz na Odisséia” (Machado Guimarães, o juiz ea função jurisdicional, Forense, n. 1). O pretor romano, concedendo as fórmulas, criou o jus honorarium elançou as bases do direito codificado. Na Idade Média, a fragmentação do poder público entre os senhoresfeudais implicou a multiplicação das jurisdições baroniais e eclesiásticos, que se foram extinguindo namedida em que os reis logravam consolidar seu poderio e unificavam seus povos, criando os Estados.” Eajunta, “nos estados nacionais modernos, a jurisdição é uma das expressões da soberania do Estado, e éexercida em nome do povo (CF, art. 1º, parágrafo único).” Conclui adiante, “a atividade jurisdicional é“atividade pública”, constituindo no sistema jurídico brasileiro monopólio do Poder Judiciário, salvante osrestritíssimos casos de jurisdições anômalas.” Jurisdição e Competência, p. 3, 4 e 8.

30 João Mendes de Almeida Junior (1918, pp. 31 e 37) assinala que “a Jurisdição, funcção de declarar o direitoapplicavel aos factos, é a causa final especifica da actividade do Poder Judiciario (...) O Regimen dasjurisdições é de Direito Publico; não póde ser invertido pelas partes, sob pena de nulidade, nem pelosjuizes, sob pena de responsabilidade criminal.”

31 José Afonso da Silva, “hoje o critério distintivo mais seguido pelos italianos é aquele que correlaciona o meiode impugnação com a coisa julgada formal. Extrai o fundamento da norma do art. 324, “Codice diProcedura Civile”, segundo a qual “S’intende passata in giudicato la sentenza che non è piú soggetta nè regolamentodi competenza, nè ad appello, nè a ricorso per cassazione, nè a revocazione per i motivi di cui ai numeri 4 e 5 dell” art.395.” E conclui: “daí a distinção: os meios ordinários impedem a formação da coisa julgada formal e abrem,por isso, uma nova fase, um prolongamento do processo; os meios extraordinários, ao revés, visam a impugnara própria coisa julgada e dão, por essa razão, lugar a um processo nôvo e distinto.” 1963, p. 91.

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Regularização de AssentamentosInformais: o Grande Desafio dosMunicípios, da Sociedade e dos

Juristas Brasileiros

Land Tenure: the Big Challenge for Brazilian Cities,Society and Jurists

EDÉSIO FERNANDES

Jurista e Urbanista, professor da Universidade de Londres. Coordenador do IRGLUS (InternationalResearch Group on Law and Urban Space)

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RESUMO

Analisando-se os programas de regularização de assentamentos informais, apartir da experiência nacional e do debate internacional sobre a questão, oautor procura destacar a possibilidade de utilização de novos instrumentos jurí-dicos e a efetivação de novas ações municipais, a partir dos novos parâmetrosestabelecidos pelo Estatuto da Cidade.Palavras-chave: Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade, Regularizaçãofundiária, Função social da propriedade e da cidade.

ABSTRACT

Analyzing the programs of land tenure from the point of view of the Brazilianexperience and the international debate, the author emphasizes the possibility

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of using new juridical tools and of effectuating new city actions, from theperspective of the new parameters established by the City Statute.Key words: Urban law, City Statute, Land Regulations, Social function ofproperty.

INTRODUÇÃO

Uma das principais características do processo de urbanização intensi-va no Brasil tem sido a proliferação de processos informais de desenvolvi-mento urbano. Ao longo das décadas de crescimento urbano, mas sobre-tudo nas duas últimas décadas, dezenas de milhões de brasileiros não têmtido acesso ao solo urbano e à moradia senão através de processos e meca-nismos informais - e ilegais. Favelas, loteamentos e conjuntos habitacio-nais irregulares, loteamentos clandestinos, cortiços, casas de fundo, ocu-pações de áreas públicas sob pontes, viadutos, nas beiras de rios e mesmo,em uma das principais avenidas da cidade de São Paulo, “casas” sendoconstruídas em cima de árvores – essas têm sido as principais formas dehabitação produzidas diariamente nas cidades brasileiras.

Ainda que diversas formas de ilegalidade urbana também sejam asso-ciadas com os grupos mais privilegiados da sociedade – como, por exem-plo, o descumprimento sistemático das normas edilícias e a prática cadavez maior dos chamados “condomínios fechados”, vedando o acesso detodos ao sistema viário e às praias, que são legalmente bens de uso co-mum de todos -, a informalidade entre os grupos mais pobres precisa serurgentemente enfrentada dadas as graves conseqüências sócio-econômi-cas, urbanísticas e ambientais desse fenômeno. Deve-se ressaltar que,além de afetar diretamente os moradores dos assentamentos informais,tais práticas também têm diversos impactos negativos sobre as cidades esobre as comunidades urbanas como um todo.

Este artigo se propõe tão somente a apresentar algumas reflexões ge-rais sobre os principais aspectos jurídicos dos programas de regularização.Em seguida a uma breve identificação dos principais fatores que têm cau-sado o fenômeno da informalidade urbana, inclusive o papel da ordemjurídica, pretendo discutir os principais conceitos envolvidos quando daformulação de programas de regularização, bem como as lições mais im-portantes que já podem ser aprendidas com as experiências brasileiras e

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internacionais sobre a questão ao longo dos últimos vinte anos. Por fim,farei uma breve avaliação das possibilidades abertas pelo Estatuto da Ci-dade para que tais programas possam ser implementados com sucesso noBrasil, assim como das principais condições para que tais possibilidadessejam concretizadas.

A PRODUÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA – EPOLÍTICO-JURÍDICA – DA INFORMALIDADEURBANA

Os assentamentos informais – e a conseqüente falta de segurança daposse, vulnerabilidade política e baixa qualidade de vida dos seus ocu-pantes que lhes são características - resultam do padrão excludente dosprocessos de desenvolvimento, planejamento e gestão das áreas urba-nas. Mercados de terras especulativos, sistemas políticos clientelistas eregimes jurídicos elitistas não têm oferecido condições suficientes, ade-quadas e acessíveis de acesso à terra urbana e à moradia para os pobres,assim provocando a ocupação irregular e inadequada do meio ambienteurbano.

O papel da ordem jurídicaEm especial, o papel da ordem jurídica na produção da informalidade

urbana precisa ser mais bem compreendido.

Por um lado, a definição e interpretação dos direitos de propriedadede maneira individualista, sem preocupação com a materialização do prin-cípio constitucional da função social da propriedade, tem permitido queo padrão do processo de crescimento urbano seja essencialmente especu-lativo, determinando os processos combinados de segregação sócio-espa-cial e segregação sócio-ambiental.1

Por outro lado, tanto a ausência de leis urbanísticas municipais quan-to à aprovação pelos municípios de uma legislação urbanística elitista,

1 Para uma discussão sobre o processo de urbanização no Brasil e sobre o papel no direito nesse processo, vejaFernandes (1998b; 2002d) e Fernandes & Rolnik (1998).

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baseada em critérios técnicos irrealistas e sem consideração dos impactossócio-econômicos das normas urbanísticas e das regras de construção,também têm tido um papel fundamental na determinação dos preços daterra urbana, bem como a dinâmica segregadora do mercado imobiliário.Além disso, deve-se ressaltar a dificuldade de implementação das leis emvigor, devido em parte à falta de informação e educação jurídicas, à limi-tada capacidade de ação das agências públicas, bem como às difíceis elimitadas condições de acesso ao poder judiciário para a promoção doreconhecimento dos interesses sociais e ambientais.2

A combinação entre esses processos tem feito com que o lugar dospobres nas cidades sejam as áreas periféricas ou mesmo as áreas centraisnão dotadas de infra-estrutura urbanística adequada, e, cada vez mais,as áreas não adequadas à ocupação humana ou áreas de preservaçãoambiental. De fato, nos últimos anos os loteamentos irregulares, ocupa-ções informais e favelas têm se assentado justamente nas áreas ambien-talmente mais frágeis, muitas delas protegidas por lei através de fortesrestrições ao uso, pelo menos nominalmente – e conseqüentemente des-prezadas pelo mercado imobiliário formal.

Deve-se ressaltar que, ainda que por todas essas razões a ocupaçãoinformal tenha se tornado a única opção de moradia permitida aos pobresnas cidades, não se trata certamente de uma boa opção – em termosurbanísticos, sociais e ambientais – e nem, ao contrário do que muitospensam, de uma opção barata, já que o crescimento das práticas de infor-malidade e o adensamento das áreas já ocupadas têm gerado custos mui-to elevados de terrenos e aluguéis nessas áreas.

Em outras palavras, os pobres no Brasil têm pago um preço cada vezmais alto – em muitos sentidos – para viverem em condições precárias,indignas e, com freqüência cada vez maior, inaceitáveis.

Os programas de regularizaçãoNa falta de uma política nacional, desde meados da década de 1980,

quando as experiências pioneiras de Belo Horizonte e Recife foram inici-adas, diversos municípios têm, sempre com muita dificuldade, tentado

2 Vide Rolnik (1997) e Maricato (1996; 2000).

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formular políticas e programas de regularização para o enfrentamento dosprocessos de desenvolvimento urbano informal.3

O termo “regularização” tem sido usado pelas diversas municipalida-des com sentidos diferentes, referindo-se em muitos casos somente à ur-banização das áreas informais, isto é, aos programas de implementação deobras de infra-estrutura urbana e prestação de serviços públicos. Em ou-tros casos, o termo tem sido usado para se referir tão somente às políticasde legalização fundiária das áreas e dos lotes ocupados informalmente.Algumas experiências mais compreensivas têm tentado combinar em al-guma medida essas duas dimensões fundamentais, quais sejam, urbaniza-ção e legalização. São ainda mais raros os programas que têm se propostoa promover a regularização das construções informais.4

Muitos têm sido os argumentos utilizados, de maneira isolada ou com-binada, para justificar a formulação de tais programas, incluindo desdeprincípios religiosos, éticos e humanitários a diversas razões político-eco-nômicas e sócio-ambientais. Mais recentemente, esse “discurso de valo-res” se tornou ainda mais forte, na medida em que encontra suporte ple-no em um “discurso de direitos”, já que a ordem jurídica – através doEstatuto da Cidade - finalmente reconheceu o direito social – constituci-onal – dos ocupantes de assentamentos informais à moradia. Tal direitosocial deve ser entendido aqui em sentido amplo, isto é, o direito detodos a viverem em condições dignas, adequadas e saudáveis do ponto-de-vista urbanístico e ambiental.

Se a Constituição Federal de 1988 já reconheceu os direitos coletivosao planejamento urbano, ao meio ambiente equilibrado e à gestão demo-crática das cidades, atualmente tem sido feito, no Brasil e internacional-mente, todo um esforço jurídico-político no sentido de construir as basesde um amplo “direito à cidade”, de forma a garantir que todos possamparticipar de maneira mais justa dos benefícios e oportunidades criadospelo crescimento urbano.

Em outras palavras, os programas de regularização fundiária devem terpor objetivo não apenas o reconhecimento da segurança individual da

3 Veja Fernandes (1998a; 2002a) para uma avaliação dos programas de regularização de favelas em Belo Horizon-te; veja FASE et al (1999; 2000) para uma avaliação dos programas em Recife.

4 Veja Alfonsin (1997; 2001) para uma análise compreensiva das experiências de regularização fundiária noBrasil.

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posse para os ocupantes, mas principalmente a integração sócio-espacialdos assentamentos informais.

Entretanto, a falta de compreensão da natureza e dinâmica dos proces-sos de produção da informalidade urbana tem levado a todo tipo de proble-mas e distorções, sendo que, com freqüência, os programas de regulariza-ção acabam por reproduzir a informalidade urbana, ao invés de promove-rem a devida integração sócio-espacial dos assentamentos informais.

Lições do debate internacional sobre a regularizaçãoNão podemos esquecer que, ao longo dos últimos vinte anos, não so-

mente no Brasil mas também em diversos países em desenvolvimento ondeo mesmo problema da ocupação informal tem ocorrido - e onde um volumeenorme de recursos financeiros também tem sido investido no sentido desolucioná-lo -, uma significativa corrente de pesquisa acadêmica e institu-cional tem constantemente avaliado os principais problemas dos programasde regularização. Em 1999, o Programa Habitat da Organização das NaçõesUnidas lançou a importante Campanha Global pela Segurança da Posse.5

É de fundamental importância que os formuladores de novas políticase programas de regularização aprendam com as lições das experiênciaspassadas. Precisamos todos fazer uma discussão ampla e crítica da ques-tão, pois, afinal, não há necessidade de estarmos constantemente inven-tando a roda de novo…

Formulando as perguntas corretasDentre as principais lições das experiências internacionais, deve-se

ressaltar que a formulação e avaliação dos programas de regularização,bem como a análise dos aspectos práticos e metodológicos do desenho dosprojetos de regularização e de sua implementação, dependem fundamen-talmente da compreensão da natureza e dinâmica dos processos que pro-duzem a informalidade urbana.

De fato, a principal condição para que os programas de regularizaçãosejam formulados de forma adequada é que a discussão sobre tais progra-

5 Para uma apresentação da discussão internacional sobre o tema, veja Fernandes (2001c).

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mas precisa ser apoiada na compreensão prévia dos processos sócio-eco-nômicos e jurídico-políticos que produzem a informalidade urbana. Paratanto, é preciso promover uma leitura interdisciplinar da questão, combi-nando as perspectivas econômica, política, social, institucional e técnica– bem como colocando uma ênfase especial na sua dimensão jurídica.

Em especial, é preciso que os administradores públicos tentem refletirsobre, e responder, algumas questões principais antes de fazerem suas pro-postas – já que são as respostas a tais perguntas que vão determinar anatureza e o alcance efetivo dos programas de regularização:

• Como são produzidos os assentamentos informais?

• Por que é importante regularizá-los?

• Quando devem os programas de regularização ser formulados eimplementados?

• Que áreas devem ser regularizadas?

• O que deve ser feito nas áreas onde, por alguma razão, não coubera regularização?

• Como devem os programas de regularização ser formulados e im-plementados?

• Que direitos devem ser reconhecidos aos ocupantes de assenta-mentos informais?

• Quem deve pagar, e como, pelos programas de regularização?

• O que deve acontecer depois da regularização das áreas?

Essas são algumas das principais questões a serem enfrentadas pelosadministradores públicos.

A natureza curativa dos programas de regularizaçãoAcima de tudo, temos que reconhecer que os programas de regulari-

zação têm uma natureza essencialmente curativa e não podem ser disso-ciados de um conjunto mais amplo de políticas públicas, diretrizes deplanejamento e estratégias de gestão urbana destinadas a reverter o atualpadrão excludente de crescimento urbano.

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Por um lado, é preciso ampliar o acesso ao mercado formal a uma par-cela mais ampla da sociedade, sobretudo os grupos de renda média-baixa,ao lado da oferta de subsídios públicos para as faixas da menor renda. Poroutro lado, é preciso rever os modelos urbanísticos que têm sido utiliza-dos, de forma a adaptá-los às realidades sócio-econômicas do país e àlimitada capacidade de ação institucional das agências públicas.

Nesse contexto, as políticas de regularização fundiária não podem serformuladas de maneira isolada e necessitam ser combinadas com outraspolíticas públicas preventivas para quebrar o ciclo de exclusão que temgerado a informalidade. Isso requer intervenção direta e investimentopúblico, sobretudo por parte dos municípios, para produzir opções de mo-radia, democratizar o acesso à terra e promover uma reforma urbana am-pla. Regularizar sem interromper o ciclo de produção da irregularidadeacaba implicando, além do sofrimento renovado da população, em umademanda de recursos públicos infinitamente maior.

Além disso, em muitos casos o ciclo perverso que leva da informali-dade à regularização tem reafirmado e ampliado as bases da política cli-entelista tradicional, responsável em grande parte pela própria produçãodo fenômeno da informalidade. Em outros casos, a inadequação ou mes-mo o fracasso dos programas tem facilitado o surgimento de novos pactossociais que, sobretudo no contexto das áreas controladas pelo tráfico dedrogas e pelo crime organizado, estão cada vez mais desafiando as estru-turas político-institucionais oficiais, bem como as bases e a validade daordem jurídica.

Condições básicas para a regularizaçãoDe qualquer forma, ainda que não devam ser concebidos marginal-

mente ou somente através de políticas setoriais, os programas de regulari-zação têm uma importância fundamental em si mesmos. Para serem bemsucedidos, tais programas devem combinar em alguma medida as açõesde urbanização com as estratégias de legalização.

Além disso, para serem bem sucedidos os programas de regularizaçãorequerem coragem na tomada de decisões; tempo de execução; investi-mento significativo; continuidade de ações; participação popular em to-das as suas etapas; a devida integração entre seus objetivos e os instru-mentos adotados, bem como entre os programas e as leis existentes e es-pecialmente aprovadas.

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A questão da legalizaçãoNo que toca à dimensão da legalização fundiária, conforme tenho in-

sistido tais programas devem ter por objetivo não apenas o reconheci-mento da segurança individual da posse para os ocupantes, mas princi-palmente a integração sócio-espacial dos assentamentos informais. Issosignifica que a identificação dos direitos a serem reconhecidos aos ocu-pantes deve refletir esse objetivo principal, bem como a necessidade de secompatibilizar objetivos, estratégias e instrumentos.6

Ainda no que toca aos instrumentos jurídicos a serem utilizados, mes-mo que a divisão entre direito público/direito privado tenha de ser consi-derada em alguma medida devido às implicações distintas das propostasem função do regime de propriedade original das áreas ocupadas, é preci-so que os formuladores de programas de regularização se lembrem de quehá um leque amplo de opções jurídico-políticas a serem consideradasalém dos direitos individuais de propriedade plena. Sobretudo, é precisodestacar que a materialização do direito social de moradia, tal como con-sagrado constitucionalmente, não implica necessariamente no reconhe-cimento de direitos individuais de propriedade, sobretudo nos assenta-mentos em áreas públicas.

A verdade é que, no Brasil e internacionalmente, os programas deregularização baseados na legalização através de títulos de propriedadeindividual plena não têm sido totalmente bem sucedidos, já que não têmse prestado a garantir a permanência das comunidades nas áreas ocupa-das, deixando assim de promover a desejada integração sócio-espacial.

Em muitos casos, mesmo na ausência da legalização de áreas consoli-dadas e dos lotes ocupados, os ocupantes se encontram efetivamente menosexpostos às ameaças de despejo e/ou remoção e os assentamentos infor-mais têm recebido serviços públicos e infra-estrutura urbanística em al-guma medida, sendo que muitos moradores têm tido acesso a diversasformas de crédito informal, ou mesmo de crédito formal em alguns casos.Contudo, ainda que a combinação desses fatores gere uma percepção deposse para os ocupantes, isso não quer dizer que a legalização dessas árease lotes não seja importante.

6 Para uma crítica dos programas de legalização no Brasil antes da aprovação do Estatuto da Cidade, vejaFernandes (1999).

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Títulos são importantes sobretudo quando há conflitos, sejam eles con-flitos de propriedade, conflitos domésticos e familiares, conflitos de direi-to de vizinhança, etc. Títulos também são importantes para reconhecerdireitos sócio-políticos e para garantir que os ocupantes dos assentamen-tos informais possam permanecer nas áreas que ocupam sem risco de se-rem expulsos pela ação do mercado imobiliário, por mudanças políticasque quebrem o pacto gerador da percepção de segurança de posse, pelapressão do crime organizado, etc., como tem acontecido em diversas fa-velas e loteamentos irregulares brasileiros.

Contudo, quando da formulação dos programas de legalização e dadefinição do tipo de direito a ser reconhecido aos ocupantes é necessáriocompatibilizar a promoção da segurança individual da posse com outrosinteresses sociais e ambientais, bem com o devido reconhecimento dodireito social de moradia – que, novamente, não se reduz tão somente aodireito individual de propriedade plena.7

Regularização fundiária e erradicação da pobrezaAlém disso, é preciso salientar que, ainda que os programas de regula-

rização estejam sendo propostos por diversas agências internacionais coma finalidade de promover a erradicação da pobreza urbana, a experiênciabrasileira e internacional tem mostrado que, para terem impacto efetivosobre a pobreza social, os programas de regularização precisam ser formu-lados em sintonia com outras estratégias sócio-econômicas e político-institucionais especificamente voltadas para a erradicação da pobreza,sobretudo através da criação de emprego e renda.

Acima de tudo, para serem bem sucedidos, tais programas de regulari-zação precisam ser combinados com, e apoiados por, um conjunto de pro-cessos e mecanismos de várias ordens: financeira; institucional; planeja-mento urbano; políticas de gênero; administração e gestão fundiária; sis-temas de informação; outros instrumentos jurídicos; processos políticos; eprocessos de mobilização social.

7 Para uma análise comparativa de quatro casos brasileiros, veja Fernandes (2002e).

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Processos e mecanismos que dão suporte aos programasde regularização

Dentre os processos financeiros que têm sido considerados no Brasil einternacionalmente para dar o devido suporte aos programas de regulari-zação, devem ser mencionados a criação de fundos (fundos para os po-bres; fundos comunitários), empréstimos (esquemas de orientação soci-al), programas de hipoteca comunitária, incentivos ao setor privado, bemcomo mecanismos de reforma do sistema bancário e financeiro sobretudode forma a garantir melhores condições de acesso ao crédito formal.

Já os processos institucionais propostos incluem a cooperação sistemá-tica entre agências públicas; melhor cooperação intergovernamental; es-tratégias de descentralização; criação de parcerias entre o setor público eo setor privado; participação comunitária; capacitação administrativa efiscal, bem como a ação de consultores comunitários e de acadêmicos.

De fundamental importância é utilizar as possibilidades e recursos doplanejamento urbano de forma a promover o reconhecimento dos assenta-mentos informais pelo sistema geral de planejamento. O uso democráticodos processos e instrumentos do planejamento requer a criação, no contex-to do zoneamento municipal, de ZEIS - zonas especiais de interesse social,com vistas sobretudo a minimizar a pressão do mercado imobiliário visandoa garantir a permanência dos ocupantes nas áreas regularizadas. Além dis-so, é preciso promover a revisão das regulações urbanísticas e dos parâme-tros construtivos em tais zonas, bem como, sempre no contexto mais amplodo sistema de planejamento urbano, a exploração dos chamados “ganhosdo planejamento” como a transferência do direito de construir, sobretudoatravés das negociações urbanas e operações interligadas.

Também é importante que os programas de regularização incorporemuma dimensão de gênero, de forma a confrontar o desequilíbrio históricoe cultural e a permitir o empoderamento das mulheres.

Outra dimensão fundamental é a da administração e gestão fundiári-as, requerendo sistemas cadastrais acessíveis, a remoção dos obstáculoscartorários, a identificação da propriedade, e avaliação fundiária regular.Há controvérsias quanto às estratégias propondo a criação de bancos deterras ou quanto àquelas baseadas exclusivamente na desapropriação eaquisição de terras.

Programas de regularização devem ser acompanhados por sistemas deinformação, seja no sentido de produzir informações (identificar regimes

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de posse; análise e revisão de políticas), seja no sentido de provê-las (pla-nejamento baseado em informação; descentralização do planejamento egestão; criação de centros abertos de recursos, etc.).

Outras questões e instrumentos jurídicos relacionados com os progra-mas de regularização incluem a revisão das leis municipais de loteamen-to, o enfrentamento do falso dilema entre valores sociais e ambientais, e arevisão dos sistemas de resolução de conflitos de forma a torná-los maiseficazes e justos.8

Tais programas têm necessariamente que ter suporte em processos po-líticos caracterizados pelos critérios da boa governança urbana: transpa-rência, prestação de contas e participação popular, e especialmente reve-lar um enfoque “de baixo-para-acima” de forma a materializar a propostaconstitucional de democratização das estratégias de gestão urbana.

Por fim, deve ser dito que, em última análise, o sucesso dos programasde regularização de assentamentos informais requer a renovação dos pro-cessos de mobilização social e o fortalecimento da capacidade das associ-ações de moradores e das ONGs, que, mais do que nunca, devem colocara ênfase na implementação dos programas e no cumprimento dos direitos:a verdade é que já há muitas políticas e programas propostos...

O novo contexto brasileiro a partir do Estatuto daCidade

No dia 10 de julho de 2001, foi aprovada a Lei Federal no. 10.257,chamada Estatuto da Cidade, que regulamentou o capítulo original sobrepolítica urbana que tinha sido aprovado pela Constituição Federal de1988. A nova lei se propôs a dar um suporte jurídico mais inequívoco àação dos governos municipais empenhados no enfrentamento das gravesquestões urbanas, sociais e ambientais que têm diretamente afetado avida da enorme parcela de brasileiros que vivem em cidades. Reconhe-cendo o papel fundamental dos municípios na formulação de diretrizes deplanejamento urbano e na condução do processo de gestão das cidades, oEstatuto da Cidade não só consolidou o espaço da competência jurídica eda ação política municipal aberto pela Constituição de 1988, como tam-

8 Para uma discussão sobre o conflito aparente entre valores sociais e ambientais, veja Fernandes (2002c).

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bém o ampliou sobremaneira, sobretudo no que toca à questão da regula-rização fundiária.9

Até a aprovação do capítulo constitucional sobre política urbana (arti-gos 182 e 183), além dos diversos problemas de ordem técnica, financeirae político-institucional existentes, havia também muitos obstáculos deordem jurídica à devida implementação dessas políticas e programas deregularização. Com o subseqüente reconhecimento constitucional do di-reito de moradia como um direito social (Emenda no. 26, de 14 de feve-reiro de 2000) e, mais recentemente, com a aprovação do Estatuto daCidade (acompanhado pela Medida Provisória no. 2.220, de 04 de setem-bro de 2001), a ordem jurídica aplicável à questão dos assentamentosinformais foi bastante aprimorada, sendo que muitos dos principais obstá-culos legais às políticas de regularização foram removidos. Desde então,um número cada vez maior de municípios tem começado a formular polí-ticas e programas de regularização de assentamentos informais.

A nova lei federal tem quatro dimensões fundamentais, quais sejam:consolida a noção da função social e ambiental da propriedade e da cidadecomo o marco conceitual jurídico-político para o Direito Urbanístico; re-gulamenta e cria novos instrumentos urbanísticos para a construção deuma ordem urbana socialmente justa e includente pelos municípios; apontaprocessos político-jurídicos para a gestão democrática das cidades; e, deforma a materializar o direito social de moradia, propõe diversos instru-mentos jurídicos - notadamente o usucapião especial urbano, a concessãode direito real de uso e a concessão de uso especial para fins de moradia-, para a regularização fundiária dos assentamentos informais em áreasurbanas municipais.10

Dessa forma, a aprovação do Estatuto da Cidade consolidou a ordemconstitucional quanto ao controle jurídico do processo de desenvolvi-mento urbano, visando a reorientar a ação do poder público, do mercadoimobiliário e da sociedade de acordo com novos critérios econômicos,sociais e ambientais. Sua efetiva materialização em leis e políticas públi-cas, contudo, vai depender de vários fatores.

A utilização dos novos instrumentos jurídico-urbanísticos e a efetiva-

9 Para uma avaliação detalhada do Estatuto da Cidade, veja Mattos (2002).10 Para uma avaliação das possibilidades abertas pelo Estatuto da Cidade para os programas de regularização,

veja Fernandes (2001b; 2001c).

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ção das novas possibilidades de ação pelos municípios, inclusive com afinalidade de promover a regularização fundiária, depende fundamental-mente da definição prévia de uma ampla estratégia de planejamento eação pelos municípios, expressando um “projeto de cidade” que tem ne-cessariamente de ser explicitado publicamente através da legislação ur-banística municipal, começando com a lei do Plano Diretor.

Nesse contexto, é de fundamental importância que os municípios pro-movam uma ampla reforma de suas ordens jurídicas de acordo com osnovos princípios constitucionais e legais, de forma a aprovar um quadrode leis urbanísticas condizentes com o paradigma da função social e am-biental da propriedade e da cidade.

Também é preciso que os municípios promovam uma reforma compre-ensiva de seus processos de gestão político-institucional, político-social epolítico-administrativa, visando a efetivar e ampliar as possibilidades degestão participativa reconhecidas pelo Estatuto da Cidade, bem como deforma a proceder à devida integração entre planejamento, legislação egestão urbana para democratizar o processo de tomada de decisões e as-sim legitimar plenamente uma nova ordem jurídico-urbanística de natu-reza social.

Contudo, de crucial importância para que o Estatuto da Cidade “pe-gue” é a ampla e renovada mobilização da sociedade brasileira, dentro efora do aparato estatal. Afinal, as leis só “pegam” quanto tem uma “pega”adequada no processo político-social mais amplo.

CONCLUSÃO

Mais do que nunca, cabe aos municípios e às comunidades urbanaspromover a materialização do novo paradigma constitucional através dareforma da ordem jurídico-urbanística, visando a promover o controle doprocesso de desenvolvimento urbano através da formulação de políticasde ordenamento territorial nas quais os interesses individuais dos propri-etários de terras e construções urbanas necessariamente coexistam comoutros interesses sociais, culturais e ambientais de outros grupos e dacidade como um todo. Para tanto, foi dado ao poder público municipal opoder de, através de leis e diversos instrumentos urbanísticos, determinara medida desse equilíbrio - possível - entre interesses individuais e cole-

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tivos quanto à utilização do solo urbano. A questão da regularização fun-diária dos assentamentos informais é certamente um dos elementos cen-trais dessa equação.

Nesse contexto, a devida utilização das possibilidades abertas pela novalei para o enfrentamento dos processos de produção da informalidadeurbana depende fundamentalmente da compreensão pelos administrado-res públicos de seu significado e alcance no contexto da ordem jurídica,sobretudo no que toca à nova concepção - proposta pela ConstituiçãoFederal e consolidada pelo Estatuto da Cidade - dada ao direito de pro-priedade imobiliária urbana, qual seja, o princípio da função social eambiental da propriedade e da cidade.

Rompendo de vez com a tradição civilista e com a concepção indivi-dualista do direito de propriedade imobiliária que têm orientado grandeparte da doutrina jurídica e das interpretações dos tribunais ao longo doprocesso de urbanização intensiva, e culminando assim um processo dereforma jurídica que começou na década de 1930, o que a Constituiçãode 1988 e o Estatuto da Cidade propõem é uma mudança do paradigmaconceitual de reconhecimento e interpretação desse direito.11

Contudo, em grande medida o sucesso – ou não – da nova lei vaidepender da ação dos juristas brasileiros. Refletindo as tensões do longoprocesso político-social que o engendrou, bem como a precariedade ine-rente ao processo legislativo no Brasil, o Estatuto da Cidade (assim comoa Medida Provisória no. 2.220/01) tem lá seus problemas jurídicos - quevão da ordem da (má) técnica legislativa em alguns casos à (im)precisãode certos conceitos - e com certeza vai gerar interpretações doutrináriase judiciais contraditórias.

O grande desafio colocado para os juristas brasileiros – naturalmente,aqueles que compreendem a necessidade de se colocar o Direito no mun-do da vida - é construir um discurso jurídico sólido que faça uma leiturateleológica dos princípios constitucionais e legais, integrando os novosdireitos sociais e coletivos à luz do marco conceitual consolidado peloEstatuto da Cidade, de forma a dar suporte jurídico adequado às estraté-gias político-institucionais de gestão urbano-ambiental comprometidascom a plataforma da reforma urbana.

11 Para uma avaliação crítica do processo histórico de construção do Direito Urbanístico no Brasil, vejaFernandes (1998b; 2001a; 2002b; 2002d).

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Identificar problemas jurídicos formais e acusar inconstitucionalida-des é uma tarefa fácil, ainda que lucrativa. Difícil – porém urgente - éconstruir novos argumentos jurídicos que sejam sólidos e consistentes nãosó da perspectiva da legitimidade político-social, mas também da pers-pectiva da legalidade. Não podemos mais continuar fazendo apenas odiscurso dos valores – temos de construir um discurso dos direitos que dêsuporte às novas estratégias político-institucionais de gestão democráticae inclusão social que diversos municípios têm tentado formular e imple-mentar em todo o país. Promover a inclusão social pelo direito: eis o desa-fio colocado para os juristas brasileiros.

Não é mais possível interpretar as graves questões urbanas e ambien-tais exclusivamente com a ótica individualista do Direito Civil; da mes-ma forma, não é mais possível buscar tão somente no Direito Administra-tivo tradicional (que com freqüência reduz a ordem pública à ordem es-tatal) os fundamentos para as novas estratégias de gestão municipal e deparcerias entre os setores estatal, comunitário, voluntário e privado.

O papel dos juristas, construindo as bases sociais e coletivas do DireitoUrbanístico, é de fundamental importância nesse processo de reformajurídica e reforma urbana, que passa, necessariamente, pela regulariza-ção dos assentamentos informais, para que sejam revertidas as bases dosprocessos de espoliação urbana e destruição sócio-ambiental que têmcaracterizado o crescimento urbano no Brasil.

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vol.3, n.1, 2002 Direito e Democracia 323Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.323-82

Lavagem de dinheiro e o problemada prova do delito prévio

Money Laundry and the Problem of Previous CrimeEvidence

ANDRÉ LUÍS CALLEGARI

Advogado, Doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid. Professor de Direito Penalna Graduação e Pós-Graduação da Universidade Luterana do Brasil e na Escola Superior da Magistratu-

ra do RS – Membro da Comissão Redatora do Código Penal Tipo Ibero-americano.

RESUMO

A Lei nº9.613/98, conhecida como Lei de Lavagem do Dinheiro, apresentauma série de novos problemas a serem enfrentados, destacando-se, aqui, aprova do delito prévio.Palavras-chave: Lavagem de dinheiro, Prova indiciária, Investigação de delito.

ABSTRACT

Brazilian Law n. 9.613/98, known as Money Laundry Law, presents a series ofnew issues to be confronted. The article emphasizes the proof of previous crime.Key words: Money laundry, criminal proof, crime investigation.

1.INTRODUÇÃO

A Lei de Lavagem de Dinheiro apresenta uma série de problemas,

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ainda não enfrentados principalmente pela jurisprudência. Isso se deveao fato de sua recente aparição (1998) e também da escassa doutrina arespeito do novo texto legal. Diante destes fatos, alguns temas merecemdestaque, e a problemática da prova do crime antecedente ao de lava-gem merece algumas reflexões.

O legislador brasileiro não exigiu a prova do delito antecedente ao delavagem para que se possa iniciar o processo e o julgamento deste crime.Assim, bastaria a existência de indícios do crime antecedente para que oMinistério Público desse início à ação penal. Tal fato encontra respaldono art. 2º, § 1º, da Lei n. 9.613/98, que dispõe expressamente que “adenúncia será instruída com indícios suficientes da existência do crimeantecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que des-conhecido ou isento de pena o autor daquele crime”.

2. INDÍCIOS DO DELITO PRÉVIO (PROVAINDICIÁRIA)

É possível que, na etapa de investigação de um delito, seja necessáriaa utilização dos indícios de um crime para a realização de algumas medi-das restritivas de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos(inviolabilidade de domicílio, sigilo das comunicações ou bancário). Detodas as formas, aqui já surge o problema da delimitação dos indícios,vale dizer, o que são os indícios que justificam tais medidas. Nesta fase,caracterizada pela necessidade de investigar e esclarecer as condutasdelitivas e seus possíveis participantes, os indícios equivalem, segundo adoutrina do Tribunal Constitucional Espanhol, a “suspeitas fundadas emalguma classe de dado objetivo que permita razoavelmente inferir que secometeu ou que se cometerá um delito”. Também se utilizam na jurispru-dência estrangeira, para caracterização dos indícios, as indicações, si-nais, notas, dados externos que, apreciados de maneira razoável, permi-tem descobrir ou vislumbrar, sem a segurança da plenitude probatória,mas com firmeza que proporciona uma suspeita fundada, é dizer, lógica,conforme as regras da experiência, a suspeita existência da realidade deum fato delitivo e a possível participação no mesmo da pessoa investigada(Zaragoza Aguado, 2000, p. 292).

A doutrina estrangeira (idem, p. 293; Montañes Pardo, 1999, pp. 106ss)

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menciona que no processo penal utiliza-se, ainda, a “prova de indícios”,igualmente identificada como prova indireta, circunstancial, conjectu-ral, ou de presunções, que mediante a demonstração dos mesmos - tam-bém chamados “fatos base” – permitem deduzir a execução do fato deliti-vo e/ou a participação no mesmo – o “fato conseqüência” – sempre queexista um enlace preciso e direto entre aqueles e este. Mas a devidautilização da prova indiciária está sujeita às seguintes condições: 1) osindícios devem ser plurais (excepcionalmente, pode bastar um só, sempreque revista uma singular potência incriminatória); 2) devem estar acre-ditados mediante prova direta; 3) devem estar estreitamente relaciona-dos entre si; 4) devem ser concomitantes ou, dito de outro modo, univo-camente incriminatórios; 5) entre os indícios e o fato necessitado de pro-va deve existir um enlace preciso e direto, conforme as regras de lógica,da experiência e do critério humano.

Montañes Pardo (1999, p. 107) comenta alguns destes requisitos emencionaremos alguns que nos servirão de base para o delito de lavagemde dinheiro. Inicialmente, refere que “os indícios devem estar plenamen-te acreditados” (item 2 do parágrafo anterior). Assim, é necessário que osindícios sejam fatos plenamente acreditados e não meras conjecturas oususpeitas, pois não é possível construir certezas sobre simples probabilida-des. Ademais, os indícios devem ser provados, como é óbvio, por provaslícitas e legalmente obtidas como se se tratasse de qualquer outro fato.

Também na doutrina é encontrada referência à concorrência de umapluralidade de indícios. A doutrina do Tribunal Supremo espanhol exige,como regra geral, a concorrência de uma pluralidade de indícios, porconsiderar que um fato único ou isolado de tal caráter impede fundar aconvicção judicial com base na prova indiciária (idem, p. 107).

Ainda assim, isso não seria suficiente, pois deveriam existir as razõesdedutivas dos indícios. Entre os indícios provados e os fatos que se infe-rem deles deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e raci-onal, segundo as regras do critério humano. A falta de concordância ouirrazoabilidade do encaixe entre o fato base (indício) e o fato deduzido(conseqüência) pode-se produzir tanto pela falta de lógica ou de coerên-cia na inferência como pelo caráter não conclusivo por excessivamenteaberto, débil ou indeterminado (idem, p. 108).

Por fim, ao validar a prova indiciária, o juiz deverá explicar na senten-ça a razão pela qual, partindo dos indícios provados, chegou à conclusão

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de considerar acreditada a culpabilidade do acusado. Esta exigência de-riva-se do art. 93, IX, da Constituição Federal, segundo o qual todas asdecisões do Poder Judiciário serão fundamentadas. Somente quando secontêm, na motivação da sentença, as razões dedutivas é que cabe deter-minar se a inferência foi a maneira patente racional, ilógica ou arbitrária.

A falta de motivação da sentença, em especial das razões dedutivascom base nos indícios provados, supõe diretamente a infração do direitoà presunção de inocência. Se a falta de motivação a respeito de culpa-bilidade do imputado implica, com caráter geral, um vazio probatórioque lesiona a essência do direito fundamental à presunção da inocên-cia, já que a exigência das razões de imputação forma parte da garantiada presunção da inocência, o mesmo ocorre a respeito da prova indici-ária, ainda mais quando se leva em conta que um dos requisitos destaprova é a existência das razões dedutivas nas quais se explicita o encai-xe entre os indícios e os fatos cuja prova se deduz (Montañes Pardo,1999, p. 109).

De acordo com Zaragoza Aguado, a lavagem de dinheiro constitui-senum comportamento criminal de novo cunho desde a perspectiva do di-reito positivo vigente, mas suficientemente conhecido já no início damoderna delinqüência surgida no amparo das associações criminais decorte empresarial. Isso fará com que a aplicação dos tipos penal de lava-gem dependa essencialmente da interpretação que os tribunais realizema respeito de duas questões extraordinariamente relevantes para a ade-quada construção do tipo penal e para o eficaz desenvolvimento das tare-fas de investigação deste ilícito: a determinação da origem delitiva dosbens que são objeto da infração e o conhecimento da origem dos mesmos(Zaragoza Aguado, 2000, pp. 294-295).

Portanto, a incidência destes dois problemas na aplicação judicial dasnormas reguladoras deste ilícito penal é óbvia. A lavagem é uma ativida-de criminal complexa, que se vale de um inesgotável catálogo de técni-cas ou de procedimentos em contínua transformação e aperfeiçoamento eno qual a vinculação com o delito prévio que lhe precede não pode sujei-tar-se à estrita aplicação das regras de acessoriedade que possam condi-cionar sua natureza de figura autônoma. Desde o ponto de vista objetivo,a constatação desse delito é uma tarefa relativamente simples, embora aquase obrigatória utilização do sistema financeiro legal para dar a apa-rência de licitude aos produtos e ganhos com origem delitiva traz comoconseqüência a constância de tais operações. De outro lado, as dificulda-

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des probatórias aumentam na hora de determinar os aspectos concretosreferidos anteriormente(Zaragoza Aguado, 2000, p. 295).

Em alguns casos, resulta de uma importância inquestionável a deno-minada prova de indícios, também chamada prova indireta, circunstan-cial ou de presunções, uma classe de prova especialmente idônea e útilpara suprir as carências da prova direta nos processos penais relativos aestas e outras atividades delitivas enquadradas no que se conhece comocriminalidade organizada e evitar assim as parcelas de impunidade quese poderiam gerar em outro caso a respeito dos integrantes destas organi-zações (idem, ibidem).

Feitas estas pequenas considerações sobre os indícios e sua valoraçãopara a culpabilidade do sujeito que pratica uma atividade ilícita, devemosverificar a problemática específica em relação à lavagem de dinheiro.

3. A PROVA DO DELITO PRÉVIO NA LEI DELAVAGEM

Ainda que não se tenha escrito muito a respeito do tema, um setor dadoutrina não está de acordo com a redação do preceito estabelecido no art.2º, § 1º, da Lei n. 9.613/98. As razões contrárias baseiam-se no fato de queo delito antecedente condiciona o tipo da lavagem de dinheiro e, de acor-do com isso, não seria possível a condenação do sujeito pelo crime de lava-gem se não houvesse a certeza absoluta da realização do delito anteceden-te. Portanto, o fato antecedente deve ser ao menos típico e antijurídicopara sua caracterização como delito prévio (D’Avila, s/d, p. 4).

