Direito de Construir - Helly Lopes Meirelles - 2005

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■Íífl Hely Lopes Meirelles DIREITO DE CONSTRUIR 9â edição atualizada por E urico de A ndrade A zevedo , A pilson A breu D allari e D aniela L ibório D i S arno N.Cham 342.1242 M514d 9. ed. / 2005 Autor: Meirelles, Hely Lopes, Título: Direito de construir. 405332. Ex.7 IPM UPM-DI Ac. 162405

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■Íífl

Hely Lopes Meirelles

DIREITODE

CONSTRUIR9â edição atualizada por

E urico de A ndrade A zeved o , A p il so n A breu D alla ri e D aniela L ibório D i S arno

N.Cham 342.1242 M514d 9. ed. / 2005 Autor: Meirelles, Hely Lopes,Título: Direito de construir.

405332. Ex.7 IPM UPM-DI

Ac. 162405

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DIREITO DE CONSTRUIR

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HELY LOPES MEIRELLES

DIREITO DE CONSTRUIR9a edição,

atualizada por

EURICO DE ANDRADE AZEVEDO, ADILSON ABREU DALLARI

e DANIELA LIBÓRIO Dl SARNO

com a colaboração de JOAQUIM DA ROCHA MEDEIROS JÚNIOR

e PAULO GRANDISKI

&

E. = . MALHEIROS =V=EDITORES

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DIREITO DE CONSTRUIRHely Lopes M eirelles

© 1 9 9 0 - V e r a l ic e C e l id o n io L o pe s M e ir el les

â005 e . ' * -

3 $

Composição: PC Editorial Ltda.

Capa: Nadia Basso Arte: PC Editorial Ltda.

I a edição, 1961; 2a edição, 1965; 3a edição, 1979; 4a edição, 1983; 5a edição, 1987; 6a edição, 1994;

7a edição, 1996; 8a edição, 2000.

ISB N 85-7420-678-4

Direitos reservados desta edição por MALHE1ROS EDITORES LTDA.

Rua Paes de Araújo, 29, conjunto 171 CEP 04531-940 — São Paulo — SP

Tel.: (Oxxll) 3078-7205 Fax: (Oxxll) 3168-5495

URL: www.malheiroseditores.com.br e-mail: [email protected]

Impresso no Brasil Printed in Brazil

0 8 - 2 0 0 5

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HOM ENAGEM

Ao meu pai, a quem prometi editar seus livros sempre atualizados. Primeiro porque acredito que isso contribuirá para o Direito Público Bra­sileiro; segundo porque essa é a forma de senti-lo vivo e ainda presente.

Meu pai, eterno professor.Meu pai, amigo dos amigos, da família, dos empregados, dos vizi­

nhos e até dos inimigos...Meu pai, homem de caráter, homem de convicções, homem sem preço.Meu pai, poeta na juventude, inteligente, vivo e espirituoso.Meu pai, silencioso na dor, humilde nas homenagens.Meu pai, apoio nos acertos e nos desacertos.Meu pai, que adorava plantas e animais.Meu pai, que acreditava no nosso Pais.Meu pai, trabalhador até a morte.A este homem, que sempre teve fé na vida, amor pelas pessoas, pelo

trabalho e pelo Brasil,Ao ser humano que muito lutou contra os seus defeitos e evoluiu,A ele, que deixou um vazio enorme aos que o conheceram,A ele, que tinha tanta luz e um sorriso tão doce...O meu amor eterno.

São Paulo, agosto de 1990 V er a l ic e C e l id o n io L o pe s M eir e l l e s

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NOTA PRÉVIA

Esta nova edição do Direito de Construir demorou a vir a lume por dois fatos relevantes que ocorreram depois da última edição. O primeiro foi a promulgação da Lei 10.257, em 10 de julho de 2001, que aprovou o Estatuto d a Cidade. E o segundo foi a aprovação do novo Código Civil pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e que entrou em vigor, um ano depois. Ambas levaram muitos anos para serem aprovadas pelo Congresso Nacional.

O Estatuto da Cidade tem sua origem remota no Projeto de Lei 775, de 1983, cuja iniciativa foi do Poder Executivo, depois de longas discus­sões no Conselho Nacional de D esenvolvim ento Urbano, a partir de texto original apresentado àquele órgão por E ly Lopes M eire lle s , por este atua- lizador e pelos urbanistas Jorge Guilherm e Francisconi e M ilitâ o de M o­raes R icardo, secretários-executivos daquele Conselho. Com o advento da Constituição de 1988, o Poder Executivo acabou retirando o referido Pro­jeto do Congresso. Posteriormente, o deputado Raul Ferraz apresentou o Projeto 2 .191/1989 na Câmara dos Deputados, que ali passou a tramitar. N o ano seguinte, o senador Pompeu de Souza ofereceu ao Senado o Proje­to 5 .788/1990, já agora com o nom e de Estatuto da Cidade. Obtida sua aprovação no Senado, foi enviado à Câmara, onde lhe foram apensados o Projeto 2 .191 /1989 e inúmeras outras proposições. Substitutivos foram apresentados pelas C om issões do M eio Am biente, de D esenvolvim ento Ur­bano e de Constituição e Justiça e de Redação, até ser aprovado pelo Ple­nário e enviado à sanção do Executivo. O grande mérito dessa tramitação foi a possibilidade de intensa participação da sociedade civ il, promovida, sobretudo, pela C om issão de D esenvolvim ento Urbano por todo o Brasil.1

Uma lei nacional sobre o desenvolvimento urbano era há muito rei­vindicada, principalmente depois de a Constituição de 1988 ter outorgado à União competência expressa para legislar sobre direito urbanístico, ainda que concorrentemente com os Estados (art. 24, I). O Estatuto da Cidade

1. Para um relato mais detalhado sobre a “História do Estatudo da Cidade”, consulte- se o trabalho de Mariana Moreira in Estatuto da Cidade, de vários autores, coordenado por Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz, Malheiros Editores, São Paulo, 2002, p. 27.

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8 DIREITO DE CONSTRUIR

veio possibilitar aos Municípios criar instrumentos (principalmente jurídi­cos) para atuar sobre a utilização, ou não utilização, do solo urbano de for­ma a poder assegurar a sua função social (art. 5C, XXIII). Por essa razão, adicionamos um item especial sobre a matéria (Cap. 4, sobre “Limitações Administrativas ao Direito de Construir”, item 4: “O Estatuto da Cidade”).

O Código Civil de 2002 ampliou consideravelmente o conceito de res­ponsabilidade objetiva, com ampla repercussão no campo da atividade da construção civil e das responsabilidades dela decorrentes. Isto nos obrigou, inclusive, a examinar a inter-relação entre as normas civis e aquelas do Có­digo de Defesa do Consumidor, também aplicáveis ao contrato de constru­ção no caso de existir uma relação de consumo (Cap. 8).

Por outro lado, diante da responsabilidade objetiva do construtor, cres­ceu a importância da perícia judicial para a verificação da relação causai entre os danos sofridos pela obra e os eventuais vícios ou defeitos de sua construção, uma vez que a apuração da culpa do construtor fica, em regra, afastada.

Para fazer frente a todos esses desafios, solicitamos a colaboração do Prof. A d il s o n A b r e u D a l l a r i, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e responsável pelo Curso de Mestrado em Direito Urbanístico da mesma Universidade, e da Profa. D a n ie l a L ib ó r io D i S a r ­

n o , mestre e doutora em Direito Urbanístico e professora na mesma Uni­versidade Católica. Ambos atenderam prontamente à nossa solicitação em homenagem ao Autor, com quem o Prof. A d il s o n também trabalhou. Na divisão de responsabilidades, coube à Profa. D a n ie l a a atualização dos ca­pítulos 1, 2, 3 e 7; ao Prof. A d il s o n os capítulos 4, 5 e 6; e a mim os capítu­los restantes 8, 9 e 10.

No que diz respeito às perícias judiciais e às responsabilidades decor­rentes da construção, contamos ainda com a preciosa ajuda dos ilustres En­genheiros Jo a q u im d a R o c h a M e d e ir o s Jú n io r e P a u l o G r a n d is k i , princi­palmente deste último, que vem ministrando cursos de pós-graduação, so­bre perícias em edificações, a engenheiros de todo o País.

A despeito dos esforços realizados, é evidente que eventuais omissões ou falhas serão notadas, pelas quais desde já pedimos escusas ao leitor, ao mesmo tempo em que lhe solicitamos sugestões para o aperfeiçoamento do trabalho.

São Paulo, setembro de 2000 E u r ic o d e A n d r a d e A z e v e d o

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SUMÁRIO

Capítulo 1 - CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE1. O direito de propriedade......................................................... 192. O domínio no Código Civil de 2002...................................... 203. O condomínio.......................................................................... 214. A posse..................................................................................... 245. O solo e as riquezas naturais................................................... 256. O espaço aéreo......................................................................... 267. Posição atual do direito de propriedade.................................. 27

Capítulo 2 - 0 DIREITO DE CONSTRUIR E SEUS LIMITES1. O fundamento do direito de construir.................................... 302. A liberdade de construir.......................................................... 313. O conceito de normalidade no direito de construir............... 324. A proteção à segurança, ao sossego e à saúde dos vizinhos.. 36

4.1 Segurança......................................................................... 374.2 Sossego............................................................................ 394.3 Saúde................................................................................. 41

5. A proteção ao bem-estar social............... ............................... 426. A construção de habitações populares.................. ................ 44

Capítulo 3 - RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA AO DIREITO DE CONSTRUIR1. Generalidades.................... ........................................................ 47

1.1 Vizinhança....................................................................... 481.2 Restrição de vizinhança................................................ 481.3 Relatório de Impacto de Vizinhança............................. 51

2. Restrições legais de vizinhança.............................................. 512.1 Limites entre prédios ...................................................... 512.2 Distância entre construções.......................................... 532.3 Tapumes divisórios: muros e cercas............................ 55

2.3.1 Tapume................................................................ 562.3.2 Muro divisório..................................................... 572.3.3 Cerca divisória..................................................... 58

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10 DIREITO DE CONSTRUIR

2.4 Paredes divisórias............................................................ 582.4.1 Paredes translúcidas........................................... 61

2.5 Invasão de área vizinha. Janela. Eirado. Terraço.Varanda. Abertura para luz............................................. 612.5.1 Invasão de área................................................... 622.5.2 Telhado................................................................ 632.5.3 Janela, eirado, terraço, varanda......................... 632.5.4 Abertura para luz e ventilação........................... 64

2.6 Armários embutidos. Aparelhos térmicos e higiênicos.Substâncias corrosivas...................................... .............. 65

2.7 Árvores limítrofes............................................................ 672.8 Águas pluviais, correntes e subterrâneas....................... 682.9 Construções prejudiciais à vizinhança........................... 742.10 Entrada em prédio vizinho para construções, reparações

e limpeza.......................................................................... 762.11 Passagem forçada............................................................. 772.12 Restrições especiais de condomínio edilício.................. 79

3. Restrições convencionais de vizinhança................................ 803.1 Restrições individuais..................................................... 813.2 Restrições gerais.............................................................. 81

4. Construções em desacordo com as restrições de vizinhança4.1 Demolição......................................................................... 834.2 Indenização....................................................................... 844.3 Ações cabíveis................................................................. 86

Capitulo 4 - LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS AO DIREITO DE CONSTRUIR1. Generalidades........................................................................... 87

1.1 Conceito de limitação administrativa.............................. 891.2 Natureza jurídica das limitações administrativas........... 911.3 As limitações administrativas como fonte de direito

subjetivo para os vizinhos.............................................. 931.4 O poder de polícia como fundamento das limitações

administrativas................................................................ 982. As principais limitações administrativas................................ 107

2.1 Limitações urbanísticas.................................................... 1072.1.1 Natureza das limitações urbanísticas................. 1072.1.2 Plano Diretor....................................................... 1142.1.3 Regulamentação edilícia..................................... 1172.1.4 Delimitação da zona urbana............................... 1192.1.5 Traçado urbano.................................................... 120

2.1.5.1 Arruamento......................................... 120

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2.1.5.2 Alinhamento........................ ............... 1212.1.5.3 Nivelamento........................................ 1222.1.5.4 Circulação........................................... 1232.1.5.5 Salubridade......................................... 1232.1.5.6 Segurança............................................ 1232.1.5.7 Funcionalidade.................................... 124

2.1.6 Uso e ocupação do solo urbano....................... 1252.1.7 Zoneamento...................................................... 1272.1.8 Loteamento....................................................... 1332.1.9 Estética urbana................................................. 139

2.2 Limitações de higiene e segurança................................. 1412.3 Limitações militares........................................................ 149

3. Patrimônio histórico e tombamento3.1 Patrimônio histórico........................................................ 1503.2 Tombamento.................................................................... 151

3.2.1 Processo............................................................. 1533.2.2 Indenização........................................................ 1553.2.3 Omissão............................................................. 156

4. O Estatuto da Cidade............................................................... 1574.1 Instrumentos de planejamento........................................ 1584.2 Instrumentos tributários.................................................. 1594.3 Instrumentos jurídicos..................................................... 160

4.3.1 Desapropriação.................................................. 1614.3.2 Servidão administrativa.................................... 1614.3.3 Limitações administrativas............................... 1624.3.4 Tombamento de imóveis ou de mobiliário

urbano................................................................. 1624.3.5 Instituição de unidades de conservação........... 1624.3.6 Instituição de zonas especiais de interesse

social................................................................... 1624.3.7 Concessão de direito real de u so ..................... 1634.3.8 Concessão de uso especial para fins de moradia 1644.3.9 Parcelamento, edificação ou utilização

compulsórios..................................................... 1654.3.10 Usucapião especial de imóvel urbano............. 1664.3.11 Direito de superfície......................................... 1674.3.12 Direito de preempçao....................................... 1674.3.13 Outorga onerosa do direito de construir e de

alteração de u so ................................................. 1684.3.14 Transferência do direito de construir............... 1694.3.15 Operações urbanas consorciadas...................... 1694.3.16 Regularização fundiária.................................... 170

SUMÁRIO 11

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12 DIREITO DE CONSTRUIR

4.3.17 Assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos

4.3.18 Referendo popular e plebiscito.........................4.3.19 Consórcio imobiliário........................................

4.4 Instrumentos ambientais.................................................4.5 Diretrizes.........................................................................

Capítulo 5 -SERVIDÕESADMINISTRATIVASE DESAPROPRIAÇÃO................................................................1. S erv i d ões adm inistrativas

1.1 Conceito..........................................................................1.2 Instituição........................................................................1.3 Indenização.....................................................................

2. Desapropriação........................................................................2.1 Conceito...........................................................................2.2 Características.................................................................2.3 Requisitos constitucionais..............................................2.4 Normas básicas...............................................................2.5 Casos de desapropriação................................................2.6 Declaração expropriatória..............................................2.7 Processo expropriatório.................................................2.8 Indenização.....................................................................2.9 Pagamento da indenização.............................................2.10 Desvio de Finalidade......... ............................................2.11 Retrocessao.....................................................................2.12 Anulação da desapropriação..........................................2.13 Desistência da desapropriação.......................................2.14 Desapropriação sancionatória........................................

Capitulo 6 - CONTROLE DA CONSTRUÇÃO E PROTEÇÃO AMBIENTAL1. Controle da construção

1.1 Considerações gerais.......................................................1.2 Controle da construção pelo Município........................1.3 Planos urbanísticos..........................................................1.4 Código de Obras.............................................................1.5 Aprovação de projeto......................................................1.6 Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança e Estudo Prévio

de Impacto Ambiental....................................................1.7 Alvará...............................................................................1.8 Embargo de obra.............................................................1.9 Demolição compulsória de ob ra ....................................

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1.9.1 D em olição de obra licen c ia d a ................................ 2191.9.2 D em olição de obra clandestina............................... 2201.9.3 D em olição de obra em ruína.................................... 221

2. Proteção am biental.................... .......................................................... 2222.1 Controle da p o lu ição ............................................................... 224

Capítulo 7 - CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO E CONTRATOSCONEXOSÀ CONSTRUÇÃO .............................................................. 228

1. Contratos de construção de obra particular1.1 C on ceito ....................................................................................... 2301.2 Caracteres.................................................................................... 2301.3 Partes contratantes................................................................... 2321.4 Execução e inexecução do contrato..................................... 2331.5 Contratos de construção “in specie”

1.5.1 Contrato de construção por em preitada............... 235

SUMÁRJO 13

1.5.1.1 Disposições legais sobre a empreitada 2361.5.1.2 Obrigações das partes entre si e perante

terceiros.............................................. 2391.5.1.3 Riscos da execução da empreitada .... 2411.5.1.4 Execução, entrega e recebimento da

obra empreitada.................................. 2431.5.1.5 F ixação e pagamento do preço da

empreitada.......................................... 2451.5.1.6 Direito de retenção do empreiteiro-

construtor............................................ 2481.5.1.7 Acréscimos nas obras empreitadas .... 2491.5.1.8 Modificações no projeto original...... 2511.5.1.9 Suspensão da construção pelo

empreitador......................................... 2521.5.1.10 Suspensão da construção pelo

e m p re i te iro ..................................... 2531.5.1.11 Extinção do contrato de empreitada .. 255

1.5.2 Contrato de construção por administração........ 2552. Contratos de construção de obra pública............................... 258

2.1 Contrato de empreitada.................................................. 2602.1.1 Modalidades....................................................... 2602.1.2 Caracteres............................................................ 2622.1.3 Riscos da execução............................................. 264

2.2 R egim e de tarefa ............................................................. 2653. Contratos conexos à construção.............................................. 266

3.1 Contrato de projeto e de fiscalização de obra.............. 2663.1.1 Contrato de projeto............................................. 267

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14 DIREITO DE CONSTRUIR

3.1.2 Contrato de fiscalização.................................... 2683 .1.3 Contrato de projeto e fiscalização de obra........ 269

3.2 Contrato de financiamento de construção...................... 2703.3 Contrato de trabalho para obra certa.............................. 2703.4 Contrato de incorporação de condomínio..................... 2723.5 Contrato de gerenciamento............................................. 275

Capítulo 8 - RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO

1. Considerações gerais............................................................... 2771.1 Fundamentos da responsabilidade................................. 2781.2 Fontes de responsabilidade............................................. 2801.3 Causas de isenção de responsabilidade.......................... 28 í1.4 Responsabilidade civil em geral.................................... 2831.5 Responsabilidade contratual do construtor.................... 2861.6 A responsabilidade civil no Código de Defesa do

Consumidor..................................................................... 2882. Responsabilidades decorrentes da construção...................... 291

2.1 Responsabilidade pela perfeição da obra no CódigoCivil.................................................. ............................... 292

2.2 Responsabilidade pela perfeição da obra no Código deDefesa do Consumidor................................................... 298

2.3 Responsabilidade pela solidez e segurança da obra noCódigo Civil.................................................................... 300

2.4 Responsabilidade pela solidez e segurança da obra noCódigo de Defesa do Consumidor................................ 310

2.5 Informações do construtor e obrigações do consumidor 3112.6 Responsabilidade por danos a vizinhos e terceiros

2.6.1 Danos avizinhos............................................... 3142.6.2 Danos a terceiros.............................................. 3162.6.3 Responsabilidades da Administração por danos

a vizinhos e terceiros......................................... 3212.7 Responsabilidade ético-profissional............................. 3242.8 Responsabilidades trabalhista e previdenciária............ 3282.9 Responsabilidade por fornecimentos............................ 3292.10 Responsabilidade por tributos........................................ 3322.11 Responsabilidade administrativa.................................... 3332.12 Responsabilidade penal por desabamento.................... 336

2.12.1 Crime de desabamento...................................... 3372.12.2 Contravenção de desabamento........................ 3402.12.3 Contravenção de perigo de desabamento........ 341

2.13 Responsabilidade por construção clandestina............... 342

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Capítulo 9 - AÇÕES DE VIZINHANÇA E PERÍCIAS JUDICIAIS .. 3461. AçÕes de vizinhança................................................................. 347

1.1 Ação de indenização de danos de vizinhança... 3471.2 Ação de nunciação de obra nova....................... 3511.3 Ação demolitória e caução de dano iminente... 354

1.3.1 Ação demolitória................................................... 3541.3.2 Caução de dano iminente...................................... 356

1.4 Ação de construção e conservação de tapumes divisórios 3571.5 Ação de travejamento em parede divisória....... 3581.6 Ação de passagem forçada.................................. 3591.7 Passagem forçada de cabos e tubulações..................... 3611.8 Ação de servidão de água............................................. 3611.9 Ações possessórias........................................................ 3631.10 Ações de demarcação e de divisão................................ 365

1.10.1 Demarcação......................................................... 3661.10.2 Divisão................................................................. 367

1.11 Ações de condomínio.................................................... 3691.11.1 Venda, locação e administração da coisa comum 3691.11.2 Venda de quinhão em coisa comum.................. 3701.11.3 Outras ações de condomínio............................. 370

1.12 Ações de loteamento....................................................... 3711.12.1 Impugnação....................................................... 3721.12.2 Dúvida................................................................ 3721.12.3 Adjudicação compulsória................................. 373

1.13 Pedido cominatório ........................................................ 3751.13.1 Pelo vizinho....................................................... 3751.13.2 Pela Administração............................................ 3771.13.3 Contra a Administração.................................... 378

2. Perícias judiciais...................................................................... 3792A Generalidades................................................................. 379

2.1.1 Perícia................................................................. 3802.1.2 Perito.................................................................. 3812.1.3 Laudo.................................................................. 383

2.2 Exame judicial............................................................... 3862.3 Vistoria judicial.............................................................. 3872.4 Avaliação judicial........................................................... 388

2.4.1 Conceito de avaliação........................................ 3882.4.2 Determinação do valor pela avaliação............. 3902.4.3 Métodos de avaliação........................................ 3942.4.4 Avaliação de imóveis.......................... .............. 3982.4.5 Imóveis urbanos................................................. 4002.4.6 Imóveis rurais.................................................... 402

SUMÁRIO 15

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16 DIREITO DE CONSTRUIR

2.4.7 Empreendimentos.............................................. 4022.4.8 Outras avaliações....................... ....................... 403

Capítulo 10- A CONSTRUÇÃO CIVIL E A REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL1. Considerações gerais sobre a construção

1.1 Origens e evolução da construção.................................. 4061.2 A construção civ il........................................................... 4071.3 Normas técnicas da construção civil.............................. 4101.4 Normas legais da construção......................................... 414

2. A construção civil como atividade técnico-econômica......... 4162.1 O aspecto técnico............................................................. 4172.2 O aspecto econômico....................................................... 418

3. A regulamentação profissional3.1 A formação dos profissionais da construção civil......... 4233.2 Antecedentes da regulamentação profissional............... 4253.3 O Decreto 23.569/1933 e a Lei 5.194/1966 .................. 4263.4 O Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e

Agronomia...................................................................... 4273.5 Os Conselhos Regionais................................................... 4323.6 O Código de Ética Profissional....................................... 434

4. Os profissionais da construção civil........................................ 4354.1 Engenheiros...................................................................... 4364.2 Arquitetos.......................................................................... 4374.3 Agrônomos........................................................................ 4394.4 Técnicos de nível superior.............................................. 4404.5 Técnicos de 2a grau.......................................................... 4414.6 Encarregados e mestres-de-obras.................................... 442

APÊNDICE DE LEGISLAÇÃOCONSTITUIÇÃO DE 1988 ......................................................... ........................... 447

CÓDIGO CIVIL (DE 2002) (Disposições referentes ao direito de construir).... 449

LEI 5.194, DE 24 DE DEZEMBRO DE 1966 (Regula o exercício das pro­fissões de Engenheiro, Arquiteto e Engenheiro-Agrônomo, e dá outras providências)....................................................................................................... 457

LEI 6.496, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1977 (Institui a “Anotação de Res­ponsabilidade Técnica” na prestação de serviços de engenharia, de ar­quitetura e agronomia; autoriza a criação pelo Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CONFEA de uma Mútua de Assistência Profissional, e dá outras providências)...................................... 470

índice Alfabético-Remissivo................................................................. 471

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ABREVIATURAS E SIGLAS USADAS

ABNT - Associação Brasileira de Normas TécnicasAJ - Arquivo JudiciárioCONFEA - Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e AgronomiaCLT - Consolidação das Leis do TrabalhoCPC - Código de Processo CivilCREA - Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e AgronomiaDJU - Diário da Justiça da UniãoDOU - Diário Oficial da UniãoJUSTITIA - Revista do Ministério Público de São PauloMJ - Minas JudiciáriaMS - Mandado de segurançaRD - Revista 0 DireitoRDÀ - Revista de Direito Administrativo (RJ)RDM - Revista de Direito MunicipalRDI - Revista de Direito Imobiliário (SP)RDP - Revista de Direito Público (SP)RDPG - Revista de Direito da Procuradoria-Gera! (RJ)RE - Recurso extraordinárioREsp - Recurso especialRF - Revista Forense (RJ)RJSTJ - Revista de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (LEX)RPGE-RS Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do SulRPGE-SP - Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo-SPRSTF - Revista do Supremo Tribunal FederalRT - Revista dos Tribunais (SP)RTDP - Revista Trimestral de Direito PúblicoRTFR - Revista do Tribunal Federal de Recursos (DF)RTJ - Revista Trimestral de Jurisprudência (DF)STF - Supremo Tribunal FederalSTJ - Superior Tribunal de JustiçaTA - Tribunal de AlçadaTFR - Tribunal Federal de RecursosTJ - Tribunal de Justiça

NotasConsidera-se implicitamente incluído o Distrito Federal nas citações referentes à com­

petência dos Estados e Municípios, nos termos do art. 32, § Ia, da Constituição Federal.Nas citações de livros e revistas, o primeiro número indica o volume, e o segundo,

após a barra, a página.Para facilidade de consulta, repetimos a indicação de acórdãos quando publicados em

diversas revistas.Na indicação de acórdãos da Justiça estadual, aditamos à sigla do Tribunal a do Esta­

do a que pertence.

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Capitulo 1

CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O DIREITO D E PROPRIEDADE

I. O DIREITO DE PROPRIEDADE. 2. O DOMÍNIO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002. S. O CONDOMÍNIO. 4. A POSSE. 5. O SOLO E AS RIQUEZAS NATURAIS. 6. O ESPAÇO AÉREO. 7. POSIÇÃO ATUAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE.

L O DIREITO DE PROPRIEDADE

O direito de propriedade é o que afeta diretamente as coisas cor- póreas - móveis ou imóveis —, subordinando-as à vontade do homem. Daí ser classificado como direito real, em oposição a direito pessoal, concernente às prestações a que as pessoas se obrigam mutuamente. Diz-se que o direito de propriedade é real, no sentido de que incide imediatamente sobre a coisa (do latim res, rei) e a segue em todas as suas mutações, diversamente do direito pessoal, que vincula as pessoas entre si, para prestações individuais, que constituem as obrigações.

Por direito real se alienam, se adquirem ou se oneram coisas; por direito pessoal se obtêm prestações das próprias pessoas que se obri­gam para com outras.

O nosso Código Civil, seguindo a tradição romana,1 fornece os elementos do direito de propriedade, ao estabelecer que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (art. 1.228). Este direito de uso, gozo e disponibilidade das coisas, associa­do ao poder de reivindicá-las de quem as detenha injustamente, confi­gura a propriedade, na sua acepção mais ampla.2

1. Os romanos conceituavam o direito de propriedade como o poder de usar, gozar e abusar da coisa sob o seu domínio: ju s utendi, fruendi et abutendi re sua.

2. Cióvis Beviláqua, Código Civil Comentado, ÍII/54 e ss., Rio, 1938; Lafaiete Rodrigues Pereira, Direito das Coisas, 1/97, Rio, 1943; Washington de Barros Mon­teiro, Curso de Direito Civil, 111/89, São Paulo, 1953; Amoldo Wald, Curso de Di­reito Civil Brasileiro, II/l 17 e ss., São Paulo, 1970.

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2. O DOM ÍNIO NO CÓDIGO CIVIL D E 2002

O domínio é considerado pela doutrina clássica como o poder ab­soluto, ilimitado e exclusivo sobre a coisa. Mas é necessário que se tomem estas expressões no seu verdadeiro significado jurídico. O do­mínio (propriedade plena) é absoluto no sentido de que o proprietário pode utilizar-se da coisa sujeita ao seu direito em toda a sua substân­cia, acidentes e acessórios; é ilimitado no sentido de que confere ao proprietário o poder de praticar sobre a coisa, perenemente, todos os atos que lhe aprouver, fruindo-a da maneira mais completa possível, transformando-a, consumindo-a ou alienando-a; é exclusivo no sentido de que afasta da coisa o poder de terceiros, reservando o seu uso, gozo e disponibilidade unicamente ao titular do domínio — o proprietário.3 Conseqüência dessa exclusividade é o poder de reaver a coisa, de quem quer que injustamente a detenha. Daí dizer-se que não há domínio con­tra domínio. O domínio de um afasta o domínio de outro sobre o mes­mo bem.

Entretanto, o Código Civil firma a regra de que “a propriedade presume-se plena e exclusiva até prova em contrário” (art. 1.231), su­primindo o termo “domínio” do texto da lei e substituindo-o por “pro­priedade”, numa clara equivalência de significados.

A propriedade é limitada quando tem ônus real ou é resolúvel.

ônus real é toda restrição que incide diretamente sobre a coisa, traspassando a terceiro parcela do direito de propriedade, como ocorre nos casos em que os bens estão gravados4 com servidão (art. 1.378), com usufruto (art. 1.390), com uso (art. 1.412), com habitação (art. 1.414), com rendas expressamente constituídas sobre imóveis (art. 804), com penhor (art. 1.431), com anticrese (art. 1.506) ou com hipo­teca (art. 1.473).

Propriedade resolúvel ou revogável é a que tem duração limitada, por cláusula expressa no título constitutivo (art. 1.359), ou por força de lei. Verifícando-se a condição resolutiva prevista no título de pro­priedade, ou na lei, a propriedade volta ao antigo dono ou ao seu su­cessor, ou passa a terceiro (art. 1951).

3. Baudry-Lacantinerie e Chaveau, Traitè de Droit Civil, V /l 50 e ss., Paris,1899.

4. O Código Civil de 2002 exclui a figura da enfíteuse (Código Civil de 1916, art. 678). -

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5. O CONDOMÍNIO

O condomínio é o direito de propriedade de duas ou mais pessoas sobre partes ideais de uma mesma coisa indivisa ipro indiviso). “E for­ma anormal de propriedade - como diz Clóvis em que o sujeito do direito não é um indivíduo, que o exerça com exclusão dos outros; são dois ou mais sujeitos, que exercem o direito simultaneamente”.3

Em relação à sua parte ideal, cada condômino dispõe dela livre­mente, sendo-lhe permitido exercer sobre a coisa todos os direitos com­patíveis com a indivisão, inclusive reivindicá-la de terceiro que a dete­nha injustamente. Mas, como a quota de cada condômino é puramente ideal, não lhe atribui quinhão demarcado no condomínio, pelo quê é vedado a qualquer deles alienar a coisa em si mesma, ou transformá-la em sua substância ou destinação, a não ser segundo os preceitos pró­prios do instituto e na forma estabelecida em lei (Código Civil, arts. 504, 1:314 a 1.339 e 2.019).6

O condomínio edilício, antes chamado de condomínio de aparta­mentos, também denominado condomínio por andares, condomínio por planos, ou condomínio horizontal, é modalidade específica da compropriedade em edifícios de um ou mais pavimentos, construídos como unidades autônomas destinadas a residência, comércio, ou qual­quer outra atividade humana (Código Civil, arts. 1.331 a 1.358). Esse tipo de condomínio também está regulado pela Lei federal 4.591, de16.12.1964, com alterações subseqüentes.7

É um condomínio imperfeito, porque a compropriedade só abran­ge o terreno, os elementos de sustentação do edifício, as áreas livres ou de circulação, e os equipamentos de utilização comuns, bens, estes, in­divisíveis e inalienáveis individualmente, sendo as unidades isoladas

5. Clóvis Beviláqua, Código Civil Comentado, III/168, 1938.6. Sobre incorporação de condomínio v. o cap. 7, item 3.4, e o cap. 9, item

1.11. Sobre o denominado condomínio fechado v. o cap. 4, item 2.1.8.7. Sobre o condomínio, v., na doutrina pátria: Caio Mário da Silva Pereira,

Propriedade Horizontal, 1961; Wilson de Souza Campos Batalha, Loteamento e Condomínio, 1953; Carlos Maximiliano, Condomínio, 1950; Luiz Adolpho Nardy, Incorporação de Condomínio: Problemas Teóricos e Práticos, 1962; Faria Mota, Condomínio e Vizinhança, 1942; Orlando Ribeiro de Castro, A Propriedade dos Apartamentos, 1942; Serpa Lopes, “Propriedade em planos horizontais - Edifica­ções de apartamentos”, RD 139/15. Na doutrina estrangeira, consultem-se: Cunha Gonçalves,. Da Propriedade Horizontal por Andares, 1956; Lino Salis, II Condo­mínio negli Edifici, 1950; Peretti-Griva, II Condomínio di Case, 1942.

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- como as denomina a lei vigente - propriedades exclusivas de seus adquirentes.

Na justa observação de Lino Salis, neste tipo de condomínio o di­reito à utilização comum de certos elementos do edifício se impõe como meio (e não como fim) para o uso, gozo e disponibilidade da unidade autônoma, separada das demais e de propriedade individual e exclusiva do adquirente.8

Entre nós, o condomínio edilício existe em larga escala nas gran­des cidades, e mereceu do legislador pátrio regulamentação específica e adequada às exigências oriundas desse tipo sui generis de compro- priedade. Os textos do Código Civil de 2002 pertinentes ao condomí­nio edilício avançam disciplinando os direitos e obrigações dos condô­minos e os conflitos de vizinhança e de administração, peculiares a essa forma comunitária de propriedade.9

A formação de condomínio edilício tem obedecido a critérios di­versos, dada a omissão da lei a respeito, mas comumente é combinada em ajuste particular, de natureza pessoal, que possibilita a construção do edifício e antecede a escritura definitiva das unidades autônomas. Tal ajuste é o denominado contrato de incorporação de condomínio, forma complexa de avença, em que os interessados se vinculam, si­multaneamente, por obrigações de dar e fazer.10 Esse contrato consti­tui a convenção do condomínio, razão pela qual a lei vigente exige a aprovação por maioria qualificada que represente, pelo menos, dois ter­ços das frações ideais que compõem o condomínio (Código Civil, art. 1.333).

A incorporação do condomínio é a sucessão de atos pelos quais o proprietário do terreno, o seu compromissário comprador ou terceiro, devidamente autorizado, convenciona com os interessados na aquisi­ção das unidades autônomas a venda e construção do edifício. Na prá­tica, o denominado contrato de incorporação de condomínio se apre­senta como um conglomerado de ajustes autônomos visando a fixar os direitos e obrigações de cada participante desse empreendimento cole­tivo que é o levantamento do edifício. Para tal desiderato reúnem-se num mesmo instrumento um contrato preliminar de compra e venda

8. II Condomínio negli Edifici, 1950, p. 34.9. V. as restrições de vizinhança próprias de condomínio de apartamentos

adiante, no cap. 3, item 2.12.10. Sobre contrato de incorporação de condomínio v., adiante, o cap. 7, item

3.4.

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da unidade autônoma, um contrato de prestação de serviços do incor- porador e um contrato de construção do edificio. Estes ajustes, embo­ra consubstanciados simultaneamente e no mesmo instrumento, são contratos distintos e sujeitos a tributação diversa, não obstante a apa­rente unificação obrigacional entre os condôminos e o incorporador. Observe-se, ainda, que o contrato de construção só poderá ser celebra­do com firma construtora devidamente registrada no Conselho Regio­nal de Engenharia e Arquitetura.

A administração do condomínio edilicio é disciplinada contratual­mente pelo respectivo regimento interno, aprovado pelos condôminos, em assembléia-geral, na forma prevista na convenção do condomínio. Enquanto a convenção é ato institucional normativo da comproprieda- de formada pelos condôminos, o regimento interno é simples ato de administração do edifício, disciplinador da conduta interna dos condô­minos, locatários ou freqüentadores dos apartamentos ou escritórios. A convenção condominial deve estabelecer os direitos e obrigações dos condôminos entre si e perante terceiros; o regimento interno do edifí­cio deve impor simplesmente os deveres dos ocupantes e freqüentado­res do prédio, para possibilitar a coexistência harmônica dos que o ha­bitam. Nem sempre esses caracteres diferenciadores são observados na convenção e no regimento interno, havendo casos em que só há um instrumento para regular todas as situações do condomínio, o que é um mal, pela indistinção entre os direitos e obrigações dos comproprie- tários, concernentes ao condomínio, e os preceitos de conduta interna dos que utilizam o edifício, a qualquer título.

Há quem chegue a distinguir, numa incorporação de condomínio, quatro estatutos: o real, o negociai, o convencional e o regulamentar.11 Não vamos a tanto, mas, pelo menos, o estatuto definidor dos direitos e obrigações das partes e o regulamento da utilização do edifício de­vem constituir instrumentos distintos, como estabelece a lei (Código Civil, art. 1.334).

O administrador do condomínio edilicio, denominado “síndico” (Código Civil, art. 1.347), é o representante judicial e extrajudicial da universalidade condominial (Código Civil, art. 1.348, II). O condomí­nio não tem personalidade jurídica, mas tem capacidade processual para postular em juízo ativa e passivamente, em defesa dos interesses dos condôminos coletivamente considerados. Essa representação tam­bém está prevista no art. 12, IX, do Código de Processo Civil e no

11. Luiz Adolpho Nardy, Incorporação de Condomínio, 1962, p. 5.

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art. 22, § Ia, “a”, da Lei 4.591, de 16.12.1964, sendo certo que já era admitida pela jurisprudência12 e pela doutrina.13 Mas é óbvio que tal representação se restringe aos assuntos de interesse geral dos condô­minos e se limita às ações intentadas pelo ou contra o condomínio na sua universalidade de direito e de fato. Além disso, os poderes do sín­dico não vão além dos atos de conservação do patrimônio condomi- nial, não lhe sendo permitido, sem expressa e unânime autorização dos condôminos, praticar atos de alienação ou oneração do patrimônio ad­ministrado, nem fazer transações ou renunciar direitos dos compro- prietários que integrem o condomínio. Quanto à representação do con­domínio perante a Justiça do Trabalho, cabe ao administrador, por ex­pressa determinação da Lei federal 2.757, de 23.4.1956.

4. A POSSE

Posse e propriedade não se confundem, embora quase sempre se encontrem reunidas no mesmo titular. A propriedade é um direito; a posse, um fato. A propriedade manifesta-se pelo poder de uso, gozo e disponibilidade da coisa; a posse exterioriza-se pela detenção física da coisa, com ânimo de dono, legitimada pelo domínio ou por qualquer outro título: locação, empréstimo etc. A posse é inerente à proprieda­de, mas pode ser exercida também por quem não é proprietário, como ocorre nos casos de locação, em que o locador (dono da coisa) mantém a posse indireta, e o locatário (usuário da coisa) passa a exercer a pos­se direta da coisa locada. Consoante esses princípios, o nosso Código Civil considera “possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, ple­no ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” (art. 1.196).

Impõe-se, ainda, distinguir a posse da simples detenção. A posse é uma situação de fato, e pressupõe o exercício, ainda que parcial, dos elementos integradores da propriedade; a detenção caracteriza-se por uma relação de dependência com o possuidor ou proprietário naquilo que conserva em nome de outro (Código Civil, art. 1.198).

Observe-se, por fim, que a posse continuada, mansa e pacífica é forma aquisitiva da propriedade que se denomina usucapião, quando

12. TJDF, RT 279/749; TJSP, RT 280/704, 619/99 e 625/74; TJPR, RT 284/691.

13. Ribeiro de Castro, A Propriedade dos Apartamentos, 1942, p. 66; Carlos Maximiliano, Condomínio, 1950, pp. 270 e ss.; Paulo Cameiro Maia, “A represen­tação orgânica no condomínio por planos”, RT291I1.

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respeitados os demais requisitos legais: arts. 1.238 a 1.244 do Código Civil.

Com relação a este instituto, significativas são as inovações da Constituição de 1988. No art. 183, ela consagra o usucapião de imóvel urbano denominado “pró-moradia”, estabelecendo que “aquele que possuir como sua área urbana de até 250 m2 por cinco anos ininterrup­tamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua famí­lia, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

Ao disciplinar o usucapião de imóvel rural, denominado pro labo­re, o art. 191 determina que “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterrup­tos, sem oposição, área de terra em zona rural, não superior a 50 hecta­res, tomando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade” .

Note-se, contudo, que os imóveis públicos não podem ser adquiri­dos por usucapião, conforme arts. 183, § 3C, e 191, parágrafo único, da Constituição Federal.14

5. O SOLO E A S RIQ U EZAS N ATU RAIS

A propriedade do solo e das riquezas naturais está sujeita a regi­me jurídico diverso, o que exige considerações especiais.

Segundo dispõe o Código Civil, a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes em “altura e em profundi­dade, úteis ao seu exercício” (art. 1.229), pertencendo ao dono da terra

-todos os seus “frutos e produtos” (art. 1.232); mas a Constituição vi­gente, de 1988, estabelece que “as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem pro­priedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamen­to” (art. 176), e que a exploração e o aproveitamento dependerão de autorização ou concessão federal, na forma da lei, ficando assegurada ao proprietário do solo a participação nos resultados da lavra “na for­ma e no valor que dispuser a lei” (art. 176, §§ Ia e 2Ü). O Código Civil acrescentou dispositivo nesse sentido, reforçando a distinção entre os recursos naturais e a propriedade do solo, possibilitando, de antemão, o “direito de explorar os recursos minerais de emprego imediato na

14. TJSP,i?r 649/58.

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construção civil, desde que não submetidos a transformação industrial, obedecido o disposto em lei especial” (art. 1.230, parágrafo único).

Esses dispositivos fixam os lineamentos constitucionais do siste­ma minerário brasileiro, completado pelas normas do Código de Mine­ração (Decreto-lei 227, de 28.2.1967, alterado pelos Decretos-leis 318, de 14.3.1967, e 330, de 13.9.1967, e pelas Leis 6.403, de 15.12.1976, 6.567, de 24.9.1978, 7.085, de 21.12.1982, 7.805, de 18.7.1989, 7.886, de 20.11.1989, 8.901, de 30.6.1994, 9.314, de 14.11.1996, e 9.827, de 27.8.1999) e por seu Regulamento (Decreto 62.934, de 2.7.1968, alte­rado pelos Decretos 64.590, de 27.5.1969, e 88.814, de 4.10.1983), além da Lei 6.340, de 5.7.1976, que dispõe sobre a mineração em áreas de pesquisa e lavra de petróleo. A Lei 6.567, de 24.9.1978, insti­tui regime especial para exploração e aproveitamento das substâncias minerais que especifica e altera o sistema de pesquisa e lavra, só facul­tado ao proprietário do solo ou a quem dele tiver expressa autorização (art. 2fl).

Portanto, a Constituição da República de 1988 retirou do domínio particular as riquezas minerais do subsolo e as quedas d ’água, sujei­tando a exploração das jazidas ao regime de participação do proprietá­rio do solo no resultado da lavra (art. 176, § 2Q) e possibilitando o apro­veitamento do potencial hidráulico independentemente da propriedade marginal, ambos mediante concessão ou autorização federal (art. 176, §1°)-

Quanto ao petróleo e aos minérios nucleares, constituem mono­pólio da União, nos termos da Constituição (art. 177).

Quanto ao solo, urbano ou rural, pode pertencer ao domínio pú­blico ou particular, e ser utilizado para construção, cultura e qualquer outra destinação lícita, observadas as normas condicionadoras da pro­priedade à sua função social (Constituição, arts. 5Q, XXIII, e 170, III), ao ordenamento territorial determinado pelos Municípios (art. 30, VIII, da Constituição), ao direito dos vizinhos e aos regulamentos adminis­trativos (Código Civil, art. 1.299). O solo rural tem regime especial, consubstanciado nos arts. 184 a 191 da Constituição Federal.

6. O ESPAÇO AÉREO

O espaço aéreo foi considerado pelo nosso Código Civil comopertencente em toda altura utíl ao proprietário do solo correspondente(art. 1.299). Era a aplicação da máxima romana usque ad profundumet usque ad coelum. Tal princípio já não tem validade em nossos dias,

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em que a doutrina contemporânea mais aceita declara que o espaço aé­reo não constitui coisa apropriável,15 sendo mesmo, no dizer da Corte Suprema dos EUA, “uma estrada pública, integrante do domínio pú­blico”.16

Fiel a essa orientação moderna, decorrente do surto extraordinário da navegação aérea, insuspeitada por nossos antepassados, o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565, de 19.12.1986, alterado pela Lei 9.614, de 5.3.1998) veio estabelecer que o Brasil “exerce completa e exclusiva soberania sobre o espaço aéreo acima de seu território e res­pectivas águas jurisdicionais, inclusive a plataforma continental” (art.11). Ao mesmo tempo declara que “ninguém poderá opor-se, em razão de direito de propriedade na superfície, ao sobrevôo de aeronave, sem­pre que este se realize de acordo com as normas vigentes” (art. 16).

Como medida de proteção especial ao vôo e à propriedade parti­cular, o Código estabelece que “as propriedades vizinhas dos aeródro­mos e das instalações de auxílio à navegação aérea estão sujeitas a res­trições especiais” (art. 43).17 Estas restrições deverão ser especificadas pela autoridade aeronáutica, mediante planos básicos de zona de pro­teção de aeródromos e suas instalações complementares, de heliportos e de zoneamento de ruídos (art. 44). A autoridade aeronáutica poderá, ainda, embargar a obra ou construção que contrarie algum desses pla­nos, ou exigir a sua demolição, sem que o proprietário tenha direito a qualquer indenização, salvo se a obra ou construção sejam anteriores à publicação dos planos (arts. 45 e 46).

Tais limitações constituem legítimo condicionamento do direito de propriedade, e especialmente do de construir, aos superiores interesses da coletividade, expressos nos regulamentos administrativos a que alu­de o art. 1.299 do Código Civil.

7. POSIÇÃO ATUAL DO DIREITO D E PROPRIEDADE

Superado o conceito absolutista do direito de propriedade - jus ntendi, fruendi et abutendi que teve o seu apogeu no individualismo

15. Fragali, Diritto Aeronáutico, 1939, pp. 171 e ss.; Messíneo, Istituziom dí Diritto Privato, 1941, pp. 252 e ss.

16. Clarence E. Manion, Law o f the Air - Cases and Materials, U.S. vs. Caus- by, 1946.

17. V. no cap. 4, item 2.2, o tópico referente a normas para construções nas vizinhanças de aeroportos.

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do século XVIII, o domínio particular se vem socializando ao encontro da afirmativa de Léon Duguit, de que “a propriedade não é mais o direi- to subjetivo do proprietário; é a função social do detentor da riqueza”.18 Com esta característica contemporânea, já não se admite o exercício anti-social do direito de propriedade, nem se tolera o uso anormal do direito de construir. O exercício do direito de propriedade tem limites exigidos pelas relações de vizinhança e pelo interesse social, a despei­to de ter sido considerado absoluto e ilimitado, como o demonstraram magnifícamente Perticone e Fragola, em trabalhos especializados.19

Predomina em nossos dias a idéia da relatividade dos direitos, por­que, como bem adverte Georges Ripert, “o direito não pode ser abso­luto, visto que absolutismo é sinônimo de soberania. Não sendo o ho­mem soberano na sociedade, o seu direito é, por conseqüência, sim­plesmente relativo”.20

De um liberalismo extremado que privatizou o Direito Público evoluímos para um socialismo atenuado, que vem publicizando o Di­reito Privado. E a socialização paulatina e insofreável dos nossos dias, que, na justa observação de Vicente Ráo, está reduzindo a esfera do Direito Civil, pela “ascendente padronização dos meios materiais de vida, e, conseqüentemente, da própria vida, a transformar em proble­ma coletivo o que dantes constituía problema individual”.21

Do embate entre o individual e o social resultou a composição de interesses, numa síntese feliz em que se conciliaram as prerrogativas do indivíduo com as exigências da sociedade, para uma melhor justiça distributiva. Dessa conciliação nasceu a fórmula da nossa Constituição de 1946: é garantido o direito de propriedade, desde que exercido em consonância com o bem-estar social (arts. 141, § 16, e 147), reproduzi­do, com outras palavras, na Emenda Constitucional 1/1969 (art. 160,III) e reafirmado na Constituição Federal de 1988 (arts. 5fl, XXII e XXIII, e 170, II e III).

Evoluímos, assim, da propriedade-direito para a propriedade-fun- ção. A Constituição de 1988, ao fixar os contornos do direito de pro­

18. Las Transformaciones Generales dei Derecho Privado, ed. Posada, 1931,p. 37.

19. Giacomo Perticone, La Proprietà e i suoi Limiti, 1930, pp. 15 e ss.; Fra­gola, Limitazioni Amministrative al Diriíto di Proprietà, 1910, pp. 34 e ss.

20. O Regime Democrático e o Direito Civil Moderno, 1937, p. 233. No mes­mo sentido: Josserand, DeVEsprit des Droits et leur Relativité, 1927, p. 375.

21. O Direito e a Vida dos Direitos, 1/248, 1952.

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priedade, consolidou essa transformação: tanto o direito de proprieda­de quanto sua função social foram incluídos entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5fl, XXII e XXIII).

A função social da propriedade situa-se ainda como princípio da ordem econômica, ao lado do reconhecimento da propriedade privada (art. 170, II e III).22

No que diz respeito à propriedade rural, a Constituição procurou dar os parâmetros de sua função social (art. 186), o que não fez com relação à propriedade urbana. A esse respeito, o texto constitucional consigna que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor” (art. 182, § 2Q). Seguindo as disposições estabeleci­das pela Lei 10.257/2001 - Estatuto da Cidade - , o Plano Diretor vai estabelecer as diretrizes para o aproveitamento dos imóveis urbanos, de acordo com sua função no ordenamento da cidade. Convém lem­brar, contudo, que o texto do art. 182, § 4fi, aponta, a contrario sensu, os lineamentos básicos da função social do imóvel urbano', deve estar edificado, ou utilizado adequadamente. Se isto não ocorrer, o Municí­pio pode impor ao proprietário as seguintes sanções: parcelamento ou edificação compulsórios', imposto sobre a propriedade predial e territo­rial urbana progressivo no tempo; e desapropriação, com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até 10 anos, em parce­las anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indeniza­ção e juros legais. É a denominada “desapropriação-sanção” (art. 182, § 4a, e incisos).

22. V. A Função Social da Propriedade e a Constituição de 1988, José Diniz de Moraes, Malheiros Editores, 1999.

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Capitulo 2 *

O DIREITO DE CONSTRUIR E SEUS LIMITES

I. O FUNDAMENTO DO DIREITO DE CONSTRUIR. 2. A LIBERDADE DECONSTRUIR. 3. O CONCEITO DE NORMALIDADE NO DIREITO DE CONSTRUIR. 4. A PROTEÇÃOÀ SEGURANÇA, AO SOSSEGOEÀ SAÚ­DE DOS VIZINHOS: 4.1 Segurança; 4.2 Sossego; 4.3 Saúde. 5. A PRO­TEÇÃO AO BEM-ESTAR SOCIAL. 6. A CONSTRUÇÃO DE HABITAÇÕES POPULARES.

L O FUNDAM ENTO DO D IREITO DE CONSTRUIR

O fundamento do direito de construir está no direito de proprieda­de. Desde que se reconhece ao proprietário o poder legal de usar, go­zar e dispor dos seus bens (Código Civil, art. 1.228), reconhecido está o direito de construir, visto que no uso, gozo e disponibilidade da coisa se compreende a faculdade de transformá-la, edifícá-la, beneficiá-la, enfim, com todas as obras que lhe favoreçam a utilização ou lhe au­mentem o valor econômico.1

Tratando-se de propriedade imóvel, mais premente é a necessida­de das construções para que possa o dono auferir todas as vantagens e colher todos os frutos que o terreno lhe proporciona. Embora amplo, o direito de construir não é absoluto, porque as relações de vizinhança e o bem-estar coletivo impõem ao proprietário certas limitações a esse direito, como, de resto, a todo direito individual, visando a assegurar a coexistência pacífica dos indivíduos em sociedade.

A construção pode abranger tanto a superfície do solo como o sub­solo e o espaço aéreo, em extensão, profundidade e altura não proibi­das pelas normas administrativas, uma vez que não há restrição, por

1. Não obstante a regra seja a construção em terreno próprio, o Código Civil prevê a construção em terreno alheio, bem como a construção em terreno próprio com materiais alheios, dispondo sobre a situação jurídica dos que assim procedem (arts. 1.253 a 1.259). Não se trata, porém, de direito de construir, mas sim de aqui­sição da propriedade imóvel por acessão, o que refoge do propósito deste trabalho.

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O DIREITO DE CONSTRUIR E SEUS LIMITES 31

parte das normas civis, quanto à ocupação da propriedade particular. A regra, do Código Civil, é a de que “a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes em altura e em profundidade, úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundi­dade tais que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las” (art. 1.229).

O que a lei civil declara, desde logo, é que o poder de utilização do subsolo e do espaço aéreo pelo proprietário do terreno vai até a pro­fundidade e até a altura úteis ao exercício do direito de construir. E assim é porque a propriedade, sobre ser um fenômeno jurídico, é tam­bém um fato econômico, donde se segue que o seu uso está condicio­nado à utilidade do empreendimento para o proprietário. Desse concei­to utilitarista da propriedade deflui a possibilidade da navegação aérea inofensiva sobre as propriedades particulares, bem como a utilização do subsolo, por terceiro, em profundidade tal que não prejudique o pro­prietário do solo.

2. A LIBERD AD E D E CONSTRUIR

A liberdade de construir é a regra. As restrições e limitações ao direito de construir formam as exceções, e, assim sendo, só são admiti­das quando expressamente consignadas em lei ou regulamento. E o que se infere do Código Civil ao prescrever que “o proprietário pode le­vantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos” (art. 1.299). Com o dizer que o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, o legislador civil não reviveu o absolutismo do di­reito de propriedade, porque em dispositivo anterior já havia indicado a sua relatividade, ao estabelecer que “o proprietário, ou o possuidor de um prédio, tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha” (art. 1.277).

No poder de levantar em seu terreno as construções que entender, está consignada, para o proprietário, a regra da liberdade de constru­ção; na proibição do mau uso ou uso anormal da propriedade está o limite dessa liberdade. A normalidade do direito de construir se traduz no respeito ao direito dos vizinhos, às prescrições administrativas so­bre a construção.2

2. V. os caps. 3 e 4, respectivamente sobre restrições de vizinhança c limita­ções administrativas ao direito de construir.

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32 DIREITO DE CONSTRUIR

A partir da Constituição de 1988, as limitações ao direito de cons­truir não decorrem apenas do art. 1.299 do Código Civil, mas sim da própria Lei Maior, que outorga competência ao Município para pro­mover o adequado ordenamento do solo urbano, mediante o controle de seu parcelamento, uso e ocupação (art. 30, VIII).

Para fins de direito, entende-se por construção toda realização material e intencional do homem, visando a adaptar o imóvel às suas conveniências. Nesse sentido tanto é construção a edificação ou a re­forma como a demolição, o muramento, a escavação, o aterro, a pin­tura e demais trabalhos destinados a beneficiar, tapar, desobstruir, con­servar ou embelezar o prédio.3

3. O CONCEITO DE NORM ALIDADENO DIREITO D E CONSTRUIR

Ao tratar dos direitos de vizinhança, a que está subordinado o di­reito de construir, o Código Civil veda, expressamente, o uso nocivo da propriedade, consignando que “o proprietário ou possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à se­gurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela uti­lização de propriedade vizinha” (art. 1.277).

Este dispositivo acolhe e consagra no nosso Direito Positivo o princípio da relatividade do direito de propriedade, ou, mais adequa­damente, o da normalidade de seu exercício. O que a lei está a dizer é que ao proprietário ou possuidor só é lícito o uso regular do imóvel, sem abuso ou excesso na fruição de seus direitos. Toda utilização que exceder a normalidade, vale dizer, os padrões comuns de uso da pro­priedade, segundo a destinação e localização do imóvel, erige-se em mau uso, e como tal pode ser impedida pelo vizinho, por anormal.

A teoria da normalidade, sistematizada por Ripert, domina hoje todo o exercício do direito de propriedade, notadamente nas soluções dos conflitos de vizinhança. Partindo do princípio universalmente acei­to da relatividade dos direitos, seu sistematizador assim expôs os fun­damentos da nova teoria, em famosa tese, apresentada em 1902: “Un propriétaire ne peut agir sans envisager íes suites possibles de ses ac- tes. II faut le considérer à la fois comme propriétaire et comme voisin; si comme propriétaire, il peut user de son droit quand bien même il nuirait à son voisin, comme voisin il est obligé de respecter le droit de

3. TJSP, RT 251/256, 265/275, 673/54.

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O DIREITO DE CONSTRUIR E SEUS LIMITES 33

propriété de celui qu’il confine. II est à Ia fois créancier et débiteur. par suite, tout exercice de son droit peut amener une violation de Pobligation qui lui incombe de respecter le droit d’autrui. II est d’intérêt général que chaque propriétaire puisse donner à sa chose toutes les des- tinations économiques possibles. II est aussi d’intérêt général que ses voi- sins ne souffrent pas sans compensation le préjudice causé”.4

Seus seguidores, principalmente Leyat, proclamaram, daí por dian­te, que todo aquele que não usa sua propriedade nas condições nor­mais de sua época e de sua destinação deve reparar o dano que causar ao vizinho, independentemente de ocorrência de culpa ou dolo na prá­tica do ato lesivo.3 A jurisprudência francesa acolheu a nova teoria, repudiando a velha máxima romana de que quem usa de seu direito a ninguém Lesa - neminem laedit qui suo jure utitur - , e o fez ainda sob a consideração de Ripert de que a tradição não substitui as boas razões (“La tradition ne remplace pas des bonnes raisons”).

A doutrina brasileira não se mostrou infensa a essas idéias, aco­lhendo inteiramente o critério da normalidade para a solução dos con­flitos de vizinhança, como atestam os mais abalizados civilistas. De­senvolvendo os seus postulados, explicaram que a normalidade se afe- re em cada caso, levando-se em conta a utilização do imóvel, a destina­ção do bairro, a natureza da obra ou da atividade, a época, a hora e de­mais circunstâncias atendíveis na apreciação do ato molesto ao vizinho.

Consoante esses princípios, proclamou Virgílio de Sá Pereira,6 ao comentar o Código Civil, que: “O conceito de mau uso é relativo e contingente, não se podendo precisá-lo sem se ter em conta todas as circunstâncias que ocorrem em cada caso”.7

Na lição do Tito Fulgêncio: “Em havendo o abuso, a anormalida­de no exercício do direito de propriedade, ao vizinho ameaçado ou pre­judicado abre a lei o ingresso em juízo para prevenir o mal ou reparar o dano, ficando ao juiz a apreciação da maldade, ou anormalidade, se­gundo as circunstâncias de fato ocorrentes” .8

4. Georges Ripert, De t 'Exercice dit Droit de Propriété dans ses Rapports avec les Propriétés Voisines, tese, Paris, 1902, p. 311.

5. Paul Leyat, La Responsabilité dans les Rapports de Voisinage, Paris, 1936, pp. 80 e ss.

6. A referência doutrinária baseia-se no Código Civil de 1916. Entretanto, continua válida perante o Código Civil de 2002.

7. Manual do Código Civil, Ia ed., VIII/472, Rio.8. Direito de Vizinhança, Ia ed., Rio, p. 10.

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34 DIREITO DE CONSTRUIR

Segundo Filadelfo Azevedo, o uso anormal da propriedade não tem padrões fixos, cabendo à Justiça apurar, em cada caso, o que é uso e o que é abuso do direito de vizinhança.9

Para San Tiago Dantas, na composição dos conflitos de vizinhan­ça incumbe ao julgador sopesar todas as circunstâncias em que o incô­modo se apresenta, levando-se em conta que a função precípua do pré­dio é a moradia do homem.10

A legislação pátria não podia permanecer alheia a esse movimen­to renovador no campo das responsabilidades de vizinhança, como efe­tivamente não permaneceu, agasalhando o Código Civil o conceito de uso anormal da propriedade (art. 1.277) e condicionando a liberdade de construir ao respeito dos direitos dos vizinhos (art. 1.299).

A jurisprudência, alicerçada na lei e na doutrina, orientou-se no sentido de impedir o uso anormal da propriedade, tomando para fun­damento das decisões o critério da normalidade no exercício desse di­reito, como se depara nos julgados do Supremo Tribunal Federal e das Cortes estaduais, em repetidas oportunidades.11

O conceito de normalidade no direito de construir abrange todas as formas e modalidades de uso da propriedade. Normal é o exercício do direito de construir sem lesão para a vizinhança; anormal é toda construção ou atividade que lese o vizinho na segurança do prédio, ou no sossego ou na saúde dos que o habitam. Tudo que prejudica a vizi­nhança além dos incômodos próprios da comunidade entende-se anor­mal e, portanto, enquadrável no conceito de uso anormal da proprie­dade, repudiado pelo Direito (Código Civil, art. 1.277).

O exercício do direito de propriedade, e, particularmente, do di­reito de construir, só é legítimo e defensável quando normal. Normal em sua destinação, extensão, intensidade e oportunidade, aferíveis pe­los padrões locais e comuns de utilização do imóvel e de ocupação do bairro. O ruído de uma fábrica poderá ser considerado normal numa zona industrial e anormal num bairro residencial; poderá, ainda, ser normal para o dia e anormal para a noite. Assim poderíamos multipli­car ps exemplos em que a peculiaridade do bairro, a destinação do pré­

9. Destinação do Imóvel, Rio, 1933, pp. 100 e ss.10. O Conflito de Vizinhança e sua Composição, Rio, 1939, pp. 237 e ss.11. STF, R F 116/432; TJDF, RF 68/568, 87/712; 105/759, 138/272; TJMQ

RF 117/188; TJRJ, RT 533/220, 708/159, 739/388; ITARJ, RT 544/194, 561/217; TJMS, RT 667/190; TJSC, RT 555/198; TJSP, RT 89/487, 103/600, 162/655, 186/ 176, 694/78; TACivSP, tf 7 556/138, 631/140, 656/113, 726/300.

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dio, as condições de lugar e tempo, a natureza da atividade ou da emis­são é que indicariam o que é uso n orm al ou an orm al da propriedade.

O que convém acentuar é que o conceito de n o rm a lid a d e do uso da propriedade é relativo e contingente, variando com as circunstâncias ocorrentes em cada caso, segundo os limites de incômodos ou danos admitidos como ônus de vizinhança. Mas é inegável que o vizinho tem o direito de impedir que os outros danifiquem a sua propriedade, pre­judiquem o seu sossego, ou ponham em risco a sua saúde com obras nocivas, trabalhos perigosos, ruídos intoleráveis, emanações molestas, vibrações insuportáveis, odores nauseabundos, e quaisquer outras ati­vidades ou emissões prejudiciais à vizinhança, sendo permitido aos le­sados vedar essa utilização an o rm a l da propriedade vizinha e obter a reparação dos danos consumados.

Em tema de vizinhança, nem todo incômodo é reprimível; só o é o insuportável, o que entra na esfera da utilização abusiva da proprieda­de, do mau uso do prédio e de seus implementos, embora causado sem culpa ou dolo do vizinho, como veremos minuciosamente ao cuidar das responsabilidades decorrentes da construção (cap. 8). Por ora, só se faz mister advertir que o conceito de normalidade nas relações de vizinhan­ça é estranho ao conceito de culpa comum, consubstanciado no art. 186 do Código Civil. Nos atos anormais de vizinhança não se exige volun- tariedade nem intenção de prejudicar, porque a responsabilidade surge ob je tivam en te da só lesividade da construção ou atividade do vizinho, por imposição do art. 1.277 do Código Civil; nos atos ilícitos a respon­sabilidade decorre da imprudência, negligência ou imperícia de quem lhe dá causa (culpa), ou da intenção mesmo de causar a lesão (dolo), o que é dispensável nos danos de vizinhança, como veremos amplamente no capítulo das responsabilidades decorrentes da construção (cap. 8).

A p ré -o c u p a ç ã o do b a ir ro , ou seja, a existência anterior de obra ou atividade lesiva aos vizinhos, não tem o condão de legitimar o uso anormal da propriedade. Sem dúvida, a pré-ocupação é fator ponderá­vel nos conflitos de vizinhança, porque quem vem a se instalar em de­terminada zona já deve prever e sopesar as vantagens e inconvenientes anteriores do bairro.12

Tratando-se de zonas mistas - de residência, indústria e comércio- a pré-ocupação atua como agravante dos encargos a serem suporta­dos pelos novos vizinhos, mas a só anterioridade da construção ou da atividade nociva não autoriza a manutenção dessa situação, desde que

12. l c TACivSP, RT 631/140.

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se caracterize o uso anormal da propriedade.13 Baudry-Lacantinerie já advertia, nos fins do século passado, que “n’existe pas un droit de pré- occupation, capable de faire échec à tout action en dommages-intérêts”.14

Tem-se entendido, ainda, e com sobejas razões, que a residência deve preferir à utilização industrial e comercial do bairro, porque, como pondera Freund, o direito de habitação é superior às exigências do co­mércio - “the right of habitancy is superior to the exigences of trade”.15 Em princípio, ninguém pode, por precedente ocupação, criar para si um direito a danificar ou inquietar a vizinhança. A anterioridade que justifica a manutenção de atividades incômodas - já o decidimos com plena confirmação do Tribunal de Justiça de São Paulo - não é a indi­vidual e acidental no bairro, mas a coletiva e legal, resultante de zonea- mento para comércio, indústria ou qualquer outra destinação específica. Nos bairros mistos, a função residencial tem preferência sobre qual­quer outra, e, por isso, toda atividade molesta a seus moradores é tida como uso nocivo e anormal da propriedade, suscetível de ser impedido judicialmente pelos vizinhos.16

A Constituição de 1988, ao condicionar o direito de propriedade ao cumprimento de sua função social (arts. 5C, XXIII, e 170, III), apre­senta nova concepção do direito de construir, que fica subordinado, também, às imposições legais decorrentes do Plano Diretor - “uso ade­quado do imóvel urbano de acordo com sua função no ordenamento da cidade” (art. 182, §§ 2C e 4fi) - e não apenas às restrições relativas à proibição do mau uso da propriedade. Dentre os instrumentos possí­veis de serem impostos pelo Plano Diretor estão o Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança e o Estudo Prévio de Impacto Ambiental, não excludentes entre si, e que têm o condão de impedir construções ou atividades que prejudiquem a coletividade e o ambiente urbano (Lei 10.257/2001, arts. 36 a 38).

4. A PROTEÇÃO À SEGURANÇA, A O SOSSEGO E À S A ÚDE DOS VIZINHOS

O Código Civil, ao dispor sobre os direitos de vizinhança, estabe­leceu restrições ao uso da propriedade, e principalmente ao direito de

13. 111 TACivSP, i?7’628/138.14. Traité Thèorique de Droit Civil, V /l65, Paris, 1899.15. Police Power, Nova York, 1931, § 529.16. Nossa sentença, confirmada pelo TJSP, RT 218/248. No mesmo sentido:

TJSP, RT 106/208, 172/693, 218/245.

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construir, em prol da segurança, do sossego e da saúde dos vizinhos (art. 1.277). Impõe-se, por isso, a fixação do exato conceito desses três bens, a que a lei civil dispensa proteção especial.

4.1 SEGURANÇA

A segurança a que o Código Civil alude e protege (art. 1.277) é a material e a pessoal, devida ao prédio e às pessoas que o habitam ou freqüentam. Com efeito, a lei refere-se ao proprietário ou possuidor. Proprietário, já o dissemos, é o dono; possuidor é qualquer pessoa que ocupe ou freqüente legalmente o prédio, a título permanente ou transi­tório, gratuito ou oneroso.

A proteção à segurança tanto abrange as propriedades urbanas como as rurais; as de habitação como as de uso comercial, industrial ou agrário; as edificações principais como as acessórias, tapumes, mo­biliário e demais complementos da construção, bem assim o terreno em si mesmo, ainda que sem qualquer benfeitoria, e suas servidões.

A ofensa à segurança tanto pode se dar por ação como por omis­são do vizinho. O essencial é que o ato ou inatividade produza um dano efetivo ou crie uma situação de perigo para o prédio vizinho ou para a integridade de seus habitantes, ou freqüentadores. Nesta categoria en­tram todos os trabalhos que produzem dano na estrutura do prédio, aba­lo no solo, infiltrações daninhas, trepidações perigosas, explosões vio­lentas, movimentos de terra, emanações venenosas ou alergênicas, e o que mais possa prejudicar fisicamente o prédio ou seus moradores. Até mesmo a conduta inconveniente do vizinho, que promove ajuntamento de malfeitores, reuniões de ébrios, congestionamento de trânsito e quaisquer outras situações potencialmente comprometedoras da segu­rança do bairro, é reprimível por via judicial, uma vez que caracteriza o uso anormal da propriedade.

A jurisprudência tem considerado ofensivos à segurança do vizi­nho e por ele reprimíveis ou a ele indenizáveis os danos à sua pessoa ou a seus bens, causados por construção, reforma ou demolição de pré­dios,17 e especialmente o desabamento de construção lesivo a outros prédios ou pessoas;18 a queda de madeiramento da construção, com

17. STF, RT 219/578, 593/283, RF 108/322; TJSP, RT 238/241, 242/175, 249/ 147, 251/256, 254/300, 260/256 e 319, 263/246; TASP, RT 234/203, 266/592; I TARJ, RT 582/209.

18. TJSP, RT 138/539, 180/165, 206/219, 208/289,-212/154, 229/420; TASP, R T245/299, 248/273; TJBA, RT 586/169.

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dano pessoal;19 a falta de tapume divisório que permita a depredação do imóvel vizinho;20 a falta de muro de arrimo que enseja dano ao pré­dio inferior;21 a existência de poço em terreno aberto que dá causa à queda de transeunte;22 o dano a pessoa resultante de mau funcionamen­to de elevador;23 a emissão de fuligem de indústria, prejudicial aos pré­dios vizinhos;24 o rebaixamento do solo, danoso à construção confi- nante;23 a pulverização de óleo com impregnação no mobiliário do pré­dio vizinho;26 a falta de fecho, que permita a entrada de menores e o conseqüente acidente em fios de eletricidade;27 a exploração de pedrei­ra com dinamite, de modo perigoso para os vizinhos;28 o aterro ou de- saterro lesivo ao prédio vizinho;29 o rompimento de represa com dano aos prédios inferiores;30 a alteração do escoamento natural das águas pluviais, com dano para os prédios inferiores.31

As queimadas nas zonas rurais ofendem grandemente a integri­dade das propriedades vizinhas e, por essa razão, ficam sujeitas aos mesmos preceitos preservadores da segurança urbana, amparada pelo Código Civil. O proprietário rural tem o mesmo direito à incolumidade de sua fazenda que o proprietário citadino à intocabilidade de sua mo­radia, de sua indústria ou de seu comércio.

Daí por que incumbe ao vizinho rural tomar todas as medidas im­peditivas da propagação do fogo que ateia no seu pasto ou na sua roça­da. Se esse fogo, a despeito do aceiro, do caminho ou do rio divisório, salta para a fazenda vizinha, o proprietário responde, objetivamente, pelos danos causados ao seu confmante, ainda que tenha tomado todas as cautelas de praxe. O dano de incêndio equipara-se ao dano de cons-

19. TJSP, RT 219/241, 264/308.20. TJSP, RT 164/229.21. TJSP, RT 182/824.22. TJSP, RT 173/263.23. STF, RT 176/804; TJSP, RT 193/713.24. TJSP, RT 190/237, 261/269.25. TASP, R T 2\ 1/473.26. TJSP, RT 84/174.27. TASP,i?r248/427.28. TA SP, RT 250/190, 254/295.29. TJSP, RT 146/629, 265/275.30. TASP, 266/557.31. STF, AJ 87/220; TJSP, RT 85/672, 103/182, 120/115, 160/740, 163/297,

166/309, 173/93, 179/199, 181/658, 186/785; TASP, RT 258/354, 266/559; TAMG, RT 609/204; TAPR, RT 603/207.

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truçao vizinha, dada a equivalência de seus efeitos lesivos perante o direito de vizinhança.

Nos Municípios onde há plantação intensiva de cana-de-açúcar, a queima da palhada causa, ainda, intensa poluição ambiental, com re­flexos na zona urbana. O Ministério Público promoveu várias ações ci­vis para impedir tal procedimento, tendo o Tribunal de Justiça de São Paulo considerado inconstitucionais as leis municipais que autorizavam aquelas queimadas, entendendo que a competência municipal, em maté­ria de poluição ambiental, é apenas suplementar, não podendo contra­riar as legislações estadual e federal de proteção ao meio ambiente.32

As obras públicas também podem ser lesivas à vizinhança, e, como tais, dão ensejo a embargos e reparações pecuniárias dos danos causados aos prédios ou às pessoas que os habitam ou freqüentam, e assim já foi decidido relativamente ao fracionamento de rua, prejudicial aos vizinhos;33 à ruptura da galeria de águas pluviais, danosa à proprie­dade particular;34 ao rebaixamento do leito da via pública, prejudicial aos prédios já construídos;35 à existência de árvore na via pública, mo­lesta às construções vizinhas.36

Incumbe ainda ao Poder Público promover a ação competente para impedir o uso anormal da propriedade quando o dano ou incômodo atinge toda a coletividade da zona ou bairro habitado.37 Nesse caso, a Municipalidade poderá agir de ofício, ou mediante representação dos moradores molestados em sua saúde, sossego ou segurança pessoal ou de seus prédios.38

4.2 SOSSEGO

O sossego que o Código Civil visa a assegurar nas relações de vizinhança é relativo, e verificável em cada caso pelo critério da n or­m a lid a d e do ruído ou de qualquer outra emissão incômoda, entrando sempre em linha de conta a destinação do bairro, o horário em que é

32. ADI 17.926-0-São Paulo, rei. Des. Renan Lotufo, j. 23'. 11.1994; ADI 18.020-0-São Paulo, rei. Des. Villa da Costa, j. 22.6.1994.

33. TJSP, RT 171/593.34. TJSP, RT 196/194, 202/163.35. TJSP, R T 233/153.36. TASP, RT 256/436.37. TASP, RT 254/451.38. Sobre danos de vizinhança v., adiante, o cap. 9, item 1.1, no qual escreve­

mos sobre a ação de indenização de danos de vizinhança, inclusive sobre danos de obra pública.

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produzido, a natureza das emanações molestas e demais circunstân­cias ponderáveis em todo conflito de vizinhança.39

Os ruídos e vibrações de um bairro industrial ou comercial são naturalmente mais intensos que os de uma zona residencial; os ruídos próprios do trabalho humano devem ser tidos como normais; os de ati­vidades recreativas ou resultantes de algazarras devem ser reprimidos quando molestos aos vizinhos, por anormais. A esse propósito, já deci­dimos, com integral confirmação do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, no período diurno, o rumor das indústrias e a agitação do comér­cio se impõem ao cidadão como ônus normal da vida urbana, contra- prestação das múltiplas vantagens que essas atividades lhes proporcio­nam. A noite, porém, o trabalho ruidoso e incômodo para a vizinhança tem sentido diverso, apresentando-se como ato antijurídico e ofensivo do direito ao descanso, irrecusável a todos que labutam durante o dia.40

Ninguém pode pretender, sob a invocação do direito ao descanso, que tudo em derredor se imobilize e cale. O que a lei confere ao vizi­nho é o poder de impedir que os outros o incomodem em excesso, com ruídos intoleráveis, que perturbem o sossego natural do lar, do escritó­rio, da escola, do hospital, na medida da quietude exigível para cada um destes ambientes.

Tratando-se de zona mista - residencial, comercial e industrial é intuitivo que as residências têm que suportar o rumor da indústria e do comércio, nas horas normais dessas atividades, mas esses ruídos não poderão exceder o limite razoável da tolerância, nem se estender aos dias e horas reservados ao repouso humano.

Os ruídos urbanos são, hoje, considerados fatores altamente preju­diciais à população urbana,41 razão pela qual, além da disposição genéri­ca do Código Civil que permite ao proprietário impedir que o vizinho perturbe o seu sossego (art. 1.277), o Poder Público vem alargando,

39. A respeito de ruídos provocados por obra pública, v. nosso parecer in Estu­dos e Pareceres de Direito Público, 11/335.

40. TJSP, RT 218/248.41. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 13a ed., 2003, p. 472;

J. H. Meirelles Teixeira, “O problema dos ruídos urbanos na Administração local”, in Estudos de Direito Administrativo, 1/281, 1949; Antônio de Almeida Júnior, Bio­logia Educacional, 1959, pp. 272 e ss.; Castro Barreto, Patologia e Profdaxia dos Ruídos da Vida Moderna, 1948; Juan Ramón Beltran, “La locura como fenômeno edilicio”, Revista de Derecho y Administraciôn Municipal 11/72; Alcides Greca, “Polícia sanitária”, RDA 3/454.

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0 DIREITO DE CONSTRUIR E SEUS LIMITES 41

por normas regulamentares, as exigências de silêncio,42 e os tribunais não têm negado ação, quer aos particulares 43 quer à Municipalidade, quer ao Ministério Público,44 para impedir os ruídos molestos aos vizi­nhos, individualmente, ou à coletividade em geral.

A jurisprudência tem considerado ofensivo ao sossego dos vizi­nhos o badalar de sinos nas igrejas sem necessidade de culto;43 as alga­zarras resultantes de bailes na vizinhança;46 o funcionamento de alto- falantes, de maneira incômoda, colocados no exterior do prédio;47 o barulho produzido por animais do vizinho;48 o ruído noturno de ofici­nas situadas em zonas mistas;49 o ruído incômodo de motor no período noturno, para sucção de água,00 a vibração produzida por indústrias.31

4.3 SAÚDE

A saúde dos vizinhos é também resguardada pela lei civil ao auto­rizar que o proprietário ou morador de um prédio impeça que o uso anormal do outro ponha em risco esse bem pessoal (art. 1.277). Na ver­dade, não se compreenderia que o legislador protegesse a segurança e o sossego descurando da saúde, uma vez que esses três bens estão inti­mamente ligados e a lesão aos dois primeiros - segurança e sossego - afeta ordinariamente o terceiro - a saúde. Não se trata, aqui, da saúde pública, que incumbe ao Poder Público velar e proteger com medidas sanitárias de ordem coletiva.32 O que o Código Civil visa a resguardar é a saúde individual de cada vizinho, em relação aos seus confrontantes.

42. V. a Lei municipal da Capital de São Paulo 11.804, de 20.6.1995 (revo­gou a Lei 8.016, de 30.8.1974, e seu Decreto regulamentar 11.467, de 30.10.1974), que dispõe sobre ruídos urbanos.

43. Nossa sentença in RT 218/248. No mesmo sentido: TJMS, RT 677/190; TACivSP, RT 656/113; TARS, RT 611/211; TAPR, RT 605/190.