Existem fortes argumentos para que se aceite a premissa de que osindícios do crime antecedente não são suficientes para condenação dosujeito pelo posterior delito de lavagem de capitais. Como o legisladorbrasileiro exigiu a existência suficiente de indícios do “crime” antece-dente, ao menos, o fato deve ser típico e antijurídico1 . Pode que ocorrano delito antecedente a exclusão da tipicidade ou da antijuridicidade,não ocorrendo, assim, um crime antecedente. Portanto, se não há crime

1 Não se exige a culpabilidade nesse conceito de crime por disposição expressa na Lei de Lavagem, pois o art. 1º,§ 1º, dispensa a culpabilidade do agente (o artigo fala em isenção de pena).

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antecedente, não se pode aplicar o disposto no art. 2º, § 1º, da Lei deLavagem.

Deixada de lado esta problemática, cabe afirmar que para demonstrara relação entre um bem (capital lavado) e um delito anterior é imprescin-dível provar a comissão desse delito prévio. Para acreditar este dado, exis-tem duas possibilidades: pode-se exigir uma sentença transitada em jul-gado em que se constate a realização do fato tipicamente antijurídico, oudeixar ao juiz que julga o delito de lavagem que determine esta matéria(Aránguez Sánchez, 2000, p. 200).

Para solucionar esta polêmica, um setor da doutrina espanhola utiliza ajurisprudência da receptação, assinalando que nestes casos não é necessá-rio uma sentença condenatória com relação ao delito prévio, mas se exige,pelo menos, um fato minimamente circunstanciado2 . Entretanto, é neces-sário que o juiz responsável pelo julgamento do fato de lavagem considereprovada a existência de um fato delitivo prévio, é dizer, é necessário sabercom precisão qual é o fato criminoso que originou os bens3 . Assim, não serequer uma sentença condenatória do crime antecedente, mas a recepta-ção deve estar plenamente acreditada em sua realidade e em sua naturezajurídica, sem que baste para isso a mera constância de denúncias, ocupa-ção de bens e outras diligências policiais ou sumárias, senão que, por setratar de um elemento constitutivo do tipo, faz-se preciso que as provasdestinadas a acreditá-lo tenham sido praticadas com as garantias constitu-cionais e processuais que as tornem aptas para desvirtuar a presunção dainocência4 . Portanto, ao menos, é necessário que fique provado que os bensprocedem de um dos delitos previstos na Lei de lavagem.

Por sua parte, a jurisprudência brasileira confere o mesmo tratamentoà receptação, é dizer, não exige a necessidade de uma sentença penalcondenatória que afirme a ocorrência do crime antecedente, mas é indis-pensável a prova de sua ocorrência5 . De acordo com isso, é possível autilização dessa interpretação para os delitos de lavagem, em especial, aopreceito estabelecido no artigo segundo, inciso segundo, da Lei brasilei-

2 Palomo Del Arco, Receptación y figuras afines, p. 380. Em contrário, Moreno Cánoves/ Ruíz Marco, Delitossocioeconômicos, p. 380.

3 Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales, p. 252; Vidales Rodríguez, Los delitos de receptación y legitimaciónde capitales en el Código Penal de 1995, p. 47; Aránguez Sánchez (2000, p. 200).

4 Nesse sentido, STS 20 de enero 1999.5 Revista dos Tribunais, 404/288; 663/293;718/425.

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ra. Assim, para que se possa condenar o sujeito pelo delito de lavagem, aomenos, é necessário que haja uma prova convincente do delito prévio,prova esta que pode ser acreditada com relação a um dos delitos prece-dentes previstos na Lei de lavagem. Somente indícios 6 do crime antece-dente não são suficientes para a condenação pelo delito de lavagem.

De todas as formas, o elemento subjetivo do tipo penal do delito delavagem identifica-se pelo conhecimento da origem ilícita dos bens, pois olegislador brasileiro fez menção direta aos crimes dos quais os bens serãoprocedentes. Por isso, só existe o delito de lavagem se o autor dissimula anatureza, origem, localização ou disposição dos bens quando sabe que estesprovêm dos crimes antecedentes previstos na Lei. Como ocorre na recepta-ção, não basta a simples suspeita, receio ou dúvida sobre sua procedência,senão que será preciso a certeza no que diz respeito à origem ilícita dosbens, até mesmo porque o delito de lavagem não possui a forma culposa.

Para Zaragoza Aguado, com mais fundamento, ao utilizar-se de um roltaxativo (delitos graves na Espanha) para referir-se aos delitos antece-dentes, o nível de exigência quanto ao elemento cognoscitivo normativonão poderá superar o dado de que os bens procedam de uma atividadedelitiva prévia prevista na lei sem mais precisões. Assim as coisas, a ca-racterística fundamental da lavagem de dinheiro, a efeitos de sua aplica-ção prática, é sua natureza autônoma e independente, sem acessoriedadea respeito do delito prévio, o que logicamente não exige a prova plena deum ilícito penal concreto e determinado dos bens e ganhos que são lava-dos (Zaragoza Aguado, 2000, p. 296). Isso vem ao encontro do que preco-niza nossa lei, porém, tal autonomia cai por terra na hora da aplicaçãoprática, pois sempre será necessário que se verifique, ao menos, se os bensprocedem de um dos delitos precedentes. Caso contrário, é dizer, nãohavendo tal verificação (autonomia plena do processo de lavagem), cor-re-se o risco de, ao final, condenar-se o agente pelos ganhos obtidos deforma lícita, desde que provada a obtenção dos ganhos através da comis-são de outros delitos que não os previstos na lei, ou, até mesmo, desdeque a origem dos bens não seja criminosa.

A determinação de procedência criminal dos bens que são objeto dosatos típicos de lavagem e que o próprio preceito penal circunscreve aos

6 Montañes Pardo (1999, p. 106 e ss) assinala a possibilidade de aceitação da prova de indícios sob a observaçãode alguns requisitos, como: a) os indícios devem estar plenamente acreditados; b) concorrência de umapluralidade de indícios; c) existência de razões dedutivas e d) motivação da decisão.

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delitos taxativamente previstos (art.1º, incisos I a VII, da Lei 9.613/98),não requererá outras exigências que a presença antecedente de uma ati-vidade delitiva prévia descrita na lei que permita, am atenção às circuns-tâncias do caso concreto, a exclusão de outras possíveis origens sem queseja necessária a demonstração plena de um ato delitivo específico nemdos concretos partícipes no mesmo (idem, pp. 296/297).

De todas as formas, como elementos indiciários de interesse, será ne-cessário valorar, para demonstrar o conhecimento da origem ilícita, entremuitos outros, dados tais como a utilização de identidades supostas, aexistência de relações comerciais que justifiquem os movimentos de di-nheiro, a utilização de testas-de-ferro sem disponibilidade econômica realsobre os bens, a vinculação com sociedades fictícias carentes de ativida-de econômica, mais especificamente se estão radicadas em países concei-tuados como paraísos fiscais, a realização de alterações documentais, ofracionamento de ingressos e depósitos para dissimular sua quantia, adisposição de elevadas quantidades de dinheiro em espécie sem origemconhecida, a simulação de negócios ou operações comerciais que nãorespondem à realidade, a percepção de elevadas comissões pelos inter-mediários e, finalmente, quaisquer outras circunstâncias concorrentesna execução de tais atos que sejam suscetíveis de serem qualificadoscomo irregulares ou atípicos desde uma perspectiva financeira e mercan-til e que não venham senão a indicar, no fundo, a clara intenção ouvontade de ocultar ou encobrir os bens e produtos do delito (ZaragozaAguado, 2000, p. 296/297).

Portanto, qualquer critério utilizado para a verificação do delito pré-vio deve levar em conta, em primeiro lugar, a existência do delito antece-dente (fato típico e antijurídico) e, posteriormente, se o sujeito conheciaa procedência dos bens (delitos taxativamente previstos na Lei de Lava-gem). De acordo com isso, nem sempre o critério da receptação solucio-nará o problema, pois, nos casos em que uma sentença posterior negue acomissão do delito prévio, é dizer, se fica provado que os bens não sãoprovenientes de um dos delitos antecedentes previstos na Lei de Lava-gem não haveria a comissão do delito em comento. Mas ainda assim, umsetor da doutrina brasileira sustenta a autonomia do processo do delito delavagem7 . Para maior segurança, seria melhor uma sentença transitado

7 Cervini; Oliveira; Gomes, 1998, p. 36, referem que para a existência do processo do crime da lavagem nãoimporta se o delito prévio está ou não sub judice, se foi ou não julgado.

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em julgado do delito prévio, reconhecendo a comissão do delito antece-dente que pode originar os bens aptos a serem lavados, pois pode ocorrero caso em que o sujeito resta condenado pela comissão do delito de lava-gem com base na prova indiciária, mas no processo do delito prévio restaabsolvido, por exemplo, pelo erro de tipo. Porém, pode-se ir mais longe,como na hipótese de o sujeito que tem que se sujeitar à prisão pela con-denação do delito de lavagem e, finalmente, ser absolvido pelo delitoantecedente que, supostamente, gerou os bens aptos a serem lavados.

De todas as formas, ainda que se utilize quaisquer dos critérios menci-onados para dar crédito ao delito antecedente, exige-se um convenci-mento cuidadoso pelo julgador ou, ao menos, uma prova segura do crimeantecedente, que poderá ser efetivada no próprio processo de lavagem ouem outro em que se apure o crime antecedente. Se houver dúvida sobrea existência do crime antecedente, o juiz não pode condenar o réu pelodelito de lavagem de dinheiro (Callegari, 2001, p. 495). Nesse sentido,um setor da doutrina menciona que a comprovação da ocorrência docrime básico configura uma questão prejudicial do próprio mérito da açãopenal em que se apura a prática do crime de lavagem. Portanto, quandofundamenta a sentença condenatória, o juiz tem o dever funcional deabordar essa questão, afirmando estar convencido da existência do crimeantecedente e também apontar as provas produzidas que o levaram aformar essa convicção (Barros 1998, p. 84), respeitando, assim, o disposi-tivo inserto na Constituição Federal que determina a fundamentação dasdecisões judiciais.

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vol.3, n.1, 2002 Direito e Democracia 333Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.333-104

Algumas considerações em tornoAlgumas considerações em tornoAlgumas considerações em tornoAlgumas considerações em tornoAlgumas considerações em tornodo conteúdo, eficácia edo conteúdo, eficácia edo conteúdo, eficácia edo conteúdo, eficácia edo conteúdo, eficácia e

efetividade do direito à saúde naefetividade do direito à saúde naefetividade do direito à saúde naefetividade do direito à saúde naefetividade do direito à saúde naConstituição de 1988Constituição de 1988Constituição de 1988Constituição de 1988Constituição de 198811111

Some Considerations on the Content, Efficacy andEffectiveness of Health Rights in Brazilian

Constitution - 1988

INGO WOLFGANG SARLET

Juiz de Direito no RS, Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Professor deDireito Constitucional na Faculdade de Direito da PUC-RS, onde também leciona a disciplina “Consti-

tuição e Direitos Fundamentais” no Mestrado em Direito.

RESUMO

A partir da discussão dos direitos fundamentais, procura-se analisar o direito àsaúde, em suas dimensões positiva e negativa, bem como as condições de suaeficácia e efetividade.Palavras-chave: Direitos fundamentais, saúde, eficácia dos direitos fundamentais.

ABSTRACT

Discussing the fundamental rights, the article tries to analyze the right to health,in its positive and negative dimensions, as well as the conditions of its efficacyand effectiveness.Key words: Fundamental rights, health, efficacy of fundamental rights.

1 O presente artigo foi originalmente publicado na Revista Interesse Público nº 12, outubro-dezembro de 2001.As modificações aqui introduzidas foram mínimas, limitadas à inclusão de algumas notas bibliográficas.

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1 - CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Escrever sobre a saúde e sua proteção na ordem jurídico-constitucio-nal constitui, sem dúvida, desafio para todos os que se ocupam do tema,seja pela sua relevância, seja pela miríade de aspectos que suscita, razãopela qual, desde logo, impõe-se uma delimitação do âmbito do presenteestudo. Com efeito, ainda que não se possa desconsiderar importantesaspectos de ordem ética e filosófica, além da relevância de se traçar umperfil da ambiência social, econômica e cultural na qual se inserem hojeos direitos fundamentais em geral, contexto marcado pelo impacto daglobalização econômica e do ideário neoliberal sobre o Direito e os direi-tos fundamentais,2 registra-se que o ponto central a ser versado nestabreve análise diz com a posição que a saúde ocupa no ordenamento jurí-dico pátrio, na condição de direito e dever fundamental positivado naConstituição Federal de 1988, de tal sorte que, num primeiro momento,buscaremos caracterizar o direito à saúde como direito (e dever) funda-mental da pessoa humana na ordem jurídica brasileira, especialmente naConstituição Federal de 1988, já que desta premissa resultam importan-tes conseqüências no que diz com a eficácia e efetividade desse direito àsaúde, temática que se constitui no objeto principal de nossa reflexão, nasegunda parte deste ensaio.

Por derradeiro, convém registrar que renunciamos a qualquer preten-são de aprofundamento e erudição acadêmica, na esperança de que pos-samos contribuir de alguma forma para a discussão e, quem sabe, atémesmo fornecer algum subsídio para a compreensão e, quem sabe, supe-ração pelo menos de algumas das inúmeras dificuldades que se colocampara todos os que se ocupam com o problema da saúde neste nosso país,pelo menos no que diz com a sua dimensão jurídica.

2 Sobre esta temática existe farta e valiosa literatura. Neste contexto, v. as contribuições, dentre outros, deFaria (1996, p. 127ss) e Azevedo (1999, especialmente p. 96 e seguintes)

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2 - A SAÚDE COMO DIREITO E DEVERFUNDAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERALDE 1988

2.1 - O direito à saúde e sua fundamentalidadeformal e material

Por mais estranho que possa parecer, muitas pessoas ainda questionama razão pela qual um direito à saúde (como, de resto, boa parte dos direi-tos sociais) encontra-se previsto na Constituição. Da mesma forma, háquem questione até mesmo o fato de advogados, promotores, defensorespúblicos e juízes estarem a se ocupar com esta temática, que, por certo, aprevalecer este ponto de vista, deveria ser da competência apenas dosmédicos, do governo, dos hospitais ou das empresas de planos de saúde?!

Certamente não é este o entendimento que se irá sustentar neste en-saio, o que, de resto, já se pode inferir das notas introdutórias. Em verdade,tais questionamentos esbarram na elementar constatação de que a nossaConstituição vigente consagrou expressamente a saúde como direito fun-damental da pessoa humana, decisão que, à evidência, deve ser levada asério. Vale ressaltar, neste contexto, que praticamente ninguém questio-nou, ao menos desde 1787, isto é, desde que surgiram as primeiras Consti-tuições escritas, na acepção contemporânea do termo, sobre o fato de apropriedade (que chegou a ser tida inclusive como direito natural) ocuparum lugar de destaque na Constituição. O mesmo se aplica à liberdade de ire vir e ao instituto processual do habeas corpus, assim como às liberdades deassociação, de reunião e à proteção da intimidade, da vida privada, dosigilo das comunicações e a privacidade do domicílio. Cuida-se, em todosos casos, de valores e bens jurídicos contemplados nas Constituições (aomenos naquelas que cultuam o Estado de Direito) há quase dois séculos.

Pois bem, bastou fossem contemplados nas Constituições os assim de-nominados direitos sociais, especialmente a educação, a saúde, a assis-tência social, a previdência social, enfim, todos os direitos fundamentaisque dependem, para sua efetividade, do aporte de recursos materiais ehumanos, para que se começasse a questionar até mesmo a própria condi-ção de direitos fundamentais destas posições jurídicas.

Consoante já sinalado, por mais que se queira advogar a causa dos

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adversários da constitucionalização de um direito à saúde (como, de res-to, dos demais direitos sociais), a nossa Constituição vigente, afinadacom a evolução constitucional contemporânea e o direito internacional,não só agasalhou a saúde como bem jurídico digno de tutela constitucio-nal, mas também foi mais além, consagrando a saúde como direito funda-mental, outorgando-lhe, de tal sorte, uma proteção jurídica diferenciadano âmbito da ordem jurídico-constitucional pátria.

Assim, a saúde comunga, na nossa ordem jurídico-constitucional, dadupla fundamentalidade formal e material da qual se revestem os direitose garantias fundamentais (e que, por esta razão, assim são designados) nanossa ordem constitucional.3 A fundamentalidade formal encontra-se li-gada ao direito constitucional positivo e, ao menos na Constituição pá-tria, desdobra-se em três elementos: a) como parte integrante da Consti-tuição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também a saúde),situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, cuidando-se, pois,de norma de superior hierarquia; b) na condição de normas fundamen-tais insculpidas na Constituição escrita, encontram-se submetidos aos li-mites formais (procedimento agravado para modificação dos preceitosconstitucionais) e materiais (as assim denominadas “cláusulas pétreas”)da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe oartigo 5, parágrafo 1, da Constituição, as normas definidoras de direitos egarantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamenteas entidades estatais e os particulares. A respeito de cada um destes ele-mentos caracterizadores da assim denominada fundamentalidade formal,notadamente sobre o seu sentido e alcance, ainda teremos oportunidadede nos manifestar.

Já no que diz com a fundamentalidade em sentido material, esta en-contra-se ligada à relevância do bem jurídico tutelado pela ordem cons-titucional, o que - dada a inquestionável importância da saúde para avida (e vida com dignidade) humana - parece-nos ser ponto que dispensamaiores comentários.

Por tudo isso, não há dúvida alguma de que a saúde é um direitohumano fundamental, aliás fundamentalíssimo, tão fundamental quemesmo em países nos quais não está previsto expressamente na Constitui-ção, chegou a haver um reconhecimento da saúde como um direito fun-

3 A respeito da fundamentalidade formal e material dos direitos fundamentais ver Sarlet 1998, pp. 78 e ss.

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damental não escrito (implícito), tal como ocorreu na Alemanha e emoutros lugares. Na verdade, parece elementar que uma ordem jurídicaconstitucional que protege o direito à vida e assegura o direito à integri-dade física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já queonde esta não existe e não é assegurada, resta esvaziada a proteção pre-vista para a vida e integridade física.

2.2 - Breves notas sobre a positivação de um direitofundamental à saúde no plano internacional e nodireito constitucional comparado

Mesmo que em caráter meramente ilustrativo, vale a pena - até mes-mo/ como intuito de demonstrar que a nossa ordem constitucional, nestecontexto, anda afinada com a evolução internacional - trazer algum da-dos a respeito da consagração no plano jurídico-positivo de um direitofundamental à saúde tanto no direito internacional, quanto no direitoconstitucional comparado.

No direito internacional, coube à Declaração Universal da ONU, de1948, o pioneirismo no que diz com a previsão expressa de um direito àsaúde. Com efeito, nos seus artigos 22 e 25, a Declaração dispõe, aqui deforma resumida, que a segurança social e um padrão de vida capaz deassegurar a saúde e o bem-estar da pessoa humana são direitos humanosfundamentais. Posteriormente, o Pacto Internacional dos Direitos Econô-micos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil, dispõe, no seuartigo 12, a respeito do direito de desfrutar do mais alto grau de saúdefísica e mental. Também na Convenção dos Direitos da Criança, já com adimensão específica voltada para a questão da saúde da criança e doadolescente, bem como na Convenção Americana dos Direitos Huma-nos, de 1989, ambas igualmente ratificadas pelo Brasil e incorporadas aonosso direito interno, encontramos nova referência ao direito à saúde.

No plano do Direito Constitucional comparado, já são diversas as Cons-tituições que contém previsão expressa do direito à saúde, como direitofundamental. É o caso, por exemplo, das Constituições da Argentina,Paraguai, Uruguai, Portugal, Espanha, Holanda, Itália, Grécia e França,apenas para citar as mais conhecidas. Assim, parece-me que o nosso Cons-tituinte - conforme já destacado - andou em boa companhia, pelo menosno que diz com a matéria ora versada.

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Aliás, das considerações tecidas até o presente momento, já se poderáter por não justificadas as inúmeras e severas críticas assacadas contra anossa Constituição, especialmente quando se trata de alegar que ela de-cretou a ingovernabilidade de nosso país, transformando-o virtualmentenuma espécie de “Leviathan” indomável, justamente por incluir na Consti-tuição os direitos fundamentais sociais básicos, tais como saúde e educa-ção, notadamente pelo fato de importarem em gastos para o poder público.Como já visto - e não desconsiderando que, de fato, existem ajustes que seimpõem - percebe-se que não estamos sozinhos nesta cruzada. Por certo,todas as Constituições citadas (que nem de longe esgotam a lista) tambémdecretaram a ingovernabilidade dos respectivos países?!!

2.3 - A saúde e sua positivação na ordemconstitucional brasileira como direito de todos edever do Estado e da sociedade

No caso da nossa Constituição Federal de 1988, a primeira Constitui-ção brasileira que reconheceu o direito à saúde expressamente como di-reito fundamental, este encontra-se previsto, de forma genérica, no arti-go 6º (juntamente com os demais principais direitos fundamentais so-ciais), bem como nos artigos 196 a 200, que contém uma série de normassobre o direito à saúde, algumas das quais voltaremos a referir. Tudo isso,inclusive os já referidos pactos internacionais ratificados e incorporadosao nosso ordenamento jurídico, integra, em última análise, o direito (edever) à saúde na nossa ordem constitucional vigente.

Convém registrar, nesta quadra, que - com amparo no que dispõe oseu art. 5º, parágrafo 2º, a nossa Constituição consagrou a noção, já in-corporada à nossa tradição jurídico-constitucional desde o advento daRepública, da abertura material de nosso “catálogo” de direitos funda-mentais, que abrange, além dos direitos previstos nos tratados internaci-onais em matéria de direitos humanos, os assim chamados direitos implí-citos e decorrentes do regime e dos princípios, mas também alcança direi-tos fundamentais expressa e implicitamente positivados em outras partesda Constituição, para além daqueles elencados no Título II (Dos Direitose Garantias Fundamentais)4 , de tal sorte que também os dispositivos (e

4 Sobre a abertura material do “catálogo” de direitos fundamentais na nossa Constituição, bem como sobre oalcance e significado no art. 5º, par. 2º, da Constituição de 1988, ver Sarlet 1998, pp. 81 e ss.

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as respectivas normas) referidos (arts. 196 a 200, da Constituição) pode-rão comungar - ao menos naquilo que dizem com os elementos nuclearesde um direito à saúde - da já aventada dupla fundamentalidade me sen-tido material e formal.

Mas a saúde, para além da sua condição de direito fundamental, é tam-bém dever. Tal afirmativa decorre - no que diz com o Estado - diretamenteda dicção do texto constitucional, que, no art. 196, dispõe solene e clara-mente que “a saúde é direito de todos e dever do Estado...,”, sublinhandoa obrigação precípua do poder público para com a efetivação deste direito.Todavia, a não ser que se pretenda sustentar uma interpretação literal erestritiva, que, no entanto - ao menos no nosso sentir - não resiste minima-mente quando se privilegia uma hermenêutica sistemática e hierarquizan-te, afinada, por sua vez, com os postulados da unidade da Constituição e dasua força normativa,5 também haverá se se reconhecer que a saúde geraum correspondente dever de respeito e, eventualmente até mesmo de pro-teção e promoção para os particulares em geral, igualmente vinculados nacondição de destinatários das normas de direitos fundamentais.

Assim, mesmo que não se vá aqui explorar este aspecto, importa con-siderar que sem o reconhecimento de um correspondente dever jurídicopor parte do Estado e dos particulares em geral, o direito à saúde restariafragilizado, especialmente no que diz com sua efetivação. Evidentemente- ainda que a Constituição não o tenha referido expressamente - tambémos particulares não poderão ofender a saúde alheia, alegando não seremdestinatários do direito à saúde. Basta atentar para o fato de que ofendera integridade física e moral de seus semelhantes constitui, em muitoscasos, conduta punível na esfera criminal ou, pelo menos, cível. De outraparte, poderá se sustentar que existe, de certa forma, um dever da própriapessoa (e de cada pessoa) para com sua própria saúde (vida, integridadefísica e dignidade pessoal), ensejando até mesmo e dependendo das cir-cunstâncias do caso concreto, uma proteção da pessoa contra si mesma,em homenagem ao caráter (ao menos em parte) irrenunciável da digni-dade da pessoa humana e dos direitos fundamentais (v. Sarlet 2001, p.

5 Especificamente sobre a hermenêutica constitucional, v. a recente e magistral contribuição de Juarez Freitas(2000, pp. 397 ss). Bem sustentando, com erudição e originalidade, que toda a interpretação é necessari-amente sistemática e hierarquizante, não poderíamos aqui também deixar de referir a já clássica obra deJuarez Freitas, A Interpretação Sistemática do Direito (1995), assim como o recente e igualmente notávelcontributo de Alexandre Pasqualini, Hermenêutica e Sistema Jurídico: uma Introdução à Interpretação Sistemá-tica do Direito (2000).

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113-114). Não é a toa, apenas para ilustrar o pensamento anterior, quealguns procedimentos médicos são vedados ainda que presente o consen-timento inequívoco e consciente do paciente.

Também o direito à saúde não pode, portanto, continuar sendo recon-duzido exclusiva e irrefletidamente à condição de direito público subjeti-vo, já que manifesta sua atuação também na esfera das relações entreparticulares, ainda que se possa admitir que a assim denominada “eficá-cia horizontal” dos direitos fundamentais, em suma, a vinculação dos su-jeitos privados, não possa ser tratada de modo similar à vinculação dopoder público (ver, dentre outros, Canotilho 1999, p. 1204ss).

Neste contexto, cumpre tecer algumas considerações sobre outro as-pecto de considerável relevância, qual seja, o da titularidade do direito àsaúde. Com efeito, antes de prosseguirmos com a caracterização da saúdecomo direito fundamental, há que responder à indagação de quem é,afinal de contas, o detentor (beneficiado) do direito à saúde.

No que diz com a titularidade dos direitos e garantias fundamentais, anossa Constituição, no seu artigo 5º , “caput”, dispõe que os direitos egarantias fundamentais nela consagrados são assegurados aos brasileirose estrangeiros residentes no país, dispositivo este que, caso interpretadoliteralmente, poderia significar, em tese, uma exclusão dos estrangeirosnão residentes do âmbito de proteção do direito à saúde. Tal exegeserestritiva, salvo melhor juízo, não poderá prevalecer, já que, do contrário,um infeliz turista (ao menos quando acometido de algum problema desaúde) que esteja gozando de suas férias no Brasil, poderia - sendo este oentendimento - ser barrado na entrada de qualquer hospital (mesmo darede pública), sob a alegação de não lhe ser assegurado o direito à saúde,não podendo até mesmo recorrer ao Judiciário para reclamar o seu aten-dimento de forma compulsória. Desde logo - e a despeito da formulaçãoutilizada no texto constitucional - parece-me evidente que esta não podeser a solução dada ao problema.

Com efeito, ainda que existam direitos fundamentais de titularidaderestrita (os direitos políticos e os direitos dos trabalhadores, por exemplo), adoutrina mais moderna, assim como a jurisprudência mais atualizada, feliz-mente não chancelam este entendimento restritivo, notadamente em ho-menagem ao princípio da universalidade dos direitos fundamentais. Paraalém disso, basta que se atente para a fórmula utilizada pelo Constituinteno já citado artigo 196 da nossa Carta Magna (“a saúde é direito de to-

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dos...”) para evidenciar que nos encontramos diante de norma que excep-ciona a regra geral estabelecida no “caput” do artigo 5º. Mesmo que assimnão fosse, teríamos motivos de sobra para uma leitura de feição extensiva, eisto por vários motivos. No caso específico da saúde, como, de resto, ocorrecom uma série de outros direitos fundamentais, parece elementar que, porsua direta ligação com o próprio direito à vida e com o direito à integridadefísica e corporal, que, por sua natureza, são direitos de todos (e de qualquerum), nos encontramos também diante de um direito de toda e qualquerpessoa humana, brasileira ou não. Para além deste argumento, assume des-taque o disposto no artigo 4º, inciso II, da Constituição, enunciando que,nas suas relações internacionais, o Brasil reger-se-á (dentre outros princí-pios) pela prevalência dos direitos humanos, isto sem falar na internaliza-ção - com força de norma constitucional -6 dos tratados internacionais queexpressamente mencionam o direito à saúde, por força do art. 5º, parágrafo2º de nossa Carta Magna.

3 - EFICÁCIA E EFETIVIDADE DO DIREITO ÀSAÚDE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

3.1 - Caracterização do direito à saúde como direitosocial de cunho defensivo e prestacional

Como direito fundamental da pessoa humana (e não apenas dos brasi-leiros e estrangeiros residentes no país) o direito à saúde tem sido consi-derado como um direito social, integrando, portanto, a assim denomina-da segunda dimensão (ou geração) dos direitos fundamentais, que mar-cou a evolução do Estado de Direito de inspiração liberal-burguesa, paraum novo modelo de Estado e Constituição que se convencionou denomi-nar de Estado Social (ou Estado social de Direito).7 Sem que aqui possa-mos aprofundar esta perspectiva, fica o registro de que com a positivação

6 Sobre a hierarquia constitucional dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos v. especialmen-te Piovesan 1996, pp. 73 e ss., assim como Barroso 1996, pp. 15 e ss, e, mais recentemente, Mello, 2001, pp.1 e ss.

7 Sobre a evolução histórica dos direitos fundamentais e o problema das assim denominadas dimensões (ougerações, como ainda parece preferir a doutrina majoritária) dos direitos, v., entre outros, especialmenteBonavides, 1999 , pp. 514 e ss.

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de direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais, objetos até mes-mo de um pacto internacional específico (Pacto Internacional dos Direi-tos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966) se pretendeu, em últimaanálise, a compensação das gritantes desigualdades sócio-econômicasacarretadas ao longo da revolução industrial (embora esta, à evidência,não tenha implantado a pobreza no mundo), buscando a concretizaçãoda idéia de justiça material, por meio de uma liberdade e igualdade nãomeramente formais, bem como pela extensão da proteção da liberdadepessoal em relação ao exercício do poder social e econômico, que resul-tou na afirmação das liberdades sociais, como é o caso da liberdade deassociação sindical e do direito de greve.

Pois bem, o que importa nesta quadra do estudo e partindo da classifi-cação dos direitos fundamentais em direitos de defesa (negativos) e di-reitos a prestações (positivos), é o fato de que o direito à saúde pode,dependendo de sua função no caso concreto, ser reconduzido a ambas ascategorias, o que, como ainda se terá oportunidade de verificar, acarretareflexos importantes no âmbito da eficácia e efetividade. Em verdade, oque se pretende aqui destacar, a partir da noção de que o texto (o dispo-sitivo legal ou constitucional) não se confunde com a norma (ou normas)nele contida,8 é que existem diversas posições jurídico-fundamentais (emsuma, diversos direitos) vinculados aos dispositivos constitucionais quetratam da saúde.9

Assim, o direito à saúde pode ser considerado como constituindo si-multaneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências in-devidas por parte do Estado e terceiros na saúde do titular, bem como - eesta a dimensão mais problemática - impondo ao Estado a realização depolíticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a popula-ção, tornando, para além disso, o particular credor de prestações materi-ais que dizem com a saúde, tais como atendimento médico e hospitalar,fornecimento de medicamentos, realização de exames da mais variadanatureza, enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realiza-ção concreta deste direito à saúde. É justamente sobre estas formas demanifestação do direito à saúde que iremos, nos próximos segmentos, te-cer algumas considerações.

8 Sobre este ponto v. a paradigmática lição de Grau, 1997, pp. 164 e ss., retomada, mais recentemente, porStreck, 1999, p. 16 (nota nº 2).

9 A respeito deste aspecto, v. especialmente o pensamento de Robert Alexy, 1997, pp. 47 e ss.

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3.2 - Notas sobre a eficácia e efetividade do direito àsaúde

3.2.1 - Considerações introdutórias: o princípio da máximaeficácia e efetividade das normas definidoras de direitosfundamentais

Em que pese a complexidade do problema e os riscos decorrentes deuma simplificação, salientamos que, dadas as limitações deste estudo,haveremos de priorizar alguns dados de cunho mais genérico, restringin-do a nossa abordagem a alguns dos inúmeros aspectos passíveis de seremenfrentados neste contexto.

Desde logo, cumpre rememorar que a nossa Constituição, no âmbitoda fundamentalidade formal dos direitos fundamentais, previu, expressa-mente, em seu art. 5º, parágrafo 1º, que “as normas definidoras dos direi-tos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Tal formulação, àevidência, traduz uma decisão inequívoca do nosso Constituinte no sen-tido de outorgar às normas de direitos fundamentais uma normatividadereforçada e, de modo especial, revela que as normas de direitos e garan-tias fundamentais não mais se encontram na dependência de uma con-cretização pelo legislador infraconstitucional, para que possam vir a gerara plenitude de seus efeitos, de tal sorte que permanece atual a expressivae multicitada frase de Herbert Krüger, no sentido de que hoje não hámais falar em direitos fundamentais na medida da lei, mas sim, em leis namedida dos direitos fundamentais.10

Em síntese, a despeito das interpretações divergentes e que aqui nãoteremos condições de examinar, sustentamos que a norma contida no art.5º, parágrafo 1º da nossa Constituição, para além de aplicável a todos osdireitos fundamentais (incluindo os direitos sociais), apresenta caráterde norma-princípio,11 de tal sorte que se constitui em uma espécie demandado de otimização, impondo aos órgãos estatais a tarefa de reconhe-cerem e imprimirem às normas de direitos e garantias fundamentais amaior eficácia e efetividade possível.12 Vale dizer, em outras palavras,

10 Conforme Miranda, 2000, p. 311, bem como, pela doutrina alemã, Kunig, p. 130.11 A respeito da distinção entre regras e princípios como espécie de normas, v. Canotilho 1999, pp 1085 e ss.,

embasado especialmente nas lições de Dworkin e Alexy.12 Sobre este sentido do artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição de 1988, v. Sarlet 1998, pp. 245 e ss.

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que das normas definidoras de direitos fundamentais, podem e devem serextraídos diretamente, mesmo sem uma interposição do legislador, os efei-tos jurídicos que lhe são peculiares e que, nesta medida, deverão serefetivados, já que, do contrário, os direitos fundamentais acabariam porse encontrar na esfera da disponibilidade dos órgãos estatais. De modoespecial no que diz com os direitos fundamentais sociais, e contrariamen-te ao que propugna ainda boa parte da doutrina, tais normas de direitosfundamentais não podem mais ser considerados meros enunciados semforça normativa, limitados a proclamações de boas intenções e veiculan-do projetos que poderão, ou não, ser objeto de concretização, dependen-do única e exclusivamente da boa vontade do poder público, em especial,do legislador. Que tal postulado (o princípio que impõe a maximização daeficácia e efetividade de todos os direitos fundamentais) não implica emdesconsiderar as peculiaridades de determinadas normas de direitos fun-damentais, admitindo, dadas as circunstâncias, alguma relativização, éponto que voltará a ser referido e que aqui vai apenas anunciado.

Feitas estas breves considerações à guisa de preliminar, passaremosentão a tratar como as normas constitucionais versando sobre a saúde,especialmente naquilo que dizem com um direito à saúde, poderão al-cançar eficácia e efetividade. Neste contexto, vale relembrar que, nacondição de direito constitucional fundamental, o direito à saúde possuivárias dimensões, assim como diversas possibilidades de concretização,isto é, de realização, dentre as quais destacam-se as que seguem.

3.2.2 - A dimensão negativa do direito à saúde (a saúdecomo direito de defesa)

No âmbito da assim denominada dimensão negativa, o direito à saúdenão assume a condição de algo que o Estado (ou a sociedade) deve for-necer aos cidadãos, ao menos não como uma prestação concreta, tal comoacesso a hospitais, serviço médico, medicamentos, etc. Na assim chama-da dimensão negativa, ou seja, dos direitos fundamentais como direitosnegativos (ou direitos de defesa), basicamente isto quer significar que asaúde, como bem jurídico fundamental, encontra-se protegida contraqualquer agressão de terceiros. Ou seja, o Estado (assim como os demaisparticulares), tem o dever jurídico de não afetar a saúde das pessoas, denada fazer (por isto direito negativo) no sentido de prejudicar a saúde.Assim, qualquer ação do poder público (e mesmo de particulares) ofensi-va ao direito à saúde é, pelo menos em princípio, inconstitucional, e po-

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derá ser objeto de uma demanda judicial individual ou coletiva, em sedede controle concreto ou abstrato de constitucionalidade. Uma lei, porexemplo, que tivesse como objetivo impedir a determinados cidadãos oacesso ao SUS, poderia, em princípio, vir a ser ser declarada inconstituci-onal e anulada, o que, por si só, já se revela como uma forma de tornarefetivo o direito à saúde, ao menos nesta dimensão importante.

Além disso, ainda no contexto da assim denominada dimensão defen-siva do direito à saúde, há que considerar o princípio da proibição deretrocesso, que, embora ainda não esteja suficientemente difundido en-tre nós, tem encontrado crescente acolhida no âmbito da doutrina maisafinada com a concepção do Estado democrático de Direito consagradopela nossa ordem constitucional.13

O princípio da vedação de retrocesso, embora necessariamente nãotenha o condão de desconsiderar uma certa margem de liberdade daqual dispõe o legislador numa ordem democrática, impede, todavia, queo legislador venha a desconstituir pura e simplesmente o grau de concre-tização que ele próprio havia dado às normas da Constituição, especial-mente quando se cuida de normas constitucionais que, em maior ou me-nor escala, acabam por depender destas normas infraconstitucionais paraalcançarem sua plena eficácia e efetividade, em outras palavras, paraserem aplicadas e cumpridas pelos órgãos estatais e pelos particulares.

Também no âmbito do direito à saúde - convém lembrá-lo - existem váriasleis que o regulamentam. Assim, por exemplo, há como citar a legislaçãofederal e estadual (o Rio Grande do Sul dispõe de uma lei específica), deter-minando que o governo (da União e/ou do Estado) é obrigado a fornecer,gratuitamente, medicamentos especiais a pessoas sem condições financeiraspara a aquisição e que deles necessitam para o tratamento de suas moléstias,incluindo, à evidência, medicamentos para os portadores do HIV. Tambémtemos uma ampla e minuciosa regulamentação do SUS, igualmente instituí-do originariamente pela Constituição de 1988. Da mesma forma, há comocitar a legislação sobre os planos de saúde, que dizem com o papel da inicia-tiva privada no campo da saúde, tudo isto apenas para demonstrar a impor-tância desta regulamentação da Constituição pelo legislador ordinário (in-fraconstitucional) e até mesmo pelo Poder Executivo, no âmbito da sua com-petência administrativa e normativa.

13 Sobre a proibição de retrocesso v. Sarlet 1998, pp. 369 e ss. Mais recentemente, v. a referência feita por Streck.1999, pp 31 e ss. Sobre o Estado democrático de Direito e seu papel na concretização da igualdade e dosdireitos sociais, v., ainda, a relevante contribuição Bolzan de Morais, 1996.

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Pois bem, considerando os exemplos colacionados, verifica-se que combase no princípio da proibição de retrocesso, especialmente em matériade direitos fundamentais sociais, o que se pretende é evitar que o legisla-dor venha a revogar (no todo ou em parte essencial) uma ou mais normasinfraconstitucionais que concretizaram o direito à saúde constitucional-mente consagrado. Mesmo que não se esteja a falar aqui de uma altera-ção da própria Constituição (objeto de proteção específica por intermé-dio dos limites formais e materiais ao poder de reforma constitucional),ainda assim estaríamos diante da hipótese de um verdadeiro golpe contraa nossa Lei Fundamental, de tal sorte que, em configurada esta hipótese,sempre se poderá impugnar, via judicial, este tipo de procedimento, invo-cando a sua inconstitucionalidade.

Muito embora a situação não se possa confundir com a dimensão oraexposta, há como enquadrar, no contexto de uma natureza defensiva dodireito de saúde, a proteção qualificada que o nosso Constituinte outorgouao direito fundamental à saúde, ao incluir os direitos sociais (mesmo na suafunção prestacional) no elenco das assim denominadas “cláusulas pétreas”,de tal sorte que nem mesmo uma emenda à Constituição poderá abolir oumesmo impor restrições desproporcionais e/ou invasivas do núcleo essencialdo direito à saúde, estando sujeita, neste caso, a ser fulminada em sede decontrole de constitucionalidade (conforme sustenta Lopes, 1993, pp. 183ss).Ainda que não se queira admitir que a saúde seja também (para efeitos dodisposto no art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, da nossa Constituição) direitoindividual fundamental - do que dão conta as inúmeras demandas indivi-duais que aportam mensalmente apenas nas Varas da Fazenda Pública dePorto Alegre - de cada uma e de todas as pessoas, sempre haverá comosustentar que, em virtude da inequívoca relevância do bem jurídico tute-lado (em suma, a vida, a dignidade e a integridade física e psíquica do serhumano), as normas jusfundamentais sobre a saúde enquadram-se nos cha-mados limites materiais implícitos à reforma constitucional.

3.2.3 - Dimensão positiva do direito à saúde: o direito àsaúde como direito a prestações materiais

A pergunta que se coloca a todos que analisam a dimensão prestacional(ou positiva) do direito à saúde, em última análise, diz com a possibilidade deo titular deste direito (em princípio qualquer pessoa), com base nas normasconstitucionais que lhe asseguram este direito, exigir do poder público (eeventualmente de um particular) alguma prestação material, tal como um

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tratamento médico determinado, um exame laboratorial, uma internaçãohospitalar, uma cirurgia, fornecimento de medicamento, enfim, qualquer ser-viço ou benefício ligado à saúde. A resposta, à evidência, é tudo menos sin-gela, assim como também é evidente que não teremos aqui condições deesgotar o problema. Por esta razão, seguem apenas algumas breves considera-ções a respeito desta faceta do direito à saúde, partindo-se, desde logo, dapremissa de que o direito à saúde, para além da dimensão defensiva já decli-nada, é também (e acima de tudo) um direito a prestações, ao qual igual-mente deverá ser outorgada a máxima eficácia e efetividade.

Talvez a primeira dificuldade que se revela aos que enfrentam o pro-blema seja o fato de que nossa Constituição não define em que consiste oobjeto do direito à saúde, limitando-se, no que diz com este ponto, a umareferência genérica. Em suma, do direito constitucional positivo não seinfere, ao menos não expressamente, se o direito à saúde como direito aprestações abrange todo e qualquer tipo de prestação relacionada à saú-de humana (desde atendimento médico até o fornecimento de óculos,aparelhos dentários, etc), ou se este direito à saúde encontra-se limitadoàs prestações básicas e vitais em termos de saúde, isto em que pese ostermos do que dispõe os artigos 196 a 200 da nossa Constituição.