44. TJSP, RT 6%H16. Sobre o assunto, consultar, também, Lei 7.347, de 24.7.1985, que disciplina a ação civil pública.

45. STF, RF 116/432.46. TJSP, RT 163/262.47. TJSP, RT 185/158, 222/242.48. TJSP, RT 210/152, 606/96.49. TJSP, R T 218/245, 233/186, 288/135; TASP, RT 244/474; TACivSP, RT

556/198.50. TASP, RT 244/474.51. TJSP, RT 190/237.52. A saúde pública está protegida pelo Código Nacional da Saúde (Decreto

federal 49.974-A, de 21.1.1961), pelas Leis 8.080, de 19.9.1990, e 8.142, de 28.12.1990, e normas sanitárias complementares da União, do Estado e do Município.

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42 DIREITO DE CONSTRUIR

Em defesa da saúde dos proprietários, moradores ou freqüentado­res dos prédios urbanos ou rurais, podem ser tolhidas todas as ativida­des ou emissões de vizinhança que lesem ou ponham em risco o bem- estar físico ou psíquico das pessoas sujeitas aos seus efeitos. Não se conhece discriminação legal do que constitua ofensa à saúde, uma vez que esta pode ser comprometida por agentes físicos, químicos, bioló­gicos e até mesmo por fatores psicológicos de desassossego ou inquie­tação aos vizinhos. Tanto ofende a saúde do vizinho o que mantém em seu quintal água empoçada propiciadora da proliferação de pernilon- gos, como o que produz em sua oficina ruídos enervantes, ou emana­ções tóxicas, corrosivas ou malcheirosas.

A esse propósito, a jurisprudência tem considerado ofensivas à saúde dos vizinhos a existência de águas represadas que constituam foco de mosquitos;33 a queima de detritos com fumaça incômoda para os vizinhos;34 a construção de fossa sem revestimento, junto ao prédio confínante;33 a poluição de água a ser utilizada pelo vizinho;56 a cria­ção de abelhas que piquem os moradores cònfrontantes;37 e as emis­sões danosas para a vizinhança?8

5. A PROTEÇÃO AO BEM -ESTAR SOCIAL

Outro limite ao direito de construir encontra-se na proteção ao bem-estar social, a que se referia o art. 147 da Constituição de 1946, como motivo de ordem pública para o condicionamento do uso da pro­priedade particular, agora sujeita à sua função social (Constituição Fe­deral, arts. 5C, XXIII, e 170, III).

O conceito de bem-estar social é amplo, de modo a ensejar a re­gulamentação estatal de toda atividade ou construção que possa bene­ficiar ou prejudicar a coletividade, segundo o uso que lhe der o proprie­tário. O bem-estar social confina com o bem comum, isto é, o bem de todos e de cada um, do qual depende a felicidade geral, ou, para usar da expressão de Santo Tomás, aquele que propicia a felicidade de to­

53. TJSP, R T 67/13 8, 146/629.54. TJDF,i?r 105/759.55. TJSP, RT 171/155; TAPR, R T 615/186.56. TJDF, RT 68/568.57. TJMG, RT 117/188.58. TJSC, RF 120/513.

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O DIREITO DE CONSTRUIR E SEUS LIMITES 43

dos os cidadãos - quod faciat totam civitatem feliciem et quantum ad opera virtatis et quantum ad exterior a bona (.Pol., II, S).39

Em nome do bem-estar social, é lícito ao Poder Público opor jus­tas limitações ao direito de construir, desde que requeridas pelos supe­riores interesses da comunidade. Tais interesses são múltiplos e varia­dos, dada a diversidade de bens públicos a proteger, os quais vão desde os que asseguram a satisfação de necessidades físicas, até os que propor­cionam conforto espiritual ou sensações estéticas à coletividade, ou se­jam indispensáveis aos serviços públicos e à segurança da Nação.60

A proteção ao bem-estar social cabe a todas as entidades estatais- União, Estado-membro, Município porque todas elas são instituí­das para a defesa dos interesses da comunidade.

Fica, assim, o direito de construir sujeito à tríplice limitação ad­ministrativa, reclamada pelo bem-estar social segundo a competência e atribuições institucionais de cada uma das esferas de governo. Essa limitação estatal, como bem observa Mirkine Guétzvitch, é caracterís­tica do Direito Constitucional moderno,61 uma vez que os limites antes admitidos eram de natureza privada.

A extensão das limitações em prol do bem-estar social não está demarcada na Constituição, que a autoriza, conseqüentemente, até onde o exigir o interesse público tutelado, respeitados, sempre, os direitos fundamentais do indivíduo. Versando o assunto, com a habitual profi­ciência, Santi Romano assinala que não há um limite predeterminado para tais restrições, donde serem admitidas até onde o permita a pró­pria existência do direito de propriedade, que, a seu ver, é um direito elástico, suscetível de compressão e alargamento segundo as circuns­tâncias sociais atuantes. O que o Estado não pode - conclui o eminente Publicista - é extinguir ou desnaturar o direito de propriedade, a que a limitação se refere.62

No mesmo sentido expressa-se Giacomo Perticone em obra espe­cializada, ponderando que não se pode dar teoricamente os limites do direito de propriedade, visto que seu conteúdo concreto resulta das

59. Observe-se que do art. 182, caput, da Constituição Federal de 1988 infe- re-se que a garantia do bem-estar dos habitantes da cidade é objetivo da política de desenvolvimento urbano.

60. V. cap. 4, sobre as limitações administrativas ao direito de construir.61. Les Nouvelles Tendences du Droit Constitutionnel, Paris, 1931, pp. 82 e ss.62. Santi Romano, Principii di Diritto Amministrativo, Roma, 1906, p. 501.

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44 DIREITO DE CONSTRUIR

exigências da vida social, que possibilitam maior ou menor elasticida­de ao seu exercício.63

No condicionamento do uso da propriedade ao bem-estar social, a Administração pode restringir o direito de construir até os limites exi­gidos pelo interesse da coletividade administrativa, estabelecendo coefi­cientes máximos de ocupação do solo, gabaritos de altura, recuo, afastamento; impondo requisitos de solidez, salubridade, funcionali­dade e estética às edificações; estabelecendo, enfim, o que necessá­rio for para garantir a todos os membros da comunidade uma vida saudável, segura e confortável - suportes fundamentais do bem-estar social. O que não pode é suprimir o direito de construir, a pretexto de condicioná-lo.64

Voltamos a observar que a Constituição de 1988, ao submeter o direito de propriedade ao preenchimento de sua função social, estabe­leceu verdadeiro marco na evolução da simples proibição do uso anor­mal do solo urbano à exigência constitucional de uso adequado à sua função no ordenamento da cidade. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/ 2001), em seu art. 1D, parágrafo único, traz para a esfera do regime jurídico de direito público este que se torna o grande objetivo da orde­nação urbana: a regulação do direito de propriedade deve atender ao bem coletivo, à segurança e ao bem-estar dos cidadãos, bem como ao equilíbrio ambiental.

6. A CONSTRUÇÃO DE H ABITAÇÕ ES POPULARES

A construção de habitações populares tem constituído sério pro­blema para os povos civilizados, levando os governos a instituir órgãos e serviços para a edificação residencial e a fomentar, por todos os meios, a iniciativa particular no setor habitacional, visando a debelar a crise de moradia que se agravou após a última conflagração mundial.63

63. La Proprietà e i suoi Limiii, 1930, pp. 100 e ss. No mesmo sentido, v.: Alcides Greca, El Régimen Legal de la Construcciõn, 1956, p. 64; Rafael Bielsa, Resiriccionesy Servidumbres Administrativas, 1923, pp. 68 e ss.; Vírgilio Testa, Le- gislazione Urbanística, 1956, p. 203; Fragola, Limitazioni Amministrative al Diritto di Proprietà, 1910, pp. 69 e ss.; Emest Freund, Police Power, 1904, pp. 132 e ss.

64. TASP, RT 431/141, acolhendo nosso parecer in Estudos e Pareceres de Direito Público, 11/161, São Paulo, Ed. RT, 1977.

65. A construção de habitações populares está sendo incentivada nos vários países pelos seguintes sistemas: construção â cargo de órgãos do Estado (Rússia e alguns dos antigos “países socialistas’5); construção por órgãos paraestatais (Ale-

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0 DIREITO DE CONSTRUIR E SEUS LIMITES 45

Entre nós, a carência de habitação vinha recebendo tratamento ne­gativo, através das chamadas leis de inquilinato, que apenas congela­vam alugueres e dificultavam despejos, sem qualquer incentivo para a edificação de residências.

Sentindo esta realidade e percebendo a ausência de medidas go­vernamentais aptas a solucionar o problema habitacional do País, o Ins­tituto de Arquitetos do Brasil promoveu, em julho de 1963, o Primeiro Seminário de Habitação e Reforma Urbana, para um exame da situa­ção em bases técnicas. Nesse conclave, do qual participamos, afirmou- se que “dentre os direitos fundamentais do homem e da família se in­clui o da habitação”, e, partindo deste postulado, o Seminário indicou a política habitacional a adotar, “visando à justa utilização do solo, à ordenação e ao equipamento das aglomerações urbanas e ao forneci­mento de habitação condigna a todas as famílias”.66 A EC 26, de 14.2.2000, acrescentou no art. 6o da Constituição Federal a moradia como um direito social.

Para atingir estes objetivos, sugeriu-se um conjunto de providên­cias estatais de ordenação urbanística e fomento à edificação residen­cial, a que o Seminário denominou “reforma urbana”, e cuja execução ficaria a cargo de um órgão federal, com autonomia técnica, adminis^ trativa e financeira para estabelecer as diretrizes urbanísticas convenien­tes ao País e coordenar a construção de habitações, possibilitando a aquisição da casa própria pelas famílias menos abastadas.

As sugestões do Primeiro Seminário de Habitação e Reforma Ur­bana foram, em parte, consubstanciadas na Lei federal 4.380, de21.8.1964, que criou o Banco Nacional da Habitação e estabeleceu um sistema financeiro para a aquisição da casa própria.67

Essa lei determinou que o Governo Federal, através do Ministro do Planejamento, formulasse a política nacional de habitação e de pla­nejamento territorial, coordenando a ação dos órgãos públicos e orien­tando a iniciativa privada no sentido de estimular a construção de ha-

manha, França, Itália, Inglaterra, Bélgica); construção por cooperativas fiscaliza­das e auxiliadas pelo Estado (EUA); construção por pessoas ou sociedades privadas financiadas por instituições oficiais de crédito (Argentina e Brasil).

66. V. as Resoluções do Primeiro Seminário de Habitação e Reforma Urba­na, publicadas pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, em julho de 1963.

67. O Banco Nacional da Habitação foi extinto pelo Decreto-lei 2.291/1986, tendo seus direitos e obrigações sido sucedidos pela Caixa Econômica Federal - CEF.

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bitações de interesse social e o financiamento da aquisição da casa pró­pria, especialmente pelas classes da população de menor renda (art. 1Q).

Em disposições subseqüentes, o legislador concedeu prioridades na aplicação dos recursos para a construção de conjuntos habitacionais destinados à eliminação de favelas, mocambos e outras aglomerações em condições subumanas de habitação; para os projetos municipais ou estaduais que, com as ofertas de terrenos urbanizados e dotados dos necessários melhoramentos, permitissem o início imediato da constru­ção de habitações; para os projetos de cooperativas68 e outras formas associativas de construção de casa própria; e, finalmente, para os pro­jetos da iniciativa privada que contribuam para a solução do problema habitacional (art. 4a, I a IV).

Como instrumentos para a execução dessa nova política habitacio­nal, a Lei 4.380/1964 dispôs sobre a coordenação dos órgãos públicos e da iniciativa privada (arts. Ia a 42), estabeleceu a correção monetá­ria dos contratos imobiliários (arts. 5Q a Ia), instituiu o Sistema Finan­ceiro da Habitação de interesse social (arts. 8Ü a 15), criou o Banco Na­cional da Habitação (arts. 16 a 34), regulou a emissão de letras imobi­liárias (arts. 44 a 53), transformou a Fundação da Casa Popular no Ser­viço Federal de Habitação e Urbanismo (arts. 54 a 56) e, finalmente, concedeu isenções tributárias e facilidades diversas para os investi­mentos e contratos imobiliários de interesse social coincidentes com os objetivos do legislador (arts. 57 a 71).

Criado como autarquia financeira (Lei 4.380/1964), o BNH foi transformado em empresa pública vinculada ao Ministério do Interior (Lei 5.762/1971, alterada pela Lei 6.245/1975), e depois extinto, in­corporado o seu acervo à Caixa Econômica Federal (Decreto-lei 2.291/ 1986), passando as suas atribuições financeiras à entidade incorpora- dora (arts. 1Q e 10).

68. A Instrução 1, de 24.11.1964, do BNH, baixou normas para o registro, funcionamento e fiscalização das cooperativas para construção ou aquisição de ha­bitações (DOU 30.11.1964, p. 10.896).

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Capítulo 3

RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA AO DIREITO DE CONSTRUIR

1. GENERALIDADES: 1.1 Vizinhança; 1.2 Restrição de vizinhança; 1.3 Relatório de Impacto de Vizinhança. 2. RESTRIÇÕES LEGAIS DE VIZI­NHANÇA: 2.1 Limites entre prédios; 2.2 Distância entre construções; 2.3 Tapumes divisórios; muros e cercas: 2.3.1 Tapume; 2.3.2 Muro divisório; 2.3.3 Cerca divisória; 2.4 Paredes divisórias: 2.4.1 Paredes translúcidas. 2.5 Invasão de área vizinha. Janela. Eirado. Terraço. Varanda. Abertura para luz: 2.5.1 Invasão de área; 2.5.2 Telhado; 2.5.3 Janela, eirado, terra­ço, varanda; 2.5.4 Abertura para luz e ventilação; 2.6 Armários embutidos. Aparelhos térmicos e higiênicos. Substâncias corrosivas; 2.7 Arvores li­mítrofes; 2.8 Agitas pluviais, correntes e subterrâneas; 2.9 Construções prejudiciais à vizinhança; 2.10 Entrada em prédio vizinho para constru­ções, reparações e limpeza; 2.11 Passagem forçada; 2.12 Restrições espe­ciais de condomínio edilicio. 3. RESTRIÇÕES CONVENCIONAIS DE VI­ZINHANÇA: 3.1 Restrições individuais; 3.2 Restrições gerais. 4. CONS­TRUÇÕES EM DESACORDO COM AS RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA: 4.1 Demolição; 4.2 Indenização; 4.3 AçÕes cabíveis.

1. GENERALIDAD ES

Ao direito de construir opõem-se limites de ordem privada e de ordem pública. Aqueles são dados pelas restrições de vizinhança, ex­pressas em normas civis e convenções particulares; estes são estabele­cidos pelas limitações administrativas,* consignadas em normas de or­dem pública. A natureza diversa desses dois institutos exige sejam apreciados separadamente, para bem se fixarem o conceito, os caracte­res diferençadores e a forma de atuação de cada um deles sobre a pro­

1. Os vocábulos “restrição” e “limitação” geralmente são tomados como si­nônimos na terminologia jurídica, e, na verdade, expressam conceitos assemelha­dos. Adotamos, entretanto, as expressões “restrições de vizinhança” e “limitações administrativas” para diferençar claramente as duas situações jurídicas e evitar con­fusões no decorrer da exposição.

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48 DIREITO DE CONSTRUIR

priedade particular. Neste capítulo veremos as restrições de vizinhan­ça, na sua conceituação geral e nas modalidades especificas mais fre­qüentes, para, no capítulo seguinte, estudarmos, sob o mesmo critério, as limitações administrativas ao direito de construir.

1.1 VIZINHANÇA

Vizinhança é relação de proximidade. Para fins de Direito, o con­ceito de vizinhança abrange, na sistemática do nosso Código Civil, não só os prédios confinantes como os mais afastados, desde que sujeitos às conseqüências do uso nocivo das propriedades que os rodeiam. Se é certo que o direito de cada proprietário termina nas divisas de sua pro­priedade, não é menos exato que as emissões prejudiciais aos vizinhos podem ir muito além dos prédios confrontantes, para atingir os mais recuados, que nem por isso ficam desprotegidos contra os danos de vi­zinhança.2

As imposições de vizinhança, nos seus efeitos jurídicos, alcançam todos os moradores do bairro, confinantes ou não confinantes, para su- jeitá-los às mesmas obrigações de proteção à segurança, ao sossego e à saúde dos vizinhos. Além disso, tais imposições vinculam não só o pro­prietário (titular do domínio) como o possuidor do imóvel a qualquer título legítimo (compromissário comprador, locatário, comodatário etc.). É o que se deduz dos próprios termos do Código Civil, quando confere “ao proprietário ou possuidor” o direito de impedir o uso anor­mal da propriedade vizinha (art. 277). Proprietário é o dono; possuidor é todo aquele que mora ou se utiliza do prédio exercendo, de fato, al­gum dos poderes inerentes à propriedade.

1.2 RESTRIÇÃO DE VIZINHANÇA

Restrição de vizinhança é toda imposição de ordem privada, pes­soal, reciproca e gratuita, instituída em beneficio dos vizinhos.

As restrições de vizinhança são obrigações de ordem privada, por­que atuam em proveito das propriedades particulares e do bem-estar de seus habitantes - uti singuli. Destinam-se, no dizer de Aubry e Rau, a “assigner à 1’exercice de la liberté naturelle de chaque individu les res- trictions nécessaires pour la rendre compatible avec celle des autres”.3

2. TJSP, RT 152/639.3. Droit Civil Français, 1/42, Paris, 1927.

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RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA AO DIREITO DE CONSTRUIR 49

Como preceitos de natureza civil, as restrições de vizinhança só podem ser impostas por lei federal ou estabelecidas por convenção dos interessados, mas, por isso mesmo que são obrigações privadas, po­dem ser alteradas, transacionadas ou renunciadas pelos vizinhos, a me­nos que tenham sido convertidas, por normas administrativas, em pre­ceitos de ordem pública. Isto ocorre quando os regimentos internos edi- lícios repetem em seus textos aquelas mesmas imposições da lei civil. Já, então, o que era faculdade se transforma em obrigação, e obrigação de interesse público, que não admite descumprimento, modificação ou renúncia pela vontade das partes.

Tais restrições são de caráter pessoal, recíproco e gratuito, porque atuam como preceitos de coexistência entre vizinhos, e não como ônus real sobre o prédio alheio; são recíprocas ou bilaterais porque operam, simultaneamente, como direito (face ativa da restrição) e como obriga­ção (face passiva da restrição); e, finalmente, são imposições gratuitas, porque não exigem qualquer indenização pela sua observância.4

Estas restrições podem revestir a tríplice modalidade: positiva (fa­zer), negativa (não fazer) ou permissiva (deixar fazer).3 No primeiro caso, o vizinho é obrigado a realizar o que se lhe impõe (v.g., reparar a construção em ruína); no segundo, deve abster-se do que lhe é vedado (v.g., não encostar fornalha na parede divisória); no terceiro, deve su­portar o encargo que lhe é imposto (v.g., permitir a entrada em seu pré­dio para construção de parede divisória). Comumente são estabeleci­das no Código Civil, que é, por natureza, o estatuto das relações de ordem privada, mas podem aparecer em outras leis civis e, até mesmo, excepcionalmente, em normas administrativas, porque os dois ramos do Direito - Público e Privado - não são estanques, nem conflitantes, mantendo estreitas relações na ordenação do uso da propriedade.6

Dadas as freqüentes confusões entre restrições de vizinhança e os institutos afins, permitimo-nos confrontá-los, para estabelecer, nitida­mente, seus caracteres distintivos.

As restrições de vizinhança não se confundem com as servidões prediais, porque estas são ônus reais sobre coisa alheia (Código Civil, arts. 1.378 e 1.387, parágrafo único), e aquelas são imposições pessoais

4. Baudry-Lacantmerie, Traité de Droit Civil, V /l56 e ss., Paris, 1899.5. Alcides Greca, El Régimen Legal de la Construcción, Buenos Aires, 1956,

pp. 35 e 36.6. Rafael Bielsa, Relaciones dei Código Civil con el Derecho Administrativo,

Buenos Aires, 1923, pp. 55 e ss.

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50 DIREITO DE CONSTRUIR

operantes entre vizinhos, sem qualquer oneração do prédio em si mes­mo. Não se deve confundir a “servidão” quando se trata de mera “res­trição” (art. 1.285) A imprecisão de certos autores e julgados, que ba­ralham esses conceitos e levam os menos avisados a indistinguir insti­tutos fundamentalmente diversos, contribuem para esta lastimável con­fusão. Verberando essa erronia, o douto Pontes de Miranda diz que o ranço desses autores “tresanda ao século passado, antes de se precisa­rem, no sistema jurídico brasileiro, as distinções entre o conceito de servidão e o de direito de vizinhança”.7 Embora as restrições de vizi­nhança não sejam servidões prediais, nada impede que os vizinhos as convertam em ônus reais, por convenção ou usucapião, como ocorre com as aberturas de janelas permitidas ou toleradas pelo confrontante, em desacordo com as imposições civis (Código Civil, art. 1.302). An­tes disso não passam de obrigações pessoais entre vizinhos.

Não se pode confundir, também, as restrições de vizinhança com as servidões administrativas ou públicas, sabido que estas são imposi­ções reais, unilaterais e onerosas de Direito Público,8 ao passo que aquelas são obrigações pessoais, gratuitas, bilaterais e de Direito Pri­vado. Além disso, as restrições de vizinhança são estabelecidas em pro­veito individual dos confrontantes, ao passo que as servidões adminis­trativas são instituídas em proveito do serviço público ou de utilidade pública.

Por fim, importa distinguir as restrições de vizinhança das limita­ções administrativas. Ambas representam condicionamento ao direito de propriedade, mas, enquanto a restrição civil atinge o direito de pro­priedade em sua substância, a limitação administrativa atinge somente o uso da propriedade. Daí por que as restrições de vizinhança hão de ser estabelecidas em lei federal, diversamente das limitações adminis­trativas, que tanto podem ser impostas por lei como por decreto fede­ral, estadual ou municipal, isto porque a adequação do uso da proprie­dade ao bem-estar social incumbe a todas as entidades, ao passo que a definição do conteúdo do direito de propriedade, neste caso, é matéria de Direito Civil, privativa da União (Constituição Federal, art. 22, I). A natureza jurídica das duas imposições é diversa, como diversos são os seus objetivos, quando atuam sobre as construções.

1. Tratado de Direito Privado, XXIII/297, Rio, 1956.8. Rafael Bielsa, Restricciones y Servidumbres Administrativas, Buenos Ai­

res, 1923, p. 108; Guido Zanobini, Diritto Amministrativo, IV/158 e ss., Roma, 1948; Cino Vitta, Diritto Amministrativo, 1/244 e ss., Roma, 1948; André de Lau- badère, Droit Administratif, Paris, 1957, p. 738.

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RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA AO DIREITO DE CONSTRUIR 51

1,3 RELATÓRIO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA

O Estatuto da Cidade - Lei 10.257/2001 - incluiu, entre seus di­versos instrumentos urbanísticos o Estudo Prévio de Impacto de Vizi­nhança (art. 4fl, VI), como importante instrumento de desenvolvimen­to urbano. Mesmo antes do advento da referida lei, algumas Leis Or­gânicas, como a do Município de São Paulo,9 passaram a exigir, para a implantação de obras que tenham significativa repercussão ambiental ou na infra-estrutura urbana, a apresentação pelo interessado de Rela­tório de Impacto de Vizinhança (RIVI). Este estudo destina-se a per­mitir que os órgãos competentes da Prefeitura examinem a adequação do empreendimento no respectivo local e entorno, com relação aos as­pectos do sistema viário e de transportes, produção de ruídos e resíduos sólidos, capacidade da infra-estrutura instalada etc. Na verdade, as res­trições que eventualmente forem feitas pela Prefeitura, em decorrência do Relatório de Impacto de Vizinhança, não são restrições de natureza civil, mas sim limitações administrativas, mais propriamente de cará­ter ambiental urbanístico. Queremos dizer com isto que, embora se faça referência a impacto de vizinhança - podendo utilizar-se, aqui, o con­ceito de proximidade referido anteriormente - , é preciso não confundir as exigências decorrentes do RIVI com as restrições de vizinhança im­postas pelas leis civis. Aquelas são de ordem pública, estas de natureza privada, como veremos em seguida.

2. RESTRIÇÕES LEG AIS DE VIZINHANÇA

Situadas as restrições de vizinhança no quadro do Direito Priva­do, como limites de ordem civil ao direito de construir, em benefício dos prédios confrontantes e do sossego, saúde e bem-estar de seus ocu­pantes, passaremos a apreciar as várias espécies de restrições legais, o que, para facilidade de estudo e compreensão, distribuímos em grupos afins, abrangentes de todas as hipóteses previstas no Código Civil.

2 A LIMITES ENTRE PRÉDIOS

Seguindo o critério das antecedências lógicas, necessário à boa compreensão da matéria, os limites entre prédios devem abrir o estudo das restrições de vizinhança em espécie, porque, na ordem natural das

9. Município de São Paulo: Lei Orgânica, art. 159; Lei 11.426, de 18.10.1993, arts. 23 e 24; e Decreto 34.713, de 30. i 1.1994.

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coisas, a primeira atitude dos vizinhos é conhecer as divisas de suas propriedades, e, não as achando claras e assinaladas no terreno, ocor­re-lhes demarcar os verdadeiros lindes de seus domínios. Surge, daí, a primeira obrigação de vizinhança: a demarcação dos prédios confron- tantes.

Prédio, em Direito, é a propriedade fundiária. É o terreno, como as suas construções e servidões, mas o vulgo restringe e confunde o conceito de prédio com o de edificação.

O Código Civil assim dispõe sobre a demarcação de prédios (ter­ras):

“O proprietário tem direito a cercar, murar, vaiar ou tapar de qual­quer modo o seu prédio, urbano ou rural, e pode constranger o seu con- fínante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, a avi- ventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas” (art. 1.297).

“Sendo confusos os limites, em falta de outro meio, se determina­rão de conformidade com a posse justa; e, não se achando ela provada, o terreno contestado se dividirá por partes iguais entre os prédios ou, não sendo possível a divisão cômoda, se adjudicará a um deles, median­te indenização ao outro” (art. 1.298).

“Os intervalos, muros, cercas e os tapumes divisórios, tais como sebes vivas, cercas de arame ou de madeira, valas ou banquetas, presu­mem-se, até prova em contrário, pertencer a ambos os proprietários confinantes, sendo estes obrigados, de conformidade com os costumes da localidade, a concorrer, em partes iguais, para as despesas de sua construção e conservação” (art. 1.297, § l fi).

Nestes dispositivos a lei civil reconhece aos proprietários o direito de delimitar seus prédios, fixando-lhes as divisas em conformidade com os títulos de domínio. Como “proprietário” estão compreendidos não só os titulares do domínio pleno mas, também, os detentores de alguma parcela de domínio, como o enfiteuta, o usufrutuário ou o usuário, fi­cando excluídos somente os que detêm direito real de garantia em coi­sa alheia e os simples possuidores.10 Entenda-se, pois, que o direito de demarcar é atribuído a todo proprietário, vale dizer, a qualquer proprie­tário, seja ele detentor da propriedade plena, da propriedade limitada ou resolúvel, ou da nua-propriedade.

10. STF, AJ 70/325.

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Para o exercício desse direito, o essencial é que os limites entre as propriedades estejam confundidos por nunca terem sido fixados ou por já haverem desaparecido.11 No primeiro caso estabelecem-se as divi­sas; no segundo, aviventam-se os rumos antigos. O estabelecimento dos limites ou a renovação dos marcos são feitos na ação própria, que é a demarcatória, prevista e regulada pelos arts. 946 a 981 do Código de Processo Civil, que apreciamos adiante (cap. 9, item 1.10). Esta ação é imprescritível, isto é, subsiste enquanto subsistir o direito de proprie­dade sobre os prédios demarcados.12

Manda o Código Civil (art. 1.298) que, na falta de outro meio, em caso de confusão de limites, se dividam em partes iguais as terras con­testadas, entre os demandantes, segundo a posse. A falta de outros meios refere-se, naturalmente, aos títulos de propriedade que esclareçam con­venientemente a divisa. A repartição das terras em litígio só pode ser feita, como Tbem pondera Clóvis Beviláqua, em partes iguais, uma vez que não há proporção alguma a estabelecer.13 Se não for possível a re­partição da área, adjudica-se a um dos confrontantes e indeniza-se o outro do meio valor.

A última regra enunciada para a demarcação é a de que o intervalo entre os prédios confinantes bem assim os tapumes divisórios presu- mem-se comuns aos vizinhos e por eles podem ser utilizados conjunta­mente. A presunção de comunidade só cede ante prova cabal de exclu­sividade, como veremos em tópico adiante (item 2.3).

2.2 DISTÂNCIA ENTRE CONSTRUÇÕES

0 Código Civil só fixou a distância mínima a ser mantida entre construções vizinhas levantadas em propriedades rurais, deixando a fi­xação do afastamento entre construções urbanas a critério da legisla­ção edilícia e administrativa - Código de Obras, Código Sanitário etc.14

1 ]. Aquino de Magalhães, Teoria e Prática do Direito de Demarcar e da Ação de Demarcação, Rio, 1939, pp. 43 e ss.

!2. TJSP, RT 100/523, 109/198.13. Código Civil Comentado, III/110, São Paulo, 1938.14. Embora não se trate de restrição de vizinhança, mas de limitação adminis­

trativa, chamamos a atenção para as normas sobre estradas de rodagem, que estabe­lecem um afastamento mínimo de 15 m para as construções marginais, a contar do limite da estrada pública. V., a propósito, o art. 7fi do Decreto-lei estadual de São Paulo 13.626, de 21.10.1943. O STJ considerou compatível com o Código Civil (antigo art. 572 e atual art. 1.299) o referido decreto-lei do Estado de São Paulo,

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Quanto àquelas, dispôs: “Na zona rural, não será permitido levantar edificações a menos de três metros do terreno vizinho” (art. 1.303).

A primeira observação é a de que a expressão “prédio rústico” foi suprimida do novo texto legal, no qual foi empregada no sentido de propriedade rural, e não no de construção grosseira. O vocábulo “pré­dio”, em Direito, significa, genericamente, a propriedade fundiária: a terra, suas construções e servidões. Mas, na linguagem comum do povo, o termo “prédio” vem-se tomando privativo da construção, ou, mais propriamente, da edificação, donde encontra-se com freqüência, nas escrituras de alienação, a referência especifica a “terreno e prédio nele construído. Por sua vez, o adjetivo “rústico” tanto expressa a idéia de construção grosseira na sua estrutura como a que é feita no campo, embora estruturalmente fina. Mas a interpretação sistemática do direi­to de construir evidencia que o autor do Código Civil de 1916 usou a expressão “prédio rústico” para significar toda e qualquer construção levantada na zona rural, que, por exclusão, é a que se situa fora do perímetro urbano.13

Essa distância de três metros não é absoluta e irredutível sendo admissível até mesmo a concordância tácita, assim considerada a tole­rância do confrontante para a construção feita à sua vista, sem qualquer

considerando que a segurança pública e o tráfego interestadual se sobrepõem ao interesse expansionista de um só Município (Ia Turma, RJBsp. 11.181 *SP, rei. Min. José DelgadoJ. 5.8.1996, D JU 26.8.1996, p. 29.637). Em outro acórdão, o mesmo Tribunal, por sua 23 Turma, afirmou que “a regra é que a área non aedificandi, situada às margens das rodovias públicas, não é indenizável, porquanto decorre de limitação administrativa ao direito de propriedade, estabelecida por lei ou regula­mento administrativo (Código Civil, art. 572). Esse entendimento tem sido adota­do especialmente em se tratando de área rural. No caso de área urbana, é necessário verificar-se se a restrição administrativa já existia antes da inclusão da área no perí­metro urbano e se implica interdição do uso do imóvel. Em caso afirmativo, a inde­nização é devida” (REsp 3.071-SP, reí. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 24.10.1996, DJU 18.1 l . í 996, p. 44.861). Em outra decisão, ainda, em que não nos foi possível identificar se se tratava de área urbana ou rural, o STJ, Ia Turma, de­terminou a indenização da faixa non edificandi, em face do evidente prejuízo patri­monial que sofre o proprietário por não poder erguer nela qualquer construção (REsp 64.638-SP, rei. Min. César Asfor Rocha, j. 7.6.1995, DJU 28.8.1995, p. 26.577).

15. Perímetro urbano ou, mais adequadamente, área urbana é a delimitada pelo Município para a cidade-sede, suas vilas e terrenos loteados para habitação, embora localizados fora da área de edificação contínua das povoações. O essencial é que se trate de terrenos urbanizados ou urbanizáveis. V., a propósito, do Autor, Direito Municipal Brasileiro, 13a ed., Malheiros Editores, 2003, cap. IX, Urbanis­mo e proteção ambiental.

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oposição ou embargo de sua parte. Concluída a nova obra, ou o acrés­cimo à existente, com preterição da distância legal, mas com permis­são do confinante, ocorre a decadência do direito de exigir a demolição.

2.3 TAPUMES DIVISÓRIOS: MUROS E CERCAS

O Código Civil dispõe sobre a construção de tapumes divisórios e demais elementos de vedação das propriedades em dispositivos disper­sos sob várias epígrafes, o que nos obriga a reunir, em seqüência lógi­ca, as disposições pertinentes ao assunto, para, após, comentá-las em conjunto.

Assim dispõe a lei civil:“O proprietário tem direito a cercar, murar, vaiar ou tapar de qual­

quer modo o seu prédio, urbano ou rural (...)” (art. 1.297).“Os intervalos, muros, cercas e os tapumes divisórios, tais como

sebes vivas, cercas de arame ou de madeira, valas ou banquetas, presu­mem-se, até prova em contrário, pertencer a ambos os proprietários confinantes, sendo estes obrigados, de conformidade com os costumes da localidade, a concorrer, em partes iguais, para as despesas de sua construção e conservação” (§ Ia do art. 1.297).

Neste parágrafo deve-se entender quaisquer meios de separação dos terrenos, observadas as dimensões estabelecidas em posturas mu­nicipais, de acordo com os costumes de cada localidade.

“As sebes vivas, as árvores, ou plantas quaisquer, que servem de marco divisório, só podem ser cortadas, ou arrancadas, de comum acor­do entre proprietários” (§ 2a do art. 1.297).

“A construção de tapumes especiais para impedir a passagem de animais de pequeno porte, ou para outro fim, pode ser exigida de quem provocou a necessidade deles, pelo proprietário, que não está obrigado a concorrer para as despesas” (§ 3Ü do art. 1.297).

“O proprietário que tiver direito a estremar um imóvel com pare­des, cercas, muros, valas, ou vaiados, tê-lo-á igualmente a adquirir mea- ção na parede, muro, vala, vaiado ou cerca do vizinho, embolsando- lhe metade do que atualmente vale a obra e o terreno por ela ocupado” (art. 1.328).

“Não convindo os dois no preço da obra, será este arbitrado por peritos, a expensas de ambos os confinantes” (art. 1.329).

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“Qualquer que seja o valor da meação, enquanto aquele que pre­tender a divisão não o pagar ou depositar, nenhum uso poderá fazer na parede, muro, vala, cerca ou qualquer outra obra divisória” (art. 1.330).

2.3.1 TAPUME

Por tapume entende-se todo meio de vedação da propriedade ur­bana e rural, permitido pelas normas administrativas. Nessa expressão- tapume - incluem-se os muros, cercas, sebes vivas, gradis, valos, ta- biques de proteção aos edifícios em construção e o que mais se desti­nar a separar, vedar ou proteger o imóvel, ou impedir o devassamento do prédio.

O Código Civil coloca os tapumes sob a epígrafe do direito de tapagem (art. 1.297), que é uma das formas de exteriorização do direi­to de propriedade, e reconhece expressamente ao proprietário a faculda­de de cercar, murar, vaiar ou tapar, de qualquer modo, o seu prédio, urbano ou rural, observadas as dimensões estabelecidas pelas normas municipais, de acordo com os costumes de cada localidade. Embora relegue a regulamentação dos tapum esàs normas edilícias, a lei civil nos dá alguns princípios a respeito desses elementos de separação e vedação da propriedade, fixando-lhes o conceito e o modo de utiliza­ção pelos vizinhos.

Os tapumes, quando divisórios, presumem-se comuns (art. 1.297, § l ü) e, por isso mesmo, os proprietários confmantes são obrigados a concorrer, em partes iguais, para a sua construção e conservação (arts. 1.297 e 1.328).

O tapume que se presume comum é o usual na localidade, para vedação de animais de grande porte, como sejam gado vacum, cavalar e muar. Quanto aos demais, que visem a outros fins, ou se destinem a deter animais de pequeno porte, sua feitura e conservação correm ex­clusivamente por conta do dono desses animais. Não se considera tam­bém tapume comum a cerca, o muro ou o gradil artístico construídos para embelezamento da propriedade, ou o tabique de proteção às obras em andamento.

A parte do vizinho para a construção e conservação de tapumes divisórios só poderá ser exigida pelo confínante se firmarem acordo antes da realização das obras, ou se forem construídos em razão de exi­gência administrativa constante de lei ou regulamento. Isto porque a vedação dos terrenos não é uma obrigação, é um direito do proprietá­rio (art. 1.297). Este direito só se converte em obrigação quando im­

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posto por alguma norma administrativa complementar da lei civil, ou quando os próprios interessados se obriguem, por contrato, a essa cons­trução.

Os tapumes divisórios podem ser usados em comum pelos proprie­tários confínantes, presumindo-se, até prova em contrário, pertencerem a ambos (arts. 1.297, § lü, e 1.328). Quanto aos tapumes especiais, as­sim entendidos aqueles que se destinarem à vedação de animais de pe­queno porte, adorno da propriedade, ou preservação de algum dano aos confínantes pela realização de obras ou trabalhos perigosos, a sua cons­trução, conservação e utilização podem ser exigidas daquele que pro­vocou a necessidade (art. 1.297, § 3a).

2.3.2 MURO DIVISÓRIO

Muro divisório é todo aquele que se ergue rente à linha de divisa. Diversamente das paredes divisórias, os muros divisórios não podem ser assentados além dos limites do terreno.16 Justifica-se essa diversi­dade de tratamento porque muro é elemento de vedação, e parede é elemento de sustentação, tanto assim que o Código Civil trata dos mu­ros sob a epígrafe do direito de tapagem (art. 1.297), e das paredes sob a rubrica do direito de construir (arts. 1.299 a 1.313). Dessa distinção resulta, ainda, que os muros só podem ser utilizados pelos vizinhos para vedação de suas propriedades, distintamente das paredes divisórias, que admitem madeiramento e travejamento por parte de ambos os con­fínantes, como veremos adiante (item 2.4).

O muro divisório pertence a quem o constrói.17 Só se presume co­mum aos vizinhos quando não se sabe quem o construiu. Não tem qual­quer assento em direito a tradição de se considerar o muro pertencente ao vizinho para cuja propriedade estão voltados, ou salientes, os pila­res de reforço. A jurisprudência tem sido vacilante na interpretação do art. 1.297, § 1°, do Código Civil, ora determinando que o vizinho pa­gue a metade do custo do muro (TACivSP, RT 616/111), ora enten­dendo que, sem acordo prévio, ou determinação judicial, não há possi­bilidade de se cobrar do vizinho as despesas correspondentes à meação do muro (TACivSP, RT 621/143).

Como elemento de vedação, o muro serve a ambos os vizinhos, não sendo necessário o levantamento de outro justaposto ao anterior.

16, A invasão de faixa ínfima de terreno alheio não acarreta a reintegração, mas somente indenização ( l fl TACivSP, RT 684/90).

17. Ia TACivSP, RT 621/143, 616/111.

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Mas, se o vizinho pretender alteá-lo ou modificá-lo na sua estrutura, só o poderá fazer com consentimento do proprietário ou obtendo a mea- ção devida, judicialmente, na ação adequada. Em face dos problemas de segurança existentes nas cidades grandes, a jurisprudência tem ad­mitido a elevação de muro divisório independentemente do consenti­mento do vizinho (TACivSP R T 727/193).

Erroneamente, alguns julgados têm admitido a utilização do muro, pelo vizinho, para nele madeirar e travejar suas construções lindeiras. O equívoco é evidente, porque a lei civil só admite essa dupla utiliza­ção nas paredes divisórias (art. 1.305), não nos muros divisórios. A meação do muro divisório facultada ao vizinho é, apenas, para utilizá- lo como elemento de vedação comum (arts. 1.297, § lc, e 1.327 a 1.330), nunca como elemento de sustentação.

2.3.3 CERCA DIVISÓRIA

As cercas como os muros divisórios são elementos de vedação das propriedades, sendo estes usuais nas zonas urbanas e aquelas próprias da zona rural. Ambos estão sujeitos aos mesmos princípios legais de feitura e utilização pelos vizinhos. Considera-se cerca divisória todo elemento de tapagem, natural ou artificial, lançado nos limites das pro­priedades confinantes com particulares, ou com o domínio público.

As cercas marginais das estradas públicas serão conservadas, em regra, pela Administração Pública, podendo, todavia, ficar a cargo dos particulares interessados no seu trânsito. Esse traspasse da obrigação do Poder Público para o particular, a nosso ver, só poderá ser feito por acordo, uma vez que compete originariamente às entidades estatais cui­dar do seu patrimônio.

2.4 PAREDES DIVISÓRIAS

O Código Civil dedica vários dispositivos a paredes divisórias, vi­sando a pormenorizar as normas de sua feitura e utilização. Vejamos, primeiramente, essas disposições legais, para, a seguir, comentá-las e esclarecê-las nas suas particularidades.

“Nas cidades, vilas e povoados, cuja edificação estiver adstrita a alinhamento, o dono de um terreno pode nele edificar, madeirando na parede divisória do prédio contíguo, se ela suportar a nova construção; mas terá de embolsar ao vizinho metade do valor da parede e do chão correspondente” (art. 1.304).

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“O confínante, que primeiro construir, pode assentar a parede di­visória até meia espessura no terreno contíguo, sem perder por isso o direito a haver meio valor dela, se o vizinho a travejar, caso em que o primeiro fixará a largura e a profundidade do alicerce” (art. 1.305).

“Se a parede divisória pertencer a um dos vizinhos, e não tiver capacidade para ser travejada pelo outro, não poderá este fazer-lhe ali­cerce ao pé, sem prestar caução àquele, pelo risco a que expõe a cons­trução anterior” (parágrafo único do art. 1.305).

“O condômino da parede-meia pode utilizá-la até ao meio da es­pessura, não pondo em risco a segurança ou a separação dos dois pré­dios, e avisando previamente o outro condômino das obras que ali ten- ciona fazer; não pode, sem consentimento do outro, fazer, na parede- meia, armários, ou obras semelhantes, correspondendo a outras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto” (art. 1.306).

Esses os princípios legais que disciplinam a feitura e utilização de paredes divisórias, e sobre os quais teceremos considerações.

Paredes divisórias são as que integram a estrutura do edifício, na linha de divisa. Distinguem-se dos muros divisórios, os quais são regi­dos pelas disposições referentes aos tapumes, como vimos no tópico anterior (item 2.3). Muro é elemento de vedação, parede é elemento de sustentação e vedação.

De início, observamos que as prescrições sobre paredes divisórias só se aplicam às construções nas “cidades, vilas e povoados cuja edifi­cação estiver sujeita a alinhamento” (art. 1.304). Na zona rural, ou mes­mo em áreas urbanas não sujeitas a alinhamento, descabem as disposi­ções em exame.

Quanto ao assentamento da parede divisória, o proprietário que primeiro construir tem duas possibilidades legais: assentar a parede so­mente no seu terreno ou assentá-la, até meia espessura, no terreno vizi­nho. Se optar pela primeira hipótese, a parede será inteiramente sua; se preferir a segunda, pertencerá a ambos. Em qualquer dos casos, po­rém, o vizinho que posteriormente vier a construir ou reconstruir pode­rá nela madeirar ou travejar, desde que suporte a carga da nova obra.18 Se a parede for inteiramente do vizinho, por assentada rente à linha divisória, o confínante que desejar utilizá-la para travejamento ou ma- deiramento terá que pagar meio valor da parede e do chão correspon­

18. V. a ação para madeiramento ou travejamento em parede divisória, adian­te, no cap. 9, item 1.5.

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dente. Se se tratar, porém, de parede-meia, por assentada meia espes­sura sobre o terreno contíguo, o vizinho só indenizará metade do valor da parede, para nela travejar ou madeirar, pois que metade do chão já lhe pertence.19 Se a parede pertencer inteiramente ao confinante e não tiver capacidade para suportar o travejamento da obra do vizinho, este terá que levantar outra parede, à sua custa, e prestar caução20 pelos da­nos que a sua obra possa produzir na do vizinho (art. 1.305, parágrafo único). Tratando-se de parede-meia, insuficiente para suportar a obra do vizinho, este terá que fazer nova parede, rente à primeira, mas nada terá que caucionar para inicio de suas obras, mesmo que haja possibili­dade de dano à construção vizinha. Se o dano se efetivar, então, sim, ficará sujeito à indenização.

A parede-meia, assim entendida aquela que foi construída em con­junto, com meia espessura em cada terreno confinante, ou foi indeni­zada por metade, pode ser utilizada por ambos os proprietários, até meia espessura, para o fim que desejarem, desde que não ponham em risco a segurança do prédio e cada um comunique ao outro as obras que tencione fazer. Só não se poderão embutir, sem consentimento do vizinho, armários ou obras semelhantes correspondendo a outras, do lado oposto (arts. 1.306 e 1.308).

As disposições sobre madeiramento e travejamento na parede di­visória são hoje obsoletas e em certos casos até prejudiciais ao vizi­nho, dada a diversidade das construções, não permitindo, do ponto de vista técnico, a utilização da parede anteriormente construída. As gran­des estruturas exigem fundações especiais e travejamento próprio, o que afasta a possibilidade das construções com parede-meia. Resulta daí que o vizinho que primeiro construir e usar do seu direito de assen­tar a parede divisória até meia espessura no terreno contíguo (art. 1.305) virá prejudicar a futura construção do confrontante, que, na im­possibilidade de utilizar-se dessa parede, terá que erguer outra justa­posta àquela, perdendo a meia espessura da que foi construída em seu terreno. Com referência à fixação da largura do alicerce, ocorre, atual­mente, o mesmo inconveniente, visto que em raríssimos casos poderá ser utilizado em comum pelo vizinho.

Mais prudente será a não utilização da faculdade de assentar a pa­rede divisória até meia espessura no terreno do vizinho, levantando cada qual a sua construção exclusivamente em seu terreno, e se possí­

19. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, XIII/406, Rio, 1956.20. V. a caução de dano iminente, adiante, no cap. 9, item 1.3.

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vel recuada da linha divisória, com o quê se evitarão inconvenientes de ordem técnica e se afastarão os mui freqüentes conflitos de vizinhança.21

2.4.1 PAREDES TRANSLÚCIDAS

As paredes translúcidas equiparam-se à abertura para luz, porque esta é a sua finalidade precípua. Os tijolos de vidro e outros materiais modernos de construção permitem a passagem da luz, sem propiciar o devassamento vedado pela lei civil. Daí por que é lícito ao proprietário erguer parede divisória com material translúcido, sem incidir na proi­bição do art. 1.301 do Código Civil, que só abrange aquelas aberturas para luz, ventilação e vista.

A jurisprudência tem admitido o levantamento dessas paredes lin- deiras, dado que o material translúcido nelas empregado (tijolos de vi­dro) possibilita a iluminação interna dos cômodos edificados, sem dar visão para o exterior, vale dizer, sem devassamento, o que só ocorreria se tais paredes fossem transparentes.22

Entretanto, erguida a parede, com material translúcido, a menos de metro e meio da linha divisória, nem por isso fica o vizinho impedi­do de levantar a sua edificação rente à do confrontante, muito embora lhe retire a iluminação almejada. Esse novo tipo de parede não cria ser­vidão de luz contra o vizinho, o que só ocorre com a abertura de jane­las e outros elementos de aeração e vista.

2.5 INVASÃO DE ÁREA VIZINHA. JANELA. EIRADO. TERRAÇO.VARANDA. ABERTURA PARA LUZ

Como estes assuntos são tratados conjuntamente pelo Código Ci­vil, reunimo-los para um só comentário, após a transcrição dos disposi­tivos pertinentes:23

21. Io TACivSP, RT 631191.22. STF, Súmula 120: “Parede de tijolos de vidro translúcido pode ser levan­

tada a menos de metro e meio do prédio vizinho, não importando servidão sobre ele”; TASP, RT 221/469.

23. Correspondência legislativa: Código Civil de 1916 art. 573; Código atual; art. 1.301; Código Civil de 1916, art. 573, § 1°; Código atual, art. 1.301, § 2n; Código Civil de 1916, art. 573, § 2a; Código atual, art. 1.302, parágrafo único; Código Civil de 1916, art. 574; no Código atual não tem correspondência; Código Civil de 1916, art. 575; Código atual, art. 1.300; Código Civil de 1916, art. 576; Código atual, art. 1.302.

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“O proprietário construirá de maneira que o seu prédio não despe­je águas, diretamente, sobre o prédio vizinho” (art. 1.300).

“E defeso abrir janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a me­nos de metro e meio do terreno vizinho” (art. 1.301).

“As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros [do terreno vizinho] ” (art. 1.301, § 1Q).

“As disposições deste artigo não abrangem as aberturas de luz ou ventilação, não maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de comprimento e construídas a mais de dois metros de altura de cada piso” (art. 1.301, § 2C)

“O proprietário pode, no lapso de ano e dia após a conclusão da obra, exigir que se desfaça janela, sacada, terraço ou goteira sobre seu prédio; escoado o prazo, não poderá, por sua vez, edificar sem atender ao disposto no artigo antecedente, nem impedir, ou dificultar, o escoamen­to das águas da goteira, com prejuízo para o prédio vizinho” (art. 1.302).

“Em se tratando de vãos, ou aberturas para luz, seja qual for a quantidade, altura e disposição, o vizinho poderá, a todo tempo, levan­tar a sua edificação, ou contramuro, ainda que lhes vede a claridade” (art. 1.302, parágrafo único).

2.5.1 INVASÃO DE ÁREA

Os dispositivos acima consubstanciam as normas sobre invasão de área do vizinho, goteiras e devassamento do prédio confínante. A primeira regra é a de que o confrontante, ao edificar, não pode apossar- se do terreno vizinho, pelo avanço da construção além da meia espes­sura da parede sobre a linha divisória. Essa invasão de área tanto é re- primível quando os alicerces são colocados além dos limites do terreno como quando o avanço se dá nos pavimentos superiores, pela constru­ção dos denominados “balanços”.24

Ocorrendo, por qualquer modo, a invasão da área vizinha, é lícito ao proprietário prejudicado embargar a obra e obter a demolição e res­tituição da parte que lhe pertence, além dos prejuízos que houver su­portado. A restituição da área invadida é decorrência lógica do exercí­cio do direito de propriedade, uma vez que a lei civil assegura ao seu titular o poder de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los “do

24. STF, RT 265/806; Ia TACivSP, RT 665/96.

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poder de quem quer que injustamente os possua ou detenha” (art. 1.228). O vizinho que invade área do confínante passa a exercer posse injusta sobre a propriedade alheia, sujeitando-se à devolução, quando reclamada pelo dono. O meio processual adequado para a retomada da área invadida é a ação de reivindicação, ou a simples reintegração de posse, conforme seja caso corrente de discussão de domínio ou de mera divergência possessória. A ação de reivindicação pode ser exercida a qualquer tempo, enquanto não se consumar a prescrição aquisitiva da área invadida.23

2.5.2 TELHADO

A lei civil proíbe o lançamento direto de águas pluviais ou quais­quer outras no prédio vizinho (art. 1.300). Depreende-se deste disposi­tivo que, se o proprietário colocar calhas, que recolham as goteiras e não as deixem cair na propriedade vizinha, poderá encostar o telhado na linha divisória. O impedimento de lançar goteiras no vizinho não é absoluto, pois admite a concordância deste, caso em que se criará ver­dadeira servidão sobre o prédio confrontante. Essa concordância pode­rá ser expressa ou tácita, tanto assim que, se o vizinho não se opuser ao lançamento de goteira em seu imóvel, dentro de um ano do término da construção, decairá do direito de exigir que se desfaça essa situação (art. 1.302).

2.5.3 JANELA, EIRADO, TERRAÇO, VARANDA

O Código Civil veda que, a menos de metro e meio da divisa do vizinho, se abra janela , eirado, terraço ou varanda. Já, as janelas cuja visão não incida sobre as linhas divisórias bem como as perpendicula­res não podem ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros da linha divisória. E uma servidão negativa que tem por fim impedir que o prédio dominante seja devassado pelo serviente. Mas, como bem ad­verte Pontes de Miranda, não é esse, contudo, o fundamento único de se proibir a abertura próxima. A lei sopesa outros inconvenientes desta proximidade. A proibição é objetiva e independente de qualquer con­sideração à audibilidade ou à visão.26 Não cessa, portanto, a proibição se há muro divisório ou se a visão é oblíqua e não direta. Num e noutro

25. Sobre embargo de obra, ação demolitória, ação de indenização e interdi­tos possessórios, v. o cap. 9.

26. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, XIII/392, Rio, 1956.

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caso subsiste a vedação, embora algumas decisões, desgarradas do ver­dadeiro sentido da lei, se percam em sutilezas desta ordem para con­tornar o impedimento legal. A jurisprudência mais afinada com a lei é a que acolhe a proibição atenta unicamente à distância entre a janela ou o terraço e a divisa do terreno, sem levar em consideração se há muro de permeio, se há visão oblíqua ou direta, se há abertura alta ou baixa, se há devassamento efetivo ou potencial.27 Infringida a distân­cia mínima, a janela, eirado, terraço, varanda ou sacada ofendem o di­reito do vizinho e ficam sujeitos a fechamento ou demolição, desde que o confrontante prejudicado o requeira dentro de um ano do térmi­no da construção (art. 1.302) ou impeça a sua feitura no decorrer da obra. Transcorrido o prazo de ano e dia sem que o vizinho se oponha judicialmente à infração, o infrator adquire a servidão e, daí por diante, nenhuma obra poderá ser levantada a menos de metro e meio da cons­trução dominante.28

Os prédios separados por rua, estrada, caminho ou qualquer outra passagem pública também devem obedecer a distância mínima de me­tro e meio, pois a exceção contida no art. 574 do Código Civil de 1916 não foi contemplada pelo atual Código Civil.

Por janela se deve entender qualquer abertura ou vão de mais de 10 cm de largura ou de mais de 20 cm de comprimento, com vedação móvel ou basculante, com material transparente, translúcido ou opaco, desde que permita a passagem de luz e ar.29

Eirado, terraço e varanda são, hoje, expressões sinônimas, como nos informam os dicionaristas, estando a primeira delas (eirado) em desuso e as duas últimas generalizadas para significar os espaços aber­tos interna ou externamente nos prédios, envidraçados ou não.

2.5.4 ABERTURA PARA LUZ E VENTILAÇÃO

O Código Civil não proíbe a feitura de pequenas aberturas para luz ou ventilação a menos de metro e meio da linha divisória e a dois

27. STF, ÂJ 96/390, RF 122/69; TJSP, RT 107/108, 115/604; TJDF, RF 80/ 112, 104/70; TASP, RT 262/511, 680/120; TAMG,/?r 586/171.

28. Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil - Direito das Coi­sas , São Paulo, 1953, p. 151. Em sentido contrário: Pontes de Miranda, Tratado de Direito P rivado , XIII/398 e 399; TRF Ia Região, f ir 731/428; TJSP, R T 650/62, 678/77; TJMS, R T 682/182; lfl TACicSP, RT 633/105; TAMG, RT 628/199; TARS, RT 589/215.

29. Juarez Bezerra, “Verbetes jurídicos: janela, fresta, seteira, óculo”, RT 171/3.

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metros de altura do piso (§ 2a do art. 1.301). Apenas impõe que estas aberturas não tenham mais de 10 cm de largura sobre 20 cm de com­primento, independendo se os vãos forem livres, com caixilhos fixos ou basculantes, pois constituem-se em locais para passagem de luz ou aeração.

As aberturas para luz - diz a lei civil - não prescrevem contra o vizinho, que, a todo tempo, poderá levantar em seu terreno parede ou muro que lhes vede a claridade (parágrafo único do art. 1.302). Tais vãos, portanto, não se erigem em servidão pelo decurso de mais de ano e dia, embora possam os vizinhos, por acordo escrito e registrado, cons­tituir este ônus. Se essas aberturas excederem as dimensões legais, nem por isso perderá o vizinho o direito de construir até a linha divisória. A jurisprudência tem entendido - e com sobejas razões - que os vãos para luz, mesmo que divirjam das dimensões e do formato estabelecidos pelo Código Civil, ficam sempre sob o regime de tolerância do vizi­nho, que, a todo tempo, poderá vedar-lhes a claridade com a sua edifi­cação.30

As aberturas para ventilação, por outro lado, não foram indica­das no parágrafo único do art. 1.302, no que pode depreender-se que a construção de edificação ou contramuro não poderá vedá-las.

Frestas, seteiras e óculos são expressões suprimidas do Código Civil de 2002, pois têm, todos eles, a mesma destinação de aberturas para luz, diversificando-se, apenas, pela forma que assumem. A fresta e a seteira são vãos retangulares; os óculos, circulares. Mas nada impe­de que apresentem outros formatos (quadrangulares, estrelados, elípti­cos etc.). O que os distingue das janelas é que estas se destinam a dar passagem à luz e ao ar, e aqueles somente à luz.

2.6 ARMÁRIOS EMBUTIDOS. APARELHOS TÉRMICOS E HIGIÊNICOS. SUBSTÂNCIAS CORROSIVAS

O Código Civil estabelece prescrições para a feitura de armários embutidos, fomos, fogões, chaminés e aparelhos higiênicos, em pare- des-meias, bem como sobre encostamento de substâncias corrosivas a essas paredes, visando a evitar danos ao vizinho. As prescrições a esse respeito foram transcritas em tópico anterior (item 2.4), quando cuida­mos das paredes divisórias, o que dispensa repetição nesta oportunida­de. Segundo a lei civil, não é permitido ao vizinho, por óbvias razões,

30. TJSP, RT 147/139, 149/276, 179/199, 181/658, 184/312, 186/132.

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fazer obras na parede-meia de modo a pôr em risco a sua segurança. Dentre estas obras, menciona o texto legal não ser lícito ao confrontan­te, sem consentimento do outro, fazer na parede-meia armário ou obras semelhantes correspondendo a outras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto (art. 1.306).

Outro dispositivo veda se encoste à parede-meia, sem permissão do vizinho, “chaminés, fogões, fornos ou quaisquer aparelhos ou de­pósitos suscetíveis de produzir infiltrações ou interferências prejudi­ciais ao vizinho” (art. 1.308).

Quanto aos aparelhos enunciados, é manifesta a possibilidade de dano que trazem para o vizinho se construídos rente à parede-meia, quer pela produção de calor, quer pelas emanações fétidas que podem produzir em caso de mau funcionamento ou rompimento de seus con­dutos.

Dentre os aparelhos térmicos a própria lei exclui da proibição as chaminés ordinárias e os fogões de cozinha, uma vez que constituem instalações obrigatórias de toda residência e, dadas as suas reduzidas proporções, são diminutas as possibilidades de dano. O que não se per­mite é o encostamento às paredes-meias de fornalhas, forjas ou fomos de fundição, além de chaminés e fogões, os quais, por sua própria des­tinação, devem desenvolver altas temperaturas, capazes de produzir trincas e outros danos nos materiais de construção habitualmente em­pregados nas paredes.

Está vedado também o encostamento de quaisquer substâncias no­civas ou infiltráveis na parede, de modo a extravasar para o lado opos­to ou a corromper-lhe a estrutura ou que, de qualquer modo, prejudi­que o vizinho.

Convém observar que mesmo estas proibições não são absolutas. Se houver concordância do vizinho, podem ser relegadas, mas em tal caso entendemos que o proprietário que anuir expressamente perderá o direito de exigir que se retirem tais aparelhos ou se desfaçam as obras, mesmo que se revelarem ulteriormente prejudiciais ao seu prédio. Nem terá mais a possibilidade de se indenizar dos danos consumados. Sua concordância importará renúncia às restrições impostas em seu bene­fício.

Se a parede é própria do confínante, embora levantada justaposta à do vizinho, não há limitação ao seu uso e nela podem ser embutidos ou encostados quaisquer aparelhos que o proprietário desejar, sem pos­sibilidade de embargo ou caução prévia para prosseguimento das obras.

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Somente a posteriori poderá o confrontante obter a demolição e a re­paração dos danos que tais obras lhe venham causar, como resultado do uso anormal da propriedade. Neste caso, o direito à demolição e à indenização do dano consumado resulta da violação do preceito gené­rico do art. 1.277, que não admite o uso anormal da propriedade, ou seja, o uso nocivo aos vizinhos.

2.7 ÁRVORES LIMÍTROFES

As árvores que se encontram na linha divisória ou nas suas proxi­midades muitas vezes interferem nas construções com suas raízes, ga­lhos, folhas e frutos. Daí a necessidade de se fixar o direito dos vizinhos relativamente às árvores limítrofes. A respeito, dispõe o Código Civil:

“A árvore, cujo tronco estiver na linha divisória, presume-se per­tencer em comum aos donos dos prédios confinantes” (art. 1.282).

“Os frutos caídos de árvores de terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular” (art. 1.284).

“As raízes e ramos de árvores, que ultrapassarem a estrema do pré­dio, poderão ser cortados, até ao plano vertical divisório, pelo proprie­tário do terreno invadido” (art. 1.283).

A primeira regra é a de que a árvore que se achar na linha divisó­ria presume-se pertencer em comum aos confrontantes. É uma presun­ção absoluta, subsistindo ainda quando um dos confinantes prove que foi por ele plantada, com semente própria. Mesmo neste caso pertence a ambos.

Quanto aos frutos de árvores limítrofes, há duas hipóteses a con­siderar: se a árvore está na linha divisória ela é comum e, portanto, comuns serão os seus frutos; se está próxima da linha divisória, mas em terreno exclusivo de um dos confinantes, a este pertencem os fru­tos, mas passarão a pertencer ao vizinho os que, ao se desprenderem da árvore, caírem no seu terreno; se caírem em terreno ou via públicos, pertencerão a quem os apanhar.

Os galhos e raízes das árvores limítrofes devem ficar contidos no terreno do proprietário; se avançarem sobre o vizinho, poderá este cor- tá-los no plano vertical divisório. Este preceito vale não só para as ár­vores particulares como para as que a Administração planta ou conser­va nas vias e logradouros públicos,31 pois que umas e outras podem ofender o direito de vizinhança.

31. TASP, RT 256/436.

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Se, além das raízes e ramas invasoras, o vizinho é lesado pelo desprendimento de folhas ou frutos que lhe prejudiquem o prédio, a situação se transmuda em uso anormal da propriedade, e será acerta­da, judicialmente, em face do preceito geral do art. 1.277, que lhe faculta obter a reparação dos danos e im pedira nocividade advinda do vizinho.

2.8 ÁGUAS PLUVIAIS, CORRENTES E SUBTERRÂNEAS

O Código Civil cuida, em diversos dispositivos, das águas pluviais, correntes e subterrâneas no que se relacionam com os direitos de vizi­nhança, ditando normas para o seu aproveitamento, captação e escoa­mento. O Código de Águas (Decreto 24.643, de 10.7.1934) ainda está em vigor, regulando toda a matéria, naquilo que não tiver sido revoga­do pelas leis posteriores e pelo Código Civil (arts. 1.288 a 1.296). Pas­saremos a comentar os novos dispositivos do Código Civil, tecendo re­ferências ao Código de Águas apenas quando este se referir ao direito de construir e assuntos correlatos.32

A utilização das águas pluviais, correntes e subterrâneas é permi­tida e assegurada indistintamente a todos os proprietários ou ocupantes dos terrenos em que elas caiam ou se encontrem no seu estado ou curso natural. Embora o Código de Águas distinga as pluviais, as fluviais, as nascentes, as lacustres e as subterrâneas, de todas elas permite a capta­ção e utilização para as necessidades domésticas e os serviços de lavou­ra, do comércio ou da indústria, desde que não se retenham as sobras, nem se piore o estado das águas e a condição dos prédios inferiores.

A regra é a de que o dono da terra também o é da água nela exis­tente e da que a atravesse, podendo o proprietário delas se servir até o limite das suas necessidades efetivas. Tudo o que sobejar é do vizinho para onde o supérfluo se escoa naturalmente. Em tema de águas, a titu­laridade do direito à sua utilização vai passando de vizinho a vizinho, à medida que a corrente desce no seu curso natural. Cada proprietário delas se aproveita segundo as suas necessidades, deixando o remanes­cente para o prédio inferior.

As Leis 9.433, de 8.1.1997, e 9.984, de 17.7.2000, instituíram novo regime das águas internas, regulamentando o inciso XIX do art.

32. V., do Autor, Direito Administrativo Brasileiro, 30a ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo e outros, São Paulo, Malheiros Editores, 2005, pp. 540 e ss.

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21 da Constituição Federal. Não há mais águas particulares. A água passa a ser considerada um bem de domínio público, recurso natural limitado e dotado de valor econômico. O seu aproveitamento para qualquer fim passa a depender de outorga onerosa do Poder Público. Assim, as regras do Código de Águas permanecem válidas, mas a uti­lização da água pelo dono ou ocupante do terreno onde elas se encon­trem fica na dependência de obtenção da outorga do Poder Público.

A lei não define a natureza jurídica da outorga, mas entendemos deva ser uma concessão ou permissão de uso remunerada, que são as figuras jurídicas adequadas para a utilização de bens do domínio pú­blico. Ela será emitida pela autoridade competente federal, ou esta­dual, de acordo com o domínio da corrente aqüífera (art. 14), por pra­zo não superior a 35 anos, renovável por igual período; mas poderá ser revogada pelo não cumprimento de suas condições pelo outorgado, ou por relevante interesse público (arts. 15 e 16). O aproveitamento dos recursos hídricos será objeto de planos elaborados por bacias hidrográ­ficas, por Estados e para o País, os quais deverão estabelecer as priori­dades de uso, devendo preservar, na medida do possível, o uso múlti­plo. Só estão liberadas do pedido de outorga a utilização da água para as necessidades de núcleos populacionais distribuídos no meio rural, e as derivações, captações e acumulações consideradas insignificantes, de acordo com regulamentação específica (arts. 12 e 13).

Conforme se verifica, o dono da terra deixou de ser, também, o dono da água nela existente e da que a atravesse. Continua sendo o titular do direito de seu uso, mas este direito está condicionado à con­cessão ou permissão do Poder Público. Não mais prevalece a regra de que, servindo-se o proprietário de acordo com suas necessidades, as sobras vão para o vizinho para onde se escoam naturalmente. Não ha­vendo sobras, não havia direito do vizinho.33 O princípio agora é outro: o aproveitamento da água dependerá do plano existente para a respec­tiva bacia hidrográfica, podendo ser distribuída pelo Poder Público de forma diferente da prevista no Código de Águas, o que se aplica, in­clusive, às correntes que sirvam de divisa a imóveis confmantes.

Obtida a permissão para o uso da água, se necessária, a sua capta­ção é livre aos proprietários, desde que não lesem os vizinhos, nem infrinjam as normas administrativas. O certo é que a obra do vizinho não pode suprimir a água do poço ou da fonte de seus confmantes. Mas

33. TJSP, RT 153/186, 159/316, 169/125, 173/143; TASP, RT 207/407, 258/ 354; TJMG, M /1/72.

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permite-se que o proprietário escave o seu poço ou capte a sua fonte com perfurações até o lençol d ’água, mesmo que reduza o suprimento do vizinho. Se ambos são proprietários, podem realizar as captações necessárias em seu terreno, mas é de eqüidade que a obra de um não retire a totalidade da água do outro; se há pouca água, devem dividi-la na captação ou perfuração do poço. Daí a necessidade da obtenção da outorga, devendo o Poder Público efetuar a distribuição da água de for­ma a atender os interessados e o interesse público.

Quanto à abertura de poços, sempre dependente de permissão, é proibida a sua escavação junto ao prédio vizinho sem guardar as dis­tâncias necessárias ou tomar as devidas precauções para não prejudi­car o confinante (Código de Águas, art. 97). Este dispositivo reforça a segurança dos prédios confrontantes, muitas vezes ameaçados pelas escavações ou perfurações à guisa de captação de águas subterrâneas. O Código Civil, em seu art. 1.310, também reforça este aspecto quando proíbe “fazer escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nas­cente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais”.

A canalização das águas pelos vizinhos, através de prédios alheios, é permitida pelo Código Civil (art. 1.293) e pelo Código de Águas (arts. 117 a 138), desde que sejam previamente indenizados os proprietários prejudicados e podendo exigir que o aqueduto (canos, tubos, manilhas etc.) seja subterrâneo quando atravessar áreas edificadas, quintais, pá­tios, hortas, jardins, bem como casas de habitação e suas dependências. Esta canalização, entretanto, só se justifica quando para atender às pri­meiras necessidades da vida, para os serviços da agricultura ou da in­dústria, para o escoamento das águas superabundantes, ou para o en­xugo e drenagem dos terrenos. Neste caso, o proprietário prejudicado tem direito ao ressarcimento pelos danos que de futuro lhe advenham da infiltração ou irrupção das águas, bem como da deterioração das obras destinadas a canalizá-las (Código Civil, art. 1.293, § Ia).

A faculdade legal de canalizar águas através de terrenos alheios é ao mesmo tempo um direito do proprietário e uma restrição de vizi­nhança, a que o Código de Águas, por evidente incúria legis, classifica como servidão de aqueduto e concede uma ação de rito especialíssimo para sua obtenção.34 Tal ação tanto pode ser usada pelo particular como pelo Poder Público, com a só diferença de que, no primeiro caso, o direito de atravessar com o aqueduto as propriedades particulares será reconhecido em juízo e, no segundo, será previamente “decretada a ser­

34. V., no cap. 9, item 1.8, a ação de servidão de água.

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vidão” pela Administração interessada, fixando-se judicialmente, se não houver acordo, o montante da indenização a ser paga aos prejudi­cados (arts. 117 a 138). Por outro lado, os proprietários de imóveis vi­zinhos ao aqueduto poderão dele se utilizar para suas primeiras neces­sidades (Código Civil, art. 1.295) e, de outra forma, mediante paga­mento de indenização aos proprietários prejudicados e ao dono do aqueduto, de importância equivalente às despesas que seriam necessá­rias para a condução das águas até o ponto de derivação (Código Civil, art. 1.296).

A elevação artificial das águas para o prédio superior é admitida como meio normal de aproveitamento, captação e canalização, mas o escoamento dessas mesmas águas para o prédio inferior, depois de uti­lizadas, cria para o proprietário um novo encargo, que não está obriga­do a suportar sem a devida indenização. E o que dizem os arts. 1.289 do Código Civil e 92 do Código de Águas. O dono do prédio inferior, em tal caso, poderá exigir que essas águas escorredouras sejam desvia­das da sua propriedade, que antes não as tinha, ou que seja indenizado do dano ou incômodo que causarem. Isto porque a nova situação do escoamento é artificial e, via de regra, prejudicial. Mas pode ocorrer que essas águas artificialmente elevadas, no seu retomo à fonte, bene­ficiem os prédios inferiores por onde venham a passar. Neste caso, manda a lei que se leve em consideração o valor dos benefícios que os prédios possam auferir de tais águas (parágrafo único do art. 1.289 do Código Civil e parágrafo único do art. 92 do Código de Águas). O cri­tério atende à justiça e à eqüidade, compensando-se os ônus e vanta­gens advindos da nova situabgção artificialmente criada pelas águas remanescentes do prédio superior. Tratando-se de escoamento natural, a situação jurídica dos vizinhos é outra, e bem diversa, como veremos a seguir.

O escoamento natural das águas tem capital importância para os vizinhos. E princípío-base que os prédios inferiores são obrigados a receber as águas que correm naturalmente dos prédios superiores. Mas há esta restrição de vizinhança: se o vizinho superior fizer obras-de- arte para facilitar o escoamento, procederá de modo que não piore a condição natural e anterior do prédio inferior. Estes preceitos tanto abrangem os prédios urbanos como os rurais (arts. 1.288 do Código Ci­vil e 69 do Código de Águas).

O proprietário do terreno inferior não pode se escusar de receber as águas pluviais ou correntes que desçam naturalmente do terreno su­perior. Mas há de recebê-las em seu estado natural. Não pode o vizi­

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nho superior piorar a condição do escoamento, alterando o desagua- douro, confinando as águas, ou nelas adicionando outras que não as compunham anteriormente. Qualquer modificação feita pelo proprie­tário superior que agrave a situação do prédio inferior, relativamente ao escoamento, quantidade ou qualidade das águas, pode ser impedida pelo prejudicado, que tem direito a exigir, por via cominatória, que se desfaçam as obras prejudiciais, se restabeleça a situação anterior de es­coamento e se lhe indenizem os danos consumados.

Por “prédio inferior” se entende todo aquele que está abaixo, e não só o vizinho imediato, pois que a alteração do escoamento das águas pode vir a prejudicar não só o confrontante como os demais que se situam no mesmo eixo de declive do terreno.

Muito comum é o confínamento das águas que antes corriam es­palhadas sobre o terreno, canalizando-as por um só bueiro para o terreno inferior. Tal proceder é, sem dúvida, um empioramento da condição anterior das águas, porque, confinadas, adquirem maior impetuosidade e provocam maior erosão e outros danos no embate com as constru­ções ou culturas inferiores. Ao realizar as obras no terreno superior, o proprietário tem o dever de evitar o agravamento das águas que des­cem para os outros terrenos.

Sendo mui freqüentes os conflitos de vizinhança em razão da al­teração do estado natural das águas que se escoam para os prédios inferiores, a jurisprudência é farta e variada a respeito, considerando entre outros casos de violação das normas de utilização, captação e escoamento das águas: a retenção das águas que eram aproveitadas no prédio inferior;33 a inundação do prédio inferior em razão de obras no superior;36 o represamento no prédio inferior, inundando o superior;37 o encaminhamento de todas as águas pluviais para um só vizinho infe­rior;38 o desvio do curso de um rio com prejuízo para o prédio inferior;39 o confínamento das águas, que corriam espalhadas, em valeta-obra, prejudicando o prédio inferior;40 o aterro no prédio inferior que passa a impedir o escoamento das águas do superior;41 a obstrução pelo vizi­

35. TJSP, RT 61/321.36. TJSP, RT 70/148.37. TJSP, RT 76/328, 173/983.38. TJSP, Ar 85/39.39. TJSP, R T S S im .40. TJSP, RT 103/182, 157/711.41. TJSP, RT 152/639, 163/297.

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nho inferior de bueiros, ralos, valetas e demais escoadouros do prédio superior.42

Como se vê, todo e qualquer fato ou ato que piore a condição de escoamento das águas é vedado aos vizinhos, tanto aos dos prédios su­periores como aos dos prédios inferiores, pois que uns e outros podem agravar os direitos de vizinhança, por suas construções ou atividades que atinjam e modifiquem o estado natural das águas ou de seu escoa­mento primitivo. A modificação do curso natural das águas, além do necessário para o seu aproveitamento, é vedada por lei, como também o é a sua poluição.43

As águas pluviais não estão compreendidas no regime de apro­veitamento estabelecido pela Lei 9.433, de 8.1.1997. E o que se depre­ende do art. 12 do referido diploma, que só se refere a corpo de água e aqüífero subterrâneo. De acordo com o Código de Águas, as águas pluviais são as que procedem imediatamente das chuvas (art. 102), ou seja, não foram captadas por quem quer que seja, tampouco tratadas pelo Poder Público. O Código Civil dispõe que “o proprietário de nas­cente, ou do solo onde caem águas pluviais, satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir, ou desviar o curso natural das águas remanescentes pelos prédios inferiores” (art. 1.290; e Código de Águas, art. 103). Compreende-se, assim, que, após o escoamento das águas pluviais por uma propriedade, estas serão tratadas como de do­mínio público, não tendo o proprietário receptor o direito de impedir seu curso ou desviá-lo. As nascentes, se situadas em terreno particular, poderão ser utilizadas para consumo humano e dessedentação de ani­mais. No âmbito do direito de construir, são as águas pluviais as que mais interferem na relação de vizinhança, permanecendo hígidos, por­tanto, todos os preceitos do mesmo Código que dizem respeito a esse aspecto (arts. 102 a 108).

A poluição das águas é expressamente vedada pelo Código Civil (arts. 1.291 e 1.309) e pelo Código de Águas (arts. 98 e 109 a 116) e punida, como crime, pelo Código Penal (art. 271 e parágrafo único) e pelo art. 54, § 2C, III, da Lei 9.605, de 12.2.1998, que “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades le­sivas ao meio ambiente”. A lei civil proíbe a poluição das águas indis­pensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imó­veis inferiores e construções capazes de poluir ou inutilizar a água de

42. TJSP, RT 186/785, 190/778.43. TJMG, RT 180/848.

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poço ou fonte alheia; a lei administrativa já previa esta vedação (art. 98), e diz, genericamente, que a ninguém é lícito conspurcar ou conta­minar as águas que não consome, com prejuízo de terceiros (art. 109); e, finalmente, a lei penal considera crime “corromper ou poluir água potável, de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para con­sumo ou nociva à saúde” (art. 271). Como se vê, as três normas repri­mem o mesmo ato - poluição - que toma nociva ou imprestável a água para o consumo ordinário, embora empreguem expressões diversas. Em última análise, água poluída, inutilizada, contaminada, corrompida ou conspurcada é água imprestável para a sua destinação comum.44

O que as leis vedam é a transformação da água potável em água imprestável aos fins a que se destina. Não importam a causa, a subs­tância ou o modo pelo qual se piorou o estado natural da água. Poluir é sujar, contaminar, envenenar a água, por meios físicos, químicos ou bio­lógicos. No sentido em que a lei usa a expressão “poluir”, ela abrange a inutilização total ou parcial, a corrupção, a conspurcação e a conta­minação da água por qualquer modo ou agente.

Mas a poluição é relativa ao uso da água. A água usada para fins humanos há de ser mais pura que a empregada na lavoura ou na indús­tria. Não se há, portanto, de exigir os mesmos cuidados com a água de mesa e com a usada no acionamento de uma turbina. Todavia, uma e outra podem ser poluídas ou inutilizadas pelo vizinho: aquela, com o simples adicionamento de substâncias nocivas à saúde; esta, com o lan­çamento de detritos que possam danificar a máquina ou entupir o seu conduto. Todo ato que piore qualitativamente o estado natural da água é considerado poluição ou inutilização e, como tal, vedado, reprimível pelo vizinho e punível penalmente como crime contra a saúde pública (Código Penal, art. 271). As águas que não forem indispensáveis às primeiras necessidades da vida, se poluídas, deverão ser recuperadas ou desviadas de seu curso, devendo o poluidor ressarcir os danos cau­sados aos possuidores dos imóveis inferiores prejudicados (Código Ci­vil, art. 1.291, segunda parte).

2.9 CONSTRUÇÕES PREJUDICIAIS À VIZINHANÇA

O Código Civil dispõe: “O proprietário pode levantar em seu ter­reno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos” (art. 1.299).

44. A Lei 9.605/1998 tipifica como crime “causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade”.

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RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA AO DIREITO DE CONSTRUIR 75

Com este dispositivo a lei civil deferiu ao Poder Público - federal, estadual e municipal - a incumbência de editar normas administrativas que passarão a regular as relações de vizinhança, com os mesmos efei­tos individuais das regras de Direito Privado. A nosso ver, essas nor­mas administrativas não afetam a substância do direito de propriedade, por não se confundirem com os preceitos do Direito Civil, da compe­tência exclusiva da União (Constituição Federal, art. 2 2 ,1); apenas in­terferem no uso da propriedade, e o fazem por delegação expressa do legislador civil. Passando a complementar a legislação privada, como normas de vizinhança, criam direitos subjetivos para os vizinhos e lhes asseguram as pretensões e ações individuais correspondentes, embora alicerçados em preceitos administrativos. A expressão “regulamentos administrativos” é genérica, abrangente de todas as normas adminis­trativas, provenham elas da União, do Estado-membro ou do Municí­pio, sob a forma de lei ou decreto, como está exposto amplamente no capítulo seguinte, item 1.4.

O essencial é, como observa Pontes de Miranda, que essas nor­mas administrativas sejam válidas, isto é, editadas de conformidade com os princípios constitucionais e os ditames das leis hierarquicamen­te superiores.43

Cabe à União, concorrentemente com os Estados, editar as nor­mas de proteção à saúde (Constituição Federal, art. 24, Xll), remanes­cendo para o Município a regulamentação local do mesmo assunto,46 no uso normal de seu poder de polícia administrativa.47 Com essa fa­culdade, pode e deve o Município dispor sobre a localização de co­cheiras, currais, pocilgas, estrumeiras, depósitos de detritos industriais e demais construções ou atividades que incomodem ou prejudiquem a vizinhança com maus odores, proliferação de moscas, propagação de doenças ou quaisquer outros fatores inquietantes ou molestos48 ou qual­quer outra restrição fundada na segurança e na saúde pública.

As normas administrativas a respeito, embora complementares da lei civil, são de ordem pública, e, por isso mesmo, não podem ser

45. Tratado de Direito Privado, XIII/401, Rio, 1956.46. V., do Autor: “Poder de polícia do Município”, ín Direito Municipal Bra­

sileiro, 13a ed., 2003, cap. VIII.47. TJRJ, 319/520; TJSP, R T 646/65.48. O art. 578 do Código Civil de 1916 não tem correspondência legislativa

no Código de 2002. Isto não significa que seu conteúdo esteja revogado; apenas o tratamento dado pelo novo Código é mais abrangente.

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transacionadas entre os vizinhos para o seu descumprimento, nem es­tes adquirem direitos à permanência no local, se tolerados anteriormen­te ou mesmo permitidos por regulamentação precedente. Contra as leis de ordem pública não há direitos adquiridos.49 Essas normas podem dispor livremente sobre a localização e construção dessas atividades in­cômodas ou prejudiciais à vizinhança, afastando-as do perímetro urba­no, ainda que leis anteriores o permitissem. Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo que “não vale argumentar com a cir­cunstância de, na época da instalação, haver sido a cocheira construída de acordo e com autorização dos órgãos competentes - Prefeitura e Ser­viço Sanitário. O que era, ontem, permitido deixou de sê-lo na atuali­dade, por motivos de higiene e de saúde pública, relativamente às quais são exatamente maiores as limitações que se impõem aos direitos do indivíduo. Se assim não fosse, não poderiam as autoridades municipais ou sanitárias exigir, como freqüentemente sucede, que se cumpram as novas disposições, ditadas pela higiene, com relação às construções já acabadas e que por elas são atingidas”.30

2.10 ENTRADA EM PRÉDIO VIZINHO PARA CONSTRUÇÕES, REPARAÇÕES E LIMPEZA

Como imposição de vizinhança, a lei civil prescreve:“O proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o

vizinho entre no prédio, mediante aviso prévio, para: I - dele tempora­riamente usar, quando indispensável à reparação, construção, recons­trução ou limpeza de sua casa ou muro divisório; II - apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem causalmente” (art. 1.313, l e II)

“Se do exercício do direito assegurado neste artigo provier dano, terá o prejudicado direito a ressarcimento” (art. 1.313, § 3fi).

“O disposto neste artigo aplica-se aos casos de limpeza ou repara­ção dos esgotos, goteiras e aparelhos higiênicos, assim como dos po­ços e nascentes e ao aparo de cerca viva” (art. 1.313, § lü).

Entretanto, o atual Código Civil, em seu art. 1.297, § 2a, dispõe que “as sebes vivas, as árvores, ou plantas quaisquer, que servem de marco divisório, só podem ser cortadas, ou arrancadas, de comum acor­do entre proprietários”, não mais permitindo ao vizinho entrar no ter­

49. STF, RDA 47/112; TJSP, R T 670/72.50. TJSP, RT 119/172.

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RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA AO DIREITO DE CONSTRUIR 77

reno alheio, mediante apenas comunicação prévia, para fazer podas, sem necessidade de acordo.

Estes dispositivos consignam séria restrição ao direito de proprie­dade, ao permitir que o vizinho utilize o prédio alheio no seu interesse. Mas a restrição se justifica plenamente como dever recíproco de vizi­nhança e pelas vantagens que dela decorrem para o vizinho que a su­porta, pois que a conservação e a limpeza das construções e de seus tapumes são benéficas à segurança dos prédios e à saúde dos vizinhos. Além do mais, essa entrada no prédio vizinho não é feita arbitraria­mente: está condicionada à necessidade das construções, reparações ou limpezas, e deve ser precedida de solicitação do interessado. Ademais, será temporária, pois não se admite que o vizinho mantenha-se perma­nentemente na propriedade confínante, a pretexto de realizar serviços em seu prédio. Podendo, inclusive, ser impedida sua entrada no imó­vel nos casos em que a coisa buscada na propriedade vizinha for entre­gue ao seu dono (art. 1.313, § 2Q).

Com essas cautelas pode o vizinho entrar na propriedade de seu confrontante para realizar os serviços necessários à edificação e con­servação de sua casa, entendido nesta expressão - casa - qualquer edi­fício, suas edículas e instalações complementares, bem como o terreno murado. Se o vizinho, mesmo satisfeitas as exigências legais, se opu­ser à entrada do confínante, disporá este de pedido cominatório para obter o mandado de ingresso pessoal e de seus empregados para os ser­viços necessários, e pelo tempo que for fixado na sentença.

Se deste ingresso na propriedade vizinha advier dano, o seu cau­sador ficará obrigado a indenizar o proprietário ou o possuidor que o suportou, pois não só o dono, como também o ocupante do prédio, es­tão sujeitos a dar a permissão de ingresso ao vizinho, e, portanto, am­bos ficam com direito a se indenizar dos prejuízos que tiveram.31

2.11 PASSAGEM FORÇADA52

Sobre a passagem forçada, o Código Civil dispõe:“O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou

porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o

5 1. TASP, RT 263/520.52. V. Lenine Nequete, Da Passagem Forçada, 3a ed., p. 65, e artigo de losé

Guilherme Braga Teixeira, “Impossibilidade de usucapião de passagem forçada”, RT 623/251.

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vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário” (art. 1.285).

“Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem” (art. 1.285, § 1Q).

“Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das par­tes perca acesso a via pública, nascente ou porto, o proprietário da ou­tra deve tolerar a passagem” (art. 1.285, § 2a).

O Código Civil de 2002 inova as disposições referentes à passa­gem forçada, em face do avanço da tecnologia e da prestação dos ser­viços públicos, obrigando o proprietário a tolerar a passagem de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviço de utilidade pú­blica, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa, devendo sempre, neste caso, haver indenização que atenda, inclusive, à desvalorização da área re­manescente (art. 1.286).

A passagem forçada é restrição ao direito de propriedade, decor­rente das relações de vizinhança. Não é servidão predial, cujos funda­mento e pressupostos são outros. A passagem forçada é uma imposi­ção da solidariedade entre vizinhos e resulta da consideração de que não pode um prédio perder a sua finalidade e valor econômico por fal­ta de acesso a via pública, nascente ou porto, permanecendo confinado entre as propriedades que o circundam, limítrofes ou não. Quando tal situação ocorre, permite a lei que o prédio rural ou urbano, assim en­cerrado entre outros, obtenha dos vizinhos a saída necessária. Esta pas­sagem não fica à sua escolha, nem ao desejo dos vizinhos: deve ocor­rer sobre o imóvel que mais facilmente se prestar à passagem e será fixada judicialmente, da maneira menos onerosa possível aos que es­tão na obrigação de concedê-la. Todos os danos deverão ser indeniza­dos pelo proprietário do prédio encravado, que obteve a passagem.

A passagem que a lei concede não é para ligar uma propriedade a outra, ou a alguma cidade ou vila. É, apenas e tão-somente, para esta­belecer comunicação entre a propriedade encravada e a via pública , ou fonte pública, ou porto público. Se a propriedade dispuser de caminho para esses locais, ainda que mais longo ou mais oneroso, não poderá ser reclamada outra passagem através das propriedades vizinhas, por não se tratar de imóvel encravado. Por prédio encravado só se entende aquele que não dispõe de nenhuma saída para qualquer dos locais indi­cados no Código Civil (art. 1.285).

As servidões de passagem ou de trânsito são direitos reais sobre coisa alheia (Código Civil, arts. 1.378 e 1.385). Não decorrem das re­

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lações de vizinhança, mas sim de situações de fato ou de contrato pe­los quais se impõe a um prédio um ônus real em favor de outro ou de outros, vizinhos ou não. Como bem adverte Clóvis Beviláqua,53 “não é essencial que os prédios guardem entre si contigüidade. Ordinariamen­te, o vínculo da servidão se estabelece entre prédios vizinhos, mas, al­gumas vezes, vai atingir a prédios afastados, como pode acontecer com a servidão de trânsito e com a de tirar água”.

As servidões podem objetivar as mais diversas utilidades sobre a propriedade alheia, sendo as mais comuns as de caminho e água. Mas ainda aqui é oportuno repetir que a servidão de caminho, em seu con­ceito exato, não se confunde com a passagem forçada, que vimos estu­dando como restrição de vizinhança. Aquela se cria pela reiteração do trânsito (usucapião)34 ou por convenção entre as partes; esta nasce uni­camente de uma situação de vizinhança, já prevista em lei: o encrava- mento do prédio em seus confmantes.33

Para afirmar ou negar as servidões prediais dispõe o interessado da ação confessória ou negatória de servidão; para obter a passagem forçada deve o proprietário encravado utilizar-se da via cominatória, com fundamento no art. 1.286 do Código Civil, em ação ordinária, de rito comum.

Por estas considerações se vê que a passagem forçada é um direi­to pessoal que nasce e se extingue entre vizinhos; as servidões prediais são direitos reais que se originam de situações de fato entre prédios, confmantes ou não, ou de convenção das partes que instituem serven­tia de um prédio a outro em caráter perpétuo e independentemente das relações de vizinhança.

2.12 RESTRIÇÕES ESPECIAIS DE CONDOMÍNIO EDILÍCIO

Além das restrições comuns de vizinhança que apreciamos prece­dentemente (itens 2.1 a 2.11 o Código Civil estabeleceu como deveres do condômino: não realizar obras que comprometam a segurança da edificação; não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esqua­drias externas; dar às suas partes a mesma destinação que tem a edifi­cação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade

53. Código Civil Comentado, III/257, 1938.54. 1Q TACivSP, RT 672/125, 677/132; TJMG, RT 674/187.55. TARJ, R T 609/197; l ü TACivSP, R T 6 W W 6 , 676/115, 677/132.

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e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes (art. 1.336, II, III e IV).

Estes dispositivos complementam as restrições de vizinhança an­teriormente analisadas, regulando situações peculiares ao condomínio edilicio, mas sem derrogar as normas gerais da lei comum. Assim, a Lei 4.591, de 16.12.1964, continuará sendo aplicada naquilo que não confrontar com as disposições estabelecidas pelo Código Civil.

Como se vê, as restrições específicas da vizinhança de unidades autônomas colimam três objetivos distintos, a saber: a manutenção da estrutura e do aspecto originais do edifício; a preservação da finalida­de institucional do prédio, a segurança da edificação e de seus ocupan­tes, assim como o bem-estar dos condôminos; a livre utilização das áreas e equipamentos comuns.56

Para reprimir as infrações acima enunciadas, a lei estabeleceu que o condômino faltoso pagará multa prevista no ato constitutivo ou na convenção, não podendo ela ser superior a cinco vezes o valor de suas contribuições mensais, independentemente das perdas e danos que se apurarem. Na ausência de disposições, a assembléia deliberará sobre a cobrança da multa (Código Civil, art. 1.336, § 2fi).

Tal dispositivo concede, em última análise, via cominatória ao sín­dico para compelir o condômino infrator a observar as restrições do condomínio, mas, a nosso ver, a mesma ação compete, individualmen­te, a todo condômino, na omissão do administrador de edifício que to­lerar qualquer transgressão à lei, com ofensa ao direito dos demais con­dôminos.57

As restrições acima indicadas, pela maneira como foram estabele­cidas pelo legislador, afiguram-se-nos de interesse coletivo do condo­mínio, razão pela qual só podem ser relegadas com aquiescência unâ­nime dos condôminos (Código Civil, art. 1.351).

3. RESTRIÇÕES CONVENCIONAIS DE VIZINHANÇA

Além das restrições legais de vizinhança, impostas pelas leis ci­vis, como vimos no item anterior (item 2, supra), podem os interessa­dos estabelecer, convencionalmente, outras restrições ao direito de construir, em relação às suas propriedades, visando a fixar a natureza

56. TJRJ, RT 629/199.57. V. o cap. 1, item 3, referente a condimínio edilicio, e o cap. 9, itens 1.11 e

1.13, respectivamente sobre ação de condomínio e via cominatória.

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das construções admitidas, assim como a altura, o recuo, o afastamen­to, o tipo de edificações e o que mais convier aos confrontantes e ao bairro. Essas limitações apresentam-se, comumente, sob duas modali­dades: individuais e gerais. As primeiras objetivam condições de inte­resse particular dos contratantes; as segundas impõem requisitos de in­teresse comum do bairro, pelo quê são operantes entre todos os seus moradores beneficiários diretos de suas vantagens.

3.1 RESTRIÇÕES INDIVIDUAIS

As restrições convencionais e individuais de vizinhança sujei­tam-se às normas gerais das obrigações de natureza pessoal, firmadas civilmente pelas partes. Não exigem forma especial, mas devem aten­der, na sua estipulação, aos requisitos de todo contrato e, sobretudo, às normas administrativas ou urbanísticas da construção, uma vez que estas não admitem modificação, supressão ou transação por via con­tratual.

Pouco freqüentes são estes acordos individuais restritivos do di­reito de construir, mas, vez por outra, surgem em contratos particulares nos quais as partes dispõem sobre a utilização recíproca de suas pro­priedades, consignando obrigações e direitos entre os contratantes, quer sobre o modo e forma de realizarem construções ou modificações nas existentes, quer sobre a concessão de passagem e outras utilidades.

Estas restrições não se erigem em servidão, porque são avençadas como obrigações pessoais, e não como direito real sobre coisa alheia. Operam entre os contratantes, enquanto vizinhos, e cessam seus efei­tos com a alienação de qualquer dos imóveis a terceiros, estranhos à relação contratual. Servem, como se vê, para atender a interesses pecu­liares de vizinhos, aumentando a comodidade de seus prédios com o obstar a construções que possam tirar a vista panorâmica, causar som- breamento, devassamento e outras situações não proibidas por lei mas, sem dúvida, incômodas para o confrontante. Como restrições indivi­duais e contratuais entre vizinhos, só os contratantes podem exigir re­ciprocamente sua observância, na forma avençada.

3.2 RESTRIÇÕES GERAIS

As restrições gerais de vizinhança são comuns e freqüentes nos planos de loteamento e nos compromissos desses terrenos, visando a assegurar ao bairro os requisitos urbanísticos convenientes à sua desti-

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nação. Com essas restrições de caráter negociai, mas de finalidade niti­damente coletiva, os particulares devem estar em consonância com a legislação urbanística e asseguram ao bairro a privatividade residencial e as condições de conforto e harmonia estética previstas no plano de ur­banização do loteamento.

São restrições de ordem urbanística, e por isso atendem não só ao interesse individual dos contratantes como ao de todos os moradores do bairro. Equiparam-se, assim, às estipulações em favor de terceiros, nas quais tanto os estipulantes como os beneficiários podem exigir o cumprimento do estipulado (Código Civil, art. 436). Na verdade, o que se tem por objetivo nestas restrições gerais ao direito de construir é o interesse de todos na formação e manutenção do bairro com as condi­ções de conforto e bem-estar idealizadas e procuradas por seus mora­dores. Inadmissível é que qualquer vizinho descumpra as imposições urbanísticas, para construir em desacordo com o estipulado a favor dos moradores do bairro. Além disso, o desatendimento das restrições ur­banísticas do bairro lesa patrimonialmente toda a vizinhança, desvalo­rizando as propriedades, pela supressão das vantagens previstas no Eo- teamento e que atuaram como fator valorizante dos lotes adquiridos.

Sem razão, portanto, os que negam ação ao vizinho prejudicado pela construção violadora das restrições contratuais. Se é certo que a convenção não é firmada entre os vizinhos, não é menos exato que as restrições são impostas a favor dos vizinhos, criando-lhes autêntico di­reito subjetivo aos benefícios delas decorrentes. Irrelevante é perqui- rir-se ou negar-se a existência de ônus real, de servidão administrati­va, ou de servidão anômala, como erroneamente já se decidiu?8 Não se trata de nenhuma dessas espécies. Trata-se, pura e simplesmente, de obrigações convencionais e gerais, fixadas no plano de loteamento, res­tritivas do direito de construir e estipuladas em proveito de todos os moradores do bairro. Por isso mesmo é que a Lei 6.766, de 19.12.1979, e a Lei 9.785, de 29.1.1999, ao disporem sobre loteamentos, impõem a mais ampla publicidade do plano de urbanização e do contrato-padrão de compra e venda de lotes, exigindo o depósito desses documentos no Registro Imobiliário, para conhecimento e atendimento por todos os que vierem a se tornar proprietários no bairro. Quem adquire lote dire­tamente da empresa urbanizadora ou de seus sucessores deve obser­vância a todas as restrições urbanísticas do bairro, notadamente as que preservam as condições residenciais e a harmonia das edificações. Aco­

58. TJSP, RT 236/201.

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lhendo estes princípios, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, em acórdão de que fomos relator, o seguinte:

“As restrições à edificação, estabelecidas pelo Ioteador, são requi­sitos urbanísticos convencionais, de interesse coletivo e perene, estipula­dos em benefício de todos os habitantes do bairro.

“O bairro, como unidade urbanística, não é patrimônio individual dos proprietários de lotes; é núcleo urbano de utilização coletiva, su­jeito ao regime jurídico fixado no plano de loteamento.

“As cláusulas das escrituras de lotes, restritivas da edificação do bairro, são meramente declaratórias dos requisitos urbanísticos estabe­lecidos pelo Ioteador, no memorial de loteamento, aprovado pela Pre­feitura e arquivado no Registro Imobiliário, para observância pelos ad- quirentes de lotes e seus sucessores.

“Tanto os proprietários de lotes como o Ioteador e a Prefeitura dis­põem das mesmas ações judiciais para impedir as edificações em desa­cordo com as restrições urbanísticas do bairro.

“Cabível é o pedido cominatório ou a ação de nunciação de obra nova para compelir o proprietário de lote a observar as restrições do bairro ao direito de construir, podendo ainda o vizinho, o Ioteador ou a Prefeitura obter a demolição do que foi edifícado irregularmente.”59

Todas essas partes têm legítimo interesse na manutenção do bair­ro com as características de sua urbanização originária, e, por isso mes­mo, dispõem das ações adequadas para fazer respeitar as imposições consignadas no memorial de loteamento. Não importa a omissão das escrituras subseqüentes, porque o direito do Ioteador e dos moradores do bairro repousa no plano de urbanização, e não no ajuste individual entre compradores e vendedores de lotes isolados.

4. CONSTRUÇÕES EM DESACORDOCOM AS RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA

4.1 DEMOLIÇÃO

O Código Civil estabelece a sanção de demolição para as constru­ções feitas em desacordo com as normas de vizinhança, além da repa­

59. TJSP, Emb. 123.497, da Capital de São Paulo, in Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro 17/135. No mesmo sentido, em­bora sem focalizar todos os aspectos decididos no julgado supra, v. os seguintes acórdãos: TJSP, 203/287, 285/289, 312/169; TASP, RT 226/373. V. também TJSP, RT 654/81.

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ração dos prejuízos causados ao vizinho. É o que diz textualmente o art. 1.312: “Todo aquele que violar as proibições estabelecidas nesta Seção é obrigado a demolir as construções feitas, respondendo por per­das e danos”.60

Essa sanção, como está consignada no dispositivo supratranscrito, pode parecer que só alcança as obras referidas nos arts. 1.299 a 1.311, ou seja, as paredes divisórias (art, 1.305), os armários embutidos e obras semelhantes (art. 1.306), as chaminés, fogões, fomos ou quais­quer aparelhos ou depósitos suscetíveis de produzir infiltrações ou in­terferências prejudiciais ao vizinho (art. 1.308), as construções capa­zes de poluição ou ínutilização da água (art. 1.309) e as escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nascente de outrem a água ne­cessária (art. 1.310).61

Mas em outros dispositivos a lei civil confere o mesmo direito de exigir a demolição da obra nociva ou em desacordo com as exigências legais, abrangendo, assim, toda construção, embora numa redação de- feituosa e de difícil entendimento para os menos familiarizados com o seu texto. Com efeito, dispõe o art. 1.277 que “o proprietário ou o pos­suidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências pre­judiciais à segurança, ao sossego e à saúde”; reza o art. 1.280 que “o proprietário ou o possuidor tem o direito de exigir do dono do prédio vizinho a demolição ou a reparação deste quando ameace ruína, bem como que lhe preste caução pelo dano iminente”. Mas, nesse caso, es­pecialmente, o art. 1.302 dispõe que o proprietário pode, no lapso de ano e dia após a conclusão da obra, exigir que se desfaça janela, saca­da, terraço ou goteira sobre o seu prédio”.

Vemos, pois, que o proprietário prejudicado por construções vizi­nhas feitas em desacordo com a lei está sempre no direito de exigir a demolição, embora fundamente a sua pretensão em dispositivos diver­sos, conforme a hipótese ocorrente. Bem poderia o legislador ter gene­ralizado a sanção, concentrando-a num só artigo, que abrangesse todos os casos de desrespeito às restrições de vizinhança. Não o fez com a precisão desejável. Dispersou a obrigação de demolir e o correspon­dente direito de exigir a demolição em quatro dispositivos autônomos (arts. 1.277, 1.280, 1.302 e 1.312), que, com palavras diversas e em locais diferentes, repetem a mesma prescrição.

60. V. a ação demolitória, adiante, no cap. 9, item 1.3.61. V. também os arts. 96 a 99 do Código de Águas (Decreto 24.643, de

10.7.1934).

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RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA AO DIREITO DE CONSTRUIR 85

4.2 INDENIZAÇÃO

Ficam no dever de demolir a obra ilegal e indenizar os danos não só o proprietário como, também, o possuidor que a ordenou e o cons­trutor que a fez, legitimando-se o pedido de demolição e indenização contra todos, para que respondam solidariamente perante o vizinho pre­judicado. Tal entendimento resulta claro do art. 1.299, que só permite as construções respeitados os direitos dos vizinhos e os regulamentos administrativos. A propriedade deve guardar o uso normal, ou seja, aquele esperado e desejado pela coletividade, expresso por meio da le­gislação civil, administrativa e urbanística, podendo o vizinho prejudi­cado fazer cessar as interferências prejudiciais. Caso estas sejam justi­ficadas pelo interesse público, seu causador deverá indenizar o vizinho prejudicado (Código Civil, arts. 1.277 e 1.278). Infringida qualquer norma de edificação - civil ou administrativa incide o infrator na obrigação de demolir e indenizar. Para essa obrigação não é exigível imperícia, imprudência ou negligência do vizinho, nem se indaga se obrou com intenção de prejudicar o confinante. A responsabilidade é objetiva, resultando do só fato da infringência do direito de vizinhan­ça, independentemente da ocorrência do elemento subjetivo culpa ou dolo de quem construiu ou mandou construir (Código Civil, art. 1.312).62

Algumas decisões, destoantes da lei, têm negado demolições e in­denizações sob o fundamento de que a obra não foi construída com violência ou clandestinidade. Baseiam-se tais decisões em doutrina su­perada e não acolhida pelo nosso Código Civil. A propósito, é de ser lembrada a advertência de Pontes de Miranda de que “os julgados que negam a demolitória se a obra não foi feita com violência ou clandesti­nidade são contra direito” .63 E na verdade assim é. Que importa ao vi­zinho o caráter violento ou clandestino da construção nociva ao seu prédio? O direito de vizinhança é concedido para resguardo da proprie­dade privada e do bem-estar dos que a habitam, independentemente de qualquer consideração sobre a natureza do ato lesivo do confrontante. Ao vizinho prejudicado é indiferente que a obra ilegal e nociva seja feita com violência, dissimulação ou ostensividade. Em qualquer caso, desde que infringente dos direitos de vizinhança, a construção fica su­jeita a demolição e dá ensejo a indenização.64

62. STF, RF 116/432; TJSP, R T 190/233, 242/175, 249/147, 254/300, 260/ 286, 263/246.

63. Tratado de D ireito Privado, XIII/240, Rio, 1956.64. V. o cap. 8, sobre as responsabilidades decorrentes da construção.

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86 DIREITO DE CONSTRUIR

O que se admite - e a jurisprudência tem tolerado - é a permanên­cia de obras cuja desconformidade com as normas de construção seja mínima e irrelevante para o vizinho. Em tais casos, manda o bom senso que se considere a possibilidade da adaptação da obra às prescrições legais, antes de se determinar a demolição. O critério jurisprudencial é dos mais razoáveis e atende satisfatoriamente aos interesses de vizinhan­ça e às exigências de ordem pública, uma vez que se ajuste a obra aos preceitos legais e se indenize o vizinho dos danos por ela causados.65

Quanto à observância das normas administrativas da construção, expressas no Código de Obras e legislação complementar, será objeto de acurado exame no capítulo seguinte, mas desde já adiantamos que, a nosso ver, o descumprimento dessas normas de ordem pública, se lesivas às obras ao vizinho, autoriza o pedido de demolição e indeni­zação, independentemente das providências ou da inação do Poder Pú­blico, ainda que feitas com alvará da Prefeitura, porque o consentimen­to administrativo não cria direitos contra a lei ou o regulamento.

4.3 AÇÕES CABÍVEIS

As construções em desacordo com as restrições de vizinhança ou com infringência de normas administrativas (Código de Obras, planos urbanísticos, leis de zoneamento e outras) dão ensejo à ação de nuncia- ção de obra nova, ação demolitória ou ação de indenização, admitindo desde logo o embargo da construção em andamento. Para não repetir a matéria, remetemos o leitor ao cap. 9, onde esses procedimentos judi­ciais estão estudados minuciosamente (itens 1.1 a 1.3).

65. TJRJ, RT 682/153.

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Capítulo 4

LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS AO DIREITO DE CONSTRUIR

1. GENERALIDADES: 1.1 Conceito de limitação administrativa; 1.2 Na­tureza jurídica das limitações administrativas; 1.3 As limitações adminis­trativas como fonte de direito subjetivo para os vizinhos; 1.4 O poder de polícia como fundamento das limitações administrativas. 2. AS PRINCI­PAIS LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS: 2.1 Limitações urbanísticas: 2.1.1 Natureza das limitações urbanísticas; 2.1.2 Plano Diretor; 2.1.3 Re­gulamentação edilícia; 2.1.4 Delimitação da zona urbana; 2.1.5 Traçado urbano: 2,1.5.1 Arruamento; 2.1.5.2 Alinhamento; 2.1.5.3 Nivelamento; 2.1.5.4 Circulação; 2.1.5.5 Salubridade; 2.1.5.6 Segurança; 2.1.5.7 Funcio­nalidade; 2,1,6 Uso e ocupação do solo urbano; 2.1.7 Zoneamento; 2.1.8 Loteamento; 2.1.9 Estética urbana; 2.2 Limitações de higiene e seguran­ça; 2.3 Limitações militares. 3. PATRIMÔNIO HISTÓRICO E TOMBA- MENTO: 3.1 Patrimônio histórico; 3.2 Tombamento: 3.2.1 Processo; 3.2.2 indenização; 3.2.3 Omissão. 4. O ESTATUTO DA CIDADE: 4.1 Instru­mentos de planejamento; 4.2 Instrumentos tributários; 4.3 Instrumentos jurídicos: 4.3.1 Desapropriação; 4.3.2 Servidão administrativa; 4.3.3 Li­mitações administrativas; 4.3.4 Tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; 4.3.5 Instituição de unidades de conservação; 4.3.6 Instituição de zonas especiais de interesse social; 4.3.7 Concessão de direito real de uso; 4.3.8 Concessão de uso especial para fins de moradia; 4.3.9 Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; 4.3.10 Usucapião especial de imó­vel urbano; 4.3.11 Direito de superfície; 4.3.12 Direito de preempção; 4.3.13 Outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; 4.3.14 Transferência do direito de construir; 4,3.15 Operações urbanas consorcia- das; 4.3.16 Regularização fundiária; 4.3.17 Assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos; 4.3.18 Referendo popular e plebiscito; 4.3.19 Consórcio imobiliário; 4.4 Instru­mentos ambientais; 4.5 Diretrizes.

1. GENERALIDADES

É sabido que o Estado pode intervir na propriedade particular imó­vel por três modos: pela limitação administrativa, pela servidão admi­nistrativa ou pública e pela desapropriação. Todas elas são formas de expressão do domínio eminente que a Nação exerce sobre as pessoas e

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coisas existentes em seu território. Na limitação administrativa nada paga ao proprietário; na servidão administrativa ou pública indeniza apenas os danos efetivamente causados ao particular; na desapropria­ção indeniza totalmente a perda da propriedade e os prejuízos dela de­correntes.

Estes três tipos de intervenção pública na propriedade privada são exigidos pelos superiores interesses da comunidade, em benefício do bem-estar social. Como imposições de interesse coletivo, são regidas pelo Direito Público,1 diversamente do que ocorre com as resttições civis,2 que permanecem reguladas pelo Direito Privado.

O direito de construir pode sofrer condicionamento através de qualquer dessas modalidades de imposição pública, e tais imposições podem advir de qualquer das entidades estatais, em benefício próprio, de suas autarquias, entidades paraestatais e delegados de serviço público.

Quanto à desapropriação, o nosso Direito Positivo admite seja promovida diretamente por certas entidades autárquicas, empresas go­vernamentais, ou por concessionários de serviços públicos, depois de declarada a utilidade pública pela entidade estatal competente.

No capítulo anterior vimos as restrições civis de vizinhança; nes­te, veremos as limitações administrativas, a servidão administrativa ou pública e a desapropriação. Antes, porém, vejamos o conceito e natu­reza jurídica da limitação administrativa propriamente dita, para, após, examinarmos as limitações administrativas como fontes de direito sub­jetivo, o poder de polícia administrativa como fundamento dessas li­mitações e a polícia das construções como meio de controle do direito de construir.

As possibilidades de interferência da Administração Pública na propriedade privada urbana foram bastante incrementadas com a pro­mulgação da Lei 10.257, de 10.7.2001 - lei federal, essa, formalmente

1. Sérgio de Andréa Ferreira, O Direito de Propriedade e as Limitações e Ingerências Administrativas, São Paulo, Ed. RT, 1980; Renato Martins Prates, “Li­mitações administrativas ao direito de construir”, RDP 80/107.

2. Na técnica jurídica, os vocábulos “limitação” e “restrição” expressam a mesma idéia de condicionamento de direitos. São sinônimos. Mas, para clareza da exposição e perfeita distinção entre as obrigações de vizinhança e as imposições administrativas ao uso da propriedade, adotamos, invariavelmente, as expressões “restrição de vizinhança” para as imposições civis, e “limitações administrativas” para as imposições de Direito Público. Assim, a terminologia adquire maior precisão e evita coníusões entre as duas espécies de condicionamento ao direito de construir.

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LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS AO DIREITO DE CONSTRUIR 89

designada (no parágrafo único de seu art. Ia) como “Estatuto da Cida­de”, que estabelece normas gerais de Direito Urbanístico e regulamen­ta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal. O art. 4a dessa lei enume­ra um extenso rol de instrumentos de política urbana, entre os quais estão incluídos os acima referidos, ao lado de outros inovadores, como é o caso, p. ex., do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, da outorga onerosa do direito de construir e das operações urbanas con- sorciadas, que serão objeto de exame mais adiante3 (v. o item 4 deste capítulo).

/. 1 CONCEITO DE LIMITA ÇÃO ADMINISTRA TI VA

O conceito de limitação administrativa não tem sido conveniente­mente difundido pela doutrina, resultando daí deploráveis indistinções na legislação e na jurisprudência, que ora a confundem com restrição de vizinhança, ora com servidão predial, ora com servidão pública e até mesmo com desapropriação. Impõe-se, por isso, que, fixado o con­ceito de limitação administrativa, se apreciem os caracteres distintivos de todos estes institutos assemelhados, mas inconfundíveis entre si.

Limitação administrativa é toda imposição geral, gratuita, unila­teral e de ordem pública condicionadora do exercício de direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar social.

As limitações administrativas distinguem-se substancialmente das restrições de vizinhança porque estas, como já vimos (capítulo 3), são estabelecidas nas leis civis para proteção da propriedade particular em si mesma e resguardo da segurança, do sossego e da saúde dos que a habitam (Código Civil, arts. 1.277 a 1.313), e aquelas são editadas em normas de ordem pública - leis e regulamentos - em benefício do bem- estar da comunidade, tendo em vista a função social da propriedade (Constituição Federal, art. 170, III). Ambas incidem sobre o mesmo objeto - a propriedade privada mas com finalidades diversas: as res­trições civis protegem especificamente os vizinhos - uti singuli; as li­mitações administrativas protegem, genericamente, a coletividade - uti

3. Sobre o Estatuto da Cidade, v.: Adilson Abreu Dallarí e Sérgio Ferraz (co- ords.), Estatuto da C idade , Ia ed., 2a tir., São Paulo, Malheiros Editores, 2003; Diógenes Gasparini, O Estatuto da Cidade, São Paulo, NÜJ, 2002; Liana Portilho Mattos (org.), Estatuto da C idade Comentado, Belo Horizonte, Mandamentos, 2002; Odete Medauar e Fernando Dias Menezes de Almeida (coords.), Estatuto da Cidade, 2a ed., São Paulo, Ed. RT, 2004; Toshio Mukai, O Estatuto da Cidade, São Paulo, Saraiva, 2001.

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90 DIREITO DE CONSTRUIR

universi. Mas convém advertir, desde logo, que as limitações adminis­trativas, conquanto impostas em prol da comunidade, podem gerar di­reitos subjetivos para os indivíduos, principalmente para os vizinhos, interessados na sua observância por todos os confrontantes, como ve­remos em tópico adiante (item 1.3).

Dessa distinção entre os objetivos das duas categorias de imposi­ções resulta que a limitação administrativa, como medida geral de or­dem pública, protege e obriga indistintamente a todos os indivíduos como membros da coletividade administrada, ao passo que a restrição de vizinhança, como medida de interesse particular dos vizinhos, só alcança os proprietários e inquilinos sujeitos aos efeitos da vizinhança.

Não há confundir, também, limitação administrativa com servi­dão predial. Servidão predial é direito real sobre coisa alheia (Código Civil, arts. 1.225, III, e 1.378 a 1.389); é ônus que grava o prédio parti­cular em benefício de outro ou outros, mediante convenção ou usuca­pião, sendo o Poder Público estranho à sua constituição e desinteressa­do de sua utilização.4

Do mesmo modo, não se confunde limitação administrativa com servidão administrativa ou pública. Enquanto a limitação administrativa é uma restrição geral e gratuita imposta indeterminadamente às proprie­dades particulares em benefício da coletividade, a servidão administra­tiva ou pública é um ônus especial imposto a determinada propriedade, mediante indenização do Poder Público, para propiciar a sua utilização no interesse da comunidade.3 Assim, a proibição de altura dos edifícios é, tipicamente, uma limitação administrativa, ao passo que o atravessa­mento das propriedades particulares com aqueduto para abastecimento de uma cidade é, caracteristicamente, uma servidão administrativa.

Por fim, importa distinguir a limitação administrativa da desapro­priação. Nesta há um despojamento da propriedade particular pelo Po­der Público, mediante indenização, por necessidade ou utilidade públi­ca, ou por interesse social (Constituição Federal, art. 52, XXIV); naque­la, a restrição é unicamente ao uso da propriedade, imposta generica­mente a todos os proprietários e sem qualquer ônus para a Administração.

4. Ferrini-Pulvirenti, Servitü Prediali, 1/82 e ss., Roma, 1908; Giuseppe Fra- gola, Limitazione al D iritlo di Proprietà, Roma, 1910, pp. 32 e ss.

5. Rafael Bielsa, R estricc ion esy Servidumbres Adm inistrativas, Buenos Ai­res, 1923, pp. 103 e ss.; Cino Vitta, D iritto Amministrativo, 1/244 e ss., Roma, 1946; Guido Zanobini, Curso de Derecho Administrativo, 1/219, Roma, 1954. V. também TJSP, RT 633/55.

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Vê-se, pois, que a limitação administrativa difere tanto da servi­dão administrativa como da desapropriação. A limitação administrati­va, por ser uma restrição geral e de interesse coletivo, não obriga o Poder Público a qualquer indenização; a servidão administrativa ou pública, como ônus especial a uma ou algumas propriedades, exige in­denização dos prejuízos que a restrição acarretar para os particulares; a desapropriação, por retirar do particular a sua propriedade ou parte dela, impõe cabal indenização do que foi expropriado e dos conseqüen­tes prejuízos.

1.2 NATUREZA JURÍDICA DAS LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS

As limitações administrativas são preceitos de ordem pública. Derivam, comumente, do poder de polícia inerente e indissociável da Administração e se exteriorizam em imposições unilaterais e impera­tivas, sob a tríplice modalidade: positiva (fazer), negativa (não fazer) ou permissiva (deixar fazer). No primeiro caso, o particular fica obri­gado a realizar o que a Administração lhe impõe;6 no segundo, deve abster-se do que lhe é vedado; no terceiro, deve permitir algo em sua propriedade.

Em qualquer hipótese, as limitações administrativas hão de cor­responder às justas exigências do interesse público que as motiva, sem produzir um total aniquilamento da propriedade. Essas limitações não são absolutas, nem arbitrárias. Encontram seus lindes nos direitos indi­viduais assegurados pela Constituição e devem expressar-se em forma legal. Só são legítimas quando representam razoáveis medidas de con­dicionamento do uso da propriedade, em benefício do bem-estar social, e não impedem a utilização da coisa segundo a sua destinação natural. Daí a exata observação de Bielsa de que “la restricción solo conforma

6. Alguns autores menos atualizados com o Direito Administrativo se recu­sam a admitir possa o Poder Público impor obrigações de fa ze r aos particulares, só admitindo as limitações administrativas consistentes em não fa ze r e deixar fazer. Tal entendimento está superado. As normas administrativas tanto podem impor obrigações negativas como permissivas e positivas aos particulares. Nesse sentido, consultem-se: Greca, El Régimen Legal de la Construcción, 1956, p. 35; Testa, Manuale di Legislazione Urbanística, pp. 309 e ss.; Perticone, La P roprietà e i svo iL im iti, 1930, pp. 68, 77 e 88; D ’Alessio> lstituzioni d i D iritto Am ministrativo , 11/31, 1949; Vitta, D iritto Amministrativo, 1/246, 1949; Josserand, D roit C ivil Po- s it if Français, 1/817, 1938; Fleiner, D roit Adm inistratif Alemand, 1933, pp. 239 e 245; Black, Constitutional Law, 1927, p. 309; Freund, Adm inistrative Pow er over Person and Property, 1928, pp. 444 e ss.

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y nunca desintegra ni disminuye el derecho de propiedad, y obedece a una solidariedad de intereses: el público y el privado”.7

Além disso, para que sejam admissíveis as limitações administra­tivas sem indenização, como é de sua índole, hão de ser gerais, isto é, dirigidas a propriedades indeterminadas, mas determináveis no momen­to de sua aplicação.8 Para situações particulares que conflitem com o interesse público a solução será encontrada na servidão administrativa ou na desapropriação, mediante justa indenização, nunca na limitação administrativa, cuja característica é a gratuidade e a generalidade da medida protetora da comunidade.

O interesse público a ser protegido pelas limitações administrati­vas - observa Alessi - pode consistir na necessidade de evitar um dano possível para a coletividade, segundo o modo de utilização da proprie­dade particular, como pode, ao revés, consistir na necessidade de asse­gurar à coletividade uma determinada utilidade específica que os bens particulares sejam aptos a produzir, juntamente com a utilidade genéri­ca para o particular proprietário.9

Na defesa desses interesses coletivos ê que atua o Poder Público, coartando direitos individuais, condicionando o uso da propriedade pri­vada e regulamentando atividades particulares que afetem diretamente a comunidade, vale dizer, policiando tudo quanto possa refletir no bem- estar geral. Para tanto, o Poder Público edita normas genéricas de con­dutas (leis) ou baixa provimentos específicos de atuação administrati­va (decretos, regulamentos, provimentos de urgência etc.) visando a ordenar as atividades individuais, no sentido social em que devem ser exercidas.

As limitações administrativas ao uso da propriedade particular po­dem ser expressas em lei ou regulamento de qualquer das três entida­des estatais, por se tratar de matéria de Direito Público (e não de Direi­to Civil, privativo da União), da competência concorrente federal, es­tadual e municipal. O essencial é que cada entidade, no impor a limita­ção, mantenha-se no campo de suas atribuições institucionais.

Constituem matéria privativa de lei as limitações que versarem as denominadas “reservas da lei”, isto é, assuntos que só por lei possam

7. Rafael Bielsa, Restricciones y Servidumbres Adm inistrativas, Buenos Ai­res, 1923, p. 68. No mesmo sentido: Miguel Angel Berçaitz, Problem as Jurídicos dei Urbanismo, Buenos Aires, 1972, p. 46.

8. Alcides Greca, El Régimen Legal de la Constnicción, Buenos Aires, 1956,p. 36.

9. Renato Alessi, Diritto Amministrativo, Roma, 1949, pp. 459 e ss.

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ser regidos; poderão ser impostas por regulamento (decreto), quando consistirem em especificação de matéria já constante, genericamente, de lei, ou que, por sua natureza, for da alçada de regulamento autônomo.

Neste ponto merece repetida ajusta observação de Biagio Brugi: “O regulamento é lei material e ato administrativo formal. Os juristas devem, hoje, abandonar certos preconceitos, e, conservando-se embo­ra guardas fiéis da lei, considerar que a Administração Pública desem­penha certa atividade legislativa, que é justamente a chamada faculda­de regulamentadora. O caráter imperativo da lei apresenta-se igualmen­te no regulamento, desde que este não exceda seus limites naturais”.10

Para casos de perigo iminente, pode, ainda, a Administração esta­belecer limitações ao uso da propriedade através de provimentos de ur­gência, objetivando um campo mais restrito que o do regulamento, mas com idêntica normatividade. O regulamento - diz Luiggi Galateria em obra especializada - não pode ter senão um conteúdo geral ou indivi­dual. Diversas, ainda, as funções dessas duas formas de imposição administrativa: no regulamento impõe-se limitação com caráter de continuidade e permanência; no provimento de urgência a imposição é transitória, a fim de resolver determinadas situações imprevistas e tran­seuntes.11 Tal ocorre quando, em face de um evento danoso, se tornam necessárias providências de ordem pública instantâneas, gerais ou par­ticulares, para debelar o mal, as quais são feitas por meio de ordens administrativas tão operantes quanto as normas legislativas ou os de­cretos executivos.

1.3 AS LIMITA ÇÕES ADMINISTRA TIVAS COMO FONTEDE DIREITO SUBJETIVO PARA OS VIZINHOS

As limitações administrativas ao uso da propriedade, e especial­mente as urbanísticas, conquanto sejam imposições de ordem pública, podem gerar obrigações e direitos subjetivos entre os vizinhos, interes­sados na sua fiel observância por parte de todos os proprietários sujei­tos às suas exigências.

Esse aspecto tem merecido, ultimamente, acurados estudos na doutrina, mas continua a ensejar fundas divergências nos tribunais,

10. Delia Proprietà, 1/165, Roma, 1918. No mesmo sentido: Meirelles Tei­xeira, Estudos de Direito Administrativo, 1/253, São Paulo, 1949.

11. Luiggi Galateria, I Provvedimenti Amministrativi d ‘Urgenzci, Roma, 1953, p. 27.

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motivadas, ao que se vê, pela errônea consideração das limitações ad­ministrativas concernentes ao direito de construir. Os julgados que ne­gam ação ao vizinho para exigir de seu confmante o atendimento das limitações administrativas à construção o fazem por excessivo apego à distinção romanista entre normas de interesse privado e normas de in­teresse público, como se os departamentos do Direito constituíssem domínios estanques.

Ora, no direito de construir, por expressa determinação do Código Civil, as normas de vizinhança são sempre complementadas pelas li­mitações administrativas ordenadoras da construção e asseguradoras da funcionalidade urbana.

Essa realidade foi agudamente percebida e exposta por Bielsa, ao estudar as interpenetrações do Direito Privado e do Direito Público, e em cujo trabalho concluiu que “el contenido legal dei derecho de pro- piedad no puede determinarse sólo con referencia a las limitaciones que el Código Civil establece, sino también mirando a las limitaciones que impone el Derecho Administrativo”.12

Basta relermos o art. 1.299 do Código Civil brasileiro para verifi­carmos que o nosso Direito não se afasta dessa orientação ao estabele­cer que “o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos admi­nistrativos”} 3

Opera-se, em tais casos, autêntica delegação da lei civil às dispo­sições administrativas para que passem a atuar em lugar da legislação privada, preenchendo o claro da norma civil, embora conservando o caráter de imposição de Direito Público.14

“Definindo o alcance da propriedade - disse Filadelfo Azevedo o Código Civil estabelece que o direito de construir encontra ainda li­

12. Relaciones dei Código C ivil con e l Derecho Administrativo, Buenos Ai­res, 1923, p. 71. No mesmo sentido: Guido Zanobini, Diritto Amministrativo, IV/ 140, Roma, 1948.

13. A expressão “regulamentos administrativos”, usada pelo nosso Código Civil em seu art. 1.299, é imprópria, por redundante, uma vez que todo regulamen­to é ato administrativo. Com ela pretendeu o legislador pátrio referir-se a “normas administrativas”, que abrangem tanto as leis administrativas como os regulamentos e as demais regras da construção.

14. Cabe esclarecer que as expressões “posturas municipais” e “regulamentos de higiene” não mais figuram no Código Civil. As “regras administrativas” devem ser entendidas como compreendendo as leis, decretos, resoluções e outros atos nor­mativos editados pelos Municípios.

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mites nas regras administrativas, ou, melhor, nas posturas municipais e nos regulamentos de higiene. Essas regras de caráter local são, as­sim, encampadas e sublimadas, passando à categoria de direito subs­tantivo”.13

“Sem dúvida - continuou Gustavo Filadelfo Azevedo, a sustentar a tese do pai os dispositivos deste gênero têm função integrante ou complementar do Código Civil. Em outras palavras, o direito de cons­truir está sujeito às restrições de caráter regulamentar, destinadas a im­pedir o uso da propriedade de forma nociva à saúde, contrária à segu­rança ou qualquer outro motivo de interesse público dessa natureza, com liberdade ampla, dentro da órbita reclamada pelo bem-estar cole­tivo e do respeito à substância do próprio direito de propriedade”. E conclui o mesmo jurista que “os regulamentos edilicios não serão, ge­nericamente considerados, simples normas de polícia edilícia, mas, de modo mais preciso, como limites de direito público à propriedade imo­biliária”.16

Idêntico é o ensinamento de Virgilio Testa, em completa monogra­fia sobre legislação urbanística: “II caratere integrativo dei Codice Civile che acquistano tali norme, dà luogo al sorgere, in favore dei privativo, di un diritto soggetivo ad ottennere la rimozione delle nuove opere, che re- sultano in contrasto con esse, anche, se 1’interessato non sia in grado di dimostrare 1’esistenza di un danno ed anche se vi sia stata acquiescenza- da parte delfautorità comunale alia construzione non rispondente alie norme predette o il sindicato 1’abbia addirittura autorizzata”.17

No mesmo sentido já se pronunciavam Ferrini e Pulvirenti, nos albores do século XX, afirmando que ao dever “che incombe ad ogni proprietário di non accedere nell’esercizio dal suo diritto i limiti asseg- nati dal rego lamento, é corre lativo il diritto negli altri proprietari che verrebbero a risentire dano dalla violazione di tali leggi o regolamenti, di pretendeme Tosservanza”.18

A integração dessas normas administrativas na legislação civil faz surgir para os proprietários, nas suas relações de vizinhança, direitos subjetivos à observância das limitações por parte dos que constroem sob a vigência de tais imposições.

15. Destinaçâo do Imóvel, Rio, 1957, p. 138.16. Gustavo Filadelfo Azevedo, “O direito de construir e os regulamentos ad­

ministrativos”, RDPG 229.17. Legislazione Urbanística, Roma, 1956, p. 342.18. Delle Servitu Prediali, 1/188, Roma, 1908.

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Os regulamentos edilícios, impondo, normalmente, obrigação de não fazer, criam um direito subjetivo a essa abstenção, como bem acen­tua Jean Dabin: “sans doute, ces obligations spéciales peuvent être gé- neratrices de droit subjectif au profit d’une personne; se sera alors la face active de 1’obligation”.19 O mesmo ponto de vista é esposado por De Martino em trabalho especializado sobre a propriedade, onde afir­ma que as normas regulamentares límitativas da construção constituem “fonte di diritti soggettivi a favore di proprietari dei beni rispeto ai quali le limitazione sono imposte e pertanto dalla loro violazione od inosser- vanza nascono le stesse conseguenze giuridiche, che derivano dali’inosservanza delle norme dei Codice Civile”.20

Fiel à nossa legislação e atento à doutrina prevalecente, o Tribu­nal de Justiça do antigo Distrito Federal decidiu, com inteiro acerto, que, “se as restrições de Direito Administrativo são de molde a criar obrigações de não exercício do direito de propriedade, logo se está a ver que todo aquele que se julgar prejudicado em sua vizinhança pelo inadimplemento de tais obrigações tem o direito subjetivo de obter a reposição in prisíinum do estado de coisas anterior ou de evitar o des- cumprimento diante de uma ameaça de lesão ao seu direito individual”. E, linhas adiante, o culto Relator, Des. Hugo Auller, ajunta que “esta conclusão vem, assim, espancar quaisquer dúvidas acerca da disputa suscitada pela questão de saber se os regulamentos edilícios limitadores do uso da propriedade autorizam o exercício de uma ação entre vizi­nhos e cumulativamente contra a Pública Administração para o efeito de exigir o respeito às normas respectivas do direito de construção”.21

No mesmo sentido decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua Seção Civil, em acórdão da lavra do ilustrado Des. Carmo Pin­to, que: “o proprietário lesado por obra vizinha erguida com infração de normas edilícias tem ação contra o dono da obra e contra a entidade pública que a autorizou ilegalmente”.22 E, na motivação deste aresto, que constitui um autêntico leading case, ficou dito que: “É, de fato, estranho que a norma que regula a atividade administrativa não seja suficiente para fundamentar um direito do cidadão quando este pode

19. Le Droit Subjectif, Paris, 1952, p. 52,20. Delia Proprietà, Roma, 1946, p. 220.21. TJDF, KDA 45/333. No mesmo sentido: TJSP, R T 225/242, 246/163, 254/

233, 267/210, 275/249, 312/262; TASP, RT 241/513. Contra: TJSP, RT 202/435, 246/388.

22. TJSP, 312/262, confirmado pelo STF no RE 49.042, DJU 19.7.1963; TJSC,/?r 676/165.

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exigir, no próprio interesse, a observância de tal norma”. E remata o douto Relator: “No Direito brasileiro, como no americano, o ato admi­nistrativo está sujeito ao conhecimento irrestrito da Justiça Comum. Chama-se interesse legitimo ou direito subjetivo à proteção indireta concedida ao interesse do particular pela norma dirigida ao interesse geral, coletivo; inegável é a existência de um direito de ação”.

Aplaudimos irrestritamente a orientação desses julgados, que se põem em consonância com o objetivo do moderno Urbanismo, qual seja, o de assegurar conforto individual e bem-estar social através de imposições técnico-funcionais para as construções que vão compor o conjunto urbano. Essas limitações urbanísticas, conquanto expressas em disposições de ordem pública, geram direitos subjetivos para os proprietários que delas se beneficiam uti singuli e que, por isso mes­mo, podem compelir judicialmente os vizinhos a observá-las nas suas construções.

Além disso, é inegável que a inobservância das limitações admi­nistrativas de proteção à funcionalidade urbana não só prejudica o con­junto da cidade ou do bairro, como afeta patrimonialmente as proprie­dades vizinhas, desvalorizando-as com a supressão das vantagens ur­banísticas que resultam das imposições de zoneamento, recuo, afasta­mento, altura e natureza das edificações. Essa dupla proteção ao indi­víduo e à comunidade se obtém pela concessão de ação aos vizinhos e pelas medidas administrativas do Poder Público, as quais, conjugadas, preservam os fins urbanísticos visados pelas normas edilícias da cons­trução e almejados pelos particulares que procuram os bairros sujeitos a limitações dessa natureza,23 como veremos adiante (item 2.1).

O mesmo dever de observância das limitações administrativas da construção cabe ao Poder Público quando realiza suas edificações em bairros ou zonas sujeitas a imposições urbanísticas, pois a Administra­ção se iguala aos particulares na subordinação à lei24 e no respeito aos direitos individuais dos cidadãos. A propósito, proclamou o Supremo Tribunal Federal, pela palavra de um de seus mais conspícuos mem­

23. Georges-Henri Noel, Le Droit de VUrbanisme, Paris, 1956, pp. 8 e ss.; Maurice-François Rouge, Urbanisme Expérimental, Paris, 1951, pp. 58 e ss.; Gas- ton Bardet, Mission de VUrbanisme, Paris, 1950, pp. 52 e ss.

24. Caio Tácito assinala, com muita propriedade, que: “O episódio central da história administrativa do século XIX é a subordinação do Estado ao regime da legalidade. A lei, como expressão da vontade coletiva, incide tanto sobre os indiví­duos como sobre as autoridades públicas” (in O Ensino do D ireito Administrativo no B rasil, Rio, 1957, p. 3).

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bros, o Min. Orozimbo Nonato, que o Poder Público não se encontra sobranceiro à contingência de respeitar a propriedade dos particulares e ao dever de não lhes causar danos, visto que “sua atividade se move dentro do mesmo encerro que a ordem jurídica traça para os adminis­trados, e, quando a ultrapassa, cabem os mesmos remédios de Direito que corrigem os excessos da atividade dos particulares”.23 Diante das imposições municipais concernentes às edificações e ao ordenamento urbano cedem, até mesmo, a União e o Estado-membro, porque tais matérias são da competência constitucional do Município (Constitui­ção Federal art. 30, VIII). Anteriormente, a Lei federal 125, de 3.12.1935, já determinava que a construção de edifício público deveria obedecer às normas municipais pertinentes ao local da edificação (art. Ia), sujeitando-se ao licenciamento prévio da Prefeitura (art. 22). Mais recentemente, o art. 74 da Lei federal 9.472, de 16.7.1997, a chamada “Lei Geral de Telecomunicações”, determinou que as edificações, ins­talações, dutos e cabos necessários aos serviços de telecomunicações devem observar a legislação urbanística municipal.

E, a propósito, o Supremo Tribunal Federal deu razão à Munici­palidade de São Paulo quando exigiu do Poder Público estadual que observasse a legislação edilícia no levantamento de um edifício públi­co em zona sujeita a limitações urbanísticas especiais.26

As limitações urbanísticas nascem revestidas de imperium ineren­te a toda ordem estatal, tomando-se impositivas não só para os particu­lares como para a Administração em geral, visto que a submissão dos indivíduos e das entidades públicas às normas legais é característica do Estado de Direito, como o nosso.

1.4 O PODER DE POLÍCIA COMO FUNDAMENTODAS LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS

Antes de examinarmos as principais espécies de limitações admi­nistrativas ao direito de construir, necessário se torna fixar o conceito, objeto, extensão, limites e sanções do poder de polícia administrativa, em que se baseia a maioria dessas limitações.

O conceito de poder de polícia se vem alargando dia-a-dia, de modo a abranger, cada vez mais, as atividades particulares que afetam direta e imediatamente os interesses da coletividade. Dentre essas ati­

25. STF, RF 71/484. No mesmo sentido: TJSP,RT 171/241.26. STF, RT 314/624, confirmando acórdão do TJSP, RT 303/137.

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vidades a serem policiadas está, sem dúvida, a das construções, que entende fundamentalmente com a salubridade pública, a segurança co­letiva, a funcionalidade da cidade e a estética urbana.

Podemos dizer que o poder de polícia é a faculdade discricioná­ria que se reconhece à Administração Pública de restringir e condicio­nar o uso e gozo dos bens e direitos individuais, especialmente os de propriedade, em benefício do bem-estar geralP

Em linguagem mais livre, diremos que o poder de polícia é o me­canismo de frenagem empregado pela Administração Pública para de­ter o uso anti-social dos direitos individuais. Por esse mecanismo, pró­prio do Direito Administrativo, o Poder Público contém a ação parti­cular contrária, nociva ou inconveniente à coletividade. Como meio de frenagem inerente a toda Administração Pública - federal, estadual, municipal ele habilita os agentes administrativos a velar eficiente­mente pelo bem comum, fazendo cessar as atividades individuais que lesem ou ameacem os interesses gerais da comunidade.

Na conceituação de Caio Tácito, “o poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à Administração Pública para dis­ciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais”.28

Na lição de T, M. Cooley, “o poder de polícia (police power), em sentido amplo, compreende um sistema total de regulamentação inter­na, pelo qual o Estado busca não só preservar a ordem pública, senão também estabelecer para a vida e relações dos cidadãos aquelas regras de boas maneiras e de boa vizinhança que se supõem necessárias para evitar o conflito de direitos e para garantir a cada um o gozo ininter­rupto de seu próprio direito, até onde for razoavelmente compatível com o direito dos demais”.29

Na síntese de Fritz Fleiner, “o poder de polícia é a faculdade de di­tar normas com força obrigatória para submeter as atividades da liber­dade pessoal e a propriedade aos limites que o bem público exija”.30

O que a doutrina põe em relevo, pela unanimidade dos autores, é a faculdade que tem toda Administração Pública de editar e executar

27. Sobre poder de polícia em geral, v. nosso Direito Administrativo Brasilei­ro, 30a ed., 2005, cap. III, n. 7, e, sobre poder de polícia do Município, consulte-se nosso Direito Municipal Brasileim, 13a ed., 2003, cap. VIII.

28. “O poder de polícia e seus limites”, RDA 27/1.29. Comtiiuhonal Limitation, Nova York, 1903, p. 829.30. Instituciones de Derecho Administrativo, trad. esp., 1933, p. 3 11.

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medidas restritivas do direito individual, em benefício da coletividade. Esse poder se difunde por todas as entidades estatais, cabendo ao Mu­nicípio boa parte de sua utilização no policiamento das atividades lo­cais, através de normas gerais e abstratas de conduta (atos legislativos) e providências executivas especiais e concretas (atos administrativos), de caráter preventivo ou repressivo.

Neste ponto convém distinguir a policia administrativa, que nos interessa neste estudo, da polícia judiciária e da polícia de manuten­ção da ordem pública, estranhas às nossas cogitações. A polícia admi­nistrativa atua sobre bens, direitos e atividades, ao passo que as outras agem sobre as pessoas individualmente ou coletivamente. A polícia administrativa é inerente e se difunde por toda a Administração Públi­ca, enquanto as demais são privativas de determinados órgãos (Polícias Civis) ou corporações (Polícias Militares).

A polícia administrativa destina-se a assegurar o bem-estar geral, impedindo, através de ordens e proibições das autoridades competen­tes, o uso anti-social dos direitos individuais e da propriedade particu­lar. Exterioriza-se pelo conjunto de órgãos e serviços incumbidos de fiscalizar, controlar e deter as atividades individuais (não os indivíduos) que se revelem contrárias, inconvenientes ou nocivas à coletividade, no tocante à segurança, à higiene, à saúde, ao sossego, à moralidade, ao conforto públicos e à estética da cidade. Daí a justa observação de Maurice Hauriou de que “todo poder administrativo gira em tomo da idéia de polícia preventiva, destinada a procurar u’a melhor paz social. E não é difícil demonstrar que as organizações de serviços públicos, por mais técnicos que sejam, não passam de meios de polícia e de ga­rantias do bem-estar sociar.31

No uso normal do poder de polícia administrativa, o Poder Públi­co edita leis e baixa regulamentos especificadores do modo, forma e condições do exercício dos direitos e atividades particulares que inte­ressam à coletividade. A essas normas administrativas ficam sujeitos todos os que venham a praticar atividade policiada administrativamen­te, dependendo o seu exercício de licença prévia da autoridade compe­tente, licença, essa, na linguagem administrativa, denominada alvará.

O alvará é o instrumento da licença ou da autorização para cons­truir ou lotear. Não se confunda licença com autorização: licença é ato administrativo vinculado e definitivo; autorização é ato administrativo

31. Droit Administratif Paris, 1926, p. 8.

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discricionário e precário. A licença, quando concedida regularmente, gera direito subjetivo à continuidade da atividade licenciada nas con­dições estabelecidas em lei; a autorização não gera direito à continui­dade da atividade autorizada, por ser uma aquiescência de natureza pre­cária. Assim sendo, a licença para a edificação não pode ser negada se o interessado satisfaz todas as exigências do Código de Obras e das normas complementares, e, uma vez expedida, não pode ser cassada sumariamente; diversamente, a autorização fica a critério da autorida­de e é sempre expedida a título provisório, podendo ser revogada a qualquer tempo, independentemente de motivação e indenização (v. cap. 6, item 1.7).

E sabido que ninguém adquire direitos contra o interesse público, que prevalece sempre sobre o interesse privado. Não se confunde, po­rém, o interesse público com o simples interesse da Administração, nem, muito menos, com o interesse do agente público. Interesse públi­co é aquele que corresponde ao interesse da coletividade como um todo, ao interesse do conjunto dos cidadãos, ao interesse que foi quali­ficado como público por lei. Pode, pois, a Administração Pública, a todo tempo, fazer cessar as atividades ou obras particulares licenciadas que se apresentem em desacordo com as normas legais ou regulamen- tares ou que, por motivos supervenientes, passem a prejudicar o inte­resse coletivo. Neste último caso, se for cabível a revogação do alvará, fica o Poder Público no dever de indenizar os danos suportados pelo particular com a cessação da atividade ou com a paralisação e demoli­ção da obra, cujo exercício ou construção foi, até então, permitido. Se, porém, o alvará for cassado por estar o titular descumprindo a lei ou regulamento, nenhuma obrigação de indenizar resulta para o Poder Pú­blico. O que convém fixar é que o alvará não poderá nunca ser invoca­do pelo particular para violar a lei ou o regulamento que estabeleça restrições de ordem pública ao exercício de certos direitos e ativida­des, condicionando-os à aquiescência prévia e à permanente fiscaliza­ção dos órgãos competentes (v. capítulo 6).

O fundamento do poder de polícia administrativa está no interes­se social e resulta da Constituição e das leis ordinárias, que, a cada passo, deferem, expressa ou implicitamente, à autoridade pública a missão de fiscalização e controle das atividades privadas, em benefício da coletividade. Sem muito esforço deparamos na vigente Constitui­ção da República claras limitações à liberdade individual (art. 52, IV); ao direito de propriedade (art. 5Q, XXIV e XXV); ao exercício das pro­fissões (art. 5Ü, XIII); à liberdade de comércio (art. 170). Na mesma

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linha, o Código Civil condiciona o exercício dos direitos individuais ao seu uso normal, proibindo o abuso (arts. 186 e 187), e, no que con­cerne ao direito de construir, além de sua normalidade, exige o respei­to aos regulamentos administrativos e ao direito dos vizinhos (art. 1.299). Leis outras - federais, estaduais e municipais - , em disposi­ções de ordem pública, estabelecem idênticas limitações, visando sem­pre à proteção dos interesses gerais da comunidade contra os abusos do direito individual.

A cada restrição de direito individual - expressa ou implícita em norma legal - corresponde equivalente poder de polícia à Administra­ção Pública para torná-la efetiva e fazê-la obedecida. Conclui-se, as­sim, que esse poder se alicerça no interesse superior da comunidade e é exercitável pelos órgãos públicos toda vez que se torna necessária a limitação de direitos e atividades individuais em prol do bem comum. E assim é porque o regime de liberdades públicas em que vivemos não significa regime de licença, a que os indivíduos seriam conduzidos se não se opusessem limites ao gozo dessas liberdades. A conseqüência desse sistema de liberdades condicionadas, próprio do regime demo­crático, é a regulamentação administrativa, realizada através do poder de polícia . Não se admite, entretanto, adverte oportunamente o Prof. Onofre Mendes Júnior, “que, sob o color da regulamentação, a lei anu­le, praticamente, o gozo das liberdades e garantias constitucionais. Pa­decerá do vício de inconstitucionalidade a norma que, na regulamenta­ção, vier sacrificar a fruição das liberdades públicas. Mas, por outro lado, não é suportável, também, um elastério tal dessas liberdades, ao ponto de sacrificar, em homenagem a direitos individuais, os superio­res interesses da comunidade”.32

Os limites do poder de policia administrativa são demarcados pelo interesse social em conciliação com os direitos individuais constitucio­nalmente assegurados.

Do absolutismo liberal evoluímos para o relativismo social. Os Estados de Direito, como o nosso, inspiram-se nos princípios de liber­dade individual e nos ideais de solidariedade humana (Constituição Fe­deral, art. 170). Daí o equilíbrio a ser procurado entre a fruição dos direitos individuais e as exigências do bem comum.

Através de imposições do Estado (em sentido amplo: União, Esta- do-membro, Município), o indivíduo concede parcela mínima de seus

32. Direito Administrativo, Belo Horizonte, 1956, p. 105.

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direitos à comunidade e recebe, em retribuição, segurança, salubrida- de, sossego, serviços e conforto públicos propiciadores do bem-estar. Para a dosagem dessas concessões individuais em favor da comunida­de o Estado utiliza-se da faculdade discricionária que lhe concede o poder de polícia, impondo limitações administrativas às atividades par­ticulares até onde o exige a paz social.33 Tal poder é discricionário, mas não arbitrário.34 É discricionário no sentido de que a Administra­ção pode apreciar livremente a oportunidade e conveniência das me­didas de polícia a serem adotadas para a consecução dos fins sociais almejados, bem como os meios e sanções a empregar, dentre os admi­tidos pelo Direito. Não é arbitrário porque, na sua utilização, não pode o Poder Público relegar ou afastar-se dos critérios administrativos le­gais. Se a Administração exorbita da faculdade discricionária que lhe é reconhecida, transpondo os limites de sua competência, ou se desvian­do da finalidade pública, as normas e os atos de polícia ficarão sujeitos a invalidação judicial, por inconstitucionalidade, ilegalidade, abuso ou desvio de poder, como qualquer outra norma ou ato administrativo.

As condições de validade do ato de polícia administrativa po­dem-se resumir em quatro requisitos: competência, finalidade pública, proporcionalidade, legalidade dos meios. A competência é a condição primeira para que se reconheça validade a qualquer lei ou ato adminis­trativo, visto que não são válidos aqueles que emanarem de entidade, órgão ou autoridade sem qualidade para editá-los ou praticá-los. A f i ­nalidade pública é inerente a toda atividade de administração, care­cendo de eficácia a que se desviar ou contrariar o interesse público, em cujo nome é exercida. A proporcionalidade entre a limitação ao direi­to individual e o interesse público deve acompanhar todo ato de polí­cia administrativa, por não se compreender o sacrifício de uma liber­dade ou de uma atividade lícita do particular sem vantagem apreciável para a coletividade, ou em maiores proporções que o exigido pelo bem comum.35 O Direito não tutela atos sem finalidades, nem autoriza res­trições caprichosas. O ato de polícia só é lícito quando dele resultar uma utilidade sensível para a comunidade e for praticado para atender

33. TJSP, m i 49/718.34. Não se deve confundir ato discricionário com ato arbitrário. Discricio-

nariedade é faculdade de agir dentro dos limites pré-traçados pelo Direito; arbitra­riedade é ação excedente ou contrária ao Direito, cometida com ilegalidade, abuso ou desvio do poder. O ato discricionário, quando permitido à Administração Públi­ca, é legitimo e válido; o arbitrário é sempre ilegítimo e inválido.

35. Otto Mayer, Derecho Adm inistrativo , 11/31, Depalma, 1950.

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a efetivas exigências sociais. O sacrifício do direito do cidadão deve ser compensado pelos benefícios de ordem geral, resultantes da restri­ção imposta à atividade policiada. Fora daí, tudo descamba para o ar­bítrio e se macula de ilegalidade. A legalidade dos meios, último re­quisito do ato de polícia, relaciona-se com as garantias individuais com que a Constituição resguarda os direitos e atividades fundamentais do homem. Com ser o ato de polícia de natureza discricionária, não está o Poder Público autorizado a empregar meios ilegais para a sua prática, embora lícito e legal o fim, competente a autoridade e de interesse pú­blico a restrição imposta ao particular.

Em matéria de polícia, adverte Roger Bonnard, “la fín ne justifíe pas tous les moyens”.36 Com efeito, os meios devem ser os autorizados em lei, os permitidos pela Moral, os reconhecidos pelo Direito, embo­ra coercitivos e traduzidos em força física. Tais meios hão de ser com­patíveis com a necessidade e urgência da medida e com a dignidade humana. A interdição de atividade, a destruição de coisas, a demolição de obras, o emprego da força física, a detenção pessoal, só se justifi­cam como providências extremas do Poder Público, objetivando um bem maior para a coletividade. Enquanto houver possibilidade de con­cretizar a medida policial por meio de ordens administrativas, não se legitima a violência. Só a renitência ou resistência do particular às de­terminações legais é que autorizam o emprego da força física como úl­timo argumento do Poder Público contra o capricho do indivíduo.

A auto-executoriedade do ato de polícia administrativa é, hoje, reconhecida uniformemente pela doutrina.37 Quando se diz que o ato de polícia é auto-executório, pretende-se significar que ele traz em si mesmo a possibilidade de execução direta e imediata pela Administra­ção. Em regra, para a prática do ato de polícia administrativa não há necessidade de prévia apreciação e decisão judiciária. A Administra­ção fá-lo executar com seus próprios meios, garantida pela força públi­ca, se necessário, ainda que o ato importe apreensão ou destruição de

36. Précis de Droit Administrai f 1935, p. 321.37. Ranelletti, Teoria degli Atti Amministrativi Speciali, Ia ed., p. 126; Frago-

la, Gli Atti Amministrativi, 1952, p. 75; Cino Vitta, Diritto Amministrativo, 1948, 1/932; Zanobini, Curso de Derecho Administrativo, ed. Arayú, 1954, p. 373; Lau- badère, Droit Administratif, 1957, pp. 170 e ss.; Hauriou, Droit Admmistraüf 1925, p. 17S; Buttgenbach, Droit Administratif, 1954, p. 260; Bielsa, Compêndio de De­recho Público, 11/28, 1952; Manuel Maria Diez, El Acto Administrativo, 1956, p. 20); Marcello Caetano, Direito Administrativo, 1947, p. 443; Seabra Fagundes, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, Rio, 1950, p. 256.

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coisas, embargo de construção, demolição de obras, interdição de ati­vidade e o que mais se contiver na competência da autoridade adminis­trativa que o determinar.38

A propósito, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, em ses­são plenária, que, tratando-se de ato de polícia administrativa, nenhu­ma procedência tem a objeção de que a execução sumária pela Admi­nistração Pública pode lesar o indivíduo na sua liberdade ou no seu patrimônio. E o mesmo acórdão rematou: “Exigir-se prévia autoriza­ção do Poder Judiciário eqüivale a negar-se o próprio poder de polícia administrativa, cujo ato tem de ser sumário, direto e imediato, sem as delongas e complicações de um processo judiciário prévio”.39

Nem se opõe a essa conclusão o disposto nos arts. 287, 934 e 936 do Código de Processo Civil, uma vez que o pedido cominatório con­cedido ao Município é simples faculdade para acertamento judicial pré­vio das relações entre o particular e o Poder Público, se assim o dese­jar a Administração.40 Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal, concluindo que, no exercício regular da autotutela administra­tiva, pode a Administração executar diretamente os atos emanados de seu poder de polícia, sem utilizar-se de pedido cominatório, que é pos­to à sua disposição em caráter facultativo.41

Ao particular que se sentir ofendido pelo ato de polícia da Admi­nistração é que cabe recorrer ao Judiciário, uma vez que não pode fa­zer justiça por suas próprias mãos. E sobejam razões para essa diversi­dade de tratamento entre o particular e o Poder Público, porque aquele cuida egoistícamente de seus direitos e este tutela ou deve tutelar, al- truisticamente, o interesse da coletividade. Daí a judiciosa ponderação de Seabra Fagundes de que “a atividade administrativa resultaria inú­til, as mais das vezes, e interesses dos mais relevantes seriam preteri­dos irremediavelmente, se, à simples oposição do sujeito passivo das obrigações públicas, carecesse o administrador de meios coercitivos imediatos para removê-la. O próprio conceito de Poder Público leva à explicação dessa excepcional faculdade de exigir coativamente, por ato

38. V. o cap. 6, item 1.8, referente a embargo administrativo de obra.39. TJSP, RT 183/823. No mesmo sentido: TJSP, RT 186/325, 210/161, 227/

136.40. Machado Guimarães, Comentários ao Código de Processo Civil, IV/184;

Darcy Bessone, “Poder de polícia”, RT 210/49.41. STF, RF 124/438.

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próprio e diretamente do administrado, o cumprimento sumário das prestações de que seja devedor”.42

As sanções decorrentes do poder de polícia administrativa, como meio de prevenção e repressão às atividades ilegais ou anti-sociais de­vem ser necessariamente precedidas de notificação para a prática ou abstenção da conduta objetivada, em respeito às garantias constitucio­nais do devido processo legal e da ampla defesa (Constituição Federal, art. 5Ü, LIV e LV) e se escalonam em multa, interdição de atividade, embargo de construção e demolição de obra.

A imposição dessas penalidades cabe à autoridade a que está confiado o poder de fiscalização e controle da atividade policiada. Ao Judiciário não é lícito impor sanções administrativas, nem graduar a sua imposição, porque isto é função típica do Executivo, na sua missão de administrar e policiar. Cabe à Justiça, tão-somente, verificar a lega­lidade do ato da Administração, para confirmá-lo, se legítimo, ou anu­lá-lo, se ilegal. O que não nos parece admissível, no regime de separa­ção de Poderes, é a interferência do Judiciário na aplicação de penali­dades administrativas, para atenuar ou agravar sanções, quando isto é atributo irretirável do Executivo. Admitir-se o contrário é substituir a discricionariedade do Executivo pela do Judiciário, sem nenhuma van­tagem de ordem técnica que a justifique.

O Judiciário não julga a infração administrativa; julga a legalida­de da sanção administrativa.

Do caráter discricionário das medidas de polícia administrativa decorre para a Administração a faculdade de escolha da sanção a apli­car, dentre as consignadas na lei ou regulamento; da natureza auto-exe- cutória dessas medidas deflui a possibilidade de impor e executar dire­tamente a penalidade aplicada, sem que a outro Poder seja permitido restringir essa liberdade do Executivo, desde que se contenha nos limi­tes de sua competência e observe as formalidades legais.43

Ao finalizar este tópico, é de se advertir que o poder de polícia administrativa incide amplamente sobre a construção, principalmente sobre a edificação urbana, visando ao seu controle técnico-funcional e ao ordenamento da cidade.

42. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, Rio, 1950, p.256.

43. Para maiores esclarecimentos sobre poder de polícia, v. nosso Direito Administrativo Brasileiro, 30a ed., cap. III, n. 7.

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O fundamento desse poder de polícia das construções está no art. 1.299 do Código Civil,44 que só permite a edificação respeitando-se o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos. Tais regula­mentos consubstanciam-se no Código de Obras e nas normas comple- mentares, que veremos adiante (cap. 6, item 1.2).

2. AS PRINCIPAIS LIMITAÇÕES ADMINISTRA TIVAS

As limitações administrativas, como gênero já estudado preceden­temente, abrangem diversificadas espécies, dentre as quais destacare­mos, por sua importância e constância no condicionamento ao direito de construir, as seguintes: d) limitações urbanísticas; b) limitações de higiene e segurança; c) limitações militares.

2.1 LIMITAÇÕES URBANÍSTICAS

Limitações urbanísticas4:> são todas as imposições do Poder Pú­blico destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar ao homem as melhores condições de vida na comunidade. Entenda-se por espaços habitáveis toda área em que o homem exerce coletivamen­te qualquer das seguintes funções sociais: habitação, trabalho, circu­lação, recreação.

2.1.1 NATUREZA DAS LIMITAÇÕES URBANÍSTICAS

As limitações urbanísticas são preceitos de ordem pública. Deri­vam do poder de polícia, que é inerente e indissociável da Administra­ção. Exteriorizam-se em imposições de uso da propriedade ou de ou­tros direitos individuais, sob a tríplice modalidade positiva (fazer), ne­gativa. (não fazer) ou permissiva (deixar fazer).

44. A partir da Constituição de Í988, o fundamento do poder de polícia das construções não decorre apenas do art. 1.299 do Código Civil, mas sim da própria Lei Maior, que outorga competência ao Município para promover o adequado or­denamento do solo urbano, mediante o controle de seu parcelamento, uso e ocupa­ção (art. 30, VIII).

45. Sobre limitações urbanísticas, v.: nosso Direito Municipal Brasileiro, 13a ed., 2003, cap. IX; Lucia Valle Figueiredo, Disciplina Urbanística da Propriedade, Ia ed., São Paulo, Ed. RT, 1980, e 2a ed., Malheiros Editores, 2005; e Desapropria­ção e Urbanismo, Ia ed., São Paulo, Ed. RT, 1981; José Afonso da Silva, Direito Urbanístico B rasileiro , 4 Ü ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2005; Guilherme Mufioz, “Derecho de propiedad, Urbanismo y principio de legalidad”, RDP 90/11.