Quem vai definir o que é o direito à saúde, quem vai, neste sentido,concretizar esse direito é o legislador Federal, Estadual e/ou Municipal,dependendo da competência legislativa prevista na própria Constituição.Da mesma forma, será o Poder Judiciário (ao menos, assim o sustenta-mos), quando acionado, quem irá interpretar as normas da Constituiçãoe as normas in fraconstitucionais que a concretizarem.

Permanece, todavia a indagação se o Poder Judiciário está autorizadoa atender essas demandas e conceder aos particulares, via ação judicial,o direito à saúde como prestação positiva do Estado, compelindo o Estadoao fornecimento de medicamentos, leitos hospitalares, enfim, toda e qual-quer prestação na área da saúde. Na medida em que o nosso poder públi-co não tem logrado atender (e aqui não se está adentrando o mérito dasrazões invocadas) o compromisso básico com o direito à saúde, constata-se a existência de inúmeras ações judiciais tramitando nos Foros e Tribu-nais brasileiros, dentre as quais destacam-se as demandas movidas porportadores do HIV na busca do fornecimento dos medicamentos para otratamento adequado da moléstia e a garantia de uma sobrevida maislonga e com menor sofrimento e, portanto, mais digna.

A expressiva maioria dos argumentos contrários ao reconhecimento de

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um direito subjetivo individual à saúde como prestação (assim como ocorrecom os demais direitos sociais prestacionais, tais como educação, assistên-cia social, moradia, etc), prende-se ao fato de que se cuida de direito que,por sua dimensão econômica, implica alocação de recursos materiais e hu-manos, encontrando-se, por esta razão, na dependência da efetiva disponi-bilidade destes recursos, estando, portanto, submetidos a uma reserva dopossível. Com base nesta premissa e considerando que se cuida de recursospúblicos, argumenta-se, ainda, que é apenas o legislador democraticamen-te legitimidado quem possui competência para decidir sobre a afetaçãodestes recursos, falando-se, neste contexto, de um princípio da reservaparlamentar em matéria orçamentária, diretamente deduzido do princípiodemocrático e vinculado, por igual, ao princípio da separação dos pode-res.14 Assim, em se acolhendo de forma irrestrita este entendimento, efe-tivamente haveríamos de capitular diante daqueles que propugnam o cu-nho meramente programático das normas constitucionais sobre a saúde.

Embora tenhamos que reconhecer a existência destes limites fáticos(reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orça-mentária) implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetivida-de dos direitos sociais prestacionais, que, de resto, acabam conflitandoentre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distri-buídos para atendimento de todos os direitos fundamentais sociais bási-cos, sustentamos o entendimento, que aqui vai apresentado de modo re-sumido, no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de pres-tações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria o compro-metimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais,notadamente - em se cuidando da saúde - da própria vida, integridadefísica e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direi-to subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo.15 Tal argumen-to cresce em relevância em se tendo em conta que a nossa ordem consti-

14 A respeito da diferença entre os direitos de defesa e direitos sociais a prestações, bem como sobre os argumentoscontrários ao reconhecimento de um direito subjetivo a prestações materiais, v. Sarlet 1998,pp. 259 e ss. e pp.279 e ss. Também enfrentando este problema e sustentando posição em parte divergente, vale lembrar aexcelente contribuição de Torres, 2001, especialmente p. 282 e ss., assim como a obra de Amaral, 2001.

15 Cabe lembrar, neste contexto, que, nesta linha de entendimento, um direito subjetivo a prestações não poderáabranger - em face dos limites já referidos - toda e qualquer prestação possível e imaginável,restringindo-se,onde não houver previsão legal, às prestações elementares e básicas. Neste sentido, cumpre referir paradigmáticaformulação enunciada pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, ao lembrar que o particularpoderá reclamar do Estado apenas algo que seja razoável. Assim, por exemplo, não parece razoável compeliro Estado a pagar tratamento dentário de cunho não imprescindível, ou mesmo fornecer determinadomedicamento, quando existe outro similar em eficácia, mas de custo menor.

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tucional (acertadamente, diga-se de passagem) veda expressamente apena de morte, a tortura e a imposição de penas desumanas e degradan-tes mesmo aos condenados por crime hediondo, razão pela qual não sepoderá sustentar - pena de ofensa aos mais elementares requisitos da ra-zoabilidade e do próprio senso de justiça - que, com base numa alegada (emesmo comprovada) insuficiência de recursos - se acabe virtualmentecondenando à morte a pessoa cujo único crime foi o de ser vítima de umdano à saúde e não ter condições de arcar com o custo do tratamento(Sarlet 1998, pp. 298ss).

A solução, portanto, está em buscar, à luz do caso concreto e tendo emconta os direitos e princípios conflitantes, uma compatibilização e harmo-nização dos bens em jogo, processo este que inevitavelmente passa poruma interpretação sistemática, pautada pela já referida necessidade dehierarquização dos princípios e regras constitucionais em rota de colisão,fazendo prevalecer, quando e na medida do necessário, os bens mais rele-vantes e observando os parâmetros do princípio da proporcionalidade. Talconcepção, ora sumariamente exposta, foi recentemente acolhida emnotável Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, da lavrado eminente Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, demonstrando, naesteira de inúmeras outras decisões de Juízes e Tribunais pátrios, a consa-gração da tese em prol do reconhecimento de um direito subjetivo à saú-de como prestação, bem como o comprometimento, pelo menos de largaparcela do Poder Judiciário, com a causa da vida e da dignidade da pes-soa humana,16 entendimento este atualmente sufragado até mesmo pelosinicialmente mais tímidos Tribunais Superiores.17

Resta consignar, nesta quadra da exposição, que no caso específico dofornecimento de medicamentos, os argumentos contrários ao reconheci-mento de um direito subjetivo a prestações diretamente deduzido daConstituição esbarram até mesmo na existência de legislação específica(Lei Federal nº 9.313/96 e, no caso específico do Rio Grande do Sul, daLei Estadual nº 9.908/93), de tal sorte que já houve, ao menos para este

16 Cf. julgamento nos Embargos Infrigentes nº 598526481, 4º Grupo de Câmaras Cíveis, Relator Des. Luiz FelipeBrasil Santos, 11.06.99.

17 Vale lembrar, neste contexto, decisões do Superior Tribunal de Justiça afirmando o cunho programático dodireito à saúde (art. 196 da CF), muito embora a recente e louvável alteração substancial deste entendi-mento, como se verifica a partir do Acórdão proferido em sede de Recurso Ordinário em Mandado deSegurança nº 11183/PR, relatado pelo Ministro José Delgado, onde restou assentado que o direito à saúdeé direito fundamental do ser humano.

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efeito, uma concretização pelo legislador infraconstitucional, inexistin-do, igualmente na senda do que já tem sido decidido pelo Tribunal deJustiça do Rio Grande do Sul,18 qualquer óbice à condenação do Estadono fornecimento ou pagamento (se não tiver em estoque os medicamen-tos) da medicação necessária, o que assume particular importância nocaso dos portadores do HIV.

Por outro lado, não haveria como desconsiderar a grave ameaça quepaira sobre todos aqueles que necessitam bater às portas do Judiciáriopara a obtenção, via processo judicial, do reconhecimento e proteção deseu direito à saúde. Com efeito, tendo em conta o caráter normalmenteemergencial da prestação reclamada, impõe-se, em regra, a concessão deuma medida liminar, que, evitando o comprometimento grave e até mes-mo irreversível da saúde do demandante, concede-lhe antecipadamenteo direito reclamado em Juízo, no todo ou em parte. Pois bem, consideran-do a existência de legislação proibitiva da concessão de tutela antecipa-da contra o poder público e levando em conta, ainda, o fato de o SupremoTribunal Federal ter-se pronunciado pela constitucionalidade desta le-gislação (embora não de forma definitiva), não se poderia mais, a preva-lecer este entendimento, obter provisória e antecipadamente, o medica-mento, exame laboratorial, atendimento médico, enfim, a prestação saú-de constitucionalmente assegurada. Mesmo assim, constata-se que Juízese Tribunais - a despeito do entendimento do Supremo Tribunal Federalquanto a este ponto - continuam, ao menos em sua maior parte, deferin-do liminares, cientes de que negar a antecipação da tutela e relegar aofinal do processo a concessão do direito reclamado, em muitos casos equi-valeria, na linha do que já restou dito, condenar a pessoa à morte ou aocomprometimento grave e, por vezes, definitivo de sua saúde.

De outra parte, verifica-se que a referida ameaça - pelo menos no casodo direito à saúde - tem sido amenizada pelo próprio Supremo TribunalFederal, seja pelo fato de não ter cassado, em sede de Reclamação, asdecisões proferidas pelos Juízes e Tribunais ordinários, seja por ter consi-derado, já em mais de um julgamento, que a condenação do Estado nofornecimento de medicamentos, com base em legislação específica, se-quer desafia Recurso Extraordinário, já que não se cuida de ofensa diretaà Constituição, além de afirmar, recentemente e de modo enfático, ocaráter fundamental e, pelo menos em certa medida, também justiciável

18 Cf. Apelação Cível nº 598018182, 4ª Câmara Cível, Rel. Des. Vasco Della Giustina, julgada em 22.10.98.

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do direito à saúde (na condição de direito subjetivo) no âmbito de nossaordem jurídico-constitucional.19

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de encerramento e cientes de que aqui logramos apenas tan-genciar alguns dos aspectos de tão relevante e complexa problemática,parece-nos oportuno registrar que, quando falamos do direito à saúde eda sua efetivação, não podemos desconsiderar a inequívoca imbricaçãoentre questões que normalmente são tidas como “meramente” políticas,econômicas, sociais ou mesmo culturais, com a ordem jurídica, isto é,com a evidente relevância jurídica destes problemas. Da mesma forma,não há como negligenciar que o jurídico - e isto não apenas no âmbito dasaúde - encontra seus limites justamente na realidade social, econômicae cultural de uma determinada sociedade. Com efeito, na esteira da opor-tuna lição de Dieter Grimm, ilustre publicista e Magistrado aposentadodo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, a efetividade dos di-reitos fundamentais em geral (e não apenas dos direitos sociais a presta-ções) não se alcança com a mera vigência da norma e, portanto, não seresolve no plano exclusivamente jurídico, transformando-se em um pro-blema de uma verdadeira política dos direitos fundamentais.20

Assim, não obstante a singeleza da colocação, temos a convicção deque apenas mediante uma convergência de vontades e esforços (do Po-

19 Com efeito, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 267.612-RS (decisão publicada no DJUde 23.08.2000), o eminente Relator, Ministro Celso de Mello, em hipótese versando justamente sobre ofornecimento de medicamentos para o tratamento da AIDS, consignou que “o direito público subjetivo àsaúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própriaConstituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integri-dade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar -políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário àassistência médico-hospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - quetem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federa-tiva do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena deo poder público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneirailegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governa-mental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.” (extraído das transcrições efetuadas noBoletim Informativo do STF).

20 Cf. Grimm 1982, p. 72. No mesmo sentido, entre nós, vale registrar a luminosa afirmação de Clève (1993, p.127), ao enfatizar a necessidade de uma política da dignidade e dos direitos fundamentais.

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der Público e da sociedade), bem como especialmente com a superaçãodo tradicional jogo do “empurra-empurra” que se estabeleceu no nossoPaís (entre Estado e iniciativa privada, entre União e Estados, entre estese os Municípios, entre Executivo e Legislativo, entre estes e o Judiciário,etc) é que se poderá chegar a uma solução satisfatória e que venha aresgatar a dignidade da pessoa humana para todos os brasileiros, notada-mente no que diz com a efetiva possibilidade de usufruir das condiçõesmínimas para uma existência digna.

Além do mais, cumpre relembrar a circunstância elementar - emboranem por isso devidamente considerada - de que a saúde não é apenasdever do Estado, mas também da família, da sociedade e, acima de tudo,de cada um de nós. Sem solidariedade e responsabilidade por parte detodos, poder público e comunidade, a saúde, cada vez mais, não passaráde uma mera promessa insculpida no texto da nossa Constituição, nãosendo à toa que cada vez mais assume lugar de destaque a dimensãodemocrático-participativa no âmbito da efetividade dos direitos funda-mentais, especialmente de caráter prestacional.21 Por outro lado, cumpreresgatar e reafirmar a “irrenunciável dimensão utópica” dos direitos fun-damentais, da qual nos fala Pérez-Luño, sinalando que os direitos funda-mentais contém, a despeito da sua faceta jurídico-normativa, um projetoemancipatório real e concreto (Luño 1996, p. 15). Entre nós, reconhe-cendo igualmente uma perspectiva utópica e promocional dos direitosfundamentais, José Eduardo Faria, partindo da concepção da utopia como“horizonte de sentido”, sustenta que a luta pela universalização e efetiva-ção dos direitos fundamentais implica a formulação, implementação eexecução de programas emancipatórios, que, por sua vez, pressupõe umaextensão da cidadania do plano meramente político-institucional para osplanos econômico, social, cultural e familiar, assegurando-se o direito dosindivíduos de influir nos destinos da coletividade (Faria 1996, pp. 154 ess.). É evidente que também e particularmente - em face de sua estreitavinculação com a própria garantia da vida e de uma vida com dignidade- para o direito à saúde, a benfazeja utopia constitucional da máximarealização dos direitos fundamentais assume feições emergenciais, espe-cialmente em virtude das peculiaridades da ordem jurídica, social e eco-nômica pátria.

21Referindo-se à participação popular e democracia com relação ao direito à saúde, ver a recente contribuiçãode Schwartz (2001, p. 182 e ss).

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vol.3, n.1, 2002 Direito e Democracia 355Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.105-121

Assistência familiar como umdireito fundamental

Familial Assistance as a Fundamental Right

BRUNO CANÍSIO KICH,Advogado, mestrando em Direito- ULBRA/Canoas.

RESUMO

Dentro de uma perspectiva comparativista, o autor procura demonstrar o tra-tamento jurídico do dever de assistência familiar, no tocante ao direito a ali-mentos, com ênfase na solidariedade familiar.Palavras-chave: Alimentos, Direito a alimentos, Direito de Família, DireitosFundamentais.

ABSTRACT

From a comparativist approach, the author tries to demonstrate the juridicaltreatment given to the duty of familial assistance, in regard to food rights,emphasizing familial solidarity.Key words: Food, food rights, family rights, fundamental rights.

A GARANTIA DO DIREITO À VIDA

As normas consideradas jurídicas nem sempre se mostraram justas e equâ-nimes, no que toca às relações familiares. Para exemplo, veja-se uma disposi-

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ção, segundo Felippo Rossi, contida em uma das tábuas da Lex Decemviralis,dizia que - ( XIX) - Seja lícito ao pai e à mãe, banir, vender e matar ospróprios filhos (Altavila, 1963, p. 64). Na mesma tábua (XII), outra violên-cia: É lícito matar os que nascem monstruosos.

Todavia, todas as Declarações de Direitos, desde a Charta Magna, do ReiJoão Sem Terra (1.215), do Bill of Rights (1.689), da Declaração dos Di-reitos de Virgínia (1.776), da Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão (1.789), até a Declaração Universal dos Direitos do Homem,aprovada por resolução da III Sessão Ordinária da Assembléia geral da Orga-nização das Nações Unidas, em 1.948, cuidam de assegurar de assegurar odireito à vida, coibindo a eliminação física do ser humano.

Além disso, a experiência mostrou ser indispensável a solidariedadefamiliar, estabelecendo, por meio de normas positivas, o direito à vida daspessoas hipossuficientes de um determinado grupo familiar.

O direito à vida, amparado na solidariedade humana, não está assen-tado nas Declarações antes referidas. Surge no Direito Codificado, a par-tir do Código de Napoleão. Os primeiros códigos ainda não incluíram aproteção dos direitos do nascituro. O Código Civil do Uruguai (aprovadoem 23 de janeiro de 1868), um dos mais antigos ainda em vigor, não pre-viu a figura do nascituro. O direito à vida, nos dias atuais, passa a serprotegido a partir da concepção, um marco histórico fixado no CódigoCivil da Alemanha (BGB, § 844) de 1900 (Westermann, 1991, pp. 79-82). Hoje, de maneiras diferentes, os Códigos já atribuem direitos ouexpectativas de direitos ao nascituro. O Código Civil de Cuba, de 1975(Art. 25), se refere ao nascituro como “concebido”. O Código Civil Bra-sileiro, de 1916, se pronunciou dizendo:

Art. 4.º A personalidade civil do homem começa do nasci-mento com vida, mas a lei põe a salvo desde a concepçãoos direitos do nascituro.

O novo Código Civil (Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002), refere-se aos direitos do nascituro no Art. 2.º, transcrevendo literalmente o textode 1916. Outro marco histórico quanto aos direitos do nascituro, e emespecial quanto ao direito de solidariedade em matéria de assistência fami-liar, está consignado no Código Civil da Espanha, no Art. 142, que teveacrescido um parágrafo (in fine) pela Lei n.º 11/1981, constando sua atual

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redação da seguinte forma:

Art. 142.

Se entende por alimentos tudo o que é indispensável aosustento, habitação, vestuário e assistência médica.

Os alimentos compreendem também a educação e instru-ção do alimentado enquanto for menor de idade e aindadepois enquanto não tiver terminado sua formação porcausa que não lhe seja imputável.

Entre os alimentos se incluirão os gastos com a gestaçãoe parto, quando não estiverem cobertos (planos de se-guro-saúde) de outro modo. (Grifo nosso)

A expressão do legislador espanhol alcança o direito à vida do nasci-turo, porque a ausência de assistência à gestante pode implicar na inter-rupção da gestação (aborto voluntário). Constitui, sem dúvida, um signi-ficativo avanço em termos de direito à vida.

Poder-se-ia levantar uma questão relativa à gestante solteira quanto àidentificação do obrigado a prestar a assistência (alimentos). Quanto àmulher casada, até prova em contrário, é obrigado o cônjuge, e, com opermissivo de algumas legislações, poderia o convivente ser chamado aopólo passivo para responder por esta obrigação. Não existindo um cônjugeou convivente identificado, respondem pelo dever de assistência à ges-tante e ao nascituro aqueles parentes elencados na legislação ordinária,ou, o que já é possível pelo avanço das ciências médicas, identificar ogenitor do nascituro através dos exames de pesquisa do Ácido Desoxiri-bonucléico - ADN (DNA, sigla em Inglês). Ainda que as provas técnicaspudessem significar oposição de prazos de elaboração das provas técnicascontra algumas premências inadiáveis, cabe ao magistrado, pelo examedas provas circunstanciais, e, considerado o fugit irreparibile tempus, con-ceder alimentos provisionais, que a maioria dos sistemas jurídicos admi-tem, agindo sob a égide da bonorum emptoris.

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IDENTIFICAÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA

São considerados hipossuficientes todos os indivíduos que não possamprover suas necessidades materiais. Por ficção jurídica, são consideradoshipossuficientes os infantes, crianças e adolescentes até implementaremuma idade que lhes atribua a capacidade civil. Mediante avaliação decircunstâncias especiais e pessoais, podem ser consideradas hipossuficien-tes as pessoas portadoras de patologias físicas ou psíquicas que as impeçamde prover os seus meios de subsistência, e, excepcionalmente, dependendode circunstâncias específicas, as pessoas que alcancem a longevidade, quan-do nelas se manifestem os sinais de fragilidade física ou psíquica, conformeavaliação clínica. Nem todos os idosos são hipossuficientes.

EXTENSÃO DA ASSISTÊNCIA FAMILIAR

Relativamente às pessoas hipossuficientes, as legislações contemporâ-neas apresentam diversidade de tratamento, embora entre elas se noteuma tendência à aproximação ou, até mesmo, à uniformização, orientadapelo Direito Comparado. Para ilustrar, trazemos as expressões do legisla-dor de Portugal, Cuba, Chile e Argentina, lembrando que já está referidaa expressão, nesse sentido, do legislador da Espanha. O Brasil vem repre-sentado pelo texto Constitucional e o teor do novo Código Civil (Lei n.º10.406, de 10 de janeiro de 2002).

Portugal - Código Civil

Art.2203º

(Noção)

1. Por alimentos entende-se o que é indispensável ao sus-tento, habitação e vestuário.

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2. Os alimentos compreendem também a instrução e edu-cação do alimentado no caso de ser de menor.

Art. 2004º

(Medida dos alimentos)

1. Os alimentos serão proporcionados aos meios daqueleque houver de prestá-los e à necessidade daquele que hou-ver de recebê-los.

2. Na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, àpossibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.

Cuba - Código de Família

Art. 121. Se entende por alimentos tudo o que é indispensá-vel para satisfazer as necessidades de sustento, habitação evestuário, e no caso de menores de idade, também as exi-gências para sua educação, recreação e desenvolvimento.

Chile - Código Civil

Art. 323. Os alimentos se dividem em côngruos e necessários.

Côngruos são os que habilitam ao alimentado para subsis-tir modestamente de um modo correspondente à sua posi-ção social.

Necessários os que lhe bastem para sustentar a vida.

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Os alimentos sejam côngruos ou necessários, compreen-dem a obrigação de proporcionar ao alimentado, menorde vinte um anos, a educação fundamental e alguma pro-fissão ou ofício.

Argentina - Código Civil.

Art. 372. A prestação de alimentos compreende o neces-sário para a sua subsistência, habitação e vestuário, cor-respondente à condição social daquele que recebe, e tam-bém o necessário para a assistência nas enfermidades.

Brasil

Constituição Federal

Art. 227 (caput). É dever da família, da sociedade e doEstado assegurar à criança e ao adolescente, com absolutaprioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à edu-cação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitá-ria, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

...

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever deamparar as pessoas idosas, assegurando sua participaçãona comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar egarantindo-lhes o direito à vida.

§ 1º Os programas de amparo aos idosos serão executa-dos preferencialmente em seus lares.

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...

Código Civil (2.002)

Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou compa-nheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessi-tem para viver de modo compatível com a sua condiçãosocial, inclusive para atender às necessidades de sua edu-cação.

§ 1º Os alimentos devem ser fixados na proporção dasnecessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obri-gada.

§ 2º Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsis-tência, quando a situação de necessidade resultar de culpade quem os pleiteia.

Art. 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pre-tende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seutrabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se recla-mam, pode fornecê-los sem desfalque do necessário ao seusustento.

Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíprocoentre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, re-caindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns emfalta de outros.

Art. 1.697. Na falta de ascendentes cabe a obrigação aosdescendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltandoestes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.

Art. 1.698. Se o parente, que deve os alimentos em primei-

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ro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente oencargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato,sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, to-das devem concorrer na proporção dos respectivos recur-sos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as de-mais ser chamadas a integrar a lide.

SOBRE O ALCANCE DO CONCEITO DE FAMÍLIAE PARENTESCO

Para que se possa estabelecer o liame obrigacional entre credor e de-vedor, ou seja, o nexo causal que determina o dever jurídico, é misterexaminar como cada comunidade nacional vê a expressão família e aimportância que atribui à esta célula social. Em prosseguimento, exami-nar até que grau de parentesco se estende o liame obrigacional.

Família, para Magalhães e Malta (1975, p.357), é:

Família. Sociedade matrimonial composta de marido, mu-lher e seus filhos. Em, um sentido mais amplo família é oconjunto de pessoas ligadas por vínculos de consangüinidadeou mero parentesco.

O legislador constitucional brasileiro, na Carta de 1988, dedica umcapítulo (Título VII, Capítulo VII) à família, instituindo, inicialmente,no caput do Art. 226, que “a família, base da sociedade, tem especialproteção do Estado”, e mais adiante, nos §§ 3º e 4º, menciona a expres-são entidade familiar como substituta ou subsidiária da expressão família,onde inclui a união de fato dos gêneros, isto porque, até então tinha-seum conceito conservador sofre a legitimidade da constituição familiar, sóadmitindo a família derivada do casamento formal, duplamente celebra-do sob o rito civil e religioso. A realidade fática mostrou que existia umafamília marginal, que não derivava de uma pompa matrimonial, o quesempre existiu em todas as sociedades, inclusive em Roma, onde as tropasguerreiras não eram admitidas às justae nupciam. A família de fato existee persiste. A rigor, se fosse exigida a presença dos dois gêneros e a prole,os viúvos e os casais sem descendência estariam excluídos do conceitofamiliar. Sobre família, o conceito mais adequado é “o conjunto de pesso-as ligadas por vínculos de consangüinidade ou mero parentesco”.

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O legislador constitucional do Uruguai expressou, no Art. 40 da atualConstituição (1967), que:

A família é a base de nossa sociedade. O estado velarápela sua estabilidade moral e material, para a melhor for-mação dos filhos dentro da sociedade.

O legislador constitucional de Honduras (1982), acentuou, nos arti-gos 65 e 67:

Art. 65. O direito à vida é inviolável.

...

Art. 67. Ao que está por nascer se considerará como nas-cido para tudo lhe favoreça dentro dos limites estabeleci-dos pela lei.

O legislador constitucional do Paraguai (1992), foi mais longe paraassegurar o direito/dever de assistência familiar. No Art. 49 valoriza ainstituição familiar; no Art. 51 se manifesta sobre a família de fato (uniónde hecho); nos artigos 53 e 54 cuidou da proteção da pessoa dos filhos, e,ainda fez considerações sobre os idosos (Art. 57) e especial deferência àspessoas excepcionais no Art. 58. Dessas disposições queremos ilustrar como texto dos artigos 53, 57 e 58.

Art. 53. Dos filhos

Os pais têm o direito e a obrigação de assistir, de alimentar,de educar e de amparar a seus filhos.

Serão punidos pela lei em caso de descumprimento dosseus deveres de assistência alimentícia.

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Os filhos maiores de idade estão obrigados a prestar assis-tência a seus pais em caso de necessidade.

A lei regulamentará a ajuda a ser prestada à família deprole numerosa e às mulheres chefes de família.

Todos os filhos são iguais perante a lei. Esta possibilitará ainvestigação da paternidade. Se proíbe qualquer discrimi-nação sobre a filiação em documentos pessoais.

Art. 57. Da terceira idade.

Toda pessoa na terceira idade tem direito à uma proteçãointegral. A família, a sociedade e os poderes públicos pro-moverão seu bem-estar mediante serviços sociais que seocupem das suas necessidades de alimentação, saúde,moradia, cultura e lazer.

Art. 58. Dos direitos das pessoas excepcionais

Se garantirá às pessoas excepcionais a atenção de sua saú-de, de sua educação, de sua recreação e de sua formaçãoprofissional para uma plena integração social.

O Estado garantirá uma política de prevenção, tratamen-to, reabilitação e integração dos incapacitados físicos, psí-quicos e sensoriais, aos quais prestará o cuidado especi-alizado que requeiram.

Se lhes reconhecerá a fruição dos direitos que esta Constitui-ção outorga a todos os habitantes da República, em igualdadede oportunidades, a fim de compensar suas desvantagens.

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Poder-se-ia perguntar por quê o legislador constituinte do Paraguai fazconsiderações na Carta Magna que poderiam ter sido reservadas à legislaçãoordinária. Mister esclarecer que os sistemas jurídicos do México e do Para-guai são dos raros sistemas jurídicos de toda a América que preservaram outentaram preservas as culturas dos povos nativos da América. Ao expressar-se na Constituição, como o fez, deixou evidente que queria que fossem nãosó direitos subjetivos, mas, acima de tudo, direitos fundamentais. Poderia, naimaginação do legislador, estar latente entre os descendentes dos povos pri-mitivos a mesma idéia estampada na Lex Decemviralis, antes e acima referi-das, do direito dos pais sobre a vida dos filhos.

Tomando-se o conceito de família no sentido mais amplo, qual seja, oconjunto de pessoas ligadas por consangüinidade ou parentesco, deve-se disse-car as duas hipóteses. A consangüinidade é a relação ascendência/descen-dência, ou seja, entre pessoas que descendem do mesmo ancestral. Há quese considerar que o parentesco não é exclusivamente o consangüíneo, po-dendo também ser por afinidade ou civil. Por afinidade, é o parentesco quese estabelece entre um cônjuge e os parentes consangüíneos do outro côn-juge. Parentesco civil, segundo o princípio romanístico, é a relação familiarque se estabelece entre o adotado e os parentes consangüíneos do(s)adotante(s). Esclareça-se que no Brasil, a partir da Constituição Federalvigente, o estado de família, no que se refere aos filhos, não permite discri-minação, nem mesmo com relação à filiação adotiva, e pela Lei n.º 8.069/90, quanto à adoção de menores, a torna irrevogável e atribuindo aos ado-tivos os mesmos direitos e obrigações da filiação biológica.

Alguns sistemas jurídicos ainda consideram como parentesco civil a re-lação familiar criada pela adoção, pronunciando-se expressamente sobre arelação parental como sendo limitada entre os adotantes e o adotado. So-bre isso o Código Civil do México (Distrito Federal) afirma, no Art. 307:

Art. 307. O adotante e o adotado têm a obrigação de dar-se alimentos nos casos em que são devidos entre pais e fi-lhos.

O legislador de Portugal, sobre o dever de assistência entre adotante eadotado, tem disposição especial, no Art. 2000º, do Código Civil:

Artigo 2000º

(Alimentos)

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1. O adoptado ou os seus descendentes são obrigados aprestar alimentos ao adoptante, na falta de cônjuge, des-cendentes ou ascendentes em condições de satisfazer esteencargo.

2. O adoptante considera-se ascendente em primeiro graudo adoptado para efeitos da obrigação de lhe prestar ali-mentos, precedendo os pais naturais na ordem estabelecidano n.º 1 do artigo 2009º, o adoptante não precede, noentanto, o progenitor do adoptado com quem seja casado.

Existe variação de tratamento do parentesco decorrente da adoçãonos diferentes sistemas jurídicos. Chile e Uruguai consideram o parentes-co apenas entre adotantes e adotados. O Paraguai, a exemplo do Brasil,dispõe no Art. 255, do Código Civil:

Art. 255. A adoção estabelece parentesco entre o adotadoe o adotante e com a família deste, nos casos estabelecidosno Código do Menor.

Nos países ou sistemas jurídicos onde a adoção estabelece o parentes-co entre o adotado e o adotante e com a família deste, poderia levantar-se a objeção dos parentes consangüíneos do(s) adotante(s), quandocasado(s), sob o argumento de que eles não foram ouvidos sobre a adoçãoe que a obrigação que se lhes poderá ser acrescentada, não fosse legítimaporquanto não participaram daquele ato jurídico. Esta questão mereceuma consideração mais aprofundada.

Em primeiro lugar, há de objetar-se que os parentes (ainda que con-sangüíneos, não têm legitimidade para opor-se aos desígnios da naturezae ou interferir na possibilidade de um parente vir a gerar prole. Se nãopode interferir em questão tão pessoal, também não deve poder opor-se àopção da filiação adotiva.

Em segundo lugar, a hipótese de algum parente dos adotantes vir a serchamado para satisfazer uma obrigação alimentar em favor do parenteadotivo, não é certa nem é regra.

Em terceiro lugar, admitindo, apenas por argumentar, caso essa hipó-

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tese viesse a se tornar fática algum dia, deve ser considerado que o direi-to/dever de alimentos é recíproco entre os mesmos parentes, logo, nasmesmas situações em que o parente adotivo viesse a necessitar dos ali-mentos dos parentes consangüíneos dos adotantes, também tais parentesficariam equiparados ao parentesco consangüíneo, podendo pedir alimentosàquele adotivo.

Casuísta e repulsiva seria uma legislação que só atribuísse deveres semcorrespondência, aos parentes consangüíneos do adotante. Não é, porém,o caso da legislação brasileira e da paraguaia. Em ambos sistemas existeuma reciprocidade de hipóteses.

Na mesma linha de raciocínio poderíamos evoluir e ingressar no temada reprodução humana assistida (Engenharia Genética) com doação dematerial genético humano, masculino ou feminino. Poderiam os parentesdaquelas pessoas que se submetem a processos de reprodução laboratori-al, inclusive no caso de inseminação artificial heterógena, opor-se àque-les procedimentos?

A resposta à esta questão ingressa no campo da ética. Muito amplas são ashipóteses que a Ciência Médica já permite através da reprodução in vitro.Admitindo, ad abundantiorem cautelam, que um determinado casal, estéril ovarão, quisesse gerar prole mediante doação genética heterógena, poderiamos parentes do cônjuge varão impugnar o filho que este viesse a reconhecercomo próprio, alegando tratar-se de bastardo ou não filho desse varão e, por-tanto, não parente? Se a lei não proíbe, poderiam os parentes opor-se?

Primeiramente deve-se perquirir se aqueles parentes estão legitima-dos a impugnar a maternidade ou paternidade. Se a resposta à esta pri-meira questão for positiva, ainda que limitada aos parentes do lado bas-tardo, terão também legitimidade para evadir-se da obrigação de prestaralimentos àquele indivíduo. Em compensação, daquela pessoa não pode-rão postular o direito de receber alimentos. Negado ou declarado inexis-tente o parentesco desaparece o dever de assistência reciprocamente.

Se tais parentes não estão legitimados a impugnar o estado de famíliacriado pelo reconhecimento daquela filiação, também não poderão recu-sar-se ao dever de assistência que a lei fixa naquele grau de parentesco.

Abre-se, pois, uma curiosidade. Até que grau de parentesco se esta-belece o direito/dever de prestar assistência material aos parentes hipos-suficientes? A resposta exige exame do respectivo sistema jurídico. Em

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tese, o direito à prestação de assistência material no parentesco consan-güíneo em linha reta é infinito, conforme pode ser confirmado nos maisdiversos sistemas. Ocorre que a vida humana é finita e limitada a umespaço temporal. Podemos admitir como média extrema a hipótese deuma relação assistencial entre avós e netos, o que significa um parentes-co de segundo grau. Neste caso teríamos três gerações e necessariamentea presença de pessoas longevas. Entre parentes consangüíneos na linhacolateral, os graus de parentesco logo se distanciam. Os irmãos são paren-tes em segundo grau; tios e sobrinhos, são parentes em terceiro grau.Cada geração significa um grau, considerado o tronco comum (paradig-ma). Seria infinita a obrigação parental na linha colateral?

Cada sistema jurídico responde à esta questão de forma diversa. Amaioria dos sistemas coloca um paradigma extremo para a consideraçãodo parentesco. No caso brasileiro, o Código Civil de 1916, no Art. 331,admitia o parentesco na linha colateral até o sexto grau. O novo Código,Lei n.º 10.406/2.002, no Art. 1.592, considera o parentesco, na linha co-lateral, até o quarto grau. A maioria dos Códigos não refere expressamen-te um grau limite para o parentesco colateral. O Código Civil de Portu-gal, no Art. 1582º, define o parentesco colateral até o sexto grau.

Feita esta exposição, poder-se-ia responder, quanto ao alcance do di-reito/dever de prestar alimentos ou assistência material, nos graus de pa-rentesco que cada sistema fixa.

Faltou ainda examinar-se a obrigação de recíproca assistência entre osparentes por afinidade. Em verdade o parentesco por afinidade se estabe-lece em razão do casamento. Desfeito o casamento, a relação de afinida-de se desfaz entre as famílias dos antes cônjuges. A maioria dos sistemasjurídicos considera as obrigações entre afins como matéria de honra a sersolvida entre os envolvidos naquelas relações. Antes de existir uma obri-gação de assistência no parentesco por afinidade ela existe pelo parentes-co consangüíneo. Do parente por consangüinidade é a obrigação. Toda-via, em muitas comunidades do nosso planeta proliferou o costume de amulher ficar limitada à atuação doméstica, sem renda do labor remune-rado e sem renda própria que pudesse gerar meios de prestar ela a alguémassistência material se não o fizesse com os ingressos do varão, seu mari-do. Essa realidade motivou os legisladores a prever nos textos legais ahipótese da obrigação de prestar assistência entre parentes por afinidade.Se, hipótese factível, ambos os cônjuges tivessem renda da qual se pudes-se destinar uma parcela ao hipossuficiente, preferir-se-ia a renda daquelecônjuge parente consangüíneo do hipossuficiente.

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Poucas legislações se ocuparam da previsão da obrigação assistencialentre parentes por afinidade. Os Códigos do Brasil, o de 1916 e o de 2002,não se preocuparam em dispor sobre a obrigação alimentícia entre paren-tes por afinidade, dispondo o Art. 396 do Código anterior e o Art. 1.694,do novo Código Civil, apenas que os parentes podem exigir uns dos outros osalimentos, sem excluir, todavia, o parentesco por afinidade, que se contapelos mesmos graus do parentesco consangüíneo na linha reta.

O Código Civil do Paraguai é uma exceção. Prevê que são devidos ali-mentos entre os sogros, genros e noras (Art. 258, letra e). Esta disposiçãonão tem previsão de cessar com a morte do cônjuge do genro ou da nora.

CONCLUSÃO

O dever de mútua assistência familiar é, antes de ser uma norma jurídica,uma norma ética derivada da natureza, onde até os irracionais assistem suadescendência até o ponto onde aquela já saiba buscar seus meios pelas pró-prias forças. Com mais razão os seres considerados inteligentes devem avan-çar nessa mútua assistência, porque, se os pais na plenitude suas forças socor-rem os seus filhos, estes, quando faltar a força aos pais, nos dias de sua velhi-ce, devem retribuir a assistência que dos pais receberam. Nenhum homem,desde o mais humilde ao mais poderoso monarca, chegou à sua plenitudesem a assistência recebida de sua família, pais ou outros parentes, em algunscasos até de adotantes estranhos às relações de consangüinidade.

Todas as normas jurídicas, hoje vigentes, tiveram o seu dia de concep-ção, assim como a vida tem um momento em que as sementes germinam,fixando as plantas suas raízes no solo, do qual absorvem os nutrientes. Oser humano tem sua gênese em seus ancestrais e toma os nutrientes bási-cos da assistência que lhe dá a família (biológica ou adotiva). Assim comoas plantas que não encontram o solo para fixar suas raízes perecem, o serhumano que não tiver a assistência de uma família, também perecerá.

O direito à vida, esta dada pela natureza, é um direito assegurado atodos os seres, repousando em um fundamento ético de recíproco apoiocontra as circunstâncias adversas. É, em um momento, dever, e, em outromomento direito: hoje, dever de um e direito de outro, amanhã, direitodo segundo e dever do primeiro, que pode muito bem estar estampado noArt. 2.º, da Constituição Francesa de agosto de 1795:

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Art. 2.º Todos os deveres do homem e do cidadão derivamdos dois seguintes princípios gravados, pela natureza, emtodos os corações:

não faças a outrem o que não queres que a ti façam;

faze aos outros o que deles queres receber.

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O meio ambiente e a jurisprudênciado Superior Tribunal de Justiça

Environment and the Jurisprudence of theSuperior Court of Justice

RUY ROSADO DE AGUIAR

Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Mestre em Direito- UFRGS

RESUMO

O artigo relata as principais decisões do Superior Tribunal de Justiça, SuperiorTribunal do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal, relativamente ao direitoambiental.Palavras-chave: Direito Ambiental, Jurisprudência ambiental, Tribunais Su-periores.

ABSTRACT

The article reports the main decisions of the Brazilian Supreme Court of Justice,of the Supreme Court of Work and the Brazilian Superior Court, related to theenvironmental law.Key words: Environmental law, environmental jurisprudence, Supreme Courts.

(Texto básico da palestra realizada no 2o Congresso Brasileiro do Ministério Público do Meio Ambiente, emCanela/RS, 31/8/2001)

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1. Não preciso lembrar a importância que assume, no ordenamento jurí-dico internacional e nacional, o direito ambiental, bastando referir a quan-tidade de conferências, tratados e protocolos internacionais e a legislaçãonacional que se edita sobre o tema, surgida especialmente a partir de 1981(por exemplo: as recentes Leis 9.605/98, 9.985/2.000 e 10.165/2.000, a Lei10.257, de 10.7.2001, que estabelece diretrizes gerais para a política urba-na, e a Medida Provisória 2.163, de 26 de julho de 2001, que altera a Lei9.605/98), como também as demandas judiciais que daí decorrem.

2. Proponho-me, nesta intervenção, que será tanto melhor quanto maisbreve, pois estamos no encerramento deste Congresso, a relatar os princi-pais pronunciamentos jurisdicionais havidos no Superior Tribunal de Jus-tiça e a indicação do que foi julgado no Supremo Tribunal Federal quan-to à constitucionalidade de diversos diplomas, assim também as decisõesdo Tribunal Superior do Trabalho que sejam de algum modo vinculadasao tema que nos ocupa.

3. A primeira questão proposta com certa insistência diz com a compe-tência, nos seus três planos: competência jurisdicional, competência le-gislativa e competência administrativa.

A Súmula 91 rezava: “Compete à Justiça Federal processar e julgar oscrimes praticados contra a fauna”.

Esse enunciado foi cancelado no julgamento de 8.11.2000, da 3a Se-ção, ao entendimento de que, com o advento da Lei 9.605/98, que seocupa dos crimes contra o meio ambiente e dos crimes contra a fauna semnada dispor sobre a competência, a Lei 5.197/67 já não dá mais suporte àmencionada Súmula.

Constou da ementa do CC. 27.848/SP, 3ª Seção, Min. Carvalhido, de19.02.2001: “Sendo a proteção do meio ambiente matéria de competênciacomum, e inexistindo quanto aos crimes ambientais dispositivo constituci-onal ou legal sobre qual a justiça competente para o seu julgamento, tem-se que em regra o processo e julgamento é da Justiça Comum. Inexistindolesão a bens, serviços ou interesses da União, afasta-se a competência da JFpara os crimes contra a fauna e a flora” (idem: CC 29.508/SP).

Seria da competência da JF quando o crime fosse praticado no marterritorial brasileiro (Lei 8617/93), nos lagos e rios pertencentes à União

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(art. 20, II, da CF) e nas unidades de conservação da União (parquesnacionais, etc), conforme constou do CC 29.508/SP, rel. o Min. Fontes deAlencar, citando os Drs. Vladimir e Gilberto Passos de Freitas.

No CC 30.284/MG, da 3a Seção, da rel. do Min. Jorge Scartezzini,ficou decidido que “compete à Justiça Estadual processar e julgar crimecometido contra a flora quando restar demonstrado que a infração se deuem terras particulares não-oneradas e inexistente a lesão a bens, serviçosou interesses da União. No HC 14.764/MS, a 5a Turma, rel. o Min. FelixFischer, de 10.04.2001, afirmou que “A Justiça Estadual é competentepara julgar crime ambiental perpetrado em terras particulares que nãoconfigura, em tese, violação a interesses, bens ou serviços da União”.Nessa hipótese se situa a comercialização irregular de carvão (CC 30.540/MG, 3ª Seção, rel. Min. Felix Fischer).

Insurgiu-se contra a revogação da Súmula 91 a Dra. Carolina da Sil-veira Medeiros, Procuradora da República no RGS, observando que amatéria é constitucional. Como sempre se considerou a fauna silvestrebem da União, e por isso incluída entre aqueles referidos no art. 20, I, daCR (“ São bens da União: I – os que atualmente lhe pertencem” ), ocrime contra ela cometida seria ofensa a bem da União, apurável perantea Justiça Federal, independentemente do que viesse disposto na Lei 9.605/98. Além disso, o cancelamento da Súmula 91 ateve-se ao caso do crimede pesca, que sempre foi genericamente considerado de competência daJustiça Estadual, “por não serem os peixes considerados bens de proprie-dade da União, mas res nullius”. Cita em apoio de sua tese precedentes doTRF/4a. Região ( CP 74374-8/SC; CP 9252/0; HC 25564-6/PR).

À falta da edição de nova Súmula, o tema ainda está em aberto.

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que “com-pete à Justiça Comum o julgamento de ação penal contra acusado dasuposta prática do crime previsto no art. 46, § único, da Lei 9605/98 –consistente no fato de o mesmo possuir em depósito, sem autorização oulicença do órgão competente, madeira nativa proveniente da Mata Atlân-tica -, uma vez que a competência da Justiça Federal para a causa somen-te se justificará quando houver detrimento a interesse direto e específicoda União (CF, art. 109, IV), não sendo suficiente o fato de o crime haversido praticado contra a Mata Atlântica, a qual não é de propriedade daUnião” (RE 300.244/SC, rel. Min. Moreira Alves, Informativo STF 251).

A Súmula 183/STJ dizia: “Compete ao Juiz Estadual, nas comarcas

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que não sejam sede de Vara da Justiça Federal, processar e julgar açãocivil pública, ainda que a União figure no processo”.

O enunciado foi cancelado sob o entendimento de que compete àJustiça Federal processar e julgar a ação civil pública, no caso de respon-sabilidade por danos ao meio ambiente proposta pelo IBAMA, mesmo emlocal onde não exista Vara Federal, por força do art. 109, I, da CF e doart. 93 da Lei 8078/90. A decisão foi proferida nos EDcl. CC 27.676/BA,na sessão de 8.11.2000, quando a 1ª Seção cancelou a Súmula 183, depoisde tê-la confirmado em julgado de 17.04.2000, ao decidir o conflito. Cons-tou do julgado declaratório: “O tema em debate, por ser de naturezaestritamente constitucional, deve ter a interpretação rendida ao posicio-namento do Supremo Tribunal Federal”.

O julgamento do Supremo Tribunal Federal a que se referiu o STJpara reformar a sua posição fora adotado no RE 228.955/RS, Pleno, sessãode 10.02.2000, relator o Min. Ilmar Galvão, que assim ementou o seuacórdão:

“O dispositivo contido na parte final do § 3º do art. 109 da CF édirigido ao legislador ordinário, autorizando-o a atribuir competência aoJuízo estadual do foro do domicílio da outra parte ou do lugar do ato oufato que deu origem à demanda, desde que não seja sede de Varas daJustiça Federal, para causas específicas dentre as previstas no inciso I doreferido art. 109.

“No caso em tela, a permissão não foi utilizada pelo legislador que, aorevés, se limitou, no art. 2o da Lei 7347/85 a estabelecer que as ações neleprevistas ‘serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízoterá competência funcional para processar e julgar a causa’. Consideran-do que o Juiz Federal também tem competência territorial e funcionalsobre o local de qualquer dano, impõe-se a conclusão de que o afasta-mento da jurisdição federal, no caso, somente poderia dar-se por meio dereferência expressa à Justiça Estadual, como a que fez o constituinte naprimeira parte do mencionado § 3º em relação às causas de natureza pre-videnciária, o que no caso não ocorreu”.

A competência da Justiça Federal foi mais de uma vez reconhecidaquando a ação está fundada em tratado internacional, como aconteceuem ação cautelar promovida contra a Petrobrás pelos danos produzidospelo oleoduto OSBAT, em São Sebastião/SP, porque fundada em Con-venção Internacional de 1969 sobre Responsabilidade Civil quanto a da-

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nos causados em virtude de poluição por óleo, promulgada pelo Dec. 79.437/77 e regulamentada pelo Dec. 83.540/79, e em Convenção Internacionalsobre Prevenção da Poluição por Alijamento de Resíduos e outras Subs-tâncias, Londres, 29.12.72, promulgada pelo Dec. 87566/82 (CC 16.953/SP, 1ª Seção, rel. o Min. Ari Pargendler. No mesmo sentido: CC 10.445/SP,1ª Seção, rel. Min. Demócrito Reinaldo).

É também competência da Justiça Federal processar e julgar ação civilpública movida com a finalidade de reparar os danos ao meio ambienteocasionados pelo vazamento de óleo no mar territorial, bem de proprieda-de da União. Foram dois os fundamentos levados em consideração: (I) háinteresse da União; (II) a causa está fundada na Convenção Internacio-nal sobre Responsabilidade Civil por danos causados em virtude de polui-ção por óleo (CC 16863/SP, 1ª Seção, rel. o Min. Demócrito Reinaldo).

Ainda nessa matéria, lembro a discussão que tem sido proposta quan-to à competência e extensão dos julgados proferidos em ação civil públicaque se refira a dano em mais de um Estado ou Região, com efeitos tam-bém gerais. O STJ tem enfrentado Conflitos em ações coletivas propostascom base no CDC, em que se alegou a incidência do art. 93, II, da Lei8078/90, aplicável aos casos regidos pela Lei 7347/85, sobre a ação civilpública, nos termos do seu art. 21, que atribui a competência ao foro doDistrito Federal para os danos de âmbito nacional. A matéria tem seujulgamento suspenso com pedido de vista na Segunda Seção, com predo-minância de votos em favor da competência da Justiça dos Estados ondeproposta a ação (CC 26.842/ES, com vista para o Min. Pádua Ribeiro).Esse o posicionamento já adotado no CC 17532/DF, de 05.02.200l, rel. oMin. Ari Pargendler, e CC 17533/DF, de 30.10.2000, rel. o Min. MenezesDireito. Recentemente, na Quarta Turma, em ação coletiva promovidapelo IDEC contra instituição bancária, para cobrar a correção monetáriadevida a depósitos em cadernetas de poupança no Plano Verão (janeirode 1989), a Quarta Turma, no REsp 253.589/SP, de que fui relator, depoisde admitir a legitimidade do IDEC e a possibilidade da propositura daação coletiva porque se tratava de relação de consumo (conforme já de-cidido na 2a Seção do REsp 106.888/Rel. Min. Cesar Asfor Rocha), man-teve a competência do Tribunal de São Paulo, mas limitou a extensão dosseus efeitos no âmbito da jurisdição daquela Corte.

Também tem sido examinada a competência legislativa:

Em causa que versava sobre queimada para a lavoura de cana-de-

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açúcar, decidiu a 1a. Turma: “Pode o Estado, sem ferir o disposto no art. 27do Código Florestal, proibir, através de decreto, o uso do fogo na faixa deum quilômetro do perímetro urbano das cidades” (REsp 152.907/SP, 1ªTurma, rel. Min. Garcia Vieira).

O Estado tem competência legislativa para regulamentar os índicestoleráveis de produção de fumaça causada por veículos automotores (Lei6938/81, do Estado do Rio de Janeiro) (REsp 59.836/RJ, 2ª Turma, rel.Min. Pádua Ribeiro; no mesmo sentido: REsp’s 27.9245/RJ; 8579/RJ, 2a

Turma, rel. Min. Américo Luz; 26990/RJ, 1a Turma, rel. Min. Garcia Viei-ra). Inclui-se no poder de polícia do Estado-membro (REsp 8298/RJ, 1a

Turma, Min. Milton Pereira).

“Não é ilegal o regulamento estadual (Reg. 8468/SP) que se constrin-ge dentro dos limites que podia atuar, sem instituir nova infração (e nemobrigação diferente), ao disciplinar os padrões de qualidade ambiental,observadas a intensidade, a concentração, a quantidade e as caracterís-ticas de toda e qualquer forma de matéria e energia” (REsp 32.102/SP, 1ªTurma, Min. Reinaldo Demócrito; idem: REsp 33.467/SP, 2ª Turma, rel.Min. Peçanha Martins, que tratou de multa imposta pela CETESB contraempresa de transporte coletivo porque seus veículos transitavam comemissão de fumaça superior ao permitido).

É competência comum à União, Estados e Municípios proteger o meioambiente e combater a poluição, cabendo aos Municípios legislar supleti-vamente sobre a proteção ambiental, na esfera do interesse estritamentelocal. A legislação municipal, contudo, deve se restringir a atender àscaracterísticas próprias do seu território. Uma vez autorizada pela Uniãoa produção de agrotóxico, o Município não pode vedar o uso e o armaze-namento do produto em seu território. REsp 29.299/RS, 1ª Turma, Min.Demócrito Reinaldo.

O Tribunal afastou decreto estadual que fixava padrões de medida dapoluição ambiental de acordo com critérios inseguros para sua aferição(extensão da propriedade e olfato das pessoas credenciadas). Tratava-sede estabelecimento industrial (Petrobrás) que estaria poluindo o ar (REsp35.887/SP, 1ª Turma, Min. Garcia Vieira).

O Supremo Tribunal Federal deixou consignado expressamente, noAGR 152.115, rel. o Min. Marco Aurélio, 2ª Turma, que “À União cabebaixar as normas gerais sobe a defesa e a proteção da saúde, a abranger as

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relativas ao meio ambiente. A atuação dos Estados mostra-se válida noque não as contrariam”.

Sobre a competência administrativa.

Na apreciação da potencial ofensa ao meio ambiente, a competência édo órgão administrativo do sistema nacional do meio ambiente: “Em ha-vendo obra potencialmente ofensiva ao meio ambiente, reserva-se aosintegrantes do Sisnama, a competência para avaliar o alegado potencial.Acórdão fincado na assertiva de que a obra impugnada está livre de au-torização do Sisnama, porque leva em conta os cuidados exigidos para apreservação do meio ambiente. Tal aresto efetuou juízo de valor, pene-trando na competência do Sisnama e maltratando o art. 10 da Lei 6938/81” (REsp 114.549/PR, 1ª Turma, rel. Min. Humberto Gomes de Barros).

“O órgão administrativo pode, para evitar danos ao meio ambiente,praticar atos executórios” (RMS 8294/MG, 2ª Turma, rel. Min. AriPargendler).Tratava-se de empresa que teve seus altos fornos lacradospor ato do Conselho Estadual de Política Ambiental.

A administração pode embargar obra da construção, em loteamentoirregular que está sendo edificado em área de preservação ambiental e depropriedade do Distrito Federal (ROMS 4600/DF, 1ª Turma, rel. Min.Garcia Vieira).

Competência tanto do Detran como do Departamento de Águas eEnergia Elétrica para aplicarem multa pelo trânsito de veículo que pro-duz fumaça em níveis proibidos. REsp 4608/SP, 2ª Turma, Min. VicenteCernichiaro.

4. O segundo ponto que gostaria de mencionar são os precedentessobre a legitimidade para a propositura de ação civil pública.

Admitiu-se a legitimidade de fundação de assistência a pescadorespara promover ação em defesa do meio em que vive a comunidade por elaassistida. Tratava-se de litigar em juízo sobre a construção de fábrica decelulose em local protegido. (AR 497/BA, rel. o em. Garcia Vieira).

Também a legitimidade de associação formada por moradores do bair-

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ro, ainda que não constituída exclusivamente para a defesa do meio am-biente, como a Sociedade de Amigos de Sete Praias, que moveu açãocautelar contra o Município para impedir a implantação de um cemitérioem zona de proteção de mananciais (REsp 31.150/SP, 2ª Turma, rel. Min.Ari Pargendler).

Em mais de uma oportunidade, tanto nas Turmas da Seção de DireitoPúblico como nas de Direito Privado, tem sido reconhecida a legitimidadedo Ministério Público para a iniciativa de ação civil em defesa do ambien-te. Assim, no REsp 97684/SP, de que fui relator, a Quarta Turma mandouprosseguir a ação iniciada pelo MP contra empresa que provocava poluiçãosonora e afastou o argumento de que apenas uma pessoa na vizinhançareclamara do dano. Insistiu-se naquele julgado na conveniência de incen-tivar o uso de ação coletiva e na legitimidade do órgão público para a ação.Do contrário, sem a ação, direitos fundamentais da cidadania poderiamser afetados sem que houvesse adequada proteção judicial, e, sem agarantia da iniciativa postulatória ao MP deixaria o Estado de usar deorgão aposto para a defesa de legítimos interesses jurídicos. Seria dar doispassos atrás: perder-se-ia o instrumento processual apto para esses casose deixar-se-ia de contar com o órgão que melhor pode atuar nessa defesajudicial. (No mesmo sentido: REsp 216.269/MG, 1ª Turma, rel. Min. Hum-berto Gomes de Barros). Vencido o MP, não se lhe impõe o pagamento deverba honorária, pois, sendo ele o autor, não cabe atribuir-lhe litigância demá-fé (REsp 164.462/SP, 1ª Turma, rel. Min. Demócrito Reinaldo). Seriacercear-lhe a iniciativa colocá-lo sob a espada da condenação pelos ônusda sucumbência (REsp. 1523/MS, 1a Turma, Min. José Delgado). No REsp26.140/SP, 1a Turma, Min. Padua Ribeiro, admitiu-se a imposição de hono-rários, se demonstrado que o MP agiu com má-fé.

Interessante demanda foi julgada pela Segunda Turma, REsp 163.483/RS, relator o Min. Adhemar Maciel, na qual os vizinhos ajuizaram açãocautelar, seguida de ação principal de preceito cominatório, para impedirque o Município usasse de antiga pedreira como depósito de lixo. O re-curso foi conhecido e provido, admitida a ilegitimidade ativa dos autores,que atuaram como vizinhos, ainda que possível propositura de ação civilpública pelo mesmo fato, e afastado o argumento de que “o interesse depoucos não poderia prevalecer sobre o interesse de muitos”.

No pólo passivo deve estar a pessoa jurídica ou física que tenha prati-cado o dano ambiental (REsp. 232.187/SP, 1ª Turma, Min. José Delgado),no caso, a Petrobrás, que teria sido a causadora do dano ecológico. De

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outra parte, se a participação causal é plural, hão de formar entre si olitisconsórcio passivo, com responsabilidade solidária (REsp 18.567/SP, 2ªTurma, rel. Min. Eliana Calmon).

Há inúmeros precedentes no sentido de que “Não se pode impor aoadquirente de área desmatada a obrigação de reparar o dano ambiental.Embora de responsabilidade objetiva, indispensável a existência da rela-ção causal. (REsp. 214.714/PR, 1ª Turma, rel. o Min. Garcia Vieira. Idem:REsp 156.899/PR). No REsp 218.120/Pr, foi acentuado que faltaria de-monstrar o nexo causal, embora dispensável a prova da culpa.

Porém, no REsp. 222.349/PR, da 1ª Turma, em acórdão de lavra doMin. José Delgado, decidiu-se que “O novo adquirente do imóvel é partelegítima passiva para responder por ação de dano ambiental, pois assumea propriedade do bem rural com a imposição das limitações ditada pelaLei Federal”. Votou vencido o Min. Garcia Vieira, relator dos acórdãosinicialmente referidos. No seu voto vencedor, o Min. José Delgado acen-tuou: “A pretensão do MP é recuperar o terreno degradado. Na hipótese,o proprietário responde, não por haver causado o dano, mas por ser o donode um imóvel que sofreu danos ambientais. O tema relativo à culpa ha-verá de ser discutido em ação regressiva, entre o adquirente da gleba e orespectivo alienante”.

O Estado pode estar no pólo passivo: “O Estado de Goiás edificou obrapública – um presídio – sem dotá-la de um sistema de esgoto sanitárioadequado. Não podia fazê-lo, e, se isto atenta contra o meio ambiente, aação civil pública é a via própria para remover a causa dos danos causados.Sujeito também às leis o Estado tem, nesse âmbito, as mesmas obrigaçõesdos particulares” (REsp 88.776/GO, 2ª Turma, rel. o Min. Ari Pargendler).

“A ação civil pública pode ser proposta contra o responsável direto,contra o responsável indireto ou contra ambos, pelos danos causados aomeio ambiente. Trata-se de caso de responsabilidade solidária, ensejado-ra de litisconsórcio facultativo” (REsp 37.354/SP, 2ª Turma, rel. o Min.Pádua Ribeiro). Aplicação do art. 3o, IV, da Lei 6898/91, reconhecendo-se a responsabilidade solidária do Estado contratante e da empresa cons-trutora de obra pública.

5. Questões diversas:

Indenização:

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É o poluidor obrigado a reparar o dano causado ao meio ambiente e aterceiros, independentemente de culpa. A empresa pública que faz osreparos tem direito ao ressarcimento. (REsp 20.401/SP, 2ª Turma, Min.Helio Mosimann).

“No caso de interdição do uso e gozo da propriedade, os juros compen-satórios são devidos desde a data da lei que criou o ônus”. Ficou mantidaa indenização de 50% do valor da cobertura vegetal da área. REsp 146.334/SP, 1a Turma, Min. Garcia Vieira.

Compromisso de ajustamento:

O compromisso firmado perante o IBAMA e o MP constitui títuloexecutivo, nos termos do art. 5o, § 6º, da Lei 7347/85, que está em vigor.Cuidava-se de compromisso assumido por quem se obrigava à recupera-ção de áreas degradadas e à cessação de atividade garimpeira no localindicado. Descumprido o compromisso, foi proposta a ação de cobrançada multa. O art. 113 do CDC, que deu nova redação ao disposto na Lei7347/85 e instituiu o termo de ajustamento como título executivo, não foiefetivamente vetado pelo Presidente da República, pelo que está em vi-gor. Dispensável, para ele, a colheita de duas assinaturas (REsp 213.947/MG, 4ª Turma, minha relatoria).

Princípio da insignificância:

Aplicou-se acertadamente o princípio da insignificância para dispen-sar a aplicação da pena, no caso de réu denunciado por fato descrito nosarts. 1º e 3º da Lei 5197/67, pelo abate de três pequenos pássaros parasubsistência própria (REsp 182.847/RS, 6ª Turma, rel. o Min. FernandoGonçalves).

Norma penal em branco:

São normas penais em branco os arts. 15 e 16 da Lei 7802/89 (aplica-ção de agrotóxicos, sem uso de medidas de proteção ao meio ambiente).Não é de rigor a indicação da norma complementar integrativa do tipopenal, bastando a descrição da conduta nela vedada. RHC 9056/RJ, rel.o Min. Vicente Leal.

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Denúncia:

Para a denúncia pela prática de crime de atentado contra a seguran-ça de transporte marítimo, é dispensável indicar se a exploração é estatalou particular. RHC 723/RJ, 5ª Turma, Min. José Dantas.

Aptidão da denúncia que atribui o lançamento de substância tóxicaem rio. Excludente de antijuridicidade (força maior) não examinada navia do habeas corpus. RHC 5024/SP, 6ª Turma, rel. o Min. AdhemarMaciel.

Prescrição:

A Quarta Turma afastou a preliminar de prescrição suscitada pelaempresa-ré contra o pleito indenizatório apresentado por empregado quetrabalhou no estabelecimento industrial em contato com o amianto e veiopedir a indenização 34 anos depois de afastar-se da empresa. É que aasbestose pode levar muitos anos para se manifestar e só nos últimos 15anos tem sido objeto de estudos. Por isso, o prazo prescricional de vinteanos deve ser contado da data da realização do exame pericial, realizadoem 1997 (REsp 291.157/SP, minha relatoria).

Parcelamento do solo urbano:

- O Ministério Público é parte legítima para a defesa dos interesses doscompradores de imóveis loteados, em razão de projetos de parcelamentodo solo urbano, face à inadimplência do parcelador na execução de obrasde infra-estrutura (saneamento básico) ou na formalização e regulariza-ção do parcelamento. (REsp 137.889/SP, 2a Turma, rel. o Min. PeçanhaMartins).

- Não foi aceita prova pericial que afirmou possível a exploração eco-nômica, via loteamento, de área de preservação ambiental localizada emsuperfície de dificuldades geográficas. (REsp 136.593/SP, 2ª Turma, rel.Min. Eliana Calmon).

- É possível cláusula que transfira aos compradores o custeio de redesde água e esgoto nos loteamentos. (REsp 43.735/SP, 4ª Turma, rel. Min.Salvio Figueiredo). Votei vencido por entender que a instalação desses

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serviços era condição para a aprovação administrativa e registro do lotea-mento. Sem isso, o loteador apenas retalha o imóvel e transfere para oscompradores – ou possivelmente para o Município – a despesa que era sua.

- Tem direito a indenização o proprietário impedido de implantar lote-amento em área considerada de proteção ambiental, por lei estadual.REsp 142.713/SP, 1a Turma, rel. o Min. José Delgado.

A Primeira Turma deixou de impor ao Município a obrigação de reali-zar ou demolir certas obras de infra-estrutura em conjunto habitacional,por entender que “As atividades de realização dos fatos concretos pelaadministração dependem de dotações orçamentárias prévias e do progra-ma de prioridades estabelecidas pelo governante. Não cabe ao Poder Ju-diciário determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para pro-teger o meio ambiente” (REsp 169876/SP). Aceito o princípio na sua de-vida extensão, significará que o Estado pode ofender o meio ambiente enão estará de nenhum modo obrigado pelo ordenamento jurídico a ado-tar medidas efetivas para protegê-lo, seja tomando providências ativaspara criar novas condições, seja para eliminar o mal existente, decorrentede sua ação.

De outra parte, no REsp 126.372/SP, a mesma Primeira Turma subme-teu a empresa pública à disciplina da Lei 6766/79, “concebida em home-nagem a valores urbanísticos e ecológicos”, aplicável em todo o parcela-mento do solo, destine-se a indústria, comércio, residências de luxo oubairros populares, que era o de que se tratava (Rel. Min. Humberto Go-mes de Barros).

A ação para regularização do loteamento pode ser promovida contra oMunicípio, pois é dele a competência para obrigar o proprietário de imó-vel a regularizar o empreendimento, levado a efeito de modo clandestino,sem ter sido repelido pela fiscalização municipal. Trata-se de atividadevinculada, que, descumprida, pode levar o Município a juízo. (REsp194.732/SP, 1ª Turma, Min. José Delgado).

A Presidência do Tribunal considerou os graves danos ao ambienteque poderiam decorrer da irregular ocupação do solo urbano, com riscode contaminação de lençóis freáticos e nascentes de água pela aberturade fossas de coleta de esgotos e ausência de regular coleta de lixo, paradecidir sobre a suspensão de decisão em mandado de segurança em quese cuidou de preservar a boa aplicação da Lei 6766/79 (AGSS 693/DF, de20.09.99).

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Nos loteamentos, o fornecimento de água potável é obrigação dos pro-prietários. REsp 247162/SP, 1ª Turma, Min. Garcia Vieira.

Condenação cumulativa:

Nos termos do art. 3º da Lei 7347/85, não pode a ação civil pública terpor objeto a condenação cumulativa de cumprimento de obrigação defazer ou não fazer somada à de pagar . REsp 247.162/SP, 1ª Turma, Min.Garcia Vieira.

Limite de punição:

Não pode a sentença impor ao empresário, caso obtenha licençapara se instalar, a transferência do estabelecimento industrial paralocal diferente, porque isso feriria o princípio da livre iniciativa e odireito de propriedade. REsp 43.512/SP, 1a Turma, rel. para o acórdão oMin. Demócrito Reinaldo. Isso significa que a aplicação da legislaçãosobre o meio ambiente cede passo sempre que se tratar de estabeleci-mento industrial, porque “é um conjunto de bens móveis e imóveis, aque se agregam a organização, o capital e o trabalho. A sua mudançapara lugar diverso tem evidentes implicações no princípio da livre ini-ciativa da atividade econômica erigido em garantia constitucional”.Houve dois votos vencidos.

Na Corte Especial, porém, aceitou-se princípio diverso: “Questõesrelativas a interesse econômico cedem passo quando colidem com de-terioração do meio ambiente, se irreversível” (AGR 924/GO, CorteEspecial, rel. Min. Pádua Ribeiro). Cuidava-se do funcionamento deempresa que construía usina hidrelétrica, com dano irreparável aolençol freático.

Citação do cônjuge:

É dispensável a citação do cônjuge na ação civil pública por dano aomeio ambiente porque não se trata de ação real sobre imóveis. REsp229.302/PR, 1ª Turma, Min. Garcia Vieira.

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6. O Direito do Trabalho e o Meio Ambiente.

São poucos os precedentes do Tribunal Superior do Trabalho. As ques-tões de algum modo envolvidas com o ambiente de trabalho são levadasao TST no bojo de ações trabalhistas, em que se destaca a preocupaçãoem aplicar a legislação específica do trabalho e resolver os problemas coma segurança e higiene no trabalho, insalubridade, periculosidade, peno-sidade e seu reflexo no direito do trabalhador. É que se vê o problemacomo algo que pode ser resolvido com o pagamento de adicionais ao em-pregado, ou com indenização, no caso de incapacidade.

Embora seja assim, vê-se que o TST reiteradas vezes admitiu a legitimi-dade do Ministério Público do Trabalho para a propositura de ação civilpública de direitos dos trabalhadores (RR 328755, 4ª Turma, rel. Min. Leo-naldo Silva. RR 316.001, 4ª Turma, rel. o Min. Ives Gandra Martins Filho).

No RR 316.001, de 1996, da 17ª Região, rel. o Min. Ives Gandra, oTribunal afirmou a competência da Justiça do Trabalho para processar ejulgar ação civil pública para defesa dos interesses coletivos dos trabalha-dores bancários, visando assegurar o respeito às normas atinentes ao meioambiente do trabalho. No caso, cuidava-se da instalação de portas gira-tórios como meio para impedir assalto a bancos.

No Supremo Tribunal Federal, duas importantes decisões foram re-centemente adotadas.

Sobre a competência da Justiça do Trabalho em ação civil pública, de-cidiu a Corte que, “tendo como causas de pedir disposições trabalhistas epedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho e, portanto,aos interesses dos empregados, a competência para julgá-la é da Justiça doTrabalho”. (RE 206.220/MG, 2ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio). A açãocivil pública tinha por objeto a prevenção de lesões oriundas do trabalho(LER – lesões por esforço repetitivo), e constou do voto do relator: “A com-petência, na espécie, é definida no art. 114 da CF, valendo notar estar emjogo o meio ambiente do trabalho, direitos coletivos indisponíveis e, por-tanto, direito substancial dos próprios empregados, tudo a pressupor rela-ção jurídica empregatícia, ou seja, liame regido pela CLT. Nem se diga queda relação processual, na via direta, não participam os empregados. Emúltima análise, a ação civil pública revela legitimação concorrente e o Mi-nistério Público atua, em si, visando a tornar prevalecentes as normas tra-balhistas, no que voltadas à proteção dos prestadores dos serviços”.

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Outra decisão versou sobre a competência legislativa estadual e o meioambiente do trabalho. “Cumpre à União legislar sobre parâmetros alusivosà prestação de serviços (arts. 21, XXIV, e 22, I, da CF. O gênero ‘meioambiente’, em relação ao qual é viável a competência em concurso daUnião, Estados e do Distrito Federal, a teor do disposto no art. 24, VI, daCF, não abrange o ambiente de trabalho, muito menos a ponto de chegar-seà fiscalização do local por autoridade estadual, com imposição de multa.Suspensão da eficácia da Lei 2.702/97, do Estado do Rio de Janeiro”. (ADI-MC 1893/RJ, Pleno, Min. Marco Aurélio). A subordinação do conceito deambiente de trabalho ao direito do trabalho, e não ao direito ambiental, noqual a competência legislativa é concorrente, tem sido vista como limita-ção que prejudicará a aplicação das normas de defesa ambiental.

O STJ examina os recursos por danos materiais e imateriais resultan-tes de más condições do ambiente de trabalho e tem reiteradamente re-conhecido o direito do incapacitado por disacusia (sonoridade excessi-va), tenossinovite (esforço repetido) e leucopenia (inalação de benzeno),condicionada esta a exame atualizado do estado da doença.

Recentemente, a Quarta Turma admitiu a legitimidade do MinistérioPúblico Estadual para promover ação civil pública para preservar o meioambiente do trabalho e evitar acidentes no trabalho, matéria de compe-tência da Justiça Estadual:

-Ação civil pública. Acidente no trabalho. Legitimidade do Ministé-rio Público estadual. Meio ambiente. O Ministério Público estadual temlegitimidade para promover ação civil pública destinada a evitar aciden-tes no trabalho. Precedentes. Recurso conhecido e provido.” ( RESP315944, 4º Turma, da minha relatoria ).

7. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.

- Legitimidade do MP para promover ação civil pública em defesa deinteresses difusos, coletivos e homogêneos, entre eles os do meio ambien-te. O caso era sobre mensalidade escolar. RE 163.231/SP, 2ª Turma, rel. oMin. Maurício Correa.

- Não foi deferida a liminar em Adin contra lei estadual que dispunhasobre estudo de impacto ambiental. ADIMC 2142/CE, rel. Min. MoreiraAlves.

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- Medida Provisória 1949/25, de 26.06.2000, à qual foi dada interpretaçãoconforme a Constituição, para suspender, ex nunc e até o julgamento final,sua eficácia fora dos limites de norma de transição, e, portanto, no tocante àsua aplicação aos empreendimentos e atividades que não existiam anterior-mente à entrada em vigor da Lei 9605/98. ADIMC 20.83/DF, Pleno, rel. Min.Moreira Alves.

- Meio ambiente e engenharia genética. Liberação de organismos ge-neticamente modificados. Competência do CTNBIO e a possibilidade dedispensar o estudo de impacto ambiental e o conseqüente RIMA. Con-trovérsia intragovernamental que não é suscetível de apreciação em açãodireta de inconstitucionalidade. ADIMC 2007/DF, Pleno, Min. Sepulve-da Pertence.

- Galo de rinha. “A Lei 2895/98, do Estado do Rio de Janeiro, ao auto-rizar e disciplinar a realização de competições entre ‘galos combatentes’,autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o quea CF não permite: art. 225, § 1º, VII.” (ADIMC 1856/RJ, Pleno, Rel. oMin. Carlos Velloso).

- Farra do boi. “A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exer-cício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão dasmanifestações, não prescinde da observância da norma do art. 225, § 1o,VII, da CF, que veda prática que acabe por submeter os animais à cruel-dade, como é o caso da conhecida ‘farra do boi’ (RE 153.531/SC, 2ª Tur-ma, rel. Min. Marco Aurélio).

- IBAMA. “Normas por meio das quais a autarquia, sem lei que oautorizasse, instituiu taxas para registro de pessoas físicas e jurídicas noCadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras eUtilizadoras de Recursos Ambientais, e estabeleceu sanções para a hipó-tese de inobservância de requisitos impostos aos contribuintes”. Cautelardeferida. ADIMC 1823/DF, Pleno, rel. Min. Ilmar Galvão.

- Município. Multa por degradação do meio ambiente. Não é incons-titucional a legislação municipal que exige o depósito prévio do valor damulta como condição para o uso de recurso administrativo, pois não seinsere na Carta de 1988 a garantia do duplo grau de jurisdição. RE 169.077/MG, 1ª Turma, rel. Min. Octavio Gallotti.

- Floresta amazônica. Medida Provisória 1511, de 22.08.96, e suas re-edições. “Embora não desprezíveis as alegações da inicial, concernentes a

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possível violação do direito de propriedade, sem prévia e justa indeniza-ção, é de se objetar, por outro lado, que a Constituição deu tratamentoespecial à Floresta Amazônica, ao integrá-la no patrimônio nacional, adu-zindo que sua utilização se fará na forma da lei, dentro das condições queassegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dosrecursos naturais”. Medida cautelar indeferida. (ADIMC 1516, de 13.8.99,Pleno, Min. Sydney Sanches).

- O MS 22164/MS foi deferido por falta de notificação pessoal e préviado proprietário rural quanto à realização da vistoria ( Lei 8629/93, art. 2º, §2º), com ofensa ao postulado do “due process of law” e nulidade da decla-ração expropriatória (Pleno, rel. o Min. Celso de Mello). Constou ainda daementa: “O direito à integridade do meio ambiente – típico direito deterceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva,refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expres-são significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado emsua singularidade, mas em sentido verdadeiramente mais abrangente, aprópria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (di-reitos civis políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativasou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segundageração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identifica comas liberdades positivas, reais e concretas, acentuam o princípio da igualda-de, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularida-de coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consa-gram o princípio da solidariedade e constituem um momento importanteno processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitoshumanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pelanota de uma essencial inexauribilidade”.

- Porém, no MS 23.370/GO, rel. o Min. Sepúlveda Pertence, o Plenoconsiderou que não pode invocar a falta de notificação prévia da vistoriado imóvel expropriando, o proprietário que, expressamente, consentiu que,sem ela, se iniciasse a vistoria.

- Foi indeferida a medida cautelar contra o disposto no art. 1º do Dec.99.547/90, que proibiu, por prazo indeterminado, o corte e a respectivaexploração da vegetação nativa na Mata Atlântica. ADIMC 487/Df, Ple-no, Rel. o Min. Octvio Gallotti.

- Reforma agrária. “Em curso projeto de reflorestamento, e observadoo respectivo cronograma, tem-se como insubsistente decreto revelando

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interesse social para fins de reforma agrária do imóvel” (MS 23.073/PE,Pleno, rel. o Min. Marco Aurélio). O INCRA confeccionara laudo e con-cluiu pela improdutividade da fazenda sem levar em conta o desconto dareserva legal (Lei 4.771/65 e 7803/89), havendo projeto técnico registra-do para o reflorestamento. Houve voto vencido do Min. Ilmar Galvão:“Não considero que um simples projeto dessa natureza, manifestamenteinviável do ponto de vista econômico, seja óbice à desapropriação”.

8. Para encerrar, apresento breves conclusões:

- Há mais de vinte anos em vigor a legislação sobre o meio ambiente,e contando mais de quinze a que regula a ação civil pública, é significa-tivamente pequeno o número de demandas que chegam ao Supremo Tri-bunal Federal e aos tribunais superiores, constando deste levantamentoaproximadamente 60 recursos apreciados no STJ ( que julga duzentos milprocessos por ano), 15 no Supremo Tribunal Federal e dois no TST.

- Apesar da extensão territorial do país e das agressões ao meio ambi-ente que acontecem na floresta amazônica, não há um número expressivode ações sobre direito ambiental fora das regiões sul e sudeste.

- A maioria das decisões adotadas no STJ foram favoráveis à aplicaçãodos dispositivos das leis sobre o meio ambiente, seja quanto às questõesprocessuais, aceitando a legitimidade ativa de entidades e associações edo Ministério Público, seja quanto ao direito material.

- Nesse ponto, há manifestações de apreço ao direito de propriedade,em respeito a preceitos constitucionais e aos princípios gerais do DireitoCivil. Esse último ponto será substancialmente alterado com a vigênciado novo Código Civil, que regula a função social da propriedade. Há pelomenos um julgado do STJ que, diante do confronto entre a livre iniciati-va e a proteção ambiental, a prevalência foi dada àquela. No entanto, hátambém julgado da Corte Especial, acentuando que, no choque entre asduas posições, a predominância deve ser para a proteção do meio ambien-te, se da atividade resultar dano irreparável. A boa aplicação do princípioda função social da propriedade, que introduz no seu conceito um inte-resse que pode não ser o do proprietário, certamente será fundamentopara futuras decisões em se tratando de direito ambiental.

- Muitas demandas versam sobre temas relacionados com o uso daterra urbana, em que sobressai a proteção do indivíduo no que se refereao acesso às boas condições de vida, e não propriamente a defesa do meio

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ambiente; assim, na escassa jurisprudência sobre o trabalho, cuidou-se depreservar as condições em relação à pessoa, não ao ambiente.

- Porém, devo registrar que o pequeno número de demandas, a inexis-tência delas em certas regiões do país e o direcionamento da ação civilpública para a proteção de outros direitos que não propriamente os doambiente, não são deficiências imputáveis ao Judiciário, mas aos que pro-põem, ou não propõem as causas que seriam cabíveis.

- Tendo na lembrança os princípios que orientam o direito ambientalquanto à obrigatoriedade da intervenção estatal, direito de acesso aosrecursos naturais, de precaução e de prevenção, de reparabilidade am-pla, de participação dos cidadãos no processo de resguardo do meio ambi-ente, de educação ambiental e de garantia de um desenvolvimento sus-tentado, é bem de ver que não foram muitas as oportunidades de suaaplicação nos casos julgados, e muitas vezes deixou-se de conveniente-mente explicitá-los. Encoberta a questão do ponto de vista do direitoambiental, a tendência foi a de resolver a causa de acordo com os princí-pios da legislação comum.

- O exame do tema pelos tribunais deverá ter em conta um aspecto dofenômeno da globalização, que faz migrar para os países periféricos, comoo Brasil, as indústrias poluidoras. Na medida em que se privilegiar a livreiniciativa, aceita-se a conseqüência resultante do estabelecimento deempresas que se deslocam exatamente para garantir o ambiente saudávelde outras partes do mundo. O efeito perverso disso é que a falta de cuida-do ambiental que daí decorre vai servir para que sejam criados embara-ços ao comércio dos nossos produtos.

- É preciso repensar o instituto da responsabilidade civil em termossociais, em que assume especial relevo, pela sua singularidade em relaçãoao que existe na concepção clássica, o princípio da precaução.

- Se disserem que essa nossa experiência no Tribunal é escassa, con-cordarei; se afirmarem que muitas das soluções estão impregnadas deconceitos do velho sistema jurídico do século XIX, concordarei. Porém,lembro que estamos no Brasil. Roberto Alexi, um dos mais ilustres consti-tucionalistas da Alemanha de hoje, afirmou que existe o estado de direi-to liberal; mais além, o estado de direito social, e, depois, o estado dedireito ecológico. Nós não chegamos ainda ao estado de direito social,daí a díficuldade de tornar eficaz uma legislação que procura implantarprincípios e regras de um estágio de estado de direito do qual estamos

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ainda tão distantes. Basta lembrar que tramita nesta semana no Congres-so Nacional projeto de lei que permitirá a devastação de mais de 50% dafloresta amazônica.

- Por fim, consigno a importância do trabalho desenvolvido pelos am-bientalistas neste país, que se reúnem em organizações governamentais enão governamentais, também pelos seus juristas e doutrinadores, profí-cuos e competentes, pela edição da excelente Revista de Direito Ambi-ental, editada pelo Instituto “O Direito por um Planeta Verde”, sob acoordenação do incansável e competente Hermann Benjamin e de ÉdisMilaré, pelas empresas que se organizam para permitir atividades menosagressivas ao ambiente, como propugna o Instituto Brasileiro de Produ-ção Sustentável e Direito Ambiental, e finalmente pelos organizadoresdeste Congresso, que a todos cumprimento na pessoa de Eladio Lecey eSilvia Capelli.

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vol.3, n.1, 2002 Direito e Democracia 393Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.143-150

Poder judiciário e política

Judiciary and Politics

MARTA BEATRIZ TEDESCO ZANCHI

A autora é advogada, professora de Teoria Geral do Processo- ULBRA/Guaíba e mestranda em Direito (ULBRA/Canoas).

RESUMO

Fazendo uso do conceito de política em relação à atividade do Poder Judiciário,o texto busca destacar o caráter político que deve ser atribuído a este Poder , oque decorre não só do fato de tratar-se de poder público, mas, principalmente,porque é na jurisdição – atividade precípua do Judiciário que tem por finalidadea pacificação da sociedade - que o Estado vai buscar a ordem social.Palavras-chave: Poder político, jurisdição, Poder Judiciário e política, Magis-tratura e Independência, Magistratura e Imparcialidade.

ABSTRACT

Using the concept of politics related to the activity of the Judiciary, the paperdraws attention to the political character that should be attributed to Judiciary.Not only because it is a public power, but specially because it is in jurisdiction –main activity of the Judiciary directed to society’s peace – that the State goes forsocial order.Key words: Political power, jurisdiction, Judiciary and politics, Magistracy andindependence, Magistracy and impartiality.

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Para bem convencer o leitor da politicidade do Poder Judiciário - abs-traindo qualquer idéia partidária – pois é habitual, em um primeiro mo-mento, ao falar-se em política, fazer-se uma associação imediata a umadeterminada ideologia partidária –, é importante destacar o conceito dapalavra política e a partir deste conceito traduzir, em linhas gerais, o por-quê de o Poder Judiciário ser político - ou, ao menos, dever ser político.

Segundo Bobbio, a significação mais comum de política é a de arte ouciência do Governo, isto é, “ de reflexão, não importa se com intençõesmeramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmentediscrimináveis, sobre as coisas da cidade”; sendo que, na época moderna, otermo política “passou a ser comumente usado para indicar a atividade ouconjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de re-ferência a pólis, ou seja, o Estado” (1992, p. 954;957).

Por outro lado, considerando a tripartição de poderes - adotada emnossa Carta Constitucional1 - e sendo o Poder Judiciário um destes pode-res, torna-se imprescindível pesquisar sobre o poder político para só entãoconcluir de que o Poder Judiciário é poder político. Para tanto, novamen-te, a lição de Norberto Bobbio:

O que caracteriza o poder político é a exclusividade do usoda força em relação à totalidade dos grupos que atuamnum determinado contexto social, exclusividade que é oresultado de um processo que se desenvolve em toda asociedade organizada, no sentido de monopolização daposse e uso da coação física. Esse processo de monopoli-zação acompanha ‘pari passu’ o processo de incriminaçãoe punição de todos os atos de violência que não sejam exe-cutados por pessoas autorizadas pelos detentores ebeneficiários de tal monopólio. (idem, p. 956)

Adiante (p. 958) , o mesmo Autor sobre o fim mínimo na Política:

(...) Esta rejeição do critério teleológico não impede, con-tudo, que se possa falar corretamente, quando menos, deum fim mínimo na Política: a ordem pública nas relações

1 Constituição Federal, Art. 2º - São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, oExecutivo e o Judiciário.

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internas e a defesa da integridade nacional nas relações deum Estado com os outros Estados. (...)