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Distinguem-se das limitações civis, comumente chamadas restri­ções de vizinhança, que visam à proteção da propriedade particular, em si mesma, e à segurança, ao sossego e à saúde dos que a habitam (Có­digo Civil, arts. 1.277 a 1.313). Ambas incidem sobre bens e atividades privadas, mas com finalidades diversas: as restrições civis amparam os vizinhos, reciprocamente considerados nas suas relações individuais; as limitações urbanísticas protegem a coletividade na sua generalida­de. Umas e outras condicionam o uso da propriedade, restringem direi­tos individuais, coartam atividades particulares, tolhem a liberdade de construção, mas em nome de interesses diferentes. Por isso mesmo, a competência para editá-las é diversa, como diversos são os instrumen­tos em que se podem corporificar e diversas são as condições em que atuam.

O Direito Urbanístico46 não se confunde com o direito de cons­truir, nem com o direito de vizinhança, embora mantenham íntimas co-

46. Na atualidade aceita-se o Direito Urbanístico como ramo do Direito Pú­blico destinado ao estudo e formulação dos princípios e normas que devem reger os espaços habitáveis, no seu conjunto cidade-campo.

Sobre esta moderna concepção, consultem-se, na doutrina estrangeira: Louis Jacquignon, Le D roit de VUrbanisme, Paris, 1956; Georges-Henri Noèí, Le Droit de VUrbanisme, Paris, 1957; Jean-Marie Rivalland, Les Charges d ’Urbanisme, Pa­ris, 1969; Jacques Baschwitz, L 'Urbanisme et l 'Aménagement Foncier, Paris, 1976; Virgilio Testa, Legislazione Urbanística, Miião, 1956; Mario Pacelli, La Pianifica- zione Urbanística, Milão, 1966; Federico Spantigati, Diritto Urbanístico, Milão, 1969; Giuseppe Fragola, Urbanística ed Edilizia, Pádua, 1972; Miguel Angel Ber- çaitz, Problemas Jurídicos dei Urbanismo, Buenos Aires, 1972; Enrique Jardi, Ei Planeamiento Urbanístico, Barcelona, 1976.

Na doutrina pátria, v.: Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Introdução ao Di­reito Ecológico e ao Direito Urbanístico, Ia ed., Rio, 1975. Trabalhos jurídicos enfocando aspectos desse mesmo Direito foram anteriormente escritos em teses e artigos pelos seguintes autores: Francisco Teodoro da Silva, Planejamento Urba­nístico Municipal (Tese de concurso para a cátedra de Administração Municipal da Escola de Arquitetura da UMG), Belo Horizonte, 1963; Sérgio Ferraz, Cláudio Vianna de Lima, Paulo Francisco da Rocha Lagoa e o próprio Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em artigos diversos reunidos na publicação intitulada O Município e o Direito Urbano, Rio, 1974. Mais recentemente, surgiram os trabalhos de Helita Barreira Custódio, Natureza Jurídica do Plano D iretor (Tese de pós-graduação), Roma, 1975, e Autonomia do Município na Preservação Ambiental, São Paulo, 1976; de Célson Ferrari, Curso de Planejamento Municipal Integrado - Urbanis­mo, São Paulo, 1977; Lucia Valle Figueiredo, Disciplina Urbanística da Proprie­dade, l ü ed., Ed. RT, 1980, e 2a ed., Malheiros Editores, 2005; Adilson Abreu Dalla- ri, Desapropriações p a ra Fins Urbanísticos, Forense, 1981; Antônio de Pádua Fer­raz Nogueira, Desapropriação e Urbanismo, Ed. RT, 1981; José Afonso da Silva,

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nexões e seus preceitos muitas vezes se interpenetrem, sem qualquer colisão, visto que protegem interesses diversos e se embasam em fun­damentos diferentes. Realmente, o direito de construir e o direito de vizinhança são de ordem privada e disciplinam a construção e seus efeitos nas relações com terceiros, especialmente com os confinantes, enquanto o Direito Urbanístico ordena o espaço urbano e as áreas ru­rais que nele interferem, através de imposições de ordem pública, ex­pressas em normas de uso e ocupação do solo urbano ou urbanizável, ou de proteção ambiental, ou enuncia regras estruturais e funcionais da edificação urbana coletivamente considerada.

Assim sendo, as limitações urbanísticas podem provir de qualquer entidade estatal e abranger qualquer área da cidade ou do campo onde as realizações humanas ou a preservação da natureza sejam necessárias ao bem-estar social. Mas, como nas cidades se concentram as popula­ções, suas áreas exigem mais e maiores empreendimentos urbanísti­cos, sujeitos, conseqüentemente, ao poder municipal. Como imposições de ordem pública, as limitações urbanísticas são imprescritíveis, irre-

Direito Urbanístico Brasileiro, Ia ed., 1981, e 4a ed., Malheiros Editores, 2005; Joaquim Castro Aguiar, Direito da Cidade, Rio de Janeiro, Renovar, 1996; Nélson Saule Jr., Novas Perspectivas do D ireito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997; Ruy de Jesus Marçal Carneiro, Orga­nização da Cidade, Ed. Max Limonad, 1998; Edésio Fernandes (org.), Direito Ur­banístico, Belo Horizonte, Del Rey, 1998; Maria Paula Dalfari Bucci, Cooperati­vas de Habitação no Direito Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2003; Luiz Guilherme da Costa Wagner Jr., A Ação Civil Pública como Instrumento de Defesa da Ordem Urbanística, Belo Horizonte, Del Rey, 2003; Daniela Campos Libório Di Samo, Elementos de Direito Urbanístico, Barueri, 2004.

Em 1958 publicamos, na Revista de Direito da Procuradoria-Geral da Prefei­tura do então Distrito Federal, extenso artigo intitulado “Limitações urbanísticas ao uso da propriedade” (v. 8ü/2-35), no qual procuramos conceituar o Urbanismo no seu sentido atual, indicar a natureza jurídica de suas limitações à propriedade particular e fixar a competência das três entidades estatais para editá-las, segundo o nosso ordenamento constitucional. As diretrizes daquele estudo mereceram aceita­ção generalizada da doutrina e da jurisprudência pátrias, pelo quê nos permitimos reproduzi-las resumidamente neste capítulo, com as adaptações à evolução do Di­reito e da legislação pertinentes ao assunto.

O ensino sistemático do Direito Urbanístico, entre nós, iniciou-se em 1976, em curso regular de pós-graduação na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a regência do Prof. José Afonso da Siiva. Posteriormente, a Facul­dade de Direito da PUC/SP passou a oferecer, também, dois cursos de pós-gradua­ção de Direito Urbanístico, sob a responsabilidade dos Profs. Adilson Abreu Dallari e Lucia Valle Figueiredo.

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nunciáveis e intransacionáveis, diversamente das restrições civis, que são prescritíveis, renunciáveis e transacionáveis por acordo entre as partes, ou mesmo pela aceitação tácita de certas situações de fato.

Como as demais imposições do Poder Público, as urbanísticas nas­cem revestidas de imperium, inerente a toda ordem estatal, tomando-se obrigatórias não só para os particulares como para a própria Adminis­tração, visto que a submissão dos indivíduos e das autoridades às nor­mas legais constitui peculiaridade dos Estados de Direito, como o nos­so.47 Tais normas, como já acentuamos, podem conter imposições de três modalidades: positivas (fazer), negativas (não fazer) e permissivas (deixar fazer). No primeiro caso, o particular fica obrigado a realizar o que a Administração lhe impõe;48 no segundo, deve abster-se do que lhe é vedado; no terceiro, há de permitir que o Poder Público utilize ou realize, na propriedade particular, o que for de interesse urbanístico.

Como espécie do gênero limitação administrativa, as limitações urbanísticas devem corresponder às justas exigências do interesse co­letivo que as motiva, sem produzir um total aniquilamento da proprie­dade, nas suas manifestações essenciais de uso, gozo e disponibilidade da coisa. Por igual, não podem ferir de morte os direitos fundamentais do Homem, comprometendo-lhe a vida, a liberdade e a segurança indi­viduais. Além disso, e para que sejam admissíveis as limitações urba­nísticas sem indenização, como é de sua índole, devem ser genéricas, isto é, dirigidas a propriedades ou atividades indeterminadas, mas de-

47. Caio Tácito assinala, com muita oportunidade, que: “O episódio central da história administrativa do século XIX é a subordinação do Estado ao regime da legalidade. A lei, como expressão da vontade coletiva, incide tanto sobre os indiví­duos, como sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa onde principia a vinculação legal” (O Ensino do Direito Administrativo no Brasil, 1957, P- 3).

48. Alguns autores menos atualizados em assuntos urbanísticos recusam-se a admitir possa o Poder Público impor obrigações de fa ze r aos particulares, só admi­tindo as limitações consistentes em não fa zer e deixar fazer. Tal entendimento está superado. As normas administrativas, como as urbanísticas, tanto podem impor obrigações negativas como permissivas e positivas aos particulares. Nesse sentido, consuitem-se: Greca, El Régimen Legal de la Construcción , 1956, p. 35; Testa, Mamtale di Legislazione Urbanística, pp. 309 e ss.; Perticone, La Proprietà e i s i í o í Limiti, 1930, pp. 68, 77 e 88; D ’Alessio, Istituziom di D irilto Amministrativo, 11/81, 1949; Vitta, D iritto Amministrativo, 1/246, 1949; Josserand, D roit Civil Po- s itif Français, 1/817, 1938; Fleiner, D roit Adm inistratif Alemand, 1933, pp. 239 e 245; Black, Constitutional Law, 1927, p. 309; Freund, Administrative Pow er over Person and Property, 1928, pp. 444 e ss.

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termináveis no momento de sua incidência.49 Só se admitem imposi­ções urbanísticas singulares, à propriedade ou atividade de um ou al­guns indivíduos ou empresas, quando o bem ou a atividade, por sua extensão, localização ou natureza, afetar de tal modo o interesse públi­co que exija providências especiais, em defesa da comunidade. Tais casos se resolvem não por limitações urbanísticas gratuitas, mas por servidão pública ou desapropriação - com justas indenizações que são os meios administrativos adequados à solução de situações parti­culares que conflitem com o interesse público ou prejudiquem o bem- estar social. Se ultrapassarem esses lindes, incorrerão em inconstitucio- nalidade ou abuso de poder.

As limitações urbanísticas, como as limitações administrativas, embasam-se nos arts. 5Ü, XXII e XXIII, e 170, II e III, da Constituição Federal, que condiciona a utilização da propriedade à sua função social. São, portanto, limitações de uso da propriedade, e não da propriedade em sua substância; são limitações ao exercício de direitos individuais, e não aos direitos em si mesmos. E, exatamente por não atingirem a substância da propriedade, nem afetarem o direito individual em sua essência constitucional, é que as limitações urbanísticas podem ser ex­pressas por lei ou regulamento, de qualquer das entidades estatais, des­de que observem e respeitem as competências institucionais de cada uma delas. Conquanto mais comumente sejam elas editadas em lei, nada obsta a que venham expressas em decreto ou qualquer outro ato administrativo adequado à situação a prover. Não se justifica, em nos­sos dias, essa prevenção contra os regulamentos, desde que observem os limites de sua atuação e a sua posição em face da lei. “Os juristas - escreve Brugi - devem hoje abandonar certos preconceitos, e, embora conservando-se guardas fiéis da lei, urge considerar que a Administra­ção Pública desempenha certa atividade legislativa, contida na chama­da faculdade regulamentadora; o caráter normativo e imperativo da lei aparece, igualmente, no regulamento, desde que não exceda seus limi­tes naturais”?0

As limitações urbanísticas, por sua natureza de ordem pública, destinam-se, pois, a regular o uso do solo, as construções e o desenvol­vimento urbano, objetivando o melhoramento das condições de vida

49. Alcides Greca, El Régimen Legal de la Construcción, Buenos Aires, 1956, p. 36; TJRS,/?r 610/225.

50. Biagio Brugi, D elia Proprieià, 1/165, Roma, 1918. No mesmo sentido: Meirelles Teixeira, Estudos de D ireito Público, 1/253, São Paulo, 1949.

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coletiva, sob o aspecto físico-social. Para isto, o Urbanismo prescreve e impõe normas de salubridade, conforto, segurança, funcionalidade e estética para a cidade e suas adjacências, ordenando desde o traçado urbano, as obras públicas, até as edificações particulares que vão com­por o agregado humano. Tais limitações atingem precipuamente a ha­bitação, e é natural que isto ocorra, porque a casa é a semente da po- voação. Quem constrói a casa está construindo a cidade. Mas a cida­de não é do proprietário da casa; é de todos. E, sendo de todos, há de predominar, na sua ordenação, o interesse da coletividade sobre o particular.31

Os superiores interesses da comunidade justificam as limitações urbanísticas de toda ordem, notadamente as imposições sobre área edí- ficável, altura e estilo dos edifícios, volume e estrutura das constru­ções; em nome do interesse público, a Administração exige alinha­mento, nivelamento, afastamento, áreas livres e espaços verdes; impõe determinados tipos de material de construção; fixa mínimos de insola­ção, iluminação, aeração e cubagem; estabelece zoneamento; prescre­ve sobre loteamento, arruamento, habitações coletivas e formação de novas povoações; regula o sistema viário e os serviços públicos e de uti­lidade pública; ordena, enfim, a cidade e todas as atividades das quais depende o bem-estar da comunidade.

Essa enumeração evidencia, desde logo, que as limitações urba­nísticas confinam com as normas sanitárias e as regras de trânsito, uma vez que todas elas confluem para o mesmo objetivo: o bem-estar da população. Diferenciam-se, apenas, os meios de atuação. Enquanto o Urbanismo ordena física e socialmente os espaços habitáveis e áreas adjacentes, as normas sanitárias impõem medidas higiênicas e profilá- ticas e as regras de trânsito disciplinam a circulação nesses mesmos espaços, numa complementação harmônica e recíproca, dado que to­dos esses preceitos objetivam a preservação dos mesmos bens huma­nos: a saúde, o sossego, a segurança física, o repouso espiritual - bens, estes, que, em seu conjunto, geram conforto individual e bem-estar co­letivo. Coexistem, assim, as normas sanitárias e as medidas de trânsito em simbiose com as imposições urbanísticas. Faltando umas, fenecem as outras, ou, pelo menos, perdem muito da sua eficiência.

5 1. Alcides Greca, El Régimen Legal de la Construcción, Buenos Aires, 1956, p. 126; Luiz Migone, Las Ciudades de los Estados Unidos, “Prólogo”, Buenos Ai­res, 1955, p. IX; Kingsley Davis et a i , Cidades - A Urbanização da Humanidade, trad. Reznik, Rio, 1972.

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Determinada a natureza jurídica das limitações urbanísticas e fi­xados os seus objetivos, passemos a analisar a competência das entida­des estatais para editá-las e os limites de sua imposição.

A Constituição de 1988 manteve a mesma linha básica de reparti­ção de competências advinda das Constituições anteriores: poderes re­servados ou enumerados da União (arts. 21 e 22), poderes remanes­centes para os Estados (art. 25, § Ia) e poderes indicativos para os Mu­nicípios (art. 30). Não obstante, procurou distinguir a competência executiva da competência legislativa. A primeira é a competência mate­rial para a execução das funções públicas, que pode ser privativa (art. 21) ou comum (art. 23). A segunda refere-se à capacidade de editar leis e pode ser também privativa (art. 22), concorrente (art. 24) e suple­mentar (arts. 22, § 2a, e 30, II).

O Urbanismo, que antes era ignorado pelo nosso sistema legislati­vo, passou a ser tratado como matéria relevante pela Constituição Fe­deral de 1988, que inseriu vários dispositivos a respeito das competên­cias e introduziu um capítulo especial sobre a política urbana (arts. 182 e 183). O Direito Urbanístico foi reconhecido expressamente como dis­ciplina autônoma, sendo incluído na competência legislativa concor­rente da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 2 4 ,1). No âmbi­to da legislação concorrente, cabe à União editar apenas normas gerais (art. 24, § Ia), que podem ser complementadas pela legislação dos Es­tados (§ 2ü); mas, inexistindo normas gerais, os Estados exercerão com­petência legislativa plena, para atender às suas peculiaridades (§ 3a); a superveniência de norma geral sobre a matéria suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário (§ 4a).

A União foi outorgada, ainda, competência para elaborar e exe­cutar planos nacionais e regionais de ordenação do território (art. 21, IX), bem como instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, in­clusive habitação, saneamento básico e transporte urbano (art. 21, XX).

Ao Município foi deferida competência expressa para promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII). Evidente que essa competência executiva para agir - promover - abran­ge a capacidade legislativa de editar as normas indispensáveis à atua­ção; caso contrário, seria totalmente inócua. Acresce, mais, que o art. 30 da Constituição outorgou ao Município a competência para editar normas sobre assuntos de interesse local (n. I) e suplementar a legisla­ção federal e estadual, no que couber (n. II), o que compreende o Di­reito Urbanístico.

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ParaLelamente, o art. 182 da Constituição também concedeu ao Município a execução da política de desenvolvimento urbano, que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Essa política fica su­jeita, apenas, às diretrizes gerais fixadas por lei federal.

Verifica-se, assim, que as limitações urbanísticas podem ser im­postas pelas três entidades estatais (União, Estados e Municípios), no âmbito das respectivas competências. Cabe à União elaborar o plano nacional de ordenação do território e editar as normas gerais de Ur­banismo; compete aos Estados organizar o plano estadual de ordenação do território e estabelecer normas urbanísticas regionais, suplementa­res das federais; aos Municípios cumpre elaborar o Plano Diretor e promover o adequado ordenamento urbano, instituindo as normas le­gais pertinentes?2

As limitações urbanísticas municipais expressam-se através do Plano Diretor e da regulamentação edilícia, que abrangem todo o or­denamento urbano e das áreas urbanizáveis.

2.1.2 PLANO DIRETOR

O Plano Diretor ou Plano Diretor de Desenvolvimento Integra­do?3 como modernamente se diz, é o complexo de normas legais e di­retrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do Municí­pio, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo, deseja­do pela comunidade local. Deve ser a expressão das aspirações dos munícipes quanto ao progresso do território municipal no seu conjunto cidade-campo. E o instrumento técnico-legal definidor dos objetivos de cada Municipalidade e, por isso mesmo, com supremacia sobre os

52. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10.7.2001) estabelece normas ge­rais de Direito Urbanístico e diretrizes gerais de planejamento urbano, devendo ser observadas tanto pela União quanto pelos Estados, Municípios e Distrito Federal ao exercitarem suas correspondentes competências em matéria de planejamento do desenvolvimento urbano (a bibliografia sobre este assunto está indicada na nota de rodapé 3).

53. Sobre Plano Diretor, antes da promulgação da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) merecem destaque os trabalhos realizados pela Fundação Prefeito Faria Lima (CEP AM) do Estado de São Paul o, em 1969, agora atualizado pelos urbanis­tas Domingos Theodoro de Azevedo Netto e Clementina de Ambrosis, apresentan­do inclusive um roteiro para sua elaboração e um modelo de projeto de lei para sua aprovação pela Câmara Municipal. V., também, Célson Ferrari, Curso de Planeja­mento Municipal Integrado - Urbanismo, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1977, e, do Autor, o capítulo correspondente no Direito M unicipal Brasileiro.

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outros, para orientar toda atividade da Administração e dos administra­dos nas realizações públicas e particulares que interessem ou afetem a coletividade.

Por força do disposto no art. 182, § 1B, da Constituição Federal, o Plano Diretor, que deve ser aprovado pela Câmara Municipal, é o ins­trumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana e passou a ser de elaboração obrigatória para cidades com mais de vinte mil habitantes. Mas ele, na verdade, deve ser elaborado por todos os Municípios, pois, conforme dispõe o § 2Q do mesmo artigo constitucio­nal, é ele que serve como parâmetro para que se possa aferir se a pro­priedade urbana está, ou não, cumprindo sua função social.

O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), em seus arts. 39 a 42, disciplina o processo de elaboração do Plano Diretor, que deverá con­tar com a participação da comunidade (conforme exige o art. 29, XII, da Constituição Federal), estabelece seu conteúdo mínimo e estende a obrigatoriedade de sua elaboração também aos Municípios integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, aos Municípios que pretendam estabelecer o parcelamento, a edificação e a utilização com­pulsórios, aos integrantes de áreas de especial interesse turístico e, ain­da, no caso de realização de empreendimentos ou atividades com sig­nificativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. A lei que aprovar o Plano Diretor deve ser revista, pelo menos, a cada dez anos.

O Plano Diretor é um único, embora sucessivamente adaptado às novas exigências da comunidade e do progresso local, num processo perene de planejamento que realize a sua adequação às necessidades da população, dentro das modernas técnicas de administração e dos re­cursos de cada Prefeitura. O Plano Diretor não é estático; é dinâmico e evolutivo. Na fixação dos objetivos e na orientação do desenvolvimen­to do Município, é a lei suprema e geral que estabelece as prioridades nas realizações do governo local, conduz e ordena o crescimento da cidade, disciplina e controla as atividades urbanas em benefício do bem-estar social. O Plano Diretor não é um projeto executivo de obras e serviços públicos, mas sim um instrumento norteador dos futuros em­preendimentos da Prefeitura, para o racional e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade. Por isso não exige plantas, memoriais e especificações detalhadas, pedindo apenas indicações precisas do que a Administração municipal pretende realizar, com a locação aproxima­da e as características estruturais ou operacionais que permitam, nas épocas próprias, a elaboração dos projetos executivos com a estimativa dos custos das respectivas obras, serviços ou atividades que vão com­

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por os empreendimentos anteriormente planejados, sejam construções isoladas, sejam planos setoriais de urbanização ou de reurbanização, sejam sistemas viários, redes de água e esgoto, ou qualquer outro equi­pamento público ou de interesse social.

A Constituição de 1988 conferiu ao Plano Diretor relevantes atri­buições, explicitando que ele “é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” (art. 182, § 1Q), cujo objetivo é “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (art. 182, capaf). Além disso, deve expressar “as exigências básicas de ordenação da cidade” que ser­virão para aferir o cumprimento da “função social da propriedade ur­bana” (art. 182, § 2o). Enquanto para a propriedade rural a Constitui­ção procurou fixar, ela própria, os parâmetros de sua função social (art. 186), no caso da propriedade urbana é o Plano Diretor que vai estabe­lecer as exigências fundamentais para esse fim. Determina mais a Constituição que o Plano Diretor é obrigatório para toda cidade com mais de vinte mil habitantes (art. 182, § Ia), preceito que, lamentavel­mente, não vem sendo cumprindo pelos nossos Municípios.

O Plano Diretor é sempre uno e integral, mas os planos de urbani­zação ou de reurbanização podem ser múltiplos e setoriais, pois visam a obras isoladas, ampliação de bairros (plano de expansão), formação de novos núcleos urbanos (urbanização por loteamentos), renovação de áreas envelhecidas e tornadas impróprias para sua função (reurbani­zação) e quaisquer outros empreendimentos parciais, integrantes do plano geral. Esses procedimentos urbanísticos não se confundem com o Plano Diretor, pois, embora sigam as suas diretrizes, passam a cons­tituir atos autônomos e concretos de administração e, ainda que apro­vados por lei, quando devam ser por decreto, tornam-se passíveis de impugnação judicial se incidentes sobre a propriedade particular e le­sivos de direito individual, mesmo antes das medidas expropriatórias para ocupação do imóvel atingido.

Em seguimento ao Plano Diretor do Município vem a regula­mentação edilícia, dispondo sobre a delimitação da zona urbana, o traçado urbano, o uso e ocupação do solo urbano, o zoneamento, o loteamento, o controle das construções, a estética urbana e a prote­ção ambiental, tudo isto através de limitações urbanísticas ao direito de construir e de normas de ordenamento das atividades urbanas que afetem a vida da comunidade. E o que veremos, a seguir, nos tópicos pertinentes a cada uma dessas limitações urbanísticas.

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2.1.3 REGULAMENTAÇÃO EDILÍC1A

A regulamentação edilícia34 tradicional expressa-se em limitações de segurança, higiene e estética da cidade e das habitações,33 mas a moderna concepção do Urbanismo alargou seus domínios a tudo quan­to possa melhorar a vida urbana. Em nossos dias, o avassalador fenô­meno da urbanização e o desmedido crescimento das cidades vêm exigindo mais e maiores imposições edilícias em benefício da coletivi­dade urbanizada, o que sobrecarrega o Município com encargos im­previstos e despesas extraordinárias para atender a áreas imensas tor­nadas urbanas repentinamente, sem o equipamento mínimo indispen­sável às necessidades dessas novas concentrações populacionais?6

Como bem retratou Figueiredo Ferraz, ex-prefeito da Capital de São Paulo: “As massas migratórias não fluem apenas para as cidades receptoras, mas tomam-nas como que se as assaltassem, e, qual man­chas imensas, cercam-nas por completo, numa ocupação territorial con- vulsionada, configurando um cinturão de miséria”?7

54. A expressão regulamentação edilícia originou-se da atividade dos edis romanos incumbidos da administração da cidade, e que, através de edichis, dispu­nham sobre a urbe e suas construções. Daí as derivações correntes em nossa lín­gua: edil (vereador); edilidade (Câmara de Vereadores); edilício (relativo a edil ou edilidade). Regulamentação edilícia , atualmente, abrange todas as normas munici­pais de ordenamento urbano, provenham da Câmara ou do prefeito.

55. Recordem-se, a propósito, a constituição de Júlio César, “De urbe augen- da”, que estabelecia normas para o desenvolvimento de Roma, e os edictus “De aquis urbis Romae”, que dispunha sobre a construção de aquedutos para abasteci­mento da cidade, e o “De aedificiis”, que regulamentava as construções em geral. Na doutrina, v.: Mayns, Droit Romain, 1870, § 181; Girard, D roit Romain, 1906, p. 255; Bonfante, Istitiizioni di D iritto Romano, 1921, § 97; Pierre Lavedan, His- toire de VUrbanisme, v. íü, 1952, passim \ Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga , trad. portuguesa, Porto, 1954, pp. 197 e ss.

56. A propósito do contemporâneo fenômeno da urbanização, Paulo VI as­sim se pronunciou: “O aparecimento de uma civilização urbana, que acompanha o incremento da civilização industrial, não será, na realidade, um verdadeiro desafio lançado à sapiência do homem, à sua capacidade de organização e à sua imagina­ção prospectiva? No seio da sociedade industrial transformam-se os modos de vi­ver e as estruturas habituais da existência: a família, a vizinhança e os próprios moldes da comunidade cristã. O homem experimenta, assim, uma nova forma de solidão, não já diante de uma natureza hostil que eie levou séculos para dominar, mas no meio da multidão anônima que o rodeia e onde ele se sente como um estra­nho. Fase irreversível, sem dúvida, no desenvolvimento das sociedades humanas, a urbanização levanta ao homem problemas difíceis: como dominar o seu crescimen­to, regular a sua organização e conseguir a sua animação para o bem de todos?” {Carta Apostólica “Octogesima Adveniens ”, § § 3 e 10).

57. Perspectivas Urbanas na América Latina, trabalho apresentado na Con­ferência Latino-Americana sobre Desenvolvimento Urbano, em Bogotá, em agosto

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Essa realidade foi de há muito pressentida e proclamada por Gre- ca, acentuando os encargos e responsabilidades do Município, nestes termos: “Si las limitaciones a la propiedad se aplican en todo el territo- rio dei país, en virtud de exigencias sociales, econômicas, sanitarias y técnicas, con mayor motivo deben intensificarse en las cíudades, don­de los problemas se presentan cada vez más apremiantes dada la estre- cha convivência de una numerosa población”. E ajunta, a seguir: “temen­do el Municipio facultades policiales podrá exercerlas también por mé­dio de reglamentaciones en todas aquellas matérias y actividades que le son inherentes por razones de estética, de securidad, de salud públi­ca, de trânsito, de servicios públicos, de moralidad, de carácter social y econômico, cultural e histórico”?8

Daí por que a administração e ordenamento da cidade são atribui­ções municipais (Constituição Federal, art. 30, VIII), complementadas pelo controle da construção que o Código Civil sujeita aos regulamen­tos administrativos (art. 1.299), que outra coisa não é senão a regula­mentação edilícia da edificação particular.

Fiei à orientação doutrinária e ao Direito legislado, a nossa juris­prudência sempre reconheceu e proclamou a legitimidade das impo­sições urbanísticas pelos Municípios, no ordenamento urbano e no controle da edificação, e o fez na amplitude deste aresto do Supremo Tribunal Federal: “A autoridade municipal pode dispor sobre a segu­rança dos edifícios, sua harmonia arquitetônica, alinhamento, altura, ingressos, saídas, arejamento, enfim, acomodações às exigências que a vida humana, nas grandes cidades, vai tornando cada vez mais difí­cil”.59

Na verdade, a regulamentação edilícia objetiva dois aspectos bem distintos, embora oriundos das mesmas exigências sociais, e tais são o ordenamento da cidade no seu conjunto e o controle tècnico-funcional da construção individualmente considerada. O ordenamento da cida­de visa, precipuamente, ao traçado urbano e à regulação do uso do solo urbano e urbanizável, com o conseqüente zoneamento e discipli­na dos loteamentos para fins urbanos, e o controle das construções,

de 1975, p. 5. V., no mesmo sentido, a coletânea de estudos intitulada: Cidades - A Urbanização da Humanidade, iniciada por Kingsíey Davis, professor da Universi­dade da Califórnia (Berkeley), trad. Reznik, Rio, 1972.

58. Alcides Greca, ElRêgimen Legal de la Consírucción, Buenos Aires, 1956,p. 40.

59. STF, RT 248/675.

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que tem por fim assegurar as condições mínimas de habitabilidade e funcionalidade à edificação, principalmente à moradia, que é a razão de ser de toda cidade.

Ninguém melhor do que Virgílio Testa evidenciou essa diversida­de de imposições, assinalando que a regulamentação edilícia assume “due forme: una che ha di mira i fabbricatti singoli e si propone di assi- curame Ia piena rispondenza alie esigenze igieniche, estetiche e di pub- blica incolumità e Fidoneità, alia funzione, cui ciascuno di essi é desti- nato (controllo técnico estetico); ed una che si propone di realizzare, nello svolgimento delle costruzione, la piena rispondenza degli edifici ai dettami dei piano regolatore e un determinato ordine nelle opere, ca- pace di far si che 1’aggregato edilizio nasca, si ingrandisca o si trasfor- me in modo razionale e in perfetta rispondenza con lo sviluppo dei ser- vizi pubblici nelle singole zone {controllo urbanístico)”.60

2.1.4 DELIMITAÇÃO DA ZONA URBANA

A delimitação da zona urbana deve ser feita por lei municipal, tanto para fins urbanísticos como para efeitos tributários. No primeiro caso, a competência é privativa e irretirável do Município, cabendo à lei urbanística estabelecer os requisitos que darão à área condição de urbana ou urbanizável, e, atendidos esses requisitos, a lei local delimi­tará o perímetro urbano, as áreas de expansão urbana e os núcleos em urbanização. No segundo caso (efeitos tributários), a lei definidora da zona urbana deverá atender aos requisitos do Código Tributário Nacio­nal (art. 32, §§ 1° e 2Ü), estabelecidos para fins meramente fiscais. É de toda conveniência que a lei urbanística municipal faça coincidir as suas exigências com as do Código Tributário Nacional, ou, pelo menos, as imponha com maior rigor, a fim de que possa arrecadar na área o im­posto predial e territorial urbano.

Promulgada a lei municipal instituidora ou ampliadora da zona ur­bana, a Prefeitura deverá enviar seu texto integral ao INCRA, para a cessação de sua jurisdição sobre a nova área urbana e transferência da competência impositiva federal (imposto territorial rural) para a muni­cipal (imposto predial e territorial urbano), incidente sobre o terreno e respectivas construções.

Observe-se, finalmente, que o Decreto-lei 57, de 18.11.1966, alte­rou os arts. 23 e 32 do Código Tributário Nacional para pior, incluín-

60. Manuale di Legislazione Urbanística, Milão, J 956, p. 299.

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do as chácaras ou sítios de recreio, em zona rural, na competência tri­butária do Município (art. 14) e excluindo desta as glebas situadas na zona urbana, desde que “comprovadamente” utilizadas em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial, sujeitando-as ao imposto territorial rural (art. 15). Diante dessa legislação, de objetivos meramente fiscais, os sítios de recreio continuam imóveis rurais, mas sob a imposição tributária do Município, ao passo que aquelas glebas, embora sujeitas ao tributo federal, permanecem com características ur­banas, subordinadas, portanto, às normas urbanísticas municipais.

2.1.5 TRAÇADO URBANO

O traçado urbano é o desenho geral da cidade; o seu levantamen­to topográfico, com a indicação do sistema viário, marcando o arma­mento atual e futuro, com o respectivo alinhamento e nivelamento a serem observados nas construções particulares e públicas. Conterá, ain­da, a indicação de todos os demais pontos característicos da cidade, do sistema hidrográfico que a banha, das áreas verdes preserváveis, dos espaços de recreação ativa, dos terrenos para edifícios públicos e equi­pamentos sociais, das redes de água e esgoto e de tudo o mais que com­puser a urbe.

O traçado urbano nem sempre será efetivado pelo Município, no- tadamente nos loteamentos particulares, mas dependerá sempre da aprovação da Prefeitura, para o seu ajustamento às vias públicas já existentes ao Plano Diretor do Município e às normas urbanísticas per­tinentes. Isto porque nenhuma cidade, bairro ou área em urbanização poderá surgir desarticulada do sistema viário circundante, nem implan- tar-se isoladamente, fora dos padrões urbanísticos estabelecidos pelo Município e sem atendimento dos requisitos mínimos de higiene e saú­de pública impostos superiormente pelo Estado e pela União, uma vez que a competência em tais matérias é comum das três entidades esta­tais (v. item 1, acima).

Do traçado urbano resultam as limitações de arruamento, alinha­mento, nivelamento, circulação, salubridade, segurança ̂ funcionalida­de e estética da cidade, como veremos a seguir.

2.1.5.1 Arruamento - O arruamento é o traçado definidor das vias públicas e espaços livres da cidade. E exigido pela Prefeitura para toda área em urbanização, como requisito prévio para o loteamento.

Desde que o plano do loteamento ou o simples arruamento tenha sido aprovado pela Prefeitura e inscrito no Registro Imobiliário com­

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petente, as áreas destinadas a vias públicas, espaços livres e outros equipamentos urbanos passam a integrar o domínio público do Muni­cípio (Lei 6.766, de 19.12.1979, art. 22), independentemente de título aquisitivo e transcrição,61 uma vez que não há, nem pode haver, vias e logradouros públicos como propriedade particular.62 Toda área de cir­culação ou de recreação pública é bem de uso comum do povo e, por­tanto, bem do domínio público por destinação, dispensando titulação for­mal para o reconhecimento dessa dominialidade. Para proteção de tal do­mínio a Administração fixa requisitos para abertura e utilização das vias e logradouros públicos, consubstanciadas em imposições urbanísticas de funcionalidade, segurança e estética, tais como largura e declividade das vias de circulação, tipo de pavimentação e calçamento, limite de trân­sito e tráfego, arborização e tudo o mais que for de interesse público.

Não é admissível o armamento privado, ou, mesmo, a rua parti­cular, em zona urbana, porque todo o sistema viário de uma cidade é de uso comum do povo , o que afasta a possibilidade jurídica de vias urbanas particulares. O que pode haver são vias internas (não ruas) em propriedade particular, como ocorre nos usualmente denominados “loteamentos fechados”, fora do perímetro urbano. Mas, se tais vias forem reconhecidas e oficializadas pela Prefeitura, deixarão de ser par­ticulares, passando a bens de uso comum do povo (ruas, avenidas, pra­ças etc.), abertas ao trânsito indiscriminado de qualquer pessoa ou veí­culo, nas condições públicas estabelecidas para o local.

Nos últimos tempos, em decorrência do aumento da violência nas cidades, muitas Prefeituras têm admitido o fechamento de alguns tre­chos de vias públicas, em geral quando se trata de ruas sem saída - cul de sac dos franceses - desde que os moradores do local concordem. A rigor, esse fechamento é ilegal e qualquer cidadão que se sentir preju­dicado pode recorrer ao Judiciário, desde que tenha legitimidade e in­teresse para tanto (CPC, art. 3a).

2.1.5.2 Alinhamento - O alinhamento é, na sintética definição de Georges-Henri Noél: “o limite entre a propriedade privada e o domínio público”.63 Na conceituação do antigo Código de Obras do Município

61. STF, RDP 20/213; TJSP, RT 318/285.62. Clóvis Beviláqua, Soluções Práticas de Direito, IV/39, Rio, 1923; Jous-

selin, Servitudes d ’Utilitè Public,11/446, Paris, 1911..63. Le Droit de 1’Urbanisme, 1956, p. 16. No mesmo sentido, confrontem-se:

Morin, De 1'Alignement, Ia ed., pp. ‘68 e ss.; Courcelle, Traité de la Voirie, Ia ed., pp. 168 e ss.; Duez e Debeyre, Traité de Droit Administraiif, 1952, p. 787.

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da Capital de São Paulo, “alinhamento é a linha legal, traçada pelas autoridades municipais, que limita o lote em relação à via pública” (art. 2°, n. 8). É ato unilateral da Prefeitura, que importa limitação urbanís­tica à propriedade particular, em benefício do traçado urbano. Uma vez estabelecido, impõe-se a todos os confrontantes da via pública, inde­pendentemente de indenização, salvo se modificado posteriormente, acarretando prejuízo às propriedades fronteiriças. Da modificação do alinhamento anterior pode resultar aumento ou diminuição da área de domínio público: no primeiro caso, a Prefeitura terá que indenizar ao particular a faixa que for retirada de sua propriedade; no segundo, terá o particular direito à investidura na área remanescente e fronteiriça de seu lote, até atingir o novo alinhamento.

Não se confunda alinhamento com recuo das edificações: aquele delimita o domínio público e a propriedade particular; este impõe um afastamento mínimo da edificação em relação à via pública ou ao vizi­nho, mas a área resultante do recuo permanece integrada no lote, ape­nas com o impedimento de edificar.64 O afastamento da edificação im­posto pelo recuo, como limitação urbanística geral, não é indenizável, salvo se inutilizar o lote para sua normal destinação, ao passo que, se o alinhamento adentrar a propriedade particular, a Prefeitura terá que pa­gar a área transferida ao domínio público, ou indenizar todo o lote, se o remanescente tornou-se inconstrutível ou imprestável para sua utili­zação econômica.

2.1.5.3 Nivelamento — O nivelamento é a fixação da cota corres­pondente aos diversos pontos característicos da via urbana, a ser ob­servada pelas construções nos seus limites com o domínio público.63 Como imposição urbanística, é de observância obrigatória para todos, independentemente de indenização no seu estabelecimento pela Pre­feitura, mas obrigará o Poder Público a compor danos se o modificar posteriormente, ocasionando prejuízo às construções que observaram a cota anteriormente determinada. Pela mesma razão poderá a Prefeitura exigir o desfazimento da obra que desatender ao nivelamento estabele­cido, prejudicando o perfil da via pública. Para o início das constru­ções expede-se, comumente, o “alvará de alinhamento e nivelamento”, com as indicações necessárias à localização da obra.

64. Também não é indenizável a faixa non aedificandi ao longo das rodovias (STF, RT 610/272 e 610/276).

65. Virgilio Testa, Legislazione Urbanística, 1956, pp. 325 e ss.; Georges- Henri Noêl, Le Droit de VUrbanisme, i 956, pp. 27 e ss.

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2.1.5.4 Circulação - A s imposições de circulação, como limita­ções urbanísticas, podem revestir duas modalidades: permissiva (deixar transitar) e negativa (não transitar). Pela primeira (permissiva), o Po­der Público impõe ao particular a obrigação de permitir a passagem aos agentes da Administração, em determinadas circunstâncias e em certos locais de sua propriedade, para verificações e proteção do domí­nio público, como, p. ex., ao longo dos aquedutos, nas margens das águas públicas etc.; na segunda hipótese (negativa), a Administração limita ou impede totalmente a circulação pelas suas vias e logradouros públicos, objetivando preservar o seu patrimônio contra o uso inade­quado à destinação da coisa pública. Tais limitações não se confun­dem com as de trânsito impostas em defesa da segurança individual ou coletiva, ou, ainda, para desafogar determinados locais, ou aliviar as correntes dè tráfego em determinadas horas e em certas vias. Ambas são legítimas, mas objetivam interesses diversos e ordinariamente são impostas por autoridades diferentes.

2.L5.5 Salubridade - As imposições de salubridade urbana desti­nam-se a manter a cidade limpa e saudável, como ambiente propício ao desenvolvimento de todas as atividades humanas. Além das condi­ções de clima e solo, outros requisitos podem ser acrescidos ao agrega­do urbano, de modo a assegurar a salubridade pública. Para tanto, a Administração comumente dota a cidade dos equipamentos sanitários convenientes e impõe limitações urbanísticas de salubridade, tenden­tes a secundar as medidas oficiais, para a manutenção da área urbana em boas condições de habitabilidade. Não se cuida, aqui, da higiene individual das habitações - objeto de limitações sanitárias específicas- mas da salubridade geral da cidade, a ser perseguida desde o traçado urbano até a localização das indústrias perigosas, nocivas ou incômo­das. Cabem, ainda, nestas limitações, as exigências de espaços livres e áreas verdes nos loteamentos, a obrigatoriedade de drenagem dos ter­renos destinados a edificação, a imposição de recuo e afastamento das habitações entre vizinhos; e o que mais puder concorrer para tomar a cidade e o bairro saudáveis para seus habitantes.

2.1.5.6 Segurança - As imposições de segurança urbana comple­mentam as de salubridade da cidade. A segurança geral da cidade não se confunde com a segurança individual de suas construções, que tanto interessa às normas civis como aos regulamentos da edificação. As im­posições urbanísticas de segurança da cidade começam nas exigências do traçado urbano e se difundem por todos os setores que possam ofe­

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recer perigo à vida e à incolumidade dos cidadãos ou à conservação de seus bens materiais. Para tanto, as normas edilícias estabelecem a tes­situra das vias públicas, as declividades máximas, os tipos de pavimen­tação e calçamento adequados, o recuo e o chanfro das edificações de esquina, a modalidade dos tapumes das obras, a sinalização dos locais perigosos, e tudo o mais que puder prevenir acidentes e afastar riscos à população.

Nessas imposições entram as medidas de combate e prevenção contra incêndios, inundações e efeitos das marés nas cidades ribeiri­nhas ou litorâneas. Tais providências competem simultaneamente ao Município, na realização das obras públicas necessárias, e aos muníci- pes, nas construções particulares que devam ser equipadas para enfren­tar esses eventos, que se vêm repetindo com freqüência e desastrosas conseqüências em nossas cidades. A omissão da Prefeitura na execu­ção das obras de segurança urbana, principalmente contra eventos pe­riódicos e previstos anualmente, como são as enchentes e inundações em determinados bairros, acarreta responsabilidade civil ao Município, pela ineficiência do serviço público a seu cargo.66

2.1.5.7 Funcionalidade - As imposições de funcionalidade urba­na passaram a ter destaque especial na regulamentação edilícia. Isso porque a cidade, na concepção do moderno Urbanismo, há de ser huma­na e Juncional, isto é, correspondente às necessidades materiais e espiri­tuais do homem, e apta à satisfação de suas quatro funções sociais precí- puas: habitação, trabalho, circulação e recreação.

Para o atingimento desse desiderato não basta a racionalização do traçado urbano, nem a eficiência dos serviços públicos. Necessários se tornam a limitação do uso da propriedade particular e, notadamente, o condicionamento das construções a índices técnicos e a preceitos urbanísticos de funcionalidade da cidade. E as razões são óbvias: a excessiva concentração populacional, a indiscriminada utilização da área urbana, a localização inadequada das atividades humanas e fato­res outros de desajustamento entre a população e o ambiente causam transtornos insuportáveis para a vida urbana, desequilibrando o trinô- mio: área - população - equipamento.

Daí por que os regulamentos edilícios dispõem sobre o uso e ocu­pação do solo urbano, prescrevendo sobre zoneamento, loteamento, densidade demográfica, coeficientes de edificação; fixando gabaritos

66. STF, RDA 122/169; TJSP, * 7 346/235, 449/104, 453/87, 453/102.

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de altura, volume e área construída; impondo mínimos de espaços li­vres e áreas verdes, a fim de equilibrar a concentração humana com os equipamentos necessários ao conforto da população.67 Estas imposi­ções urbanísticas, conquanto destinadas originariamente à defesa da funcionalidade urbana, favorecem individualmente os moradores do bairro a elas sujeitos, especialmente os vizinhos, gerando direito sub­jetivo à sua observância pelos demais proprietários e legitimando as ações judiciais adequadas a impedir a construção irregular e exigir a demolição do que for construído em desacordo com as normas urba­nísticas.

Negar ação ao vizinho que almeja obter de seus confrontantes o respeito às exigências edilícias da construção, no que afeta à ordena­ção funcional do bairro, é um romanismo incompatível com a finali­dade do modemo Urbanismo, mesmo porque a obra irregular, na sua estrutura ou na sua destinação, causa efetivo dano patrimonial à vizi­nhança, desvalorizando as propriedades confrontantes e desvirtuando a destinação da quadra. Diante dessa realidade, a jurisprudência se vai orientando, acertadamente, para a admissibilidade de ação destinada a exigir do vizinho e do Poder Público o respeito às exigências estrutu­rais da edificação08 e aos requisitos urbanísticos do zoneamento e do loteamento.69

2.1.6 USO E OCUPAÇÃO DO SOLO URBANO

O uso e ocupação do solo urbano, ou, mais propriamente, do es­paço urbano, constitui matéria privativa da competência do Municí­pio, e por isso vem sendo objeto das diretrizes do Plano Diretor e da regulamentação edilícia que o complementa.

A lei de uso e ocupação do solo urbano, como geralmente é de­nominada, destina-se a estabelecer as utilizações convenientes às di­versas partes da cidade e a localizar em áreas adequadas as diferentes atividades urbanas que afetam a comunidade. Para tanto, classifica os usos e estabelece a sua conformidade com as respectivas zonas em que

67. V., a propósito, as recomendações do VI Congresso do CIAM, de Bridge- Water, 1947, citadas por Antônio Bezerra Baltar in Introdução ao Planejamento Urbano, Salvador, 1957, p. 44, bem como o estudo deste urbanista pernambucano, no capítulo da “Análise funcional do complexo urbano”, pp. 82 e ss.

68. TJDF, RDA 45/333; TJSP, RT 225/242, 246/168, 254/233, 267/210, 275/ 249; TASP, R T 241/513.

69. TJSP, RT 203/287, 267/210, 275/249; TASP, RT 226/373.

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se divide o perímetro urbano, visando a equilibrar e harmonizar o inte­resse geral da coletividade com o direito individual de seus membros no uso da propriedade particular, na localização e no exercício das ati­vidades urbanas, e até na utilização do domínio público.

As imposições urbanísticas dessa legislação devem prover sobre o zoneamento urbano e a ocupação correspondente, bem como sobre o parcelamento das glebas urbanas ou urbanizáveis, com especial desta­que para os loteamentos, que constituem a forma normal de expansão da cidade. Outro aspecto da legislação edilícia é o da renovação urbana, para atualizar as cidades envelhecidas, com a retificação de seu traça­do, a ampliação de seu sistema viário, a modernização de seus equipa­mentos - enfim, a adequação de suas partes obsoletas às novas funções que o progresso e a civilização exigem dos antigos centros urbanos.

O controle do uso do solo urbano apresenta-se como das mais pre­mentes necessidades em nossos dias, em que o fenômeno da urbaniza­ção dominou todos os povos e degradou as cidades mais humanas, di­ficultando a vida de seus moradores, pela redução dos espaços habitá­veis, pela deficiência de transportes coletivos, pela insuficiência dos equipamentos comunitários, pela promiscuidade do comércio e da in­dústria com as áreas de residência e de lazer. Daí o crescente encareci- mento dos terrenos para habitação, o que vem impossibilitando a sua aquisição pelos menos abastados e exigindo a intervenção do Poder Público no domínio fundiário urbano para conter a indevida valoriza­ção imobiliária, quase sempre resultante dos melhoramentos públicos da área, custeados por todos mas auferidos por alguns. Essa realidade tem reclamado providências estatais específicas para as diferentes áreas urbanas, a fim de compatibilizar a sua utilização com as necessidades da coletividade, autorizando imposições urbanísticas de toda ordem, agravamentos tributários dos terrenos não edificados, urbanização com­pulsória pelos proprietários e até a desapropriação por interesse social ou mesmo para urbanização ou reurbanização pelo próprio Município, com subseqüente alienação das partes que se tomaram desnecessárias ao domínio público.70 Agora, propõe-se a adoção do “solo criado”, o

70. V., a propósito, nosso parecer, acolhido pelo TJSP, nos MS originários 220.706, 220.707 e 222.643, impetrados contra o Prefeito da Capital de São Paulo, e publicado pela EMURB sob o título A Reurbanização de Santana e Jabaquara, juntamente com os acórdãos. O mesmo assunto foi por nós reestudado em artigo sob o título “Desapropriação para urbanização”, publicado na RDA 116/1 e no nos­so Estudos e Pareceres de Direito Público, 11/419, Ed. RT, 1977. Estes julgados do TJSP foram confirmados pelo STF nos RE 82.300, 85.869 e 87.009.

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space adrift dos norte-americanos, que o implantaram em Chicago, ou, na expressão atual dos franceses, o plafond legal de densitè, isto é, “la combinaison de 1’espace privé avec Fespace public”,71 que seria o mais eficiente instrumento de controle do uso do solo urbano e de justiça distributiva dos encargos públicos da urbanização. O Estatuto da Cida­de (Lei 10.257, de 10.7.2001) introduziu o solo criado no Direito bra­sileiro, sob a designação de “outorga onerosa do direito de construir” (v. o item 4.3.13 deste capítulo).72

Mas, para a efetividade do controle do uso do solo urbano, após a delimitação da zona urbana, que já analisamos precedentemente, im­põe-se o zoneamento da cidade e dos novos núcleos de sua expansão, como veremos a seguir.

2.1.7 ZONEAMENTO73

O zoneamento urbano consiste na repartição da cidade e das áreas urbanizáveís segundo a sua precípua destinação de uso e ocupação do solo.

Nessa repartição de uso e ocupação do solo, o zoneamento urbano estabelece, normalmente, as áreas residenciais, comerciais, industriais e institucionais; delimita os locais de utilização específica, tais como feiras, mercados, estacionamentos de veículos e outras ocupações es­paciais permanentes ou transitórias; dispõe sobre as construções e usos

71. J. P. Gilli, Redefinir le Droit de Propriété, Paris, 1975, pp. 97 e ss., e também John J. Costonis, Space Adrift, Chicago, 1974.

72. Considera-se “solo criado” toda área edificável além do coeficiente único de aproveitamento do lote, legalmente fixado para o local. O “solo criado” será sempre um acréscimo ao direito de construir além do coeficiente-base de aprovei­tamento estabelecido pela lei: acima desse coeficiente, até o limite que as normas edilícias admitirem, o proprietário não terá o direito originário de construir, mas poderá adquiri-lo do Município, nas condições gerais que a lei local dispuser para a respectiva zona. Essa conceituação é haurida na Lei francesa 75-1.328, de 31.12.1975, que implantou pioneiramente o instituto, através do projeto do deputa­do Robert Galley.

Sobre esta matéria, v. nosso Direito Municipal Brasileiro, 13a ed., 2003, p. 414; José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, 4a ed., Malheiros Edito­res, 2005, pp. 233 e ss. e também Floríano Azevedo Marques Neto, in Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz (coords.), Estatuto da Cidade, Ia ed., 2a tir., São Pau­lo, Malheiros Editores, 2003, pp. 221-245.

73. Sobre zoneamento, v. pareceres de Miguel Reale, “Zoneamento”, RDP 85/96, e de Diógenes Gasparini, “Zoneamento urbano”, RDP 93/257; e artigo de Artur Marques da Silva Filho, “Breves considerações sobre zoneamento”, RT 661/44.

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admissíveis; ordena a circulação, o trânsito e o tráfego no perímetro urbano, disciplina as atividades coletivas ou individuais que de qual­quer modo afetem a vida da cidade. Embora não caiba ao Município o zoneamento rural, compete-lhe regular o uso e a ocupação das áreas destinadas a urbanização, ainda que localizadas fora do perímetro ur­bano, porque estes núcleos irão constituir as novas cidades ou a amplia­ção das existentes, e, por isso, devem ser ordenados urbanisticamente desde o seu nascedouro, para que não venham a prejudicar a futura zona urbana.

O zoneamento, embora seja um eficiente instrumento urbanístico de ordenação da cidade, há que ser utilizado com prudência e respeito aos direitos adquiridos, pois é sabido que a simples mudança de desti- nação de um bairro ou de uma rua produz profundas alterações econô­micas e sociais, valorizando ou desvalorizando substancialmente as propriedades atingidas e as de suas adjacências, consoante os novos ônus ou vantagens que acarrete para o local. Por isso, as normas edilí- cias devem evitar o quanto possível essas súbitas e freqüentes modifi­cações de uso, que afetam instantaneamente a propriedade e as ativida­des particulares, gerando instabilidade no mercado imobiliário urbano e intranqüilidade na população citadina. Além disso, toda vez que o zoneamento ofende direitos adquiridos, expõe o Município a deman­das e vultosas indenizações. O Município só deve impor ou alterar zo­neamento quando essa medida for exigida pelo interesse público, com real vantagem para a cidade e seus habitantes.

A imposição e a alteração do zoneamento têm suscitado diver­gência jurisprudencial quanto ao instrumento legal para sua efetivação. Alguns julgados entendem que só pode ser consubstanciado em lei municipal; outros o admitem por decreto do prefeito. Devemos distin­guir duas situações: as normas de zoneamento e a fixação das zonas. Aquelas são privativas de lei; estas, de decreto. A lei estabelecerá as diretrizes, os critérios, os usos admissíveis, tolerados e vedados nas zo­nas previstas; o decreto individualizará as zonas e especificará os usos concretamente para cada local.74 O zoneamento, no seu aspecto pro- gramático e normativo, é objeto de lei, mas na sua fase executiva - em cumprimento da lei - é objeto de decreto. O que não se admite é o zoneamento exclusivamente por decreto, sem base em norma legislati­va que o imponha para a cidade e indique a destinação urbanística de cada zona.

74. TJSP, RT 289/456.

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Não obstante, a tendência dos Governos Municipais tem sido a de impor o zoneamento por lei, não só quanto aos usos permitidos ou proi­bidos em cada tipo de zona, como também na definição de sua área física. Essa postura tem por objetivo manter certa estabilidade do zo­neamento, como preconiza o Autor, impedindo modificações ao alve- drio do Poder Executivo. Por essa razão, muitas Leis Orgânicas muni­cipais, como a de São Paulo (art. 40, § 4°, I), exigem quorum qualifi­cado para qualquer alteração do zoneamento urbano. Pode-se enten­der, destarte, que só cabe ao Executivo, por decreto, o detalhamento das normas legais (y.g. definição específica dos usos que se enquadram na categoria “comercial”), mas nunca a modificação de uma área resi­dencial em comercial.

A divisão da cidade em zonas visa a atribuir a cada setor um uso específico, compatível com a sua destinação. Mas, como as cidades nem sempre nascem planejadas, seus bairros são mistos e promíscuos em usos e atividades. Daí o zoneamento superveniente, repartindo a área urbana em zonas residenciais, comerciais, industriais e outras, com a indicação dos usos conformes, desconformes e tolerados.

Usos conformes são todos aqueles permitidos para o local pelas normas legais pertinentes. Erigem-se, por isso, em direito subjetivo de seus titulares e não podem ser impedidos pela Prefeitura, nem negado o respectivo alvará de licença, quando dependentes dessa formalidade. Os exercentes de usos conformes podem, a todo tempo, aumentar a ati­vidade, ampliar o estabelecimento, reformar a construção até o limite admitido em lei. Tais usos, uma vez iniciados, geram direito adquirido e, mesmo que se altere posteriormente o zoneamento, podem continuar na situação em que se encontravam no momento de vigência da nova lei.75 Assim, uma edificação, uma indústria ou um comércio conforme em determinada zona, mesmo que venham a ser proibidos pelo novo zoneamento, podem prosseguir nos moldes da legislação precedente, mas ficam impedidos de alteração ou ampliação daí por diante.

Usos desconformes são aqueles que a lei considera incompatíveis com o local. Se sobrevierem ao zoneamento, poderão ser impedidos sumariamente e sem qualquer indenização; se o antecederem, consti­tuem pré-ocupação, com direito adquirido à sua permanência e con­tinuidade nas condições originárias, isto é, sem possibilidade de am­pliação da atividade ou de renovação das construções, instalações ou

75. STF, RT 548/232; TJSP, Ap. civ. 192.818-1, SP, 23.10.1993, rei. Walter Moraes. Em sentido contrário: TJSP, RT 541/91, 699/67.

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equipamentos desconformes. Se a Prefeitura pretender a imediata ces­sação de qualquer atividade desconforme, mas com pré-ocupação na zona, deverá indenizar cabalmente o seu exercente, amigavelmente ou mediante desapropriação. Assim, uma indústria instalada anterior­mente em zona que veio a ser declarada estritamente residencial não poderá ser compelida a mudar-se ou a cessar suas atividades descon­formes, mas também não poderá ela ampliar-se ou renovar-se naquele local: seu direito restringe-se à permanência onde e como está. Por outro lado, os vizinhos em uso conforme nem por isso poderão impugnar o uso desconforme proveniente de pré-ocupação em relação ao zonea­mento. A Prefeitura, entretanto, pode impor tributação agravada para os usos desconformes (extrafiscalidade).

Usos tolerados são aqueles que o zoneamento não reconhece como conformes nem repudia como desconformes, mas os admite por liberalidade e precariamente, em condições especiais. Tais usos são exercidos mediante simples alvará de autorização (não confundir com licença), dado o caráter precário, que enseja revogação sumária e a qualquer tempo. Por isso mesmo não geram direito subjetivo ao seu exercício nem à sua continuidade, que dependerão sempre do juízo de conveniência exclusivo e discricionário da Prefeitura.

As zonas residenciais destinam-se a moradia e por isso devem apresentar requisitos especiais de salubridade, segurança e tranqüili­dade, para o bem-estar de seus habitantes. Com esse desiderato, as normas edilícias impõem condições favoráveis à habitação, desde a localização dos bairros, o seu traçado e a sua arborização, até alguns detalhes funcionais e estéticos das edificações, visando a assegurar a harmonia do conjunto e o conforto individual das residências. A pre­servação da moradia contra todas as interferências molestas da vizi­nhança, principalmente os ruídos incômodos e os maus odores da in­dústria e do comércio, é dever do Poder Público, atento a que a habita­ção tem preferência sobre os demais usos urbanos, como há muito nos advertiu Emest Freund, nessa conhecida frase: “the right of habitancy is superior to the exigences of trade”76 - o que coincide com a exaltação de Greca sobre as funções familiares e sociais da residência em nossos dias: “La casa moderna nos es sólo un refugio, como lo fizera en las sociedades primitivas. Es el sitio donde se educa a los hijos, donde se trabaja y se descansa. En ella viven, gozan, y no pocas veces sufren, los seres humanos que la habitan. Allí nascerá el nino, se cuidará al

76. Administrative Power over Person and Property, Chicago, 1939, § 529.

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enfermo y entrará en el eterno reposo el vencido por los males físicos incurables. En ella se festejan los acontecimientos felices de la familia, se recibe a los amigos y se amplian los horizontes dei espíritu median­te Ia lectura, la música y la contemplación de bellos adornos”.77 Daí a conveniência da fixação de zonas residenciais, separadas das outras que possam perturbar a moradia; porém, a realidade é que, na maioria das cidades, os bairros são mistos, com pré-ocupações prejudiciais à habitação, mas que não podem ser afastadas sumariamente, por consti­tuírem direito adquirido de seus titulares. Em tais casos, os conflitos de vizinhança resolvem-se pelo uso normal da propriedade de cada um.

As zonas comerciais são as destinadas ao comércio varejista e ata­cadista, sendo conveniente que aquele permaneça nas proximidades das áreas residenciais ou, mesmo, em determinados setores destas, para abastecimento das moradias, e este - o atacadista - fora e recuado dos bairros de habitação, pelos inconvenientes que oferece em razão do transporte a granel, com tráfego pesado, constante e ruidoso. Por isso, tais zonas devem situar-se na periferia da cidade, próximas das rodovias e ferrovias, que favorecem as suas atividades.

As zonas industriais são as reservadas para as fábricas e ativida­des conexas, devendo situar-se distanciadas dos bairros residenciais, pelos naturais inconvenientes que acarretam às moradias, com o ruído de suas máquinas, com as emanações de seus produtos, com o despejo de seus resíduos e demais conseqüências do trabalho fabril. Atual­mente, as Prefeituras vêm instituindo os denominados “distritos in­dustriais”,78 fora do perímetro da cidade, mas erigidos em área urba­na, para neles concentrar as indústrias locais, segundo as conveniências da comunidade e os interesses do desenvolvimento econômico e social do Município. E a solução indicada para aliviar a cidade dos incômo­dos da indústria. Mas esses núcleos industriais devem ser corretamen­te localizados em áreas adequadas à sua função e tecnicamente plane­jados para receber as fábricas e as atividades complementares que in­tegram todo parque industrial. Sem essa adequada localização e sem o

77. El Régimen Legal de la Construcción, Buenos Aires, 1956, p. 126.78. A expressão “distritos industriais”, usada pelos Municípios, é juridicamen­

te imprópria, porque o distrito é uma divisão administrativa para seus serviços ci­vis, policiais e outros. Os Municípios deverão adotar denominação diversa para que suas áreas industriais não se confundam com os distritos administrativos, tais como núcleo industrial, pólo industrial, zona industrial etc.

A Lei 6.803, de 2.7.1980, dispõe sobre as diretrizes básicas para o zonea­mento industrial nas áreas críticas de poluição.

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plano da infra-estrutura específica do complexo industrial, aprovado por lei, não pode o Município instituir “distrito industrial”, nem desa­propriar áreas para esse fim, pois falta-lhe o fundamento legal, que é precisamente o plano de urbanização (Decreto-lei 3.365/1941, art. 5“ “i”). Nem lhe será lícito alienar lotes a empresas sem que a lei tenha autorizado essas alienações e estabelecido as imposições urbanísticas para a formação do núcleo e as condições de implantação de cada in­dústria, para que tais requisitos constem como encargo dos adquirentes de lotes, com cláusula resolutória para a inadimplência. Com essas cau­telas legais podem ser implantados os núcleos ou pólos industriais, atri­buindo-se até mesmo alguns encargos da urbanização (abertura de ruas, pavimentação, canalização etc.) às próprias indústrias interessadas, mediante compromisso com o Município, concomitante com a aquisi­ção dos lotes. Somente nessas condições serão legítimas e amparáveis pelo Judiciário a desapropriação e a alienação de lotes aos particula­res, para a formação dessas áreas industriais.79

As zonas institucionais são aquelas em que se concentram deter­minadas instituições, tais como as administrativas (sede de governo e secretarias), educacionais (escolas e campi universitários), recrea- cionais (equipamentos de lazer), sociais (creches, abrigos, hospitais), culturais (bibliotecas, pinacotecas, museus) e outras mais que o desen­volvimento da cidade comportar. Tais zonas exigem o correto dimen- sionamento dos equipamentos de cada instituição, para sua adequada localização e preservação da área conveniente, com as limitações ur­banísticas pertinentes, não só para as construções institucionais como para as das zonas circundantes, a fim de compatibilizar os usos e evitar os conflitos de proximidade entre uma zona e outra. Lamentavelmen­te, as Prefeituras têm descuidado das zonas institucionais, omitindo-as na divisão da cidade ou tardando na sua localização, para só as estabe­lecerem depois que os bairros estão degradados na sua utilização mista e indiscriminada.

79. TJSP, RT 499/97, acolhendo nosso parecer sobre a formação do núcleo industrial, publicado na mesma Revista, à p. 37.

Sobre desapropriação e venda de lotes a particulares, v. nosso artigo “Desa­propriação para urbanização”, RDA 116/1, e, sobre os requisitos técnicos e urba­nísticos para formação de núcleo industrial, ieia-se o estudo de Harry J. Cole, “Dis­tritos industriais — Delimitação e localização”, in O Município e o Direito Urbano, Rio, 1974, pp. 112 e ss. Adilson Abreu Dallari examinou essa questão com grande profundidade em sua monografia sobre Desapropriações para Fins Urbanísticos, Forense, 1977.

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As zonas mistas são todas aquelas de ocupação promíscua - resi­dência, comércio, indústria e outras - e para as quais não há indicação de utilizações específicas e excludentes pelas normas edilícias. Conse­qüentemente, nessas zonas não há usos desconformes, pois todos são admitidos, na omissão da lei. Daí por que a Prefeitura ou o vizinho, para impedir ou fazer cessar qualquer atividade em zona mista, deverá demonstrar a sua nocividade ou prejudicialidade anormal ou abusiva, pois não pode invocar a desconformidade de uso. Em tais zonas, a pré- ocupaçõo atua como agravante dos incômodos a serem suportados pelos novos vizinhos, mas nem por isso legitima o mau uso da propriedade, pois, como já advertia Baudry-Lacantinerie, nos fins do século passa­do, “il n’existe pas un droit de prê-ocupation, capable de faire échec à tout action en dommages-intérêts”.80

2.1.8 LOTEAMENTO

Loteamento urbano é a divisão voluntária do solo em unidades edifícáveis (lotes) com abertura de vias e logradouros públicos, na for­ma da legislação pertinente.81 Distingue-se do desmembramento, que é a simples divisão de área urbana ou urbanizável, com aproveitamento das vias públicas existentes. O loteamento e o desmembramento cons­tituem modalidades de parcelamento do solo, mas apresentam caracte­rísticas diversas: o loteamento é meio de urbanização e só se efetiva por procedimento voluntário e formal do proprietário da gleba, que pla­neja a sua divisão e a submete à aprovação da Prefeitura, para subse­qüente inscrição no Registro Imobiliário, transferência gratuita das áreas das vias públicas e espaços livres ao Município e a alienação dos lotes aos interessados; o desmembramento é apenas repartição da gleba, sem atos de urbanização, e tanto pode ocorrer pela vontade do proprietário (venda, doação etc.) como por imposição judicial (arrematação, parti­

80. Traité Thêorique de Droit Civil, V/165, Paris, 1899.81. O loteamento urbano está agora regido pela Lei 6.766, de 19.12.1979,

que derrogou os Decretos-leis 58/1937 e 271/1967, no que concerne à matéria por ela regulada. Assim sendo, esses decretos só subsistem nos dispositivos que regu­lam matéria estranha ao parcelamento do solo urbano ou para fins urbanos. A Lei 6.766/1979 foi parcialmente modificada pela Lei 9.785, de 29.1.1999, que reforçou a competência do Município na definição dos requisitos básicos do loteamento.

A Lei 6.766/1979 provém de projeto do senador Otto Cyriilo Lehmann, com alterações do Senado que pioraram a proposição originária baseada em anteprojeto nosso e em estudos do CEP AM e da EMPLASA, entidades integrantes da Admi­nistração do Estado de São Paulo.

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lha etc.), em ambos os casos sem qualquer transferência de área ao do­mínio público. Há ainda o arruamento, que é unicamente a abertura de vias de circulação na gleba, como início de urbanização, mas que, por si só, não caracteriza loteamento ou desmembramento, e tanto pode ser feito pelo proprietário, com prévia aprovação da Prefeitura e transfe­rência gratuita das áreas das ruas ao Município, como pode ser realiza­do por este para interligação do seu sistema viário, caso em que deverá indenizar as faixas necessárias às vias públicas. Assim, pode haver ar­ruamento sem loteamento ou desmembramento, mas não pode haver aquele ou este sem vias públicas, abertas anteriormente ou concomi- tantemente com o parcelamento da gleba.

Como procedimento ou atividade de repartição do solo urbano ou urbanizável, o loteamento sujeita-se a cláusulas convencionais e a nor­mas legais de duas ordens: civis e urbanísticas. As cláusulas convencio­nais são as que constarem do memorial arquivado no Registro Imobiliá­rio, para transcrição nas escrituras de alienação dos lotes;82 as normas civis são expressas na legislação federal pertinente e visam a garantir aos adquirentes de lotes a legitimidade da propriedade e a transferên­cia do domínio ao término do pagamento do preço; as normas urbanís­ticas são as constantes da legislação municipal e objetivam assegurar ao loteamento os equipamentos e condições mínimas de habitabilidade e conforto, bem como harmonizá-lo com o Plano Diretor do Municí­pio, para a correta expansão de sua área urbana.83 Por isso, tratando-se de propriedade urbana, o projeto e a planta do loteamento devem ser previamente aprovados pela Prefeitura, ouvidas, quanto ao que lhes disser respeito, as autoridades sanitárias (estaduais), militares e, quan­do incidir sobre área total ou parcialmente florestada, as autoridades florestais, e, se se tratar de gleba em zona rural, deverá ser ouvido tam­bém o INCRA (Lei 6.766/1979, art. 53).

Ocorreu, porém, que, na vigência da legislação anterior, ora revo­gada (Decreto-lei 58/1937), muitos Municípios interpretaram que a ma­téria era da competência exclusiva da União, e por esse motivo se abs­tiveram de editar normas urbanísticas locais, passando a aprovar lotea- mentos sem os requisitos mínimos de habitabilidade, sem áreas livres e sem os equipamentos urbanos e comunitários indispensáveis à gleba loteada. O resultado é essa verdadeira “orgia de loteamentos”, que vem

82. V. nosso artigo “As restrições de loteamento e as leis urbanísticas super­venientes”, RT 462/23 e RDA 120/479.

83. STF, RTJ 47/670.

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provocando uma fictícia valorização imobiliária e um desastroso de- sordenamento das cidades, tomando improdutivas imensas glebas ru­rais, convertidas da noite para o dia em terrenos urbanos, desservidos de qualquer melhoramento público e sem condições de habitabilidade, os quais irão exigir, mais tarde, a execução desses equipamentos pela própria Prefeitura. O equívoco é palmar. A legislação federai anterior não era norma urbanística; era apenas norma civil reguladora do con­trato de compra e venda a prestações dos lotes, contendo alguns pre­ceitos de ordem pública sobre a aprovação do plano de loteamento pela Prefeitura e sua inscrição no Registro Imobiliário, para transferência das vias de circulação e espaços reservados ao Município.

Só a Lei 6.766, de 19.12.1979, ao dispor sobre o parcelamento do solo para fins urbanos, editou normas urbanísticas para o loteamento e o desmembramento de glebas destinadas a urbanização, mas ressalvou que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão estabele­cer normas complementares relativas ao parcelamento do solo muni­cipal para adequar o previsto nesta lei às peculiaridades regionais e locais (art. 1D, parágrafo único). As normas urbanísticas desta lei federal são de caráter geral e fixam parâmetros mínimos de urbanização da gle­ba e de habitabilidade dos lotes, os quais podem ser complementados com maior rigor pelo Município, para atender às peculiaridades locais e às exigências do desenvolvimento da cidade. Nem se compreenderia que, tendo o Município competência geral para o ordenamento urbano, não a tivesse para disciplinar os loteamentos, que constituem, em nos­sos dias, a origem das cidades e o fator de sua expansão.

O proprietário de uma gleba, para poder subdividi-la em lotes, com criação de quadras e abertura de vias de circulação, deve solicitar à Prefeitura que esta aprove, inicialmente, as diretrizes do empreendi­mento, determinando a localização das futuras áreas verdes, áreas des­tinadas a equipamentos públicos (escola, delegacia, hospital etc.) e o traçado principal das vias públicas, de maneira a assegurar sua cone­xão com o sistema viário público existente. Nos termos do art. 49 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), a legislação local deverá fixar um prazo para a aprovação das diretrizes, com base nas quais o lotea- dor deverá elaborar o projeto de loteamento.

Esse diploma, conquanto defeituoso em alguns de seus conceitos e falho em muitos de seus dispositivos, representa considerável avanço na regência urbanística do parcelamento do solo para loteamentos e desmembramentos urbanos, dando orientação técnica para sua efetiva­

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ção e meios eficazes para se coibir a conduta abusiva dos loteadores.84 Na interpretação de seus preceitos, a jurisprudência e a doutrina vêm fazendo as adaptações necessárias para a sua correta aplicação.83 Com base na experiência obtida em quase vinte anos de aplicação da Lei 6.766/1979, a Lei 9.785, de 29.9.1999, introduziu várias modificações em seu texto, com o objetivo evidente de diminuir as limitações urba­nísticas impostas pela norma federal, dando maior liberdade ao Muni­cípio para fixá-las, bem como procurou facilitar os loteamentos desti­nados a habitações populares, reduzindo as exigências urbanísticas e civis para a ocupação dos lotes. Realmente, uma das grandes dificulda­des com que se defrontava o Poder Público na implantação de conjun­tos habitacionais era o atendimento de exigências efetuadas pela lei para os loteamentos privados, inclusive a apresentação do título de pro­priedade da gleba a ser loteada. Isto porque, estando a área em proces­so de desapropriação, com imissão provisória na sua posse, o domínio só lhe seria transmitido com a sentença judicial transitada em julgado, o que demorava vários anos. Assim, ficava o Poder Público impossibi­litado de transferir os lotes aos seus destinatários, tendo que se utilizar de inúmeros subterfúgios para permitir a ocupação dos lotes pelos sem- teto. Nesses casos, a nova lei dispensa a apresentação do título de pro­priedade da gleba a ser loteada, bem como admite a cessão da posse aos usuários, que valerá como título de propriedade, quando acompa­nhada da respectiva prova de quitação. Finalmente, proíbe quaisquer exigências e sanções pertinentes aos particulares nos parcelamentos considerados de interesse público, o que vinha propiciando despropo­sitadas ações civis intentadas pelo Ministério Público contra os admi­nistradores responsáveis pelos programas habitacionais do Governo.

A aprovação de loteamento é ato da alçada privativa da Prefeitu­ra, atendidas as prescrições da União, os preceitos sanitários do Estado e as imposições urbanísticas do Município, ouvidas, previamente, quando for o caso, as autoridades militares e as florestais com jurisdi­

84. Sobre loteamentos urbanos, no regime da Lei 6.766/1979, v. Toshio Mukai, Loteamentos e Desmembramentos Urbanos, São Paulo, 1980; Comentários à Lei 6.766/1979, publicação da Secretaria dos Negócios Metropolitanos do Esta­do de São Paulo, 1980; José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, 4a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2005; Diógenes Gasparini, O Município e o Parcelamento do Solo, Ia ed., CEPAM, 1982.

85. V. também, embora alguns elaborados no regime da legislação anterior, nossos pareceres sobre loteamento in Estudos e Pareceres de Direito Público, 1/28 e 285, V/l 84, 195 e 208, VI/436, VII/320, VIII/253, São Paulo, Ed. RT.

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ção na área e o INCRA, se a gleba estiver na zona rural. Após a apro­vação pela Prefeitura, o loteamento deverá ser registrado no Registro Imobiliário competente, sendo passível de impugnação por terceiros (Lei 6.766/1979, arts. 19 e ss.) e de levantamento de dúvida pelo ofi­cial de Registro (Lei 6.015/1973, arts. 198 a 204). O registro do lotea­mento produz, dentre outros, os seguintes efeitos imediatos: legitima a divisão e as vendas de lotes; toma imodifícável unilateralmente o pla­no de loteamento e o arruamento;S6 transfere para o domínio público do Município as vias de comunicação e as áreas reservadas constan­tes do memorial e da planta, independentemente de qualquer outro ato alienativo (art. 22 da Lei 6.766/1979).87 As alterações e o cancelamento do loteamento registrado só poderão ser feitos na forma e condições estabelecidas na Lei 6.766/1979, arts. 23 e 28.

As restrições de loteamento são de duas ordens: convencionais e legais. Restrições convencionais são as que o loteador estabelece no plano de loteamento, arquiva no Registro Imobiliário e transcreve nas escrituras de alienação dos lotes como cláusulas urbanísticas a serem observadas por todos em defesa do bairro, inclusive a Prefeitura que as aprovou. Por isso, quem adquire lote diretamente do loteador ou de seus sucessores deve observância a todas as restrições convencionais do loteamento, para preservação de suas características originárias, ain­da que omitidas nas escrituras subseqüentes, porque o que prevalece são as cláusulas iniciais do plano de urbanização, e, conseqüentemen­te, todos os interessados no loteamento - proprietário ou compromis- sário de lote, loteador e Prefeitura - têm legitimidade para defendê-las judicialmente, como já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo em acórdão de que fomos relator88 e está expresso no art. 45 da Lei 6.766/

86. TJSP, RT 383/148, acolhendo nosso parecer em que demonstramos que a simples aprovação do loteamento pela Prefeitura não toma imodifícável o piano, nem transfere as áreas das vias públicas e dos espaços livres projetados ao Municí­pio, o que só decorre da inscrição no Registro Imobiliário.

V. também TJSP, RT 650/95, em que foi deferido o registro, a despeito de impugnação do Ministério Público, por já existirem no local os equipamentos ur­banísticos necessários; TJSP, RT 684/79, que considerou insuscetível de alteração a destinação de áreas para jardins e praças, mesmo que não tenham sido implanta­dos, tendo em vista a proteção ecológica futura.

87. TJSP, RT 254/178, 318/185, 383/148, 669/97. Sobre a natureza jurídica dessa passagem dos bens do particular loteador para o Município, v. Adilson Abreu Dallari, “Parcelamento do solo. Desmembramento. Concurso voluntário”, RDP 98/ 239'244.

88. O mencionado acórdão, proferido nos EInfrs 123.497, da comarca de São Paulo, contém a seguinte ementa: “As restrições à edificação, estabelecidas pelo

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1979. As restrições legais são as impostas pelas normas edilícias para todas as urbanizações ou especificamente para determinados loteamen- tos ou certos bairros. Tais restrições, como imposições urbanísticas de ordem pública, têm supremacia sobre as convencionais e as derrogam quando o interesse público exigir, alterando as condições iniciais do loteamento, quer para aumentar as limitações originárias, quer para li­beralizar as construções e usos até então proibidos.89 Registre-se, contu­do, que restrições convencionais impostas pelo Ioteador, mais limitati- vas do que as restrições legais em vigor, devem prevalecer sobre estas porque se entende que o empreendedor imobiliário desejou efetuar uma urbanização superior àquela permitida na área.90

Loteamentos especiais9! estão surgindo, principalmente nos arre­dores das grandes cidades, visando a descongestionar as metrópoles. Para estes loteamentos não há, ainda, legislação superior especifica que oriente a sua formação, mas nada impede que os Municípios editem normas urbanísticas locais adequadas a essas urbanizações. E tais são os denominados “loteamentos fechados”, “loteamentos integrados”, “loteamentos em condomínio”, com ingresso só permitido aos mora­dores e pessoas por eles autorizadas e com equipamentos e serviços urbanos próprios, para auto-suficiência da comunidade. Essas modali­dades merecem prosperar. Todavia, impõe-se um regramento legal pré­vio para disciplinar o sistema de vias internas (que, em tais casos, não são bens públicos de uso comum do povo92) e os encargos de seguran-

loteador, são requisitos urbanísticos convencionais, de interesse coletivo e perene, estipulados em benefício de todos os habitantes do bairro. O bairro, como unidade urbanística, não é patrimônio individual dos proprietários de lotes; é núcleo urbano de utilização coletiva, sujeito ao regime jurídico fixado no piano de loteamento”.