Destarte, parece decorrência lógica dos conceitos supra expostos queo Poder Judiciário é poder político. E isto se comprova na medida em queeste Poder possui, como função precípua, a jurisdição, cujo objeto é avedação da auto-tutela e se constitui basicamente na intervenção doEstado - via Poder judiciário - na solução dos conflitos de interesses pormeio da aplicação (e interpretação) da norma legal ao fato concreto,tendo por fim a pacificação social (ver Grinover, Dinamarco e Cintra,2000; e também Gomes e Silva, 1996).

Assim, salta aos olhos que, ao prestar a jurisdição com vistas à soluçãojusta dos conflitos que lhe são trazidos, o Poder Judiciário atua direta eimediatamente sobre a vida social, no Estado. E é nesta linha que se deveconsiderar o Poder Judiciário como poder político – e não só porque épúblico -, mas principalmente porque quando o juiz aplica o direito obje-tivo - interpretando-o segundo o caso concreto - impõe a sujeição dedeterminado sujeito a um comportamento, e atua – ou deve atuar - nãocomo mero executor de ordens do Poder Executivo (buscando, por vezes,como bem coloca Carlos Maria Cárcova (1996, p. 150), transgredir a le-galidade em nome de uma suposta “eficácia administrativa”), nem - tam-pouco - como a boca que pronuncia as palavras da lei indiscriminada-mente - mas com independência e coragem de fazer valer a justiça aocaso concreto, utilizando-se, para tanto, de todo o sistema legal pátrio e,em especial, dos direitos e garantias individuais e sociais positivados naCarta Magna.

Na Teoria Tridimensional do Direito, Miguel Reale deixa claro que osfatos devem ser valorados para, só então, sobre eles recair a norma jurídi-ca. Aliás, para este jurista, os fatores (fato, valor e norma) coexistem emuma unidade concreta, exigindo-se reciprocamente, o que faz do direitouma interação dinâmica e dialética destes elementos. E esta dinâmica sereflete não só na confecção da norma jurídica, mas também na interpre-tação que o juiz faz da norma ao aplicá-la ao fato concreto (1991, p. 65-66). Quanto a concreção da norma ao fato, vale citar a lição de EugenioRaul Zaffaroni:

Nesta atividade, o juiz não é legislador, ou seja, não resolve‘livremente’ os conflitos, mas conforme a lei, não sendo,

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porém, uma máquina de ‘subsumir‘, senão que ‘a lei é umanorma geral para uma pluralidade de casos possíveis; odireito, ao revés, decide sobre uma situação real aqui eagora’. Desse modo não deve ele se valer da lei como texto,mas, além das metodologias jurídicas sempre discutíveis,para enfrentar a conflitualidade de nossas sociedades, deveincorporar dados da realidade, não lhe bastando o tãodesgastado “sentido comum” e, embora não o queira, nãopode escapar da valoração desses dados” (1997, p. 86).

Desta forma, conforme o autor citado, faz parte da atividade jurisdici-onal a interpretação da norma - de acordo com a realidade que é posta afrente do julgador – para a sua aplicação. Nem poderia ser diferente,afinal é o juiz quem dá vida ao direito positivo, não podendo ele relevar,nesta sua operação, de dados da realidade - uma vez que, além das normaslegais, tem de disciplinar um número sem fim de conflitos diversos, e elas,certamente, não acompanham a evolução da sociedade. Por conseqüên-cia, juízes que não valoram a norma antes de aplicá-la ao fato, aplicandoa lei às cegas, negam a evolução da sociedade e as diversas e diferentesrealidades nela existentes, e, assim, terminam por negar a função socialdo Poder Judiciário, promovendo injustiças em nome do positivismo jurí-dico. Neste sentido, escreve Dalmo de Abreu Dallari:

Aí está a primeira grande reforma que se faz necessária,pois, de fato, a adesão ao positivismo jurídico significa aeliminação da ética, como pressuposto do direito ou inte-grante dele. E a partir daí a assunção da condição de juiz,a ascensão na carreira judiciária, a indiferença perante asinjustiças sociais, a acomodação no relacionamento comos poderosos de qualquer espécie, o gozo de privilégios, abusca de prestígio social através do aparato, a participa-ção no jogo político-partidário mascarada de respeitávelneutralidade, tudo isso fica livre de barreiras éticas e deresponsabilidade social. É por esse caminho que os Tribu-nais de justiça se reduzem a Tribunais de Legalidade e amagistratura perde a grandeza que lhe seria inerente se osjuízes realmente dedicassem sua vida a promover justiça.

Segue o autor: “É indispensável essa reforma de mentalidade para que

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o sistema não seja, como denunciou Marcel Camus, “uma forma legal depromover injustiças”. O excesso de apego à legalidade formal pretende,consciente ou inconscientemente, que as pessoas sirvam à lei, invertendoa posição razoável e lógica segundo a qual as leis são instrumentos dehumanidade e como tais devem basear-se na realidade social e seremconforme a esta. “ (Dallari, 1996, pp. 83-84)

Destarte, conclui-se que o juiz, antes de servir a lei, serve à pacifica-ção social.

A importância de um Poder Judiciário independente torna-se aindamaior quando se observa que em um Estado Democrático de Direito éeste Poder que tem atribuição de controlar a legitimidade dos atos doExecutivo e a constitucionalidade das leis emanadas do legislativo.

Não, por outras razões, que tanto Carlos Maria Cárcova quanto Dal-mo de Abreu Dallari insistem na independência do Poder Judiciário prin-cipalmente frente ao Poder Executivo. Na medida em que o Poder Judici-ário serve aos interesses do Governante, em detrimento dos interessessociais, afronta-se a divisão de poderes - garantia de democracia -, pois éno Judiciário que o cidadão vai encontrar - ou deveria encontrar - asegurança de seus direitos. Assim, à medida que o Poder Judiciáriocurva-se à aplicação de “leis” que atentem contra o texto constitucionale são confeccionadas com vistas a - como bem assinala Carlos Cárcova(1996, p. 150) - uma suposta eficácia administrativa, deixando de fazer ajustiça ao caso concreto -, estar-se-á falando de qualquer outro ente quenão de um Estado Democrático de Direito. Neste sentido, a lição deZaffaroni (1997, pp. 89-90):

(...) Em síntese, ambas as formas de independência do juiz– a externa e a interna – são igualmente necessárias parapossibilitar a sua independência moral, ou seja, para dotá-lodo espaço de decisão necessário a que resolva conforme seuentendimento do direito. É desnecessário sobejar em consi-derações jurídicas e políticas que impedem que um juiz de-penda do executivo ou do legislativo, caso em que, evidente-mente, não se trataria de um juiz, mas de um empregadopúblico, tendo-se, porém, reparado menos na impossibilida-de de que dependa de outro órgão judicial, o que o converteem um mero amanuense da cúpula burocrática.

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Carlos María Cárcova (idem, p. 151) é quem expõe os devastadoresefeitos da crise de legalidade em um Estado que se autodenomina Demo-crático de Direito:

Quando o papel da legalidade se desvaloriza no âmbitoinstitucional, ocorre o mesmo no âmbito das relações inter-pessoais. Os compromissos não são assumidos, as conven-ções não são cumpridas e uma sensação geral dedesproteção e de impunidade percorre, com efeitos natu-ralmente deletérios, os interstícios da vida social.

Desta lição, depreende-se que a crise de legalidade gera não somenteos efeitos supra-referidos, mas também são eles produzidos em cascata, ouseja, a partir do momento em que se inflaciona o sistema legal de um paíssem respeitar os direitos e garantias fundamentais e o Poder Judiciáriocurva-se às vontades do “rei” ou assume ares de “neutralidade” – dei-xando de valorar as normas, segundo os princípios constitucionais e arealidade social vigente, para só então aplicá-las adequadamente – oscidadãos perdem a crença e habituam-se a tolerar as ilegalidades prati-cadas no âmbito dos três poderes do Estado.

Outro fator a ser analisado é que, junto à independência do Poder Judi-ciário, deve caminhar a imparcialidade de seus membros. A imparcialida-de, ressalte-se, que muito dista da neutralidade - verdadeira camuflagemusada por alguns juízes para se eximir das responsabilidades advindas desuas decisões. Juiz imparcial, segundo a lição de Rui Portanova, é aqueleque não possui interesse pessoal no julgamento, ou seja, a imparcialidadeliga-se à condição pessoal do juiz-homem-cidadão (Portanova, 1999, p. 24)e consiste, segundo a lição de Plauto Faraco de Azevedo (1998, p. 14), noabrir-se o juiz cuidadosa e honestamente às versões em confronto no processo. Oconceito de neutralidade, por sua vez, diz respeito ao afastamento do ho-mem, no caso, o juiz, de toda a realidade que o cerca, do que decorre que,faticamente, a neutralidade não existe, na medida em que não é possívelconceber que uma pessoa inserta na sociedade não possua sua visão demundo e sua compreensão de realidade, como bem expõe Zaffaroni:

O juiz não pode ser alguém ‘neutro’, porque não existe aneutralidade ideológica, salvo na forma de apatia,irracionalismo ou decadência de pensamento, que não são

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virtudes dignas de ninguém, e menos ainda de um juiz.Como bem se tem assinalado: ‘nem a imparcialidade nema independência pressupõe necessariamente a neutralida-de. Os juízes são parte do sistema de autoridade dentro doEstado e como tais não podem evitar de serem parte noprocesso de decisão política. O que importa é saber sobreque bases são tomadas essas decisões.2

Ora, parece que o simples fato de um juiz dizer-se neutro, atentacontra o que deveria ser a neutralidade - se esta existisse -, porque aoafirmar-se neutro, o juiz está tomando uma posição e esta posição é adaquele que aplica a lei segundo a dogmática positivista – sem qualquerjuízo de valor - que, mais das vezes, está a serviço do statu quo, seja elequal for.

Assim, o Poder Judiciário é poder político à medida que interpreta osistema legal de acordo com os princípios constitucionais, sempre com vis-tas à construção de uma sociedade livre e justa e à dignidade da pessoahumana (respectivamente, art. 3, I e art 1, III, da Constituição Federal3 ).Para tanto, o juiz não deve se incluir no rol dos seres que pairam acima doscidadãos comuns, mas deve ser uma pessoa inserida no contexto social e aopar da realidade vigente - não uma figura inatingível, um quase-Deus -que vive recluso no gabinete, tendo por companhia só doutrinas altamenteespecializadas, mas um homem comum que possui um bom conhecimentotécnico, mas também é conhecedor dos problemas da sociedade por nãoviver dela apartado . O juiz, antes de técnico, é cidadão.

2 1997, p. 92 citação de Francesco Carnelutti, in Le miserie del processo penal, Torino, 1957.3Art. 1. A República federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, municípios e Distrito

federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III – a dignidade da pessoa humana;

(...)

Art. 3. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre e justa;

(...)

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vol.3, n.1, 2002 Direito e Democracia 401Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.401-159

Reflexões sobre o Direito Ambientale sua aplicação

Reflections on Environmental Law and itsApplication

MÔNICA MELCHIADES SOARES

Advogada, gerente do Departamento Jurídico do Conselho Regional de Química da 5ª Região, Pós-graduanda em Direito-ULBRA/RS.

RESUMO

O presente artigo é uma reflexão sobre a situação ambiental atual que está areclamar do julgador uma atitude dinâmica, em conformidade com a gravida-de e urgência do tema, concentrando esforços no sentido de privilegiar, sempreque necessário, os interesses coletivos e difusos, sem descurar da defesa dosdireitos individuais. O intérprete precisa valer-se da hermenêutica material parabem valorizar os interesses em questão.Palavras-chave: Direito ambiental, hermenêutica material, aplicação judicialda norma ambiental.

ABSTRACT

The article proposes some reflections on the environmental situation which demandsfrom the judge a dynamic posture, in agreement with the seriousness and urgencyof the theme, concentrating efforts to privilege when necessary the collective anddiffuse interests, without neglecting the defense of individual rights. The interpretershould use the material hermeneutics in order to value the interests in question.Key words: Environmental law, material hermeneutics, judicial application ofenvironmental rule.

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1 INTRODUÇÃO

Independente de concepções ideológicas religiosas e científicas a res-peito do surgimento do mundo, podemos dizer, especificamente sobre o pla-neta Terra, que foi criado como um sistema mais ou menos perfeito. Ascondições essenciais para os mais variados tipos de vida foram previstasnesse sistema: ar, água, solo, alimento, formas de reprodução. Nenhumavida existe ou existiu na Terra sem as condições mínimas de sobrevivência.

O homem, único animal que segundo a ciência é dotado de raciona-lidade, desde sempre sentiu-se no direito de modificar o ambiente ondevive em nome do que chamou de progresso. Hoje não nos imaginamossem água encanada, energia elétrica, cidades, estradas, entre outras fa-cilidades do mundo moderno. Mas todo esse suposto desenvolvimento,trouxe consigo a interferência naquele sistema, antes perfeito e que hojejá não opera mais em harmonia.

A preocupação com a preservação do ambiente de forma direta é ma-téria nova. Iniciou de maneira tímida com o alerta de biólogos e estudio-sos da área relativamente à extinção de algumas espécies animais. So-mente após a ocorrência sistemática de tragédias climáticas, formação dedesertos, escassez de água potável, empobrecimento significativo de flo-restas, poluição atmosférica substancial, é que o mundo humano começaa acordar para a necessidade emergencial de preservação dos recursos,sob pena de a vida na Terra se tornar impossível. Alguns já falam, inclu-sive, na possibilidade do fim do mundo.

O direito surge entre os homens como forma de normatizar as relaçõesem sociedade. É ciência mutável, pois deve estar em consonância com arealidade onde é aplicado, com os valores da coletividade onde vige ecom os objetivos específicos a que se destina.

A realidade que nos circunda fez com que a criação de normas depreservação do ambiente se tornasse essencial na maioria dos países. Ecomo o ambiente não obedece às fronteiras estipuladas pelo homem, asações devem ser conjuntas entre os países. Exemplos disso foram a Confe-rência da ONU em Estocolmo, em 1972, e mais recentemente, a Rio 92.Surge, assim, ainda como ramo mais ou menos autônomo do direito, oDireito Ambiental, com institutos próprios como o zoneamento ambientale o estudo prévio de impacto ambiental.

Quando tratamos do Direito Ambiental, devemos ter em mente o ramo

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do direito cujo bem tutelado é o ambiente. Ambiente, aqui, numa acep-ção muito mais ampla do que apenas os recursos naturais, isto é, flora,fauna, água, ar e solo. Envolve, também, o ambiente cultural, artístico,paisagístico, histórico e laboral. Em suma, pode-se dizer que o DireitoAmbiental irá abarcar tudo o que se relaciona ao local onde vivemos,construímos nossa história e preparamos a das futuras gerações.

Embora de forma esparsa, algumas normas anteriores já faziam previ-sões sobre matérias relacionadas ao ambiente. Citemos alguns exemplos.O Código Civil Brasileiro, que é de 1916, ao normatizar o direito de vizi-nhança, tratou de coibir o uso nocivo da propriedade quando, no artigo554, confere ao inquilino ou proprietário de um prédio o direito de impe-dir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, osossego e a saúde dos que a habitam. O Código Penal, de 1942, ao tratarda saúde pública, comina severas penas a quem envenenar água potável,de uso comum ou particular, ou substância alimentícia ou medicinal des-tinada a consumo. A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, traz umsem número de regras de proteção do trabalhador, tanto no aspecto dehigiene e saúde, quanto de atividades insalubres ou perigosas.

Pode se dizer, no entanto, que o marco evolutivo capital do DireitoAmbiental no Brasil, se deu com a promulgação da Constituição Federalde 1988, que prevê, in verbis:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologica-mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencialà sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público eà coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para aspresentes e futuras gerações.

2 INTERPRETAÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL

Como já dissemos, o direito foi criado para regular a vida em socieda-de. Será aplicado quando as situações existentes faticamente se ajusta-rem aos preceitos estabelecidos nas normas jurídicas. Mas esse sistema denormas não é abrangente de todas as situações fáticas, e nem todas essas,quando juridicamente relevantes, estarão claramente previstas nas dis-posições legais.

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Além disso, a evolução social caminha sempre na frente do legislador,fazendo com que muitas normas se tornem, pelo menos em sua aplicaçãoliteral, obsoletas. J. J. Gomes Canotilho (1996, p. 1331), ao tratar da Cons-tituição portuguesa de 1976, já afirmara que essa, enquanto norma dasnormas, ocupante do topo da pirâmide hierárquica das leis, deve guardardois tipos de pretensão: de estabilidade, na qualidade de ordem jurídicafundamental e de dinamicidade, no sentido de fornecer aberturas para asmudanças no seio político.

O direito, portanto, não pode ser considerado, enquanto ciência, deforma afastada da realidade social onde se insere e se aplica. E mais, nãopode ser resumido à aplicação pura e simples de normas. Deve abrir-separa uma interpretação ampla, que, além do ordenamento jurídico emsentido estrito, mantenha relação direta com a jurisprudência, os costu-mes, os princípios jurídicos, a analogia, sempre na busca da solução maisjusta das relações sociais e controvérsias delas advindas.

Com o Direito Ambiental não é diferente. É servido por uma gama demétodos de interpretação que devem ser harmonizados pelo magistradona busca da percepção da ordem jurídica global, do entendimento e cor-reta aplicação da norma ambiental, tudo isso dentro do contexto socialatual e buscando a solução mais próxima possível da ideal.

É caracterizado por princípios próprios que dão sustentabilidade àsleis, como seus pilares-mestres. Alguns dos mais importantes são os prin-cípios do desenvolvimento sustentável, da prevenção, do poluidor-paga-dor, da participação, da informação, da educação ambiental e da ubiqüi-dade (Machado, 2001, pp. 43-78). A criação, assim como a aplicação eprincipalmente a interpretação das normas ambientais, devem respeitaresses princípios, que também não escapam de ajustes em função da evo-lução social.

O princípio do poluidor-pagador, por exemplo, cuja idéia inicial erasomente de buscar punir o degradador, hoje evoluiu no sentido de agre-gar a essa sanção, medidas de reparação dos danos causados, sempre quepossível. E isso se deu a partir de uma demonstração de que para a socie-dade, tão importante quanto punir o transgressor, era ter o ambiente re-cuperado.

Além dos princípios próprios do Direito Ambiental, o julgador nãopode se afastar, também, dos princípios ditados pela Constituição Federalde 1988, que, já em seu preâmbulo, afirma ser destinada a instituir o bem-

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estar da população dentro de um Estado Democrático. Certamente, por-tanto, a preservação do ambiente é contemplada. E foi. Ganhou capítulopróprio, encabeçado artigo 225, conferindo ao Poder Público a competên-cia para a efetividade desse direito, sem que descuide da importância dacoletividade em sua defesa e preservação.

E não é só. No corpo da Carta, muitos outros princípios devem seraplicados na interpretação do Direito Ambiental: o do bem estar de to-dos, o da dignidade humana, o das condições dignas de trabalho, o dajustiça social, o da função social da propriedade e, é claro, o da defesa domeio ambiente. Esses valores fundamentais são indissociáveis. A justiçasocial depende da busca do bem-estar do povo, que depende de condi-ções dignas de vida e assim por diante. É um sistema amplo no qual omagistrado tem obrigação de fundamentar-se, ao decidir, interpretando eaplicando a lei, no que deve ser imparcial, sem pretender alcançar aneutralidade.

Outra idéia nova para o ordenamento jurídico brasileiro, trazida deforma muito forte pelo Direito Ambiental moderno, é a de que o direitoao ambiente deve ser negativo, isto é, mesmo que certas ações tragam osmais diversos tipos de benefícios, se forem ambientalmente nocivas, de-vem ser evitadas. Essa linha ideológica ainda encontra muitos obstáculos,pois vai de encontro à febre desenvolvimentista do mundo capitalista,mas precisa ganhar força, pois está em jogo o futuro da vida na Terra.

3 PROTEÇÃO DO AMBIENTE E ODESENVOLVIMENTO

O artigo 170 da Constituição Federal de 1988, ao tratar dos princípiosgerais da atividade econômica, traz, expressamente, no inciso VI, o prin-cípio da defesa do meio ambiente. Em contrapartida, convivemos com aidéia fortemente imposta, principalmente pelos países capitalistas do cha-mado Primeiro Mundo, de uma busca desenfreada pelo desenvolvimento,atrelada ao progresso, cujas origens acham-se no racionalismo iluminista.

A civilização moderna, baseada na racionalização e na abstração, fezcom que o homem deixasse de buscar a verdadeira natureza das coisas,passando a valorizar de forma marcante os conhecimentos de uma ciên-cia de cunho físico-matemático. Essa ciência trouxe um cenário de des-

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cobertas e realizações, na maioria das vezes derivadas de ações sem retor-no, como se a capacidade do homem fosse ilimitada. Criou-se a idéia deque a ciência seria capaz de solucionar qualquer problema, dominar tec-nicamente qualquer dificuldade. Mas essa falsa verdade trouxe, na ver-dade, a cisão entre ciência e natureza.

Um dos mais sensíveis efeitos dessa racionalidade científica foi, e ain-da é, a devastação do ambiente. Florestas foram substituídas por cidades,rios e mares foram tomados como depositários dos efluentes das indústriase do esgoto urbano, o ar passou a conter os mais variados tipos de gasesproduzidos pelo homem. Nos últimos tempos, somos assolados por catás-trofes que, de tão freqüentes, já não surpreendem. Apenas para citar asmais conhecidas, em 1984, em Bhopal, na Índia, ocorreu um vazamentode isocianato de metila que causou a morte de pelo menos duas mil pes-soas, enquanto mais de duzentas mil foram atingidas. Nesse mesmo ano,na Cidade do México, uma explosão de GLP deixou mais de seiscentos ecinqüenta mortos e centenas de feridos. Em 1986, na Ucrânia, o acidentenuclear de Chernobil contaminou um quinto do solo arável do país, cau-sou a morte imediata de 28 pessoas, noventa mil foram evacuadas de suascasas e as conseqüências da contaminação são sentidas até hoje.

Além desses acidentes de maior impacto momentâneo, ainda devemser citados os problemas que, causados de forma paulatina, hoje se trans-formaram em questão de emergência mundial. Moramos em cidades ondeé quase impossível a avaliação de qual tipo de poluição está em situaçãomais crítica, se a sonora, a visual, a do ar, a do solo ou a da água. Osdesertos também viraram paisagem comum até mesmo nos países onde aindustrialização não é marcante.

Estamos diante de uma batalha. O neoliberalismo, para o qual o mer-cado é quem dita regras e valores, preocupado com interesses pessoais dealguns, tratou de desacreditar, perante a opinião pública, todos os precei-tos de caráter socializador da Constituição de 88. Essa passou a ser taxadade utópica e ser tratada como obstáculo à governabilidade. O descumpri-mento da Lei Maior do país já não é mais novidade. As idéias capitalistasde desenvolvimento a qualquer preço, diante disso, ganham força e fa-zem com que o Brasil, além de não tomar as precauções necessárias como ambiente, ainda fique cada vez mais dependente dos “poderosos” dessamáfia econômica.

Os Estados Unidos da América, líderes da onda neoliberal, já sentem

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os reflexos de nunca terem adotado uma política ambiental preservacio-nista. Sempre se posicionaram como voto contrário quando as ações emjogo pudessem prejudicar, de alguma forma, sua economia. Por outro lado,sabem que no momento em que a defesa do ambiente for um sentimentomundial, o tão pregado “desenvolvimento a qualquer custo” irá diminuire, na mesma proporção, seu poder de dominação sobre as demais nações.

Toda essa ideologia afastada da realidade concentrou os olhares domundo para a busca da tecnologia, do progresso, do avanço da ciência,da industrialização e desviou-se de problemas muito mais importantes,como a solidariedade, o bem-estar do povo enquanto comunidade, suahistória e seus aspectos culturais, enfim, questões que não têm relaçãodireta com o econômico.

Analisando toda a situação, é impossível que uma questão principalnão assome à mente: será que tudo isso foi e é necessário? E o problemafica ainda mais assombroso quando a conclusão inclina-se para o NÃO.O desenvolvimento só é justificado em algumas situações e, mesmo as-sim, até certo ponto. O raciocínio é simples. Se todo esse pretenso pro-gresso não fez com que a fome no mundo fosse erradicada, com que todostivessem condições dignas de vida e, além disso, o ambiente onde vive-mos encontra-se incalculavelmente degradado.

Mas não há como voltar no tempo e, em vista disso, a importância doDireito Ambiental cresce a cada dia como única forma de salvar o queainda existe. Um dos seus princípios, o do desenvolvimento sustentável,prega justamente que devam ser avaliados os benefícios das ações desen-volvimentistas em comparação com a degradação que causam. E essaavaliação não pode ser feita somente levando em conta o presente, mastambém o futuro.

4 QUALIDADE DE VIDA E DIREITO DEPROPRIEDADE

A situação ambiental atual está a reclamar do julgador uma atitudedinâmica, em conformidade com a gravidade e urgência do tema. Mas osmagistrados da área cível não podem agir de forma isolada, deve ser auxi-liado por juízes de outras áreas, demais órgãos (públicos ou não) e mesmopessoas físicas que possam contribuir de alguma forma. As ações devem

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ser conjuntas na busca da satisfação dos interesses gerais da comunidade,já que uma extensa gama de normas ambientais não são efetivamenteaplicadas em nome da defesa de direitos individuais.

Relativamente ao direito de propriedade, essa concepção individua-lista, originária principalmente do Código de Napoleão e do Direito Ro-mano, deve ser superada pelo intérprete. Antes de serem conferidos aoproprietário amplos direitos de usar, gozar e fruir de sua propriedade, in-teresses mais amplos devem ser sobrepostos. Isso porque, como já foi esta-belecido pela Constituição Federal, todos temos direito ao ambiente eco-logicamente equilibrado, que é bem de uso comum do povo. Em outraspalavras, o Direito Ambiental é composto por normas que visam protegerinteresses públicos indisponíveis e, nesse sentido, sua tutela vai muitoalém do interesse particular.

O abuso do direito de propriedade é matéria histórica. Desde que ohomem abandonou a vida nômade e fixou moradia, passou a agir comoum verdadeiro “senhor da terra”. Naquele seu pedaço de terra, era o maisabsolutista dos reis e seu direito, ilimitado. Essa idéia não foi muito alte-rada nos dias atuais. Por óbvio, a evolução das sociedades, o aumento dapopulação mundial, o surgimento das cidades e a regulamentação jurídi-ca do direito de propriedade, entre outras causas, trouxeram modifica-ções ao tema, mas não à essência da idéia. Embora hoje a maioria dosproprietários possua alguma noção, mesmo que mínima, das restrições deuso daquilo que lhes pertence, o sentimento de disponibilidade continuaa existir e faz com que, muitas vezes, o direito de um invada o do próximoou mesmo vá de encontro a direitos de toda a sociedade. Degradar oambiente, mesmo que próprio, contraria o interesse público.

Na mesma esteira, tutelar o meio ambiente implica interferir no direi-to de propriedade. A Constituição de 1988 impôs limitações ao direitodos proprietários aos instituir o princípio da função social da propriedadee da defesa do meio ambiente, estampados nos artigos 5º, 170, VI, 182,2º, 186, II e 225. Infelizmente a eficácia prática desses preceitos ainda écombatida fortemente por interesses particulares. Muitos têm se validodas limitações impostas pelo poder público para requerer a desapropria-ção indireta de suas terras, alegando que essas restrições (ou mesmo qual-quer restrição) inviabilizam o uso econômico da propriedade. Nesses ca-sos, há que se ter em mente que o ordenamento jurídico não pode assegu-rar ao proprietário, em todos os casos, o uso mais lucrativo possível. Maisuma vez, o intérprete deve fazer uma análise ampla da questão e avaliaros interesses prevalentes na questão.

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Concluindo, o ambiente ecologicamente equilibrado é direito funda-mental da pessoa humana e essencial para a sobrevivência da vida noplaneta. Diante disso, a norma ambiental precisa se valer da hermenêuti-ca material no sentido de solucionar as questões de forma a que o interes-se público à vida seja sempre o privilegiado.

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vol.3, n.1, 2002 Direito e Democracia 411Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.161-164

Manuel de Rivacoba y Rivacoba

LUIZ LUISI

Professor Titular do Curso de Mestrado em Direito (ULBRA), professor livre-docente e do Curso deEspecialização em Direito Penal da Faculdade de Direito/UFRGS

RESUMO

O texto destaca aspectos relevantes da vida, bem como as principais contribui-ções para as ciências penais do trabalho do professor Manuel Rivacoba yRivacoba.Palavras-chave: Ciências penais, História do Direito Penal, Rivacoba y Rivacoba.

ABSTRACT

The paper stresses some relevant aspects of the life, as well as the maincontributions of professor Manuel Rivacoba y Rivacoba for the penal sciences.Key words: Penal sciences, History of the Penal Law, Rivacoba y Rivacoba.

Com o falecimento de Manuel de Rivacoba Y Rivacoba em 30 dedezembro de 2000, as ciências penais perderam um dos seus mais notáveise importantes cultores.

Nascido em Madrid em 09 de setembro de 1925, bacharelou-se emfilosofia e letras em 1950, e em direito em 1953, na Universidade Madri-leña. Obteve o título de doutor na mesma Universidade em 1957.

Começou sua longa e brilhante carreira universitária como professorassistente da cadeira de Fundamentos da Filosofia na Faculdade deCiências Políticas, Econômicas e Comerciais de Bilbao, em 1956. Masteve trancada a sua atividade docente, tendo de exilar-se na Argentina,devido a sua combativa oposição ao Governo do General Franco. Neste

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País foi Professor Titular de Direito Penal na Universidade Nacional doLitoral, com sede em Santa Fé, de 1958 a 1966. E, também, nesse períodofoi professor de execução penal no Instituto de Direito Penal e Crimino-logia da Faculdade Nacional de Direito, em Buenos Aires, que era, en-tão, dirigido por seu Mestre Luiz Jimenes de Assua.

Com o advento na República Argentina da ditadura do GeneralOngania transferiu-se para o Chile, onde assumiu em 1967, a Cátedra deDireito Penal da Universidade de Valparaíso. A exceção dos anos de 1988a 1990, quando lecionou na Universidade de Córdoba na Espanha, exer-ceu seu magistério em Valparaíso até sua morte.

Autor de uma vasta e instigante obra científica. Dentre seus muitoslivros destacamos: “Funcion e Aplicacion de la Pena”, “Hacia Una Nue-va Concepcion de la Pena”, “Las Causas de Justificacion”, e “EvolucionHistórica Del Derecho Penal Chilena”. Colaborou em numerosas revistasespecialmente no “Nuevo Pensamiento Penaal”, (1972 a 1977) e sua con-tinuação, “Doctrina Penal”, editada em Buenos Aires, a partir de 1977.Participou de dezenas de congressos e seminários, onde pronunciou me-moráveis conferências.

Merece, todavia, ênfase a sua figura humana de grandeza incomensu-rável. Tive o privilégio de conhecer o Mestre Rivacoba em 1994, quandoministrou uma série de lições de História do Direito Penal, no Curso deEspecialização em Ciências Penais da Faculdade de Direito da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul. A partir de então nos encontramosnumerosas vezes, participando de encontros científicos. Também manti-vemos uma assídua correspondência.

Tive a honra de ser seu hóspede no Chile, tendo-o como companheiroem memorável seminário na Universidade de Antofagasta, sobre “Políti-ca Criminal Y Reforma Penal”, idealizado e dirigido pelo Prof. José LuizGusman Dalbora, seu discípulo dileto. E, também, na Universidade deValparaíso em colóquio sobre a história das ciências penais, e o princípioda insignificância.

Tínhamos divergências científicas, especialmente com relação a es-trutura jurídica do delito, pois, o Mestre Rivacoba não aceitava a cons-trução baseada na concepção finalista da ação. Todavia um tema nosempolgava, e constituía nossa assunto permanente: O Iluminismo Penal.A importância dos autores que a partir do século XVII e especialmente

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no século XVIII, transformaram a face do universo sócio político do mun-do ocidental e impuseram a substituição do direito penal bárbaro dasordenações, por um direito penal liberal e humanitário, foi tema de lon-gas conversas.

Em nosso último encontro no IIIº Fórum Penitenciário do Mercosul,na Universidade Privada do Leste, no Paraguai, aprazamos a realizaçãode um colóquio em Montevidéu sobre o Iluminismo Penal. Inclusive tí-nhamos dividido as tarefas, incumbindo-me a análise da obra de GaetanoFilangieri, que deu acabamento e sistematização ao Iluminismo na áreacriminal no 3º Volume de sua inacabada “La Scienza della Legislazione”.

O destino não quis a realização do colóquio. Todavia com GusmanDalbora, Raul Zaffaroni e outros penalistas que tiveram o privilégio deprivar com Rivacoba estamos pensando em realizar o projetado colóquio,como homenagem a memória do grande jurista. E em futuro breve serápublicado um volume de ensaios dedicados ao pensamento jurídico doProfessor de Valparaíso.

Manuel de Rivacoba Y Rivacoba amava entranhadamente o seu País, eentendia que a Espanha não era a marcada pelo triunfalismo arrogante da“esquadra invencível” de Felipe II, e pelas macabras tropelias do Tribunaldo Santo Ofício, mas era, e, é “um País de paz e convivência, apto para avida do sentimento e da razão, para o pensamento livre e criador, e para aciência e a filosofia ...”, conforme magistralmente escreveu no Prólogo aoLivro de J. Pablo Forner, “Discurso Sobre a Tortura”, escrito em 1790, e pornão ter sido autorizada a sua publicação, somente foi editada, por iniciativade Rivacoba em 1990. O amor por esta Espanha marcou sua combativaatuação política. Desde sua mocidade foi militante da liberdade e da de-mocracia. Conspirou contra a ditadura franquista. Foi um dos organizado-res da Federação Universitária Escolar, que operava clandestinamente nadécada de 1950, contra os desmandos do totalitarismo reinante. Pelo des-temor de sua atuação foi processado e condenado por um Conselho deGuerra a 30 anos de reclusão, acusado da prática do delito de rebelião.Encarcerado, após alguns anos conseguiu evadir-se. Chegou a França, deonde partiu para a Argentina. Já no exílio foi um dos fundadores do partidoda Ação Republicana Democrática Espanhola. Participou do Governo daRepública Espanhola do Exílio, como ministro, até junho de 1977 quandoda dissolução das instituições republicadas espanholas.

Manuel de Rivacoba Y Rivacoba foi, pois, não somente um extraordi-

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nário Mestre do Direito. Foi, também, um admirável Mestre da vida. Oseu magistério e sua existência a serviço de ideais libertários, estarãoperenemente presentes para lembrar ao jurista, que se quiser ser autênti-co, tem o compromisso de quotidianamente lutar para a preservação daliberdade, e por um direito que seja cada vez mais justo.

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vol.3, n.1, 2002 Direito e Democracia 415Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.165-180

Islã e Direitos HumanosIslã e Direitos HumanosIslã e Direitos HumanosIslã e Direitos HumanosIslã e Direitos Humanos11111

Islam and Human Rights

ASGHAR ALI ENGINEER

Diretor do Institute of Islamic Studies e do Centre for Study of Society and Secularism (Mumbai, Índia).Autor de mais de quarenta livros sobre islamismo, tolerância, mulheres e secularismo, dentre eles,“Origin and development of Islam” ( Orient Longman, 1992), “Gandhi and communal harmony”

(Gandhi Peace Foundation),“Rethinking issues in Islam” ( Orient Longman, 1998), “Rational aproach toIslam” ( Gyan Publishers, 2000) e “Islam, Women and Gender Justice” ( Gyan Publishers, 2001).

RESUMO

O autor analisa dispositivos da Declaração Universal dos Direitos Humanospara verificar o quanto os preceitos corânicos e islâmicos se aproximam dela.Palavras-chave: Islamismo, direitos humanos, tolerância, Alcorão.

ABSTRACT

The author analyses articles from the Universal Declaration of Human Rightsin order to verify how much the Koran and Islamic precepts are close to it.Key words: Islamism, human rights, tolerance, Koran.

As religiões costumam ser consideradas como dogmáticas, intoleran-tes e supressoras da liberdade de consciência. Também se acredita, geral-mente, que pensar e ter fé são opostos, e que enquanto a ciência e a

1 Tradução de Roberto Cataldo Costa.

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atitude científica estimulam a primeira atitude, a religião, ou qualqueroutra fé, estimula a última. Na verdade, supõe-se que crer é outro nomepara a religião, o que, em termos gerais, tem sido verdade. Todas as gran-des religiões do mundo, incluindo o islã, desenvolveram dogmas rígidos edesencorajaram, inclusive com punições, qualquer avaliação crítica des-ses dogmas. A liberdade de consciência, em outras palavras, nunca com-binou muito bem com essas religiões principais.

O hinduísmo, muitas vezes, tem sido considerado de forma diferente,desempenhando um papel de religião “guarda-chuva”, bastante aberta adiferentes escolas de pensamento e absorvendo prontamente elementosde outras religiões. Aceitou até mesmo grandes pensadores religiosos, comoBuda e Mahabvir Jain, no panteão hindu – rishis, ou encarnações de Deus.Também é verdade que o hinduísmo desenvolveu escolas diferentes deteologia e filosofia, que têm coexistido em harmonia. Na história dessagrande religião, não houve guerras sectárias.

Entretanto, isso não é tudo, e se deve compreender que o dogmatismoe o sectarismo são uma categoria mais psicológica do que teológica. É amente humana que desenvolve dogmas que produzem uma sensação desegurança e liberdade em relação ao pensamento. Pensar acarreta res-ponsabilidades e cria incertezas, ao passo que crer proporciona um bálsa-mo suavizante e oferece aos fiéis um sentido de segurança. Essa é uma dasrazões para a persistência dos dogmas, eles podem ser associados a inte-resses humanos, os quais também cumprem um papel central na determi-nação do comportamento das pessoas. Os interesses da liderança teológi-ca também contribuem para perpetuar os dogmas religiosos. Assim, vere-mos como uma sensação de segurança por parte dos crentes e a liderançateológica por parte de seus formuladores, juntas, ajudam a perpetuar osdogmas.

A partir dessa perspectiva, nenhuma religião, grande ou pequena (e omesmo se aplica às ideologias políticas), pode ser exceção a essa regra.Assim sendo, também o hinduísmo desenvolveu seus próprios dogmas epráticas rígidas com o passar do tempo. O sistema de castas, por exemplo,construiu suas próprias características de rigidez, e cada casta, por suavez, suas próprias regras e regulamentações estritamente observadas, comqualquer desvio sendo punido de forma severa. Também se deve observarque, assim como o hinduísmo mais avançado tem se mantido livre dedogmas rígidos, da mesma forma, outras religiões aceitaram um certo graude flexibilidade intelectual. Todavia, também aqui devemos admitir que

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o hinduísmo, em suas formas mais avançadas, permite uma atitude maisampla do que outras religiões, pois não desenvolveu uma estrutura rígidade pensamento teológico.

Dessa forma, veremos que fé e crença são necessidades psicológicas,mais do que teológicas, e que a segurança dos crentes e os interesses daliderança teológica combinam-se para perpetuar a rigidez dos dogmas.Contudo, se seguirmos os primeiros ensinamentos dos fundadores das gran-des religiões, dificilmente encontraríamos tal rigidez de crenças, e nãopareceria que qualquer grande religião do mundo estivesse tolhendo aliberdade de pensamento. Conta-se que o Buda teria dito que não seaceitassem as coisas simplesmente porque ele as dissera, mas que as expe-rimentássemos a partir de nossa própria razão, antes de aceitá-las. Ohinduísmo, como apontado acima, permite uma atitude muito mais am-pla de pensamento. Cristo também falou em parábolas, para que os cren-tes pudessem posteriormente reinterpretá-las à luz de sua própria experi-ência e exercer sua liberdade intelectual.

Da mesma forma, o islã, de acordo com o Corão, de forma nenhumademanda a fé cega; ele requer daqueles a quem se dirige que pensemantes de aceitar a mensagem de Deus. Na verdade, o livro enfatiza o quese pode chamar de síntese entre razão e fé, à qual Erich Fromm, renomadopsicanalista freudiano, optou por chamar de “fé racional”. Assim sendo,veremos que o islã também não é uma fé dogmática.

As religiões parecem ser problemáticas no que diz respeito à liberdadede consciência, em se tratando de pessoas semi-alfabetizadas e semi-educadas. Já em níveis intelectuais superiores, a situação é muito dife-rente. Como a grande maioria das pessoas pertence ao primeiro nível ci-tado, a religião também é arrastada a um patamar inferior e, quandoaqueles que estão em níveis intelectuais muito mais altos tentam enten-der seu verdadeiro espírito, são ameaçados pela maioria dogmática, quepode ser facilmente manipulada pela liderança teológica, em busca deperpetuar certos dogmas em seu próprio interesse. É aqui que a religiãoparece ser problemática, sendo bastante difícil quebrar o gelo nesse as-pecto. Para evitar esse dilema, deve-se voltar às escrituras fundantes, aoinvés de discutir com base em elaborações. No caso do islã, tal escritura,é o Corão, e toda a nossa discussão sobre a atitude islâmica com relaçãoaos direitos humanos será naturalmente baseada nela.

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II

O que são direitos humanos? O conceito também pode diferir de umaera histórica para outra. Na época feudal não havia tal conceito comohoje o temos, e sim uma compreensão específica a respeito da liberdadehumana. Em cada era histórica temos determinados valores principais, eo valor principal ou central de então, como quer que o chamemos, era a“lealdade”. Se alguém não fosse leal a seu mestre, incluindo o mestreteológico, não era digno, ou seja, o comportamento humano na épocafeudal era circunscrito, em termos de valores, pela lealdade ao mestre.Qualquer desvio dessa norma atraía grande condenação, sendo concebi-do como rebeldia, e não como simples diferença de opinião, como a qua-lificamos hoje em dia. Dessa forma, a lealdade, naqueles tempos, consti-tuía o elemento fundamental do comportamento humano.

O valor central de nossa era pós-feudal, industrial e moderna, é aliberdade de pensamento e ação, também chamada de liberdade de cons-ciência, e muitos outros valores comportamentais, incluindo o valor dalealdade, estão subordinados àquele. A liberdade de consciência não podeser comprometida, da mesma forma como, no passado, não se podia com-prometer a lealdade ao mestre. Esse é precisamente o espírito da era mo-derna. Da mesma forma, na época feudal, era necessário ser rígido comrelação à observação das tradições. A modernização, por outro lado, cons-truiu-se sobre as ruínas dessas tradições: o projeto da modernização nãoteria sido bem-sucedido sem atacá-las, e elas não poderiam ser atacadassem que se sustentasse a liberdade de consciência. Portanto, essa liberda-de de consciência se tornou bastante central para a era industrial. Noperíodo pós-moderno, as tradições adquiriram novamente um certo cará-ter sacro, mas a liberdade de consciência não perdeu seu lugar e mantémsua centralidade. Contudo, o pluralismo é tão fundamental para os valo-res pós-modernos quanto a liberdade de consciência, de modo que diver-sas tradições, passadas e presentes, podem coexistir de forma harmônicanesse período histórico.

III

A questão fundamental que se nos apresenta é definir os direitos hu-manos em nossa própria era. A Declaração dos Direitos Humanos dasNações Unidas parece ter obtido um grande consenso. Praticamente não

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há nações, sejam islâmicas ou não, que não assinem o documento, e nós,também, podemos tomar esta carta como nosso ponto de referência. Ob-viamente, também se deve entender que não há no referido documentouma pretensão de ser conclusivo, mas ele representa o espírito das ques-tões aqui apresentadas, incluindo aquela da era pós-moderna. Não hou-ve grandes mudanças, conceituais ou estruturais, a ponto de invalidar oespírito sacramentado na Declaração dos Direitos Humanos. Ela pode edeve, portanto, passar a ser nosso ponto de referência. Trataremos deforma breve dos artigos dessa carta.

Como outras religiões, o islã também têm seus valores centrais. Justi-ça, equidade, honestidade, irmandade, igualdade, misericórdia e com-paixão estão entre eles. Em termos gerais, também abomina a violência(muito embora, em um mundo complexo e concreto, não a descarte com-pletamente), e deseja estabelecer e respeitar a paz (um dos nomes de Aláé Salam, ou seja, paz). O Corão opta por utilizar um termo fundamentalpara descrever esses valores – m’aruf, representativo da bondade na hu-manidade, e que, por si só, é um termo abrangente. Aquilo que não ém’aruf é munkar, ou seja, o mal. O Corão prescreve como um dever dosmuçulmanos promover o que é m’aruf e lutar contra o munkar. Por serrepresentativo do que é bom para a humanidade, o m’aruf também englo-ba o conceito que direitos humanos, que promove o bem-estar humano;pela mesma razão, o conceito de munkar inclui a negação dos direitoshumanos, o qual impede a promoção do bem-estar humano. Dessa forma,o Corão declara: “sois a melhor nação que surgiu na humanidade, porquerecomendais o bem (m’aruf), proibis o ilícito e credes em Deus (3:111).

Como o m’aruf é representativo dos valores centrais e fundamentais, ea liberdade de consciência está entre os valores centrais de nossa época,é parte integrante do dever islâmico promovê-la. Qualquer coisa ou qual-quer poder que a impeça ou destrua seria considerado, portanto, comomunkar (mal), o qual deve ser proibido. O Corão diz também que apenasaqueles que promovem m’aruf e proíbem o mal prosperarão (3:105). Dessaforma, para prosperar (seja um indivíduo, uma comunidade ou nação)deve-se garantir a liberdade de pensamento e consciência. Qualquertentativa de a impedir resultaria no confisco da propriedade da referidacomunidade ou nação. Também se deve observar que, no que se refere am’aruf e munkar, o Corão não menciona apenas os muçulmanos. Os con-ceitos são encontrados até mesmo entre as pessoas de outras religiões, e aescritura aprecia esses méritos, dizendo: “os adeptos do Livro não são

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todos iguais: entre eles há uma comunidade justiceira, cujos membrosrecitam os versículos de Deus durante a noite e se prostram ante o seuSenhor. Crêem em Deus e no Dia do Juízo Final; aconselham o bem (m’aruf)e proíbem o ilícito, e se emulam nas boas ações. Estes contar-se-ão entreos virtuosos. Todo o bem que façam jamais lhes será desmerecido, porqueDeus bem conhecem os que O temem” (3:114-16). Dessa forma, o islã,respeitando outras fés e crenças, deseja promover o bem universal e suaexcelência em feitos, mais central para o Corão do que os rituais e ascrenças.

IV

Os artigos 1 e 2 da Declaração enfatizam a liberdade, a igualdade e adignidade da pessoa humana, além de que, sendo dotados de razão econsciência, os seres humanos devem agir em um espírito de irmandadeuns para com os outros, não devendo haver discriminação de qualquerespécie entre eles. O Corão dá muita ênfase à igualdade de todos os sereshumanos, apresentando esse conceito de várias formas. “Ó humanos, adoraio vosso Senhor, Que vos criou, bem como aos vossos antepassados, quiçáassim tornar-vos-íeis virtuosos. Ele fez-vos da terra um leito, e do céu umteto, e envia do céu a água, com a qual faz brotar os frutos para o vossosustento” (2-21-22).

Pode-se observar no verso acima que a igualdade de todos os sereshumanos é aceita, que todos são criações de um mesmo Deus e, também,que as dádivas da natureza estão disponíveis a todos, sem qualquer dis-tinção de casta, cor ou credo. Enfatiza-se ainda este fato em um outroverso: “ó humanos, temei a vosso Senhor, que vos criou de um só ser, doqual criou a sua companheira e, de ambos, fez descender inumeráveishomens e mulheres. Temei a Deus, em nome do Qual exigis os vossosdireitos mútuos e reverenciai os laços de parentesco, porque Deus é vossoObservador” (4:2). Sendo assim, o Corão sustenta que todos nasceramdos mesmos pais primordiais e, portanto, são absolutamente iguais emtodos os aspectos, não se admitindo qualquer forma de discriminação.

O Corão declara também em palavras retumbantes: “Enobrecemosos filhos de Adão e os conduzimos pela terra e pelo mar; agraciamo-loscom todo o bem, e os preferimos enormemente sobre a maior parte detudo quanto criamos” (17:70) (itálicos nossos). Assim, se pode observar

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que Alá honrou todos os filhos de Adão e, portanto, é dever de cada serhumano honrar a outros seres humanos, sem qualquer distinção. Todos,portanto, desfrutariam dos mesmos direitos e nenhum tipo de hierarquiaserá permitido em seu exercício, esses direitos são deles pelo fato de se-rem humanos. O Corão não admite qualquer hierarquia. Apenas aquelesque se distinguem por suas boas ações estão acima dos outros, e não emvirtude de riqueza e posição.

Como o Corão não admite hierarquia de status e riqueza, não aceitatambém distinção de etnia, nacionalidade e cor. A qualquer dessas quepertençamos, somos todos iguais. Essas distinções foram criadas apenaspara que cada um possa ser reconhecido. O Corão o declara em seu estilopróprio, inimitável: “ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de machoe fêmea e vos dividimos em povos e tribos, para reconhecerdes uns aosoutros. Sabei que o mais honrado, dentre vós, ante Deus, é o mais temen-te” (49:13). O que se disse nesse verso, há 1.400 anos, é o próprio espíritoda Declaração dos Direitos Humanos de nossa era, e dificilmente seriapossível melhorá-lo com qualquer outra declaração. Este verso destróitodas as hierarquias e distinções, situando todos os seres humanos emcondição de igualdade. O mais honrado aos olhos de Deus é aquele queé mais piedoso e mais temente.

A ênfase dada pelo Corão e a ser temente ou piedoso também é impor-tante em outro sentido, pois aqueles que os são levam vidas bastantesimples e se abstêm do consumo excessivo. Na verdade, foi o consumismoque causou algumas das violações mais flagrantes dos direitos humanosno mundo contemporâneo. Os países industrializados avançados se per-dem em um consumismo sem limites, às custas das nações em desenvolvi-mento, resultando em violações dos direitos humanos nesses países doterceiro mundo. Os grupos tribais e outros setores atrasados desses paísessão os que mais sofrem, e a elite bem sucedida se perde em consumismo àscustas dos direitos humanos básicos dos setores atrasados.

Os direitos humanos para todos só podem ser garantidos em uma soci-edade igualitária, e o Corão deseja criar uma estrutura social justa.

Em um verso, o Corão declara: “sede justos, porque isso está mais pró-ximo da piedade” (5:8). Assim, se poderá ver que a escritura dá ênfase aser justo, caso contrário, não se pode ser temente e piedoso; ambos estãomuito próximos um do outro. O Corão, então, apresenta a seguir a se-qüência para uma ordem social adequada: levar uma vida simples e pie-

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dosa, ser justo, honrar o próximo como faz Alá e assim tornar-se maishonrado diante de seus olhos. Poderemos observar que apenas aquelesque levam uma vida simples e resistem ao consumismo podem garantir osdireitos humanos de outros e assim, respeitar a ênfase corânica na simpli-cidade e na justiça.

Alá nomeia os homens como seus “legatários na terra” (35:40). Essadistinção foi concedida a todos os seres humanos, sem qualquer distin-ção; todos aqueles que seguem as prescrições acima seriam merecedoresdesse status elevado, independentemente de sua etnia, nacionalidade oureligião. Além disso, segundo o Corão, “criamos o homem na mais perfei-ta proporção. Então, o reduzimos à mais baixa das escalas” (95:4-5). Aláfez o homem a partir do melhor dos moldes, mas ele só poderá manter aseu status através de suas boas ações, da simplicidade e da justiça. Noentanto, ele costuma ser relapso, por sua ganância, luxúria e atos injus-tos, ao nível mais baixo possível; ele cai a esse status inferior porque violaos direitos de outros através de seu consumismo ganancioso.

O Artigo 3 da Declaração dá ênfase ao direito à vida, à liberdade e àsegurança da pessoa. O primeiro é o mais fundamental; todos os outros sóterão significado se aquele for respeitado. Em primeiro lugar, o Corãoproíbe o suicídio: “e não cometais suicídio”(4:29). Em segundo, condenao infanticídio nos versos 17:31, “não mateis vossos filhos por temor à ne-cessidades” e 81:9-10, “e quando a filha sepultada viva for interrogada:porque delito foste assassinada?” O Corão qualifica também a morte deuma pessoa sem qualquer justificativa como a morte da humanidade in-teira: “por isso, prescrevemos aos israelitas que quem matar uma pessoa,sem que esta tenha cometido homicídio ou semeado a corrupção na ter-ra, será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade”(5:32).

A declaração corânica de que matar uma pessoa equivale a matar ahumanidade inteira e salvar uma pessoa equivale a salvar toda a humani-dade tem grande significado do ponto de vista dos direitos humanos. Estábastante claro que se alguém não tem respeito pela vida de um indivíduo,não poderá respeitar a vida humana em si e, se respeitar a santidade davida de um indivíduo, fará o mesmo com a santidade da vida em geral.Assim sendo, o Corão não permite, em qualquer circunstância, que setire a vida de alguém sem justificativa. O direito à vida, assim, passa a serfundamental. O Corão prescreve o código de conduta nesse aspecto, nasseguintes palavras: “dize (ainda mais): Vinde, para que eu vos prescrevao que vosso Senhor vos vedou: Não Lhe atribuais parceiros; tratai com

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benevolência vossos pais; não sejais filicidas, por temor à miséria - Nós vossustentaremos, tão bem quanto aos vossos filhos –; não vos aproximeis dasobscenidades, tanto pública, como privadamente, e não mateis, senãolegitimamente, o que Deus proibiu matar. Eis o que Ele vos prescreve,para que raciocineis.”(6:152).

Assim sendo, a santidade da vida é da maior importância para o Corão.Qualquer um que não garanta a santidade da vida não pode ser um ver-dadeiro ser humano. A vida não poderá ser tirada, a não ser pelo justoprocesso da justice. Mesmo em seu Sermão de Despedida, o profetaenfatizou a santidade da vida: “da mesma forma que guardai este mês,este dia, esta cidade como sagrados, respeitai também a vida e proprieda-de de todo muçulmano, como uma responsabilidade sagrada”. Lembremo-nos de que este Sermão de Despedida foi apresentado no dia e no mês daperegrinação, no Monte Arafat, todos muito sagrados para os muçulma-nos. Dessa forma, a vida e a propriedade humanas são tão sagradas einvioláveis como essas três coisas.

Artigo 4

Esse artigo diz respeito à abolição da escravidão e de todas as formasde servidão, de qualquer maneira que possam persistir. É importante dis-cutir aqui a questão da escravidão no islã, pois muitas vezes se pensa queessa a instituição teve aprovação. Em uma análise cuidadosa das injunçõescorânicas e da literatura hadith, se poderá comprovar o contrário. Contu-do, a verdade é que o Corão buscou a abolir a escravidão de forma gradu-al, pois considerava imprudente exterminá-la de um só golpe. O Corão ea hadith prescrevem, no período de transição, tratamentos bastante hu-manos aos escravos, além de estimular a manumissão. O profeta, depoisde casar-se com Khadija (15 anos depois de receber o chamamento divi-no) libertou todos os escravos da mulher, que os tinha colocado à suadisposição. Um jovem, chamado Zaid, escolheu ficar com ele. O profetadeu-lhe tanto amor que ele se recusou a ir com seu pai quando este veiobuscá-lo, sabedor de sua libertação. O profeta não apenas continuou aoferecer muito amor e afeição para o filho de Zaid, Usama, após a mortedo pai; é importante observar que, durante sua vida, jamais possuiu qual-quer escravo; a escravidão era abominável a ele.

Além disso, o profeta concedeu a honra mais alta de ser muesin (aqueleque chama à oração) a um escravo liberado, chamado Bilal, um negro da

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Etiópia. Essa honra era desejada por muitos companheiros próximos doprofeta, mas nenhum a recebeu, com exceção desse escravo. Entende-seporque muitos escravos aceitaram o islã como um movimento de liberta-ção. Como sabemos, a zakat é obrigatória para todo o muçulmano, e Aláprescreveu no Corão que uma parte dela pode ser gasta para a libertaçãode escravos ou cativos (fi al-riqab). Uma parte também pode ser gastapagando-se as dívidas dos que as têm (9:60). Mesmo no caso de prisionei-ros de guerra, prescrevia-se um valor simbólico para sua libertação. Apósa batalha de Badr, foi anunciado que a libertação de um prisioneiro deguerra alfabetizado poderia ser simplesmente a alfabetização de dez cri-anças. Geralmente, aqueles capturados na guerra eram feitos escravos. Oislã, por outro lado, buscava libertá-los por um preço muito baixo, quasesimbólico, para desestimular a escravidão. Além disso, o Corão prevê umacordo por escrito dos escravos com seus mestres, para comprar sua liber-dade, conhecido como kitab (escrita). Dessa forma, diz o Corão: “quantoàqueles, dentre vossos escravos e escravas, que vos peçam a liberdade porescrito, concedei-lha, desde que os considereis dignos dela, e gratificai-os com uma parte dos bens com que Deus vos agraciou. Não inciteis asvossas escravas à prostituição, para proporcionar-vos o gozo transitório davida terrena, sendo que elas querem viver castamente. “(24:33).

Esse verso, de grande importância, apresenta um acordo para a liber-tação de escravos, que podem estabelecê-lo com seu mestre para comprarsua liberdade através de seus próprios ganhos. Essa prática já existia antesdo islã, mas o mestre poderia conceder a liberdade ou não, aceitando opagamento; o islã introduziu uma reforma que tornava obrigatório para omestre entrar em acordo um escravo se este desejasse sua manumissão.Se fosse capaz, poderia ganhar seu resgate através do trabalho, mas emcaso de um escravo deficiente, Alá conclama os muçulmanos a gastar ariqueza que lhes foi dada por ele para pagar pela libertação. Como foi ditoacima, também poderia ser pago a partir do tesouro do estado (uma parteda zakat).

Na época pré-islâmica, os árabes costumavam forçar suas escravas a seprostituir para ganhar dinheiro. O Corão também proibiu esta prática edeu às escravas o direito de ser castas, nas palavras do Corão. Os muçul-manos são chamados pelo Corão a não tornar as escravas em instrumentospara a obtenção do “gozo transitório da vida terrena”, como diz o livro.

Mesmo no caso de quebra de juramento, o Corão prescreve amanumissão de escravos, dizendo que Deus “recrimina-vos por vossos

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deliberados juramentos, cuja expiação consistirá em alimentardes deznecessitados da maneira como alimentais a vossa família, ou em os vestir,ou em libertardes um escravo”(5:89). Além disso, para expiar um assassi-nato cometido por engano, prescreve-se a libertação de um escravo (4:92).Assim, se poderá observar que o Corão estimula a libertação de escravospor intermédio de qualquer meio possível: a idéia era a abolir a institui-ção da escravidão, embora gradualmente.

Artigo 5

Esse artigo está relacionado à tortura, tratamento e punição desumanosou degradantes. O islã jamais aprovou o comportamento indigno, muitomenos a tortura e o ataque a outros, condenando profundamente aquiloque ele chama de istikbar (arrogância do poder) e istibdad (opressão), esimpatiza com os istidaf (fracos e oprimidos); denuncia o faraó como sendomustakbir e mustabid (quem abusa do poder e oprime); Alá não gosta dosarrogantes (16:23). Além disso, o islã dá muita importância à compaixão, eos muçulmanos começam seu trabalho recitando o Bismillah, que significa ocomeço em nome de Alá, misericordioso e compassivo. É, portanto, deverde cada muçulmano ser misericordioso e compassivo para com os outros,caso contrário, não poderá ser um bom muçulmano. Conta-se que o profetadisse à sua esposa Ayesha: “Tudo o que é feito com benevolência tem seuvalor elevado”. O profeta também proibiu a crueldade e a tortura, dizendoque “ninguém deve ser submetido à punição pelo fogo”, e também censura-va o ato de agredir qualquer pessoa no rosto.

O profeta também tinha compaixão para com os animais. Quando umburro era marcado na cara, ele repreendia seu mestre e dizia que, mesmoque fosse necessário marcar o animal, que se o fizesse no lado, ou emalguma parte menos sensível de seu corpo. Podem-se levantar objeções àspunições islâmicas, como o açoite e amputação de mãos, assunto do qualsugerimos tratar em separado, pois exige uma discussão detalhada. Con-tudo, gostaríamos de dizer que a forma como alguns teólogos muçulma-nos trataram essas punições criou uma impressão de rigidez e crueldade.Mesmo que lhes fosse dada a maior importância, o profeta só as aplicavaem casos extremos. Não se encontra qualquer exemplo de amputação demãos por roubo durante a sua vida. Quando um doente vinha a ele econfessava sua culpa de fornicação, ele pedia que cem ramos de tamarei-ra fossem amarrados e um único golpe fosse aplicado, para substituir a

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necessidade de cem chicotadas como punição; quando lhe informavamsobre um caso de roubo de frutas de um pomar por parte de uma criança,ele repreendia o proprietário do pomar e lhe pedia que alimentasse evestisse a criança. Assim, podemos confirmar que o profeta demonstravagrande compaixão, mesmo com relação a infratores.

Artigos 6-8

Esses artigos são voltados a garantir que todas as pessoas tenham reco-nhecimento e igualdade diante da lei, e recebam proteção semdescriminação. Deve-se observar que o islã dá ênfase à justiça e à igualda-de diante da lei. Na verdade, com relação às partes menos favorecidas dasociedade, demonstra-se grande consideração e, em alguns casos, a severi-dade na punição é reduzida, pois as circunstâncias induziram a cometer ainfração. Por exemplo, se uma escrava comete adultério ou fornicação, suapunição equivale à metade do castigo aplicado a uma mulher livre, ou seja,ela receberia apenas 50 chicotadas ao invés de 100. Assim sendo, o Corãodiz “contudo, uma vez casadas, se incorrerem em adultério, sofrerão só ametade do castigo que corresponder às livres “(4:25).

Os juízes são conclamados a ser justos e não demonstrar qualquersinal de parcialidade. “Quando julgardes vossos semelhantes, fazei-o comeqüidade. Quão excelente é isso a que Deus vos exorta! Ele é Oniouvinte,Onividente”, diz o Corão (4:58). A escritura também proíbe o suborno eexige dos fiéis que nem mesmo a hostilidade contra uma pessoa fique nocaminho da justiça, dizendo: “ó fiéis, sede perseverantes na causa deDeus e prestai testemunho, a bem da justiça; que o ódio aos demais nãovos impulsione a serdes injustos para com eles. Sede justos, porque issoestá mais próximo da piedade, e temei a Deus, porque Ele está bem intei-rado de tudo quanto fazeis.”(5:8). Outro verso exorta os muçulmanos àjustiça: “Ó fiéis, sede firmes em observardes a justiça, atuando de teste-munhas, por amor a Deus, ainda que o testemunho seja contra vós mes-mos, contra os vossos pais ou contra os vossos parentes, seja o acusado ricoou pobre, porque a Deus incumbe protegê-los. Portanto, não sigais os vos-sos caprichos, para não serdes injustos; e se falseardes o vosso testemunhoou vos recusardes a prestá-lo, sabei que Deus está bem inteirado de tudoquanto fazeis”(4:135).

Poderemos observar aqui que o Corão aplica padrões muito rigorososde justiça, que deverá ser levada a cabo ainda contra a própria pessoa,

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seus parentes, seja contra ricos ou pobres. Não devemos distorcer a justi-ça ou nos afastarmos dela. Isso é o que se pode chamar de igualdade realdiante da lei, que não deve favorecer nem poupar qualquer pessoa. Alémdo profeta do islã, os califas também praticavam formas rigorosas de justi-ça. Umar e Ali, os dois califas ilustres, em cartas escritas aos governado-res provinciais, estabeleceram o conceito corânico de justiça. Ali, quetambém era genro do profeta, escreve em sua carta ao governador deBasra que este não deveria andar em companhia dos ricos ou desenvolvero hábito de comer comida de ricos, pois assim poderia realizar a justiçapara os povos. A idéia é de que pobres e ricos sejam iguais diante da lei eque os poderosos não sejam poupados quando estiverem errados.

Artigos 13-15

Os Artigos 9-11 dizem respeito ao exercício arbitrário dos poderes exe-cutivos ou da autoridade administrativa, e ao exercício devido da justiçaonde houver acusação criminal envolvida. O islã trata disso ao discorrersobre a aplicação da justiça, não sendo necessário repeti-lo aqui. O Artigo12 está relacionado aos indivíduos e a seu direito à privacidade. O islã ossalvaguarda devidamente e vai além, exortando as pessoas a não violar aprivacidade de outros ao entrar em suas casas sem permissão (24:27-29).

Não queremos entrar nesses detalhes aqui. Os artigos de 13 a 15 tra-tam de nacionalidade, liberdade de movimentação, e residência e asilo.

Na verdade, não havia conceito de nacionalidade daqueles dias,embora pudesse haver alguma forma de restrição ao deslocamento doslimites de um império para os de outro. Mas o Corão conclama os fiéis aviajar pelo mundo e testemunhar as criações de Alá com admiração. Comrelação ao direito de buscar asilo contra a perseguição, os próprios com-panheiros do profeta o fizeram na Etiópia, nos primeiros dias do islã e,mais tarde, ele próprio, junto com eles, também precisou migrar de Mecapara Medina, para escapar à perseguição. Dessa forma, o direito de bus-car asilo é fundamental no islã. Encontramos um verso interessante nosagrado Corão, que se refere à opção do indivíduo por emigrar para bus-car asilo. O verso corânico diz o seguinte: “aqueles a quem os anjos ar-rancarem a vida, em estado de iniqüidade, dizendo: Em que condiçõesestáveis? Dirão: Estávamos subjugados, na terra (de Makka). Dir-lhes-ãoos anjos: Acaso, a terra de Deus não era bastante ampla para quemigrásseis? Tais pessoas terão o inferno por morada. Que péssimo destino!

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Excetuam-se os inválidos, quer sejam homens, mulheres ou crianças. Quecarecem de recursos ou não podem encaminhar-se por senda alguma”(4:97-98). Assim, poderemos constatar que o Corão concede às pessoas odireito de buscar asilo e escapar do lugar onde são perseguidas.

Artigo 16

Esse artigo trata do direito de casamento, dos direitos iguais às partes,do consentimento no casamento e da proteção da família. Esses direitostambém foram garantidos pelo islã para homens e mulheres, o casamento écontratual e só poderá acontecer com o consentimento de ambas as partes.Não se pode forçar uma mulher a se casar sem que ela consinta. Nenhumnikah pode ser completo sem seu consentimento. Além disso, as mulherestêm permissão para estabelecer as condições que desejarem. Mesmo quan-do se fizer com que as meninas casem durante a infância (embora o Corãonão faça qualquer menção ao casamento de crianças), elas têm o que sechama khiyar al bulugh (opção da puberdade), ou seja, elas podem consen-tir ou rejeitar o contrato matrimonial estabelecido em seu nome pelo pai,tio ou avô. Uma criança não pode ser coagida a entrar em uma união ma-trimonial. Mais do que isso, o casamento só poderá acontecer sob condi-ções estabelecidas pelas mulheres; e também, obviamente, pelos homens. Éuma parceria de espírito verdadeiramente igualitário.

Inclusive, se as mulheres divorciadas quiserem se casar novamentecom seus ex-maridos, não poderão ser impedidas. “Se vos divorciardes dasmulheres”, diz o Corão, “ao terem elas cumprido o seu período prefixado,não as impeçais de renovar a união com os seus antigos maridos, se ambosse reconciliarem voluntariamente” (2:232). Embora não se estimule o di-vórcio, também não se o impede, no caso de não se poder salvar o casa-mento. Tanto os homens quanto as mulheres têm direito ao divórcio. Elaspodem buscá-lo, no chamado khul (ou seja, buscar a liberação dos víncu-los matrimoniais). Seu direito ao khul, como demonstra a prática do pro-feta, é absoluto. O Qaddi deve conceder seu divórcio, se ela insistir.

Provavelmente, o islã é a primeira religião a ter tornado o casamentocontratual e dado às mulheres direitos iguais no contrato matrimonial.Embora o casamento já fosse um contrato na Arábia, antes do islã, asmulheres não dispunham de direitos iguais.

Foi o islã que lhes deu direitos específicos, como um parceiro em con-

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dições de igualdade. Embora elas tenham perdido grande parte dessesdireitos durante a Idade Média, eles podem ser recuperados resgatando-se o espírito corânico. O Corão deixou bem claro que as mulheres desfru-tam de direitos iguais aos dos homens, no verso 33:35. No verso 2:228,declara-se que seus direitos são iguais às suas obrigações. As mulherestambém foram integralmente protegidas pelo Corão, de acusações irres-ponsáveis contra sua castidade. Assim, se diz: “e àqueles que difamaremas mulheres castas, sem apresentarem quatro testemunhas, infligi-lhesoitenta vergastadas e nunca mais aceiteis os seus testemunhos, porquesão depravados. Exceto aqueles que, depois disso, se arrependerem e seemendarem; sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo” (24:4-5).

Artigos 18-19

Estes artigos são, de certa forma, fundamentais, pois dizem respeito àliberdade de pensamento, consciência, religião, opinião e expressão, in-cluindo a liberdade de se pregar a própria religião e de a manifestar emensinamentos, prática, culto e observância, e de buscar, receber e com-partilhar informações e idéias por quaisquer meios, independentementede fronteiras.

Ao contrário do que geralmente se pensa (e que os teólogos costumamenfatizar), o islã garante de forma integral a liberdade de pensamento econsciência, proclamada no verso 2:256, nas seguintes palavras: “não háimposição quanto à religião, porque já se destacou a verdade do erro.Quem renegar o sedutor e crer em Deus, ter-se-á apegado a um firme einquebrantável sustentáculo, porque Deus é Oniouvinte, Sapientíssimo”.Também no verso 18:29, a escritura do islã proclama: “dize-lhes: a verda-de emana do vosso Senhor; assim, pois, que creia quem desejar, e des-creia quem quiser.” Dessa forma, se pode comprovar que não é imposta deforma alguma a aceitação da verdade de Deus, a escolha é livre. O Corãoesclarece ainda mais este ponto para que ninguém queira exercer a coer-ção: “porém, se teu Senhor tivesse querido, aqueles que estão na terrateriam acreditado unanimemente. Poderias (ó Mohammad) compelir oshumanos a que fossem fiéis?” (10:99). Esta é uma proclamação clara daliberdade de consciência.

Ainda assim, o Corão diz mais uma vez: “dize: ó humanos, já vos che-gou a verdade do vosso Senhor, e quem se encaminha o faz em benefício

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próprio; e quem se desvia o faz em seu próprio prejuízo, porque não sou ovosso guardião. Observa, pois, o que te foi revelado, e persevera, até queDeus decida, porque é o mais equânime dos juízes” (10:108-109).

Com relação à liberdade de ensinamento, prática, culto e observaçãoda religião, existem vários versos no Corão: “cada qual tem um objetivotraçado por Ele. Empenhai-vos na prática das boas Ações, porquanto,onde quer que vos acheis, Deus vos fará comparecer, a todos, perante Ele,porque Deus é Onipotente” (2:148). O Corão é mais específico com rela-ção à liberdade de culto e prática da religião no verso a seguir: “temosprescrito a cada povo ritos a serem observados. Que não te refutem a esterespeito! E invoca teu Senhor, porque segues uma orientação correta”(22:67).

De forma semelhante, o Corão chama as pessoas a que reflitam, pen-sem e exerçam seu julgamento, desestimulando a imitação cega, mesmoque seja dos próprios pais. Chama ao pensamento reflexivo e ao exercíciodas faculdades da razão, garantindo que todos tenham liberdade de cons-ciência e de expressão.

O que discutimos acima é o que foi estabelecido na Declaração dosDireitos Humanos e o quanto os ideais corânicos e islâmicos se aproximamdela. O Corão é bastante liberal nesse aspecto. Todavia, isso não significadizer que os muçulmanos tenham praticado esses ideais. Longe disso, nãohá um único ideal que não tenha sido violado por eles, e se poderia dizerque não há nação muçulmana atualmente que tenha um históricosatisfatório de direitos humanos, e a ausência de democracia é patente namaioria dos países islâmicos. Grande parte deles é governada por monarcas,xeques ou déspotas; praticamente nenhum permite a liberdade de consci-ência e o exercício livre da opinião individual. Muito embora o islã tenhasido a primeira religião a defender os ideais democráticos, os países muçul-manos os pisoteiam descaradamente. No mundo islâmico de hoje, existeum consumismo desenfreado por um lado, e, por outro, uma supressãoinescrupulosa dos direitos humanos, ambos negando os ideais islâmicos devida. Devemos sentar e refletir sobre isso seriamente.

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A incorporação dos tratados econvenções internacionais no

direito brasileiro: repercussões noâmbito do Mercosul

The Embodiment of International Treaties andConventions in Brazilian Law: Repercussions in the

Mercosur

LENICE MOREIRA RAYMUNDO

Doutoranda em Direito Público e Privado nos Processos de Integração da América e da Europa pelaUniversidade de Santiago de Compostela (Espanha). Professora de Direito Comercial, Constitucional e

Tributário na Universidade Luterana do Brasil. Advogada.

RESUMO

Procura-se analisar, a partir da concepção de incorporação dos tratados inter-nacionais no direito brasileiro, as diferenças de tratamento destes instrumentosinternacionais nos direitos argentino, paraguaio e uruguaio, com vistas àimplementação do processo de integração regional, tal como esboçado peloTratado de Assunção.Palavras-chave: Direito internacional, tratados internacionais, Direito Consti-tucional, incorporação de tratados internacionais.

ABSTRACT

The paper analyzes, from the viewpoint of the conception of embodiment ofinternational treaties in Brazilian law, the differences of treatment of these

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international tools in the Argentinian, Paraguaian and Uruguaian, in relation tothe implementing of the process of regional integration, as designed by the Treatyof Assunción.Key words: International law, international treaties, Constitucional Law,embodiment of international treaties.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Com o MERCOSUL, o Brasil vivencia, do ponto de vista político ejurídico, sua primeira experiência significativa de integração institucio-nal em nível internacional. Ocorre que o Tratado de Assunção, de 26 deMarço de 1991, subscrito também por Argentina, Uruguai e Paraguai,traz consigo a perspectiva do estabelecimento de laços destinados a seconverterem em fatores determinantes de modificações substanciais daordem jurídica nacional.

Em face da teoria do Direito, o MERCOSUL, assim como os fenô-menos congêneres na esfera mundial, suscita o recrudescimento das re-flexões em torno do tema da relação entre as normas de Direito Interna-cional Público e as normas de direito interno. A harmonização e compa-tibilização das regras jurídicas emanadas de tais ramos distintos torna-sequestão relevante para a solução de conflitos de ordem eminentementepráticos.

Assim torna-se mister estabelecer-se qual a força cogente do direitooriginado do Tratado de Assunção, bem como daquele eventualmenteproduzido nas instâncias deliberativas criadas pelo Tratado, tendo emvista a oposição que se lhe possa opor o direito nacional e os conflitos quedaí possam resultar.

Quanto ‘a necessidade de adequar-se o direito interno de cada país ànova ordem mundial integracionista, observa Paulo Borba Casella que “acriação e implementação de mercado comum e a inserção de um Estado e seuordenamento jurídico e institucional nesse mercado exigem adaptações, quevão das constituições à legislação ordinária, até a divisão das competênciaslegislativas e atribuições dos tribunais”. (Casella, 1994, p. 95)

Neste contexto, o presente trabalho tem como escopo a análise do

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fenômeno da recepção dos tratados internacionais no direito brasileiro esua influência sobre o fenômeno da integração no Mercosul, perfazendo-se um estudo da nova concepção de soberania e de supranacionalidade,de modo a traçar um paralelo com o Direito Comunitário Europeu.

2. OS TRATADOS INTERNACIONAIS NODIREITO BRASILEIRO

Um dos maiores obstáculos para que o Mercosul vivencie o verdadeiroDireito Comunitário está na forma pela qual as Constituições de algunsde seus membros disciplinam a recepção dos tratados.

No Brasil, conforme o art. 84, VIII, da Constituição de 1988, competeprivativamente ao Presidente da República :

VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacio-nais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”.

Por sua vez, o art.49, I da Constituição dispõe ser da competênciaexclusiva do Congresso Nacional :

I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atosinternacionais que acarretem encargos ou compromissosgravasos ao patrimônio nacional.

Assim, celebrado o Tratado pelo Presidente da República, suas dispo-sições ainda dependem de decisão definitiva do Congresso Nacional. Essaaprovação congressual, momento em que o tratado é recepcionado peloordenamento jurídico pátrio, ocorre via decreto legislativo, instrumentonormativo pelo qual o Congresso Nacional delibera sobre as matérias desua competência exclusiva(art. 49 da CF/88).

Segundo Pontes de Miranda (1970, p. 142), “decretos legislativos são asleis que a Constituição não exige a remessa ao Presidente da República para asanção (promulgação ou veto)”.

Em outras palavras, as espécies legislativas elencadas no art.59 da Cons-tituição Federal Brasileira de 1988 — com exceção das Emendas Constitu-

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cionais e das Normas Complementares nas matérias a elas reservadas —situam-se no mesmo plano hierárquico. Dessa forma, recepcionado que épor decreto legislativo, o tratado internacional acaba por situar-se no mes-mo nível das demais normas infraconstitucionais primárias.

Há de se atentar para exceção a esta sistemática: Revestido de forçade legislação complementar, o art. 98 do Código Tributário Nacional de-termina que as leis tributárias novas observarão as disposições constantesdos contratos conexos em matéria tributária de que o Brasil seja parte. Oart.98 do Código Tributário Nacional encontra respaldo constitucionalno art. 146, III, da Constituição Federal de 1988, como norma geral deDireito Tributário que é. Trata-se de norma garante o cumprimento dapalavra empenhada pelo Estado brasileiro naquele que é uma das matéri-as mais importantes das relações internacionais, qual seja, a questão eco-nômica-tributária entre os partícipes da comunidade internacional.

O Supremo Tribunal Federal fixou, para os tratados internacionais,jurisprudência consagrando o entendimento de que os mesmos têm vi-gência, para o País, com a conclusão dos procedimentos ratificatórios e,também, que se equiparam, sob o aspecto da hierarquia das normas jurí-dicas, às leis.

José Carlos de Magalhães relata a posição da Corte suprema:

Em julgamento de 1º de junho de 1977, publicado na Re-vista Trimestral de Jurisprudência, n.º 83/809, o STF deci-diu que tratado firmado pelo Brasil tem aplicação imedia-ta e direta no direito interno, após a sua ratificação regularpelo Congresso, não dependendo, portanto, de lei que lhereproduza o conteúdo. Reconheceu, por outro lado, a equi-valência do tratado à lei, o que vale dizer que tratado revo-ga a lei anterior e a que sucede ao tratado tem prevalênciasobre este”. Nesta decisão, foi voto vencido o relator, Mi-nistro Xavier de Albuquerque, que asseverou, sem lograrapoio, que uma, vez não denunciado o tratado, as leis pos-teriores que com ele conflitassem seriam inconstitucionais,dado o primado do Direito Internacional. (1979, p. 53).

O conspícuo Ministro Nelson Jobim, na VI Reunião de Ministros da

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Justiça do Mercosul (1996), destacou decisão do Supremo Tribunal Fe-deral que simplesmente fez tábula rasa dos compromissos assumidos peloBrasil na Convenção de São José da Costa Rica sobre direitos humanos.Ocorre que em tal convenção está escrito que não haverá prisão civil,exceto um único caso, a do devedor de alimentos, aquele que injustifica-damente deixa de pagar alimentos a alguém a quem os deve. Único caso,pois, de prisão civil. Estimou-se que, apesar de limitar este tratado sobredireitos humanos a prisão civil ao caso do alimentante omisso, no Brasilainda é possível a outra hipótese, a prisão civil do depositante infiel por-que foi entendido por maioria que a Constituição a permite. Reconhe-ceu-se que a Constituição quando permite, não obriga e deixa a cargo dolegislador ordinário dizer se na realidade estas duas hipóteses de prisãocivil vão operar. Entendeu-se, por maioria, que o texto de São José não podialimitar a liberdade do legislador ordinário a respeito de ser ou não possível aprisão do depósito infiel.

No entendimento do então eminente Juiz da Corte Internacional deJustiça, Francisco Rezek, sobre o aludido fato:

Procedeu-se, então, como o texto de São José da CostaRica fosse obra de extraterrestres, de alienígenas, uma obraespúria que desabou sobre as nossas cabeças patrióticas.Esqueceu-se por completo que a Convenção de São Joséda Costa Rica só existe para nós porque o Congresso Na-cional o aprovou e o governo em seguida a ratificou. (1996)

O entendimento do Supremo Tribunal Federal, no entanto, continuaa não ser consensual, registrando-se controvérsia doutrinária por se en-tender ser ele produto de uma perspectiva dualista, ou, quando muito,monista nacionalista, dissociada da tendência global de valorização dasnormas de Direito Internacional Público.

Consoante se observou nas decisões supramencionadas, no Brasil adota-seentendimento de que os tratados não prevalecem sobre a Constituição,nem mesmo sobre o direito interno infraconstitucional, apenas se equipa-rando à lei nacional e por ela podendo ser modificado.

Derradeiramente, temos concebido o Mercosul, até agora, na nossa manei-ra clássica de enxergar o direito internacional em todos os seus aspectos, atémesmo aqueles que tenham a ver com a integração econômica. Na mentalida-de, por exemplo, dos juizes brasileiros, até agora nada mudou. O próprio pro-

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cesso de fundação e desenvolvimento do Mercosul observou todas as re-gras clássicas que o Brasil sempre prestigiou dentro do tradicional e con-solidado direito internacional público.

Quanto a tal questão, Francisco Rezek (1996) enaltece:

A mecânica, entretanto, de incorporação do direito doMercosul aos direitos nacionais, foi sempre e continua sen-do hoje a mecânica clássica. São tratados internacionaisque os governos negociam, os Congressos nacionais exa-minam e aprovam. Mediante aprovação parlamentar, osgovernos ratificam, ocupando-se, em seguida, de promul-gar, com que se incorpora a norma do Mercosul ao direitonacional de cada um dos seus integrantes. É o típico eclássico e conhecido fenômeno da recepção.

A seguir, enfatiza a posição dos tribunais nacionais face ao fenômenoda recepção, que enseja a incursão em ilícito internacional:

Embora consternado, o Tribunal vê-se na obrigação dedizer que é preciso prestigiar a última palavra do Congres-so, valorizando a lei porque mais recente que o tratado,mas com a perfeita consciência de que isso é a confissãopública do mais alto nível de que o país está cometendo umilícito internacional. De que um tratado em pleno vigor,obrigando a República, não vai ser cumprido porque oCongresso esqueceu-se de que existia o compromisso e le-gislou em sentido destoante dele. Essa é a situação nossa,ainda hoje, sobre o tema conflitos. (idem)

3. OS TRATADOS INTERNACIONAIS NODIREITO ARGENTINO, PARAGUAIO EURUGUAIO

Na reforma constitucional de 1994, a Argentina aprovou o seguintedispositivo:

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Artículo 75 — Corresponde al Congresso :

(....)

24 — Aprobar tratados de integración que deleguemcompetencias y jurisdicción a organizaciones supraestalesen condiciones de reciprocidad e igualdad, y que respetenel orden democrático y los derechos humanos. Las normasdictadas en sua consecuencia tienen jerarquía superior alas leyes.

La aprobación de estos tratados con estados deLatinoamérica requerirá la mayoría absoluta de la totalidadde los miembros de cada Cámara (...).

É fácil constatar a proximidade existente entre os modelos argentino eeuropeu : um tratado inicial que delega prerrogativas de soberania paraestruturas institucionais comunitárias, o qual, em geral, é recepcionadoconforme o modelo clássico do Direito Interno Público. No entanto, asnormas ditadas pela esfera comunitária criada são auto-aplicáveis no âmbitodoméstico e têm supremacia sobre as normas ordinárias internas dos Esta-dos partícipes da comunidade.

Uma vez feita a delegação de determinada matéria nos termos do art.75,n.º 24, essa não mais é conhecida pelo parlamento argentino : torna-separte integrante da competência de estrutura comunitária. Os órgãoscomunitários passam a ter poder decisório pleno sobre o objeto da delega-ção. Mesmo os órgãos jurisdicionais internos devem passar a decidir con-forme a disciplina comunitária.

Por fim, deve-se mencionar como as Constituições do Paraguai e doUruguai disciplinam o tema.