V. também TJSP, RT 651/80.89. Cf. nosso artigo “As restrições de loteamento e as leis urbanísticas super­

venientes”, RT 462/23, 578/71 e RDA 120/479. V. também Ia TACivSP, RT 639/ 105, que determina sejam respeitadas as restrições convencionais por serem mais rigorosas dos que as legais, baseado em dispositivo da própria lei municipal.

90. 1Q TACivSP, RT 639/105.91. Sobre loteamentos especiais, v.: Elvino Silva Filho, Loteamento Fechado

e Condomínio Deitado, Campinas-SP, 1981; Questões de Condomínio no Registro de Imóveis, Malheiros Editores, 1999; José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, 3a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2000, pp. 313 e ss.; Hely Lopes Meirelles, “Loteamento fechado”, in Estudos e Pareceres de Direito Público, VII/ 220, São Paulo, Ed. RT, 1983; Eurico de Andrade Azevedo, “Loteamento fecha­do”, RDI 11/64, janeiro-julho/1993.

92. Acolhendo nosso entendimento, v. TJSP, RT 619/98.

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ça, higiene e conservação das áreas comuns e dos equipamentos de uso coletivo dos moradores, que tanto podem ficar com a Prefeitura como com os dirigentes do núcleo, mediante convenção contratual e remu­neração dos serviços por preço ou taxa, conforme o caso.

Os loteamentos clandestinos, assim entendidos aqueles que se fa­zem sem aprovação e registro regulares, estão definidos pela Lei 6.766/ 1979 e punidos com reclusão, detenção e multa. Nesses crimes podem incidir o loteador e seus auxiliares (arts. 50 e 51), bem como o serven­tuário que registrar loteamento ou desmembramento, ou o contrato de compra e venda, cessão ou promessa de cessão de direitos de lotes ir­regulares (art. 52).93 Pode e deve também a Prefeitura impedir admi­nistrativamente tais loteamentos mediante embargo das obras de urba­nização ou edificação, exigindo a devida regularização, na forma da legislação pertinente.94

O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) tem como uma de suas diretrizes (art. 2a) e elenca entre os instrumentos de atuação urbanísti­ca (art. 4°) a regularização fundiária dos loteamentos clandestinos ou simplesmente irregulares, ocupados por população de baixa renda, que, na maioria das vezes, encontra-se nessa situação de boa-fé, vítima de loteadores inescrupulosos. A regularização do loteamento não elide o crime.

2.1.9 ESTÉTICA URBANA

A estética urbana tem constituído perene preocupação dos povos civilizados e se acha integrada nos objetivos do moderno Urbanismo, que não visa apenas às obras utilitárias, mas cuida também dos aspec­tos artísticos, panorâmicos, paisagísticos, monumentais e históricos, de interesse cultural, recreativo e turístico da comunidade. Todos esses bens encontram-se sob proteção do Poder Público por expresso man­damento constitucional (art. 216 e parágrafos) e podem ser defendidos até mesmo em ação popular, por considerados patrimônio público para merecerem essa tutela judicial (Lei 4.717/1965, art. Ia, § Ia).

A proteção estética da cidade e de seus arredores enseja as mais diversas limitações ao uso da propriedade particular. Desde a forma, altura e disposição das construções até a apresentação das fachadas e o levantamento de muros sujeitam-se a imposições edilícias, destinadas

93. TJSP, RT 610/336.94. TJSP, RT 618/78.

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a compor harmoniosamente o conjunto e a dar boa aparência às edifi­cações urbanas. Como bem adverte Bielsa, cabe ao Poder Público es­tabelecer critérios estéticos aptos “a conseguir en la edificación urba­na cierta armonía y unifomídad dentro de la variedad”.93 A mesma preservação estética deve estender-se aos arredores da cidade, para pre­servação das vistas panorâmicas, das paisagens naturais e dos locais de particular beleza. Nessa proteção compreendem-se a manutenção de tais ambientes no seu estado original, sem obstáculos à visibilida­de e ao acesso, a proibição de desmatamento e demais medidas de interesse da comunidade local, para mantê-los como reservas natu­rais ou sítios de lazer. Enquanto essas limitações urbanísticas não afe­tarem a normal destinação econômica de tais áreas, podem ser im­postas gratuitamente pelo Município; mas, se interditarem ou restrin­girem o uso da propriedade particular, exigem indenização por via amigável ou expropriatória.

Outro aspecto sujeito à regulamentação edilícia em benefício da estética urbana é a colocação de anúncios e cartazes, a que os france­ses denominam Vaffichage,96 Na realidade, nada compromete mais a boa aparência de uma cidade que o mau gosto e a impropriedade de certos anúncios em dimensões avantajadas e cores gritantes, que tiram a vista panorâmica de belos sítios urbanos e entram em conflito estéti­co com o ambiente que os rodeia. Por outro lado, a publicidade artisti­camente concebida em cartazes e luminosos alinda a cidade e caracte­riza as zonas comerciais, merecendo o incentivo das Prefeituras atra­vés de estímulos fiscais que favoreçam a sua adoção. Bem por isso, dispõe o Município do poder de regular, incentivar e conter tal ativida­de na área urbana e em seus arredores, como medida de proteção esté­tica da cidade.97

95. Restricciones y Servidumbres Administrativas, Buenos Aires, 1923, p.141.

96. Georges-Henri Noêl, Le Droit de l'Urbanisme, Paris, 1956, p. 71.97. STF, RTJ 37/621; Ia TACivSP, RDPG 14/192. Neste acórdão, de que fo­

mos relator, proferido na Ap. Cível 63-393, da comarca de Santos-SP, o Município visava, e obteve, a proteção paisagística do Monte Serrat, obrigando à retirada de painel de propaganda da encosta daquele morro, embora levantado em terreno par­ticular. No que interessa, a ementa do julgado é a seguinte:

“Cabe ao Município a proteção estética da cidade e para tanto pode e deve policiar a afíxação de anúncios no perímetro urbano e seus arredores.

“A publicidade urbana, abrangendo os painéis e letreiros expostos ao público sob qualquer modalidade, é assunto de peculiar interesse do Município e, como tal, fica sujeita à regulamentação e autorização da Prefeitura.

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A proteção paisagística, monumental e histórica da cidade inse­re-se também na competência do Município, admitindo regulamenta­ção edilícia e limitações ao direito de construir, no interesse local, para recreação espiritual e fator cultural da população. Sob todos esses as­pectos impõe-se a atuação da Municipalidade para a preservação dos recantos naturais, especialmente da vegetação nativa que caracteriza a nossa flora, bem como dos ambientes antigos e das realizações históri­cas que relembram o passado e conservam o primitivo que o tempo, o progresso e o próprio homem vão, inexoravelmente, destruindo. O Ur­banismo não despreza a natureza, nem relega a tradição. E tanto mais seremos capazes de realizá-lo - disse Rogers - quanto mais soubermos harmonizar a obra humana com a preexistência ambiental. E fato notó­rio que a sanha imobiliária e a devastação indiscriminada de nossas florestas estão a exigir providências do Poder Público em defesa da paisagem e dos ambientes naturais que emolduram as cidades. Falta- nos uma legislação orgânica e completa a respeito, pois só temos, no âmbito federal, o Código Florestal (Lei 4.771, de 15.9.1965), com dis­posições deficientes e esparsas sobre a preservação da flora, o que ad­mite a complementação do Estado-membro e do Município para preen­cher as omissões da norma da União, desde que o façam dentro de suas competências institucionais.

A Lei 9.605/1998, que definiu os crimes ambientais, contém uma seção relativa aos delitos contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (arts. 62 a 65), punindo especificamente a construção em solo não edifícável, ou no seu entorno, sem autorização da autoridade com­petente ou em desacordo com a concedida (art. 64), bem como a pi- chação de edifício ou monumento urbano (art. 65).

2.2 LIMITAÇÕES DE HIGIENE E SEGURANÇA

As limitações administrativas de proteção à higiene e segurança públicas atingem direta e profundamente as construções, regulamen­tando desde a localização das edificações até sua estrutura e equipa­mento sanitário domiciliar. Enquadram-se nessas limitações todas aquelas medidas que visam a preservar a saúde e a incolumidade dos indivíduos coletivamente considerados. Tais limitações podem ser con­substanciadas em normas administrativas das três entidades estatais -

“A ação cominatória é adequada para o Poder Público compelir a desfazer painel de propaganda afixado sem autorização municipal, ainda que localizado na propriedade privada.”

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União, Estados e Municípios as quais estão genericamente previstas nos arts. 1.228, § lü, e 1.299 do Código Civil, e que servem de base às imposições da polícia sanitária humana, animal e vegetal.98

O campo de atuação da policia sanitária é incomensurável, o que levou o eminente Cime Lima a confessar, judieiosamente, que, “na im­possibilidade de fixar limites já ao conceito de polícia, já à competên­cia do Estado nesse assunto, devemos limitar-nos a uma classificação meramente demonstrativa”.99

Em verdade, a polícia sanitária dispõe de um elastério muito am­plo e necessário à adoção de normas e medidas específicas, requeridas por situações de perigo presente ou futuro, que lesem ou ameacem le­sar a saúde e a segurança dos indivíduos e da comunidade.100 Por essa razão, o Poder Público dispõe de largo discricionarísmo na escolha e imposição das limitações de higiene e segurança, em defesa da popu­lação e dos bens de interesse social, diversificando as providências en­tre a assepsia e a profílaxia, e adotando cautelas na construção e utili­zação das moradias, locais de trabalho, recintos de recreação e demais ambientes de convivência humana. Dentre as limitações de higiene e segurança merecem destaque as que concernem à habitação e constru­ções especiais, visando a dar-lhes a solidez conveniente e as condições sanitárias compatíveis com a sua destinação.

98. O estudo e a sistematização das normas sanitárias adquiriram tal impor­tância e desenvolvimento, que levaram alguns autores a falarem um “Direito Sani­tário”, como ramo autônomo do Direito Administrativo, tal como sustenta Lessona em seu Trattato di Diritto Sanitario, 1921, especialmente às pp. 9-39 do l c v. Opo- mo-nos a essa opinião, como a ela se opõe a maioria dos publicistas italianos, que continua a entender que o ordenamento sanitário é objeto do Direito Administrati­vo, como matéria de polícia administrativa (cf. Cammeo, Sanità Pubblica, 1925; Vitta, Sanità Pubblica i Singoli Obietti deli 'Amministrazione Sanitaria, 1933; Za- nobini, Corso di Diritto Amministrativo, V /6i, 1951). No Brasil sempre se consi­derou a polícia sanitária como assunto de Direito Administrativo: Alcides Cruz, Direito Administrativo Brasileiro, 1914, n. 172; Themístocles Cavalcanti, Tratado de Direito Administrativo, V/432, 1950; J. Guimarães Menegale, Direito Adminis­trativo e Ciência da Administração, 111/99, 1950; Ruy Cime Lima, Princípios de Direito Administrativo, 1954, p. 119. Merecem exame dois estudos monográficos de Sueli Gandolfí Dallari: A Saúde do Brasileiro (ed. Moderna) e Os Estados Bra­sileiros e o Direito à Saúde (ed. Hucitec, 1995).

99. Princípios de Direito Administrativo, 1954, p. 120.100. V., sobre polícia sanitária: Alcides Greca, “Polícia sanitária”, RDA 3/

454, e o nosso Direito Municipal Brasileiro, 13a ed., Malheiros Editores, 2003, cap. VIII, n. 2.

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Além do controle individual das construções sob o aspecto de se­gurança, higiene, combate a incêndio e adequação às suas funções, a moderna polícia sanitária estende suas prescrições e limitações a todos os elementos que exercem marcada influência na saúde pública, tais como o solo (polícia do solo), o ar (polícia de atmosfera), a água (polí­cia das águas), as plantas e animais (polícia das plantas e animais noci­vos), e o que mais puder afetar o estado sanitário das populações com focos de transmissão de doenças, impurezas no ar, odores nauseabun­dos, ruídos insuportáveis, poluição da água, alergias e contaminações produzidas por plantas e animais nocivos.

No nosso sistema constitucional, os assuntos de higiene e saúde pública ficam sujeitos à tríplice regulamentação federal, estadual e mu­nicipal, por interessar simultaneamente a essas três entidades estatais. É o que se infere do texto e do espírito da Constituição de 1988, quan­do estabelece que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre normas gerais de proteção e defesa da saúde (art. 24, XII e § IQ, c/c art. 30, VII).

Normas gerais de defesa e proteção da saúde são aquelas regras e prescrições federais impostas tanto à União como aos Estados-mem- bros e Municípios, objetivando orientar a polícia sanitária nacional, num sentido unitário e coeso, que possibilite a ação conjugada e uni­forme de todas as entidades estatais em prol da salubridade pública.101

101. Para Pontes de Miranda, “normas gerais são aquelas que a União consi­dera essenciais a plano ou programa geral de defesa e proteção da saúde, ainda que se especialize a respeito de endemias ou de epidemias, ou a respeito da iníancia, da maternidade, ou da velhice. No texto constitucional fala-se de normas gerais de defesa e proteção; todavia, o adjetivo não tem função restrita, como à primeira vis­ta poderia parecer; apenas significa que o legislador recomenda a legislação de de­fesa e de proteção da saúde” (Comentários à Constituição de 1946, Ia ed., 1/298). Para o Prof. Rubens Gomes de Sousa, “só será norma geral a regra que se aplique igualmente à União, ao Estado e ao Município” (“Normas gerais de Direito Finan­ceiro”, RF 155/21). Desse entender dissentem, em parte, os Profs. Carlos Alberto Carvalho Pinto {Normas Gerais de Direito Financeiro, publicação da Prefeitura da Capital de São Paulo, 1949) e Aliomar Baleeiro (“Normas gerais de Direito Fi­nanceiro”, in Finanças em Debate, fase. 1), que exigem, além da generalidade territo­rial, a generalidade do conteúdo da norma. Um dos mais completos estudos sobre as normas gerais foi feito por Diogo de Figueiredo Moreira Neto sob o título “Com­petência concorrente limitada”, publicado na Revista de Informação Legislativa 100/127, outubro-dezembro/1988.

Sobre normas gerais de Direito Urbanístico, v. José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, 4a ed., Malheiros Editores, 2005, pp. 58 e ss.

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A generalidade da norma referida pela Lei Maior não é a do conteúdo da regra, mas a da sua extensão espacial. Nada impede, portanto, que a União, ao editar normas sanitárias gerais, especifique providências e medidas higiênicas e profiláticas, especialize métodos preventivos e curativos, imponha o uso de determinados medicamentos ou substân­cias medicinais, estabeleça determinado processo de saneamento ou exi­ja requisitos mínimos de salubridade para as edificações e demais ativi­dades que se relacionem com a higiene e segurança das populações.

Justifica-se plenamente a competência predominante da União em assuntos de higiene e saúde pública, porque em nossos dias não há doen­ça ou moléstia que se circunscreva unicamente a determinada região ou cidade, em face dos rápidos meios de transporte, que, se conduzem com presteza os homens, agem também como veículos de contamina­ção de todo o País, e, até mesmo, de todo o orbe terrestre. Não há falar, portanto, em interesse regional do Estado-membro, ou em interesse lo­cal do Município, em matéria sanitária, onde prevalece sempre o inte­resse nacional, e, não raro, o internacional.102 Daí por que, sábia e prudentemente, a Constituição Federal vigente conferiu competência con­corrente à União e aos Estados para legislar sobre tais assuntos, limitada a primeira a normas gerais (Constituição Federal, art. 24, XII e § Ia). Nos aspectos de interesse local, cabe aos Municípios legislar, suple- mentarmente à legislação federal e estadual (Constituição Federal, art.3 0 ,1 e II).

Essas normas gerais estão consubstanciadas na Lei federal 8.080, de 19.9.1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, revogando expressamente a Lei 2.312, de 3.9.1954, que traçava a política sanitária nacional, e a Lei 6.229, de 17.7.1975, que instituía o antigo Sistema Nacional de Saúde.

A Lei 8.080, de 19.9.1990, regula, em todo o território nacional, as ações e os serviços de saúde, instituindo o Sistema Único de Saúde— SUS, em cumprimento ao disposto no art. 200 da Constituição Fede­ral. Fixa o campo de atuação do SUS e estabelece a competência das várias entidades estatais, União, Estados e Municípios, regulando, ain­da, a participação complementar da iniciativa privada. O serviço será

102. V. o Código Sanitário Pan-Americano, do qual o Brasil é signatário (De­creto Legislativo 62, de 16.11.1954). Este Código foi aprovado em Havana, em 24.9.1954, na VI Reunião do Conselho Diretor da Organização Sanitária Pan-Ame­ricana, para viger nas três Américas.

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financiado pela receita da seguridade social, cujos recursos serão trans­feridos ao Fundo Nacional de Saúde, regido pelo Ministério da Saúde, que deverá transferi-los aos Estados e Municípios, de acordo com o orçamento previamente aprovado.

A Lei federal 8.142, de 28.12.1990, veio regular a participação da comunidade na gestão do SUS, prevista no art. 198, III, da Constitui­ção Federal, estabelecendo, ainda, os requisitos necessários para a transferência de recursos aos Estados e Municípios.

O Código Nacional da Saúde (Decreto 49.947-A, de 21.1.1961), por sua vez, complementa as normas gerais, dispondo sistematizada- mente sobre todos os assuntos sanitários de interesse nacional, com exi­gências mínimas a serem observadas por todas as entidades estatais, embora possam os Estados-membros e Municípios impor medidas mais rigorosas de defesa e proteção da saúde, segundo as conveniências re­gionais ou as peculiaridades locais.

Por enquanto só temos normas dispersas e assistemáticas, como as que passamos a enunciar, nos diversos setores sujeitos ao controle sanitário e de segurança pública das construções.103

As normas para construção em zonas malarígenas estão consubs­tanciadas no Decreto-lei 3.672, de 10.10.1941. Este decreto estabele­ceu prescrições especiais para obras de saneamento das zonas sujeitas à malária e particularizou requisitos técnicos para as habitações e locais de trabalho, visando a protegê-los contra os pemilongos transmissores da maleita. Tais limitações à liberdade de construir são inteiramente justificadas e podem ainda ser reforçadas pela regulamentação estadual e municipal.

As normas para construção em zonas sujeitas à peste bubônica estão concretizadas no Decreto-lei 8.938, de 26.1.1946 (arts. 15 e ss.), que impõe requisitos de proteção contra a invasão de ratos nas edifica­ções. Prescreve, ainda, sobre a construção de navios e outros meios de transporte marítimo e fluvial, visando a impedir a propagação da peste.

As normas para construção de locais de trabalho são impostas pela Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei 5.452, de

103. Embora não se refiram diretamente ao direito de construir, permitimo- nos citar: o Decreto-lei 209, de 27.2.1967, que institui o Código Brasileiro de Ali­mentos; o Decreto-lei 212, de 27.2.1967, que dispõe sobre medidas de segurança sanitária do País; a Lei 5.760, de 3.12.1973, e o seu Regulamento, Decreto 73.116, de 8.11.1973, que dispõem sobre a industrialização e fiscalização de produtos de origem animal.

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1.5.1943), no capítulo da higiene e segurança do trabalho (arts. 154 a 223), em atendimento ao disposto na Constituição Federal e em har­monia com o estabelecido na Lei de Acidentes do Trabalho.

Essas prescrições, embora constituam limitações de higiene e se­gurança à propriedade particular, não se confundem com as imposi­ções sanitárias gerais, e próprias da legislação estadual e municipal. Higiene e segurança do trabalho é matéria específica e privativa da le­gislação trabalhista e das autoridades federais que fiscalizam e contro­lam a sua execução. Constituem um condicionamento a mais sobre as construções de recintos de trabalho. Assim sendo, os interessados em tais construções ficam sujeitos às limitações gerais da legislação sa­nitária estadual, ao Código de Obras municipal e às exigências espe­ciais da Consolidação das Leis do Trabalho, em exame. As imposi­ções trabalhistas referem-se, principalmente, à salubridade dos locais de trabalho e à segurança do operário no serviço, o que se obtém pela maior iluminação e equipamentos adequados a evitar acidentes no trabalho.

As normas para construção nas vizinhanças de aeroportos são impostas como medida de segurança tanto para as edificações e cultu­ras adjacentes ao campo de pouso como para as próprias aeronaves que se servem das pistas. O Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565, de 19.12.1986) estabeleceu essas limitações, que são fixadas pela au­toridade aeronáutica competente, mediante a aprovação de um plano de proteção individual de cada aeroporto, plano que é enviado à Pre­feitura interessada, para ser observado nos projetos de loteamento e de construção na área.104

As normas proibitivas de construção nas margens das rodovias contêm legítima limitação administrativa de higiene e segurança. Essa limitação não obriga a qualquer indenização, porque não retira a pro­priedade, nem impede que o dono da terra a utilize em qualquer outro fim que não seja a edificação na faixa estabelecida.103 E apenas um

104. Os projetos de loteamento e de construção nas proximidades de aeropor­tos devem ser submetidos à aprovação prévia do Comando Aeronáutico respecti­vo, conforme dispõem as “Diretrizes aos Ministérios Militares”, expedidas pelo EMFA, em 27.5.1957 (DOU 5.6.1957, p. 13.920).

105. No Estado de São Paulo, o Decreto-lei 13.626, de 21.10.1943, impõe essa limitação para suas rodovias, na faixa de 15 m (art. 7a). A Lei de Loteamentos (Lei 6.766/1979) também exige faixa non ciediftcandi, de 15 m, “ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos” (art. 4a, III).

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recuo obrigatório nas construções marginais, a fim de evitar sejam in­vadidas pela poeira e pela fumaça dos veículos, e não prejudicar a visi­bilidade e a segurança do trânsito na via expressa. Tal limitação só abrange os terrenos marginais da estrada enquanto esta mantém as ca­racterísticas de rodovia bloqueada (bem de uso especial), cessando quando ingressa na cidade com caráter de avenida ou rua (bem de uso comum do povo). Há, pois, duas situações distintas a considerar: se a estrada é envolvida pela ampliação do perímetro urbano, mas continua com as mesmas características originais de rodovia, permanece a limi­tação da faixa non aedificandi, ainda que dentro da cidade; se atraves­sa a cidade como via pública urbana, com suas margens livres para o trânsito de pedestres e cruzamentos de veículos, cessa a limitação ante­rior de via expressa.

Os Códigos Sanitários estaduais,[06 visando a complementar ou a suprir a legislação federal, são da competência dos Estados-membros. Tais leis, como é óbvio, devem atender aos preceitos gerais e aos míni­mos legais impostos pela União em tudo que se refira à defesa e pro­teção da saúde. Desde que a legislação federal é genérica e contém exigências mínimas, lícito é a cada Estado-membro impor condições sanitárias mais minuciosas e exigir outras omitidas pela União, em de­fesa da salubridade pública. Toda matéria pertinente à saúde pública cabe no respectivo código estadual, sendo mesmo conveniente reunir num só corpo de lei as normas referentes à polícia sanitária das cons­truções, da alimentação, da poluição do ar e da água, por serem assun­tos conexos, regidos por princípios idênticos.

Além de estabelecer as normas sanitárias para o território estadual, o Código Sanitário impõe medidas de atuação para os particulares e para as autoridades e agentes sanitários, incumbidos da fiscalização e punição dos infratores. Lamentavelmente, a legislação sanitária esta­dual, em quase todas as unidades da Federação, é falha e dispersa, como falha e dispersa tem sido a legislação federal pertinente.

Além disso, padecem os Códigos Sanitários estaduais de absoluta falta de organicidade, deixando de estabelecer um sistema legal, para se contentarem com um conglomerado de disposições não raras vezes antagônicas em seus métodos e objetivos. Em outros Estados-membros é a pluralidade de leis sanitárias, ao invés de um Código, a reger tu- multuariamente os assuntos de higiene e saúde públicas.

106. O Código Sanitário do Estado de São Paulo é o aprovado pelo Decreto 12.342, de 27.9.1978.

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Esses Códigos, em geral, impõem à propriedade particular, e es­pecialmente às construções, uma série de limitações administrativas de ordem sanitária, relegando aos Municípios a regulamentação estrutural e urbanística das obras, como já vimos precedentemente quando estu­damos a legislação edilícia {retro, item 1).

Os regulamentos municipais de higiene e segurança têm por obje­tivo principal o controle técnico-funcional das edificações particulares e dos recintos públicos, bem como dos gêneros alimentícios destina­dos ao consumo local.107

O poder municipal de controle das edificações decorre, hoje, da Constituição Federal, que outorga competência direta ao Município para promover o ordenamento de seu território, mediante planejamen­to e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII). Embasa-se, ainda, no art. 1.299 do Código Civil, que autoriza as construções, respeitando-se o direito dos vizinhos e os re­gulamentos administrativos. Tais regulamentos consubstanciam-se no Código de Obras e nas normas edilícias complementares.

Na regulamentação municipal deverão ser impostas minuciosa­mente as condições em que o proprietário pode construir, visando à segurança e à higiene das edificações. Dentre as exigências, são per­feitamente cabíveis as que se relacionem com a solidez da construção, com a aeração, isolação, cubagem, altura máxima e mínima etc.

Para bem policiar as edificações as Municipalidades subordinam as construções e reformas à prévia aprovação do projeto pela seção competente da Prefeitura e exigem que tais projetos sejam elaborados e subscritos por profissional legalmente habilitado, na forma de legis­lação federal pertinente. Pelo mesmo motivo, a ocupação dos edifícios deve ser precedida de vistoria e expedição de alvará de utilização, co­nhecido por “habite-se”. O poder de polícia municipal, em matéria de habitações, como se vê, é amplo, possibilitando o acompanhamento da execução da obra e vistorias posteriores à sua conclusão, desde que o Poder Público suspeite de insegurança ou alteração das condições de higiene e salubridade, sempre exigíveis. Encontrando-as em descon- formidade com as exigências legais e regulamentares, pode promover sua interdição e demolição, ou permitir a adaptação às condições oficiais.

Tratando-se de prédios destinados a espetáculos e reuniões sociais a fiscalização é tanto mais necessária, em razão da freqüência coletiva,

107. V., a propósito, o Código Sanitário do Município da Capital de São Pau­lo, Decreto 25.544, de 14.3.1988.

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onde o risco da insegurança e da insalubridade aumenta dia a dia, com a deterioração dos materiais expostos à ação do tempo e a possibilidade de criação de ambiente de contágio público, se não houver adequada e constante higienização.

2.3 LIMITAÇÕES MILITARES

A primeira consideração a tecer sobre as limitações de natureza militar ao uso da propriedade é que são da competência privativa fede­ral, visto que a defesa nacional é atribuição específica da União. Não cabe, assim, ao Estado-membro, nem ao Município, opor qualquer res­trição às construções em nome de interesses bélicos.

Tais limitações são autorizadas pela Constituição da República, quando dispõe que ao Conselho de Defesa Nacional compete propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segu­rança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especial­mente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preparação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo (art. 91, III).

Desde os tempos imperiais, porém, já havia limitações no interes­se da defesa nacional, preservando as fortificações e seus arredores, como consta do Alvará de 29.9.1861, seguido pelas normas que indi­camos adiante.

Nas zonas fortificadas as construções são limitadas pelos Decre- tos-leis 3.437, de 17.7.1941, e 8.264, de Ia. 12.1945. Tradicionalmente, essas zonas são divididas em duas faixas; na primeira, de 33m em tor­no das fortificações, nenhuma construção civil é permitida; na segunda, de 1,320m ao redor da fortaleza, só serão admitidas construções dentro dos gabaritos fixados pelo Comando do Exército, para cada fortificação.

Na faixa de fronteira , assim considerada a faixa interna de 150 km de largura, paralela à linha divisória do território nacional, a Lei 6.634, de 2.5.1979, condiciona ao prévio assentimento do Conselho de Segurança Nacional (Conselho de Defesa Nacional) a abertura de vias de comunicação, a instalação de meios de transmissão, a construção de pontes e estradas internacionais e o estabelecimento de indústrias que interessem à segurança da Nação (arts. 1Q e 2Ü).

A mesma lei considera de interesse para a segurança nacional as indústrias de armas e munições; a pesquisa, lavra e aproveitamento de reservas minerais; a exploração de energia elétrica, salvo a de potência inferior a 150 kW; as fábricas e laboratórios de explosivos de qualquer

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substância que se destine a uso bélico; e os meios de comunicação como rádio, televisão, telefone e telégrafo (art. 6a). Esta lei está com­plementada pela Lei 5.130, de lü.10.1966, que dispõe sobre as zonas indispensáveis à defesa do País, oferecendo novas limitações ao direi­to de construir.

3. PATRIMÔNIO HISTÓRICO E TOMBAMENTO

3.1 PATRIMÔNIO HISTÓRICO™

O conceito de patrimônio histórico e artístico nacional abrange todos os bens, móveis e imóveis, existentes no País, cuja conservação seja de interesse público, por sua vinculação a fatos memoráveis da história pátria, ou por seu excepcional valor artístico, arqueológico, et­nográfico, bibliográfico ou ambiental. Tais bens tanto podem ser reali­zações humanas como obras da natureza; tanto podem ser preciosida­des do passado como criações contemporâneas. A proteção de todos esses bens é realizada por meio do tombamento, ou seja, da inscrição da coisa em livros especiais - Livros do Tombo - na repartição compe­tente, para que a sua utilização e conservação se façam de acordo com o prescrito na respectiva lei.109

O valor histórico, artístico, cultural, cientifico ou ambiental é pro­clamado pelo órgão administrativo incumbido dessa apreciação, mas,

108. Dá-se preferência, hoje, à expressão patrimônio cultural, mais ampla do que patrimônio histórico, por abranger também o patrimônio arqueológico, artísti­co, paisagístico e turístico.

109. As expressões “Livros do Tombo” e “tombamento” provêm do Direito português, onde a palavra “tombar” significa “inventariar”, “arrolar” ou “inscre­ver” nos arquivos do Reino, guardados na “Torre do Tombo”. Por tradição, o le­gislador brasileiro conservou as expressões reinícolas na nossa “Lei de Tombamen­to”. E fez bem, porque começou, assim, a preservar o nosso patrimônio lingüístico, dando o exemplo aos que vão cumprir a lei. Sobre o patrimônio histórico e artísti­co, bem como sobre a preservação ambiental e urbanística, v. o excelente estudo do Prof. José Afonso da Silva constante da 4a edição de seu livro Direito Urbanís­tico Brasileiro, São Paulo, Malheiros Editores, 2005, e também o ótimo estudo de Paulo Affonso Leme Machado em seu Direito Ambiental Brasileiro, 13a ed., Ma- lheiros Editores, 2005; v., ainda, Antônio A. Queiroz Telles, Natureza e Regime Jurídico do Tombamento, Ed. RT, 1992, bem como artigos de Adilson Abreu Dallari, “Tombamento”, RDP 86/37, e de Afrânio de Carvalho, ”0 tombamento de imóveis e o Registro”, RT 672/73; e pareceres de Miguel Reale, “Tombamento de bens culturais”, RDP 86/61, e de Márcio Cammarosano, “Tombamento - Realiza­ção de obra pública”, RDP 81/191.

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quando contestado peío proprietário da coisa, para subtraí-la do tom- bamento, pode ser apurado em juízo, pelos meios periciais adequa­dos.110 Embora a valoração histórica e a artística dependam de juízos subjetivos e conceitos estéticos individuais, nem por isso fica o ato ad­ministrativo do tombamento imune à apreciação judicial, para veri fi­car-se a sua legalidade, dentro dos objetivos colimados pela legislação pertinente.

A Constituição Federal de 1988, fiel à orientação histórico-cultu- ral dos povos civilizados, estendeu o amparo do Poder Público a todos os bens que merecem ser preservados e atribuiu a todas as entidades estatais o dever de preservá-los, para recreação, estudo e conhecimen­to dos feitos de nossos antepassados (art. 23, III). A competência para legislar sobre a matéria é concorrente à União e aos Estados (art. 24, VII), cabendo aos Municípios a legislação de caráter local e suplemen­tar (art. 3 0 ,1 e II).

3.2 TOMBAMENTO

Tombamento é a declaração pelo Poder Público do valor históri­co, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico de coisas ou locais, que, por essa razão, devam ser preservados, de acordo com a inscrição em livro próprio. Atualmente, sua efetivação, como forma de proteção ao patrimônio público, está expressamente prevista na Cons­tituição, no art. 216, cujo § 1Q dispõe: “O Poder Público, com a cola­boração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação”.

Como a Constituição da República fala em “Poder Público”, qual­quer das entidades estatais pode dispor sobre o tombamento de bens em seu território.

No âmbito federal, essa missão está confiada ao Instituto Brasilei­ro do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN.111 Nas esfe­

110. STF, RDA II-1/100 e 124, com comentário de Víctor Nunes Leai.111. 0 Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural - IBPC voltou a denomi-

nar-se Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - ÍPHAN, por força da MP 610, de 8.9.1994 (art. 6o), mantendo a mesma natureza e competência jurí­dica. O que muda, portanto, é a denominação, valendo o que foi dito a respeito do antigo IBPC, que foi constituído pelo Decreto 99.492, de 3.9.1990, como autar­quia federal, mediante autorização da Lei 8.029, de 12.4.1990, no bojo da reforma

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ras estadual e municipal essa atribuição é do respectivo órgão criado para esse fim.

A norma nacional sobre tombamento é o Decreto-lei 25, de 30.11.1937, complementado por disposições de outros diplomas legais; mas o tombamento, em si, é ato administrativo da autoridade compe­tente, e não função abstrata da lei, que estabelece apenas as regras para sua efetivação.

O tombamento realiza-se através de um procedimento administra­tivo vinculado, que conduz ao ato final de inscrição do bem num dos Livros do Tombo. Nesse procedimento deve ser notificado o proprie­tário do bem a ser tombado, dando-se-lhe oportunidade de defesa na forma da lei. Nulo será o tombamento efetivado sem atendimento das imposições legais e regulamentares, pois que, acarretando restrições ao exercício do direito de propriedade, há que observar o devido processo legal para sua formalização, e essa nulidade pode ser pronunciada pelo Judiciário, na ação cabível, em que serão apreciadas tanto a legalidade dos motivos quanto a regularidade do procedimento administrativo em exame. O Tribunal de Justiça de São Paulo já concedeu mandado de segurança contra o tombamento de imóvel que, comprovadamente, não apresentava valor histórico ou cultural, configurando o fato evidente desvio de poder da Administração.112

O tombamento tanto pode acarretar uma restrição individual quan­to uma limitação geral. É restrição individual quando atinge determi­nado bem - uma casa, p. ex. reduzindo os direitos do proprietário ou impondo-lhe encargos; é limitação geral quando abrange uma coletivi­dade, obrigando-a a respeitar padrões urbanísticos ou arquitetônicos, como ocorre com o tombamento de locais históricos ou paisagísticos.

No exercício da faculdade que lhe outorga o art. 216 da Constitui­ção, o Poder Público impõe as restrições necessárias à utilização e con­servação do bem, mas, se estas chegarem a constituir interdição do uso

administrativa de 1990. Nos termos da citada Lei 8.029/1990, o IBPC sucedeu a antiga Secretaria do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional - SPHAN nas com­petências previstas no Decreto-lei 25, de 30.11.1937, no Decreto-lei 3.866, de 29.11.1941, na Lei 4.845, de 19.11.1965, e na Lei 3.924, de 26.7.1961. De igual forma, assumiu as funções da Fundação Pró-Memória, que também foi extinta pela mesma Lei 8.029/1990. O IPHAN vincula-se ao Ministério da Cultura.

112. “Imóvel que, em face da prova documental, não apresenta valor histórico, cultural, arquitetônico ou de qualquer outra espécie que justifique o ato. Violação da lei e desvio de poder configurados. Nulidade decretada. Segurança concedida” (TJSP, JTJ 165/229).

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da propriedade, a coisa tombada ou afetada pelo tombamento deverá ser indenizada, como veremos adiante.

A doutrina não é pacífica quanto à natureza jurídica do tombamen­to, entendendo alguns que se trata de simples limitação administrativa, e outros que ele configura uma servidão administrativa, exatamente pelo fato de gerar um direito à indenização, na medida dos danos ou das restrições impostas à propriedade. Essa divergência doutrinária é tratada logo adiante, no item 4.3.4 deste capítulo, que cuida especifica­mente da indenização, e pelos diversos autores de obras constantes da nota de rodapé 119.

Ultimamente o tombamento tem sido utilizado para proteger flo­restas nativas. Há equívoco nesse procedimento. O tombamento não é o instrumento adequado para a preservação da flora e da fauna.113 As florestas são bens de interesse comum e estão sujeitas ao regime legal especial estabelecido pelo Código Florestal (Lei 4.771, de 15.9.1965), que indica o modo de preservação de determinadas áreas florestadas. O mesmo ocorre com a fauna, que é regida pelo Código de Caça (Lei 5.197, de 3.1.1967) e pelo Código de Pesca (Decreto-lei 221, de 28.2.1967), os quais indicam como preservar as espécies silvestres e aquáticas. Portanto, a preservação das florestas e da fauna silvestre é de ser feita com a criação de parques nacionais, estaduais e munici­pais, ou de reservas biológicas, como permite expressamente o Código Florestal (art. 5Q).

3.2.1 PROCESSO

A abertura do processo de tombamento, por deliberação do órgão competente, assegura a preservação do bem até a decisão final, a ser proferida dentro de 60 dias, ficando sustada desde logo qualquer mo­dificação ou destruição (art. 9fl, item 3, do Decreto-lei 25/1937). É o que se denomina tombamento provisório, cujos efeitos são equipara­dos aos do tombamento definitivo, salvo quanto ao registro no cartório imobiliário e ao direito de preferência reservado ao Poder Público (arts. 7a e 13). Mas esse tombamento provisório não pode ser protelado além do prazo legal, sob pena de a omissão ou retardamento transformar-se em abuso de poder, corrigível por via judicial.114

113. Cf. nosso parecer “Parque florestal - Desapropriação e tombamento”, in Estudos e Pareceres de Direito Público, VIII/227 e ss., Ed. RT.

114. TJMT, RT 671/154.

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Feito o tombamento definitivo, caberá recurso ao Presidente da República, para o cancelamento, na forma estabelecida pelo artigo úni­co do Decreto-lei 3.866, de 29.11.1941. Esse cancelamento, aliás, pode ser determinado até mesmo de oficio, “atendendo a motivos de interes­se público”, como diz o mencionado artigo. Não é de se louvar o poder discricionário que se concedeu ao Presidente da República em matéria histórica e artística, sobrepondo-se o seu juízo individual ao do colegia- do do IPHAN,t,;> a quem incumbe decidir origínariamente sobre o as­sunto. A autoridade desse órgão, especializado na matéria, não deveria ficar sumariamente anulada pelo julgamento subjetivo ou político do Chefe da Nação. A instituição desse recurso se deve, naturalmente, à origem ditatorial do diploma que o estabeleceu, em cujo regime o Pre­sidente da República absorvia todos os poderes e funções, ainda que estranhos à sua missão governamental.

As coisas tombadas, embora permaneçam no domínio e posse de seus proprietários, não poderão, em caso algum, ser demolidas, destruí­das ou mutiladas, nem pintadas ou reparadas, sem prévia autorização do IPHAN, sob pena de multa de 50% do dano causado (art. 17). Do mesmo modo, os bens tombados não podem sair do País, nem ser alie­nados a título oneroso, sem prévia oferta à União, ao Estado ou ao Mu­nicípio em que se encontram, para que exerçam o seu direito de prefe­rência à aquisição, sendo nula a alienação que se fizer com preterição desse preceito legal (art. 22 e parágrafos).

Na vizinhança dos imóveis tombados não se poderá fazer qual­quer construção que lhes impeça ou reduza a visibilidade, nem colocar

115. 0 órgão competente, no sistema do Decreto-lei 25/1937, era o Conselho Consultivo do SPHAN, órgão de caráter técnico, ao qual incumbia verificar a exi­gência dos requisitos necessários ao tombamento. A estrutura regimental do Insti­tuto Brasileiro do Patrimônio Cultural - IBPC, aprovada pelo Decreto 99.602, de 13.10.1990, não contempla nenhum órgão assemelhado ao Conselho Consultivo, limitando-se a uma Diretoria Executiva e a um Presidente. Diante disso, à Direto­ria colegiada devem competir a instauração do processo de tombamento e sua deci­são final, cabendo-lhe solicitar os necessários pareceres técnicos, para subsidiar suas decisões. Ao Presidente do Instituto cabe apenas tomar as providências admi­nistrativas relacionadas com o processo de tombamento (art. 13, VIII), o qual, se for determinado, deverá ser homologado pelo Ministro da Cultura (art. 13, VIII). O recurso ao Presidente da República continua vigente, uma vez que o Decreto-lei 3.866/1941 não foi revogado. Cumpre alertar, porém, que este recurso só é viável quando o tombamento for determinado pelo IPHAN, entidade federal, não sendo cabível quando o tombamento for de âmbito estadual ou municipal. Nestes casos, o recurso será para o Chefe do Executivo local, se essa faculdade tiver sido previs­ta pela legislação pertinente.

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anúncios ou cartazes, sob pena de retirada ou destruição e multa de 50% do valor das obras proibidas (art. 18). O conceito de redução de visibilidade, para fins da Lei de Tombamento, é amplo, abrangendo não só a tirada da vista da coisa tombada como a modificação do ambiente ou da paisagem adjacente, a diferença de estilo arquitetônico, e tudo o mais que contraste ou afronte a harmonia do conjunto, tirando o valor histórico ou a beleza original da obra ou do sítio protegido.

Os monumentos arqueológicos e pré-históricos foram também co­locados sob a guarda e proteção do Poder Público pela Lei 3.924, de20.7.1961. Esta lei conceitua o que se considera monumento arqueoló­gico ou pré-histórico (art. 2°) e sujeita as escavações para fins de pes­quisa em terras públicas ou particulares à permissão do govemo fede­ral (art. 8Ü), através do IPHAN; preserva as descobertas fortuitas (art. 17) e proíbe a remessa para o Exterior de objetos de interesse arqueo­lógico, pré-histórico, numismático ou artístico sem licença expressa do órgão competente, e pune os infratores por crime contra o patrimônio nacional (art. 4D).

Concluído o tombamento definitivo, de imóvel particular ou pú­blico, deverá ser comunicado ao Registro Imobiliário competente, para averbação à margem da transcrição do domínio (Decreto-lei 25/1937, art. 13), a fim de produzir efeitos perante terceiros.116

Os bens tombados só podem ser desapropriados para manter-se o tombamento, jamais para outra finalidade. Nem mesmo as entidades estatais maiores poderão expropríar bens tombados pelas menores en­quanto não for cancelado o tombamento pelo órgão competente. Se as­sim não fosse, de nada valeria o tombamento pelo Estado ou pelo Mu­nicípio se a expropriação proviesse da União.

3.2.2 INDENIZAÇÃO

O tombamento, em princípio, não obriga à indenização,1,7 salvo se as condições impostas para a conservação do bem acarretem despe­sas extraordinárias para o proprietário, ou resultem na interdição do uso do mesmo bem, ou prejudiquem a sua normal utilização, suprimin­do ou depreciando o seu valor econômico. Se isto ocorrer, é necessária a indenização, a ser efetivada amigavelmente ou mediante desapropria­

116. Afrânio de Carvalho, “O tombamento de imóveis e o Registro”, RT 672/73.117. Se o tombamento apenas consolidou limitação administrativa já imposta

pela lei, não gera indenização (TJSP, RJTJSP 136/187).

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ção pela entidade pública que realizar o tombamento, conforme o dis­posto no art. 5a, “k”, do Decreto-lei 3.365/1941, que considera, dentre os casos de utilidade pública, a preservação e conservação dos monu­mentos históricos e artísticos, bem como a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza.

Tombamento não é confisco. E preservação de bens de interesse da coletividade, imposta pelo Poder Público em benefício de todos, e, assim sendo, não podem os particulares ser sacrificados no seu direito de propriedade sem a correspondente indenização reparatória do pre­juízo ocasionado pelo tombamento. Assim já nos pronunciamos,118 em harmonia com os doutrinadores pátrios que se ocuparam do assunto.119 Com efeito, o tombamento de uma obra de arte que permita ao seu dono continuar na sua posse e no seu desfrute não exigirá indenização, mas o tombamento de uma área urbana ou rural que impeça a edifica­ção ou a sua normal exploração econômica há de ser indenizado.120

3.2.3 OMISSÃO

Quando o Poder Executivo não toma as medidas necessárias para o tombamento de um bem que, reconhecidamente, deva ser protegido em face de seu valor histórico ou paisagístico, a jurisprudência tem en­tendido que, mediante provocação do Ministério Público (ação civil pública) ou de cidadão (ação popular), o Judiciário pode determinar ao Executivo faça a proteção.121 De igual forma, a omissão administrativa

118. Cf. nosso artigo ‘Tombamento e indenização”, RT 600/15 e RDA 161/1, e também nosso “Parecer” in Estudos e Pareceres de Direito Público, VIII/277, Ed. RT.

119. Nesse sentido, v. os pareceres de Antônio Gonçalves de Oliveira, Caio Mário da Silva Pereira, Carlos Medeiros Silva e Adroaldo Mesquita da Costa, res­pectivamente ín RDA 53/345, 65/315, 67/248, 82/41 e 120/459, bem como os arti­gos de Reginaldo Nunes, José Cretella Júnior e Celso Antônio Bandeira de Mello, respectivamente in RDA 76/444 e 112/50 e RDP 81/65. Adilson Abreu Dallari de­senvolveu bastante esse tema em artigo sobre as “Servidões administrativas” pu­blicado na RDP 59-60/90-96, julho-dezembro/1981.

120. TJSP, RT 621/86; RJTJSP 122/50 e 136/44. Mais recentemente, em des­pacho muito bem fundamentado, o ilustre Min. Celso de Mello, do egrégio STF, com base no princípio de que o esvaziamento do valor econômico da propriedade pelo tombamento impõe ao Estado o dever de indenizar, negou provimento a agra­vo de instrumento interposto pela Fazenda do Estado de São Paulo contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado que determinara o pagamento de indenização pelo tombamento de imóvel urbano, a chamada “Casa Modernista”, uma das primeiras obras do arquiteto Warchavchik na cidade de São Paulo (RDA 200/158).

121. TJSP, RJTJSP 122/50 e 136/44.

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em concluir o processo de tombamento afeta o direito de propriedade e lesa o patrimônio individual, justificando, assim, sua anulação pelo Ju­diciário.122

4. O ESTATUTO DA CIDADE123

A Lei 10.257, de 10.7.2001, autodenominada “Estatuto da Cidade” (no art. lü, parágrafo único), institucionalizou, como normas gerais de Direito Urbanístico, um conjunto de meios e instrumentos expressa­mente vocacionados para a intervenção urbanística, possibilitando ao Poder Público uma atuação vigorosa e eficaz nesse setor, viabilizando a concretização do princípio da função social da propriedade.

Todas as esferas de governo podem e devem atuar nesse sentido, conforme já ressaltamos anteriormente; mas, sem dúvida, a atuação dos Municípios é mais direta e de maior impacto. E preciso reiterar que a competência municipal decorre da Constituição Federal, e não do Es­tatuto da Cidade, o qual apenas delineia a configuração de alguns ins­trumentos de política urbana (alguns novos, e outros já tradicionalmente utilizados), contribuindo para uma uniformização da nomenclatura, do significado e dos meios e modos de utilização de cada um.

A aplicação aos casos concretos dos instrumentos de política urba­na elencados no Estatuto da Cidade, conforme o que está expressamente consignado no § 10 do art. 4Ü, vai depender do que estiver disposto na legislação editada em cada Município e das disposições da legislação es­tadual ou federal naqueles assuntos de sua competência, como é o caso, p. ex., respectivamente, das áreas metropolitanas e das desapropriações.

O art. 4Ü enumera um extenso rol de instrumentos que são coloca­dos à disposição do Poder Público visando à organização conveniente

122. STJ, REsp 4 1 .993-0-SP, j. 1*6,1995, DJU 19.6.1995.123. Uma análise mais detalhada dos instrumentos de atuação urbanística,

aqui sucintamente examinados, pode ser vista no Estatuto da Cidade, coordenado por Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz (Ia ed., 2atir., Malheiros Editores, 2003), onde cada assunto é especificamente examinado pelos coordenadores e pelos se­guintes especialistas: Carlos Ari Sundfeld, Cássío Scarpinella Bueno, Cíóvis Bez- nos, Daniela Campos Liborio Di Samo, Diógenes Gaspariní, Egle Monteiro da Sil­veira, Floriano de Azevedo Marques Neto, Jacintho Arruda Câmara, Lucéia Mar­tins Soares, Lucia Valie Figueiredo, Marcelo Figueiredo, Márcio Cammarosano, Maria Helena Diniz, Maria Paula Dallari Bucci, Maria Sylvia Zanelia Di Pietro, Mariana Moreira, Paulo José Villela Lomar, Regina Helena Costa, Vera Monteiro Scarpinella Bueno, Yara Darcy Police Monteiro.

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dos espaços habitáveis e ao cumprimento das funções sociais da pro­priedade e da cidade. Esse rol nâo é exaustivo - o que significa o reconhecimento da validade dos outros instrumentos já existentes e utilizados antes da edição do Estatuto da Cidade, aos quais se somam os que figuram nessa relação, sendo certo que outros ainda poderão vir a ser criados, inclusive por Estados e Municípios.

Alguns desses instrumentos enquadram-se no conceito de limita­ções administrativas, ao lado de outros mais pertinentes ao campo do Direito Civil, abrangendo as servidões administrativas, a desapropria­ção, o tombamento e, ainda, alguns novos instrumentos, introduzidos no cenário jurídico nacional por essa mesma lei.

Para efeitos didáticos, é possível reunir essa multiplicidade de meios de atuação urbanística em quatro grupos - seguindo, o mais perto pos­sível, a denominação utilizada pela própria lei em exame: a) instrumen­tos de planejamento; b) instrumentos tributários; c) instrumentos jurí­dicos; e d) instrumentos ambientais.

4.1 INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO

O art. 4C da Lei 10.257, de 10.7.2001, faz uma primeira relação de instrumentos de planejamento nos seus correspondentes incisos: I - pla­nos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de de­senvolvimento econômico e social; II - planejamento das regiões metro­politanas, aglomerações urbanas e microrregiões; e 111 - planejamento municipal.

Em seguida, procede a um detalhamento do planejamento munici­pal, que deve ser exercitado por meio dos seguintes instrumentos espe­cíficos: a) Plano Diretor; b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo; c) zoneamento ambiental; d) Plano Plurianual; e) di­retrizes orçamentárias e orçamento anual; f) gestão orçamentária par­ticipativa; g) planos, programas e projetos setoriais; e h) planos de de­senvolvimento econômico e social.

Essa relação é bastante heterogênea, abrangendo planos vocacio­nados para diferentes finalidades. Os primeiros (Plano Diretor, disci­plina do parcelamento, uso e ocupação do solo e zoneamento ambien­tal) são, fundamentalmente, planos físicos, destinados a disciplinar os espaços urbanos. Já o Plano Plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual são instrumentos basicamente econômicos, destina­dos a disciplinar o uso dos recursos financeiros municipais.

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A gestão orçamentária participativa refere-se ao processo de ela­boração e execução dos orçamentos acima referidos e corresponde a princípios e preceitos constitucionais (princípio participativo - art. lü, parágrafo único - e planejamento participativo - art. 29, XII, ambos da Constituição Federal). Os planos, programas e projetos setoriais re­ferem-se a áreas específicas de atuação (saúde, saneamento básico, educação, transporte público etc.). Planos de desenvolvimento econô­mico e social devem abranger tanto as ações a serem empreendidas com o uso dos recursos financeiros municipais quanto as ações de par­ticulares e de outros níveis de governo.

Entre todos esses instrumentos de planejamento, merece especial destaque o Plano Diretor, que já foi objeto de exame no item 2.1.2 des­te capítulo. Conforme já foi dito, o detalhamento de sua elaboração é feito pelos arts. 39 a 42 do Estatuto da Cidade. O Plano Diretor deve ser aprovado por lei e tem força de lei, deve ser elaborado de maneira participativa e deve servir como instrumento de realização da função social da propriedade.

O Plano Diretor é extremamente relevante para que se possa saber se uma propriedade imobiliária urbana está, ou não, cumprindo sua função social. Conforme o disposto no art. 182, § 2a, da Constituição Federal, “a propriedade urbana cumpre sua função social quando aten­de às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

4.2 INSTRUMENTOS TRIBUTÁRIOS

O art. 4Q da Lei 10.257/2001, em seu inciso IV, enumera como instrumentos tributários e financeiros de política urbana os seguin­tes: a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU; b) contribuição de melhoria; c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros.

Quanto ao IPTU, a Constituição Federal deixa claro que, além de fonte significativa de arrecadação, ele tem também um relevante papel na política de desenvolvimento urbano, especialmente em função de sua progressividade. No art. 156, § Ia, I, está previsto que esse imposto pode ser progressivo em razão do valor do imóvel, e no inciso II está prevista expressamente a possibilidade da fixação de alíquotas diferen­tes, de acordo com a localização e o uso do imóvel.

Em seu art. 182, § 4Ü, II, a Constituição Federal menciona o IPTU progressivo no tempo, como instrumento de promoção do adequado

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aproveitamento do imóvel urbano não edifícado, subutilizado ou não utilizado. O art. 7° do Estatuto da Cidade disciplina este assunto, esta­belecendo a possibilidade de majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos, desde que não exceda a duas vezes o valor referen­te ao ano anterior e seja respeitada a alíquota máxima de 15%. Decor­ridos os cinco anos, a alíquota máxima permanecerá sendo cobrada, salvo se o particular der efetiva utilização ao imóvel, ou o Município optar por sua desapropriação, na forma prevista nessa mesma lei.

A contribuição de melhoria é tributo previsto no art. 145, III, da Constituição Federal, que tem como base imponível o aumento de va­lor trazido ao imóvel em decorrência da realização de obra pública.

Por último, a Lei 10.257/2001 destaca como instrumento tribu­tário ou financeiro de política urbana os incentivos e benefícios f is ­cais e financeiros, evidenciando que tanto o aumento quanto a dimi­nuição da carga tributária podem ser instrumentos de atuação urba­nística. O importante é que tais incentivos sejam aplicados com isono- mia, sem favorecimentos indevidos e com observância das limitações estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 4.5.2000).

4.3 INSTRUMENTOS JURÍDICOS

O art. 4Q da Lei 10.257, de 10.7.2001, apresenta uma relação bas­tante desordenada, não obedecendo a qualquer critério lógico-sistemá- tico, do que ela considera como instrumentos jurídicos e políticos de atuação urbanística, e que são os seguintes: a) desapropriação; b) ser­vidão administrativa; c) limitações administrativas; d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; e) instituição de unidades de conser­vação; f) instituição de zonas especiais de interesse social; g) conces­são de direito real de uso; h) concessão de uso especial para fins de moradia; i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; j) usu­capião especial de imóvel urbano; 1) direito de superfície; m) direito de preempção; n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; o) transferência do direito de construir; p) operações urbanas consorciadas; q) regularização fundiária; r) assistência técnica e jurídi­ca gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos; e s) referendo popular e plebiscito.124

124. O consórcio imobiliário, apesar de não constar da relação feita pelo art. 4Q do Estatuto da Cidade, aparecendo apenas no seu art. 46, § lfl, por se tratar de importante instrumento jurídico de atuação urbanística, será tratado no item 4.3.19.

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Seguindo essa ordem, que figura no Estatuto da Cidade, passa-se, agora, ao breve exame de cada um.

4.3.1 DESAPROPRIAÇÃO

O Estatuto da Cidade não cuida das desapropriações comuns, por necessidade ou utilidade pública e por interesse social, mediante pré­via e justa indenização em dinheiro - que são regidas, respectivamen­te, pelo Decreto-lei 3.365, de 21.6.1941, e pela Lei 4.132, de10.9.1962. Estas desapropriações comuns são examinadas mais adian­te, no cap. 5, item 2.

O art. 8a cuida somente da chamada “desapropriação-sanção”, aplicável apenas a imóveis urbanos que não estejam cumprindo sua função social, localizados em área prevista no Plano Diretor como su­jeita a esta desapropriação, e desde que o proprietário, devidamente notificado, não tenha dado utilização ao imóvel e tenha transcorrido o prazo de cinco anos de cobrança do IPTU progressivo, acima referido.

Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imó­vel, com pagamento em títulos da dívida pública, que serão resgatados no prazo de até dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, com juros legais de 6% ao ano, e que não poderão ser utilizados para o pagamento de tributos.

A indenização deverá corresponder ao valor real do imóvel, mas não considerará eventual valorização decorrente de obras realizadas pelo Poder Público e não computará expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios.

4.3.2 SERVIDÃO ADMINISTRATIVA

A lei em exame não contempla qualquer disposição especial a res­peito da utilização das servidões administrativas. Portanto, a servidão administrativa aqui mencionada é aquela já bastante utilizada, que foi objeto de exame no item 1.1 deste capítulo, e que consiste em um ônus especial imposto a determinada propriedade, mediante indenização, para propiciar sua utilização em benefício da coletividade - como é o caso, p. ex., dos aquedutos e de linhas de transmissão de energia elétrica.

As servidões administrativas são estudadas mais detalhadamente adiante, no cap. 5, item 1.

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162 DIREITO DE CONSTRUIR

4.3.3 LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS

Este tema, que é o objeto de todo este capítulo e que teve suas diversas espécies detalhadamente examinadas nos subitens do item 2, também não recebeu tratamento especial no Estatuto da Cidade. Cabe, apenas, aqui, rememorar seu conceito: limitação administrativa é toda imposição geral, gratuita, unilateral e de ordem pública condicionado- ra do exercício de direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar social. São exemplos de limitações administrativas, apli­cadas à propriedade imobiliária urbana, o zoneamento, as normas edi- lícias, as normas sobre loteamento, sobre estética urbana etc.

4.3.4 TOMBAMENTO DE IMÓVEIS OU DE MOBILIÁRIO URBANO

O tombamento também não mereceu tratamento especial do Esta­tuto da Cidade. Esse tema foi objeto de amplo estudo no item 3 deste capítulo, cabendo, aqui, somente registrar que ele é instrumento des­tinado a preservar bens integrantes do patrimônio natural e cultural dotados de valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico. O tombamento não afeta a propriedade do bem, mas apenas impede que ele seja destruído ou alterado em suas características es­senciais, acarretando ou não o dever de indenizar, conforme a intensi­dade com que prejudique o uso normal do bem pelo proprietário.

4.3.5 INSTITUIÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

A instituição de unidades de conservação tem raiz no art. 225 da Constituição Federal - que dispõe sobre o meio ambiente - e é disciplinada pela legislação ambiental. O Estatuto da Cidade apenas menciona as unidades de conservação, sem qualquer especificação. Cabe lembrar que as florestas, independentemente de qualquer pro­vidência específica, são bens de interesse comum e são sujeitas a um regime especial estabelecido pelo Código Florestal (Lei 4.771, de 15.9.1965).

4.3.6 INSTITUIÇÃO DE ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL

As zonas especiais de interesse social são aquelas onde as circuns­tâncias de fato autorizam ou determinam tratamento diferenciado, mais simples, menos elitista, dos índices urbanísticos, de maneira a assegu­

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rar o direito à moradia, inserido no art. 6“ da Constituição Federal pela HC 26, de 14.2.2000.

Não se trata de criar privilégios para os economicamente fracos, nem de conferir-lhes menos garantias de salubridade e segurança, mas, sim, de aplicar o Direito com razoabilidade, promovendo um contem- peramento entre os diversos objetivos e valores constitucionalmente consagrados.

4.3.7 CONCESSÃO DE DIREITO REAL DE USO

O instituto jurídico da concessão do direito real de uso foi intro­duzido no Direito brasileiro pelo Decreto-lei 271, de 28.2.1967, cujo art. 7a tem a seguinte redação: “E instituída a concessão de uso de ter­renos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra uti­lização de interesse social”.

Por força desse decreto-lei, a concessão de uso poderá ser contra­tada por instrumento público ou particular, ou por simples termo admi­nistrativo, e, salvo disposição contratual em contrário, transfere-se por ato inter vivos, ou por sucessão legítima ou testamentária, como os de­mais direitos reais sobre coisas alheias. Essa concessão, entretanto, ex­tingue-se se o concessionário der ao imóvel destinação diversa da esta­belecida no contrato, perdendo as benfeitorias de qualquer natureza que houver efetuado.

Pretendia-se que esse instituto viesse a substituir a doação de ter­renos públicos a pessoas carentes. O processo de outorga era simples (não seria necessário lavrar uma escritura pública); o concessionário poderia utilizar o imóvel como se fosse dono, e se pretendia, especial­mente, que ele pudesse utilizar seu título como garantia de financia­mento para a edificação. Mas, na prática, isso não funcionou.

Na tentativa de revigorar a concessão de direito real de uso, o Esta­tuto da Cidade, em seu art. 48, estabelece que nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área, os contratos de concessão de direito real de uso de imóveis públicos terão caráter de escritura pública e constituirão título de aceitação obri­gatória em garantia de contratos de financiamentos habitacionais. Além disso, o § 2Ü do art. 4Ü, para aqueles mesmos casos acima menciona­

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dos, estabeleceu a possibilidade de que a concessão de direito real de uso de imóveis públicos seja contratada coletivamente.

4.3.8 CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA

A concessão de uso especial para fins de moradia visa a dar um mínimo de segurança jurídica a quem ocupou por largo período de tem­po uma área pública, nela construindo sua habitação.

Uma parte considerável dos chamados “sem-teto”, população de baixa renda, sem condições de acesso à moradia, simplesmente inva­dia terrenos urbanos vagos e lá construía suas precárias habitações. Quando se tratava de terreno particular, o proprietário recorria ao Po­der Judiciário para obter a desocupação. Quando se tratava de terreno público dificilmente ocorria a desocupação compulsória. Assim é que cada vez mais terrenos públicos foram invadidos.

Essa espécie de concessão de uso de bem público deveria figurar no Estatuto da Cidade, nos arts. 15 a 20, mas todos eles foram vetados, pois a redação dos artigos mencionados criava um verdadeiro usuca­pião de bem público, expressamente vedado pelo art. 183, § 3Ü, da Constituição Federal, além de, pela falta de limite temporal, incentivar invasões de terrenos públicos urbanos.

Para suprir a ausência desses artigos foi editada a Medida Provi­sória 2.220, de 4.9.2001, cujo art. 1Q tem a seguinte redação: “Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, inin­terruptamente e sem oposição, até 250m2 de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessioná­rio, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural”.

O grande problema, porém, era que, na maioria dos casos, as in­vasões eram feitas em áreas de grande extensão e por uma multiplici­dade de pessoas, com certa rotatividade entre elas, sendo verdadeira­mente impossível identificar a parte de cada uma. Por essa razão, o art. 2a da mesma medida provisória estabelece que, quando se tratar de área superior a 250m2 até aquela mesma data ocupada por população de bai­xa renda para sua moradia, por cinco anos, não sendo possível identifi­car os terrenos ocupados por determinado possuidor, a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, so- mando-se as posses contínuas dos sucessivos ocupantes.

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A concessão de uso para fins de moradia é transferível por ato in- ter vivos ou causa mortis (art. 7a da referida medida provisória) e não tem prazo determinado - o que, na prática, acaba produzindo os mes­mos efeitos do usucapião, expressamente proibido pela Constituição Federal.

4.3.9 PARCELAMENTO, EDIFICAÇÃO OU UTILIZAÇÃO COMPULSÓRIOS

Este instrumento de atuação urbanística tem fundamento expresso no § 4a do art. 182 da Constituição Federal, onde se estabelece que: “E facultado ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área incluída no Plano Diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprie­tário do solo urbano não edifícado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a pro­priedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desa­propriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emis­são previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”.

O Estatuto da Cidade, em seu art. 5Q, disciplinou a aplicação do mandamento constitucional, dizendo que lei municipal específica para área incluída no Plano Diretor poderá determinar o parcelamento, a edi­ficação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, su­butilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação. Para os fins da lei, considera-se subutilizado o imóvel cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo de­finido no Plano Diretor ou em legislação dele decorrente.

O proprietário deverá ser notificado pelo Poder Executivo Muni­cipal para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser averbada no cartório de registro de imóveis (de maneira a vincular even­tuais sucessores). Uma vez notificado, o proprietário, em prazo não in­ferior a um ano, deve apresentar o projeto de utilização do imóvel ao órgão municipal competente. Aprovado o projeto, terá dois anos para iniciar as obras do empreendimento, podendo, excepcionalmente, ser prevista a execução em etapas, quando se tratar de empreendimento de grande porte.

Caso o proprietário não disponha de recursos, poderá valer-se da constituição de um consórcio imobiliário, previsto no art. 46, por meio

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166 DIREITO DE CONSTRUIR

do qual a propriedade é transferida ao Poder Público Municipal, o qual, após a realização das obras, paga o proprietário, atribuindo-lhe um cer­to número de unidades imobiliárias.

4.3.10 USUCAPIÃO ESPECIAL DE IMÓVEL URBANO

O usucapião, consistente na aquisição da propriedade por meio de sua posse inquestionada durante certo período de tempo, é figura tradicional no Direito Civil brasileiro, sendo disciplinado pelo Código Civil em vigor nos arts. 1.238 (prazo de quinze anos, que será reduzi­do para dez anos se o possuidor morar no local e houver realizado ben­feitorias produtivas), 1.239 (prazo de cinco anos para imóvel na zona rural inferior a 50ha), 1.240 (prazo de cinco anos para área urbana de até 250m2 utilizada para moradia) e 1.242 (prazo de dez anos para imó­vel ocupado com justo título e boa-fé). O § 4a do art. 1.228 ainda cria uma figura assemelhada, aplicável a imóvel consistente em extensa área ocupada de forma ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, por considerável número de pessoas, que nela houverem realizado obras e serviços de interesse econômico e social relevante.

Mas o usucapião de que trata o art. 9Q do Estatuto da Cidade, mui­to embora corresponda ao que está previsto no art, 1.240 do Código Civil, tem seu fundamento no art. 183 da Constituição Federal, que já estipulava sua aplicação apenas a áreas urbanas de até 250m2, exigindo que o postulante à aquisição pelo uso ocupe tal área para sua moradia, ininterruptamente e sem oposição, pelo prazo de cinco anos. Registre- se que o Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10.7.2001) é anterior ao Código Civil (Lei 10.406, de 10.10.2002).

Cabe acrescentar que a lei, em seu art. 10, prevê a possibilidade de usucapião coletivo quando se tratar de áreas urbanas com mais de 250m2 ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, somando-se os tempos de ocupantes sucessivos.

O usucapião especial coletivo de tais áreas será instituído, sob a forma de condomínio indivisível, por sentença judicial, que servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis. A sentença de­verá atribuir igual fração ideal de terreno a cada possuidor, salvo hipóte­se de acordo escrito entre os condôminos estabelecendo frações ideais diferenciadas.

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LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS AO DIREITO DE CONSTRUIR 167

4.3.11 DIREITO DE SUPERFÍCIE

Atribui-se a denominação “direito de superfície” a uma forma de separação entre a nua-propriedade e o domínio útil, ou seja, a um meio pelo qual o proprietário pode manter sua propriedade e permitir, ao mesmo tempo, que outra pessoa a utilize, como se fosse proprietário.

O direito de superfície também é tratado pelo Código Civil, em seus arts. 1.369 a 1.377. Porém, conforme foi acima assinalado, o Es­tatuto da Cidade é anterior ao Código Civil, já tendo estipulado, em seu art. 21, a possibilidade de que o proprietário de imóvel urbano conceda a uma outra pessoa o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, a título gratuito ou oneroso, me­diante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis.

Na verdade, a disciplina dada pelo Estatuto da Cidade é muito parcimoniosa, obrigando a que se apliquem aos casos de atribuição do direito de superfície as disposições do Código Civil, que tratam de­talhadamente dessa matéria.

4.3.12 DIREITO DE PREEMPÇÃO

Preempção significa preferência, assunto também pertinente ao Direito Civil (Código Civil, art. 513 e ss.). Entretanto, a preempção de que tratam os art. 25 e 26 do Estatuto da Cidade tem peculiaridades decorrentes de sua concepção como instrumento de atuação urbanística.

Sua utilização depende de expressa previsão em lei municipal, ba­seada no Plano Diretor, que delimitará as áreas nas quais incidirá o direito de preempção e fixará prazo de sua vigência, não superior a cinco anos. Durante esse prazo, nessa área, o Poder Público Municipal terá preferência para aquisição de imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre particulares.

O direito de preempção não pode ser utilizado indiscriminada­mente, mas, sim, somente para determinadas finalidades relacionadas na lei federal - quais sejam: regularização fundiária; execução de pro­gramas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de re­serva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implantação de equipamentos urbanos e comunitários; criação de es­paços públicos de lazer e áreas verdes; criação de unidades de conser­vação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; e proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico. A lei munici- pai deverá especificar qual dessas utilizações pretende dar a cada área sujeita ao direito de preempção.

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4.3.13 OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR E DE ALTERAÇÃO DE USO

Este instrumento de atuação urbanística vinha sendo estudado pela doutrina, desde longa data, sob a denominação de “solo criado” .125 Tal expressão parte da idéia de que cada proprietário de uma determinada área, ao nela edifícar em vários andares, estaria criando solos novos, pelos quais deveria pagar uma determinada importância aos cofres pú­blicos, para compensar os encargos e custos extraordinários que a ver- ticalízação acarreta à prestação de serviços públicos.

A utilização da outorga onerosa do direito de construir depende da prévia estipulação, pela lei municipal, de um coeficiente básico de aproveitamento do terreno, ou seja, de quanto pode ser construído, gra­tuitamente, com relação à área do terreno. Coeficiente de aproveita­mento é a relação entre a área edifícável e a área do terreno. Esse coe­ficiente pode ser de uma vez a área do terreno ou mais (duas ou três vezes, p. ex.), cobrando-se apenas pelo excedente, vale dizer, pela área construída que exceder àquela permitida como coeficiente básico.

O art. 28 condiciona a utilização da outorga onerosa à previsão no Plano Diretor, que poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário. O Pla­no Diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana. A possibilidade de construir acima do coeficiente bá­sico não é ilimitada, pois o Plano Diretor deverá estabelecer os limites máximos de construção adicional, considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área.

Além da cobrança pelo solo criado, o art. 29 possibilita a cobran­ça pela alteração do uso do solo legalmente estabelecido para a área

125. Estudo pioneiro sobre o então chamado “solo criado” foi feito pelo Cen­tro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal - CEPAM (atualmente de­signado como Fundação Prefeito Faria Lima, entidade da Administração Estadual paulista), que, em dezembro/1976, reuniu os maiores especialistas em Direito Pú­blico e os mais consagrados urbanistas, os quais, após aprofundadas discussões, editaram um documento designado “Carta do Embu”. Esse documento foi publica­do pela Fundação Prefeito Faria Lima - CEPAM e está transcrito no excelente es­tudo sobre o solo criado feito pelo Prof. Eros Roberto Grau (atualmente Ministro do STF) em seu Direito Urbano, Ed. RT, 1983.

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onde se localiza o imóvel, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário, desde que isso esteja previsto pelo Plano Diretor.

4.3.14 TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR

A transferência do direito de construir foi inicialmente pensada como forma de compensar a perda de valor sofrida por um imóvel tom­bado. P. ex.3 uma casa de valor histórico ou arquitetônico situada numa área de alto valor, na qual poderiam ser construídos muitos andares, uma vez tombada acarreta prejuízo considerável ao proprietário. Esse prejuízo pode ser compensado se ele puder edifícar em outro terreno adjacente a quantidade de metros quadrados que corresponderia ao imóvel tombado. Exemplo disso é o que foi feito na Av. Paulista, em São Paulo, com a denominada “Casa das Rosas”, que foi preservada, tendo como contrapartida o aumento de andares na edificação feita no terreno remanescente.

A lei em exame foi mais abrangente, e em seu art. 35 afirma que lei municipal, condicionada à previsão no Plano Diretor, poderá auto­rizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de cons­truir previsto no Plano Diretor ou em legislação urbanística dele de­corrente quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de implantação de equipamentos urbanos e comunitários, preservação de imóvel considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural e servir a programas de regularização fundiária, ur­banização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social.

Essa mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar seu imóvel, ou parte dele, ao Poder Público, para as finalidades acima referidas.

4.3.15 OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS

Operação urbana consorciada é uma forma de parceria entre o Poder Público e particulares para a execução de grandes empreendi­mentos urbanos, seja para promover a renovação urbanística de uma área degradada, seja para melhorar o aproveitamento urbanístico de uma área estratégica, seja para implantar um plano de urbanização.

Nos termos do art. 32, entende-se por operação urbana consor­ciada “o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder

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170 DIREITO DE CONSTRUIR

Público Municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de al­cançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”.

Cada operação urbana consorciada deve estar prevista no Plano Diretor e deve ser disciplinada por lei específica, que poderá autorizar a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocu­pação do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerado o impacto ambiental delas decorrente, assim como a regu­larização de construções, reformas ou ampliações executadas em desa­cordo com a legislação vigente.

O art. 33 determina que lei específica deverá estabelecer um pla­no de operação urbana consorciada contendo, no mínimo: I - defini­ção da área a ser atingida; II - programa básico de ocupação da área; III - programa de atendimento econômico e social para a população di­retamente afetada pela operação; IV - finalidades da operação; V - estu­do prévio de impacto de vizinhança; VI - contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados; VII - for­ma de controle da operação, com a participação obrigatória de repre­sentantes da sociedade civil.

E importante ressaltar que os recursos obtidos pelo Poder Público Municipal com as outorgas onerosas decorrentes da alteração da legis­lação edilícia e de uso do solo deverão ser aplicados exclusivamente na própria operação urbana consorciada.

Exatamente em função desses recursos que deverão ser proporcio­nados pela operação consorciada é que o art. 34 estabelece que a lei específica poderá prever a emissão pelo Município de quantidade de­terminada de certificados de potencial adicional de construção, livre­mente negociados, mas conversíveis em direito de construir unicamente na área objeto da operação, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação.

4.3.16 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Regularização fundiária não corresponde a um determinado ins­trumento de atuação urbanística, mas compreende a utilização de uma pluralidade de iniciativas destinadas a promover a regularização de áreas ocupadas irregularmente, como, p. ex., nos loteamentos irregula­res ou clandestinos e nas invasões de terrenos públicos ou particulares,

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visando a conferir segurança jurídica aos adquirentes de boa-fé e obter padrões mínimos aceitáveis de urbanização.

São instrumentos típicos de regularização fundiária: a instituição de zonas especiais de interesse social, o usucapião especial de imóvel urbano, a concessão de uso especial para fins de moradia e até mesmo as operações urbanas consorciadas.

O direito à regularização fundiária tem seu fundamento na Cons­tituição Federal, que expressamente, em seu art. 6o, elenca entre os di­reitos sociais o direito à moradia.126

4.3.17 ASSISTÊNCIA TÉCNICA E JURÍDICA GRATUITA PARA AS COMUNIDADES E GRUPOS SOCIAIS MENOS FAVORECIDOS

A assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos visa a dar maior concreção à garan­tia prevista no art. 5a, LXXÍV, da Constituição Federal, que determina ao Poder Público em geral o dever de prestar assistência jurídica inte­gral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

O que se tem no Estatuto da Cidade é uma reafirmação dessa mes­ma garantia, voltada mais diretamente para questões inerentes ao uso conveniente dos espaços habitáveis. Não se trata de privilégio, mas, sim, da correta aplicação do princípio constitucional da isonomia, pelo tratamento desigual aos desiguais.

4.3.18 REFERENDO POPULAR E PLEBISCITO

O referendo e o plebiscito são instrumentos de gestão democráti­ca e de realização do princípio participativo, também afirmado pela Constituição Federal. A diferença fundamental entre um e outro é que o plebiscito identifica uma consulta popular prévia, direta, antes de se tomar uma decisão, de alcance bastante amplo, no âmbito do Legislati­vo ou do Executivo, ao passo que o referendo identifica a coleta de opinião a respeito da aprovação ou reprovação de alguma decisão an­

126. Adilson Abreu Dallari, em artigo publicado na Revista da Procuradoria- Geral do Estado do Rio Grande do Sul 15/41, de 1985, sob o título “Direito à habitação”, sustenta que esse direito já estava implícito na Constituição antes mesmo de ser expressamente afirmado. Nélson Saule Jr. faz um exaustivo estudo da prote­ção constitucional do direito à moradia em seu A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares (Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004).

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172 DIREITO DE CONSTRUIR

teriormente adotada pelos órgãos governamentais. Ambos os instru­mentos estão disciplinados pela Lei 9.709, de 18.11.1998.

Curiosamente, porém, em razão de o plebiscito e o referendo já estarem previstos na lei federal acima referida, essa duas formas, que originalmente constavam da relação de instrumentos de gestão demo­crática dos assuntos urbanos, feita no art. 43, foram vetadas, e o texto em vigor acabou se referindo apenas a órgãos colegiados de política urbana, debates, audiências e consultas públicas, conferências sobre assuntos de interesse urbano e iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

4.3.19 CONSÓRCIO IMOBILIÁRIO

Não obstante o consórcio imobiliário seja, sem dúvida alguma, importante instrumento jurídico de atuação urbanística, ele não consta da relação feita pelo art. 4Ü do Estatuto da Cidade.

Aparece apenas no art. 46, cujo § Ia apresenta a seguinte concei- tuação: “Considera-se consórcio imobiliário a forma de viabilização de planos de urbanização ou edificação por meio da qual o proprietário transfere ao Poder Público Municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamen­te urbanizadas ou edificadas”.

Esse instrumento pode ser criado por lei municipal quando o Pla­no Diretor indicar áreas de parcelamento, edificação ou utilização com­pulsórios, ficando facultada aos proprietários dos imóveis atingidos a sua utilização.

4.4 INSTRUMENTOS AMBIENTAIS

O inciso VI do art. 4Q refere-se a dois estudos destinados a assegu­rar a preservação do ambiente urbano: o estudo prévio de impacto am­biental (EIA) e o estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV). O primeiro já é previsto desde longa data na legislação ambiental, e o segundo foi introduzido pela Lei 10.257, de 10.7.2001.