Assim estabelece a Constituição paraguaia em seu art.137 :

La Ley Suprema de la República es la Constitución, Estalos tratados, convenios y acuerdos internacionales aprobados

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y ratificados, las leyes dictadas poe el Congresso y otrasdisposiciones jurídicas de inferior jeraquía, sancionadas enconsecuencia, integran el derecho positivo nacional en elorden de prelación enunciado.

A seguir no art. 145, disciplina eventual direito supranacional:

La República de Paraguay, en condiciones de igualdad conotros Estados, admite un orden jurídico supranacional quegarantice la vigencia de los derechos humanos, de la paz,de la justicia, de la cooperación y del desarollo, en lo polí-tico, económico , social e cultural.

Dichas decisiones solo pódran adoptarse por mayoria ab-soluta de cada Cámara del Congresso.

O art. 4º da Constituição do Uruguai assim trata o tema :

La soberanía en toda su plenitud existe radicalmente en laNación, a la que compete el derecho exclusivo de estabele-cer sus leyes, de modo que mas adelante se expressa.

O art. 6 º da mesma Constituição determina:

En los tratados internacionales que celebre la repúblicapropondá la cláusula que de todas las diferencias que surjanentre las partes contratantes, serán decididas por el arbitrageo otros medios pacíficos.

La República procurará la integración social y económicade los Estados Latinoamericanos especialmente em lo quese refere a la defensa común de sus productos y materiasprimas.

Análise perfunctória desses dispositivos revela a semelhança havidaentre as soluções argentina e paraguaia; por outro lado, a pouca flexibi-

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lidade da Constituição brasileira guarda correspondência ao tratamentoconferido a esta matéria pela Carta Magna uruguaia, a qual deixa pouco— para não dizer nenhum — espaço para a delegação de prerrogativasde soberania.

4. O ARTIGO 4O DA CONSTITUIÇÃOBRASILEIRA COMO FUNDAMENTO DAINTEGRAÇÃO DO BRASIL NO MERCOSUL.

A Constituição de 5 de outubro de 1988 é o primeiro texto constituci-onal brasileiro a fazer referência ao tema da integração latino-americana,até porque não há qualquer precedente nas Cartas anteriores de normavoltada a disciplinar a participação do País em algum processo integraci-onaista na comunidade internacional. No parágrafo único do art. 4º estádisposto que “A República Federativa do Brasil buscará a integração econô-mica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à forma-ção de uma comunidade latino americana de nações”.

A forma adotada para enfatizar a diretriz da integração latino ameri-cana conduziu os comentaristas do texto constitucional a identificaremno dispositivo em tela a condição de simples norma destinada a enunciarum objetivo programático de política externa.

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins prelecionam queo “presente dispositivo deixa certo que o país conta com a autorização constitu-cional para buscar a sua integração em uma comunidade latino-americana denações.” (1989, v. 1, p. 464)

É de se registrar, entretanto, a inexistência de instrumentos constitu-cionais vinculados à efetiva concretização da regra programática. LuisAugusto Paranhos Sampaio exterioriza preocupação com o caráter apa-rentemente anêmico da regra inserida na Carta de 1988, quando ponde-ra o seguinte :

É de suma importância para o desenvolvimento dos países que compõema chamada América Latina a sua integração, mas, para que isto aconteça,necessário se torna delinear nitidamente as relações do nosso País com essasnações. Integrar como? Quando? O preceito estatuído no parágrafo não en-contra respaldo em todo o texto constitucional. (Sampaio, 1989, p. 50)

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Indubitavelmente, o art. 4o da Constituição Federal trata-se de umanorma programática de grande relevância para o processo integracionistana América Latina. Entretanto tal norma não encontra ressonância nosdemais dispositivos constitucionais. Trata-se de uma norma que estimula oprocesso integracionista de forma isolada em relação aos demais dispositi-vos constitucionais. É de se questionar, todavia, a seriedade deste estímuloconstitucional ao processo integracionista. Ocorre que a Constituição bra-sileira consagra os velhos preceitos do Direito Internacional Clássico. Nãohá progresso em matéria de direito internacional na Constituição brasilei-ra, de modo a prestigiar o Direito Comunitário do Mercosul.

A realidade é que o art. 49, I, da Constituição Federal, contrariando,em seus efeitos, o conteúdo programático do art. 4o da Magna Carta,dispõe que é da competência exclusiva do Congresso Nacional resolverdefinitivamente sobre tratados acordos, ou atos internacionais. Tal pre-ceito constitucional acaba por impedir a aplicação imediata das normasde direito comunitário no direito interno, tornando indispensável a re-cepção do direito comunitário, perante o crivo do Congresso Nacional,pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Para que o art. 4o torne-se normativo não meramente programático,mas com eficácia perante do conjunto dos dispositivos constitucionais,faz-se mister a revisão do texto constitucional.

Na revisão constitucional de 1993/94 foi discutida e votada propostade emenda constitucional, de autoria do Deputado do Rio Grande doSul, Adroaldo Streck, destinada acrescentar dois novos parágrafos ao art.4o, aos quais se somaria o atual parágrafo único, e cuja redação seria aseguinte:

a) As normas gerais ou comuns de Direito InternacionalPúblico são partes integrantes do ordenamento jurídicobrasileiro;

b) As normas emandadas dos órgãos competentes das or-ganizações internacionais de que a República Federativado Brasil seja parte vigoram na ordem interna, desde queexpressamente estabelecido nos respectivos tratadosconstitutivos.

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A referida proposta foi elaborada tendo como inspiração o art. 8o daConstituição de Portugal, o qual funda-se no ideário comunitário da UniãoEuropéia. O relator do processo revisional, o então Deputado gaúcho,Nelson Jobim, hoje Ministro do Supremo Tribunal Fedral, emitiu parecerfavorável a revisão. Entretanto a proposta recebeu, em deliberação deSenadores e Deputados, 168 votos a favor e 144 contrários, verificando-se, ainda sete abstenções. Derradeiramente, não sendo obtidos 293 votosfavoráveis, número correspondente à maioria absoluta dos Congressistas,a proposição foi considerada rejeitada, nos termos das normas constituci-onais disciplinadoras do processo de revisão.1

Segundo registro do Ministro do Supremo Tribunal Federal, NelsonJobim, a oposição da revisão do art. 4o da CF, no sentido de torná-lo maiseficaz no processo de integração, deu-se precipuamente pelos partidos daesquerda brasileira:

Curiosamente, durante o debate dessa emenda, tivemosoposição desmedida da esquerda. Liderada pelo Partidodos Trabalhadores, junto com alguns setores social-demo-cratas, a esquerda acabou por derrotar a emenda, semprena concepção do isolacionismo econômico brasileiro. Estaindisposição congressual majoritária em relação à submis-são a órgãos supranacionais decorre exatamente de con-cepções atrasadas, de um conceito antigo de soberanianacional. (1996)

5. SOBERANIA E SUPRANACIONALIDADE

O fenômeno da globalização da economia, seus efeitos políticos, jurí-dicos e institucionais, ensejou profundas modificações na concepção dosEstados modernos a respeito da soberania e diante disso um novo concei-to de soberania foi se sobrepondo ao tradicional, de modo que os Estados,paulatinamente, passam aceitar, acatar e respeitar normas emanadas porum poder acima dele - o poder supranacional.

1 Revisão Constitucional, Brasília, Congresso Nacional. 1994.

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Portanto, a aceitação de uma ordem jurídica supranacional pressupõe,o abandono do conceito ultrapassado de soberania que, por muitos anosimpulsionou conflitos internacionais, sustentando a chamada doutrinada segurança nacional, que foi uma das causas do atraso dos países lati-no-americanos.

Quanto a tal aspecto nocivo da ultrapassada concepção de soberania,asseverou com propriedade Elizabeth Accioly:

A aceitação de uma ordem jurídica supranacional supõe,destarte, o abandono do conceito ultrapassado de soberaniaque, por muitos anos esteve impregnado nos casos de confli-to, sustentadas e manipuladas pela chamada doutrina dasegurança nacional, que foi uma das causas do atraso dospaíses latino-americanos, e contribuiu para o aumento dafome e da miséria, ao manter seus povos pobres e ignoran-tes, enquanto os países investiam em armamentos, preca-vendo-se de uma eventual guerra com os vizinhos, que sem-pre eram vistos como inimigos. (1998, p. 166)

No mesmo sentido:

Os partidários da paz pelo Direito combateram a noçãode soberania, o maior obstáculo à supremacia do Direitointernacional sobre os seus sujeitos, os Estados. Esta atitu-de é indiscutivelmente lógica mas esquece que a soberaniaé uma noção histórica e que estes procurem enraizar-senos acontecimentos com uma força tal que o normal deontem acabe por ser discutível amanhã. Esta evolução pa-rece ter começado após as duas guerras mundiais, quemostraram bem a que destruições podem levar as sobera-nias exacerbadas”. (1993, p. 6)

Constata-se que a nova ordem mundial impõe a concepção estatal desoberania como um conceito meramente formal, tendo em vista a inter-nacionalização da vida econômica, social e cultural. Ocorre que as orga-nizações internacionais têm se proliferado nos mais diferentes domínios,precipuamente no que se refere à integração econômica.

Neste contexto, a ordem supranacional criada pelos Tratados Institu-

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tivos da Comunidade Européia revolucionou o conceito de soberania,principalmente em face da criação de um Tribunal de Justiça, que estáacima dos Estados-membros, com a primazia do direito comunitário sobreo direito nacional.

Diante disso, alguns países latino-americanos assumiram posição devanguarda, admitindo a supranacionalidade em suas Cartas Magnas, se-guindo, assim, a tendência das constituições européias, ao interpretar anova ordem mundial, onde a primazia de um direito único e supranacio-nal tem direcionado o caminho a ser seguido para a conformação de ummercado comum.

Na realidade, o grau de soberania num projetointegracionista é determinante paro o progressointegracionista. Se a opção do Mercosul, realmente, é con-solidar um mercado comum, isso fatalmente implicará de-legação de parte da soberania, para que um órgão possaditar as regras a serem cumpridas por todos, instaurando-se a supranacionalidade.

Na União Européia todas as constituições permitem a delegação doexercício de competências para um poder supranacional, permissão misterpara a primazia do direito comunitário sobre o nacional.

Relativamente ao Mercosul, as constituições do Paraguai e Argentinaadmitem a ordem jurídica supranacional, ao contrário do Brasil e Uru-guai. No que se refere ao Brasil, conforme anteriormente analisado, nãohá previsão constitucional que viabilize a vigência imediata de diretivase decisões tomadas por organismos internacionais, que se constitui nodireito supranacional. O que existe no direito brasileiro é o tradicionalmecanismo de recepção, fundado na concepção do isolamento econômi-co e no conceito ultrapassado de soberania.

O art. 42 do Protocolo é claro ao determinar que as normas emana-das dos órgãos do MERCOSUL ”terão caráter obrigatório e deverão, quandonecessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante osprocedimentos previstos pela legislação de cada país”. Consagrou-se, assim,o modelo do intergovernamentalismo, em contraposição ao da supranaci-onalidade. Na estrutura atual do MERCOSUL, a quase totalidade dasdeliberações originadas de suas instâncias não se constituem, por si sós,

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em normas jurídicas em sentindo estrito, mas sim em determinações polí-ticas que vinculam os Estados-Partes à promoção de adequações nos res-pectivos ordenamentos jurídicos internos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constata-se, no Brasil, a presença de limitações constitucionais para aassimilação do Tratado de Assunção. Em realidade, o Tratado de Assun-ção, não obstante a diretriz constitucional de estímulo à integração lati-no-americana (art. 4o, parágrafo único), se equipara, do ponto de vistajurídico, à generalidade dos tratados internacionais.

Neste país, os tratados internacionais são celebrados pelo Presidente daRepública (art.84, VII, da Constituição Federal do Brasil de 1988). A apro-vação parlamentar dá-se por decreto legislativo; assim os tratados ingressam noordenamento jurídico brasileiro no mesmo nível hierárquico das leis ordinárias.

Entretanto, apesar do discreto amparo constitucional à integração la-tino americana, o parágrafo único do art. 4º exsurge como um princípiode mudança de paradigma, forçando limites legais e promovendo a refle-xão acerca da necessidade de mudanças institucionais que viabilizem osnovos marcos da inserção internacional do Brasil.

Consoante se observou nas decisões da Suprema Corte, o Brasil adotao entendimento de que os tratados não prevalecem sobre a Constituição,nem mesmo sobre o direito interno infraconstitucional, apenas se equiparandoà lei nacional e por ela podendo ser modificado.

Por outro lado, o art. 42 do Protocolo consagrou o modelo do intergo-vernamentalismo, em contraposição ao da supranacionalidade. Na estru-tura atual do MERCOSUL, a quase totalidade das deliberações origina-das de suas instâncias não se constituem, por si sós, em normas jurídicasem sentindo estrito, mas sim em determinações políticas que vinculam osEstados-Partes à promoção de adequações nos respectivos ordenamentosjurídicos internos.

Não se pode olvidar que para o êxito de um projeto integracionista torna-semister a delegação de parte da soberania, para que um órgão possa ditar asregras a serem cumpridas por todos, instaurando-se a supranacionalidade.

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Da análise dos textos Constitucionais dos países signatários do Merco-sul, se constata, em alguns deles, verdadeiros obstáculos a formação de umautêntico Direito Comunitário. É de se ressaltar a semelhança havida en-tre as soluções argentina e paraguaia; por outro lado, a pouca flexibilidadeda Constituição brasileira parece ter encontrado guarida na concepçãoextremada da Carta Magna uruguaia, a qual inviabiliza a delegação deprerrogativas de soberania destes países em benefício da necessária supra-nacionalidade que deve emergir dos interesses integracionistas.

Para efeitos de análise pragmática do tema proposto, há que se distin-guir a ordem jurídica comunitária internacional da comunidade interna-cional clássica. Na primeira há supremacia do direito comunitário sobre odireito interno, o que resulta num autêntico processo de integração, ondeos Estados-Partes têm sua soberania limitada e partilhada. Na Segunda,inexistem normas comunitárias e supranacionalidade, eis que a comuni-dade internacional clássica é formada por estados soberanos, onde existe,no máximo, um sistema de cooperação internacional.

Portanto, do ponto de vista técnico, no Mercosul, não há propriamen-te um direito comunitário, mas há direito internacional público, regional,integracionista, já que há necessidade de recepção das normas de inte-gração e esta recepção se passa ainda nos quatro países fundadores. Noque tange aos conflitos entre as normas integracionistas do Mercosul e asnormas de direito interno, constata-se a grande distância entre a realida-de européia comunitária hoje e os passos iniciais da integração do ConeSul da América. Não existem ainda regras de conflito capazes de privile-giar o direito integracionista no Mercosul.

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vol.3, n.1, 2002 Direito e Democracia 447Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.447-217

Política y dogmática jurídico penal1

Politics and the Juridic Penal Dogmatics

EUGENIO RAÚL ZAFFARONI

Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires.

RESUMO

O artigo trata do problema crucial do sentido da pena, pondo em questão asopções político-criminais à sua base, evidenciando a alienação política do mo-delo teórico vigente.Palavras-chave: Política criminal, Dogmática jurídico-penal, Direito e política,Função da pena.

ABSTRACT

The article deals with the crucial issue of the meaning of penalty, questioningthe political criminal options related to its basis and making clear the politicalalienation of the theorethical model accepted today.Key words: Criminal policy, juridic penal dogmatics, law and politics, functionof penalty.

1 Sin duda fue la Profesora Adela Reta una de las personalidades más inteligentes y a la vez simpáticas delderecho penal latinoamericano. Una mujer de entrañable bondad y firmes convicciones liberales, quecombinó su labor académica con funciones de responsabilidad política, creemos que merece como respetuosohomenaje a su querida memoria un trabajo que intente enlazar el saber jurídico penal con el más ampliocampo de la política. El presente texto es producto de una reordenación de los temas tratados en el cursoimpartido en noviembre de 2001 en el Master Internacional en “Derecho Penal, Constitución y Derechos”,de la Universidad Autónoma Metropolitana, Azcapotzalco, México D.F.

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POLÍTICA Y NO POLÍTICA CRIMINAL OMERAMENTE PENAL

Partiendo de la asignación arbitraria de cierta función positiva a la pena(siempre preventiva o difusamente retributiva) es corriente afirmar que ellegislador distribuye su conminación según opciones político criminales,tutelando bienes jurídicos o reforzando algo (la ética social, el sistema). Noobstante, esto se hace (a) sin verificar la función preventiva de la pena (sinconstatar si en la realidad el poder punitivo produce los efectos que sepretende que el legislador buscó) y (b) como el legislador histórico es inen-contrable (otras veces sus argumentos son insostenibles por el paso del ti-empo, por su oportunismo o por sus contradicciones), se apela a un legisla-dor imaginario. De este modo, con un método deductivo puro, a partir deuna ley (un texto escrito) se imagina una voluntad, unos efectos y un suje-to que configuran una política penal (o criminal) que es producto de de-ducciones e imaginación técnica y que opera en un mundo real que no sepregunta cómo funciona. Desde este ámbito tan limitado y con elementosno verificados en la realidad social (o que confesamente provienen de unámbito imaginario) y que omiten todo contexto de poder político, económi-co, social y marco cultural, es poco menos que imposible vincular la cons-trucción jurídico penal con la política. Más aún: importa desviar la atenci-ón de los verdaderos vínculos entre ambos términos.

La falsa proposición de que la conminación penal tutela (o refuerzao reafirma) algo y que esta función es más fuerte cuanto mayor es lareacción punitiva conminada, es una deducción fundada sobre la premi-sa no demostrada que la pena cumple alguna función preventiva en larealidad social. Del debe cumplirla se pasa sin más a afirmar que la cum-ple y se da esto por no necesitado de ulterior verificación. Toda consecu-encia política basada en tan endebles puntos de partida, carecerá debrújula en cuanto a sus reales efectos sociales.

EL MÉTODO JURÍDICO PENAL EN RIESGO DECOLAPSO

La desvinculación entre el discurso jurídico penal y la política, poneen serio peligro a la dogmática jurídico penal como método, con consecu-encias imprevisibles y siempre negativas:

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(a) Como el discurso teórico no toma en cuenta sus efectos

sociales reales (y pueden construirse tantos discursos como socieda-des, legisladores e intérpretes se alucinen), el método jurídico, en lugarde hacer previsibles las decisiones judiciales, proporciona un inagotablecaudal de desconcertantes posibilidades y permite la racionalización decualquier decisión, mediante el uso antojadizo de discursos diferentes,abriendo el camino a la arbitrariedad judicial.

(b) La discusión jurídico penal por momentos parece caer en

autismo. Cuando se simplifica y se vacía de sentido político la discusi-ón teórica, pareciera que los principales debates de la dogmática jurídicopenal del siglo XX se limitaron a discutir en los primeros años si la culpa-bilidad es una relación psicológica o un juicio de reproche; a mediadosdel siglo si el dolo está en el tipo, en la culpabilidad o en ambos lugares;y a fines de éste si el criterio de imputación objetiva debe ser el aumentodel riesgo o la defraudación de roles. El simplismo de este reduccionismose halla muy cerca del ridículo que, como es sabido, es el medio másinsidioso para desacreditar el saber jurídico, o sea, la inmensa tarea deelaboración dogmática llevada a cabo en los últimos cien años y que deningún modo puede desperdiciar quien pretenda reducir racionalmenteel ejercicio del poder punitivo.

(c) La verificación de lo anterior debilita la vigencia del propio méto-do, con el riesgo de que se apele a su desprecio y consiguiente caída encualquier irracionalidad (puro discurso político sin mediación técnica; loque llamaremos alienación técnica del discurso).

(d) En cualquier momento es peligroso el naufragio del métodojurídico penal, pero mucho más cuando es notorio que la Kielerschule fuesólo un episodio anecdótico en el curso de un simplismo penal völkischpermanente, que sólo espera las oportunidades que le ofrece el debilita-miento de la racionalidad contentora del estado de derecho, harto frecu-ente en tiempos de globalización.

LA NATURALEZA POLÍTICA DEL DISCURSOJURÍDICO PENAL

La relación entre la dogmática jurídico penal y la política está opaca-

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da porque es demasiado estrecha, dado que un discurso jurídico penalbien estructurado no es otra cosa que un programa político elaborado conprecisión pocas veces vista. El poder judicial es un poder (hace parte) delgobierno. Cada decisión judicial (y no sólo de materia constitucional) esun acto de gobierno de características particulares, pero que no por ellodesdibujan su naturaleza. Un discurso jurídico penal es una elaboraciónintelectual que se le ofrece al poder judicial como proyecto de jurispru-dencia coherente y no contradictoria, adecuado a las leyes vigentes (alas constitucionales e internacionales en primer lugar). Es en sí mismouna propuesta o programa político.

Se opaca la naturaleza política de los discursos jurídico penales (a)ante todo porque estamos demasiado inmersos en la elaboración de lasconsecuencias de las opciones políticas básicas en que se asientan (losárboles nos dificultan la visión del bosque), pero también (b) porque nosuelen ofrecerse directamente a los jueces, pues -ante todo- son un pro-ducto académico destinado al entrenamiento de los juristas, por lo que aveces sólo mediatamente y al cabo de una generación penetran la juris-prudencia, lo que casi nunca logran de modo completo, pues en la juris-prudencia sobreviven discursos anteriores. Puede decirse que llegó a serdominante en la jurisprudencia alemana el discurso del neokantismo,pero el finalismo no alcanzó esa vigencia y hoy domina un pragmatismoclasificatorio, sin que tengan mayor incidencia las construcciones sisté-micas. En Latinoamérica existe una permeabilidad más ágil, debido a lafrecuencia del doble rol judicial y académico. Por último, los discursosjurídico penales (c) son textos escritos que configuran una literatura es-pecializada, que como toda literatura, se dirige a un público al que tratade complacer, pero que en este caso se compone fundamentalmente deacadémicos, entre los que domina la preferencia por los aspectos técni-cos. En la literatura general constituye un vicio escribir para los críticos,pero en la jurídico penal está impuesto por la naturaleza de las cosas.

LA ENAJENACIÓN POLÍTICA DEL TEÓRICO

Pese a estas dificultades, a poco que se medite se caen en la cuenta deque todo concepto jurídico penal es un concepto político. Y también estécnico, sin duda, porque es inevitable que todo ámbito político tenga sutécnica (toda política es una tecnopolítica). De allí que cuando se pre-

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tende eliminar el método jurídico para caer en el puro discurso político,el producto sea un discurso clientelista de oportunidad sin contenidoracional (o con racionalidad propia, que es la del estado de policía, o seala funcionalidad para quien manda). No importa si la naturaleza políticadel discurso jurídico penal se ha tenido en cuenta al elaborarlo, porquesiempre será lo que es, aunque quien lo elabore lo ignore. Pueden elabo-rarse conceptos y aún enteros sistemas jurídico penales ignorando su esen-cia política y sus consecuencias reales: esto dependerá de la mayor omenor enajenación o alienación política del teórico.

La enajenación política es de abordaje dificil, en razón de lecturasintencionalistas y de su simétrico rechazo. (a) El intencionalismo preten-de que cada discurso se elabora a la medida de una intención políticacoherente y asi se desarrolla hasta sus mínimos detalles, con total consci-encia por parte del teórico. (b) En el otro extremo (y muchas veces medi-ando razones afectivas) se rechaza el análisis político, en razón de quecon frecuencia no es posible identificar la ideología política del autor conla que plasma en su discurso jurídico penal.

Ninguna de ambas posiciones es correcta, pues el intencionalismo pre-tende ver una coherencia ideológica que casi nunca existe, y su atractivoderiva sólo del que produce cualquier versión un tanto paranoica, siem-pre más imaginativa que la rastrera realidad. Pero si bien es cierto que laenajenación política suele provocar incoherencia manifiesta entre la ide-ología política y la discursiva penal de los autores en particular, esto no esargumento que neutralice el análsis político de su discurso jurídico, quesiempre –y aunque el autor lo haya ignorado por completo- será un dis-curso político. Menos aún puede negarse esta dimensión de poder deldiscurso jurídico penal en base a la integridad moral de su autor, negandoque éste haya operado como instrumento de poderes concretos. No hayrazón para formular juicios éticos personales en muchos casos; en otrospudo haber sintonía con algunos poderes concretos, pero no por ello sepuede deducir una instrumentación intencional. Los pocos casos de ver-dadera instrumentación intencionalista no llegaron al nivel de discursojurídico penal serio: no puede decirse que lo hayan tenido los mediocrespanfletos de la escuela de Kiel ni los balbuceos de penalismo de seguri-dad nacional rioplatense.

Puede afirmarse que todos padecemos cierto grado de enajenaciónpolítica, producto de nuestro entrenamiento, que limita nuestras po-sibilidades de conocimiento. Notamos las alienaciones políticas aje-

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nas y especialmente de tiempos lejanos, pero vendrán quienes se ocu-parán de las nuestras.

LA ENAJENACIÓN TÉCNICA DEL POLÍTICO

Como fenómeno simétrico de desintegración discursiva puede seña-larse la enajenación técnica del político, que no se produce cuando elpolítico elabora un discurso al que aún le falta su articulación técnica (loque no es más que defecto pasajero, el momento de un curso), sino cuan-do el político elabora un discurso que abjura de la técnica (un defectoirremediable). La comunicación masiva favorece el desarrollo de estosdiscursos, que asumen la forma völkisch y redundan en banalidades yfalsedades clientelistas, refuerzan los prejuicios e identifican chivos expi-atorios débiles.

Las más peligrosas combinaciones tienen lugar entre fenómenos deenajenación política de teóricos con otros de enajenación técnica de po-líticos, pues generan un vacío que permite dar forma técnica a cualquierdiscurso político. Por lo general, la corporación jurídica suele caer en laenajenación política cuando arrecian los discursos völkisch, pues éstesiempre es violento, arrollador, injurioso e impone miedo, al que son vul-nerables no sólo los políticos profesionales sino que tampoco son inmunespartes considerables de los propios estamentos judiciales y académicos;suele decirse que el positivismo legal es en esos casos una defensa contrael avance de ese discurso (en rigor no es positivismo legal propiamentedicho, sino formulación de una teorización políticamente enajenada). Elllamado método técnico jurídico en tiempos del fascismo italiano y cier-tos desarrollos del neokantismo en los del nazismo, son ejemplares. Enellos pretendieron atrincherarse quienes sostuvieron luego que buscabanponer límites, frente a otros que se integraban con singular entusiasmo aldiscurso völkisch.

LA DOGMÁTICA JURÍDICO PENAL

Suele afirmarse que la dogmática jurídico penal como método apare-ció en el siglo XIX en el derecho privado por obra de Rudolf von Jhering,

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lo que es sólo parcialmente cierto, pues con el insigne romanista adquirióexpresión formal el método y se perfeccionó su aplicación, pero es incues-tionable que el análisis y la reconstrucción de textos nació en la edadmedia, dado que no otra cosa habían hecho los glosadores y posglosadoresy, más técnicamente aún, los prácticos. Es posible que hasta von Jheringse hiciese prosa sin saberlo, y porque no se lo sabía se la hacía con escasaprecisión, pero, de todos modos, se hacía prosa. En realidad, el métodojurídico de análisis y reconstrucción nació en las universidades de losestudios, especialmente en el norte italiano, muchos siglos antes de quevon Jhering fijase sus reglas dándole forma expresa y abriendo la posibili-dad de un mayor rigorismo constructivo.

Los prácticos elaboraron un discurso jurídico penal dogmático, enque se construía una rudimentaria teoría del delito. Afectados por consi-derable grado de enajenación política, algunos (especialmente los tardí-os) construyeron discursos jurídico penales técnicos pero políticamenteaberrantes, lo que motivó que Carrara calificara su saber como schifosascienza. Contemporáneos de estos prácticos tardíos fueron los primerosdiscursos iluministas y liberales (cuyo modelo por excelencia fue la obrade Beccaria), pero que eran puramente políticos. Beccaria no ofrecía alos jueces ningún sistema, sino que criticaba desde una perspectiva ilu-minista el sistema penal de su tiempo. Si este pensamiento se hubieselimitado a producir tales discursos (si el curso ideológico se hubiese inter-rumpido), no hubiese modificado en nada las decisiones judiciales, esdecir, la práctica del derecho. Pero los iluministas y liberales originariosno padecían de enajenación técnica, porque no abjuraban de ésta, sinoque aún no la integraban. Fue su siguiente generación (Pagano, Carmig-nani, Feuerbach) la que integró en el discurso jurídico penal la técnicade los prácticos con las ideas del racionalismo liberal. Para ello tuvieronque apelar al derecho natural contractualista (Feuerbach sostenía que lafilosofía era fuente del derecho penal; Carrara afirmaba que su sistema lodeducía de la razón), porque carecían de constituciones o normas dejerarquía superior a la ley penal ordinaria, en las que basar sobre ideasliberales su construcción técnica. Los sistemas que elaboraron los libera-les eran jusnaturalistas porque no podían ser otra cosa: sólo la apelación ala razón por vía de la filosofía le permitió a Feuerbach ensayar una reinter-pretación jurídica nada menos que de la Constitutio Criminalis Carolina.

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LOS JUECES EN EUROPA Y EN AMÉRICA

Si la dogmática jurídico penal es un método y sus discursos son enverdad discursos políticos (planificación de una política o de decisionespolíticas), no puede pasarse por alto la estructura, naturaleza y poderesde las agencias a las que están dirigidos esos proyectos (en forma directao bien mediata, por el entrenamiento académico de sus operadores) y, porconsiguiente, a la función que tienen asignada dentro de determinadocontexto de poder. Asi como no parece razonable ofrecer a un gobiernoun proyecto elaborado para un estado que dispone de recursos financie-ron muy superiores (ni tampoco lo contrario), no parece políticamentecorrecto que quiera ofrecerse el mismo proyecto de jurisprudencia a ope-radores judiciales que forman parte y son adiestrados en estructuras depoder por completo diferentes y, por ende, con perfiles de jueces y funci-ones también distintas. Esto fue por lo general ignorado en Latinoaméri-ca, donde ante la ausencia de teorizaciones propias con alto nivel deelaboración, nos hemos introducido a la técnica jurídica con modelosmuy elaborados, pero destinados a judiciales europeos continentales.

Las estructuras de los judiciales europeos continentales, derivan to-das del modelo napoleónico, en tanto que las americanas (por lo menoshasta décadas recientes) se nutren del modelo originario de los EstadosUnidos, más o menos deteriorado por los accidentes políticos latinoame-ricanos. En tanto que el modelo europeo continental es piramidal y jerar-quizado, organizado en forma de burocracia con carreras fuertes (repro-ducción burocrática del modelo militar), comandado por un tribunal decasación que no tiene poderes de control constitucional (y menos aún susjueces subordinados), el judicial americano es de nominación partidista,con control difuso de constitucionalidad de las leyes y está comandadopor un tribunal político que decide de estas cuestiones en última instan-cia. El modelo europeo continental deriva de la casación (originariamen-te un tribunal del poder legislativo) que casa (rompe) las sentencias quese apartan de la ley; el modelo americano deriva de la acción de incons-titucionalidad que invalida las leyes que se apartan de la ley de superiorjerarquía. En tanto que originariamente los europeos continentales hací-an que los legisladores controlasen a los jueces, en el modelo americanoson los jueces los que controlan a los legisladores. Esta situación se alteraen Europa continental sólo en la última posguerra, con la consolidaciónde la justicia constitucional o política en varias constituciones (sistemade control centralizado –modelo austríaco- a través de tribunales consti-

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tucionales) y con el sistema europeo de Derechos Humanos. Se ha dichoque en realidad, Europa conocía el derecho administrativo pero no elderecho constitucional hasta la última posguerra (las tentativas de con-trol constitucional de entreguerras naufragaron en pocos años junto a losgobiernos que las llevaron a cabo: Austria, Alemania, Checoslovaquia yEspaña).

Es claro que no es lo mismo un discurso jurídico penal a la medida deuna burocracia cuyo mandato es cumplir al pie de la letra la voluntadlegislada del poder político constituído, y el que demanda un judicial in-cumbido de hacer respetar la ley suprema por sobre la voluntad coyunturalde este poder. El acatamiento de estas voluntades mayoritarias resulta in-compatible con la función del judicial conforme al modelo americano y losproyectos de jurisprudencia que imponen esa actitud incitan a los judici-ales de modelo americano a apartarse de su función constitucional.

LOS MODELOS TEÓRICOS IMPORTADOS ENEL SIGLO XX

A la hora de construir el discurso jurídico penal en nuestra región, (a)desde fines del siglo XIX se echó mano del positivismo criminológico ita-liano, como correspondía a las filiaciones ideológicas de las repúblicasoligárquicas del momento, pero cuando éstas entraron en crisis (a partirde la Revolución Mexicana) se dirigió la vista a Alemania, trayendo (b)el modelo del positivismo alemán (Franz von Liszt), pronto seguido por(c) el neokantiano (Edmund Mezger), sucedido por (d) el ontologismofinalista (Hans Welzel), culminando en la última década del siglo con lasconstrucciones inspiradas en la (e) sociología funcionalista norteameri-cana (Claus Roxin) y (f) alemana (Günther Jakobs).

Cada uno de estos modelos responde originariamente a cierto momen-to de poder político y a un contexto económico, social y cultural del que,por regla general, se hizo caso omiso al transportarlo. La omisión de estaperspectiva deterioró la trascendencia del debate dogmático, pues ennuestra región éste casi se redujo a los aspectos técnicos de los discursos,banalizando la verdadera dimensión de las diferentes posiciones, cuyaclave se halla en su aspecto político. La importación de modelos fue con-siderada técnica, o sea, prescindiendo o minimizando su dimensión polí-

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tica. De este modo, la dogmática jurídico penal latinoamericana del sigloXX presentó caracteres de severa enajenación política, no sólo en razónde la alienación política originaria que acarreaba cada modelo (en mayoro menor medida, según los casos), sino también porque fueron importa-dos con notoria privación o recorte de la dimensión política originaria y,además, porque hubo una completa enajenación frente a la dimensiónpolítica local o regional.

(a) Por cierto que algunos de los modelos importados (especialmenteel neokantiano) desde su origen mismo alimentaban metodológicamentela alienación política, en razón de sus incuestionables puntos de partidadeductivos e idealistas, pero a esta alienación política originaria se suma-ron datos vernáculos ajenos al modelo mismo en versión alemana.

(b) En principio, la importación del modelo como meramente técnico,acentuó la alienación política originaria, reduciendo a veces la especula-ción teórica a algo parecido a un juego de ajedrez jurídico incomprensi-ble para los no iniciados e inexplicable para muchos de los propios inicia-dos. Fue una importación con notoria privación de dimensión política.

(c) A la alienación política originaria y a su privación por importaciónmeramente técnica se sumó la completa enajenación frente a la políticalocal y regional, porque a) no se los vinculó ni especuló sobre sus conse-cuencias respecto de un poder judicial con diferente estructura y funcio-nes y de un sistema penal que opera de modo muy distinto al del país deorigen del modelo, sino que b) tampoco se tuvieron en cuenta los efectosde la jurisprudencia proyectada en esos modelos respecto de la operativi-dad del poder punitivo en el contexto político, económico, social y cultu-ral local (todo ello sin contar con los accidentes políticos y los frecuentesnaufragios de los estados de derecho).

Cada uno de los modelos importados merece una evaluación desde elplano político, teniendo en cuenta estas carencias. Con la perspectiva deun siglo creemos que es posible demostrar que:

(a) el camino correcto no es la importación de programas políticosdegradándolos a modelos meramente técnicos,

(b) que sus diferencias fundamentales no estriban en las consecuenci-as metodológicas técnicas, sino en sus puntos de partida políticos, y

(c) que es indispensable considerar el marco local para prever los resul-

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tados de la aplicación de cualquier programa político (proyecto de juris-prudencia) en la realidad social y conforme a los fines establecidos en laConstitución y en el derecho internacional de los Derechos Humanos.

Si bien existen principios metodológicos de validez universal (al igualque reglas de lógica jurídica o de lógica a secas), es elemental considerarque en todo programa político el método siempre está al servicio de obje-tivos políticos; por ende, la técnica sirve para concretar, expresar y viabi-lizar una política, pero no para sustituirla.

EL MODELO FERRIANO PROVENIENTE DELSIGLO XIX

El modelo que dominaba la doctrina de comienzos del siglo XX y queperduró varias décadas era el derivado del positivismo ferriano. La culpa-bilidad había sido reemplazada por el peligrosidad y el modelo era hijo deuna alianza discursiva entre policías y médicos europeos, que se habíanimpuesto a la hegemonía de las corporaciones de filósofos y juristas libera-les y habían desplazado el discurso jusnaturalista de éstos (conforme alcontractualismo, reconocían derechos previos al contrato y, por ende,intocables para el estado). El positivismo ferriano se asienta sobre unaconcepción antropológica groseramente materialista monista, un deter-minismo derivado de la física mecanicista newtoniana y una biología evo-lucionista racista que aceptaba el dogma de la transmisión de caracteresadquiridos. Fue la ideología a la medida del control social policial deldisciplinamiento de la masa obrera por parte de la burguesía europeaasentada en el poder hegemónico, una vez desplazada definitivamente lanobleza. Se basaba en un jusnaturalismo racista biologista y la superiori-dad de los controladores derivaba, justamente, de su superioridad (sa-lud) biológica, frente a los controlados, que eran inferiores (defectuosos,enfermos o no evolucionados). El comodín de la peligrosidad y la necesi-dad de neutralizarla para defender la sociedad, servía para resolver todaslas preguntas del sistema, siempre a favor de un mayor ámbito de poderpunitivo para el estado.

Obreros indisciplinados y el ejército de reserva desocupada aún másindisciplinado, disidentes políticos (especialmente anarquistas y sindica-listas) y todo el que desentonaba con el orden de las nuevas urbes (vagos,

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ebrios, curanderos, homosexuales, prostitutas, proxenetas; la mala vidadel estado peligroso sin delito) o no se comprendía bien qué hacía o pen-saba hacer (bohemios y genios locos o degenerados), era peligroso socialal que era menester neutralizar con el poder puntivo configurado sólo pormedidas. La policía tomaba cuenta del discurso jurídico penal: todo loque parecía conspirar contra el orden, la homogeneidad y la estética ur-bana, era peligroso para la ciudad y, por ende, digno de ser neutralizado.El juez no era más que un supervisor de la función policial, aunque tam-bién él asumía función policial, y la propuesta de los teóricos a la jurispru-dencia era la asunción lisa y llana de este papel: ante cualquier dudadebían inclinarse por la seguridad y optar por neutralizar el peligro, enuna completa inversión de todos los principios liberales.

Las elites de las repúblicas oligárquicas de toda Latinoamérica habíanacogido con entusiasmo la filosofía del positivismo para legitimar su usurpa-ción de la soberanía popular, por lo que no es de extrañar que en las últimasdécadas del siglo XIX y primeras del XX, recibieran con parejos aplausos lallegada de su versión penal. Negros y mulatos, indios y mestizos, inmigran-tes europeos poco disciplinados y la mala vida urbana, todos eran peligrososy la jurisprudencia abría el espacio para su control policial.

En rigor, el plan del positivismo ferriano en la región fue el más cohe-rente de la historia, coincidiendo en plenitud con el momento político delas repúblicas oligárquicas y con la legitimación de sus sectores hegemó-nicos. Los restantes programas políticos ofrecidos a los poderes judicialesde la región encerraron algunas contradicciones con la hegemonía socialde turno, pero el ferriano no tuvo resquicio a este respecto.

EL POSITIVISMO ALEMÁN DE FRANZ VONLISZT

La dogmática jurídico penal moderna llegó a la región con el esquemade Franz von Liszt. El pensamiento ferriano, como puramente médico po-licial, era muy pobre y no permitía construir un saber más delicado paradecidir judicialmente. No pasaba de una construcción bastante grosera.El positivismo alcanzó un nivel de elaboración jurídica mucho más pro-fundo por obra de Liszt, en razón de que éste lo matizó con elementosprovenientes de otras posiciones, si bien poco compatibles con el mismo.

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Dentro de este esquema no se altera mucho la base newtoniana ybiologista, puesto que para nada se abjura del determinismo mecanicista,sólo que se adopta una versión dualista del mismo, con una causalidadfísica paralela a otra psíquica. Merced a este desmembramiento de lascausalidades fue posible introducir en el esquema del delito la distinciónentre ilícito y culpabilidad de Jhering, llamando ilícito a la causaciónfísica del resultado y culpabilidad a su causación psíquica, consistente enuna relación psicológica entre voluntad y resultado. La pena conservabafunciones preventivo especiales, por lo cual poco se diferenciaba de lasmedidas de seguridad, y la culpabilidad sólo se habilitaba para imputa-bles, entendiendo por tales a los que son capaces de motivarse normal-mente, concepto este último de clara procedencia idealista, que Liszttomó prestado. En rigor, sin ese componente en préstamo, el esquema deLiszt coherentemente considerado debía concluir en que los inimputa-bles podían ser autores de delitos, limitándose la imputabilidad a unacuestión a averiguar fuera del delito, en el nivel de la punibilidad (lo quepostuló su discípulo Lilienthal).

La construcción de von Liszt fue ofrecida al poder judicial del imperioguillermino y representa una clara ventaja sobre las ideas ferrianas. Lisztse percató de que era necesario poner un límite al pensamiento policialen derecho penal, lo que consigue al intuir que la política criminal (po-der punitivo) y el derecho penal se hallan enfrentados. Si por políticacriminal se entiende la acción represiva del estado, es claro que el dere-cho penal es el que debe acotarla, y esto lo percibió claramente. Paraello, mantuvo el esquema policial pero tratando de dotarlo de cierta raci-onalidad mediante el requisito de la antijuridicidad material y formal, laintroducción del concepto de bien jurídico como criterio teleológico deinterpretación de los tipos penales y la exclusión de los incapaces medi-ante un particular concepto de imputabilidad.