O estudo de impacto de vizinhança é um estudo de impacto am­biental especificamente voltado para o ambiente urbano. Sua exigibili­dade, seu conteúdo e sua forma de execução vão depender do que vier a ser previsto na legislação municipal.

O art. 37 determina que, quando for exigido, ele deverá contem­plar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade

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LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS AO DIREITO DE CONSTRUIR 173

quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas pro­ximidades, e deverá enfocar, no mínimo, os seguintes aspectos: aden­samento populacional; equipamentos urbanos e comunitários; uso e ocupação do solo; valorização imobiliária; geração de tráfego e deman­da por transporte público; ventilação e iluminação; e paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.

4.5 DIRETRIZES

Para que fique assegurada certa coerência nas ações a serem empre­endidas, a utilização de todos esses instrumentos vai depender da lei mu­nicipal e do Plano Diretor. Além disso, o conjunto das ações urbanísti­cas deve observar as diretrizes fixadas no art. 2a do Estatuto da Cidade.

Não cabe reproduzir aqui a longa enumeração constante desse ar­tigo, bastando, exemplificativamente, mencionar algumas de maior re­levância: garantia do direito a cidades sustentáveis - entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-es- trutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; planejamento do desenvol­vimento das cidades, da distribuição espacial da população e das ativi­dades econômicas do Município e do território sob sua área de influên­cia, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbani­zação; recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos; e simplificação da legisla­ção de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais.

Além desses objetivos desejáveis, o art. 2Q da Lei 10.257/2001 também contém um rol de situações a serem evitadas, tais como: a uti­lização inadequada dos imóveis urbanos; a proximidade de usos incom­patíveis ou inconvenientes; o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego sem a previsão da infra-estrutura cor­respondente; a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não-utilização; a deterioração das áreas urbaniza­das; e a poluição e a degradação ambiental.

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Capítulo 5

SERVIDÕES ADMINISTRATIVAS E DESAPROPRIAÇÃO

1. SERVIDÕES ADMINISTRATIVAS: 1.1 Conceito; 1.2 Instituição; 1.3 Indenização. 2. DESAPROPRIAÇÃO: 2.1 Conceito; 2.2 Características; 2.3 Requisitos constitucionais; 2.4 Normas básicas; 2.5 Casos de desa­propriação; 2.6 Declaração expropriatória; 2.7 Processo expropriatória; 2.8 Indenização; 2.9 Pagamento da indenização; 2.10 Desvio de finalida­de; 2.11 Retrocessão; 2.12 Anulação da desapropriação; 2.13 Desistên­cia da desapropriação; 2.14 Desapropriação sancionatória.

Examinadas no capítulo anterior as limitações administrativas, com especial destaque para as de caráter urbanístico, convém, agora, se aprecie as servidões administrativas e, a seguir, a desapropriação, como formas de intervenção na propriedade e instrumentos propicía- dores de obras públicas. Desde já fixemos as distinções entre esses três institutos: as limitações administrativas são imposições gerais e gra­tuitas condicionadoras do uso da propriedade; as servidões adminis­trativas são ônus reais impostos à propriedade para a execução de ser­viços públicos, mediante indenização dos prejuízos ocasionados ao par­ticular; a desapropriação é o despojamento compulsório da proprieda­de com integral pagamento do bem e de suas utilidades.

1. SERVID Õ ES AD M IN ISTR ATIVAS

11 CONCEITO

Servidão administrativa ou pública é ônus real de uso, imposto pela Administração à propriedade particular, a fim de assegurar a rea­lização e manutenção de obras e serviços públicos ou de utilidade pú­blica, mediante indenização dos prejuízos efetivamente suportados pelo proprietário.

Na exata definição de Rafael Bielsa, é “un derecho público real, constituído por una entidad pública sobre un bien privado, con el obje­

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SERVIDÕES ADMINISTRATIVAS E DESAPROPRIAÇÃO 175

to de que éste sirva al uso público, como una extensión o dependencia dei dominio público”.1

Tais servidões são comumente estabelecidas para a passagem de cabos condutores de energia elétrica e de redes de informática e televi­são, fios telegráficos e telefônicos, aquedutos, gasodutos e oleodutos, pela propriedade particular, mas com finalidade ou interesse público. Nessas hipóteses não é necessária a desapropriação, porque o Poder Público ou seus delegados não têm necessidade da terra, bastando-lhes o poder de passagem, assegurado pela servidão sobre a faixa serviente, o que dispensa a indenização do solo, desde que se componham os da­nos causados pela instalação e conservação dos equipamentos públi­cos. Se, porém, a servidão administrativa depreciar a propriedade par­ticular, ou torná-la imprópria à sua destinação, é de rigor a indenização do prédio serviente, até o limite de sua efetiva desvalorização.2

A instituição de servidão para passagem de cabos e tubulações está expressamente prevista no art. 1.286 do Código Civil.

1.2 INSTITUIÇÃO

A instituição da servidão administrativa ou pública pode ser feita por ato do Poder Público (lei ou decreto), ou por convenção entre a Administração e o particular, em que se identifique e delimite a área serviente e se declare a utilidade pública e as condições de utilização da propriedade privada.

A forma legal para a declaração da servidão administrativa e o processo judicial para se fixar a justa indenização devem obedecer, no que lhes for aplicável, ao previsto para a desapropriação, ex vi do art. 40 do Decreto-lei 3.365, de 21.6.1941, que admite a sua instituição “mediante indenização na forma desta lei”.

Para as servidões públicas de aqueduto, bem como para a realiza­ção de obras hidráulicas, transporte e distribuição de energia elétrica, o Código de Águas (Decreto 24.643, de 19.7.1934) disciplina a sua ins­tituição e processo respectivo, criando uma ação especialíssima (arts.

1. Restricciones y Servidumbres Administrativas, 1923, p. 108. V., na doutri­na pátria: José Martins Rodrigues, “Servidões administrativas e desapropriação”, RDA 31/23; Evaristo Silveira Júnior, “Servidões administrativas”, R T 293/26; Heiy Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 30a ed., Malheiros Editores, 2005, cap. IX, n. 2.

2. TASP, RDA 43/264, tf 7205/401, 235/408,297/548; TJMG, RDA 155/633.

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117 a 138 e 151 a 154), que comentamos, adiante, em tópico à parte (cap. 9, item 1.8).

Para a instalação de linhas de transmissão de energia elétrica o Decreto 35.851/1954 dispõe especificamente sobre a instituição de ser­vidão pública ou administrativa para tais serviços.

Para a instalação de linhas e equipamentos de telecomunicações, a Lei federal 9.472, de 16.7.1997, conhecida como Lei Geral de Tele­comunicações, prevê, expressamente, a instituição de servidões (art. 100), cabendo aos concessionários o pagamento das correspondentes indenizações. A localização dos dutos e instalações de telecomunica­ções nas áreas urbanas deverá observar a legislação municipal (art. 74); e, para evitar a deterioração do espaço urbano, essa lei determina o compartilhamento de postes, dutos e servidões entre as diversas pres­tadoras de serviços.

Outras servidões administrativas podem ser instituídas em benefí­cio de quaisquer serviços públicos, como, também, para a exploração das riquezas naturais, na conformidade do Código de Mineração (De­creto-lei 227, de 28.2.1967, alterado pelos Decretos-leis 318, de 14.3.1967, e 330, de 13.9.1967, e pelas Leis 6.403, de 15.12.1976, 6.567, de 24.9.1978, 7.085, de 21.12.1982, 7.805, de 18.7.1989, 7.886, de 20.11.1989, 8.901, de 30.6.1994, e 9.314, de 14.11.1996) e da Lei 6.340, de 5.7.1976, que dispõe sobre a mineração em áreas de pesqui­sa e lavra de petróleo.

Cumpre, pois, distinguir a servidão administrativa da limitação administi'ativa. Aquela é ônus público real imposto a prédios determi­nados, com finalidade específica para os serviços públicos - publica utilitatis; esta (a limitação administrativa) é imposição pessoal a pro­prietários indeterminados, com finalidade genérica de bem-estar cole­tivo da comunidade em geral - uti universi. Ambas restringem o uso da propriedade particular e coartam o direito de construir, mas o fazem em nome de interesses distintos e com atuação diversa sobre os bens privados, pelo quê a limitação administrativa é gratuita, e a servidão administrativa é indenizável.

1.3 INDENIZAÇÃO

A indenização da servidão administrativa abrange unicamente os efetivos prejuízos ocasionados à propriedade serviente com o serviço público nela realizado e sua manutenção. Não se indeniza o imóvel,

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que continua no domínio e posse do particular, mas tão-somente os da­nos a ele causados com a implantação do serviço público a que se des­tinou a servidão. Se a servidão não causou prejuízo econômico à pro­priedade particular, o Poder Público nada terá que indenizar.

Quando devida a indenização, será objeto de avaliação judicial3 ou composição amigável, como se procede nas desapropriações (De­creto-lei 3.365/1941, art. 40), levando-se em consideração o prejuízo real suportado pela propriedade serviente, inclusive a desvalorização acarretada ao imóvel em face de sua normal destinação econômica ou de suas finalidades recreativas. A quantificação dos prejuízos, portan­to, só pode ser feita em cada caso, tendo-se em vista a modalidade e os ônus da servidão, bem como as peculiaridades do imóvel e as limita­ções impostas à sua normal utilização. Se a servidão impedir total ou substancialmente a exploração da propriedade e o direito de construir, o caso será de desapropriação, pois o ônus de uma servidão não pode chegar ao extremo de interditar a fruição do bem serviente.

Não há fundamento algum para o estabelecimento de um percen­tual fixo sobre o valor do bem serviente. A indenização, quando devi­da, deve corresponder ao efetivo prejuízo causado ao imóvel, segundo sua normal destinação. Se a servidão não prejudica a utilização do bem, nada há que indenizar; se prejudica, o pagamento deverá cobrir o real prejuízo, chegando, mesmo, a transformar-se em desapropriação, com indenização total da propriedade, se a inutilizou para sua exploração econômica normal.

2. DESAPROPRIAÇÃO

Já assinalamos no início deste capítulo que a desapropriação é mais que limitação administrativa e que servidão administrativa, pois importa transferência compulsória da propriedade particular ao Poder Público ou a seus delegados. Mas mesmo assim incluímos aqui o seu estudo, por se tratar de um eficiente instrumento de urbanização e de realização de obras públicas, que precede à sua execução e interfere fundamente na propriedade privada.

No Código Civil, em seu art. 1.275, V, a desapropriação figura como uma das formas de extinção da propriedade.

3. Luiz Augusto Seabra da Costa, “A avaliação de servidões”, RT 494/248; TJSP, 616/86.

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2.1 CONCEITO

Desapropriação ou expropriação4 é a transferência compulsória da propriedade particular (ou pública de entidade de grau inferior para a superior) para o Poder Público ou seus delegados, por utilidade ou necessidade pública, ou ainda por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, salvo a exceção constitucional de paga­mento em títulos da dívida agrária para o caso da propriedade rural que não esteja cumprindo sua função social (art. 184). A Lei Maior estabeleceu, ainda, duas outras exceções: não há indenização nas desa­propriações de glebas em que se cultivem culturas ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243), e a chamada desapropriação-sanção, que au­toriza o pagamento em títulos da dívida pública, para os imóveis urba­nos ociosos (art. 182, § 4°, III), conforme explicitado mais adiante, no final deste capítulo.

Com essa conceituação, a desapropriação é o moderno e eficaz instrumento de que se vale o Estado para remover obstáculos à execu­ção de obras e serviços públicos; para propiciar a implantação de pla­nos de urbanização; para preservar o meio ambiente contra devasta­ções e poluições; e para realizar a justiça social, com a distribuição de bens inadequadamente utilizados pela iniciativa privada. A desapropria­ção é, assim, a forma conciliadora entre a garantia da propriedade indi­

4. No Direito estrangeiro, consultem-se: Pasquale Carugno, L ’Expropriazioni per Pubblica Utilità, Milão, 1950; G. Baudry, L ’Expropriationpour Cause d'Uíüiíè Publique, Paris, 1953; Robert Wilkin, La Expropiación Forzosapor Razón de Ur­banismo, Madri, 1965; José Canasi, Tratado Teórico-Práctico de la Expropiación Pública, Buenos Aires, 1967; Walter Villegas, Régimen Jurídico de la Expropiación, Buenos Aires, 1973.

Sobre desapropriação no Direito pátrio, v.: Solidônio Leite, Desapropriação por Utilidade Pública, Rio, 1921; Eurico Sodré, A Desapropriação, São Paulo, 1928; F. Whitaker, Desapropriação, São Paulo, 1941; Oliveira Cruz, Da Desapro­

priação, Rio, 1943; Ildefonso Mascarenhas da Silva, Desapropriação p o r Necessi­dade e Utilidade Públicas, Rio, 1947; Sílvio Pereira, O Poder de Desapropriar, Rio, 1948; Seabra Fagundes, Da Desapropriação no Direito Brasileiro, Rio, 1949; Sérgio Ferraz, Desapropriação - Indicação de Doutrina e de Jurisprudência, Rio, 1970; José Cretella Júnior, Comentários às Leis de Desapropriação, São Paulo, 1972; Vicente Sabino Júnior, Da Desapropriação, São Paulo, 1972; Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, Desapropriação, São Paulo, 1973; Alcebíades da Silva Minhoto Júnior, Da Desapropriação Imobiliária, Saraiva, 1978; José Cretella Jú­nior, Tratado Geral da Desapropriação, Forense, 1980; Antônio de Pádua Ferraz Nogueira, Desapropriação e Urbanismo, Ed. RT, 1981; José Carlos de Moraes Sal- les, A Desapropriação à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, Ed. RT, 1981; Adil­son Abreu Dallari, Desapropriações para Fins Urbanísticos, Forense, 1981.

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vidual e a função social dessa mesma propriedade, que exige usos com­patíveis com o bem-estar da coletividade.

2.2 CARACTERÍSTICAS

As características da desapropriação, no plano teórico e prático, são muitas e diversificadas, pelo quê só nos ateremos às mais relevan­tes para a Administração e para os administrados.

A desapropriação é forma originária de aquisição da proprieda­de,3 porque não provém de nenhum título anterior, e, por isso, o bem expropriado toma-se insuscetível de reivindicação e libera-se de qual­quer ônus que sobre ele incidisse precedentemente, ficando os eventuais credores sub-rogados no preço.

A desapropriação é um procedimento administrativo que se reali­za em duas fases: a primeira, de natureza declaratória, consubstancia­da na indicação da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social; a segunda, de caráter executòrio, compreendendo a estimativa da justa indenização e a transferência do bem expropriado para o do­mínio do expropriante. É um procedimento administrativo (e não um ato), porque se efetiva através de uma sucessão ordenada de atos inter­mediários (declaração de utilidade, avaliação, indenização), visando à obtenção de um ato final, que é a adjudicação do bem ao Poder Pú­blico, ou ao seu delegado beneficiário da expropriação.

Toda desapropriação deve ser precedida de declaração expropria- tória regular, na qual se indique o bem a ser desapropriado e se especi­fique a sua destinação pública ou de interesse social. Não há, nem pode haver, desapropriação de fa to , ou indireta.^

A desapropriação indireta não passa de esbulho da propriedade particular, e, como tal, não encontra apoio em lei. E situação de fato, que se vai generalizando em nossos dias, mas que a ela pode opor-se o proprietário até mesmo com os interditos possessórios. Consumado o apossamento dos bens e integrados no domínio público, tomam-se, daí por diante, insuscetíveis de reintegração ou reivindicação, restando ao particular espoliado haver a indenização correspondente, da maneira mais completa possível, inclusive correção monetária, juros moratórios, compensatórios a contar do esbulho, e honorários de advogado, por se

5. A ação de desapropriação atinge a posse e, com ela, todas as ações de di­reito material versando sobre a mesma área (1Q TACivSP, RT 621/121).

6. STF, RDA 169/166; TJPR, RT 675/166.

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tratar de ato caracteristicamente ilícito da Administração. Convém dis­tinguir, todavia, os casos de apossamento sem declaração de utilidade pública dos regularmente decretados, mas em que, por tolerância do particular, fica retardada a indenização, a despeito de utilizado o bem pelo expropriante. No primeiro caso há esbulho manifesto; no segundo não se configura ato ilícito da Administração, mas simples irregulari­dade no processo expropriatório, sem acarretar as conseqüências da ili- citude civil, embora devida a indenização.

Todos os bens e direitos patrimoniais prestam-se a desapropria­ção, inclusive ações ou cotas de sociedade, assim como o espaço aéreo e o subsolo. Excluem-se desse despojamento compulsório os direitos personalíssimos, indestacáveis do indivíduo ou irretiráveis de sua con­dição cívica. Também não se desapropria a moeda corrente do País, porque ela constitui o próprio meio de pagamento da indenização, mas podem ser expropriadas moedas raras, nacionais ou estrangeiras. Como se vê, as restrições à desapropriação constituem exceção à regra da li­berdade expropriatória.

Os bens públicos são passíveis de desapropriação pelas entidades estatais superiores, desde que haja autorização legislativa para o ato expropriatório e se observe a hierarquia política entre estas entidades. Admite-se, assim, a expropriação na ordem descendente, sendo veda­da a ascendente, razão pela qual a União pode desapropriar bens de qualquer entidade estatal; os Estados-membros e Territórios podem expropriar os de seus Municípios; os Municípios não podem desa­propriar os de nenhuma outra entidade política.

Os bens de autarquias, entidades paraestatais, concessionários e demais delegados do serviço público são expropriáveis, independente­mente de autorização legislativa. Mas entendemos que a desapropriação de bens vinculados a serviço público, pelo princípio da continuidade do próprio serviço, dependerá sempre de autorização da entidade su­perior que os instituiu e delegou, porque, sem essa condição, a ativida­de dos entes maiores seria tolhida, e até mesmo suprimida, pelos me­nores, por via expropriatória. Bem por isso, o Decreto-lei 856, de11.9.1969, acrescentou ao art. 3Ü da Lei Geral das Desapropriações (Decreto-lei 3.365/1941) o § 3Ü, vedando a expropriação, pelas entida­des menores, de ações, cotas e direitos de instituições ou empresas que funcionem com autorização e sob fiscalização do Governo Federal, sal­vo com aquiescência do Presidente da República. Esse diploma am­plia, aliás, restrição já estabelecida pelo Decreto-lei 7.062, de 22.1.1944, para os “bens e instalações” das empresas de energia elétri­

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ca, sujeitos a idêntica autorização presidencial para se tomarem passí­veis de desapropriação pelos Estados-membros e Municípios (art. 2a).

As áreas de jazidas com autorização, concessão ou licenciamento de pesquisa ou lavra não podem ser desapropriadas pelas entidades me­nores, para dar-lhes outra destinação, sem prévia e expressa concor­dância da União, porque isto importaria suprimir a atividade minerária, cuja ordenação é da exclusiva competência federal, e, por outro lado, o Código de Mineração (Decreto-lei 227/1967) proíbe que se impeça por ação judicial “o prosseguimento da pesquisa ou lavra” (art. 87).

Por isso sustentamos, em estudo anterior, que a desapropriação de jazida ou da área que a envolve, pelo Estado-membro, para dar-lhe ou­tra destinação, importaria impedir a exploração concedida pela União. Estaria, assim, o Governo estadual cassando, por via oblíqua, o ato de concessão de lavra expedido pelo Governo Federal, numa inversão ina­ceitável da hierarquia federativa.7

Os destinatários dos bens expropriados são, em princípio, o Po­der Público e seus delegados, como detentores do interesse público jus- tifícador da desapropriação. Mas casos há em que os bens desapropria­dos podem ser traspassados a particulares, por ter sido essa, precisa­mente, a finalidade expropriatória, como ocorre na desapropriação por zona, na desapropriação para urbanização e nas desapropria­ções por interesse social em que se visa à distribuição da propriedade com o adequado condicionamento para melhor desempenho de sua fun­ção social, erigida em princípio constitucional propulsor da ordem eco­nômica, do desenvolvimento nacional e da justiça social (art. 170, III).

A desapropriação por zona está autorizada pelo Decreto-lei 3.365/1941 (art. 4Ü) e consiste na ampliação da expropriação às áreas que se valorizem extraordinariamente em conseqüência da realização da obra ou do serviço público. Estas áreas ou zonas excedentes e desne­cessárias ao Poder Público podem ser vendidas a terceiros, para obten­ção de recursos financeiros. A desapropriação por zona é um sucedâneo da contribuição de melhoria.8 Para essa modalidade de expropriação, a declaração de utilidade pública deverá indicar expressamente qual a área necessária às obras ou serviços a realizar e qual a zona excedente a ser abrangida pela desapropriação, para futura alienação.

7. Hely Lopes Meirelles, “Jazida e concessão de lavra”, RDA 109/283 e RDP 18/94.

8. Geraldo Ataliba, Natureza Jurídica da Contribuição de Melhoria, São Pau­lo, 1964, pp. 180 e ss.

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A desapropriação para urbanização ou reurbanização9 está pre­vista no art. 5fl, “i”, do Decreto-lei 3.365/1941 (redação dada pela Lei 6.602/1978) e pelo art. 44 da Lei 6.766/1979, que permitem ao Poder Público, especialmente ao Município, decretá-la e promovê-la para a correta implantação de novos núcleos urbanos, ou para fins de zonea­mento ou renovação de bairros envelhecidos e obsoletos, que estejam a exigir remanejamento de áreas livres, remoção de indústrias, modifi­cação do traçado viário e demais obras públicas ou edificações que dêem ao bairro a funcionalidade compatível com a sua nova destina­ção no complexo da cidade. A desapropriação, em tais casos, tem como utilidade pública a própria urbanização ou a reurbanização, e, uma vez realizada na conformidade dos planos urbanísticos correspondentes, permite a alienação das áreas e edificações excedentes das necessida­des públicas a particulares, dando-se preferência aos desapropriados. Neste sentido firmou-se a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo,10 diante de repetidas impugnações à reorganização de bairros envelhecidos e inadequados para suportar a movimentação de usuários do Metrô paulistano.

Outra hipótese de permissibilidade de alienação de áreas desapro­priadas ocorre nas expropriações para formação de núcleos ou distri­

9. Para maiores esclarecimentos, v. nosso artigo “Desapropriação para urba­nização”., 116/1.

10. O TJSP (RT 459/59, 461/55 e 464/69) acolheu a tese, por nós sustentada, de que, tratando-se de desapropriação para reurbanização, são alienáveis as áreas e edificações que se tomam excedentes e desnecessárias à expropriante, após a exe­cução do plano urbanístico (cf. nosso parecer, na publicação da Empresa Munici­pal de Urbanização - EMURB, intitulada A Reurbanização de Santana e Jabaqua- ra, São Paulo, 1973, pp. 27 e ss. Posteriormente, desenvolvemos a mesma tese, já agora com base nos julgados acima citados, no artigo “Desapropriação para urba­nização”, RDA 116/1). Os julgados do TJSP foram confirmados pelo STF nos RE 82.300, 85.869 e 87.009, publicados respectivamente nas RTJ 86/155, 90/217 e 90/917.

Em conseqüência desses julgados, e diante de solicitação da EMURB, a Cor- regedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo expediu o Provimento 1/1974, autorizando os Registros Imobiliários a inscreverem as ações expropriatórias em nome do expropriante, desde que imitido provisoriamente na posse do imóvel, e, subseqüentemente, os instrumentos de cessão ou promessa de cessão de direitos relativos a essas ações a terceiros, para todos os fins da edificação em condomínio. Com essa providência, a entidade beneficiária das desapropriações, após a urbani­zação ou reurbanização do bairro, pode alienar a terceiros as áreas ou edificações excedentes das necessidades urbanísticas, na forma da respectiva legislação. Esse tema foi tratado com profundidade por Adilson Abreu Dallari, Desapropriação para Fins Urbanísticos, Rio de Janeiro, Forense, 1981.

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tos industriais, desde que a Administração expropriante planeje a área e promova a urbanização necessária à sua destinação. Nem seria viável a implantação de qualquer núcleo industrial, em área desapropriada para esse fim, se não se reconhecesse ao Poder Público a possibilidade de alienação de lotes aos empresários que satisfaçam as exigências da Administração expropriante. O que se nega é a legitimidade de desa­propriações de áreas individualizadas e a subseqüente transferência a interessados certos para eventual instalação de indústrias, sem qualquer planejamento e urbanização do local para zona industrial, como já de­monstramos em estudo anterior.11

A desapropriação por interesse social é aquela que se decreta para promover ajusta distribuição da propriedade, ou condicionar o seu uso ao bem-estar social (Lei 4.132/1962, art. lü). A primeira hipótese é pri­vativa da União e específica da reforma agrária; a segunda é permitida a todas as entidades constitucionais - União, Estados-membros, Muni­cípios, Distrito Federal e Territórios que têm a incumbência de ade­quar o uso da propriedade em geral às exigências da coletividade. Por­tanto, nos limites de sua competência, cada entidade estatal pode de­sapropriar por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, desde que o objeto da expropriação e a sua destinação se contenham na alçada da Administração expropriante.

Interesse social não é interesse da Administração, mas sim da co­letividade administrada. Daí por que os bens expropriados por interes­se social, na maioria das vezes, o são para traspasse aos particulares que lhes possam dar melhor aproveitamento ou utilização em prol da comunidade. Atento a essa realidade, o Supremo Tribunal Federal de­cidiu, inicialmente, que as desapropriações, pelos Municípios, para for­mação de distrito industrial deviam ser decretadas por interesse social mas, posteriormente, modificou o seu entendimento, admitindo que tais desapropriações também possam embasar-se na utilidade pública para urbanização, nos termos da letra “i” do art. 5Q do Decreto-lei 3.365/ 1941, e que as áreas expropriadas podem ser alienadas às indústrias interessadas.12 Esta é a orientação correta, como sempre sustentamos em estudos anteriores.

Im portante m odificação foi introduzida pela Lei 9.785, de 29.1.1999, ao inserir novo parágrafo no art. 5a d o Decreto-lei 3.365/ 1941: “§ 3Q. Ao imóvel desapropriado para implantação de parcelamen­

11. Nosso parecer in R T 499/37, acolhido pelo TJSP na mesma RT 499/97.12. STF, RTJ 90/265, 92/422, 93/683, 97/808, 99/865, 100/1.116.

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to popular, destinado às classes de menor renda, não se dará outra utili­zação nem haverá retrocessão”. A mesma lei trocou a expressão “lotea­mento” por “parcelamento”, no inciso “i” do citado art. 5C , por ser mais ampla. Tais alterações tiveram por objetivo facilitar a desapropria­ção de áreas urbanas, ou de expansão urbana, para a implantação de conjuntos habitacionais de natureza popular, visto que também efetuou importantes modificações na Lei 6.766/1979, para facilitar a atuação das autoridades administrativas na execução de seus programas habitacio­nais, como vimos ao cuidar dos “loteamentos”, no capítulo anterior.

Na verdade, a desapropriação para a implantação de conjuntos ha­bitacionais deveria ser efetuada por interesse social. Ocorre que a lei que regula esta modalidade de expropriação é mais complexa, além de limitar o prazo para a sua efetivação a dois anos, quando a Lei Geral estabelece cinco. Daí por que se optou pela aplicação do Decreto-lei 3.365/1941, com as adaptações necessárias. Este é mais um caso em que se admite a venda do imóvel desapropriado a terceiros ~ os destina­tários das casas ou terrenos populares, uma vez que todo o empreendi­mento teve essa finalidade.

A desapropriação para reforma agrária, privativa da União, é rea­lizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - IN- CRA, só podendo atingir, nos termos constitucionais, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, sendo insuscetíveis de de­sapropriação para fins de reforma agrária a propriedade produtiva e a pequena e média propriedade rural, assim definidas em lei (Lei 8.629, de 25.2.1993), desde que seu proprietário não possua outra (Constitui­ção Federal, arts. 184 e 185). O ato expropriatório é da competência do Presidente da República, mediante decreto, e a fixação da indeniza­ção se faz segundo os critérios estabelecidos na Lei 8.629/1993 e na Lei Complementar 76, de 6.7.1993, que dispõe inclusive sobre o rito sumário aplicável a essa modalidade expropriatória.

A finalidade pública, ou o interesse social, é, pois, exigência cons­titucional para legitimar a desapropriação. Não pode haver expropria­ção por interesse privado de pessoa física ou organização particular.13 O interesse há de ser do Poder Público ou da coletividade: quando o interesse for do Poder Público, o fundamento da desapropriação será necessidade ou utilidade pública; quando for da coletividade, será in­teresse social. Daí resulta que os bens expropriados por utilidade ou

13. STF, RTJ 3/784, 53/43, 57/53; RDA 55/195, 77/238; RT 607/216, 615/ 207, 621/290.

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necessidade pública são destinados à Administração expropriante ou a seus delegados, ao passo que os desapropriados por interesse social normalmente se destinam a particulares que irão explorá-los segundo as exigências da coletividade, embora em atividade da iniciativa priva­da, ou usá-los na solução de problemas sociais de habitação, trabalho e outros mais.

2.3 REQUISITOS CONSTITUCIONAIS

Os requisitos constitucionais exigidos para a desapropriação resu­mem-se na ocorrência de necessidade ou utilidade pública, ou de inte­resse social, e no pagamento de justa e prévia indenização em dinhei­ro, ou em títulos especiais da dívida pública, se se tratar de imóvel que não esteja cumprindo sua função social (Constituição Federal, arts. 5a, XXIV, 182, §4°, III, e 184).

No entender de Seabra Fagundes, os três fundamentos para a de­sapropriação condensam-se no conceito unitário de utilidade pública, “que é em si tão amplo, que a menção apenas dessa causa bastaria a autorizar a incorporação ao patrimônio estatal da propriedade privada tanto quando fosse útil fazê-lo, como quando tal se afigurasse necessá­rio ou de interesse so c ia r .14

Percebe-se, todavia, que o legislador constitucional tripartiu os motivos ensejados da desapropriação, para indicar discriminadamente a natureza e o grau dos interesses a serem atendidos pela Administra­ção em cada ato expropriatório.

A necessidade pública surge quando a Administração defronta si­tuações de emergência, que, para serem resolvidas satisfatoriamente, exigem a transferência urgente de bens de terceiro para seu domínio e uso imediato.

A utilidade pública apresenta-se quando a transferência de bens de terceiros para a Administração é conveniente, embora não seja im­prescindível. A Lei Geral das Desapropriações (Decreto-lei 3.365/ 1941) consubstanciou as duas hipóteses em utilidade pública, pois só emprega essa expressão em seu texto.

14. “A desapropriação no Direito Constitucional brasileiro”, RDA 14/1. V. também acórdão do STF in R T 622/206, em que o tema é exaustivamente debatido, relatado pelo eminente Min. Carlos Madeira, e, ainda, decisão do egrégio TJSP in RT 611/34.

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O interesse social ocorre quando as circunstâncias impõem a dis­tribuição ou o condicionamento da propriedade para seu melhor apro­veitamento, utilização ou produtividade em beneficio da coletividade, ou de categorias sociais merecedoras de amparo específico do Poder Público. Esse interesse social justificativo de desapropriação está indi­cado na norma própria (Lei 4.132/1962) e em dispositivos esparsos de outros diplomas legais. O que convém assinalar, desde logo, é que os bens desapropriados por interesse social não se destinam à Adminis­tração ou a seus delegados, mas sim à coletividade ou, mesmo, a certos beneficiários que a lei credencia para recebê-los e utilizá-los convenien­temente.

A justa e prévia indenização, que é o último requisito constitucio­nal para a desapropriação, será apreciada adiante, em tópico especial.

2.4 NORMAS BÁSICAS

As normas básicas da desapropriação acham-se expressas no De- creto-lei 3.365, de 21.6.1941, complementado pela legislação subse­qüente.13

Esse decreto-lei, após esclarecer que todas as entidades constitu­cionais — União, Estados-membros, Municípios, Distrito Federal e Ter­ritórios Federais - podem desapropriar em seu próprio benefício (art. 2% permite que também o façam em favor de suas autarquias, entidades paraestatais e concessionários de serviços públicos, os quais, depois de decretada a expropriação pelo Poder Público, podem promovê-la em

15. Lei 2.786, de 8.12.1960 - Altera a Lei sobre Desapropriações (Decreto- lei 3.365/1941); Lei 4.132, de 10.9.1962 — Define os casos de desapropriação por interesse social; Lei 4.504, de 30.11.1964 (Estatuto da Terra), arts. 18 a 24, e De- creto-lei 554, de 25.4.1969 - Dispõem sobre desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária; Leis 4.519, de 2.12.1964, e 4.593, de 29.12.1964 - Disci­plinam as desapropriações para as obras de combate às secas do Nordeste; Lei 4.686, de 21.6.1965 - Institui a correção monetária no pagamento das desapropria­ções; Lei 1.075, de 22.1.1974 ~ Regula a imissão de posse, initio litis, em imóveis residenciais urbanos; Lei 6.071, de 3.7.1974, art. 10 - Adapta o art. 28, § Ia, do Decreto-lei 3.365/1941 ao novo Código de Processo Civil; Lei 6.306, de 15.12.1975- Altera o § 2a do art. 26 do Decreto-lei 3.365/1941; Lei 6.602, de 7.12.1978 - Altera a redação da alínea “i” do art. 52 do Decreto-lei 3.365/1941 e acrescenta §§ ao mesmo artigo; Lei 9.785, de 29.1.1999 - Altera os arts. 5o e 167 do Decreto-lei 3.365/1941. V., também, Lei 8.257, de 26.11.1991, e Decreto 577, de 24.6.1992, que dispõem sobre a desapropriação de glebas nas quais se localizem culturas ile­gais de plantas psicotrópicas.

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seu nome, desde que estejam, para isso, expressamente autorizados por lei ou contrato (art. 3Ü).16 Por idêntica razão, entendemos que as enti­dades estatais maiores podem decretar a expropriação para que as me­nores a promovam em seu próprio nome, empregando os bens expro- priados em obras e serviços de seu peculiar interesse, ou dando-lhes destinação social.

Além do Decreto-lei 3.365/1941, que constitui a Lei Geral das De­sapropriações, merecem destaque a Lei 4.132/1962, que dispõe sobre desapropriação por interesse sociai, a Lei 8.629, de 25.2.1993, e a Lei Complementar 76, de 6.7.1993, alterada pela Lei Complementar 88, de 23.12.1996, que disciplinam as expropriações de imóveis rurais para fins de reforma agrária; e o Decreto-lei 1.075/1970, que regula a imissão de posse “initio litis” em imóveis residenciais urbanos. Ou­tros diplomas federais, já indicados precedentemente (nota 15), com­pletam a legislação regedora das desapropriações, que é privativa da União, por expressa reserva constitucional (art. 22, II).

Assim, às entidades estatais menores só cabe declarar a necessi­dade ou a utilidade pública, ou o interesse social do bem a ser expro- priado, e promover, diretamente ou por seus delegados, a respectiva desapropriação, sem expedir qualquer norma de natureza substantiva ou adjetiva sobre o instituto, os casos de expropriação ou o processo expropriatório, porque isto é da alçada exclusiva da lei federal.

2.5 CASOS DE DESAPROPRIAÇÃO

Os casos ensejadores de desapropriação acham-se taxativamente relacionados por lei, em dois grupos: o primeiro, com fundamento em necessidade ou utilidade pública; o segundo, em interesse social. To­dos, porém, definidos pelas leis federais que os enumeram, e sem possi­bilidade de ampliação por norma estadual ou municipal. Inicialmente, o Código Civil de 1916 relacionava os casos de necessidade pública e os de utilidade pública, mas essa relação foi absorvida pelo elenco mais completo do art. 5a do Decreto-lei 3.365/1941, sob a denominação úni­ca e genérica de utilidade pública, e leís especiais aditaram outras hi­póteses específicas.

16. Estão autorizados, por lei, a promover desapropriações: a Petrobrás (Lei 2.004/1953, art. 24); a Sudene (Lei 3.692/1959, art. 16).

O DNER tem, por exceção, autorização legai não só para promover desapro­priações como, também, para declarar a utilidade pública dos terrenos necessários às suas obras rodoviárias (Decreto-lei 512/1969, arts. 14 a 19).

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Os casos de utilidade pública, enumerados no art. 5a do Decreto-lei 3.365/1941, são os seguintes: a) segurança nacional:; b) defesa do Esta­do', c) socorro público em caso de calamidade', d) salubridade públi­ca; e) criação e melhoramento de centros de população, seu abasteci­mento regular de meios de subsistência', f) aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica', g) assistência pública, obras de higiene e decoração, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais’, h) exploração ou con­servação dos serviços públicos; i) abertura, conservação e melhora­mento de vias ou logradouros públicos; execução de planos de ur­banização; parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; construção ou am­pliação de distritos industriais (redação dada pelas Leis 6.602/1978 e 9.785, de 29.1.1999); j) funcionamento dos meios de transporte coleti­vo; k) presewação e conservação dos monumentos históricos e artísti­cos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes os aspectos mais valiosos ou ca­racterísticos e ainda a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza; 1) preservação e conservação adequada de ar­quivos, documentos e outros bens móveis de valor histórico ou artísti­co; m) construção de edifícios públicos, monumentos comemorativos e cemitérios; n) criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves; o) reedição ou divulgação de obra ou invento de na­tureza científica, artística ou literária; p) os demais casos previstos por leis especiais.

Os casos de interesse social estão enumerados no art. 2Q da Lei 4.132/1962, nesta ordem: I - aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa su­prir por seu destino econômico; II - a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não se obedeça a plano de zoneamento agrícola; III - o estabelecimento e a manutenção de colô­nias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola; IV — a ma­nutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância ex­pressa ou tácita do proprietário, tenham constituído sua habitação, formando núcleos residenciais de mais de 10 famílias; V — a construção de casas populares; VI - as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notada- mente saneamento, portos, transporte, eletrificação, armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas áreas socialmente

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aproveitadas; VII - a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais; VIII - a utilização de áreas, locais ou bens que, por suas características, sejam apropriados ao de­senvolvimento de atividades turísticas (este item foi acrescentado pelo art. 31 da Lei 6.513, de 20.12.1977). A mesma Lei 4.132/1962 autoriza a venda dos bens expropriados, ou a sua locação, a quem estiver em con­dições de dar-lhes a destinação social prevista no ato expropriatório (art. 4Ü). Essa desapropriação compete a qualquer das entidades estatais em que o caso se apresente com as características do interesse social.

Outros casos de interesse social foram acrescentados pelo Estatuto da Terra (Lei 4.504/1964), para fins da reforma agrária, visando a: a) condicionar o uso da terra à sua função social; b) promover a justa e adequada distribuição da propriedade; c) obrigar à exploração racio­nal da terra; d) permitir a recuperação social e econômica de regiões;e) estimular pesquisas pioneiras, experimentação, demonstração e as­sistência técnica; f) efetuar obras de renovação, melhoria e valoriza­ção dos recursos naturais; g) incrementar a eletrificação e a industria­lização no meio rural; h) facultar a criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de preservá-los de atividades predatórias (art. 18). A desapropriação, nestes casos, só se aplica a imóveis rurais que não estiverem cumprindo sua função social, nos termos do art. 184 da Constituição Federal, seguindo os trâmites do Decreto-lei 554, de 25.4.1969, sendo que o ato expropriatório deve ser expedido pelo Presidente da República ou por autoridade a quem forem delegados poderes especiais para praticá-lo.

2.6 DECLARAÇÃO EXPROPRIATÓRIA

A declaração expropriatória pode ser feita por lei ou decreto em que se identifique o bem, se indique o seu destino e se aponte o dispo­sitivo legal que a autorize. Como se trata, entretanto, de ato tipicamen­te administrativo, consistente na especificação do bem a ser transferido compulsoriamente para o domínio da Administração, é mais próprio do Executivo, que é o Poder administrador por excelência.

A atribuição de competência expropriatória ao Legislativo, con- correntemente com o Executivo, é uma anomalia de nossa legislação, porque o ato de desapropriar é caracteristicamente de administração. A lei que declara a utilidade pública de um bem não é normativa; é espe­cífica e de caráter individual. E lei de efeito concreto equiparável ao ato administrativo, razão pela qual pode ser atacada e invalidada pelo

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Judiciário desde a sua publicação e independentemente de qualquer ati­vidade de execução, porque ela já traz em si as conseqüências admi­nistrativas do decreto expropriatório.

A declaração de utilidade pública ou de interesse social pode atingir qualquer bem necessário ou conveniente ao serviço público ou à coletividade; pode recair sobre o patrimônio material ou imaterial; pode abranger direitos e ações; pode incidir sobre a propriedade parti­cular ou pública, com a só exigência de que, neste último caso, o poder expropriante seja de nível superior ao da Administração expropriada e esteja munido de prévia autorização legislativa para expedir o ato ex­propriatório. Assim, qualquer entidade estatal pode expropriar bens particulares, a União pode desapropriar os dos Estados-membros e dos Municípios, e o Estado-membro só pode expropriar os dos seus Muni­cípios, não cabendo a estes a desapropriação de bens de outros Municí­pios ou de entidades políticas maiores. Reafirmamos, entretanto, que qualquer das entidades políticas tem supremacia sobre os entes admi­nistrativos situados em seu território, pelo quê seus bens não vincula­dos aos serviços sujeitam-se à expropriação como os demais, ainda que pertencentes a autarquias ou organizações paraestatais instituídas pela União. A autonomia político-administrativa dos Estados-membros e Municípios, sendo prerrogativa constitucional (arts. 18, 25 e 29), não há de ficar restringida nem tolhida, nos atos de expropriação, diante dos bens de entidades de categoria inferior e de natureza meramente administrativa. O privilégio administrativo das autarquias não se so­brepõe às prerrogativas políticas e ao poder de império das entidades estatais, porque estas emanam diretamente da Constituição e aquelas nascem da lei ordinária.

Os efeitos da declaração expropriatória não se confundem com os da desapropriação em si mesma. A declaração de necessidade ou utilidade pública, ou de interesse social, é apenas o ato-condição que precede à efetivação da transferência do bem para o domínio do expro­priante. Só se considera iniciada a desapropriação com o acordo admi­nistrativo ou com a citação para a ação judicial, acompanhada da ofer­ta do preço provisoriamente estimado para o depósito. Até então, a de­claração expropriatória não tem qualquer efeito sobre o direito de pro­priedade do expropriado, nem pode impedir a normal utilização do bem ou a sua disponibilidade.17 Lícito é ao particular alienar ou explorar o

17. STF, RDA 39/205, 40/270; TJSP, RT208/139, 232/168; 1“ TACivSP, RDA 47/191; RT 235/518, 242/522, 250/492, 275/638.

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bem, ou nele construir, mesmo após a declaração expropriatória, en­quanto o expropriante não realizar concretamente a desapropriação, sendo ilegal a denegação de alvará de construção.18 O impedimento do pleno uso do bem diante da simples declaração de utilidade pública importa restrição inconstitucional ao direito de propriedade, assim como o apossamento sem indenização eqüivale a confisco, não tolera­do pela nossa Constituição. Daí por que consideramos a Súmula 23 do Supremo Tribunal Federal contraditória e inaplicável na sua parte fi­nal, porque, se a simples declaração expropriatória não tolhe o direito de construir, não se pode deixar de indenizar a construção levantada no exercício normal desse direito.

Desde a declaração expropriatória ficam as autoridades exproprian- tes autorizadas a penetrar nos prédios atingidos, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio da força policial. Tal direito, entretanto, não significa imissão na posse, a qual só se dará por ordem judicial, após o pagamento da justa indenização ou o depósito provisório nos casos e forma admitidos em lei, como veremos adiante, no tópico próprio. Essa admissibilidade legal de penetrar nos prédios (art. 7°) é limitada ao trân­sito pelos imóveis, necessário aos levantamentos topográficos, aos atos avaliatórios e outros de identificação dos bens, mas que não prejudi­quem sua normal utilização pelos proprietários ou possuidores. Se nes­se trânsito a Administração causar dano ao imóvel, responderá pelos prejuízos, e seu agente poderá ser responsabilizado por ação penal.

A caducidade da declaração expropriatória ocorre ao fim de cin­co ou de dois anos, conforme se trate, respectivamente, de manifesta­ção de utilidade ou necessidade pública (Decreto-lei 3.365/1941, art. 10), ou de interesse social (Lei 4.132/1962, art. 3Ü), só podendo ser renovada, em qualquer das hipóteses, depois de um ano da decadência.

2.7 PROCESSO EXPROPRIATÓRIO

A desapropriação poderá ser efetivada por via administrativa ou por processo judicial, sendo, mesmo, recomendável o acordo na órbita interna da Administração, após a declaração expropriatória.

A via administrativa consubstancia-se no acordo entre as partes quanto ao preço, reduzido a termo para a transferência do bem expro-

18. STF, RDA 49/225, 54/130, 169/166; TJSP, RDA 53/143, 58/236; RT 200/ 383, 206/129, 270/178, 285/460, 318/103, 342/264, 352/410; TASP, RDA 60/222, 63/156; *7”273/467, 290/525, 298/582, 300/582, 323/537, 351/593.

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priado, o qual, se imóvel, exige escritura pública para a subseqüente transcrição no Registro Imobiliário competente, salvo para as desapro­priações do Nordeste, que a Lei 6.160, de 6.12.1974, simplificou para instrumento particular.

O processo judicial segue o rito especial estabelecido na Lei Ge­ral das Desapropriações (Decreto-lei 3.365/3941), admitindo, supleti- vamente, a aplicação dos preceitos do Código de Processo Civil. O foro para a ação, inclusive na desapropriação indireta, é o da situação do bem expropriado, salvo quando houver interesse da União, que torna competente a Justiça Federal com sede na Capital do Estado corres­pondente (Constituição Federal, art. 109 ,1; Lei 5.010/1966, art. 1 3 ,1; Decreto-lei 3.365/1941, art. II, e STF, Súmula 218).

No processo de desapropriação, o Poder Judiciário limitar-se-á ao exame extrínseco e formal do ato expropríatório e, se conforme à lei, dará prosseguimento à ação para admitir o depósito provisório dentro dos critérios legais, conceder a imissão na posse quando for caso e, a final, fixar a justa indenização e adjudicar o bem ao expropriante. Nes­te processo é vedado ao juiz entrar em indagações sobre a utilidade, necessidade ou interesse social, declarado como fundamento da expro­priação (art. 9°), ou decidir questões de domínio ou posse.19 Nada im­pede, entretanto, que, por via autônoma, que a lei denomina “ação di­reta” (art. 20), o expropriado peça e obtenha do Judiciário o controle da legalidade do ato expropriatório, como veremos adiante. Mas é ób­vio que, no próprio processo de desapropriação, o juiz pode e deve decidir sobre a regularidade extrínseca do ato expropriatório (competên­cia, forma, caducidade etc.), assim como sobre as nulidades processuais.

A ação de desapropriação, como já aludimos precedentemente, deverá ser iniciada, com despacho de citação, dentro de cinco anos, se proveniente de utilidade ou necessidade pública, ou de dois anos, se resultante de interesse social, a contar da data dos respectivos atos de- claratórios, sob pena de extinção do processo baseado em ato caduco.

A imissão provisória na posse era admitida até mesmo antes da citação do expropriado desde que o expropriante declarasse a urgência da medida e efetuasse em juízo o depósito prévio segundo o critério legal do § lc do art. 15 do Decreto-lei 3.365/1941.

Após a Constituição de 1988, contudo, o Superior Tribunal de Jus­tiça passou a entender que tal dispositivo não foi recepcionado pela

19.TJSP,i?r 688/94.

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nova Carta, uma vez que os ínfimos depósitos realizados pelo expro- priante não atendiam à prévia e justa indenização em dinheiro estabe­lecida como garantia individual contra a desapropriação (Constituição Federal, art. 5a, XXIV). Segundo tais decisões, a perda da posse signi­fica, em última análise, a supressão de quase todos os poderes ineren­tes ao domínio, e, por isso, a imissão initio litis só pode ser autorizada com o depósito do valor apurado em avaliação prévia, ficando derro- gados os parágrafos e incisos do art. 15 do Decreto-lei 3.365/1941, bem como os arts. 3“ e 4a do Decreto-lei 1.075/1970, que trata da imissão provisória da posse em imóveis residenciais urbanos. Esse entendimen­to pacifícou-se naquela Corte (STJ); mas o STF (inclusive pelo seu Ple­nário) modificou-a, por entender que a garantia de indenização justa, prevista na Constituição atual, não difere das Constituições anteriores, prevalecendo o entendimento tradicional de que só a perda da proprie­dade, ao final da ação de desapropriação - e não a imissão provisória na posse do imóvel - está compreendida na garantia da justa e prévia indenização em dinheiro. São constitucionais, portanto, o art. 15 do Decreto-lei 3.365/1941 e o Decreto-lei 1.075/1970, recepcionados pela Carta atual.20

Feito o depósito provisório, o expropriado poderá levantar 80% do seu montante, ainda que discorde do preço ofertado ou arbitrado, atendidas as exigências do art. 34 do Decreto-lei 3.365/1941, ou seja, a comprovação da propriedade e da quitação de débitos fiscais inci­dentes sobre o bem até a data da imissão na posse, assim como a publi­cação dos editais para conhecimento de terceiros.

A imissão provisória na posse de prédios residenciais urbanos tem seu rito próprio, estabelecido no Decreto-lei 1.075, de 22.1.1970, exigindo a jurisprudência o depósito do valor fixado em avaliação pré­via e admitindo o seu levantamento total pelo expropriado.21

A imissão definitiva na posse, em qualquer hipótese, só se dará após o integral pagamento do preço, conforme o fixado no acordo ou na decisão judicial final, que adjudicará o bem ao expropriante, trans­ferindo-lhe o domínio com todos os seus consectários. Mas é de obser­

20. STJ, RJSTJ 71/168; RT 706/169; EDiv no REsp 977-2, DJU 20.2.1995; REsp 47.042, DJU 29.8.1994; EDiv no REsp 914-4, DJU 27.6.1994; EDiv no REsp 895-4, DJU 21.3.1994; EDiv no REsp 21.558-5, DJU 23.2.1994; e EDiv no REsp 36.505-6, DJU 10.12.1993; STF, RE 167.656-6-SP, D JU 3.10.1997; RE 170/ 379-2-SP, DJU 3.10.1997; RE 182.124-8, DJU 10.10.1997; RE 182.194-9, DJU 10.10.1997, e vários outros.

21. V. nota anterior.

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var-se que desde a imissão provisória na posse o expropriante aufere todas as vantagens do bem, e cessa para o expropriado a sua fruição, devendo cessar também todos os encargos correspondentes, notada- mente os tributos reais.

A alegação de urgência, para fms de imissão provisória na posse, poderá ser feita no ato expropriatório ou subseqüentemente, mas a imis­são deve ser requerida dentro de 120 dias da alegação, sob pena de caducidade, com impossibilidade de renovação (art. 15, § 2a). Em edi­ções anteriores sustentamos que a urgência só poderia constar do ato expropriatório, mas evoluímos para admiti-la também por ato posterior, fundados na consideração de que, muitas vezes, surge de circunstâncias supervenientes à declaração de utilidade pública, e, em tais casos, não poderia a Administração ficar tolhida de invocá-la posteriormente. Nes­se sentido é, atualmente, a jurisprudência dominante.

O direito de extensão é o que assiste ao proprietário de exigir que na desapropriação se inclua a parte restante do bem expropriado, que se tornou inútil ou de difícil utilização. Tal direito está expressamente reconhecido no art. 12 do Decreto federal 4.956/1903. A legislação posterior não se referiu a ele, mas, como tal disposição não contraria em nada o Decreto-lei 3.365/1941 e leis subseqüentes, entendemos, como Eurico Sodré, que o preceito está em vigência.22

E de se observar que, para fins de reforma agrária, a Lei 4.504/ 1964 consignou expressamente o direito de extensão aos que tiverem terras parcialmente expropriadas, em condições que prejudiquem subs­tancialmente a exploração econômica do remanescente (art. 19, § 1°).

Em qualquer das hipóteses, o expropriado que quiser exercitar o direito de extensão deverá manifestar o seu desejo no acordo adminis­trativo, ou na ação judicial que se instaurar para a fixação da indeniza­ção. Não o fazendo nessas oportunidades, entende-se que renunciou seu direito, não sendo admissível que o pleiteie após o término da de­sapropriação.

2.8 INDENIZAÇÃO

A indenização do bem desapropriado deve ser justa, prévia e em dinheiro. Não há indenização na desapropriação de glebas em que se cultivem culturas ilegais de plantas psicotrópicas (Constituição Fede­

22. A Desapropriação, São Paulo, 1955, pp. 209 e ss.

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ral, art. 243, e Lei 8.629, de 25.2.1993). Admite-se, ainda, o pagamen­to em títulos da dívida pública para o imóvel urbano que não esteja cumprindo sua função social, que é a chamada desapropriação-sanção (Constituição Federal, art. 182, § 4Ü, III), e o pagamento em títulos da dívida agrária para os imóveis rurais destinados à reforma agrária (Constituição Federal, art. 184).

Indenização justa é a que cobre não só o valor real e atual dos bens expropriados, à data do pagamento, como, também, os danos emergentes e os lucros cessantes do proprietário, decorrentes do des- pojamento do seu patrimônio. Se o bem produzia renda, essa renda há de ser computada no preço, porque não será justa a indenização que deixe qualquer desfalque na economia do expropriado. Tudo que com­punha seu patrimônio e integrava sua receita há de ser reposto em pe- cúnia, no momento da indenização; se o não for, admite pedido poste­rior, por ação direta, para complementar-se a justa indenização. A ju s ­ta indenização inclui, portanto, o valor do bem, suas rendas, danos emergentes e lucros cessantes, além dos juros compensatórios a con­tar da data da ocupação?'0 juros moratórias,14 despesas judiciais e ho­norários de advogado.

Quanto às benfeitorias, esclarece a própria lei (art. 26, § 1°, do Decreto-lei 3.365/1941), serão sempre indenizadas as necessárias, fei­tas após a desapropriação, e as úteis, realizadas com autorização do expropriante. Mas o Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que a existência de benfeitorias clandestinas não desobriga a Municipalida­de do pagamento integral dos bens expropriados, em atendimento ao princípio constitucional da justa indenização (Ap. civ. 170.289-2, Ba­tatais, 12.2.1992, rei. Des. Clímaco de Godoy). Neste particular, a ju ­risprudência vem autorizando o pagamento de indenização às pessoas que efetuaram edificações em terrenos públicos ou de terceiros e que, portanto, só têm a receber o valor dessas benfeitorias por entender que deixar de pagá-las na imissão provisória é deixá-las completamente ao desabrigo, causando graves problemas sociais. O mesmo Tribunal de

23. A Súmula 345 do STF, que mandava contar os juros compensatórios a partir da perícia, foi revogada no RE 74-803-SP (DJU 4.6.1977, p. 1.165). Em outras decisões o STF fixou os juros compensatórios em 12% ao ano (RE 69.798- BA, RDA 126/271; RE 85.209-RJ, DJU 6.5.1977; RE 88.229-RJ, DJU 29.5.1978).

24. O STF determinava a contagem dos juros moratórios, na desapropriação indireta, a partir da citação (RT 610/277), mas, posteriormente, mandou contar a partir do trânsito em julgado da sentença, como ocorre na desapropriação direta (RT 605/243, RDA 172/148; TJSP, RT 611/71, 614/85).

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Justiça de São Paulo já teve oportunidade de se pronunciar a respeito, admitindo o levantamento da indenização das benfeitorias realizadas, independentemente da prova de domínio prevista no art. 34 da Lei de Desapropriações (JTJSP 132/303).

Repita-se que só se considera efetivada a desapropriação após o acordo ou a instauração do processo judicial. A simples declaração de utilidade não importa, ainda, desapropriação, e, por isso, admite a nor­mal utilização do bem, independentemente de autorização do Poder Público. Enquanto não iniciada a desapropriação por atos de execução do decreto expropriatório, lícito é ao proprietário construir e fazer as benfeitorias que desejar, ficando o expropriante obrigado a indenizá- las quando efetivar, realmente, a expropriação. Diante do simples de­creto declaratório de utilidade pública não poderá ser negado o alvará de construção, nem interditada a atividade lícita que se realizar no imó­vel, como já acentuamos precedentemente.

A valorização da área remanescente, em razão da desapropria­ção, não é compensável para reduzir o montante devido ao expropria­do, visto que a mais-valia resultante da obra pública só pode ser objeto de contribuição de melhoria. Por esta razão, a jurisprudência vem re­pelindo a aplicação da parte final do art. 27 do Decreto-lei 3.365/1941, por contrariar o mandamento constitucional da justa indenização, que é o valor de mercado que o bem apresenta no momento da avaliação, como se tivesse que ser alienado na sua integridade e com todos os fatores valorizantes da atualidade.23

Indenização prévia significa que o expropriante deverá pagar ou depositar o preço antes de entrar na posse do imóvel. Este mandamen­to constitucional vem sendo frustrado pelo retardamento da Justiça no julgamento definitivo das desapropriações, mantendo o expropriado despojado do bem e do seu valor por anos e anos, até transitar em jul­gado a condenação. Os depósitos provisórios geralmente são ínfimos em relação ao preço efetivo do bem, o que atenta contra o princípio da indenização prévia. Essa burla à Constituição só poderá ser obviada pelo maior rigor dos juízes e tribunais na exigência de depósito prévio que mais se aproxime do valor real do bem expropriado.

Indenização em dinheiro quer dizer que o expropriante há de pa­gar o expropriado em moeda corrente. Esta é a regra geral (Constitui­ção Federal, art. 5Ü, XXIV), que a própria Constituição enfatiza de

25. STF, RDA 53/150 e RTJ69/222.

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modo especial relativamente ao imóvel urbano (art. 182, § 3Ü). Por acordo, pode-se estabelecer qualquer modo ou forma de pagamento.

A fixação da indenização pode ser feita por acordo administrati­vo, ou por avaliação judicial. De toda conveniência é que a Adminis­tração acerte amigavelmente com o expropriado o quantum da justa indenização, mas, se houver divergência entre a oferta do Poder Públi­co e a pretensão do particular, a controvérsia se resolverá em juízo, mediante avaliação por perito técnico de livre escolha do juiz, confor­me dispõe o art. 14 do Decreto-lei 3.365/1941, com as modificações subseqüentes.

Na avaliação de imóvel urbano devem ser considerados todos os fatores valorizantes, especialmente as condições locais, a forma geo­métrica do terreno e a situação topográfica; a natureza, destinação e utilização do lote; a renda atual auferida pelo proprietário e o estado de conservação do edifício; os meios de transporte de que é servido; os valores venais dos lotes circunvizinhos e o valor potencial do terreno, tendo-se em vista o seu máximo aproveitamento, os gabaritos (número de pavimentos) permitidos pela legislação do Município e demais pe­culiaridades do bem avaliado.26

Na avaliação de imóvel rural, além dos fatores valorizantes de or­dem geral, devem ser levados em consideração: a destinação normal da propriedade; a classificação e utilização das terras; as áreas de ma­tas, pastagens e culturas; as atividades agrárias, pastoris ou extrativas que se realizam na gleba; as benfeitorias; a distância das terras aos cen­tros urbanos; os meios de comunicação e transporte que servem o imó­vel; as demais utilidades e potencialidades do bem expropriado.27

26. V., na parte de legislação, as normas de avaliação de imóveis elaboradas pela Comissão de Peritos, bem como as normas do IBAPE e da ABNT.

V. também, no cap. 9, item 2.4, os métodos e fórmulas usuais de avaliação.27. Sobre avaliações, em seus aspectos técnicos atuais, consultem-se: Rober­

to Soares de Camargo, “Conceitos gerais sobre avaliações” (in Engenharia de Ava­liações, ed. Pini, 1974); Hélio de Caires, “Avaliações de glebas e depreciações de imóveis” (idem); Fernando Guilherme Martins e José Carlos Pellegrino, “Critério para cálculo de fiindo de comércio” (idem); Miguel Carlos Kosma, “Avaliação de propriedades rurais” (idem); Víctor Carlos Fillinger, “Avaliação de máquinas, equipamentos, instalações industriais e indústrias” (idem); Joaquim da Rocha Me­deiros Júnior, “Vantagem da coisa feita na avaliação de imóveis pelo método de custo” (idem); Ernesto Whitaker Carneiro e Joaquim da Rocha Medeiros Júnior, “Avaliação de terrenos superaproveitados” (RT 522/263); José Carlos Pellegrino e Joaquim da Rocha Medeiros Júnior, “Avaliação de escritórios e apartamentos pelo

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Os prejuízos à área remanescente também devem ser incluídos na indenização, e isto ocorre quando a desapropriação mutila a gleba, re­duzindo o valor econômico da parte restante, para a sua normal desti­nação. No cálculo desta indenização é recomendável o método antes e depois (long andshort), ou seja, o confronto do valor originário da área total com o da parcela que sobrou. Quando se tratar de remanescente de área com benfeitoria atingida pela desapropriação, computar-se-á, mais, o necessário para a sua recomposição (v., no cap. 9, o item 2.4, sobre avaliação em geral).

Os terrenos marginais dos rios públicos, na faixa denominada re­servada pelo Código de Águas (art. 14), vêm sendo considerados não indenizáveis nas desapropriações, nos termos da Súmula 479 do Su­premo Tribunal Federal, que os exclui do domínio do expropriado. De há muito discordamos desse entender (cf. nossa Ia ed., 1964), pois tal faixa, como o nome indica, é reseryada como simples servidão admi­nistrativa, para eventuais fiscalizações do rio, sem ser retirada da pro­priedade particular e sem impedir a sua normal utilização em culturas e pastagens, ou a extração de areia, argilas e cascalhos. Como toda ser­vidão administrativa, esta também incide sobre a propriedade particu­lar, visto que seria rematado absurdo que o Poder Público a instituísse sobre seus próprios bens. Tanto isto é exato que quem compra e vende terras ribeirinhas, no Brasil, o faz em toda a sua extensão, até as mar­gens do rio, ou seja, até o leito normal das águas, e com essa extensão transcreve o título aquisitivo no Registro Imobiliário, para os fins do art. 1.245 do Código Civil, obtendo, assim, o direito real oponível erga omnes, nos termos do art. 1.227 do mesmo Código. Como pode o Es­tado desconhecer e negar essa transcrição aquisitiva quando expropria o imóvel?

A tese da não indenização dessas faixas ribeirinhas, sobre ser in- jurídica, é contrária à realidade nacional, pois vem excluindo do paga­mento grande percentagem das áreas rurais altamente produtivas e va­lorizadas por serem as melhores terras, as mais rentáveis e mais procu­radas para culturas e pastagens, exatamente pela proximidade das águas. E como ficarão os proprietários do Pantanal de Mato Grosso e das margens dos rios da Amazônia, onde “o ponto médio das enchen-

método comparativo direto” (R T486/243); Fernando Guilherme Martins, “Avalia­ção de glebas, subsídios para pré-planos” (in Construções e Terrenos, ed. Pini, 1980); Hélio de Caires e Hélio Roberto de Caires, Avaliação de Glebas Urbanizá- veis (ed. Pini, 1984).

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tes ordinárias” se estende a quilômetros fora do leito? Por essas consi­derações evidencia-se o desacerto da jurisprudência atual, que natu­ralmente será reformada, para adequar-se ao Direito e à realidade na­cional.28

2.9 PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO

O pagamento da indenização expropriatória faz-se na forma do acordo, ou nos termos do julgado em execução. Nesta última hipótese, a Constituição determina que o pagamento há que ser feito na ordem de apresentação da requisição (precatório) e à conta dos créditos res­pectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias ou nos créditos especiais abertos para esse fim, e, se hou­ver preterição do exeqüente, caberá seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. Estabelece, ainda, a Lei Magna que as Adminis­trações deverão incluir nos seus orçamentos dotações bastantes para o pagamento dos débitos constantes dos precatórios apresentados até Io de julho, abrindo-se créditos adicionais para as requisições posteriores (art. 100 e parágrafos). Essas disposições endereçam-se, evidentemen­te, às pessoas públicas (entidades estatais e autarquias), que só podem efetuar pagamentos com verbas orçamentárias ou com créditos legal­mente abertos, e cujos bens não se sujeitam a penhora.

Quanto ao pagamento das desapropriações promovidas por enti­dades de personalidade privada, ainda que paraestatais, a execução do julgado se faz na forma processual comum, inclusive com penhora de bens do devedor que não atender ao mandado executório.

Observe-se, finalmente, que a defeituosa redação do § 2Ü do art. 100 da Constituição Federal pode conduzir à interpretação de que só o presidente do tribunal que proferir a decisão exeqüenda é o competen­te para requisitar o pagamento da indenização, quando, na realidade, essa competência é do juiz da execução, cabendo ao presidente orde­nar o pagamento ou o seqüestro unicamente quando houver depósito à disposição do Poder Judiciário para atender indiscriminadamente às condenações da Fazenda Pública.

28. Cf. Miguel Carlos Fontoura da Silva Kosma, “Avaliação de propriedades rurais” (in Engenharia de Avaliações, ed. Pini, 1974, p. 103); “Land classification as an aid in soi! conservation operations” (in Bulletin 421, dezembro/1940, Uni- versity o f Missouri, USA).

SERVIDÕES ADMINISTRATIVAS E DESAPROPRIAÇÃO 199

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2.10 DESVIO DE FINALIDADE

A finalidade pública, consubstanciada na necessidade ou utilida­de do bem para fins administrativos, ou no interesse social da proprie­dade para ser explorada ou utilizada em prol da comunidade, é o fun­damento legitimador da desapropriação. Não pode haver expropriação por interesse privado de pessoa física ou de entidade particular, sem utilidade pública ou interesse social.29 O interesse há que ser ou do Po­der Público ou da coletividade beneficiada com o bem expropriado, pena de nulidade da desapropriação.30

Os bens expropriados por utilidade ou necessidade pública têm destinação precípua às obras e serviços públicos, constituindo estes, precisamente, a sua finalidade pública , ao passo que os desapropria­dos por interesse social destinam-se, normalmente, a particulares que irão explorá-los ou utilizá-los por exigências da coletividade, para atendimento de interesses ou solução de casos da comunidade (e não do Poder Público), sendo estes, então, a sua finalidade pública. A de­sapropriação por necessidade ou utilidade pública dá atendimento a ati­vidades administrativas; a desapropriação por interesse social visa a solucionar problemas de bem-estar social. Ambas têm finalidade pú­blica, mas com objetivos e características diferentes.

O desvio de finalidade ocorre, na desapropriação, quando o bem expropriado para um fim é empregado noutro sem utilidade pública ou interesse social. Daí o chamar-se, vulgarmente, a essa mudança de des­tinação, “tredestinação” (o correto seria “tresdestinação”, no sentido de desvio de destinação), para indicar o mau emprego do bem expro­priado. Mas deve-se entender que a finalidade pública é sempre gené­rica, e, por isso, o bem desapropriado para um fim público pode ser usado em outro fim público, sem que ocorra desvio de finalidade. Exemplificando: um terreno desapropriado para escola pública poderá, legitimamente, ser utilizado para construção de um pronto-socorro pú­blico, sem que isto importe desvio de finalidade, mas não poderia ser alienado a uma organização privada para nele edificar uma escola ou um hospital particular, porque a estes faltaria a finalidade pública justi- ficadora do ato expropriatório.

29. Caio Tácito, “Desapropriação e desvio de poder”, RDA 26/223, reprodu­zido na sua coletânea Direito Administrativo, São Paulo, 1975, pp. 128 e ss.

30. STF, R TJ3/748, 53/43, 57/53; RDA 55/195, 77/238; TJGB, RDA 26/223, 43/212; TJPE, RT 129/689; TJSP, RDA 44/298; STJ, RJSTJ 15/135 e RDA 200/ 190; TJSP, RJTJSP 124/89, 125/102 e 126/334.

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Por outro lado, se o Poder Público ou seus delegados não derem ao bem expropriado a sua destinação legal, ficarão sujeitos à retro ces­são e à anulação, como veremos a seguir.

2.11 RETROCESSÃO

Retrocessão é a obrigação que se impõe ao expropriante de ofere­cer o bem ao expropriado, mediante a devolução do valor da indeniza­ção, quando não íhe der o destino declarado no ato expropriatório (Có­digo Civil, art. 519).31 Se o expropriante não cumprir essa obrigação, o direito do expropriado resolve-se em perdas e danos, uma vez que os bens incorporados ao patrimônio público não são objeto de reivindica­ção (Decreto-lei 3.365/1941, art. 35).

A retrocessão é, pois, uma obrigação pessoal de devolver o bem ao expropriado, e não um instituto invalidatório da desapropriação, nem um direito real inerente ao bem. Daí o conseqüente entendimento de que a retrocessão só é devida ao antigo proprietário, mas não a seus herdeiros, sucessores e cessionários. A jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal, entretanto, tem entendido que se trata de um direito real - e, nessa condição, transmissível.

A Lei 9.785, de 29.1.1999, acrescentou o § 3Q ao art. 5Q do Decreto- lei 3.365/1941, dispondo que ao imóvel desapropriado para a implan­tação de parcelamento popular, destinado às classes de menor renda, não se dará outra utilização nem haverá retrocessão. Em outras pala­vras, no imóvel expropriado para conjuntos habitacionais de natureza popular, o Poder Público necessariamente deverá realizar a implantação daqueles empreendimentos, vedada a sua destinação a outros fins.

A ação de indenização, como as demais ações pessoais contra a Fazenda Pública, prescreve em cinco anos, a contar do momento em que se tomou certa a não utilização do bem em sua destinação legal, no sentido amplo da finalidade pública, podendo variar daquela que se especificou no ato expropriatório, desde que informada de interesse público ou social.

31. Sobre retrocessão, consultem-se: Ebert Chamoun, Da Retrocessão m s Desapropriações, Rio, 1959; Hélio Moraes de Siqueira, A Retrocessão nas Desa­propriações, São Paulo, i 964; Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 18a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2005, p. 818; e José Carlos de Moraes Salles, A Desapropriação à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, 3a ed., São Paulo, Ed. RT, 1995 p. 725. V. também RTJ 104/468 e 137/790.

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2.12 ANULAÇÃO DA DESAPROPRIAÇÃO

A anulação da desapropriação, ou, mais precisamente, do ato ex­propriatório, é obtida por “ação direta”, nas mesmas condições em que a Justiça invalida os demais atos administrativos ilegais. O Decreto-lei 3.365/1941 refere-se à “ação direta” em sentido amplo (art. 20), abran­gendo as vias judiciais comuns e especiais, inclusive o mandado de segurança, tal seja a ofensa a direito líquido e certo do expropriado.J2

A ilegalidade da desapropriação tanto pode ser formal quanto substancial, pois, em certos casos, resulta da incompetência da autori­dade ou da forma do ato e, noutros, provém do desvio de finalidade ou da ausência de utilidade pública ou de interesse social, caracterizado- res do abuso de poder. Esta, aliás, é a ilegalidade mais comum nas de­sapropriações. Assim, se, ao invés de utilidade ou necessidade pública, ou de interesse social, se depararem na desapropriação motivos de fa­voritismo ou de perseguição pessoal, interesse particular sobrepondo- se ao interesse da coletividade, e qualquer outro desvio de finalidade ou imoralidade administrativa, o ato expropriatório é nulo, e deverá ser invalidado pelo Judiciário, por divorciado dos pressupostos constitucio­nais e legais vinculadores de sua prática. Realmente, a autoridade ex­propriante só é livre na valoração dos motivos de interesse público, mas fica sempre vinculada à existência e à realidade desses motivos, assim como ao atendimento dos requisitos de legitimidade condicionadores da desapropriação.

E de advertir-se, ainda, que, se a expropriação se revelar lesiva ao patrimônio público, qualquer cidadão poderá promover a sua anulação por meio de ação popular, com a responsabilização civil dos causado­res da lesão (Lei 4.717/1965, arts. Ia, 2a e 6Q).

A ação anulatória da desapropriação, como as demais de natureza pessoal contra a Fazenda Pública, prescreve em cinco anos, mas, se, ajuizada temporaneamente, vier a ser julgada posteriormente à incor­

32. A propósito, decidiu o Supremo Tribunal Federal, em 18.10.1965, por unanimidade de seu Plenário, que: “Se a desapropriação for ilegal, cabe mandado de segurança, ou com efeito restaurador, depois de iniciada a execução, ou com efeito preventivo, antes dela. Por outro lado, a ‘ação direta’, a que se refere o art. 20 da Lei das Desapropriações, não exclui o mandado de segurança, pois o que carac­teriza este remédio processual é haver direito líquido e certo violado ou ameaçado por ato de autoridade” (RDA 84/165 e, no mesmo sentido, Io TASP, RT 342/427).

Sobre o assunto, v. nosso Mandado de Segurança, 28a ed., São Paulo, Ma­lheiros Editores, 2005, pp. 2] e ss.

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SERVIDÕES ADMINISTRATIVAS E DESAPROPRIAÇÃO 203

poração do bem ao patrimônio do expropriante, resolve-se em perdas e danos, nos expressos termos do art. 35 do Decreto-lei 3.365/1941.

2.13 DESISTÊNCIA DA DESAPROPRIAÇÃO

A desistência da desapropriação é possível até a incorporação do bem ao patrimônio do expropriante, ou seja, para o móvel, até a tradi­ção, e, para o imóvel, até a assinatura do instrumento do acordo ou do trânsito em julgado da sentença expropriatória. Daí por diante, o que pode haver é retrocessão do bem (Código Civil, art. 519), e não mais desistência da desapropriação, porque seus efeitos já se exauriram com a transferência do domínio.

A desistência da desapropriação opera-se pela revogação do ato expropriatório (lei ou decreto), o que acarreta, automaticamente, a ine­ficácia do acordo ou a extinção do processo, se houver ação ajuizada, mas não julgada definitivamente. Não caberá ao expropriado opor-se à desistência, mas poderá pedir ressarcimento de todos os prejuízos cau­sados pela desapropriação.

Observamos, todavia, que a desistência da desapropriação pressu­põe a devolução do bem expropriado nas mesmas condições em que o expropriante o recebeu do proprietário. Devolver é restituir. E restituir é fazer a coisa retornar ao primitivo dono com as mesmas característi­cas de seu estado anterior, ou seja, as mesmas quantidade e qualidade originárias. Se houver alterações no bem, é inadmissível a desistência da desapropriação. Assim já decidiu o Tribunal de Justiça de São Pau­lo,33 em conformidade com a jurisprudência dominante.

2.14 DESAPROPRIAÇÃO SANCIONA TÓR1A

O art. 182 da Constituição Federal, em seu § 4a, introduziu no Di­reito brasileiro as figuras do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, estabelecendo para o proprietário omisso, ao final de um

33. TJSP, RJTJSP 81/273. Assim também decidiu o juiz Antônio de Pádua Ferraz Nogueira, em fundamentado despacho proferido na ação de desapropriação das ações da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, pelo Governo do Estado de São Paulo, rejeitando a desistência em harmonia com os pareceres de Caio Tácito (RDA 154/219 c RT 580/49) e nosso (RDA 154/248 e RT 580/41), cujo despacho foi con­firmado pelo TJSP (RT 588/59).

V. também RT6S2/93 , 609/83.

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204 DIREITO DE CONSTRUIR

processo de induzimento, a penalidade consistente na desapropriação do imóvel não aproveitado ou subaproveitado. Esse assunto já foi ob­jeto de exame no cap. 4, mais exatamente nos subitens 4.3.1 e 4.3.9.

Tal desapropriação difere das desapropriações comuns na medida em que o imóvel não se destina a determinada obra ou empreendimen­to destinado a suprir uma utilidade ou necessidade pública. Essa nova modalidade de desapropriação assemelha-se bastante à chamada “de­sapropriação para fins de reforma agrária”, pois se aplica igualmente a imóvel que não esteja cumprindo sua função social. Entretanto, esta desapropriação, prevista no art. 182 da Constituição Federal, aplica-se apenas a imóveis urbanos, para que o Município possa lhes conferir uma utilidade urbanisticamente útil ou desejável, conforme estiver dis­posto na legislação local que determinar o uso dessa modalidade ex­propriatória.

Ela se constitui em uma sanção, na medida em que se trata de rea­ção do Poder Público contra o proprietário recalcitrante em não cum­prir a lei. Mas, além disso, também pode ser considerada como uma sanção a forma de pagamento da indenização, que não será nem prévia nem em dinheiro, mas em títulos da dívida pública, resgatáveis em dez anos.

Em razão do caráter sancionatório, não há uma declaração de uti­lidade pública ou interesse social, que é substituída pela previsão no Plano Diretor da cidade e em lei municipal específica (arts. 5a e 8Q da Lei 10.257/2001 - Estatuto da Cidade); mas a efetivação da desapro­priação deverá ser feita na forma da legislação ordinária federal, in­clusive no tocante à indenização, que (embora não seja prévia e em dinheiro) deverá ser justa e fixada conforme os parâmetros da legisla­ção vigente.

Convém repetir que esta específica modalidade de desapropriação sancionatória se refere a imóveis urbanos e pode ser efetivada apenas pelos Municípios. Outra modalidade de desapropriação sancionatória é aquela prevista no art. 184 da Constituição Federal, aplicável apenas a imóveis rurais que não estejam cumprindo sua função social, e que pode ser efetivada apenas pela União e nos termos da legislação espe­cífica.

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Capítulo 6

CONTROLE DA CONSTRUÇÃO E PROTEÇÃO AMBIENTAL

1. CONTROLE DA CONSTRUÇÃO: 1.1 Considerações gerais; 1.2 Con­trole da construção pelo Município; 1.3 Planos urbanísticos; 1.4 Código de Obras; 1.5 Aprovação de projeto; 1.6 Estudo Prévio de Impacto de W- zinhança e Estudo Prévio de Impacto Ambiental; 1.7 Alvará; 1.8 Embargo de obra; 1.9 Demolição compulsória de obra: 1.9.1 Demolição de obra licenciada; 1.9.2 Demolição de obra clandestina; 1.9.3 Demolição de obra em ruína. 2. PROTEÇÃO AMBIENTAL: 2.1 Controle da poluição.

L CONTROLE DA CONSTRUÇÃO

L I CONSIDERAÇÕES GERAIS

Cabe ao Poder Público, especialmente à Administração munici­pal, o controle da construção, no uso regular do poder de polícia admi­nistrativa, inerente a toda entidade estatal. E assim é porque a constru­ção, notadamente a residencial, tem fundas implicações com a segu­rança, a saúde, o sossego e o conforto das pessoas e interfere no desen­volvimento da cidade, afetando o bem-estar geral da população.

A moradia é o elemento primordial da vida urbana e que maior influência exerce na existência do indivíduo e da coletividade.

Com tais interferências na conduta individual e coletiva, não po­deria a edificação ficar isenta do controle do Poder Público, pelos ma­les que adviriam do exercício incondicionado do direito de construir, que, sendo uma das formas de utilização da propriedade, há de cum­prir sua função social (Constituição Federal, art. 170, III).

Como as demais atividades de interesse coletivo, a construção ur­bana sujeita-se ao policiamento administrativo da entidade estatal com­petente para sua regulamentação e controle, que é, por natureza, o Mu­nicípio.1 Esse controle se desenvolve sob o duplo aspecto estrutural, da obra, e urbanístico, do conjunto das construções da cidade.

I. O Município geralmente controla as construções urbanas, mas nada impe­de que estenda a sua fiscalização às edificações da zona rural, desde que edite nor-

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206 DIREITO DE CONSTRUIR

O Urbanismo, como técnica de organização dos espaços habitá­veis, enuncia normas de interesse coletivo tão úteis quanto as regras estruturais da edificação individual. Não há razão, portanto, para só se exigir solidez e salubridade do edifício, descurando-se de sua localiza­ção, funcionalidade e estética, que interessam tanto ao proprietário quanto aos vizinhos e à comunidade urbana dependente do conjunto das construções, porque a cidade não é de um, nem de alguns; é de todos. E, sendo de todos, há de prevalecer o interesse da coletividade sobre o do indivíduo, na composição do agregado urbano, sempre su­jeito às imposições urbanísticas.

A propósito, merece ser lembrada esta advertência do urbanista Luís Migone: “El divorcio entre el edifício y la ciudad es la causa de nuestros males. Establecer el vínculo entre el edifício y la ciudad es la tarea que debemos realizar. No nos limitemos a construir bien los edi­fícios; no olvidemos que estamos construyendo al mismo tiempo la ciu­dad”.2

Daí os planos urbanísticos, as leis de uso e ocupação do solo ur­bano, que já vimos antes, disciplinando a utilização das áreas urbanas e urbanizáveis, e o Código de Obras e suas normas complementares, regulando a construção em si mesma. Toda construção urbana, e espe­cialmente a edificação,3 fica sujeita a esse duplo controle - urbanístico

mas próprias para essas obras. O que não se admite é a aplicação da legislação urbana à zona rural, pois as condições ambientais daquela e desta são inteiramente diversas. Além disso, o Município não pode regular o uso e ocupação do solo rural- que é atribuição federal - , pelo quê só lhe é licito controlar as edificações dessa zona sob o aspecto estrutural e funcional, visando à segurança e à salubridade da obra. Também não pode intervir nas construções que se destinem às atividades agrí­colas, pastoris ou extrativas, ficando, assim, limitado o seu controle às moradias da zona rural, para impor-lbes as condições mínimas de habitabilidade.

O TJMG julgou o Município incompetente para impedir a construção de pe­nitenciária em seu território, em área de propriedade do Estado, em face dos inte­resses superiores da Administração (RT 609/176).

2. Las Ciudades, Buenos Aires, 1940, “Prólogo”, p. IX.3. Edificação e constmção têm significado técnico diverso: construção é o

gênero abrangente de toda obra imobiliária, qualquer que seja a sua destinação; edificação, a espécie destinada a uso humano, tal como habitação, trabalho, ensi­no, recreação, culto etc. Assim, toda realização em imóvel é construção, mas nem sempre é edificação. Uma ponte, uma usina, uma estrada, um estábulo, um muro, são construções, mas não são edificações; edificação é a casa, o edifício de aparta­mentos, a escola, o hospital, a repartição pública, o templo etc. Essa distinção é normalmente feita nos Códigos de Obras que cuidam genericamente da construção e especificamente da edificação.

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e estrutural que exige a prévia aprovação do projeto pela Prefeitura, com a subseqüente expedição do alvará de construção e, posteriormen­te, do alvará de ocupação, vulgarmente conhecido por “habite-se”. Além da aprovação do projeto, o controle da construção estende-se à execução da obra, mediante fiscalização permanente, que possibilitará embargo e demolição quando em desconformidade com o projeto apro­vado, ou com infringência das normas legais pertinentes, como vere­mos no decorrer deste capítulo.

1.2 CONTROLE DA CONSTRUÇÃO PELO MUNICÍPIO

O controle da construção pelo Município tem o duplo objetivo de garantir a estrutura e a forma da edificação e de harmonizá-la no agre­gado urbano, para maior funcionalidade, segurança, salubridade, con­forto e estética da cidade. Daí as exigências estruturais da obra e as de sua localização e função, diante do zoneamento e das normas de ocu­pação do solo urbano ou urbanizável, consignadas na regulamentação edilícia.4

Nem é por outras considerações que a lei civil, ao assegurar a li­berdade de construção, impõe o respeito ao direito dos vizinhos e aos regulamentos administrativos (Código Civil, art. 1.299),3 que, no di­zer autorizado de Filadelfo Azevedo, “passam à categoria de direito substantivo”.6 Substantivados, assim, os regulamentos edilícios apre­sentam-se com o mesmo poder normativo e constitutivo da lei federal e servem de base para o policiamento municipal das construções, e em todos aqueles aspectos que mereceram regulamentação local em prol da comunidade.

4. Cf. nosso Direito Municipal Brasileiro, 13a ed., Malheiros Editores, 2003, cap. IX; Lucia Valle Figueiredo, Disciplina Urbanística da Propriedade, lu ed., Ed. RT, 1980, e 2a ed., Malheiros Editores, 2005; José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, 4a ed., Malheiros Editores, 2005.

Na doutrina estrangeira, v.: Virgilio Testa, Manuale di Legislazione Urbanísti­ca, Milão, 1956; Alcides Greca, El Règimen Legal de la Construcción, Buenos Aires, 1956; Antonio Carceller Femandez, El Derecho y la Obligaciòn de Edificar, Madri, 1965; Georges Liet-Veaux, Le Droit de la Construction, Paris, 1976; Allan R. Brevver-Carías, Urbanismo y Propiedad Privada, Caracas, 1980.

5. O controle da construção pelo Município, atualmente, não se apóia somen­te no art. 1.299 do Código Civil. A Constituição Federal de 1988 outorgou ao Mu- nicipio competência expressa para o ordenamento de seu território, mediante o pla­nejamento e o controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art.30, VIII).

6. Destinação do Imóvel, Rio, 1957, p. 138.

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O poder de polícia administrativa - já o conceituamos - é a facul­dade discricionária que se reconhece à Administração Pública de res­tringir e condicionar o uso e gozo dos direitos individuais, especial­mente os de propriedade, em benefício do bem-estar geral. Em lingua­gem mais livre, pode-se dizer que o poder de polícia administrativa é o mecanismo de frenagem que a Administração Pública emprega para conter as atividades anti-sociais dos particulares. Com esse instrumen­to administrativo, o Poder Público impede toda conduta individual con­trária à lei, nociva à coletividade. Para tanto, as atividades que interfe­rem com o bem-estar social - como as construções urbanas - ficam sujeitas a requisitos técnicos e a limitações administrativas tendentes a ordená-las segundo a sua destinação e os superiores interesses da co­munidade. E o duplo controle técnico-funcional, da obra, e urbanísti­co, da cidade.7

Todo esse controle administrativo da construção urbana compete institucionalmente ao Município, mas, se ele não o faz, ensejando obras contrárias às suas próprias leis e regulamentos, estende-se a faculdade de coibi-las aos vizinhos prejudicados, que podem embargá-las e obter a demolição por via judicial, pela substantivação das normas edilícias convertidas em direito individual de vizinhança.8

Esse ordenamento da construção urbana se faz por imposições de ordem pública, de natureza administrativa e de caráter urbanístíco, por meios e instrumentos de que dispõe a Prefeitura para acompanhar a edificação individual desde a sua origem até a sua conclusão e utiliza­ção, e tais são: os planos urbanísticos, o Código de Obras, a aprova­ção do projeto, o alvará de construção e de ocupação, o embargo e a demolição da obra irregular ou clandestina.

1.3 PLANOS URBANÍSTICOS

Os planos urbanísticos devem, entre outras finalidades, definir a função social dos imóveis no Município, disponibilizando instrumen­tos específicos que viabilizarão esta realização (Lei federal 10.257/ 2001, art. 4°, III). Alguns destes instrumentos interferem diretamente no direito de construir, como, p. ex., a transferência do direito de cons­

7. TJSP,RDA 110/251.8. STF, RE 49.042-SP, DJU 19.7.1963, confirmado in TJSP, RT 312/262.

No mesmo sentido: TJRJ, RT 301/625; TJSP, RT 254/233, 307/349, 398/169, 427/ 76; TJRS, RT 627/189.

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truir, a outorga onerosa, o tombamento, o direito de superfície, que al­teram o coeficiente de aproveitamento, reduzindo-o ou aumentando-o. Além disso, o Plano Diretor define as áreas que devem ser objeto das sanções impostas pelo descumprimento da função social da proprieda­de, tendo entre elas a edificação compulsória. Portanto, o Poder Públi­co Municipal deve analisar os projetos de construção e obras tendo sempre como ponto de partida os eventuais planos urbanísticos que existam no Município.

1.4 CÓDIGO DE OBRAS

O Código de Obras, também chamado de Código de Edificações, como elemento da legislação edilícia, deve reunir em seu texto, de modo orgânico e sistemático, todos os preceitos referentes às constru­ções urbanas, especialmente para as edificações, nos aspectos de estru­tura, função e forma, necessários à obra individualmente considerada. O Código de Obras deve ser aprovado por lei, por impor restrições ao direito individual de construir, mas admite sua regulamentação por de­creto, principalmente nos aspectos relacionados com a técnica constru­tiva. O que convém é que cada Município tenha o seu Código de Obras tecnicamente elaborado, e não adote Código alheio, nem sempre ajus- tável às peculiaridades locais. Por outro lado, a adoção de um Código estranho cria o problema das futuras modificações na legislação origi­nária, que não se estendem automaticamente ao Município adotante, mas induzem os intérpretes a freqüentes dúvidas na sua aplicação.

Além das exigências técnicas da construção no seu aspecto estru­tural, o Código de Obras deve estabelecer as condições de apresenta­ção dos projetos de edificação, com os respectivos requisitos de sua ela­boração e tramitação na Prefeitura, indicando, inclusive, os recursos ca­bíveis. O que não se justifica é a inclusão de preceitos urbanísticos ge­rais ou de imposições referentes à propriedade do terreno, porque aque­les devem constar das normas de uso e ocupação do solo existentes na Lei Federal 10.257/2001 - Estatuto da Cidade, nos planos urbanísticos e leis complementares. No Código de Obras só cabem normas técni­cas da construção, ou seja, requisitos de estrutura e composição da obra, segundo a sua natureza e destinação. Bem por isso, deve o Códi­go diversificar as exigências para cada tipo de obra, visando a adequar a construção aos fins a que é destinada: residência, indústria, comér­cio, escritórios e outros usos especiais. Em última análise, o Código de Obras só deverá conter imposições estruturais da construção, visando

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a propiciar segurança e funcionalidade a cada obra individualmente considerada.

1.5 APROVAÇÃO DE PROJETO

A aprovação de projeto de construção ou de plano de loteamento urbano compete à Prefeitura, como meio preventivo do controle des­sas atividades dependentes de licenciamento municipal. Para obter a licença e o respectivo alvará o interessado deverá apresentar à reparti­ção competente o projeto da construção ou o plano do loteamento ela­borado e assinado por profissional habilitado (engenheiro ou arquite­to) e registrado no CREA, com a documentação e peças gráficas legal­mente exigidas, acompanhado do memorial descritivo, de modo a pos­sibilitar à Prefeitura conhecer a futura obra ou loteamento em todos os seus detalhes e confrontá-la com a legislação correspondente e com as normas técnicas aplicáveis. Se o projeto ou o plano estiver em ordem, a autoridade o aprovará; se se apresentar incompleto ou em desconfor- midade com as exigências técnicas ou legais, deverá ser concedido pra­zo razoável para sua correção, através do denominado “comunique-se”, transcorrido o qual será reapreciado o processo. Aprovado o projeto ou o plano, será expedido o respectivo alvará; se indeferido, deverá ser comunicado ao interessado, que poderá recorrer à autoridade supe­rior, mesmo que nenhuma norma local disponha sobre o recurso, pois no nosso sistema administrativo é inconcebível a decisão única e irre- corrível.

Ilegal é a conduta da Prefeitura quando indefere sumariamente o pedido de construção ou de loteamento, sem dar oportunidade de cor­reção do projeto ou do plano ao interessado, pois o construir e o lotear são direitos inerentes à propriedade e, por isso, não podem ser relega­dos ou suprimidos por ato unilateral da Administração, sem ser ouvido o proprietário. O que se reconhece ao Município é o poder de controle da construção e do loteamento urbano, para que se façam dentro das normas legais e regulamentares que condicionam tais atividades.9 Mas daí não se infere que a Prefeitura possa exigir mais do que a lei ou o regulamento impõem, ou possa condicionar o direito de construir ou de lotear além dos limites legais. Condicionar não é suprimir o direito; é ordenar o seu exercício segundo as exigências do interesse público. Como bem advertiu Otto Mayer, a esse propósito, “la regia de derecho

9. TJSP, RT 634/60.

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no puede ser violada por la disposición de policia; ésta no puede auto­rizar lo que dicha regia prohibe, ni prohibir lo que ella permite”.10 E, particularizando a hipótese ao direito de construir, o Prof. Georges Liet- Veaux, da Universidade de Paris, adverte: “Le principe fondamental c’est le droit de construire. Un permis (licença de construção) ne peut être refusé que dans les conditions et cas prévus par la loi” .11

Ilegal é a recusa de aprovação de projeto de construção ou de pla­no de loteamento pelo simples fato de haver decreto expropriatório do terreno, ou mero plano de obras públicas para a área, ou qualquer outra circunstância que, de futuro, possa impedir a construção particular, pois a Administração Pública não tem o poder de bloquear a propriedade privada e estancar o direito de construir, indefinidamente e sem indeni­zação do proprietário prejudicado. Se há interesse público na área, in­cumbe à Administração interessada efetivar a justa e prévia indeniza­ção constitucional para apossar-se dos terrenos necessários e impedir a construção particular; sem isto, a recusa da licença para construir ou lotear, quando o projeto ou o plano estiver em ordem, é ilegal e abusi­va, podendo, mesmo, ser obtida por mandado de segurança, dada a ofensa a direito líquido e certo do proprietário.12 Esse abuso da Prefei­tura tanto se revela no indeferimento formal da licença de construção ou de loteamento quanto na protelação da aprovação do projeto ou do plano, caracterizadora de omissão lesiva ao direito de construir ou de lotear.

Comumente, as normas locais estabelecem prazo para aprovação do projeto e de validade do alvará da licença para início e conclusão da obra. Transcorrido o período legal de aprovação sem manifestação contrária da Prefeitura, fica o interessado autorizado a iniciar a cons­trução, sob a ressalva de demolir o que for feito se o projeto vier a ser indeferido ou aprovado com alterações.13 Quanto à caducidade da li­

10. Derecho Administrativo, 11/59, trad. Depalma, Buenos Aires, 1950.11. Le Droit de la Construction, 4a ed., Paris, 1976, p. 90.12. Cf. nosso parecer in RT 450/39 e também in RDA 106/441. No mesmo

sentido: STF, Súmula 23, e outros tribunais: TJPR, RT 359/443; TJSC, RDP 24/ 175; TASP, R T 290/ 525, 292/640, 298/582, 300/569, 306/651, 323/537, 351/593; TJSP, RT 207/307, 251/238, 270/429, 311/389, 342/264, 352/410, 439/133, 459/ 104; STJ, RDA 179/177.

13. O STF decidiu que licença não despachada no prazo legal é considerada concedida (RTJ7/415). Data venia, não se pode considerar o silêncio da Prefeitura como ato de aprovação do projeto ou do plano senão quando a norma pertinente assim o estabelece expressamente. Não havendo essa cominação, o transcurso do

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cença, opera-se ao final do prazo para início da obra se esta não estiver começada, nos termos definidos pelo próprio Código de Obras, que poderá também fixar limite de tempo para sua conclusão. Vencidos es­tes prazos, a licença perde sua eficácia, devendo ser requerida sua re­novação. Pode surgir, então, o problema das normas supervenientes.

Se ao tempo da renovação do alvará a legislação for a mesma de sua expedição, nada obsta ao atendimento do pedido; se, porém, a le­gislação for outra, o requerente terá que adaptar o projeto ou a cons­trução inconcluída às novas normas, pois a caducidade do alvará faz perecer o direito que ele assegurava pela legislação anterior.

O início da obra gera direito adquirido à sua continuidade pela legislação em que foi aprovado o projeto, e, mais que isso, o só ingres­so do projeto em conformidade com a legislação vigente assegura ao requerente a sua aplicação, pois o retardamento da Prefeitura na apro­vação do projeto não pode prejudicar o interessado que atendeu opor­tunamente às exigências legais da época em que projetou e requereu a construção. Todavia, se houver prazo legal para a conclusão da obra e esta, embora aprovada e iniciada tempestivamente, não se concluir na vigência da licença, o primitivo alvará somente poderá ser renovado com adaptação da construção às novas imposições legais. Há, pois, duas situações a distinguir: a do alvará vigente, que será respeitado com ou sem início da obra, e a do alvará extinto, que exige renovação com adequação do projeto, ou da obra iniciada, às novas exigências legais.14

1.6 ESTUDO PRÉVIO DE IMPACTO DE VIZINHANÇAE ESTUDO PRÉVIO DE IMPACTO AMBIENTAL

O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) prevê, em seu art. 4a, VI, o estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e o estudo prévio de im­pacto de vizinhança (EIV) como instrumentos a serem usados na defi­nição da política urbana, em cada Município.

Estes estudos destinam-se a permitir que os órgãos competentes da Prefeitura examinem a adequação do empreendimento no respecti­vo local e entorno, com relação aos aspectos do sistema viário e de

prazo de aprovação autorizará apenas o início da obra, mas sempre sujeita à deci­são final da Prefeitura, como entendeu o mesmo STF em julgado subseqüente (RTJ 54/197). Sobre o tema, v. José Wilson Ferreira Sobrinho, “Silêncio administrativo e licença de construção”, RDP 99/95.

14. TJSP, RT 671/84.

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transportes, produção de ruídos e resíduos sólidos, capacidade da in­fra-estrutura instalada etc. O EIV não é uma decorrência de restrição civil de vizinhança, conforme esclarecemos no capítulo 3. Verifica-se o impacto que determinado empreendimento ou obra terá sobre seu en­torno, sobre a coletividade que o cerca, tanto de moradores como de usuários permanentes, as atividades que são desenvolvidas tradicional­mente na região e no que poderá afetar tudo isso. Tem incidência so­mente na esfera municipal, no aspecto urbanístico da questão. O EI A, entretanto, poderá ser exigido pelas três esferas de Poder (Municipal, Estadual ou Federal) em razão do tipo de obra, localização ou ativida­de que será exercida na edificação. Tem critérios mais rígidos de ela­boração que o EIV, pois engloba o aspecto ambiental em sua totalida­de, e deverá envolver a participação popular na sua elaboração. A lei municipal deverá especificar os empreendimentos que ficam sujeitos à apresentação do EIV e qual o órgão competente para sua aprovação. Eventuais exigências que forem feitas devem estar embasadas em lei e a expedição da licença para construir fica subordinada à aprovação do EIV. Na verdade, as limitações impostas ao proprietário decorrentes da proteção ao meio ambiente urbano são limitações administrativas, que visam à preservação ou melhoria da qualidade de vida nas cidades.

1.7 ALVARÁ

O alvará pode ser de licença ou de autorização para construir ou lotear. O de licença traz presunção de definitividade; o de autorização, de precariedade.13 Ambos são legítimos, mas se destinam a prover si­tuações distintas e produzem efeitos jurídicos diferentes. Assim, quan­do a Prefeitura aprova o projeto de um edifício em terreno do reque­rente, adequado a essa construção, deve expedir alvará de licença para construir; se, porém, no mesmo terreno ela apenas consente que se construa provisória e precariamente um barracão para estacionamento de carros ou outra atividade simplesmente tolerada, mas não assegura­da por lei, ela expedirá um alvará de autorização, revogável a qual­quer tempo.16 Nos dois casos, o alvará é o instrumento de controle pré­vio da construção, mas cada um produz efeito jurídico distinto: o alva­rá de licença reconhece e consubstancia um direito do requerente; o alvará de autorização legitima uma liberalidade da Administração. Daí

15. STF, RTJ 79/1.016.16. STF, RDA 95/117.

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decorre que o alvará de autorização é sempre revogável pela Prefeitu­ra, sumariamente e sem qualquer indenização, ao passo que o alvará de licença nem sempre o é.

O alvará de licença para construir ou lotear é ato decorrente do direito de propriedade, vinculado às normas regulamentares pertinen­tes (Código Civil, art. 1.299), e, por isso, quando o interessado as aten­de, não pode a Prefeitura negar aprovação ao projeto de construção ou ao plano de loteamento, visto que esse deferimento é uma imposição legal, e não uma faculdade discricionária da Administração. Advirta- se também que ao Município só incumbem a legislação e o controle dos aspectos técnicos, estruturais e urbanísticos das construções e dos loteamentos urbanos ou para fins urbanos, não lhe competindo editar normas ou fazer imposições de natureza civil ou imobiliária, privativas da União, ou invadir competências do Estado e de órgãos federais, com exigências e impugnações sobre a propriedade e suas mutações domi- niais ou possessórias.

Advirta-se, ainda, que o alvará de construção não implica a expe­dição automática de licença para o exercício de atividade comercial que é vedada pela lei de zoneamento na área.17

Aderindo ao terreno, a licença para construir ou lotear transmite- se automaticamente aos sucessores com a só alienação do imóvel, não sendo lícito à Prefeitura opor-se à expedição ou à transferência do al­vará ao novo proprietário ou compromissário comprador.18 Perante o Município, os títulos de domínio ou posse destinam-se apenas a indi­car a localização, formato, dimensão e características do imóvel; o exa­me da regularidade dominial ou possessória não compete à Prefeitura, cabendo ao serventuário do Registro Imobiliário levantar a dúvida que tiver, para decisão do juiz competente. Ilegais e incabíveis, portanto, são as exigências e impugnações que certas Prefeituras costumam fa­zer sobre a propriedade e transferências dos terrenos, quando só lhes incumbe examinar o projeto da construção ou o plano do loteamento, para dizer da sua regularidade técnica e urbanística em face das nor­mas legais aplicáveis e das restrições específicas da área.19

17. TJSP, RT 641/128.18. Georges Liet-Veaux, Le Droit de la Constniction, 4a ed., Paris, 1976, pp.

82 e ss.; Antonio Carceller Femandez, El Derecho y la Obligación de Edificar, Ia ed., Madri, 1965, pp. 213 e ss.

19. Nesse sentido já decidiu o TJRJ, acolhendo nossa opinião transcrita in RT 551/188 e ss.

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Exceção a esta regra são os instrumentos de regularização fundiá­ria e de interesse social, previstos na Lei 10.257/2001, que dispõe so­bre títulos concedidos a comunidades e grupos sociais menos favoreci­dos, vinculando estas pessoas aos benefícios atribuídos. Neste caso, um loteamento de interesse social poderá não ser aprovado em razão de seus beneficiários não estarem adequados às exigências legais.

Expedido o alvará de licença para construir, ele traz em si a pre­sunção de legitimidade e de definitividade de sua concessão, mas em certas circunstâncias poderá ser invalidado. Realmente, comprovado que sobreveio um interesse público relevante para a não realização da obra, a Prefeitura poderá revogar o alvará de licença, indenizando in­tegralmente os prejuízos ocasionados ao proprietário; comprovado que a obra está sendo construída em desacordo com o projeto aprovado, a Prefeitura poderá cassar o alvará até que a construção seja regulariza­da, nada tendo que indenizar pelo embargo e demolição do que foi fei­to irregularmente; comprovado que o projeto foi aprovado ilegalmen­te, contra as normas da construção, a Prefeitura poderá anular o alva­rá, embargar o que foi feito e promover a sua demolição sem qualquer indenização ao proprietário. Como se vê, são situações diversas que autorizam a invalidação do alvará e a demolição da obra, mas por fun­damentos diferentes e com efeitos jurídicos desiguais, só havendo pa­ridade no dever de comprovar o motivo da revogação, da cassação ou da anulação da licença.

Há que distinguir, portanto, essas três situações para a invalidação do alvará de licença: a cassação, quando ocorrer descumprimento in­corrigível do projeto, em partes essenciais, durante sua execução; a anulação, quando for obtido com fraude ou desobediência à lei; a re­vogação, quando sobrevier motivo de interesse público que exija a não realização da obra licenciada. Em qualquer dessas hipóteses, a Prefei­tura deverá apontar o motivo invalidatório e dar oportunidade de defe­sa ao interessado, antes de efetivar a invalidação do alvará, e só o fará, em despacho motivado, se inaceitáveis as razões opostas. Ilegal, por arbitrária, é a cassação, a anulação ou a revogação de alvará de licen­ça sem defesa e sem motivação, pois o direito de construir não pode ser sumariamente suprimido pela Prefeitura depois de deferido ao re­querente em processo administrativo regular.

Se ocorreu ilegalidade na expedição do alvará ou se a construção está sendo feita em desacordo com o projeto aprovado, tais circunstân­cias deverão ser comprovadas em regular processo administrativo pu­nitivo, para desconstituir a situação anteriormente constituída no pro­

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cesso administrativo de outorga, que erigiu a construção em direito sub­jetivo do requerente.20 Também não se justifica a invalidação do alva­rá por mudança de orientação administrativa, ou nova interpretação das normas edilícias da construção, pois o critério anterior é válido para as licenças expedidas e gera direito subjetivo à sua manutenção.21

Quanto à revogação do alvará por interesse público supervenien­te, a Prefeitura só poderá fazê-lo desde que demonstre, em despacho motivado, esse interesse e indenize cabalmente o lesado, amigavelmen­te ou em desapropriação do imóvel e dos direitos decorrentes da licen­ça para construir.22 O essencial é a demonstração da efetiva existência de interesse público no impedimento da obra e composição dos danos de quem ficou privado da construção em benefício da coletividade. Tal ocorre, p. ex., quando o Município aprova plano de melhoramento ur­bano que atinja edificações licenciadas, caso em que poderão ser revo­gados os respectivos alvarás, com as indenizações correspondentes.23

Ilegal é a invalidação sumária do alvará de licença, mediante sim­ples alegação de interesse público superveniente ou de ilegalidade na sua expedição, ou de descumprímento do projeto na sua execução. Tais fatos devem ser indicados e comprovados no próprio processo que deu origem ao alvará ou em processo autônomo, mas sempre com demons­tração do alegado pela Prefeitura e com oportunidade de defesa e con- traprova do interessado, pois, se para a expedição da licença forma-se um processo e exigem-se tantos requisitos e formalidades para o licen­ciamento da obra, não se pode desconstituir essa licença por ato unila­teral, sem procedimento formal idêntico ao de sua aprovação. Até a verificação da irregularidade a Prefeitura pode agir unilateralmente através de seus agentes de fiscalização, para constatar a infração e la­vrar o auto de multa ou de embargo, mas, daí por diante, para invalidar

20. STJ,J?r659/17\;RD A 181/313.2 1 .0 STF decidiu que a construção iniciada em conformidade com o projeto

regularmente licenciado não poderá ter o alvará cassado, nem a Prefeitura poderá determinar a paralisação e demolição da obra por simples decisão administrativa, porque a parte construída já se integrou ao patrimônio do proprietário, como bem imóvel por acessão (RE 85.002-SP, RTJ 79/1.016).

22. Caio Tácito, Direito Administrativo, São Paulo, 1975, pp. 146 e ss.23. Seabra Fagundes, “Revogação de licença para construção - Direito à in­

denização”, RDP 16/99. Na jurisprudência, v.: TASP, RDA 114/282; TJSP, RT 294) 184; STF, RDA 162/215 (revogação pelo Estado em virtude de limitação paisagís­tica, antes de iniciada a obra); RT 564/236; RTJ 142/944. V., também, nosso pare­cer in Estudos e Pareceres de Direito Público, X/297.

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CONTROLE DA CONSTRUÇÃO E PROTEÇÃO AMBIENTAL 217

o alvará e demolir o que está feito, terá que propiciar oportunidade de defesa e os recursos administrativos regulares ao interessado.

Não se nega à Prefeitura o poder de revogar, cassar ou anular o alvará de licença para construir, quando ocorrer justo motivo para fazê- lo, mas não se admite a sua supressão sumária e a imediata demolição do que tiver sido feito na vigência desse ato administrativo negociai, que legitima a construção. A invalidação da licença há que preceder a demolição, e, mais que isso, deve ser justificada técnica e legalmente em processo regular, ou seja, no devido processo legal, porque a licen­ça não é ato discricionário, mas ato vinculado ao direito de construir e aos regulamentos administrativos que condicionam essa atividade e re­gem a expedição do respectivo alvará.

1.8 EMBARGO DE OBRA

Embargo de obra é a ordem de paralisação dos trabalhos, emana­da da autoridade competente para exercer a polícia das construções.

Legitima-se o embargo, pela Administração, quando o particular descumpre normas técnicas ou administrativas na construção licencia­da, ou a realiza sem licença.

A comprovação da infração deve ser feita em inspeção regular, ainda que sumária, na forma legal ou regulamentar aplicável à espécie. Para tanto, é de toda conveniência que o Código de Obras do Municí­pio ou as normas edilícias complementares indiquem o procedimento a seguir e a autoridade competente para interditar a construção irregular. Mas, mesmo na omissão das normas edilícias quanto ao embargo ad­ministrativo, se nos afigura possível a sua efetivação para impedir a obra ilegal, por ser uma decorrência do poder de polícia da Adminis­tração, à qual incumbe fiscalizar as atividades licenciadas e interditar as que contrariem a licença, ou se realizem sem ela.

O embargo deve ser precedido de vistoria e notificação adminis­trativa para a cessação dos trabalhos, ou da utilização da obra, e, se não atendido no prazo e condições estabelecidos, justifica-se a sua efe­tivação por meios diretos e coercitivos da própria Administração e com emprego da força policial, se necessário. A vistoria, sendo inspeção técnica, só é válida se feita e subscrita por engenheiro ou arquiteto re­gularmente inscrito no CREA. O fiscal leigo não pode fazer verifica­ções técnicas da construção que ultrapassem a simples fiscalização da obra quanto à sua regularidade administrativa.

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Legítimo é o embargo da obra ou a interdição de uso da constru­ção concluída se em desacordo com projeto aprovado ou se realizada clandestinamente sem projeto e alvará da Prefeitura, ou ainda quando, pela deterioração natural do tempo, a edificação se apresentar ruinosa ou insegura para sua normal destinação. Poderá, ainda, haver embargo ou interdição de obras ou de atividades poluidoras. No mais, o Municí­pio tem amplo poder de polícia para regulamentar, fiscalizar e punir, até o embargo ou interdição de construções, usos e atividades que afe­tem e prejudiquem a comunidade local.

Tratando-se de construção concluída, e até mesmo habitada ou com qualquer outro uso, a fiscalização notificará os ocupantes da irre­gularidade a ser corrigida e, se necessário, interditará sua utilização, mediante o competente auto de interdição, promovendo a desocupa­ção compulsória se houver insegurança manifesta, com risco de vida ou saúde para seus moradores ou trabalhadores. Todo o procedimento da fiscalização e das medidas adotadas deverá constar de processo ad­ministrativo regular, na forma estabelecida no Código de Obras e nor­mas complementares da construção.

Feito o embargo e lavrado o respectivo auto, com as formalidades regulamentares, devem ser intimados o construtor e o dono da obra para apresentarem a defesa cabível, no prazo legal, e só após será o proces­so julgado pela autoridade competente para a aplicação das sanções correspondentes (multa, elaboração de projeto, correção ou demolição da obra etc.).

Desse julgamento deverá caber recurso hierárquico para a autori­dade superior (diretor, secretário municipal ou prefeito), ainda que ne­nhuma norma interna o estabeleça, pois no nosso regime administrati­vo a regra é a dupla jurisdição, não se presumindo a decisão única e irrecorrível. O efeito do recurso é, normalmente, o devolutivo, poden­do o regulamento ou o próprio despacho de recebimento o admitir tam­bém com efeito suspensivo.

Observe-se, finalmente, que o embargo administrativo de obra não se confunde com o embargo judicial, admissível nos casos mencionados adiante (cap. 9, itens 1.2,1.3 e 1.9), pois a Administração Pública tanto pode embargar diretamente as obras ilegais, ou interditar as que ofere­çam perigo, como pode requerer essas medidas ao Judiciário. Cabe ao administrador público escolher a via oportuna e conveniente à situação emergente. Se antes pairavam dúvidas sobre esse poder de execução direta dos atos de polícia administrativa, hoje é pacífico o reconheci­

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mento de tal privilégio à Administração, tanto pela doutrina24 quanto pela jurisprudência, chegando, mesmo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em sessão plenária, a afirmar que: “Exigir-se prévia autorização do Poder Judiciário eqüivale a negar-se o próprio poder de polícia ad­ministrativa, cujo ato tem de ser direto e imediato, sem as delongas e complicações de um processo judiciário prévio”.2̂ O particular que se sentir prejudicado pelo embargo de sua obra poderá reclamar à Justiça, pela via adequada (mandado de segurança ou ação ordinária), a restau­ração de seu direito, se antes não preferir recorrer administrativamente à autoridade superior.26

1.9 DEMOLIÇÃO COMPULSÓRIA DE OBRA

A demolição compulsória de obra constitui a mais drástica das sanções de polícia administrativa, e, por isso mesmo, exige prudência na sua aplicação. Para esta imposição, necessário se toma distinguir a obra licenciada da obra clandestina.

1.9.1 DEMOLIÇÃO DE OBRA LICENCIADA

A demolição de obra licenciada não pode ser ordenada sumaria­mente pela Prefeitura, porque a licença, se bem que invalidável como todo ato administrativo, traz em si a presunção de legitimidade de seu objeto. Se houve descumprimento das normas da construção, ou se esta se tornou incompatível com o interesse público, só em processo regu­lar se poderá anular, cassar ou revogar o alvará, após oportunidade de defesa do interessado, e comprovação da justa causa para a elimina­ção da obra. A licença para construir - já o dissemos precedentemente- é um ato negociai e vinculado, que se constitui pela solicitação da parte com atendimento de todas as exigências legais e regulamentares da Administração. Por isso, gera direito individual e subjetivo à cons­trução licenciada, a qual só pode ser demolida ou impedida na sua

24. Darcy Bessone, “Poder de polícia - Repressão às construções clandesti­nas”, RT 210/49; Antão de Moraes, “Parecer” in RT 220/41; Machado Guimarães, Comentários ao Código de Processo Civil, 1V/218, Rio, 1942; Caio Tácito, “O poder de polícia e seus limites”, RDA 27/1; Hely Lopes Meirelles, Direito Admi­nistrativo Brasileiro, 30a ed., pp. 161 e ss.

25. TJSP, RT 183/823 e, no mesmo sentido: STF, RDA 113/175, 118/329; TJSP, RDA 93/188, 204/283, 227/137, 386/54, 391/187; RT 623/48.

26. TJSP, RT 644/65.

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execução após a desconstituição regular do ato gerador desse direito, que é o alvará. E essa desconstituição há de ser feita pelo caminho in­verso, observado o devido processo legal, pois não é discricionária nem arbitrária, mas vinculada à existência e legitimidade dos motivos invo­cados para a invalidação da licença (v. retro, itens 1.5 e 1.6).

1.9.2 DEMOLIÇÃO DE OBRA CLANDESTINA

A demolição de obra clandestina, por óbvias razões, pode ser efe­tivada mediante ordem sumária da Prefeitura, porque, em tal caso, o particular está incidindo em manifesto ilícito administrativo com o só ato de frustrar a apreciação do projeto, que é pressuposto legal de toda construção. Como a construção é atividade sujeita a licenciamento pelo Poder Público, a ausência de licença para construir faz presumir um dano potencial à Administração e à coletividade, consistente na priva­ção do exame do projeto e na possibilidade de insegurança e inadequa­ção da obra às exigências técnicas e urbanísticas.27

O ato ilegal do particular que constrói sem licença rende ensejo a que a Administração use o poder de polícia que lhe é reconhecido, para embargar, imediata e sumariamente, o prosseguimento da obra e efeti­var a demolição do que estiver irregular, com seus próprios meios, sem necessidade de um procedimento formal anterior, porque não há licen­ça ou alvará a ser invalidado. Basta a constatação da clandestinidade da construção, pelo auto de infração, para o imediato embargo e or­dem de demolição.28

Como proceder se as obras, embora clandestinas, estiverem de acordo com as normas urbanísticas e estruturais da construção, ou ad­mitirem essa adaptação? Em tais casos não devem ser demolidas, mas regularizadas perante a Prefeitura, com a apresentação do projeto e do­cumentos legalmente exigíveis, recolhimento das taxas e multas cabí­veis, para a oportuna expedição do alvará de conservação, como têm admitido os tribunais.29 Isto porque a licença para construir não se

27. Sobre responsabilidade por obra clandestina, v. o cap. 8, item 2.13.28. STF, RF 124/438; TJSP, RDA 34/297, 35/293; RT 204/283, 227/136;

TJSC, RT 684/145. A demolição de barracos de favela construídos clandestina­mente foi indeferida tendo em vista o problema social, em importante acórdão rela­tado pelo eminente Des. Alves Braga (TJSP, RT 604/310).

29. TASP, RT 201/409, 288/691, 297/487; TJSP, RT 189/296, 189/690, 249/ 457, 349/127.

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confunde com a construção em si mesma: esta é um direito do proprie­tário; aquela é um instrumento preventivo de controle da edificação. Desde que a construção esteja em conformidade com o Direito, a Ad­ministração não tem o poder de destruí-la pela simples ausência do con­trole prévio, já superado pela regularidade da obra. O que remanesce com a Prefeitura é a faculdade de exigir a regularização formal da do­cumentação, para a expedição a posteriori do alvará, que deveria ser a priori, e mais o pagamento de taxas e multas regulamentares.

Convém acentuar que o simples pagamento de multa e dos emo­lumentos devidos pela irregularidade não autoriza a permanência da construção ilegal; o que possibilita a sua manutenção é a efetiva adap­tação às normas do Código de Obras e da legislação urbanística vigen­te para o lócal, que pode estar sujeito a requisitos especiais de uso e ocupação do solo.30

1.9.3 DEMOLIÇÃO DE OBRA EM RUÍNA

A demolição de obra em ruína, ou que ofereça perigo, compete, em geral, à Administração Pública, e em especial à Prefeitura, quando se tratar de construção urbana que ponha em risco a coletividade ou seus moradores, sem que o proprietário tome as providências necessá­rias. Quanto à demolição dessas obras não há discrepância na doutrina nem na jurisprudência, porque, em tal caso, além do privilégio da auto- executoriedade do ato de polícia administrativa, a conduta da Admi­nistração é autorizada pelo estado de necessidade, previsto no art. 188, II e parágrafo único, do Código Civil, que, como preceito de ordem pública, se impõe tanto aos particulares quanto ao próprio Poder Pú­blico, chegando, mesmo, a constituir infração penal para os seus res­ponsáveis (crime ou contravenção de desabamento: Código Penal, art. 256, e Lei das Contravenções Penais, arts. 29 e 30), conforme o de­monstramos no lugar próprio (cap. 8, item 2.12). Essa demolição pode também ser promovida judicialmente, como medida provisional (Có­digo de Processo Civil, art. 888, VIII), se assim o desejar a Prefeitura, abrindo mão do seu poder administrativo de auto-executoriedade das providências urgentes em defesa da segurança ou da saúde pública e de outros interesses relevantes da comunidade.

30. TASP, RT 219/469, 238/490; TJSP, RT 190/334, 192/234, 194/741, 194/ 745; l n TACivSP, R T 645/107 (caixas bancárias eletrônicas instaladas sem licença).

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2. PROTEÇÃO AM BIENTAL

A proteção ambiental visa à preservação da Natureza em todos os elementos essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio eco­lógico, diante do ímpeto predatório das nações civilizadas, que, em nome do desenvolvimento, devastam florestas, exaurem o solo, exter­minam a fauna, poluem as águas e o ar.

Essa ação destruidora da Natureza é universal e milenar, mas agra- vou-se a partir do início do século XX em razão do desmedido cresci­mento das populações e do avanço científico e tecnológico, que propi­ciou à Humanidade a mais completa dominação da terra, das águas e do espaço aéreo.

Viu-se, assim, o Estado moderno na contingência de preservar o meio ambienteP1 para assegurar a sobrevivência das gerações futuras em condições satisfatórias de alimentação, saúde e bem-estar. Para tan­to, criou-se um Direito novo - o Direito Ambiental32 - , destinado ao estudo dos princípios e regras tendentes a impedir a destruição ou a degradação dos elementos da Natureza.

Pela primeira vez em nossa história política, a Constituição de 1988 contemplou o meio ambiente em capítulo próprio, considerando- o como bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo e defendê-lo, para as gerações presentes e futuras (art. 225). Referindo- se a Poder Público, a competência abrange os três níveis de Governo, mas a Carta distinguiu a competência executiva comum, que cabe a to­das as entidades estatais (art. 23, VI), da competência legislativa con­

31. Em Urbanismo e Ecologia, as expressões meio ambiente e ambiental correspondem no Francês a environnement, no Inglês, a environment e environmental, no Espanhol, a entorno.

32. Sobre Direito Ambiental consultem-se, na doutrina estrangeira: Ramón Martin Mateo, Derecho Ambiental, Madri, 1977; McNight, Marstrand e Sinclair, Environmental Pollution Control, Londres, 1974; M. Girold, Droit de la Protection de la Nature e de VEnvironnement, Paris, 1973; Fernando Lopez Ramón, La Con- servación de la Naturaleza; los Espacios Naturales Protegidos, Publicaciones de) Real Colégio de Espana, Bolonia, 1980.

No Direito pátrio, inúmeros estudos, artigos e pareceres têm sido publicados nas revistas especializadas, cuja enumeração seria arriscada, pela possibilidade de omissão. Merecem destaque, contudo, a monografia de Paulo Affonso Leme Ma­chado, Direito Ambiental Brasileiro, 13a ed., Malheiros Editores, 2005, que nos dá uma visão panorâmica e sistemática da matéria, como, também, de José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, 4a ed., Malheiros Editores, 2005, e Direito Ambiental Constitucional, 5a ed., Malheiros Editores, 2004.

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CONTROLE DA CONSTRUÇÃO E PROTEÇÃO AMBIENTAL 223

corrente, que é restrita à União, aos Estados e ao Distrito Federal (art. 24, VI e VII). Aos Municípios cabe apenas suplementar a legislação federal e estadual “no que couber” (art. 30, II), o que significa que só podem fazê-lo nos assuntos de predominante interesse local.

No campo da legislação ordinária, a norma básica de proteção ao meio ambiente é a Lei 6.938, de 31.8.1981, que instituiu a Política Na­cional do Meio Ambiente e criou o respectivo Sistema Nacional de Pre­servação e Controle - SISNAMA, composto por órgãos da União, dos Estados e Municípios, lei, essa, que, recepcionada pela Constituição e complementada por normas posteriores, assim organizou a administra­ção ambiental: a) órgão superior: o Conselho de Governo, que assessora o Presidente da República nas diretrizes governamentais para o meio ambiente; b). órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA; c) órgão central: o Ministério do Meio Ambiente; d) órgão executor: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA; e) órgãos seccionais: os órgãos e entidades federais cujas atividades estejam associadas às de proteção ambiental; e os órgãos ou entidades estaduais responsáveis pela execução de programas e pelo controle dessas atividades nos Estados;f) órgãos locais: os órgãos ou entidades municipais responsáveis pelo controle dessas atividades no âmbito de suas respectivas jurisdições.

Ao Ministério do Meio Ambiente incumbem o planejamento e a supervisão da Política Nacional do Meio Ambiente, enquanto ao IBA- MA - autarquia federal de regime especial - cabe a execução dessa política em todas as suas etapas, desde a preservação dos recursos na­turais até sua fiscalização e controle.33

33. A Lei 7.735, de 22.2.1989, criou o IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, como autarquia federal de regime especial, transferindo-lhe as competências da antiga Secretaria Especial do Meio Ambiente, da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca - SUDEPE, da Su­perintendência da Borracha— SUDHEVEA e do Instituto Brasileiro de Desenvol­vimento Florestal - IBDF, que foram extintos. A Lei 7.804, de 18.7.1989, introdu­ziu várias alterações na Lei 6.938/1981 e determinou que o IBAMA assumisse as competências da extinta SEMA nas atribuições que lhe conferiram as Leis 6.803, de 2.7.1980, 6.902, de 2Í.4.1981, e 6.938, de 31.8.1981 (art. 3a). A Lei 7.797, de 10.7.1989, criou o Fundo Nacional do Meio Ambiente e a Lei 8.028, de 12.4.1990, criou a nova Secretaria do Meio Ambiente - SEMAM/PR, como órgão de assis­tência direta e imediata ao Presidente da República, a ela vinculando o IBAMA (art. 36) e a administração do Fundo (art. 37). V., ainda, o Decreto 99.274, de 6.6.1990, que regulamentou a Lei 6.938/1981. Finalmente, a Lei 8.490, de 19.11.1992, transformou a SEMAM em Ministério do Meio Ambiente.

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224 DIREITO DE CONSTRUIR

O objetivo fundamental da Política Nacional do Meio Ambiente é a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preser­vação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico (art. 4Ü, I, da Lei 6.938/1981), norma, essa, que deve servir de parâmetro para a interpretação das limitações administrativas de proteção ambiental.34

As normas ambientais incidem sob tríplice aspecto: a) controle da poluição, b) preservação dos recursos naturais; e c ) .restauração dos elementos destruídos. Merece destaque, ainda, a criação da ação civil pública para proteção ambiental

2.1 CONTROLE DA POLUIÇÃO

O controle da poluição enquadra-se no poder de polícia adminis­trativa de todas as entidades estatais - União, Estados-membros, Mu­nicípios, Distrito Federal e Territórios competindo a cada uma delas atuar nos limites de seu território e de sua competência, e, em conjun­to, colaborar nas providências de âmbito nacional de prevenção e re­pressão às atividades poluidoras definidas em norma legal.

Em sentido amplo, poluição é toda alteração das propriedades naturais do meio ambiente, causada por agente de qualquer espécie prejudicial à saúde, à segurança ou ao bem-estar da população sujei­ta aos seus efeitos.

De um modo geral, as concentrações populacionais, as indústrias, o comércio, os veículos motorizados e até a agricultura e a pecuária produzem alterações no meio ambiente. Essas alterações, quando nor­mais e toleráveis, não merecem contenção e repressão, só exigindo combate quando se tornam intoleráveis e prejudiciais à comunidade, caracterizando poluição reprimível. Para tanto há necessidade de pré­via fixação técnica e legal dos índices de tolerabilidade, ou seja, dos padrões admissíveis de alterabilidade de cada ambiente, para cada ati­vidade poluidora, não se compreendendo nem se legitimando as for­mas drásticas de interdição de indústrias e atividades lícitas por critérios pessoais da autoridade, sob o impacto de campanhas emocionais que se desenvolvem em clima de verdadeira psicose coletiva de combate à poluição.

A Constituição da República dispôs expressamente que as condu­tas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os

34. V. os pareceres do Autor in Estudos e Pareceres de Direito Público, IX/ 289, X/274, XI/321 eXI/335.

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infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administra­tivas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados (art. 225, § 3U). O principal instrumento de controle da poluição ambien­tal é a licença prévia, exigida para a execução de obra ou o exercício de qualquer atividade efetiva ou potencialmente poluidora, a ser expe­dida pelo órgão estadual competente33 integrante do SISNAMA, e, em caráter supletivo, pelo IBAMA. Somente no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional, é que a licença deverá ser expedida diretamente pelo IBAMA (Lei 6.938/1981, art. 10 e § 4Ü).

O estudo de impacto ambiental passou a ser uma exigência cons­titucional para instalação de obra ou atividade potencialmente cau­sadora de significativa degradação do meio ambiente (art. 225, IV), podendo ser exigido pelas três esferas de Poder (Federal, Estadual e Municipal). Antes, fora previsto pela Lei 6.938/1981 (art. 9Ü, III), sen­do objeto da primeira resolução do CONAMA, que fixou o conceito de impacto ambiental e relacionou as atividades para as quais deveria ser exigido o Relatório de Impacto Ambiental - RIMA como elemento de instrução do pedido de licença (Resolução 1 do CONAMA, de 23.1.1986, arts. l c e 2a).

A legislação federal é ainda dispersa e deficiente para o controle da poluição, expressa num conglomerado de leis, decretos, resoluções e portarias, que mais confundem do que esclarecem seus aplicadores.

Posteriormente, foi aprovada a Lei 9.605, de 12.2.1998, modifica­da pela Lei 9.985, de 18.7.2000, dispondo sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio am­biente, ordenando em um único diploma legal todos os crimes relacio­nados ao meio ambiente, contendo uma seção específica sobre os cri­mes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural.

No âmbito estadual e municipal vêm surgindo, tumultuariamente, normas e órgãos de combate à poluição, mas todos eles sem arrimo em diretrizes federais e em padrões que deveriam orientar e uniformizar o controle das atividades poluidoras, dentro de critério técnico que com­patibilize a preservação do meio ambiente com os superiores interes­ses do desenvolvimento do País.

35. STJ, R T 6 79/204, 685/160; TJSP, RT 607/54, 610/95, 623/72, 646/65, 655/95,683/65; TACivSP, ^ 7 628/38; TJMT, ^7640/69; TJPR, R T 619/64; TJRJ, RT 683/138.

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O mais sério problema a ser resolvido é o da pré-ocupação de bair­ros ou áreas por indústrias e outras atividades poluidoras que, posterior­mente, venham a ser consideradas em uso desconforme, diante da nova legislação para o local. Em tais casos, não pode a Administração para­lisar sumariamente essas indústrias e atividades, nem reduzir-lhes a produção, porque isto ofenderia o direito adquirido em conformidade com as normas legais anteriores. Para a retirada desses estabelecimen­tos a medida legal é a desapropriação. Poderá, ainda, a Administração, nesses casos, impedir ampliações do que está em uso desconforme e exigir equipamentos e tratamentos técnicos redutores da poluição, em prazos e condições razoáveis, incentivando a voluntária mudança de local. Somente os abusos da iniciativa particular é que devem ser coi­bidos pelo poder de polícia do Município, protetor do bem-estar da co­letividade urbana, principalmente nas zonas estritamente residenciais. Nas zonas mistas há que se tolerar os incômodos da indústria e do co­mércio desde que decorram do exercício legal e normal dessas ativida­des e sejam produzidos unicamente no período diurno de trabalho; nas zonas comerciais e industriais os seus incômodos não são reprimíveis pela vizinhança enquanto se contenham nos limites da licença de fun­cionamento e não caracterizem abuso de direito do exercício profissio­nal, pois que a delimitação dessas áreas e o confínamento das ativida­des diversas da habitação erigem tais atividades em usos conformes para o local e afastam qualquer possibilidade jurídica de impugnação ao seu exercício e às suas conseqüências normais para a zona e suas adjacências, porque os que nela se localizam ou dela se avizinham sa­bem de antemão a destinação, o uso e a ocupação da área e conhecem as suas conseqüências molestas.

Daí a conveniência e as vantagens do planejamento urbanístico, que deverá evitar a poluição e a degradação ambiental (Lei 10.257/ 2001, art. 2Q, VI, “g”), utilizando-se de instrumentos como o zonea­mento urbano, como medida prévia do controle da poluição, que deve­rá basear-se e diversificar-se segundo os usos de cada zona, para ade­quação das exigências municipais às diferentes áreas e atividades da cidade e de seus arredores. Impõe-se, ainda, a fixação de uma política geral de controle da poluição, uniforme e realística, que leve em consi­deração não só a preservação ambiental como, também, as determinan­tes do desenvolvimento local, regional e nacional, para a correta loca­lização das atividades poluidoras, a situação das indústrias e do comér­cio já instalados, os meios técnicos de contenção ou eliminação dos elementos poluentes e os estímulos do Poder Público para o combate à

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CONTROLE DA CONSTRUÇÃO E PROTEÇÃO AMBIENTAL 227

poluição, a fim de obter-se o equilíbrio ecológico e econômico, num amparo recíproco dos interesses coletivos e dos direitos individuais, protegendo a comunidade sem aniquilar a iniciativa privada, propulso­ra do desenvolvimento nacional.

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Capitulo 7

CONTRATOS D E CONSTRUÇÃO E CONTRATOS CONEXOSÀ CONSTRUÇÃO

1. CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO DE OBRA PARTICULAR: 1.1 Concei­to; 1.2 Caracteres; 1.3 Partes contratantes; 1.4 Execução e inexecução do contrato; 1.5 Contratos de construção “in specie”: 1.5.1 Contrato de cons­trução por empreitada: 1.5.1.1 Disposições legais sobre a empreitada; 1.5.1.2 Obrigações das partes entre si e perante terceiros; 1.5.1.3 Riscos da execu­ção da empreitada; 1.5.1.4 Execução, entrega e recebimento da obra em­preitada; 1.5.1.5 Fixação e pagamento do preço da empreitada; 1.5.1.6 Di­reito de retenção do empreiteiro-construtor; 1.5.1.7 Acréscimos nas obras empreitadas; 1.5.1.8 Modificações no projeto original; 1.5.1.9 Suspensão da construção pelo empreitador; 1.5.1.10 Suspensão da construção pelo emprei­teiro; 1.5.1.11 Extinção do contrato de empreitada; 1.5.2 Contrato de cons­trução por administração. 2. CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO DE OBRA PUBLICA: 2.1 Contrato de empreitada: 2.1.1 Modalidades; 2.1.2 Caracte­res; 2.1.3 Riscos da execução; 2.2 Regime de tarefa. 3. CONTRATOS CO­NEXOS À CONSTRUÇÃO: 3.1 Contrato de projeto e de fiscalização de obra: 3.1.1 Contrato de projeto; 3.1.2 Contrato de Fiscalização; 3,1.3 Con­trato de projeto e fiscalização de obra; 3.2 Contrato de financiamento de construção; 3.3 Contrato de trabalho para obra certa; 3.4 Contrato de in­corporação de condomínio; 3.5 Contrato de gerenciamento.

A construção civil rende ensejo a duas atividades distintas, que se conjugam para a realização da obra: a técnica e a industrial.

Toda construção exige as inversões econômicas dos empreendi­mentos comerciais e os conhecimentos especializados dos profissio­nais da Engenharia e da Arquitetura. Daí resultam duas espécies de contratos: os de construção (por empreitada ou por administração) e os de serviços profissionais (projeto - fiscalização). Até mesmo a obra pública, quando confiada a particulares, dá lugar a certas modalidades de contratos de construção (empreitada - regime de tarefa). Além des­tes, outros ajustes subsidiários gravitam em torno da construção parti­cular e pública, ora para fornecer recursos financeiros (contrato de fi­nanciamento), ora para recrutar mão-de-obra (contrato de trabalho para obra certa), ora para propiciar a edificação e facilitar a aquisição (con­trato de incorporação de condomínio).

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CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO E CONTRATOS CONEXOS 229

Neste capítulo apreciaremos todas essas espécies e modalidades de contratos de construção e de ajustes conexos à construção, procurando conceituá-los à luz do nosso Direito e fixar-lhes as características e obje­to, segundo as exigências técnicas da Engenharia, da Arquitetura, e as imposições econômicas da moderna indústria da construção civil.

Antes de passar ao exame dos contratos de construção em espé­cie, convém lembrar que o Código Civil de 2002 (Lei 10.406, de 10.1.2002) introduziu alguns conceitos novos, de extrema relevância na interpretação, na celebração e na execução dos negócios jurídicos. Realmente, o art. 113 deixa claro que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Mais à frente, dispõe que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costu­mes” (art. 187). Além disso, estabelece que “os contratantes são obri­gados a guardar, assim na conclusão do contrato, quanto na sua execu­ção, os princípios de probidade e boa-fé” (art. 422).

Não se trata, aqui, da boa-fé subjetiva, do estado de espírito de quem, ingenuamente, efetua um negócio jurídico que lhe é prejudicial. Trata-se da boa-fé objetiva, da correção de conduta das pessoas de bem, que realizam seus negócios para a consecução de seus interesses, mas sem prejudicar os outros. Já dizia Virgílio Sá Pereira que “na boa- fé (objetiva) reside a suprema condição de validade dos atos jurídi­cos”.1 E, pois, um princípio antigo, mas que o Código Civil de 2002 revigorou, em face da maior responsabilidade social das pessoas, que vivem, hoje, em comunidades urbanas cada vez mais populosas. “Eti- cidade e socialidade, eis aí os princípios que presidiram a feitura do novo Código Civil.” Há de se reconhecer que a fruição de um direito deve ser declarada em benefício de seu titular, mas respeitados sempre os fins ético-sociais da comunidade a que pertence - escreve Miguel Reale, o coordenador da Comissão Redatora do Código C iv il2 O que se espera de todo cidadão é a conduta proba, leal e honesta na condu­ção de seus negócios. Esta é a boa-fé objetiva.

Relacionado com esses, o Código Civil contempla, ainda, outro dispositivo de muita importância: “A liberdade de contratar será exer­

1. In Revista de Direito 54/500.2. “Espírito da nova lei civil”, artigo no jornal O Estado de S. Paulo de

4.1.2003, p. A-2.

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cida era razão e nos limites da função social do contrato” (art. 421). Isto quer dizer que ele deve representar uma justa composição entre os direitos individuais e coletivos. Daí a razão pela qual pode ser rescin­dido se acontecimentos imprevisíveis tomarem por demais onerosa a prestação de uma das partes (art. 478). Satisfação dos interesses das partes em harmonia com os valores e ideais da comunidade, eis a fun­ção social do contrato. Se tais fundamentos não estiverem presentes na celebração do ajuste, este estará eivado de ilegalidade.

Os contratos de construção, como todos os outros, ficam sujeitos a essas diretrizes do Código Civil de 2002.

/. CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO D E OBRA PARTICULAR

1.1 CONCEITO

Contrato de construção é todo ajuste para execução de obra certa e determinada, sob direção e responsabilidade do construtor, pessoa fí­sica ou jurídica legalmente habilitada a construir, que se incumbe dos trabalhos especificados no projeto, mediante as condições avençadas com o proprietário ou comitente.

Este conceito abarca, na sua generalidade, as duas modalidades de contrato de construção de obra particular conhecidas e praticadas entre nós - a empreitada e a administração as quais se diversificam nas condições econômicas da realização da obra, mas guardam as ca­racterísticas da espécie que assinalamos.

Muito embora a nossa legislação ainda não contemple o contrato de construção como instituto autônomo, a doutrina já o considera es­pécie diversificada dos ajustes tradicionais, e a prática o tem consagra­do como instrumento legal da moderna indústria da construção civil. Tal contrato, na sua dupla modalidade - empreitada e administração deveria ser regulado pelas leis comerciais, visto que seu objeto é niti­damente mercantil (v. cap. 10, item 2.2). A míngua de disposições le­gais próprias, aplicam-se aos contratos de construção os preceitos ge­rais do Código Civil e, para os contratos de edificação em condomínio, as normas especiais da Lei 4.591, de 16.12.1964, arts. 48 e ss.

1.2 CARACTERES

Como caracteres marcantes dos contratos de construção civil as­sinalamos, na conceituação supra, o objeto, que há de ser sempre a exe­

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cução de uma obra material certa e determinada (p. ex., edifício, estra­da, ponte); o executor, que será, necessariamente, uma empresa - pes­soa física ou jurídica - legalmente autorizada a construir; o projeto aprovado, a ser executado pelo construtor (empresa) de acordo com as suas especificações, normas técnicas e normas legais da construção; as condições particulares de execução dos trabalhos (p. ex., prazo de con­clusão da obra, qualidade dos materiais); o preço e a forma de paga­mento e de custeio de obra; o beneficiário da construção, que tanto pode ser o proprietário do terreno como qualquer outro interessado, autorizado a construir (p. ex., o promissário comprador, o locatário).

Afora estes traços característicos, os contratos de construção civil enquadram-se entre os ajustes pessoais, consensuais, bilaterais perfei­tos, comutativos e onerosos. São pessoais, porque objetivam uma obri­gação de fazer, tendo em vista as qualidades individuais dos contratan­tes; consensuais, porque resultam do simples acordo de vontade dos contratantes, independentemente de formalidades ou instrumentos es­peciais; bilaterais perfeitos ou sinalagmáticos, porque deles decorrem obrigações recíprocas para as partes; comutativos, porque as obriga­ções dos contratantes são equivalentes; e onerosos, porque os traba­lhos contratados são remunerados, constituindo exceção a gratuidade da construção. Há quem sustente o caráter aleatório dos contratos de construção, do que discordamos, porque a álea deles resultante não vai além dos riscos normais de todo negócio em que se visa a lucro.

Os contratos de construção civil não são formais, nem estão sujei­tos a registro para validade entre as partes, pelo quê podem ser firma­dos verbalmente ou por escrito, em instrumento público ou particular, mas é de toda conveniência sejam escritos e registrados, para perfeita fixação do que foi combinado e validade perante terceiros. A propósi­to, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o contrato particular não registrado é indiferente a terceiros, para os quais a sua existência só se manifesta e produz efeitos a partir da data em que o oficial de Registro de Títulos e Documentos o transcreve no livro próprio.3 Antes disto, ou sem isto, inexiste para terceiros, embora operante entre as partes.

Cabe aqui observar que, se as leis civis não impõem requisitos for­mais aos contratos de construção, as normas administrativas - Código Sanitário, Código de Obras, legislação urbanística etc. - consignam exigências de interesse público para as edificações, as quais hão de ser

3. STF, RF 122/408; TJSP, RT 243/185, 249/177.

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atendidas, necessariamente, pelas partes na feitura de seus ajustes, sob pena de invalidade das cláusulas contratuais que as desatendam.

1.3 PARTES CONTRATANTES

O contrato de construção civil comumente é formado entre o pro­prietário do terreno e o construtor - pessoa física ou jurídica que se incumbe da construção. Pode, ainda, a obra ser encomendada pelo compromissàrio comprador do terreno, ou mesmo por terceiro autori­zado pelo proprietário a construir. Qualquer destas pessoas é parte le­gítima para contratar a construção, como comitente da obra. O cons­trutor, porém, segundo dispõe a lei reguladora da profissão do enge­nheiro, do arquiteto e do agrônomo - Lei 5.194/1966 só poderá ser um destes profissionais, habilitado (art. 2Q) e registrado como firma indi­vidual ou sociedade construtora regularmente inscrita no Conselho Re­gional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (arts. 55 e 59). A socie­dade construtora só poderá ter em sua denominação as palavras “enge­nharia”, “arquitetura” ou “agronomia” se sua direção for composta por maioria de profissionais registrados nos Conselhos Regionais (art. 5fl).

O contrato de construção firmado com pessoa física não habilita­da a construir ou com pessoa jurídica não registrada no Conselho Re­gional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia é nulo de pleno direi­to (art. 15). Esta nulidade abrange não só o contrato de construção pro­priamente dito, como o de qualquer ramo da Engenharia, da Arquitetu­ra e da Agronomia, inclusive o de elaboração de projeto e fiscalização de obra. O dispositivo que consigna a nulidade é de ordem pública, pelo quê não admite transigência nem validação parcial do ajuste para efeito de cobrança da remuneração avençada.

A única exceção admitida é para os contratos de construção de residências de pequena área, a juízo dos Conselhos Regionais de En­genharia, Arquitetura e Agronomia. Com estas restrições a lei visa a afastar os leigos da construção civil, só os admitindo na execução de obras diminutas e isoladas, que não ofereçam dificuldades técnicas, nem comprometam a segurança das edificações vizinhas. As obras de vulto ficaram reservadas aos profissionais diplomados e às sociedades construtoras regularmente autorizadas a executar serviços técnicos de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, sempre sob responsabilidade efetiva de profissional habilitado, sendo punido por infração ético-pro- fissional o diplomado que acobertar com seu nome, ou com sua assina­tura, o exercício ilegal da profissão.

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1.4 EXECUÇÃO E INEXECUÇÃO DO CONTRA TO

Já assinalamos que o contrato de construção, em ambas as suas modalidades - por empreitada ou por administração é de caráter pes­soal, mas não de prestação personalíssima, o que toma possível a exe­cução da obra por terceiros que trabalhem sob a responsabilidade do construtor-contratado. Daí não se conclua, porém, possa o construtor liberar-se das obrigações contratuais com o proprietário, transpassan- do-as a estranhos. Absolutamente, não. O caráter não personalíssimo da execução do contrato de construção só autoriza que pessoas estra­nhas ao ajuste (técnicos e artífices diversos) interfiram na obra para realizar serviços de sua especialidade, sob direção e responsabilidade do construtor-contratado, sem lhe permitir a transferência da obra a ou­trem à revelia do proprietário ou comitente. Poderá o construtor sub- contratar serviços ou incumbir especialistas de determinadas partes da obra, independentemente de autorização de quem a encomendou, mas será o responsável pela fiel execução do projeto e pelo cumprimento de todas as cláusulas contratuais, bem como por todos os encargos legais decorrentes da construção, embora realizada parcialmente por outro.

A faculdade de subcontratar mão-de-obra e trabalhos especializa­dos é inerente a todo contrato de construção, e resulta da complexida­de das edificações modernas e da diversidade de operações, materiais e equipamentos empregados numa mesma obra, o que requer a presen­ça de diferentes técnicos e artífices para sua perfeita execução. O es­sencial é que o construtor responsável pela obra a dirija integralmente e nela se faça presente por seus subcontratistas e prepostos.

Segundo entendia o Autor, em caso de falecimento, interdição ou qualquer outro motivo impediente da condução da obra pela pessoa fí­sica do construtor-contratado, o contrato se rescindiria automaticamen­te, não sendo exigível a sua execução pelos sucessores do construtor originário. Já, o mesmo não ocorreria quando o contrato de construção fosse firmado com pessoa jurídica autorizada a construir, caso em que, mesmo com o falecimento de sócio, ou a sucessão da empresa, subsis­tiria o contrato em toda a sua plenitude. Mas, de acordo com o Código Civil de 2002, o contrato de empreitada não se extingue pela morte de qualquer das partes, salvo se ajustado em consideração às qualidades pessoais do empreiteiro (art. 626). Assim, o entendimento do Autor continua válido, mas é indispensável que tal circunstância esteja ex­pressa no contrato ou que se manifeste evidente dos termos em que foi redigido.

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Quanto ao proprietário-contratante da construção o ajuste persiste e se transfere a seus sucessores singulares ou universais em caso de falecimento. Para o Autor, a transferência voluntária do contrato, en­tretanto, só se afigurava possível com concordância do construtor-con- tratado, uma vez que poderia ao cessionário não convir a outra parte, por falta de capacidade econômica ou qualquer outro motivo de ordem pessoal, a juízo do construtor. E assim entendia, por se tratar de um contrato feito intuitu personae, vale dizer, tendo em vista a pessoa dos contratantes. Mas, diante do mencionado art. 626 do Código Civil, tal entendimento está superado, visto que o empreiteiro-construtor não poderá se opor à continuação dos trabalhos, desde que os sucessores do primitivo contratante cumpram suas obrigações. Esta é a tendência da evolução dos contratos de construção, hoje realizados quase sempre com empresas especializadas.

Se a execução material da obra sempre admite a intervenção de subcontratistas, que se incumbem de determinados trabalhos ou partes da construção, o mesmo não se dá com a elaboração do projeto, desde que, neste caso, o proprietário que o encomenda tem em vista o autor na sua dupla posição de técnico e de artista. Para os trabalhos materiais de desenho e elaboração de cálculos matemáticos de resistência pode­rá o autor do projeto incumbir outros técnicos, mas para a idealização da obra no seu conjunto estrutural e arquitetônico não se nos afigura transferível o seu encargo profissional, porque nessa concepção entram fatores individuais, de cunho personalíssimo, que o proprietário certa­mente teve em mira ao procurar determinado engenheiro, arquiteto ou agrônomo.

Não se deve confundir e identificar o trabalho material da cons­trução, embora realizado com técnica, com o trabalho intelectual e ar­tístico da concepção e elaboração do projeto.

A técnica é uniforme e generalizada; a arte é diversificada e indi­vidualizada. Daí por que o trabalho de natureza meramente técnica pode ser executado, sem inconvenientes, por profissionais diversos; quando, porém, é técnico-artístico, personaliza-se naquele que foi con­tratado para executá-lo. Certo é que, em tal caso, já não se trata de con­trato de construção propriamente dito, mas de serviços profissionais de elaboração de projeto, como veremos adiante (item 3.1).

Aqui aproximamos as duas espécies de contrato, com o só intuito de acentuar as diferenças e apontar a diversidade de conseqüências ju­rídicas no momento de execução de cada um deles. Feitas essas consi­derações preliminares, passaremos a examinar os contratos de constru-

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ção in specie e os ajustes conexos, que precedem ou propiciam a cons­trução, vaie dizer, a realização material da obra.

1.5 CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO “IN SPECIE”

1.5.1 CONTRATO DE CONSTRUÇÃO POR EMPREITADA

Contrato de construção por empreitada é o ajuste pelo qual o' construtor-empreiteiro, pessoa física ou jurídica habilitada a construir, se obriga a executar determinada obra, com autonomia na condução dos trabalhos, assumindo todos os encargos econômicos do empreen­dimento, e o proprietário ou comitente-empreitador se compromete a pagar um preço fixo, ainda que reajustável,4 unitário ou global, e a re­ceber a obra concluída, nas condições convencionadas.

A construção por empreitada é, pois, caracterizada pela autono­mia do construtor na condução dos trabalhos, pela sua inteira respon­sabilidade pelos riscos econômicos da obra e pela prévia especifica­ção do material a ser utilizado e dos serviços a serem executados pelo empreiteiro, diversamente do que ocorre na construção por adminis­tração,, em que o construtor fica na dependência das deliberações do dono da obra, que custeia e suporta os encargos financeiros da constru­ção, podendo alterar os trabalhos quanto à sua extensão e escolher os materiais a serem utilizados, dentre os permitidos para a obra em execu­ção. Não se pode olvidar que o construtor de hoje é sempre um técnico, com responsabilidade ético-profissional pela segurança e perfeição da obra, razão pela qual não se admite, qualquer que seja a modalidade do contrato, possa o proprietário obrigá-lo a executar a obra em desacordo com o projeto aprovado pelo Poder Público, ou com desatendimento de normas técnicas, ou com materiais que comprometam sua solidez. A segurança das construções é de interesse público e, por isso mesmo, refoge da liberdade contratual, para se pautar pelas imposições legais e normas técnicas que regem os trabalhos de Engenharia, Arquitetura e Agronomia e disciplinam o exercício dessas profissões. A responsabi­lidade técnica pela solidez e perfeição das obras é sempre pessoal e intransferível do profissional ao proprietário. Mesmo nas construções por administração subsiste tal responsabilidade para o construtor, visto que, sob o aspecto técnico, não está sujeito às deliberações ilegais do proprietário, que não pode ser administrador nem fiscal da obra.

4. TJSP, RT 614/75.

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Firmados estes princípios e distinções entre os dois ajustes usuais da indústria da construção civil e fixada a posição do construtor em relação a quem encomenda a obra, vejamos o contrato de construção por empreitada em todos os seus aspectos jurídicos para, após, apreciar­mos o contrato de construção por administração.

1.5.1.1 Disposições legais sobre a empreitada - Embora o Códi­go Civil de 2002, ao cuidar da empreitada, praticamente só se refira à construção, não ousou discriminar os seus contratos em capítulo pró­prio, como há muito reclamava o Autor. O que teria sido aconselhável, tão intensa é a atividade construtiva nos dias atuais, com vários proble­mas relacionados ao desabamento de edifícios, à responsabilidade dos construtores, à utilização de materiais inadequados e outros semelhan­tes. Acresce ainda a inter-relação das normas civis com as regras do Código de Defesa do Consumidor, a regulamentação profissional dos engenheiros e arquitetos e os preceitos urbanísticos de ordenação da cidade. O Código Civil de 2002 trata da construção como se de 1916 a 2002 mudanças não houvessem ocorrido no Brasil e o transformado de um país rural em um país urbano!

Transcreveremos as disposições do Código para, a seguir, comen­tá-las.

“O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela ou só com o seu trabalho, ou com ele e os materiais” (art. 610). A obrigação de for­necer os materiais não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes (§ 1D). O contrato para a elaboração de um projeto não implica a obrigação de executá-lo, ou de físcalizar-lhe a execução” (§ 2°).

“Quando o empreiteiro fornece os materiais, correm por sua conta os riscos até o momento da entrega da obra, a contento de quem a en­comendou, se este não estiver em mora de receber. Mas se estiver, por sua conta correrão os riscos” (art. 611).

“Se o empreiteiro só forneceu a mão-de-obra, todos os riscos, em que não tiver culpa, correrão por conta do dono” (art. 612).

“Sendo a empreitada unicamente de lavor (art. 610), se a coisa pe­recer antes de entregue, sem mora do dono nem culpa do empreiteiro, este perderá a retribuição, se não provar que a perda resultou de defei­to dos materiais e que em tempo reclamara contra a sua quantidade ou qualidade” (art. 613).

“Se a obra constar de partes distintas, ou for das que se determi­nam por medida, o empreiteiro terá direito a que também se verifique

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por medida, ou segundo as partes em que se dividir, podendo exigir o pagamento na proporção da obra executada” (art. 614). “Tudo o que se pagou presume-se verificado” (§ 1Q). “O que se mediu presume-se ve­rificado se, em trinta dias, a contar a medição, não forem denunciados os vícios ou defeitos pelo dono da obra ou por quem estiver incumbido da sua fiscalização” (§ 2Q).

“Concluída a obra de acordo com o ajuste, ou o costume do lugar, o dono é obrigado a recebê-la. Poderá, porém, rejeitá-la, se o emprei­teiro se afastou das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas em trabalhos de tal natureza” (art. 615).

“No caso do artigo antecedente, segunda parte, pode quem enco­mendou a obra, em vez de enjeitá-la, recebê-la com abatimento no pre­ço” (art. 616).

“O empreiteiro é obrigado a pagar os materiais que recebeu, se por imperícia ou negligência os inutilizar” (art. 617).

“Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, du­rante cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo” (art. 618). “Decairá do direito assegura­do neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o em­preiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do ví­cio ou defeito” (parágrafo único).

“Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas modificações no projeto, a não ser que estas resultem de instruções es­critas do dono da obra” (art. 619). “Ainda que não tenha havido autori­zação escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os au­mentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava pas­sando, e nunca protestou” (parágrafo único).

“Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apurada” (art. 620).

“Sem anuência de seu autor, não pode o proprietário da obra in­troduzir modificações no projeto por ele aprovado, ainda que a execu­ção seja confiada a terceiros, a não ser que, por motivos supervenien­tes ou razões de ordem técnica, fique comprovada a inconveniência ou

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a excessiva onerosidade de execução do projeto em sua forma originá­ria” (art. 621). “A proibição deste artigo não abrange alterações de pou­ca monta, ressalvada sempre a unidade estética da obra projetada” (pa­rágrafo único).

“Se a execução da obra for confiada a terceiros, a responsabilida­de do autor do projeto respectivo, desde que não assuma a direção ou fiscalização daquela, ficará limitada aos danos resultantes de defeitos previstos no art. 618 e seu parágrafo único” (art. 622).

“Mesmo após iniciada a construção, pode o dono da obra suspen­dê-la, desde que pague ao empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais indenização razoável, calculada em função do que ele teria ganho, se concluída a obra” (art. 623).

“Suspensa a execução da empreitada sem justa causa, responde o empreiteiro por perdas e danos” (art. 624).

“Poderá o empreiteiro suspender a obra: í - por culpa do dono, ou por motivo de força maior; II - quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que tor­ne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços; III - se as modificações exigidas pelo dono da obra, por seu vulto e natureza, forem desproporcionais ao projeto aprovado, ainda que o dono se disponha a arcar com o acréscimo de preço” (art. 625).

“Não se extingue o contrato de empreitada pela morte de qualquer das partes, salvo se ajustado em consideração às qualidades pessoais do empreiteiro” (art. 626).

A lei civil, como se vê do texto acima transcrito, começa distin­guindo a empreitada de lavor da empreitada de material (art. 610). Na primeira, o empreiteiro entra exclusivamente com o trabalho; na se­gunda, concorre com a mão-de-obra e os materiais.

Embora a empreitada de lavor muito se aproxime da locação de serviço, com ela não se confunde, porque na empreitada contrata-se o resultado do trabalho, e na locação de serviço objetiva-se o trabalho em si mesmo, o que levou Costa Sena a assinalar, com inteiro acerto, que “na empreitada paga-se o produto do serviço; na locação de ser­viço, remunera-se a pessoa que põe à disposição de outro sua ativi- dade’V

5. Da Empreitada no Direito Civil, 1935, p. 28.

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Não se confunde, também, a empreitada de material com a com­pra e venda, a despeito de, em suas origens, no Direito Romano, haver confusão de ambos os institutos. Na compra e venda o objetivo do con­trato é a transferência da coisa, mediante o pagamento de seu preço, ao passo que na empreitada de material o fim almejado é a obra concluí­da, mediante o duplo pagamento da matéria-prima e do trabalho, con­substanciado na remuneração do empreiteiro.

Quanto ao modo de pagamento da empreitada - de lavor ou de material —, o contrato pode ser por preço global (à forfait), por preço unitário, por séries, ou por preço máximo. Não incluímos, aqui, a im­propriamente denominada empreitada por administração, uma vez que, na indústria da construção civil, tal modalidade se erige em ajuste autônomo e fundamentalmente diverso da empreitada, o que justifica o seu estudo à parte, como faremos no tópico seguinte (item 1.5.2). Dei­xamos também de apreciar, neste passo, a modalidade conhecida por tarefa, visto ser mais própria da construção de obra pública, estudada adiante, em epígrafe especial (item 2.2).

Na empreitada por preço global o valor da obra é estabelecido an­tecipadamente para a sua totalidade, diversamente do que ocorre na empreitada por etapa ou preço unitário, em que o preço é convencio­nado para cada parte concluída e medida. Em ambas as modalidades o preço pode ser pago parceladamente, com a só diferença de que na pri­meira {por preço global) o pagamento se efetua nas fases fixadas (p. ex., no alicerce, no respaldo, no telhado etc.) e na segunda (por preço unitário) se faz após cada verificação ou medida do que foi executado (p. ex., tantos metros cúbicos de concreto, tantas estacas colocadas etc.),

Na empreitada por séries o preço é fixado para as partes em que se dividir a obra, as quais serão recebidas e pagas separadamente, con­forme forem sendo concluídas e entregues.

Na empreitada por preço máximo os contratantes estabelecem, pre­viamente, o limite máximo do preço total da obra, mas se sujeitam à ve­rificação do preço efetivo em que ficar a construção, para ser pago nesta base, até o limite inicialmente convencionado. É, como se vê, uma com­binação das modalidades anteriormente apreciadas, com o objetivo de afastar a incerteza do preço das empreitadas por medida e por série e atenuar a rigidez da empreitada por preço global, dividindo-se, assim, os riscos da variação do preço da obra entre o proprietário e o empreiteiro.

1.5.1.2 Obrigações das partes entre si e perante terceiros — Do contrato de empreitada resultam obrigações recíprocas para os contra­

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tantes, e da execução da obra podem advir responsabilidades para com terceiros. Neste tópico limitamo-nos a enunciar sumariamente estas obrigações e responsabilidades, para que o estudo do contrato não per­ca a continuidade desejável, reservando para o capítulo seguinte o exa­me mais completo dessas mesmas questões.