Ante el extremo y complejo normativismo de Binding, von Liszt tratóde poner alguna cuota de realidad en un esquema bastante simplista,que los jueces podían manejar con soltura, de fácil comprensión y desuficiente claridad como para ser explicable en lo académico en el entre-namiento de los operadores jurídicos. Sin duda que el momento de KarlBinding y el de la teoría de los imperativos (base de lo que algunos lla-man la escuela clásica alemana) fue el de la construcción del imperioguillermino por obra de Otto von Bismarck: un normativismo verticali-zante, sin plantearse la posibilidad de una ley injusta, inconcebible en un

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estado que encarnaba la racionalidad, es el discurso de la etapa de con-solidación del estado nacional alemán. El momento político de Liszt (quepodría considerarse el positivismo alemán) fue otro: el que corre desde elocaso del Príncipe Bismarck hasta la primera guerra mundial (1914-1918).Era el primer ensayo mundial de estado providente, para cuya consolida-ción no podía prescindirse de la represión policial, pero no podía tampocodejársela operar sín límite alguno, en forma que ésta destruyese lo que elpropio estado estaba construyendo. La ambivalencia de ciertos conceptosy criterios políticos de esta versión del positivismo responde a esa duali-dad exigida por el objetivo político del momento: construcción de buro-cracias fuertes, incluyendo la judicial y la policial; construcción del esta-do de bienestar en base a la eficacia de estas burocracias, pero evitandoque ésta resulte disfuncional, especialmente en sus aspectos represivos.

EL NEOKANTISMO PENAL DE EDMUNDMEZGER

El modelo de Liszt se hizo insostenible después de la Gran Guerra, nosólo porque sus fundamentos científicos eran falsos (los siguió sosteniendoen parte el nazismo pese a su demostrada falsedad) sino porque incluso sevolvía disfuncional. Frente a la caída del imperio, el juidicial imperial seconservó como una burocracia intacta en vigencia de la Constitución deWeimar y, para ello, nada mejor que mostrar su tecnicismo con un finoesquema clasificatorio de análisis y decisión de casos, delicadamente ela-borado, montado sobre una teoría del conocimiento idealista que lo preser-vaba de todo contacto con datos del saber empírico (de la realidad social).La típica clasificación neokantiana de las ciencias en naturales y cultura-les, permitió que el saber jurídico penal se definiese como puramente nor-mativo y deductivo y, al mismo tiempo, asumiendo la función de demarcarlos límites epistemológicos de la criminología, dejó a ésta en posición subor-dinada como indagación etiológica falsa, al privarla de toda pregunta re-lacionada con la real operatividad del poder punitivo.

La peligrosidad ya no era el criterio para determinar la magnitud de laspenas, pues se la reemplazaba por un concepto espiritualizado de culpabili-dad que, tergiversando la ética aristotélica, encomendaba a los jueces unjuicio de valor sobre toda la elección existencial de los ciudadanos. Tal esla esencia de la culpabilidad de autor en sus diferentes versiones y, más

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aún, en sus pretendidas combinaciones con la culpabilidad de acto. Selograba de este modo un concepto de culpabilidad normativa que sustituíacómodamente a la peligrosidad y cumplía la misma función represiva poli-cial, aunque ya sin ninguna pretensión empírica. El dolo mismo era unconcepto normativo que, cuando no tenía suficiente realidad psicológica,era reemplazado por la enemistad o la ceguera al derecho.

Este esquema era la justificación de una aparente asepsia ideológica delas decisiones judiciales, que no podían permitirse el lujo de contaminarsecon ningún dato de realidad que resultase disfuncional al poder represivo,aunque arbitrariamente se incluyesen los que eran funcionales al mismo.Todo el neokantismo (y sus actualizaciones) opera con una selección arbi-traria de datos de realidad: toma de ella lo que le conviene y rechaza loque no le conviene, de modo que inventa una sociedad y una funciónpreventiva general de la pena, matizada con apelaciones al kantismo injer-tadas de modo no muy claro en una pretendida función retributiva.

Este modelo permitió a una burocracia judicial proveniente del impe-rio pasar por la República de Weimar, contribuir a quebrar su legalidadcon su benignidad hacia los delitos del nazismo en ascenso y continuarlegitimando los crímenes del régimen sin grandes cambios. Contra lo queusualmente se afirma, el derecho penal neokantiano fue el verdaderosaber penal del nazismo. No es verdad que éste haya sido el de la Kielers-chule, pues los de Kiel fueron políticos u oportunistas políticos, que escri-bieron algunos trabajos de muy poco o ningún valor teórico, pero que noservían en absoluto para que los jueces decidiesen. El derecho penal vi-gente bajo el nazismo, el vivido por las decisiones judiciales, en generalsiguió los métodos del neokantismo. La jurisprudencia se orientó muchomás por Edmund Mezger que por Georg Dahm o Friedrich Schaffstein, alpunto de que el primero llegó a escribir un artículo en el que criticaba aéstos, demostrando que su sistema resolvía mejor la aplicación jurispru-dencial de la legislación penal nazista.

De la exaltación normativista del estado para crear el welfare Statede Bismarck, se pasó a la evitación de los desbordes represivos que lodestruirían, o sea, al funcionalismo positivista de Liszt, y de éste se saltóhacia una simulación de asepsia ideológica que preservaba a la fuerteburocracia judicial de los accidentes políticos, pero que le permitía serfuncional al esquema crecientemente represivo que culminó en la aber-ración nazista; esta última función fue la que tuvo a su cargo la estructu-ra teórica del neokantismo. Al afirmar formalmente su función técnica

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pura, también deslegitimaba en el fondo cualquier pretensión de controlconstitucional; por una via indirecta daba la razón a Carl Schmitt.

EL ONTOLOGISMO FINALISTA DE HANSWELZEL

El renacimiento del derecho natural en los primeros años de la últimaposguerra tuvo varias versiones, receptadas en algunas sentencias de losprimeros años del Bundesverfassungsgericht. La más modesta en cuantoa sus pretensiones fue la de Welzel con su teoría de las estructuras lógicoreales (sachlogischen Strukturen). Como afirmó Engisch en su momento,se trataba de un derecho natural en sentido negativo: no pretendía decircómo debía ser el derecho, sino sólo lo que no era derecho. A diferenciadel neokantismo, para el cual el valor era lo que ponía orden en el caosdel mundo y lo hacía disponible, para el ontologismo welzeliano el mundotiene varios órdenes a los que el legislador se vincula por las estructuraslógicas con la realidad. Según Welzel, cuando las ignora o quiebra, elderecho pierde eficacia, salvo que quiebre la que lo vincula a la estruc-tura del ser humano como persona, en cuyo caso deja de ser derecho.

El poder punitivo, según el profesor de Bonn, adquiría un carácter yamarcadamente simbólico, reforzando una ética mínima en la sociedad,que hacía que la pena tuviese relación directa con la elementariedad delcumplimiento de la regla violada. De este modo, Welzel etizaba el dere-cho penal en una suerte de funcionalismo ético de la sociedad. Su ideade la culpabilidad estaba asentada sobre igual base: con la culpabilidadnormativa se reprochaba no haber contenido las pulsiones que llevaron aldelito; en germen se hallaba la idea que el funcionalismo más extremo defines del siglo llevará a la noción misma de conducta o acto. Igual ger-men se halla en sus intentos de destrabar serios problemas de imputaciónen base a la adecuación social de la conducta, titubeando en su ubicaci-ón como justificación o como atipicidad.

La tónica etizante y de derecho natural mínimo o negativo de Welzelse inscribe dentro de la experiencia política de los primeros años de pos-guerra. En efecto: se salía de la catástrofe, Europa estaba reducida a es-combros, Alemania destruída, la Constitución de Bonn recién se sancio-nó en 1949, dos estados se repartían su territorio. Los ensayos constituci-

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onales no garantizaban mucho, según la experiencia histórica reciente, elderecho internacional de los Derechos Humanos estaba en pañales (sólola Declaración Universal de 1948, huérfana de cualquier tratado o leyinternacional), la guerra fría era una realidad peligrosa, la amenza nu-clear estaba presente, no había sistema europeo de Derechos Humanos,nacido recién con la Convención de Roma de 1950, de complicada pues-ta en práctica. Hasta poco antes de la Segunda Guerra podía sostenerseque toda ley era derecho, pero luego se hacía urgente ponerle límites allegislador.

En este contexto floreció el finalismo welzeliano como respuesta alneokantismo. Su originalidad no fue cambiar de lugar al dolo (que ya lohabían hecho von Weber y el Graf zu Dohna), sino darle forma a su teoríacon este marco cultural, filosófico y político. Se lo ha caracterizado frecu-entemente como un pensamiento penal conservador y en su contexto esposible que lo haya sido hasta cierto punto, porque el funcionalismo éticowelzeliano es el marco teórico del saber penal del momento de la recons-trucción del estado de bienestar por la Bundesrepublik. Si exagerásemosun poco, podríamos decir que fue el saber penal de los tiempos de KonradAdenauer. Desde la perspectiva actual, no sería justo señalar como con-servadora la construcción de un estado de bienestar, pero todo esto esopinable y no hace al fondo de la cuestión que aquí tratamos.

EL FUNCIONALISMO SISTÉMICO DE CLAUSROXIN

Si bien la obra general de Roxin se publica a comienzos de la últimadécada del siglo, lo cierto es que corona una serie de trabajos de muchosaños antes. Su obra general es la exposición ordenada de un programateórico enunciado y en gran parte desarrollado en importantes trabajosparciales desde tempranos años de la década del setenta y aún antes,íntimamente vinculados a sus preocupaciones por la función preventivoespecial de la pena, desde su activa participación en el Alternativen-twurf de 1966.

Con Roxin el saber penal se vincula más estrechamente a la sociolo-gía. Si bien no lo menciona expresamente, parece haber en su obra unvínculo a veces directo y otras indirecto con la sociología funcionalista

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norteamericana de Robert Merton y, sobre todo, de Talcott Parsons. Lainsistencia en la función preventivo especial del poder punitivo recuerdamuy cercanamente la idea de control social de este último sociólogo,como reaseguro de la socialización, para los casos de personas en las quefallan los procesos normales de socialización. Es una concepción perfecta-mente compatible con el estado de bienestar social establecido: el estadose organiza en forma tal que interviene cuando fallan los mecanismosordinarios de socialización de los individuos, y la señal de esa falla es eldelito. Éste se manifiesta en una acción en que se expresa anímico inte-lectualmente el ser humano y que tiene por efecto un aumento del riesgopara el bien jurídico, con lo cual el aumento del riesgo pasa a ser elcriterio imputativo objetivo. La culpabilidad no es un verdadero reprochede la elección de una acción en lugar de otra, sino una ficción o principioregulativo que da por cierto el indeterminismo a esos efectos, que no loadopta científicamente, por no ser inverificable, pero que lo demandacomo límite máximo a la prevención especial.

Comienza a ser bastante dificil la distinción entre la culpabilidad y lapunibilidad, porque ésta se carga de consideraciones sobre necesidadespreventivas. La tendencia sistemática revela un retorno al criterio bi-membre, en un esquema cercano a la construccion neokantiana de He-llmuth von Weber, aunque en su obra general agrega su concepto perso-nal de acción, que lo aparta un tanto de aquel esquema.

La teorización de Roxin corresponde a los años del estado social dederecho consolidado en Alemania, a la Realpolitik socialdemócrata de lossetenta, de Willy Brandt y de Helmut Schmidt, en que la función delpoder punitivo era corregir los casos individuales en que fallaba el sistemasocial en su labor socializadora. Se trata de un momento de expansión delestado providente, en que la economía crece, se recluta mano de obrainmigrante de países no europeos o culturalmente más lejanos (italianos yespañoles vuelven a sus países y llegan los turcos), hay pleno empleo, funci-ona aceitadamente el sistema de seguridad social, es decir que el estadobenefactor iba eliminando las causas sociales de los delitos y, por lógica,debía entenderse que la etiología de éstos devenía crecientemente de na-turaleza individual y, por ende, era menester neutralizarla a tiempo con elejercicio del poder punitivo, dosificando a ese efecto la prevención especi-al, aunque sin poder sobrepasar el límite de la reprochabilidad, considera-da casi como una ficción necesaria. Es natural en este contexto percibir losecos teóricos de la sociología de Parsons, que fue la adecuada a la cons-trucción del estado providente del new Deal norteamericano.

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EL FUNCIONALISMO SISTÉMICO DEGÜNTHER JAKOBS

Si bien Jakobs coloca como garante de su teoría a Niklas Luhmann,que fue el sociólogo sistémico de la recepción alemana de esa corriente yque la radicalizó en sus elaboraciones, en especial en su teoría de la soci-edad, no es menos cierto que esta influencia parece confluir con un acen-tuado componente hegeliano y una exaltación sociologizada del funcio-nalismo ético welzeliano. Hay en Jakobs una vuelta radical al normativis-mo, acompañada de un sinceramiento sin precedentes de la función delpoder punitivo, que bordea por momentos los límites de lo éticamentetolerable. Le asigna como objeto el fortalecimiento de la confianza en elsistema (prevención general positiva) mediante la ratificación simbólicade la vigencia de la norma. Si bien se trata de un planteo en clave decomunicación (simbólica), no es menos cierto que se percibe el resabiode la función negadora del delito y reafirmativa del derecho de cuñohegeliano.

Su construcción teórica –si bien no se identifica- se aproxima a la re-ducción de todas las acciones a omisiones, lo que lo conduce a la normati-vización jurídica de los roles sociales y al criterio básico de imputaciónobjetiva como violación de roles, entendidos como posiciones de garantetanto en delitos activos como omisivos. El bien jurídico empalidece frente ala general función de fortalecimiento de la confianza en el sistema, quetiende a convertirse en el único bien jurídico, también cercano a la usanzadel viejo hegelianismo en que todos los bienes jurídicos parecían disolverseen el estado. La necesidad de reafirmar la vigencia de la norma pasa porsobre el requisito de lesividad, lo que lo lleva a postular la punición dedeberes inútiles, es decir, que la lesión es normativa y no real. El extremonormativismo determina una concepción del dolo privado del natural ele-mento psicológico, de modo que se acerca a la vieja presunción de dolo. Laculpabilidad también se concibe normativamente, o sea, construyéndola apartir de la necesidad de prevención general positiva, independiente detodo concepto de persona (ente responsable autodeterminable) y, en defi-nitiva, de modo en que prácticamente se confunde con la punibilidad. Elextremo normativismo de todos los conceptos lleva a alterar tan radical-mente los contenidos de las categorías del delito sostenidas anteriormenteque, probablemente, dificulte a corto plazo el diálogo entre especialistasque, ateniéndose a las denominaciones, será inevitable que se refieran aconceptos absolutamente diferentes.

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Esta teorización aparece en los años ochenta del siglo pasado y coinci-de con el debilitamiento del estado de bienestar y el consiguiente refor-zamiento del control social punitivo interno como consecuencia del de-terioro social y del acrecentamiento de riesgos provenientes de la revolu-ción tecnológica. Difícilmente pueda considerarse a este desarrollo en lalínea de un pensamiento sistémico sociológico, pues los riesgos son reales,en tanto que los reforzamientos del sistema social son simbólicos, lo queinevitablemente, para un sistémico social, al menos a mediano plazo, re-presenta una disfunción desde su propia perspectiva. El marco político yeconómico de esta teorización se sitúa en la década de Kohl y en la glo-balización, tal como es percibida desde una Alemania que debilita suwelfare justo cuando se hace cargo de serios problemas sociales acarrea-dos por la reunificación y que coincide con una ampliación extensiva dela legislación penal y una intensificación de las conminaciones penales,ante la paralela y creciente incapacidad del estado debilitado para resol-ver en forma eficaz los conflictos.

LA REVALORACIÓN DEL MARCO POLÍTICO

Es probable que la alienación política haga pensar que la previa valo-ración de los discursos dogmáticos en los contextos que se acaban deseñalar los desvaloriza o cae en un reduccionismo político. Nada está máslejano de nuestra intención ni de la realidad; justamente se revaloranplenamente los programas políticos de esos discursos cuando se quita elvelo que los encubre y se pone de relieve su verdadera dimensión. Ale-mania pasó por grandezas y por miserias, cayó y se levantó y tiene, sinlugar a dudas, un enorme papel protagónico en la actual Unión Europea.Cada período, bueno o malo, mejor o peor, fue acompañado por un pro-grama político ofrecido a sus agencias jurídicas en forma de discurso jurí-dico penal con alta elaboración técnica. El fenómeno en sí, lejos de sercriticable (o de pretender subestimarlo desde esta perspectiva), es alta-mente aleccionador y digno de ser imitado. Pero imitarlo no significacopiar arbitrariamente los discursos jurídico penales omitiendo su marcopolítico (que abarca también la estructura de la propia agencia judicial yla operatividad concreta del sistema penal), sino usar la metodología ju-rídica para crear nuestros propios discursos acordes con los marcos políti-cos, económicos, culturales y sociales de los momentos de nuestros res-pectivos países. Sólo podremos revalorar el método jurídico y neutralizar

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la amenaza de la irracionalidad völkisch cuando revaloremos adecuada-mente la dimensión política de sus particulares teorizaciones, lo que ladotará de sentido pleno y la rescatará del borde del abismo en que lasitúa la alienación política de la pura discusión de consecuencias técni-cas. Por cierto que es una tarea mucho más difícil que limitarnos a discu-tir éstas últimas e importa transitar un camino plagado de obstáculos,pero la cómoda situación de alienación política en nos hallamos nos ex-pone inevitablemente a la ridiculización völkisch y, objetivamente, nosarrastra a una nueva y más refinada versión de la schifosa scienza, cuyadesaparición nadie lamentó y de la que sólo sobrevivió la técnica para darvida a los nuevos discursos políticos de la etapa liberal, que fue la demayor contenido pensante del derecho penal.

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DOCUMENTO HISTÓRICO

CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA ACONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA ACONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA ACONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA ACONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA ACORRUPÇÃO CORRUPÇÃO CORRUPÇÃO CORRUPÇÃO CORRUPÇÃO 11111

Preâmbulo

OS ESTADOS MEMBROS DA ORGANIZAÇÃODOS ESTADOS AMERICANOS,

CONVENCIDOS de que a corrupção solapa a legitimidade das insti-tuições públicas e atenta contra a sociedade, a ordem moral e a justiça,bem como contra o desenvolvimento integral dos povos;

CONSIDERANDO que a democracia representativa, condição in-dispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região,exige, por sua própria natureza, o combate a toda forma de corrupção noexercício das funções públicas e aos atos de corrupção especificamentevinculados a seu exercício;

PERSUADIDOS de que o combate à corrupção reforça as instituiçõesdemocráticas e evita distorções na economia, vícios na gestão pública edeterioração da moral social;

RECONHECENDO que, muitas vezes, a corrupção é um dos instru-mentos de que se serve o crime organizado para concretizar os seus fins;

CONVENCIDOS da importância de gerar entre a população dos pa-

1 Adotada em Caracas, em 29 de março de 1996, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de2002, com reserva para a o art. XI, parágrafo 1, inciso “c”, entrou em vigor, para o Brasil, no dia 24 de agostode 2002, nos termos de seu artigo XXV, e foi promulgada pelo Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002.

Direito e Democracia Canoas vol.3, n.1 1º sem. 2002 p.469-233

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íses da região uma consciência em relação à existência e à gravidadedesse problema e da necessidade de reforçar a participação da sociedadecivil na prevenção e na luta contra a corrupção;

RECONHECENDO que a corrupção, em alguns casos, se reveste detranscendência internacional, o que exige por parte dos Estados uma açãocoordenada para combatê-la eficazmente;

CONVENCIDOS da necessidade de adotar o quanto antes um ins-trumento internacional que promova e facilite a cooperação internacio-nal para combater a corrupção e, de modo especial, para tomar as medi-das adequadas contra as pessoas que cometam atos de corrupção no exer-cício das funções públicas ou especificamente vinculados a esse exercí-cio, bem como a respeito dos bens que sejam fruto desses atos;

PROFUNDAMENTE PREOCUPADOS com os vínculos cada vez maisestreitos entre a corrupção e as receitas do tráfico ilícito de entorpecen-tes, que ameaçam e corroem as atividades comerciais e financeiras legíti-mas e a sociedade, em todos os níveis;

TENDO PRESENTE que, para combater a corrupção, é responsabili-dade dos Estados erradicar a impunidade e que a cooperação entre eles énecessária para que sua ação neste campo seja efetiva; e

DECIDIDOS a envidar todos os esforços para prevenir, detectar, punire erradicar a corrupção no exercício das funções públicas e nos atos decorrupção especificamente vinculados a seu exercício,

CONVIERAM em assinar a seguinte

CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA A CORRUPÇÃO

Artigo I

Definições

Para os fins desta Convenção, entende-se por:

“Função pública” toda atividade, temporária ou permanente, remune-rada ou honorária realizada por uma pessoa física em nome do Estado oua serviço do Estado ou de suas entidades, em qualquer de seus níveishierárquicos.

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“Funcionário público”, “funcionário de governo” ou “servidor público”qualquer funcionário ou empregado de um Estado ou de suas entidades,inclusive os que tenham sido selecionados, nomeados ou eleitos para de-sempenhar atividades ou funções em nome do Estado ou a serviço doEstado em qualquer de seus níveis hierárquicos.

“Bens” os ativos de qualquer tipo, quer sejam móveis ou imóveis, tan-gíveis ou intangíveis, e os documentos e instrumentos legais que compro-vem ou pretendam comprovar a propriedade ou outros direitos sobre estesativos, ou que se refiram à propriedade ou outros direitos.

Artigo II

Propósitos

Os propósitos desta Convenção são:

l. promover e fortalecer o desenvolvimento, por cada um dos EstadosPartes, dos mecanismos necessários para prevenir, detectar, punir e erra-dicar a corrupção; e

2. promover, facilitar e regular a cooperação entre os Estados Partes afim de assegurar a eficácia das medidas e ações adotadas para prevenir,detectar, punir e erradicar a corrupção no exercício das funções públicas,bem como os atos de corrupção especificamente vinculados a seu exercício.

Artigo III

Medidas preventivas

Para os fins estabelecidos no artigo II desta Convenção, os EstadosPartes convêm em considerar a aplicabilidade de medidas, em seus pró-prios sistemas institucionais destinadas a criar, manter e fortalecer:

1. Normas de conduta para o desempenho correto, honrado e ade-quado das funções públicas. Estas normas deverão ter por finalidadeprevenir conflitos de interesses, assegurar a guarda e uso adequado dosrecursos confiados aos funcionários públicos no desempenho de suasfunções e estabelecer medidas e sistemas para exigir dos funcionáriospúblicos que informem as autoridades competentes dos atos de corrup-

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ção nas funções públicas de que tenham conhecimento. Tais medidasajudarão a preservar a confiança na integridade dos funcionários públi-cos e na gestão pública.

2. Mecanismos para tornar efetivo o cumprimento dessas normas deconduta.

3. Instruções ao pessoal dos órgãos públicos a fim de garantir o ade-quado entendimento de suas responsabilidades e das normas éticas queregem as suas atividades.

4. Sistemas para a declaração das receitas, ativos e passivos por parte daspessoas que desempenhem funções públicas em determinados cargos estabe-lecidos em lei e, quando for o caso, para a divulgação dessas declarações.

5. Sistemas de recrutamento de funcionários públicos e de aquisiçãode bens e serviços por parte do Estado de forma a assegurar sua transpa-rência, eqüidade e eficiência.

6. Sistemas para arrecadação e controle da renda do Estado que impe-çam a prática da corrupção.

7. Leis que vedem tratamento tributário favorável a qualquer pessoafísica ou jurídica em relação a despesas efetuadas com violação dos dis-positivos legais dos Estados Partes contra a corrupção.

8. Sistemas para proteger funcionários públicos e cidadãos particula-res que denunciarem de boa-fé atos de corrupção, inclusive a proteçãode sua identidade, sem prejuízo da Constituição do Estado e dos princípi-os fundamentais de seu ordenamento jurídico interno.

9. Órgãos de controle superior, a fim de desenvolver mecanismos mo-dernos para prevenir, detectar, punir e erradicar as práticas corruptas.

10. Medidas que impeçam o suborno de funcionários públicos nacionaise estrangeiros, tais como mecanismos para garantir que as sociedades mer-cantis e outros tipos de associações mantenham registros que, com razoávelnível de detalhe, reflitam com exatidão a aquisição e alienação de ativos emantenham controles contábeis internos que permitam aos funcionários daempresa detectarem a ocorrência de atos de corrupção.

11. Mecanismos para estimular a participação da sociedade civil e deorganizações não-governamentais nos esforços para prevenir a corrupção.

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12. O estudo de novas medidas de prevenção, que levem em conta arelação entre uma remuneração eqüitativa e a probidade no serviço público.

Artigo IV

Âmbito

Esta Convenção é aplicável sempre que o presumido ato de corrupçãoseja cometido ou produza seus efeitos em um Estado Parte.

Artigo V

Jurisdição

1. Cada Estado Parte adotará as medidas que forem necessárias paraestabelecer sua jurisdição sobre os delitos que tiver tipificado nos termosdesta Convenção, quando o delito for cometido em seu território.

2. Cada Estado Parte poderá adotar as medidas que sejam necessáriaspara estabelecer sua jurisdição em relação aos delitos que haja tipificado,nos termos desta Convenção, quando o delito for cometido por um deseus cidadãos ou por uma pessoa que tenha sua residência habitual emseu território.

3. Cada Estado Parte adotará as medidas que sejam necessárias paraestabelecer sua jurisdição em relação aos delitos que haja tipificado, nostermos desta Convenção, quando o suspeito se encontrar em seu territó-rio e a referida parte não o extraditar para outro país por motivo da naci-onalidade do suspeito.

4. Esta Convenção não exclui a aplicação de qualquer outra regra dejurisdição penal estabelecida por uma parte em virtude de sua legislaçãonacional.

Artigo VI

Atos de corrupção

l. Esta Convenção é aplicável aos seguintes atos de corrupção:

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a. a solicitação ou a aceitação, direta ou indiretamente, porum funcionário público ou pessoa que exerça funçõespúblicas, de qualquer objeto de valor pecuniário ou deoutros benefícios como dádivas, favores, promessas ouvantagens para si mesmo ou para outra pessoa ou entida-de em troca da realização ou omissão de qualquer ato noexercício de suas funções públicas;

b. a oferta ou outorga, direta ou indiretamente, a um funci-onário público ou pessoa que exerça funções públicas,de qualquer objeto de valor pecuniário ou de outros be-nefícios como dádivas, favores, promessas ou vantagensa esse funcionário público ou outra pessoa ou entidadeem troca da realização ou omissão de qualquer ato noexercício de suas funções públicas;

c. a realização, por parte de um funcionário público ou pes-soa que exerça funções públicas, de qualquer ato ouomissão no exercício de suas funções, a fim de obter ili-citamente benefícios para si mesmo ou para um terceiro;

d. o aproveitamento doloso ou a ocultação de bens proveni-entes de qualquer dos atos a que se refere este artigo; e

e. a participação, como autor, co-autor, instigador, cúmplice,acobertador ou mediante qualquer outro modo na per-petração, na tentativa de perpetração ou na associaçãoou confabulação para perpetrar qualquer dos atos a quese refere este artigo.

2. Esta Convenção também é aplicável por acordo mútuo entre dois oumais Estados Partes com referência a quaisquer outros atos de corrupçãoque a própria Convenção não defina.

Artigo VII

Legislação interna

Os Estados Partes que ainda não o tenham feito adotarão as medidaslegislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tipificar comodelitos em seu direito interno os atos de corrupção descritos no artigo VI,parágrafo l, e para facilitar a cooperação entre eles nos termos desta Con-venção.

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Artigo VIII

Suborno transnacional

Sem prejuízo de sua Constituição e dos princípios fundamentais deseu ordenamento jurídico, cada Estado Parte proibirá e punirá o ofereci-mento ou outorga, por parte de seus cidadãos, pessoas que tenham resi-dência habitual em seu território e empresas domiciliadas no mesmo, aum funcionário público de outro Estado, direta ou indiretamente, de qual-quer objeto de valor pecuniário ou outros benefícios, como dádivas, favo-res, promessas ou vantagens em troca da realização ou omissão, por essefuncionário, de qualquer ato no exercício de suas funções públicas rela-cionado com uma transação de natureza econômica ou comercial.

Entre os Estados Partes que tenham tipificado o delito de suborno trans-nacional, este será considerado um ato de corrupção para os propósitosdesta Convenção.

O Estado Parte que não tenha tipificado o suborno transnacional pres-tará a assistência e cooperação previstas nesta Convenção relativamentea este delito, na medida em que o permitirem as suas leis.

Artigo IX

Enriquecimento ilícito

Sem prejuízo de sua Constituição e dos princípios fundamentais deseu ordenamento jurídico, os Estados Partes que ainda não o tenhamfeito adotarão as medidas necessárias para tipificar como delito em sualegislação o aumento do patrimônio de um funcionário público que exce-da de modo significativo sua renda legítima durante o exercício de suasfunções e que não possa justificar razoavelmente.

Entre os Estados Partes que tenham tipificado o delito de enriqueci-mento ilícito, este será considerado um ato de corrupção para os propósi-tos desta Convenção.

O Estado Parte que não tenha tipificado o enriquecimento ilícito pres-tará a assistência e cooperação previstas nesta Convenção relativamentea este delito, na medida em que o permitirem as suas leis.

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Artigo X

Notificação

Quando um Estado Parte adotar a legislação a que se refere o parágra-fo l dos artigos VIII e IX, notificará o Secretário-Geral da Organizaçãodos Estados Americanos, que, por sua vez, notificará os demais EstadosPartes. Os delitos de suborno transnacional e de enriquecimento ilícito,no que se refere a este Estado Parte, serão considerados atos de corrupçãopara os propósitos desta Convenção a partir de 30 dias, contados da datada referida notificação.

Artigo XI

Desenvolvimento Progressivo

l. A fim de impulsionar o desenvolvimento e a harmonização das legis-lações nacionais e a consecução dos objetivos desta Convenção, os Esta-dos Partes julgam conveniente considerar a tipificação das seguintes con-dutas em suas legislações e a tanto se comprometem:

a. o aproveitamento indevido, em benefício próprio ou deterceiros, por parte do funcionário público ou pessoa noexercício de funções públicas de qualquer tipo de infor-mação reservada ou privilegiada da qual tenha tomadoconhecimento em razão ou por ocasião do desempenhoda função pública;

b. o uso ou aproveitamento indevido, em benefício próprioou de terceiros por parte de funcionário público ou pes-soa que exerça funções públicas de qualquer tipo de bensdo Estado ou de empresas ou instituições em que estetenha parte aos quais tenha tido acesso em razão ou porocasião do desempenho da função;

c. toda ação ou omissão realizada por qualquer pessoa que, porsi mesma ou por interposta pessoa, ou atuando como inter-mediária, procure a adoção, por parte da autoridade públi-ca, de uma decisão em virtude da qual obtenha ilicitamen-te, para si ou para outrem, qualquer benefício ou proveito,haja ou não prejuízo para o patrimônio do Estado; e

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d. o desvio de bens móveis ou imóveis, dinheiro ou valorespertencentes ao Estado para fins não relacionados comaqueles aos quais se destinavam a um organismo des-centralizado ou a um particular, praticado, em benefíciopróprio ou de terceiros, por funcionários públicos que ostiverem recebido em razão de seu cargo, para adminis-tração, guarda ou por outro motivo.

2. Entre os Estados Partes que os tenham tipificado, estes delitos serãoconsiderados atos de corrupção para os propósitos desta Convenção.

3. O Estado Parte que não tiver tipificado qualquer dos delitos definidosneste artigo prestará a assistência e cooperação previstas nesta Convençãorelativamente a esses delitos, na medida em que o permitirem as suas leis.

Artigo XII

Efeitos sobre o patrimônio do Estado

Para os fins desta Convenção, não será exigível que os atos de corrup-ção nela descritos produzam prejuízo patrimonial para o Estado.

Artigo XIII

Extradição

1. Este artigo será aplicado aos delitos tipificados pelos Estados Partesde conformidade com esta Convenção.

2. Cada um dos delitos a que se aplica este artigo será consideradocomo incluído entre os delitos que dão lugar a extradição em todo trata-do de extradição vigente entre os Estados Partes. Os Estados Partes com-prometem-se a incluir esses delitos como base para a concessão da extra-dição em todo tratado de extradição que celebrarem entre si.

3. Se um Estado Parte que subordinar a extradição à existência de umtratado receber uma solicitação de extradição de outro Estado Parte como qual não estiver vinculado por nenhum tratado de extradição, poderáconsiderar esta Convenção como a base jurídica da extradição em rela-ção aos delitos a que se aplica este artigo.

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4. Os Estados Partes que não subordinarem a extradição à existênciade um tratado reconhecerão os delitos a que se aplica este artigo comodelitos suscetíveis de extradição entre si.

5. A extradição estará sujeita às condições previstas pela legislação doEstado Parte requerido ou pelos tratados de extradição aplicáveis, incluí-dos os motivos pelos quais o Estado Parte requerido pode recusar a extra-dição.

6. Se a extradição solicitada em razão de um delito a que se apliqueeste artigo foi recusada baseando-se exclusivamente na nacionalidadeda pessoa reclamada, ou por o Estado Parte requerido considerar-se com-petente, o Estado Parte requerido submeterá o caso a suas autoridadescompetentes para julgá-lo, a menos que tenha sido acordado em contrá-rio com o Estado Parte requerente, e o informará oportunamente do seuresultado final.

7. Sem prejuízo do disposto em seu direito interno e em seus tratadosde extradição, o Estado Parte requerido, por solicitação do Estado Parterequerente, poderá depois de certificar-se de que as circunstâncias o jus-tificam e têm caráter urgente proceder à detenção da pessoa cuja extra-dição se solicitar e que se encontrar em seu território, ou adotar outrasmedidas adequadas para assegurar seu comparecimento nos trâmites deextradição.

Artigo XIV

Assistência e cooperação

1. Os Estados Partes prestarão a mais ampla assistência recíproca, emconformidade com suas leis e com os tratados aplicáveis, dando curso àssolicitações emanadas de suas autoridades que, de acordo com seu direi-to interno, tenham faculdades para investigar ou processar atos de cor-rupção definidos nesta Convenção, com vistas à obtenção de provas e àrealização de outros atos necessários para facilitar os processos e as dili-gências ligadas à investigação ou processo penal por atos de corrupção.

2. Além disso, os Estados Partes prestarão igualmente a mais amplacooperação técnica recíproca sobre as formas e métodos mais efetivos paraprevenir, detectar, investigar e punir os atos de corrupção. Com esta fina-

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lidade, facilitarão o intercâmbio de experiências por meio de acordos ereuniões entre os órgãos e instituições competentes e dispensarão aten-ção especial às formas e métodos de participação civil na luta contra acorrupção.

Artigo XV

Medidas sobre bens

1. Em conformidade com as legislações nacionais aplicáveis e os trata-dos pertinentes ou outros acordos que estejam em vigor entre eles, osEstados Partes prestarão mutuamente a mais ampla assistência possívelpara identificar, localizar, bloquear, apreender e confiscar bens obtidos ouprovenientes da prática dos delitos tipificados de acordo com esta Con-venção, ou os bens usados para essa prática, ou o respectivo produto.

2. O Estado Parte que executar suas próprias sentenças de confisco,ou as sentenças de outro Estado Parte, a respeito dos bens ou produtosmencionados no parágrafo anterior deste artigo, disporá desses bens ouprodutos segundo sua própria legislação. Na medida em que o permitiremsuas leis e nas condições que considere adequadas, esse Estado Partepoderá transferir esses bens ou produtos, total ou parcialmente, para ou-tro Estado Parte que tenha prestado assistência na investigação ou nasdiligências judiciais conexas.

Artigo XVI

Sigilo bancário

l. O Estado Parte requerido não poderá negar-se a proporcionar a assis-tência solicitada pelo Estado Parte requerente alegando sigilo bancário.Este artigo será aplicado pelo Estado Parte requerido em conformidade comseu direito interno, com suas disposições processuais e com os acordos bila-terais ou multilaterais que o vinculem ao Estado Parte requerente.

2. O Estado Parte requerente compromete-se a não usar informaçõesprotegidas por sigilo bancário que receba para propósito algum que não odo processo que motivou a solicitação, salvo com autorização do EstadoParte requerido.

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Artigo XVII

Natureza do Ato

Para os fins previstos nos artigos XIII, XIV, XV e XVI desta Conven-ção, o fato de os bens provenientes do ato de corrupção terem sido desti-nados a finalidades políticas ou a alegação de que um ato de corrupçãofoi cometido por motivações ou finalidades políticas não serão suficien-tes, por si sós, para considerá-lo como delito político ou como delito co-mum vinculado a um delito político.

Artigo XVIII

Autoridades centrais

1. Para os propósitos da assistência e cooperação internacionais previs-tas nesta Convenção, cada Estado Parte poderá designar uma autoridadecentral ou utilizar as autoridades centrais previstas nos tratados pertinen-tes ou outros acordos.

2. As autoridades centrais estarão encarregadas de formular e receberas solicitações de assistência e cooperação a que se refere esta Convenção.

3. As autoridades centrais comunicar-se-ão de forma direta para osefeitos desta Convenção.

Artigo XIX

Aplicação no Tempo

Sem prejuízo dos princípios constitucionais, do ordenamento jurídicointerno de cada Estado e dos tratados vigentes entre os Estados Partes, ofato de o presumido ato de corrupção ter sido cometido antes desta Con-venção entrar em vigor não impedirá a cooperação processual em assun-tos criminais, entre os Estados Partes. Esta disposição não afetará em casoalgum o princípio da não retroatividade da lei penal nem sus aplicaçãointerromperá os prazos de prescrição que estejam correndo em relaçãoaos delitos anteriores à data da entrada em vigor desta Convenção.

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Artigo XX

Outros acordos ou práticas

Nenhuma das normas desta Convenção será interpretada no sentidode impedir que os Estados Partes prestem, reciprocamente, cooperaçãocom base no previsto em outros acordos internacionais, bilaterais ou mul-tilaterais, vigentes ou que forem celebrados no futuro entre eles, ou emqualquer outro acordo ou prática aplicável.

Artigo XXI

Assinatura

Esta Convenção ficará aberta à assinatura dos Estados membros daOrganização dos Estados Americanos.

Artigo XXII

Ratificação

Esta Convenção está sujeita a ratificação. Os instrumentos de ratifi-cação serão depositados na Secretaria-Geral da Organização dos EstadosAmericanos.

Artigo XXIII

Adesão

Esta Convenção ficará aberta à adesão de qualquer outro Estado. Osinstrumentos de adesão serão depositados na Secretaria-Geral da Orga-nização dos Estados Americanos.

Artigo XXIV

Reserva

Os Estados Partes poderão formular reservas a esta Convenção no

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momento de aprová-la, assiná-la, ratificá-la ou a ela aderir, desde quesejam compatíveis com o objeto e propósitos da Convenção e versem so-bre uma ou mais disposições específicas.

Artigo XXV

Entrada em vigor

Esta Convenção entrará em vigor no trigésimo dia a partir da data emque haja sido depositado o segundo instrumento de ratificação. Para cadaEstado que ratificar a Convenção ou a ela aderir depois de haver sidodepositado o segundo instrumento de ratificação, a Convenção entraráem vigor no trigésimo dia a partir da data em que esse Estado haja depo-sitado seu instrumento de ratificação ou de adesão.

Artigo XXVI

Denúncia

Esta Convenção vigorará por prazo indefinido, mas qualquer dos Esta-dos Partes poderá denunciá-la. O instrumento de denúncia será deposi-tado na Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos. Trans-corrido um ano da data do depósito do instrumento de denúncia, os efei-tos da Convenção cessarão para o Estado denunciante, mas subsistirãopara os demais Estados Partes.

Artigo XXVII

Protocolos adicionais

Qualquer Estado Parte poderá submeter à consideração dos outrosEstados Partes, por ocasião de um período de sessões da Assembléia Geralda Organização dos Estados Americanos, projetos de protocolos adicio-nais a esta Convenção, com a finalidade de contribuir para a consecuçãodos propósitos relacionados no artigo II.

Cada protocolo adicional estabelecerá as modalidades de sua entradaem vigor e será aplicado somente entre os Estados Partes nesse protocolo.

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Artigo XXVIII

Depósito do instrumento original

O instrumento original desta Convenção, cujos textos em português,espanhol, francês e inglês são igualmente autênticos, será depositado naSecretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, que enviarácópia autenticada do seu texto ao Secretariado das Nações Unidas, paraseu registro de publicação, de conformidade com o artigo 102 da Cartadas Nações Unidas. A Secretaria-Geral da Organização dos EstadosAmericanos notificará aos Estados membros da referida Organização eaos Estados que houverem aderido à Convenção as assinaturas e os depó-sitos de instrumentos de ratificação, adesão e denúncia, bem como asreservas eventualmente formuladas.

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Normas Editoriais

I. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS

1. Os artigos devem ser apresentados em disquete, preferencial-mente em Windows Word 6.0 ou superior, acompanhados deuma cópia impressa.

2. O texto dos artigos deverá ter de 10 a 20 laudas, em média.

3. Um resumo de seis a dez linhas, em língua inglesa e em línguaportuguesa, deverá introduzir o artigo, juntamente com pala-vras-chave indicativas de seu conteúdo.

4. A apresentação do artigo deverá conter: identificação, com tí-tulo; subtítulo ( se houver); nome do(s) autor(es); maiortitulação acadêmica ou outra, cargo atual e instituição ondeexerce as funções; telefone e endereço; e-mail, se for o caso.

5. As citações, referências bibliográficas e notas de rodapé deve-rão seguir, obrigatoriamente, as normas da ABNT. As citações,no texto, deverão ser feitas em língua portuguesa, reservando-se as citações em língua estrangeira para as notas de rodapé, sefor o caso. Excepcionalmente, a critério do Conselho Editorial edos editores, serão aceitos artigos em espanhol ou citações, notexto, nesta língua, por ser ela comum aos países do Mercosul.

6. Artigos em outra língua estrangeira poderão ser aceitos, a juízodo Conselho Editorial e dos editores, se o autor for estrangeiro esua contribuição de indiscutível valor científico.

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II. PUBLICAÇÃO

1. Os trabalhos remetidos para publicação serão submetidos à apre-ciação do Conselho Editorial ou de outros consultores por estedesignados, de acordo com as especificidades do tema.

2. O Conselho Editorial não se responsabiliza pela devolução dosoriginais.

3. Havendo necessidade de alterações quanto ao conteúdo do tex-to, será sugerido ao autor que as faça, para posterior publicação.Adeqüação lingüística e copidescagem ficam a cargo dos edito-res, ressalvada a alteração de conteúdo.

4. Os autores, cujos trabalhos forem publicados, receberão doisexemplares da Revista e cinco separatas.

5. Os trabalhos devem ser encaminhados para:

Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo, EditorRevista Direito e DemocraciaUniversidade Luterana do BrasilCurso de DireitoRua Miguel Tostes, 101 - Prédio 1, sala 2992420-280 - Canoas/RS - BrasilE-mail: [email protected]

[email protected]

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