Perante o proprietário, o empreiteiro é obrigado a cumprir o con­trato em todas as suas cláusulas e a executar fielmente o projeto da obra contratada, empregando a técnica e materiais adequados à cons­trução e realizando os trabalhos com a perícia que se exige de todo profissional. Faltando a qualquer destas obrigações, dará ensejo à res­cisão do contrato, com a conseqüente indenização dos prejuízos à par­te prejudicada. Concluída e entregue a obra, subsiste a responsabilida­de do empreiteiro, durante cinco anos, pela solidez e segurança da construção (art. 618).

O proprietário-empreitador, por sua vez, é obrigado a pagar o em- preiteiro-construtor na forma combinada e a receber a obra concluída, quando em conformidade com o projeto e o contrato, podendo enjeitá-la ou exigir abatimento no preço se não corresponder ao que foi contrata­do (arts. 615 e 616). Por outro lado, o dono da obra pode suspender a construção mesmo depois de iniciada, desde que pague ao empreiteiro as despesas já realizadas e os lucros respectivos, acrescidos de uma indenização razoável, calculada em função do que teria ganho se che­gasse a concluir a obra (art. 623).

Para com os fornecedores da obra, o empreiteiro de material e ser­viço é, em princípio, o responsável único pelo pagamento do material, visto ser da natureza desse tipo de empreitada a assunção de todos os encargos pelo construtor. Mas o proprietário só ficará liberado destas responsabilidades se o contrato tiver sido registrado, previamente, no Registro de Títulos e Documentos da situação da obra. Se não o tiver, subsistirá a responsabilidade solidária do proprietário com o emprei­teiro, pelos fornecimentos à obra.6 Isto porque, como já decidiu o Su­premo Tribunal Federal, o contrato particular não registrado é fato in­diferente a terceiros e inoponível aos que lhe são estranhos.7 Sobre responsabilidade trabalhista, veja-se adiante, no cap. 8, o item 2.8.

Para com os vizinhos, o proprietário e o empreiteiro são, em prin­cípio, responsáveis solidários pela reparação do dano resultante da

6. TJSP, 243/185, 249/177, 269/383.7. STF, RF 122/408.

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construção, mas casos há em que essa responsabilidade pode ser deslo­cada para um ou para outro, pode ser atenuada pelas más condições da obra vizinha e pode, até mesmo, ser arredada de ambos por circunstân­cias especiais a examinar-se em cada caso ocorrente, como veremos no capítulo seguinte.

Quanto aos danos causados pela construção a terceiros, alheios à relação de vizinhança, a responsabilidade civil é, a nosso ver, exclusi­va do empreiteiro, desde que o proprietário não tenha concorrido com culpa ou dolo para o ato ou fato danoso. Já não se trata, então, daquela responsabilidade objetiva, própria do direito de vizinhança (Código Civil, arts. 1.277 e 1.299), mas, sim, de responsabilidade comum sujei­ta ao princípio geral da culpa (Código Civil, arts. 186 e 927).

No que tange à responsabilidade penal por desabamento da cons­trução (Código Penal, art. 256; Lei das Contravenções Penais, arts. 29 e 30), recai unicamente sobre quem lhe deu causa, sabido que, em ma­téria criminal, a pena é individual e intransmissível, só alcançando os autores e co-autores da infração definida como crime ou contravenção.8 Dadas a extensão e complexidade do assunto, limitamo-nos a aflorá-lo neste tópico, para dele cuidarmos detidamente no capítulo seguinte, dedicado às responsabilidades decorrentes da construção em geral.

1.5.1.3 Riscos da execução da empreitada - Conforme seja a em­preitada de lavor ou de material, diversa é a responsabilidade das par­tes pelos riscos da execução da obra.

Na empreitada de lavor, todos os danos aos materiais ou à própria construção correm por conta do proprietário, desde que não provenham de ato culposo ou doloso do empreiteiro, que é mero prestador de ser­viços (art. 612). Nesta modalidade, se a obra vier a se danificar ou a perecer antes da entrega, sem que o dono esteja em atraso no recebi­mento, e não tendo havido culpa do empreiteiro, este perderá o serviço e o proprietário, os materiais. O Código Civil admite que o empreiteiro de lavor se exima de responsabilidade por defeito dos materiais em­pregados desde que avise ao dono, antes de os utilizar, sobre a sua in­suficiência ou má qualidade (art. 613). Tal escusa, se prevalece para trabalhos que podem ser realizados sem responsabilidade profissional, não se nos afigura aplicável às construções, onde o interesse público e os perigos inerentes à insegurança das obras exigem responsabilidade técnica, quer dos profissionais que projetam, quer dos que executam a

8. TJSP, RF 126/252.

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construção. O preceito da lei civil, no que concerne a construções, a nosso ver, está derrogado por diversas disposições do diploma regula­dor da profissão do engenheiro, do arquiteto e do agrônomo - Lei 5.194/1966 que impõe aos construtores - indivíduos ou sociedades- a responsabilidade técnica pelas obras que executarem, sempre sob as vistas de profissional habilitado. Não se concebe, pois, que um téc­nico se libere de responsabilidade profissional pelo só fato de comuni­car ao leigo que encomendou a obra a imprestabilidade do material ou a sua insuficiência para a segurança da construção, expondo a perigo não só a obra, mas a vida, a saúde e demais bens de seus habitantes e transeuntes. A lei civil, nessa isenção de responsabilidade, está supera­da pela legislação profissional, que é de ordem pública, e, portanto, prevalente sobre as disposições de ordem privada que a contrariem. O Código Civil de 2002, como se vê, reproduziu o texto do Código de 1916, mas a lição do Autor continua válida, uma vez que a lei geraí não derroga a especial, maiormente neste caso, em que a norma anterior (Lei 5.194/1966) regula especificamente as profissões de engenheiro, arquiteto e agrônomo e as respectivas responsabilidades profissionais. O contrato de construção não se sujeita somente ao Código Civil, mas subordina-se também às leis especiais cjue lhe digam respeito e, ainda, ao Código de Defesa do Consumidor. É evidente que o profissional de Engenharia ou Arquitetura não pode empregar materiais defeituosos, inadequados ou insuficientes ao objeto do contrato, que é a obra con­cluída. As divergências com o proprietário deverão ser resolvidas de outra forma.

Na empreitada de material, como o empreiteiro concorre com o trabalho e a matéria-prima, todos os riscos da execução do contrato correm por sua conta, até a entrega da obra concluída, desde que quem a encomendou não esteja em mora de receber (art. 611). Pelo Código Civil de 1916, se o proprietário estivesse em mora, os riscos por dano ou perecimento da obra seriam repartidos meio a meio por ambas as partes (art. 1.238, parte final). A razão desta partilha, expunha o Autor, estava em que a culpa do proprietário atenuava a responsabilidade do empreiteiro, sem, contudo, exonerá-lo inteiramente dos riscos pela guarda e conservação da obra. Para livrar-se totalmente dos ônus que a lei lhe impunha, caberia ao empreiteiro consignar judicialmente a obra concluída, em nome e por conta de quem a encomendou. A propósito, já se decidira que “o empreiteiro que fornece os materiais só ficará isento dos riscos da construção e se libertará dos efeitos da mora se depositar, em tempo, a obra que se obrigou a construir em prazo certo,

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quando porventura recusada, sem justa causa, por quem a encomen­dou”.9 O atual Código Civil, contudo, eliminou essa providência da parte do empreiteiro, transferindo-a, na verdade, ao dono da obra. Este é que deverá tomar a iniciativa judicial de rejeitar a obra, se tiver justa causa para se livrar da responsabilidade decorrente de sua recusa (art, 611, segunda parte).

A mora de qualquer dos contratantes, entretanto, deve ser conve­nientemente comprovada, sendo de toda prudência que o empreitador, tendo motivo para recusar a obra, ou o empreiteiro para não a entregar, notifique judicialmente a outra parte, apontando-lhe a falta e responsa­bilizando-a por suas conseqüências. Sem esta cautela dificilmente se poderá provar qual das partes incorreu em mora.

1.5.1.4 Execução, entrega e recebimento da obra empreitada - A obra empreitada deve ser executada e concluída nas condições e pra­zo ajustados e segundo as exigências técnicas e legais da construção, mesmo que a elas não se refira o contrato. O Código Civil impõe a execução da empreitada de acordo com o ajuste ou o costume do lugar (art. 615). O ajuste é a combinação das partes, expressa em cláusulas escritas ou avença verbal; o costume do lugar é o que se usa habitual­mente na localidade. Mas é de se recordar que a mesma lei civil subor­dina as construções ao direito dos vizinhos e aos regulamentos admi­nistrativos (art. 1.299). Vale dizer que a execução da obra contratada deverá atender, necessariamente, às restrições de vizinhança (cap. 3) e às limitações administrativas (cap. 4) impostas às construções. Nulo será o contrato na parte que contravenha as normas técnico-legais da edificação.

Na execução da obra, como já se acentuou, podem intervir sub- contratantes do empreiteiro, que se incumbem de trabalhos especiali­zados, sempre sob a responsabilidade do construtor. Nenhum princípio ou disposição legal impede essa colaboração de especialistas, mesmo porque, no dizer autorizado de Alcides Greca, “en nuestros dias no se realiza una sola construcción de edifício sin que intervengan técnicos especializadas en sus diversos aspectos. En la construcción de los edi­fícios modernos desfílan técnicos y empresas de las más diversas espe­cialidades, que se relacionam con la demolición, excavación, cemento armado, estructuras metálicas, carpintería, herrería, obras sanítarias, eletricidad, gas, calefacción, pintura, colocación de parquets, vidrios,

9. TJMG, RF 84/314.

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cielorrasos etc. Lo corrente es que el propietario contrate con un solo empresário; el constructor, quien actúa respaldándose en la responsabili- dad técnica de un arquitecto, ingeniero u otro profesional autorizado”.10

A entrega da construção pode ser feita por partes ou na sua totali­dade, conforme o ajuste dos interessados ou a natureza da obra em­preitada.

Se for daquelas que se dividem em partes distintas, ou se determi­nam por medida, a lei autoriza o empreiteiro a entregá-las à proporção em que for concluindo essas partes, ou efetivada a medição do que es­tiver concluído (art. 614). Como o Código Civil de 1916, o atual esta­belece que tudo que se pagou presume-se verificado (art. 614, § lc), não se admitindo reclamação posterior, haja ou não o proprietário pro­cedido à verificação.11 Mas vai mais longe, e dispõe, ainda, que tudo o que se mediu também se presume verificado se em trinta dias, a contar da medição, não forem denunciados os vícios ou defeitos pelo dono da obra ou por quem estiver incumbido da sua fiscalização (§ 2Q). Evi­dentemente, vícios ou defeitos aparentes, uma vez que os ocultos só podem ser apontados após sua averiguação. O Código de Defesa do Consumidor, contudo, regula a matéria de forma diferente, estabele­cendo o prazo de 90 dias para qualquer reclamação pelos vícios apa­rentes, contado a partir da entrega da obra (art. 26, II e § Ia). O mesmo prazo vale para os vícios ocultos, cujo termo inicial é o momento em que ficar evidenciado o defeito (art. 26, II e § 3Ü).12 Tais peculiarida­des serão examinadas mais adiante.

O recebimento da obra concluída ou das partes terminadas, nas condições previstas no contrato, é obrigação de quem a encomendou, sob pena de incorrer em mora, só podendo rejeitá-la se o empreiteiro não a executou de acordo com as instruções e o projeto fornecido, ou não obedeceu às regras técnicas da construção (art. 615). Hoje em dia a edificação está inteiramente regulamentada pelas normas edilícias (Có­digo de Obras e normas complementares) e pela legislação administra­tiva geral (normas urbanísticas, sanitárias, militares etc.), cuja obser­vância é obrigatória pelos construtores, independentemente de cláusu­la contratual, por constituírem preceitos de ordem pública, que visam a resguardar a segurança, a salubridade e a estética das construções. Se o empreiteiro desatender quer ao contrato e suas especificações constan­

10. El Régimen Legal de la Construcción, Buenos Aires, 1956, p. 90.11. Clóvis Beviláqua, Código Civil Comentado, IV/441, Rio, 1938.12. Sobre este aspecto, v. o capítulo seguinte, itens 2.1 e 2.3.

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tes das plantas e do memorial, quer às exigências legais da edificação, a pessoa que encomendou a obra pode recusá-la, ou pedir o correspon­dente abatimento no preço (art. 616). Esta alternativa compete ao pro­prietário, não podendo o empreiteiro impor o recebimento da obra des- toante do projeto e da técnica, mesmo com diminuição do preço. Ha­vendo divergência entre as partes, só em juízo poderá ser dirimida a dúvida, até porque em muitos casos a imperfeição da obra é mínima e irrelevante, e noutros é substancial. Pode ainda ocorrer que a obra, em­bora destoante do projeto, se revista de maior perfeição técnica ou me­lhor aprimoramento estético. Tais particularidades só poderão ser apre­ciadas e decididas em cada caso concreto, onde a prudência do juiz e as normas de eqüidade e justiça orientarão o deslinde da questão. Sen­do admitida a recusa da obra, o empreiteiro fica automaticamente obri­gado a indenizar o proprietário de todos os prejuízos suportados. Não nos parece cabível, entretanto, a condenação do empreiteiro a recons­truir a obra; sua obrigação será, tão-somente, a de pagar as perdas e danos decorrentes da imperfeição de seu trabalho e dos materiais inuti­lizados, assim como os lucros cessantes ocasionados pelo retardamen­to da utilização da construção.

Quanto ao prazo de entrega da obra, é o que constar do contrato, ou, na sua omissão, o que for necessário à conclusão da empreitada, dentro dos padrões comuns de trabalho. O atraso na entrega poderá jus­tificar a recusa do recebimento, por importar descumprimento do con­trato,13 ou tornar a obra inútil à sua destinação, como no caso de um compartimento para exposição com duração certa, findo o qual não há mais interesse pelas construções destinadas à mostra.

1.5.1.5 Fixação e pagamento do preço da empreitada — Em prin­cípio, o preço ajustado para a empreitada é inalterável até a conclusão da obra, mesmo que se elevem os salários ou encareçam os materiais (Código Civil de 1916, art. 1.246). Sendo a empreitada, como é, um contrato consensual, oneroso, bilateral, perfeito e comutativo, as par­tes estabelecem, de início, o preço e as obrigações recíprocas e equiva­lentes, que hão de subsistir durante toda a vigência do ajuste. Tais são os cânones clássicos do contrato de empreitada, consagrados pela nos­sa lei civil. Mas a rigidez desses postulados já não se harmoniza com a instabilidade econômica da nossa época e o intervencionismo estatal nos negócios privados.

13. TJRJ, RT 610/87, 611/175, 613/94.

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Quando os ajustes particulares eram feitos dentro da mais ampla liberdade contratual e as variações do mercado só se sujeitavam à lei da oferta e da procura, compreendia-se a imutabilidade do preço da empreitada sob a consideração de que o contrato era lei entre as partes: pacta sunt servanda. Desde, porém, que o Estado se arrogou o poder de intervir no domínio econômico, e na fixação dos salários, já não pode prevalecer o princípio da inalterabilidade do contrato quando o Poder Público altera os pressupostos de sua vigência.

Hoje em dia, o ato governamental que interfere coativãmente no mercado de materiais ou de mão-de-obra opera efeitos idênticos ao do fato da Natureza que modifica situações anteriores, criando obstáculos irremovíveis à execução dos ajustes particulares. Embora diversos na origem, ambos se identificam em suas conseqüências. Daí a aplicação indiscriminada da cláusula rebus sic stantibus, tanto aos casos de ine- xeqüibilidade do contrato em razão de medidas governamentais como de atos de particulares ou de fatos da Natureza que se oponham de ma­neira irremovível ao cumprimento do avençado.

Mas, para que se permita a revisão das condições da empreitada, e o reajuste do preço inicialmente combinado, exige-se que a alteração produzida pelo ato ou fato novo seja substancial e estranha à vontade dos contratantes, de modo a tomar impossível o cumprimento das obri­gações assumidas, sem a ruína de uma das partes. Não é, pois, a sim­ples elevação do custo de materiais ou da mão-de-obra em proporção tolerável que há de ensejar a revisão do contrato. As oscilações de mercado são sempre esperadas e constituem o risco normal de todo em­preendimento econômico. O que justifica o reajuste de preços é a su- perveniência de fatores imprevistos ou, se previstos, incalculáveis nas suas conseqüências, que desequilibrem as relações contratuais, crian­do ônus insuportáveis para uma parte, com vantagem desmedida para a outra. Em tal hipótese aplica-se a velha cláusula rebus sic stantibus, hoje rejuvenescida pela teoria da imprevisão ou da superveniência, que, embora omitida em nossa legislação, vem sendo acolhida pela doutrina14 e pela jurisprudência,15 com profunda repercussão nas aven­ças particulares e nos contratos administrativos.

14. Amoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Im previsão ,1948, p. 330; Alfredo de Almeida Paiva, A spectos do Contrato de Em preitada , 1955, pp. 55 e ss.; Otto Gil, “O contrato de empreitada e os novos níveis de salário mínimo”, Revista de D ireito Com ercial VI/310; Eduardo Espínola, “A cláusula re­bus sic stantibus no Direito contemporâneo”, Direito 1/7; Jair Lins, “A cláusula rebus sic stantibus”, -RF 40/512; Caio Tácito, “Parecer” in RF 103/451; Noé Azeve-

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Nestes últimos, a possibilidade de revisão das cláusulas financei­ras pactuadas foi expressamente autorizada pela Lei 8.666/1993 na hi­pótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis mas de conse­qüências incalculáveis, capazes de retardar ou impedir a execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual (art. 65, II, “d”). A manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo já estava assegurada na Constituição Federal, no art. 37, XXI, que a lei ordinária veio apenas explicitar.

O Código Civil de 2002 abrandou sobremaneira o princípio da imutabilidade das cláusulas econômicas dos contratos particulares. A teoria da imprevisão, aqui chamada de excessiva onerosidade, está prevista no art. 478 do estatuto civil: “Nos contratos de execução conti­nuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessi­vamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato”. Mas a resolução do contrato não é obrigató­ria, podendo ser evitada pela composição das partes, restabelecendo-se eqüitativamente as condições do contrato (art. 479).

A construção por empreitada é um contrato bilateral e comutati- vo, que implica obrigações recíprocas e equivalentes entre as duas par­tes. Justífíca-se, portanto, a revisão dos preços da empreitada toda vez que houver desequilíbrio econômico-financeiro entre as prestações das partes contratantes.

No que diz respeito ao dono da obra o Código de 2002 já consa­gra a regra de que, sobrevindo diminuição de preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá ele solicitar a revisão daquele valor, para que lhe seja assegura­da a diferença existente (art. 620). A empreitada, no caso, poderá ser somente de lavor, ou de lavor e material. Mas o percentual da diferen­ça poderá ser diverso na mão-de-obra e no material, desde que, soma­das, ultrapassem o percentual de dez por cento do preço global.

A mesma regra, contudo, não se aplica ao empreiteiro, porque o Código não a previu. Neste caso se há de invocar a teoria da ímprevi-

do, “Parecer” in RF 115/393; Carlos Medeiros Silva, “Parecer” in RF 122/65; José Campos, “A cláusula rebits sic stcintibus e o surto inflacionário no País”, RT 252/36.

15. STF, RF 77/79; Z W 4.4.1946, p. 662; TJSP, RT 254/213; TJDF, RT 151/712.

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são, ou da onerosidade excessiva, para que o empreiteiro possa vindi- car a diferença de preço pretendida.

O pagamento do preço da empreitada deve ser feito nas épocas e condições estabelecidas pelas partes contratantes, sob pena de infrin- gência contratual autorizadora de rescisão do ajuste e da retenção da obra, como veremos a seguir. Ocorrendo justo motivo para o reajusta- mento do preço ou modificação de cláusulas contratuais, poderá o in­teressado pleitear judicialmente a revisão da empreitada; nunca, porém, lhe será lícito alterá-la a seu talante.

1.5.1.6 Direito de retenção do empreiteiro-construtor - A des­peito das divergências doutrinárias e da hesitação jurisprudencial, vai- se firmando, dia a dia, o entendimento de que cabe ao empreiteiro- construtor o direito de retenção da obra quando o proprietário falta ao pagamento do preço convencionado. Dispositivos diversos do Código Civil de 1916 foram invocados para fundamento desse direito, tais como os arts. 516 (hoje, art. 1.219), 873 (hoje, art. 242), 1.092 (atuais arts. 476, 477 e 475) e 1.566, IV (atual art. 964, IV).

A nosso ver, o direito de retenção da obra empreitada deflui do art. 1.219 combinado com o art. 476 da lei civil. O art. 1.219 confere ao possuidor de boa-fé o direito de retenção pelo valor das benfeitorias; o art. 476 estabelece que, nos contratos bilaterais, nenhum dos contra­tantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. Ora, o empreiteiro que conclui a obra nas condições con­tratadas e não recebe o preço convencionado passa a ser, daquele mo­mento em diante, possuidor de boa-fé da obra concluída, e, pois, titular do direito de retenção concedido pelo art. 1.219. Além disso, sendo a empreitada um contrato bilateral perfeito, não pode o empreitador exi­gir do empreiteiro a entrega da construção antes de cumprir a sua obri­gação, consistente no pagamento do preço combinado. A exceptio inadimpleti contractus do art. 476 legitima o ju s retentionis do art. 1.219. Daí a continuar exata a afirmativa de Alfredo de Almeida Paiva de que “a natureza bilateral do contrato justifica a aplicação da exce­ção de inadimpíemento e o seu reconhecimento em favor do emprei­teiro-construtor o transforma de mero detentor alieno nomine em pos­suidor direto da obra contratada” .16

16. Aspectos do Contrato de Empreitada, 1955, pp. 129 e ss.; e, também, “O direito de retenção do empreiteiro-construtor”, RT 185/587.

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Embora por fundamentos diversos, inclinou-se a maioria dos ju ­ristas a reconhecer o direito de retenção ao empreiteiro-construtor,17 e a jurisprudência o vinha admitindo sem discrepância.18 Os que nega­vam tal direito o faziam por interpretação restritiva do instituto, por entendê-lo incompatível com o privilégio do art. 1.566, IV, do Código Civil de 1916 (atual art. 964, IV). Em que pese a essas opiniões, não nos pareciam acolhíveis. O direito de retenção é de aplicação geral a todos os casos em que ocorram os seus pressupostos, a saber: detenção da coisa pelo credor; existência de um crédito do detentor da coisa, certo e exigível (embora ilíquido); relação de conexidade entre o cré­dito e a coisa retida. Quanto à segunda objeção, merece igual repúdio. Não há qualquer incompatibilidade entre o privilégio concedido ao construtor para o recebimento de crédito proveniente da construção, em concurso de credores, e o direito de retenção da obra construída e não paga. Ambas essas prerrogativas podem coexistir sem conflitância, visto que objetivam situações diversas. Só não pode haver retenção de obra pública, por colidir com o princípio maior da continuidade do ser­viço público.

Esse entendimento permanece inalterável diante do novo Código Civil de 2002, uma vez que este reproduz, com pequenas modificações de linguagem, os mesmos preceitos do estatuto anterior, nos arts. 1.219, 242, 475, 476, 477 e 964, IV.

1.5.1.7 Acréscimos nas obras empreitadas - O art. 619 do Códi­go Civil, em sua parte final, estabelece que o empreiteiro só terá direi­to de cobrar o preço dos acréscimos quando a alteração da “planta” ou os aumentos forem autorizados por escrito pelo dono da obra. Tal dis­posição reafirma o princípio da inalterabilidade unilateral do contrato e visa a resguardar o empreitador da malícia do empreiteiro, que, a pre­texto de melhorar a construção, poderia encarecê-la ao seu arbítrio.

A exigência da concordância do empreitador para a feitura dos acréscimos da obra é perfeitamente razoável e compreensível. O que não se justifica, nem se compreende, é que a lei só admita a autoriza­ção escrita, quando é certo que por outros meios também se poderá

17. Amoldo Medeiros da Fonseca, D ireito de Retenção, Rio, 1944, p. 228; J. E. Miranda Carvalho, Contrato de Empreitada, Rio, 1953, p. 352; Astolfo de Re­zende, D a Posse e da sua Proteção, Ia ed., 11/513, Rio; Magalhães Gomes, D ireito de Retenção no Código C ivil Brasileiro, Ia ed., p. 257.

18. STF, R T 167/797; TJSP, R T 173/795, 199/268, 216/315, 247/234, 248/ 159; TJDF, R T 171/349; RF 99/124, 110/99, 112/437.

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provar a ordem do empreitador, e na maioria dos casos essa autoriza­ção é dada verbalmente pelo interessado na modificação do projeto e nos aumentos da construção. Diante dessa realidade, a jurisprudência tem atenuado o rigor da lei, para permitir a cobrança dos acréscimos da construção desde que o empreiteiro demonstre, por qualquer meio de prova, que os fez com aquiescência do dono da obra. O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que essa aquiescência é presumida quan­do os acréscimos são feitos à vista do proprietário, sem a sua oposição, ou quando ele assinou previamente a modificação da “planta”.19 Os Tribunais de Justiça do antigo Distrito Federal (Rio de Janeiro) e de Minas Gerais admitiram a cobrança em casos confessados pelo proprie­tário20 e o Supremo Tribunal proclamou que, “à falta de documento escrito, não seria de boa moral jurídica impor ao empreiteiro a inade­quada rigidez da regra do art. 1.246 do Código Civil [de 1916], com o quê se facilitaria a locupletação de um contratante, com espoliação do outro”.21

Todas essas decisões se embasam na teoria do enriquecimento sem causa, a qual, embora não consagrada em texto expresso da nossa le­gislação, tem sido acolhida pacificamente pela jurisprudência. Na ver­dade, o não pagamento de obras extraordinárias que valorizam a cons­trução e acarretam despesas ao empreiteiro importaria enriquecimento para o proprietário, em detrimento do construtor. Daí a atual orienta­ção dos tribunais em mandar pagar os acréscimos autorizados verbal­mente pelo empreitador, desde que o empreiteiro comprove convenien­temente essa autorização, por qualquer dos meios de prova admitidos em Direito. Essa, a nosso ver, a boa doutrina, a despeito de respeitá­veis opiniões em contrário.22

Esse entendimento doutrinário e jurisprudencial acabou prevale­cendo no Código Civil de 2002, em dispositivo expresso no parágrafo único do art. 619: “Ainda que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acrésci­mos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por con­tinuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca reclamou”. O Código estabelece, assim, uma presunção juris tantum

19. TJSP, RT 224/216, 248/159.20. TJDF, RF 80/289; TJMG, RF 104/284.23. STF, RF 132/93.22. Milton Evaristo dos Santos, “As obras extraordinárias no contrato de em­

preitada”, RT 185/81.

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em favor do empreiteiro, que pode ser contraditada pelo dono da obra. Tudo vai depender das circunstâncias do caso. A natureza da obra: se é pequena ou grande, simples ou complexa; a configuração dos acrésci­mos: se são aparentes ou ocultos; as condições pessoais do empreita- dor: se é pessoa esclarecida no assunto ou simplesmente leigo - todos esses aspectos deverão ser considerados na interpretação do dispositi­vo. É indispensável que os contratantes atuem de boa-fé, que se tornou norma expressa no Código: ‘‘Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” (art. 422).

1.5.1.8 Modificações no projeto original - A inalterabilidade do projeto de construção já estava assegurada na Lei 5.194/1966, que re­gula o exercício das profissões de engenheiro, arquiteto e agrônomo, ao dispor: “As alterações do projeto ou plano original só poderão ser feitas pelo profissional que o tenha elaborado” (art. 18). Paralelamen­te, a Lei de Direitos Autorais considera os projetos de engenharia, ar­quitetura e paisagismo como obras intelectuais protegidas (Lei 9.610/ 1998, art. I a, X), conferindo aos seus autores o direito de assegurar sua integridade, opondo-se a quaisquer modificações que possam compro­metê-los (art. 24, IV).

Assim, o Código Civil de 2002 só veio complementar as normas anteriores ao estabelecer que, sem anuência de seu autor, não pode o proprietário da obra introduzir modificações no projeto por ele aprova­do, ainda que a execução seja confiada a terceiros (art. 621). Inovou, contudo, ao contemplar algumas exceções à regra geral: a) alterações de pouca monta não são atingidas pela proibição, desde que ressalvada a unidade estética da obra projetada; b) razões de ordem técnica ou fatos supervenientes podem aconselhar a modificação do projeto, uma vez comprovadas a inconveniência ou a excessiva onerosidade da exe­cução do projeto original.

A nosso ver, a onerosidade excessiva só pode ocorrer por fatos supervenientes. Não é admissível que um projeto de construção elabo­rado por profissional habilitado venha a causar ônus econômico exces­sivo ao dono da obra, visto que as características da obra, o terreno onde vai ser edificada, enfim, todos os elementos para sua definição, foram previamente acertados pelas partes. Só mesmo fatos posteriores- como o aumento de preços dos materiais ou alterações ambientais ou geológicas - é que podem aconselhar modificações técnicas no proje­to. Mas serão sempre motivos supervenientes.

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É evidente que o projeto não pode conter erros técnicos. Se os ti­ver, o profissional poderá ser responsabilizado pelo empreitador. A inalterabilidade assegurada pela lei civil pressupõe a perfeição do pro­jeto, que vai se refletir na perfeição da obra a ser executada. Por ela respondem tanto o autor do projeto quanto seu executor, como se ex­plica no capítulo seguinte.

Fatos supervenientes à aprovação do projeto também podem de­terminar sua modificação, pela inconveniência de se manter o projeto em sua forma original. Inconveniência é conceito aberto, e depende das circunstâncias do fato. Não são razões de ordem técnica e nem de onerosidade excessiva, mas simplesmente razões de conveniência - e, por suposto, conveniência do empreitador da obra. Podem surgir situa­ções que desaconselhem a construção como prevista no projeto origi­nal. A vida é imprevisível, e situações novas podem ocorrer de modo a recomendar modificações no projeto. Suponhamos que o projeto origi­nal de um edifício tenha privilegiado determinada face, em virtude da vista que propiciaria aos seus futuros moradores. Antes de iniciada a construção, verifica-se que outro edifício a ser construído vedará aque­la visão pretendida, o que justifica a alteração do projeto original. De igual modo, obras públicas que venham a ser projetadas ou executadas durante a construção de uma casa podem aconselhar mudanças no pro­jeto. Também situações pessoais do proprietário, ou de sua família, po­dem determinar a conveniência de alteração do projeto. Um acidente ou uma doença de um dos futuros moradores pode exigir a colocação um elevador, acarretando modificações no projeto original.

Claro está que em todas essas situações o autor do projeto deverá ser cientificado, para que estude e realize as modificações do projeto original. Se não concordar, o empreitador incumbirá outro profissional de realizá-ias. Neste caso, não poderá o autor se opor. Restar-lhe-á, se assim entender, repudiar a autoria do projeto construído.

1.5.1.9 Suspensão da construção pelo empreitador - O art. 1.247 do Código Civil de 1916 dispunha que o dono da obra poderia rescin­dir o contrato de empreitada sem pagamento de indenização nos casos de força maior, que tornasse impossível o cumprimento de suas obri­gações, imperícia do empreiteiro ou inobservância do contrato.23 Fora

23. O art. 1.247 do Código Civil de 1916 fazia remissão a três incisos do art. 1.229, mas a Lei 3.725, de 15.1.1919, alterou a ordem desses incisos. Todavia, por lapso, manteve a remissão feita peto art. 1.247 àqueles incisos. Para conservar o pensamento primitivo do Código, tais remissões deveriam ser aos incisos I, V e VI,

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dessas hipóteses deveria indenizar o empreiteiro das despesas e do tra­balho feito, assim como dos lucros que poderia ter, se concluísse a obra. Embora pudesse parecer que, naqueles casos, o dono da obra fi­caria isento de qualquer pagamento, sempre se entendeu que, pelos ser­viços já realizados, teria que efetuar o pagamento correspondente. Fi­caria liberado apenas da indenização pelos lucros que o empreiteiro teria, se concluísse a obra.

O Código Civil de 2002 não reproduziu o preceito anterior. Ad­mite que o empreitador suspenda a execução da obra, mesmo depois de iniciada, sem apontar qualquer motivo para tanto. Neste caso, deve­rá pagar ao empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais uma indenização razoável, calculada em função do que ele viria a ganhar, se concluída a obra (art. 623). Trata-se, na verdade, de rescisão unilateral do contrato por parte do empreitador, à qual não pode se opor o empreiteiro. Cabe-lhe unicamente receber as despesas efetuadas e o lucro correspondente ao que foi realizado, mais uma in­denização pelo que deixou de lucrar com o término da obra. Esta inde­nização não é correspondente à totalidade dos lucros que obteria com a execução da obra (como na legislação anterior), mas será calculada em função do que teria obtido se a construção fosse finalizada, dentro do critério da razoabilidade. Vários fatores deverão ser sopesados para a fixação da indenização: o estágio da construção, a margem de lucro prevista pelo empreiteiro, as condições econômicas do proprietário, as características da obra (luxo, média, econômica) etc.

Note-se que a indenização só é devida se o empreitador não tiver justa causa para a rescisão do contrato. Caso ocorra qualquer das hipó­teses mencionadas acima, no Código de 1916 (força maior ou culpa do empreiteiro), só deverá pagar as despesas e lucros relativos aos servi­ços feitos, com base na teoria que veda o enriquecimento sem causa.

L 5.1.10 Suspensão da construção pelo empreiteiro - O art. 624 do Código Civil de 2002 diz que, suspensa a execução da empreitada sem justa causa, responde o empreiteiro por perdas ê danos. Aplica-se, pois, a regra geral do inadimplemento das obrigações, tratado pelo Có­digo nos arts. 389 e ss. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária, segundo índi­ces oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

mesmo porque eram os que mais se ajustavam ao contrato de empreitada, já que o art. 1.229 referia-se à locação de serviços.

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No art. 625 o Código enumera as situações que podem justificar a suspensão da obra. A primeira diz respeito à culpa do empreitador e à ocorrência de força maior. Não cumprindo o dono com suas obriga­ções, o empreiteiro estará liberado das suas, podendo considerar res­cindido o contrato. De igual modo, a força maior que venha a impedir a execução da obra é justa causa para a rescisão da empreitada sem culpa do empreiteiro. A força maior é equiparada pelo Código ao caso fortuito, definido como o fato necessário, cujos efeitos não era possí­vel evitar ou impedir (art. 393, parágrafo único).

O segundo motivo pelo qual pode o empreiteiro suspender a em­preitada é a ocorrência de dificuldades imprevisíveis de execução, re­sultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de forma que torne a empreitada excessivamente onerosa e o dono da obra se recuse a reajustar o preço previamente acordado (art. 625, II). Para que se afaste a culpa do empreiteiro é necessária, portanto, a existência das três condicionantes mencionadas: primeira, dificuldades imprevi­síveis de execução; segunda, que estas dificuldades tomem a constru­ção excessivamente onerosa; terceira, que o empreitador se recuse a reajustar o preço anteriormente combinado. Nos termos da lei, as difi­culdades imprevisíveis de execução devem ter causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes - o que nos leva a concluir que devam ser decorrentes de fatos da Natureza. Se houver algum fato do príncipe que venha a causar a onerosidade excessiva da obra, o empreiteiro de­verá pleitear a resolução do contrato com fundamento no art. 478 do Código Civil. Finalmente, para que o empreiteiro possa suspender a execução da obra é indispensável que o proprietário se recuse a reajus­tar o preço anteriormente combinado. Claro está que o dono da obra não é obrigado a concordar, ou porque considere que as dificuldades de execução não eram imprevisíveis (para um empreiteiro competente e cauteloso), ou porque tais dificuldades não tomam a construção ex­cessivamente onerosa, ou porque os valores apresentados pelo emprei­teiro são muito altos. Em qualquer destas hipóteses o contrato será res­cindido por culpa do empreiteiro.

Finalmente, o empreiteiro também poderá suspender a construção se as modificações exigidas pelo dono da obra, por seu vulto e nature­za, forem desproporcionais ao projeto aprovado, ainda que o dono se disponha a arcar com o acréscimo do preço (art. 625, III). Diferente­mente do que ocorre no contrato administrativo de obra pública, em que o empreiteiro é obrigado a aceitar os acréscimos que o contratante lhe impuser até 25% do valor atualizado do contrato, ou até 50% para

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as reformas (Lei 8.666/1993, art. 65, § l fl), na empreitada de obra par­ticular isto não ocorre. O empreiteiro estará obrigado a fazer somente as alterações de pequena monta, que se considere capaz de realizar. Poderá recusar as modificações desproporcionais ao projeto; e, neste caso, insistindo o empreitador, poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a indenização correspondente.

1.5.1.11 Extinção do contrato de empreitada - O Código Civil de 2002 dispõe expressamente que o contrato de empreitada não se ex­tingue pela morte de qualquer das partes, salvo se ajustado em consi­deração às qualidades pessoais do empreiteiro (art. 626). Assim, o ca­ráter intuitu personae do ajuste precisa estar expresso em seus termos ou deles se inferir sem qualquer sombra de dúvida. A tendência mo­derna é a contratação de empresas construtoras, e não mais de pessoas físicas, como antigamente, em que era a pessoa do engenheiro ou do arquiteto, com a bagagem de seus trabalhos anteriores, que determina­va a contratação. A encomenda de projetos de edificações - nos quais a concepção artística e intelectual da obra é determinante da escolha - é feita hoje por meio do contrato de prestação de serviços profissio­nais. A empreitada ficou realmente adstrita à atividade técnico-econô- mica da construção.

1.5.2 CONTRATO DE CONSTRUÇÃO POR ADMINISTRAÇÃO

Contrato de construção por administração é aquele em que o construtor se encarrega da execução de um projeto, mediante remune­ração fixa ou percentual sobre o custo da obra, correndo por conta do proprietário todos os encargos econômicos do empreendimento.

Nesta modalidade de contrato de construção, o construtor-admi- nistrador assume a direção e responsabilidade técnica de todos os traba­lhos, incumbindo ao proprietário ou comitente o custeio da construção e as especificações estruturais e de acabamento, dentre as adequadas à obra.

Não há confundir o contrato de construção por administração com o contrato de fiscalização ou, ainda, com o contrato de empreita­da. O construtor-administrador realiza a obra; o fiscal apenas acompa­nha a execução dos trabalhos, confrontando-os com o projeto. Aquele exerce atividade material, embora técnica, convertendo o projeto em construção; este desempenha uma função intelectual de supervisão e controle dos trabalhos. Não há também confusão possível entre o cons­

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trutor-administrador e o construtor-empreiteiro. O primeiro responsa­biliza-se unicamente pela execução técnica do projeto; o segundo as­sume os encargos técnicos da obra e mais os riscos econômicos da construção até a sua conclusão e entrega a quem a encomendou. Na construção por administração o proprietário é quem custeia a obra e só a final conhece o seu preço; na empreitada, a construção é custeada pelo empreiteiro e o preço é fixado de início. O empreiteiro é executor autônomo dos trabalhos ajustados; o administrador é executor dependen­te das deliberações do dono da obra, no que concerne ao andamento dos serviços, ressalvada sempre a parte técnica, que é de inteira e exclusi­va responsabilidade dos profissionais, qualquer que seja a modalidade de contrato de construção. Daí por que no contrato de construção por administração os riscos e encargos econômicos da execução da obra recaem sobre o proprietário, e na empreitada incidem, em princípio, sobre o empreiteiro, como já vimos em tópico anterior (item 1.5.1).

Atento a essas peculiaridades, pôde o Prof. Spencer Vampré assi­nalar que “empreitada e administração, sob o ponto de vista dos riscos e vantagens, são expressões antitéticas. A empreitada é precisamente o reverso da administração. Na empreitada há um preço global, na admi­nistração se gastará o que for preciso, ou conveniente, sem prévia de­terminação do preço certo e global” .24

No mesmo sentido, assinala Carvalho Santos que, “na construção por administração, de um lado, o administrador não é, em rigor, em­preiteiro, justamente porque não se obriga a concluir a obra por um certo e determinado preço, mas apenas a levá-la avante e concluí-la, valendo-se dos meios e recursos que forem fornecidos pelo dono da obra, o que é coisa bem diversa. O que distingue a administração é justamente livrar o administrador de qualquer risco pecuniário na exe­cução total dos trabalhos”,2:5 salvo erro técnico, acrescentamos nós.

Perfilhando essa orientação, não admitimos a inclusão do contrato de construção por administração entre as várias modalidades da em­preitada, por o considerarmos um contrato autônomo, com caracte­rísticas próprias, das quais resultam conseqüências para as partes bem diversas das da empreitada.

Na construção por administração o proprietário pode adquirir pes­soalmente os materiais ou incumbir o construtor-administrador de fazê- lo, caso em que este agirá como preposto ou mandatário do dono da

24. “Parecer” in RF 51/77.25. “Parecer” in RT 254/32.

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obra. Em qualquer hipótese, porém, as despesas com o material e a mão-de-obra correm por conta do proprietário, ainda que o construtor- administrador adiante o numerário para posterior reembolso com os acréscimos de sua remuneração.26 E de se advertir, entretanto, que, quanto aos salários dos empregados da obra, contribuições de previ­dência e indenização por acidentes do trabalho, a responsabilidade é origínariamente do construtor-administrador, por expressa determina­ção da Lei 2.959, de 17.11.1956, que, complementando as disposições trabalhistas relativas a contrato de trabalho por tempo determinado ou por obra certa (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 443), impôs a todo construtor a obrigação de preencher a carteira profissional dos empregados da obra, assumindo, assim, a posição de empregador, com todos os consectários dessa situação.

Quanto à responsabilidade técnica pela segurança da obra, qual­quer que seja a modalidade do contrato de administração, caberá sempre ao construtor-administrador, nos termos do art. 618 do Código Civil de 2002, que lhe é aplicável por analogia com o construtor-empreitei- ro. Idêntica responsabilidade assume o construtor-administrador pela perfeição dos trabalhos e fiel execução do projeto. Aliás, para fins de responsabilidade profissional é indiferente a espécie ou natureza do contrato de construção, uma vez que tal responsabilidade não é con­tratual, mas sim legal, decorrente do Código Civil (art. 618), no que concerne à solidez da construção, e da legislação regulamentadora da profissão de engenheiro, de arquiteto e de agrônomo, no que tange à perfeição da obra, embora sem afetar a sua segurança.

O contrato de construção por administração, como os seus congê­neres, não é formal, pelo quê pode ser avençado verbalmente ou por instrumento público ou particular, mas é sempre aconselhável a forma escrita, para a perfeita fixação dos direitos e obrigações das partes e para possibilitar o seu registro, a fim de valer contra terceiros. Tal con­trato só pode ser firmado validamente com profissionais habilitados ou com sociedades construtoras legalmente autorizadas a executar servi­ços de Engenharia ou de Arquitetura, sendo nulo de pleno direito o

26. Sobre contrato de construção p o r adm inistração, v.: Benedito Pereira Porto, “Contrato de construção por administração”, in Engenharia 88/194, dezem­bro/l 949. Sobre o custeio da obra no contrato de construção p o r administração, v. os pareceres de Plínio Barreto, Carvalho Santos, Eduardo Espínola, San Tiago Dantas, Vicente Ráo, Antão de Moraes e Noé Azevedo in RT 254/24 a 80, bem assim o acórdão do TJSP na mesma revista e volume, à p. 359.

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ajuste com indivíduo ou firma não inscrita no CREA (Lei 5.194/1966, art. 15).

A despeito de sua importância no campo da construção civil, este contrato não mereceu até hoje regulamentação legal, só sendo conside­rado na legislação fiscal, para fins de incidência tributária, e na Lei de Condomínio e Incorporações, para as construções nesse regime (Lei 4.591/1964, arts. 58 a 62). À míngua de legislação própria, aplicam- se-lhe os princípios gerais dos contratos civis e os preceitos peculiares da construção, a que já nos referimos nas considerações preliminares deste capítulo.

2. CONTRA TOS D E CONSTRUÇÃO DE OBRA PÚBLICA

Contratos de construção de obra pública?1 em sentido amplo, são todos aqueles ajustes da Administração direta ou indireta que tenham por objeto realizações materiais destinadas ao uso comum do povo, à fruição de determinados usuários ou à utilização das próprias reparti­ções administrativas.

Em sentido técnico-administrativo restrito, contrato de obra pú­blica é somente aquele que vise à execução de projeto de Engenharia, Arquitetura ou Agronomia em imóvel público ou destinado a fins pú­blicos. Tais contratos só podem ser celebrados com empresas ou pro­fissionais legalmente habilitados a construir, nos termos da Lei 5.194, de 24.12.1966, registrados no respectivo Conselho de Engenharia, Ar­quitetura e Agronomia (CREA), de acordo com as resoluções do Con­selho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA), sem o quê serão nulos de pleno direito, consoante dispõe expressamen­te o art. 15 da citada lei de regulamentação profissional.

Observamos que, se a obra ou serviço foi realizado sem contrato ou com contrato nulo, mas tomou-se útil à Administração, deve ser pago o seu preço. Já, então, a causa do pagamento não é o contrato, mas sim a vantagem auferida pela Administração, com o enriquecimen­to ilícito, do valor da obra ou do serviço.28

27. Para maiores esclarecimentos sobre contratos de construção de obra p ú ­blica, v ., do Autor, Licitação e Contrato Administrativo, 13a ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo e Maria Lúcia Mazzei de Alencar, Malheiros Edito­res, 2002, cap. 10.

28. TJSP, RDA 48/265, 54/118; RF 153/306.

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Para fins de construção, as obras públicas podem ser classificadas em quatro modalidades de empreendimentos, a saber: equipamento ur­bano (ruas, praças, estádios, monumentos; calçamento e canalizações; redes de energia elétrica e de comunicações; viadutos, túneis, metrôs e demais melhoramentos próprios da cidade); equipamento administra­tivo (instalações e aparelhamento para serviços administrativos ou téc­nicos); empreendimento de utilidade pública (ferrovias, rodovias, pon­tes, portos, aeroportos, canais, obras de saneamento, represas, usinas hidrelétricas ou atômicas e demais construções de interesse coletivo); edifícios públicos (sedes de governo, repartições públicas, escolas, hos­pitais, presídios etc.).

A contratação de qualquer dessas obras exige, em regra, projeto básico e projeto executivo (Lei 8.666, de 21.6.1993, art. 7Q), como tam­bém deve atender às normas técnicas pertinentes, da Associação Brasi­leira de Normas Técnicas (ABNT), como determina a Lei 4.150, de 21.11.1962, e, se se tratar de edifícios públicos, ficam sujeitos a todas as exigências da edificação particular, especialmente às imposições do Código de Obras e das normas de zoneamento urbano, em face da com­petência constitucional do Município para promover o adequado orde­namento de seu território, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (Constituição Federal art. 30, VIII).

Nem se compreenderia que as entidades estatais de grau superior tivessem o privilégio de desatender à legislação municipal que dispõe sobre a edificação e ordenação da cidade. Daí por que qualquer edifí­cio - particular ou público - que se levante no perímetro urbano sujei­ta-se às normas locais.29

Além dessas regras, os contratos de obra pública subordinam-se às normas gerais de licitação e contratação editadas pela União (Cons­tituição Federal, art. 22, XXVII) e consubstanciadas na Lei 8.666, de 21.6.1993, e, nos Estados e Municípios, seguirá as normas administra­tivas próprias da entidade contratante. O contrato de construção de obra pública, como espécie do gênero contrato administrativo, apresenta-se com os caracteres gerais deste e com as peculiaridades de sua categoria. E, assim, um ajuste bilateral, consensual, formal, oneroso, comutativo e realizado intuitupersonae, sendo normalmente precedido de licitação.

Quanto ao regime de execução, ou seja, o modo pelo qual o con­tratante compromete-se com a Administração a realizar a obra e a re­

29. STF, RT 314/625; TJSP, RT 303/137.

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ceber a remuneração ajustada, o contrato de obra pública admite duas modalidades, a saber, a empreitada e o regime de tarefa.

2.1 CONTRA TO DE EMPREITADA

A empreitada de obra pública, conquanto seja um contrato admi­nistrativo, reveste-se dos mesmos caracteres da empreitada civil (Có­digo Civil, arts. 610 a 626), salvo quanto à formalização do ajuste, que há de ser sempre escrito e normalmente precedido de licitação, além de atender aos preceitos específicos da Administração contratante e às normas de execução peculiares do Direito Público.

Pelo contrato de empreitada a Administração comete ao emprei­teiro a execução da obra, por sua conta e risco, mediante um preço fixo, ainda que reajustável, unitário ou global, acertado para a conclusão do todo ou das unidades avençadas. Tal contrato consubstancia uma obri­gação de resultado, porque visa precípua e imediatamente à obra con­cluída pelo empreiteiro.30

2.1.1 MODALIDADES

A empreitada, quanto ao modo de execução, pode ser de material ou de lavor, e, quanto ao modo de pagamento, pode ser por preço glo­bal ou por preço unitário. A Lei 8.666/1993, que atualmente regula as contratações da Administração Pública, prevê uma terceira modalida­de, a empreitada integral, que abrange também as instalações necessá­rias ao funcionamento da obra pública, como veremos adiante.

Empreitada de material é aquela em que o empreiteiro concorre com a mão-de-obra e os materiais, correndo ambos por sua conta. E a modalidade mais freqüente, na qual o empreiteiro assume os riscos in­tegrais pela execução da obra, respondendo, assim, pela boa qualidade de tudo o que empregou na construção, como pela perfeição de seu trabalho.

Empreitada de lavor é a em que o empreiteiro entra exclusivamente com o trabalho, recebendo os materiais do dono da obra. Embora esta modalidade de contrato muito se aproxime da locação de serviço, com ela não se confunde, porque na empreitada de lavor contrata-se o re-

30. Alfredo de Almeida Paiva, Aspectos do Contrato de Empreitada, Rio, 1955, pp. 19 e ss.; E. V. Miranda de Carvalho, Contrato de Empreitada, Rio, 1953, pp. 11 e ss.

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sultado do trabalho, e na locação de serviço ajusta-se o trabalho em si mesmo, o que levou Costa Sena a observar, com inteiro acerto, que “na empreitada paga-se o produto do serviço; na locação de serviço, remunera-se a pessoa que põe à disposição de outro sua atividade”.31

Empreitada por preço global é aquela em que a Administração ajusta a remuneração do empreiteiro para a obra concluída na sua tota­lidade. O pagamento, entretanto, pode efetuar-se parceladamente nas datas ou fases indicadas no contrato. E usual nesta modalidade de em­preitada pedir-se no edital a especificação dos preços unitários, tendo em vista a obrigação do empreiteiro de aceitar os acréscimos ou su­pressões legais da obra pública aos preços originariamente ofertados, além de possibilitar a aferição da denominada “composição de pre­ços”,32 mas essa especificação unitária não desfigura nem descaracte­riza a empreitada por preço global, desde que as propostas sejam jul­gadas e o contrato seja firmado pelo preço final da obra. O que tipifica a empreitada por preço global é a fixação antecipada do custo da obra para a sua totalidade, diversamente do que ocorre na empreitada por etapas, em que o custo resulta do que for realizado e medido, para pa­gamento na base da unidade contratada.

As Administrações erradamente vêm declarando em seus editais e contratos que se trata de “empreitada por preço unitário”, quando apenas pedem tais preços para aferições e outros fins que não o de julgamento da proposta. Essas empreitadas são e continuam sendo “por preço glo­bal”, a despeito de sua errônea denominação.

Empreitada por preço unitário é a em que se contrata a execução de unidades ou etapas de uma obra, por remuneração certa para essas frações ou partes do todo. É a modalidade adequada aos casos em que, nos termos do Código Civil (art. 614), a obra “constar de partes distin­tas”, ou for daquelas que “se determinam por medida”. Nessa modali­dade de empreitada, o preço é ajustado por unidades, tais como metros quadrados de pavimentação, metros cúbicos de concreto fundido, pi­sos distintos de um edifício, sendo devido o pagamento ao término de cada etapa ou após a medição das unidades construídas. Distingue-se da empreitada por preço global pelo fato de em uma contratar-se a obra

31. Da Empreitada no Direito Civil, Rio, 1935, p. 28.32. Composição de preços é a estimativa de cada elemento da obra, pedida na

planilha, com a especialização detalhada dos custos para a formação do preço global, integrado pelo BDI - Benefícios e Despesas Indiretas que compreende, normal­mente, despesas de administração; impostos, taxas e emolumentos; despesas finan­ceiras; encargos trabalhistas e previdenciários; eventuais e lucro do empreendimento.

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concluída e, na outra (por preço unitário), ajustar-se apenas o preço das frações ou partes da obra em construção. Ambas objetivam a con­clusão da obra, mas, enquanto na empreitada por preço global fixa-se antecipadamente o seu custo final, na empreitada por etapas o custo final resulta do que for realizado, medido e pago na base do preço uni­tário contratado. Nesta modalidade de empreitada o julgamento das propostas é feito pelos menores preços unitários.

Empreitada integral é aquela em que se contrata um empreendi­mento em sua integralidade, compreendendo todas as etapas das obras, serviços e instalações necessárias, sob inteira responsabilidade do con­tratado até a sua entrega ao contratante em condições de entrada em operação, atendidos os requisitos técnicos e legais para sua utilização em condições de segurança estrutural e operacional e com as caracte­rísticas adequadas às finalidades para que foi contratada, segundo a de­finição da Lei 8.666/1993 (art. 62, VIII, “c”). É o chamado turn key dos ingleses e norte-americanos - c le f à la main, dos franceses, chiave in mano, dos italianos - , que se caracteriza pelo traspasse da responsa­bilidade integral pela realização do empreendimento ao contratado, dentro das especificações ajustadas. Neste sistema {turn key), o em­preiteiro desenvolve todo o processo e faz todos os fornecimentos, podendo subcontratar, sob sua inteira responsabilidade, parte ou a totalidade da obra, assim como os projetos do empreendimento, para entregá-lo em condições de uso e funcionamento. Esta modalidade de empreitada destina-se àqueles empreendimentos em que o Poder Pú­blico deseja receber a obra já pronta e acabada para sua utilização - como exemplo, uma estação de Metrô, com escadas rolantes, sistemas de segurança e refrigeração etc.; ou ainda um edifício destinado a au­ditório público, com todos os equipamentos indispensáveis ao seu ime­diato funcionamento.

2.1.2 CARACTERES

O contrato de empreitada, qualquer que seja a sua modalidade, ca- racteriza-se pela prévia especificação do que vai ser executado, pela prefixação do preço do empreendimento, pela autonomia do empreitei­ro na condução da obra e pela sua completa responsabilidade técnica e econômica por toda a execução do objeto do ajuste.

Convencionadas as condições da empreitada, as partes ficam jun­gidas ao pactuado e ao preço combinado, mas é sempre admissível que a Administração altere as características técnicas da obra, para melhor

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atendimento do público ou do serviço público, só não sendo lícito mo­dificar o objeto do contrato. Toda vez que a alteração das característi­cas da obra ou da sua execução refletir no preço, agravando os encar­gos do empreiteiro, impõe-se a sua revisão, para se manter o equilíbrio econômico-financeiro inicial. Se houver necessidade de substituição do objeto do contrato, é de rigor a sua rescisão para nova contratação, in- denizando-se o empreiteiro dos prejuízos suportados com a prematura extinção da empreitada.

Como assinala a doutrina, a empreitada de obra pública é contrato intuitu personae, não podendo ser transferido no todo ou em parte sem prévia anuência da Administração.33 Daí não se conclua, todavia, que o empreiteiro não possa subcontratar serviços complementares, para a conclusão da obra empreitada. Pode, independentemente de consulta à Administração, desde que se trate daquelas partes secundárias da obra, usualmente realizadas por técnicos de grau médio, mas sempre sob a inteira responsabilidade do empreiteiro e de seus engenheiros. O que se veda ao empreiteiro é a subempreitada, ou seja, a transferência total ou parcial da obra pública a terceiros, alheios ao vínculo contratual com a Administração, e a liberação da responsabilidade originária do contrato.

Quanto ao preço da empreitada, em princípio, é o fixado para a conclusão da obra, mas admite revisão, na forma da legislação admi­nistrativa pertinente, desde que essa possibilidade tenha sido consigna­da no edital e consubstanciada no contrato, sendo vedado qualquer acordo para reajustamento não previsto originariamente pelas partes. Isto não impede a invocação da velha cláusula rebus sic stantibus, hoje rejuvenescida pela teoria da imprevisão ou da superveniência, de ple­na aplicação nos contratos administrativos quando sobrevêm eventos imprevistos e imprevisíveis, que rompem o equilíbrio econômico do ajuste, criando ônus insuportável para uma parte, com vantagem des­medida para a outra. Neste caso, poderá haver reajuste extraordinário do preço ou rescisão do contrato mediante autorização legal ou deci­são judicial.

Atualmente, a Constituição Federal assegura o equilíbrio econô­mico-financeiro dos contratos administrativos, já que ordena sejam os pagamentos feitos nas condições efetivas da proposta, conforme a lei ordinária (art. 37, XXI) - motivo pelo qual a Lei de Contratações da Administração admite a alteração do contrato “para restabelecer a re­

33. Caio Tácito, As Empreitadas de Obras Públicas no Direito Brasileiro, Rio, 1958, p. 13.

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lação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do con­tratado e a retribuição da Administração para a justa remuneração da obra” (Lei 8.666/1993, art. 65, II, “d”).

O pagamento do preço da empreitada é de ser feito nas épocas e condições estabelecidas no ajuste, sob pena de infringência contratual da Administração, que se sujeitará aos juros da mora, correção mone­tária e até mesmo à rescisão judicial do contrato, tal seja o atraso nas prestações devidas. O que não se reconhece ao empreiteiro é o direito de paralisação ou de retenção da obra, por ato próprio, porque isto con­traria o princípio da continuidade do serviço público, que prepondera em todo contrato administrativo, impedindo a aplicação civilística da exceção de contrato não cumprido (Código Civil, art. 476). Havendo inadimplência da Administração, caberá ao empreiteiro - sem parali­sar os trabalhos ou reter a entrega do que estiver concluído - pedir à Justiça a rescisão do contrato com perdas e danos, ou pleitear unica­mente os prejuízos suportados com os atrasos da inadimplente. A Lei 8.666/1993 admite que o contratado suspenda seus trabalhos caso exis­ta atraso superior a noventa dias dos pagamentos devidos pela Admi­nistração, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra (art. 78, XV).

Os acréscimos ou reduções de quantidade são normais nas emprei­tadas de obra pública, até o limite previsto na legislação pertinente, sen­do formalizados por simples termo de aditamento ao contrato original; ultrapassados os limites legais, impõe-se novo contrato, ainda que com o mesmo empreiteiro e com dispensa de licitação, se cabível.34

2.1.3 RISCOS DA EXECUÇÃO

Conforme seja a empreitada de material ou de lavor, diversos são os riscos da execução.

Na empreitada de material, como o empreiteiro concorre com a mão-de-obra e os materiais, todos os riscos da execução do contrato correm por sua conta até a entrega da obra concluída ou da parte con­tratada, desde que a Administração não esteja em mora de receber. Se houver mora no recebimento, os riscos por dano ou perecimento da obra incidirão meio a meio contra as duas partes. A razão desta parti­lha de responsabilidade está em que a culpa da Administração atenua os encargos do empreiteiro, sem, contudo, exonerá-lo inteiramente dos

34. Cf. Lei 8.666/1993, art. 65, §§ l2 a 8fl.

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riscos pela guarda e conservação da obra (Código Civil, art. 611). Para se livrar totalmente do ônus que a lei lhe impõe, caberá ao empreiteiro consignar judicialmente a obra concluída, em nome e por conta de quem a encomendou.

Na empreitada de lavor, todos os danos aos materiais ou à própria obra correm por conta da Administração, desde que não provenham de ato culposo do empreiteiro, que só concorre com a mão-de-obra (Có­digo Civil, art. 612). Nesta modalidade de empreitada, se a obra vier a se danificar ou a perecer antes da entrega, sem que a Administração esteja em atraso no recebimento e desde que não tenha havido culpa do empreiteiro, este perderá o serviço e, aquela, os materiais forneci­dos. O Código Civil de 2002 continua a admitir que o empreiteiro de lavor se exima dos riscos provenientes dos defeitos do material desde que avise ao dono da obra antes de os utilizar (art. 613). Este preceito não pode prevalecer, porque está em conflito com a lei reguladora do exercício da Engenharia, da Arquitetura e Agronomia (Lei 5.194/ 1966), que responsabiliza os seus profissionais por todos os trabalhos de que participarem (arts. 17 a 23), sem possibilidade de escusa pelo emprego de materiais inadequados ou com técnica imprópria.

A inadimplência de qualquer dos contratantes deve ser convenien­temente comprovada, sendo de toda prudência que a Administração, tendo motivos para recusar a obra, ou o empreiteiro para não concluí-la, promova a competente ação, ou notifique a outra parte, apontando-lhe a falta e responsabilizando-a por suas conseqüências. Quanto à entrega da obra, há que ser feita mediante termo circunstanciado, em caráter provisório ou definitivo, na forma prevista no contrato, ou, ainda, de­positada judicialmente por conta e risco da Administração.

2.2 REGIME DE TAREFA

Regime de tarefa é aquele em que a Administração incumbe parti­culares de executar pequenas obras ou partes de uma obra maior, por preço certo, global ou unitário, por meio de simples ordem de serviço ou ajuste precário. O pagamento é feito periodicamente, após a verifi­cação ou medição pelo fiscal da Administração contratante. Normal­mente, o tarefeiro só concorre com mão-de-obra e os instrumentos de trabalho, mas nada impede que fomeça também o material.

Esse regime é admitido nos casos em que o valor da obra ou de suas partes não exige qualquer modalidade de licitação, como ocorre geralmente nas pequenas reformas ou ampliações de pouco vulto.

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No regime de tarefa a Administração tem a faculdade discricionária de suspender os trabalhos a qualquer tempo, sem incorrer em violação contratual, porque, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, o ajus­te é sempre a título precário, rescindível a juízo do órgão contratante.33 O tarefeiro, todavia, fica sujeito às normas gerais dos contratos adminis­trativos e às condições peculiares do ajuste, não lhe sendo lícito parali­sar as obras antes de concluída a tarefa de que se encarregou, sob pena de infringir o contrato, com todos os consectários da inadimplência.

3. CONTRATOS CONEXOS À CONSTRUÇÃO

Ao lado dos contratos de construção propriamente ditos - emprei­tada e administração - , isto é, daqueles ajustes que visam direta e ime­diatamente à realização material da obra, outros existem para possibi­litar a construção ou propiciar recursos para a execução da obra. São contratos conexos à construção e que gravitam em seu derredor, ora antecedendo a obra, ora acompanhando a sua execução, ora sucedendo a construção. Dentre os ajustes conexos à construção merecem análi­se, por sua importância e freqüência em nossos dias, os contratos de projeto e de fiscalização, o contrato de financiamento de construção, o contrato de trabalho para obra certa e o contrato de incorporação de condomínio.

Tais contratos são de prática recente entre nós e, por isso mesmo, não se acham convenientemente regulados pela legislação, nem estu­dados satisfatoriamente pela doutrina. Surgem a todo momento, com as imprecisões naturais dos institutos novos, mas já é inegável a sua existência e reconhecida a sua utilidade para atender ao surto de cons­truções que repontam em todo o País, justificando-se o estudo dessas avenças como formas autônomas e diversificadas dos contratos tradi­cionais que conhecíamos.

3.1 CONTRA TO DE PROJETO E DE FISCALIZA ÇÃO DE OBRA

A construção civil, como atividade técnico-econômica que é na atualidade, deve ser precedida e executada de acordo com projeto regu­larmente aprovado pelo Poder Público, e não raras vezes a complexida­de de sua execução aconselha a presença de um fiscal, para assegurar a perfeita adequação da obra ao que foi projetado. Daí o advento dos

35. STF, RSTF 40/144.

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CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO E CONTRATOS CONEXOS 267

contratos de projeto e de fiscalização, ou de ambos conjugados num só ajuste.

Os contratos de projeto e de fiscalização de obra são típicos da atividade liberal do engenheiro, do arquiteto e do agrônomo, no de­sempenho específico de suas atribuições profissionais-liberais, mas, por uma incompreensível aberração jurídica, permite a lei que sejam firmados também por empresas autorizadas a executar trabalhos de En­genharia, Arquitetura e Agronomia (arts. 7Ü e 8a da Lei 5.194/1966), sendo nulos de pleno direito os que forem avençados com pessoas ina­bilitadas ou não autorizadas a realizar tais serviços (art. 15).

Como contratos de serviços profissionais, os ajustes de projeto ou de fiscalização de obra não se confundem com os contratos de cons­trução (por administração ou por empreitada). A atividade da indústria da construção é de caráter comercial; a dos serviços profissionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia é de natureza civil. No contrato de construção visa-se à realização material da obra; nos contratos de projeto e de fiscalização objetiva-se o trabalho intelectual do profissio­nal. Daí a distinção entre a remuneração do construtor e os honorários profissionais do projetista e do fiscal.

Convém distinguir, ainda, os contratos de serviços profissionais- liberais, de que estamos tratando, dos contratos de trabalho subordi­nado que o engenheiro, o arquiteto ou o agrônomo podem firmar com colegas ou empresas, como empregados, nos moldes da legislação tra­balhista. Naqueles, o serviço é prestado com plena liberdade; nestes o é com hierarquização ao empregador, embora em ambos os casos dis­ponha o profissional de autonomia técnica no desempenho de suas atri­buições. Mas, enquanto nos contratos de projeto e de fiscalização de obra o ajuste é civil, sujeito à Justiça Comum, nos contratos de traba­lho subordinado a relação contratual é empregatícia, sujeita à Justiça do Trabalho.

A prestação de serviços profissionais-liberais de Engenharia, Ar­quitetura e Agronomia pode ser ajustada sob três modalidades contra­tuais: contrato de projeto, contrato de fiscalização, contrato de proje­to e fiscalização de obra, como veremos a seguir.

3.1.1 CONTRATO DE PROJETO

Contrato de projeto é o ajuste pelo qual uma das partes se com­promete a conceber tecnicamente uma obra e a fornecer todos os ele­mentos indicativos da construção, e a outra a pagar os honorários con­

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vencionados pelo trabalho encomendado, e aprovado pela repartição competente.

O objeto desse ajuste é a concepção técnica e artística da obra pelo projetista, traduzida em elementos gráficos (plantas, cortes, fachadas etc.) e descritivos (memoriais, cálculos, orçamentos etc.), aptos a pos­sibilitar a execução material da construção projetada.

O contrato de projeto abrange normalmente os estudos prelimina­res, os anteprojetos e as modificações do projeto exigidas pelo Poder Público, até sua final aprovação, visto que sem essa formalidade oficial não tem qualquer valor ou utilidade para o interessado na construção. Sendo, como é, um contrato de prestação personalíssima, não pode ser transferido pelo projetista a terceiros sem consentimento da outra parte, embora admita a colaboração de outros técnicos na feitura dos elementos que integram o projeto, desde que executados sob orienta­ção e responsabilidade do contratante originário.

As obrigações contratuais do profissional projetista começam com o ajuste e cessam com a expedição do alvará de construção, mas sua responsabilidade legal pelos defeitos da obra, ou pela sua solidez e se­gurança, subsiste com a do construtor, desde que o defeito resulte de erro de cálculo ou de concepção. De acordo com o art. 622 do Código Civil de 2002, o prazo prescricional é de 180 dias, no primeiro caso; no segundo, de 5 anos, como adiante se verá pormenorizadamente (cap. 8, item 2).

3.1.2 CONTRATO DE FISCALIZAÇÃO

Contrato de fiscalização de obra é aquele em que uma das partes se encarrega de acompanhar determinada construção, impondo ao construtor a fiel observância do projeto próprio ou de terceiro, median­te remuneração fixa ou percentual, avençada com o proprietário ou co- mitente da obra.

O contrato de fiscalização de obra pressupõe, portanto, que a cons­trução esteja confiada a terceiro, autor do projeto ou não. A função do fiscal não se identifica, nem se confunde, com a do construtor. Enquan­to este realiza a construção, aquele confere a sua execução. A nature­za das duas atividades é diversa: o trabalho da construção é material, embora realizado com técnica; o trabalho da fiscalização é intelec­tual e exclusivamente técnico. Aquela é uma atividade industrial, acentuadamente comercial; esta é profissional-liberal, caracteristica- mente civil.

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O fiscal não suporta os encargos econômicos da construção, nem assume responsabilidade perante terceiros. Suas obrigações são mera­mente contratuais, derivadas do ajuste de fiscalização firmado com o proprietário ou comitente da obra, sem qualquer vinculação com o cons­trutor, com vizinhos ou com terceiros que venham a ser prejudicados pela construção. Perante o proprietário, sim, tem responsabilidade con­tratual e ético-proflssional, porque foi contratado, precisamente, para assegurar a perfeição da obra, incumbindo-lhe, por isso mesmo, a re­velação oportuna de eventuais defeitos do projeto ou de sua execução, e, se não o fizer, responderá civümente pela sua falta.

As obrigações do fiscal principiam com os trabalhos da constru­ção e terminam, ordinariamente, com o recebimento da obra pelo pro­prietário, subsistindo, porém, as suas responsabilidades pelos vícios ou defeitos inaparentes, na forma contratual ou legal em que se enquadrar civilmente a espécie do dano a reparar.

3.1.3 CONTRATO DE PROJETO E FISCALIZAÇÃO DE OBRA

Contrato de projeto e fiscalização de obra é o ajuste pelo qual o projetista-fiscal se encarrega de elaborar o projeto e de acompanhar a sua execução, atribuída a terceiro, mediante uma remuneração fixa ou percentual sobre o custo da construção, a ser paga pelo proprietário ou comitente.

O projetista-fiscal não administra nem empreita a construção: idea­liza a obra e assegura a sua realização material em conformidade com o projeto aprovado. Seus encargos são de ordem técnica e restritos à perfeição do projeto e à sua fíel execução. Para tanto, deve verificar o material que está sendo empregado pelo construtor e aferir os proces­sos de sua aplicação, visto que, como autor do projeto, responde por seus defeitos solidariamente com quem o executa, e como fiscal da construção reafirma a sua responsabilidade perante o proprietário que o contratou.

Tratando-se de um ajuste para duas atividades profissionais suces­sivas - elaboração do projeto e acompanhamento de sua execução as obrigações contratuais do projetista-fiscal se iniciam com a feitura do projeto e só terminam com a perfeita conclusão da obra, realizada por terceiro. Certamente, se os trabalhos da construção se interrompem por ordem ou culpa do proprietário, enseja-se a rescisão do ajuste pelo projetista-fiscal, que não poderá ficar indefinidamente sujeito à vontade da outra parte na condução dos serviços. Presume-se, em todo contrato

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270 DIREITO DE CONSTRUIR

de fiscalização de obra, que o andamento da construção terá o ritmo co­mum de tais trabalhos, sem se eternizar com paralisações anormais.

Como, neste caso, o fiscal é também o autor do projeto, nessa qua­lidade responde por cinco anos pela segurança e solidez da construção regressivamente com o construtor, na forma da lei civil (Código Civil de 2002, art. 618), se a infírmeza da obra decorre de erro de cálculo ou defeito de concepção, como está exposto no capítulo seguinte (cap. 8, item 2.3).

3.2 CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE CONSTRUÇÃO

Contrato de financiamento de construção é o ajuste pelo qual o financiador se compromete a fornecer o numerário necessário à execu­ção da obra e o financiado se obriga a aplicá-lo na construção e a resti­tuir a importância recebida, no prazo e condições estipuladas. E, em última análise, contrato de mútuo com destinação específica para cons­trução. O financiamento, quando destinado a construção em terreno próprio, rege-se exclusivamente pelas disposições civis do mútuo (Có­digo Civil de 2002, arts. 589 a 592), sem outras exigências.

3.3 CONTRATO DE TRABALHO PARA OBRA CERTA

A legislação trabalhista admite duas espécies de contrato de tra­balho, relativamente ao tempo de sua duração: contratos por prazo in­determinado e por prazo determinado (CLT, art. 443). A primeira mo­dalidade é usada nos empregos comuns e a segunda é geralmente ado­tada na indústria da construção civil, por corresponder ao caráter des­contínuo e nômade dessa atividade, razão pela qual merece a nossa atenção.

Enquanto no contrato por prazo indeterminado o ajuste é feito sem fixação de seu término, no contrato por prazo determinado a sua dura­ção é prevista ou por um tempo certo, ou até a conclusão de serviços especificados, ou até a superveniência de fatos esperados. E o que diz taxativamente a lei ao definir essa espécie de contrato: Considera-se como de prazo determinado o contrato de trabalho cuja vigência de­penda de termo prefixado ou da execução de serviços especificados ou ainda da realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada (art. 443, § lü, da CLT).

Na primeira hipótese o empregado é contratado por um tempo cer­to (p. ex., 10 meses); na segunda, é ajustado para realizar determinado

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CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO E CONTRATOS CONEXOS 2 7 1

serviço em uma obra certa (p. ex., executar os serviços de alvenaria em uma construção); na terceira, é contratado para prestar certo serviço enquanto não sobrevier determinado acontecimento (p. ex., prestar ser­viços de drenagem até que sobrevenham as chuvas). Todos estes con­tratos são considerados por prazo determinado e se sujeitam às mes­mas normas legais. Na realidade, só as duas últimas modalidades é que devem ser tidas como contrato de trabalho para obra certa, conforme enunciamos na epígrafe.

Anote-se, ainda, que o contrato por prazo determinado só será vá­lido se se tratar de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo ou de atividades empresariais de caráter tran­sitório, além do “contrato de experiência” (art. 443, § 2fl, da CLT).

O prazo de duração desse contrato não pode exceder de dois anos, prorrogáveis por mais dois anos (CLT, art. 445), sob pena de passar a ser considerado como por tempo indeterminado. Findo o prazo fixado, ou sobrevindo o acontecimento previsto, ou terminando a construção, o contrato se desfaz automaticamente e independentemente de aviso prévio e de pagamento de indenização, se o empregado contar menos de 12 meses de serviço. Tendo mais de 12 meses de trabalho, o empre­gador é obrigado a pagar-lhe a indenização comum (CLT, art. 478), com 30% de redução, conforme dispõe o art. 2e da Lei 2.959, de 17.11.1956. Esta mesma lei ainda impõe expressamente aos construto­res a obrigação de anotar a carteira profissional dos empregados con­tratados para obra certa, sob pena de incorrerem em multa e ficarem sujeitos à suspensão de suas atividades, até que cumpram o dever legal (arts. 1Q e 3Q). Exclui, portanto, a possibilidade de o proprietário ser o empregador dos que trabalham na construção.

Se, porém, o construtor rescindir o contrato, sem justa causa, an­tes do término previsto, será obrigado a pagar ao empregado, a título de indenização, a metade da remuneração a que teria direito até o final da obra (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 479). Se a rescisão se der por parte do empregado, nas mesmas condições, antes da conclu­são dos serviços a que se obrigou, deverá indenizar o construtor dos prejuízos que desse fato lhe resultarem (Consolidação das Leis do Tra­balho, art. 480), não podendo tal indenização exceder aquela a que te­ria direito o empregado em idênticas condições (§ 1Q do art. 480).

Podem as partes inserir, no contrato por obra certa, cláusula asse- curatória do direito recíproco de rescisão antes de expirado o termo ajustado, caso em que, exercida tal faculdade, a indenização será paga

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como se o contrato fosse por tempo indeterminado (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 481, combinado com o art. 478).

Convém observar que o contrato por tempo determinado, ou por obra certa, que for prorrogado mais de uma vez passará a vigorar por tempo indeterminado (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 451). Considerar-se-á, também, por tempo indeterminado todo contrato que suceder, dentro de seis meses, a outro por prazo determinado, salvo se a expiração deste dependeu da execução de serviços especializados ou da superveniência de certos acontecimentos previstos e esperados pe­los contratantes (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 452).

Cabe, aqui, distinguir a prorrogação do contrato a prazo certo da continuação do trabalho além do termo estabelecido. Ocorre a primei­ra hipótese quando as partes já convencionaram a prorrogação no iní­cio do contrato; ocorre a segunda quando o trabalho prossegue inde­pendentemente de prévio acordo. Naquela, o contrato continua por tem­po determinado, nas mesmas condições do anterior; nesta, prossegue por tempo indeterminado, com todas as conseqüências dessa espécie contratual (exigência de aviso prévio para a despedida, pagamento de verbas rescisórias, indenizações etc.).

O Tribunal Superior do Trabalho e as Cortes inferiores têm deci­dido que o contrato para a execução de uma obra é presuntivamente a prazo certo,36 mas, ao mesmo tempo, os julgados acentuam que a in­dústria da construção civil tanto admite o contrato por tempo determi­nado como por prazo indeterminado, tudo dependendo das circunstân­cias do ajuste, da natureza da empresa e da finalidade do serviço, a serem consideradas em cada caso concreto.37

Embora a lei trabalhista permita o ajuste verbal de empregados (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 443) e até mesmo a admissão tácita ao trabalho (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 442), é prefe­rível o contrato escrito, para que se arredem as incertezas das condições estabelecidas pelas partes e se fixe claramente a intenção dos contratantes.

3.4 CONTRA TO DE INCORPORA ÇÃO DE CONDOMÍNIO

Contrato de incorporação de condomínio é o ajuste pelo qual o incorporador se compromete a construir diretamente ou por terceiros

36. TST, DJU 17.9.1947, 8.6.1948 e 31.1.1949; TRT-l* Região, DJU 6.3.1948.

37. TRT-8a Região, Rev. Trab. de 1950, p.. 714.

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CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO E CONTRATOS CONEXOS 273

e, a final, transferir a propriedade horizontal de unidades autônomas de um mesmo edifício de dois ou mais pavimentos, assim como as par­tes ideais do terreno e das áreas de utilização comum, aos tomadores de apartamentos, mediante um preço fixo, ou ajustável ao custo da construção nas condições estabelecidas na convenção do condomínio/8

É contrato preliminar e pessoal, de natureza complexa, no qual se reúnem obrigações de dar e fazer, que operam seus efeitos em etapas sucessivas, até a conclusão do edifício e a transferência definitiva das unidades autônomas aos seus donos e do condomínio do terreno e das áreas de utilização comum aos condôminos. Este ajuste é feito no pe­ríodo que antecede a construção, valendo para os tomadores de apar­tamentos como compromisso preliminar de aquisição futura (com custeio da obra ou sem ele), e para o incorporador como promessa de construção (com financiamento ou sem ele) e de venda das unidades autônomas com o correspondente condomínio no terreno e nas áreas de utilização comum, segundo dispõe a Lei 4.591, de 16.12.1964, em seus arts. 28 e ss., com as modificações posteriores, especialmente as introduzidas pela Medida Provisória 2.221, de 4.9.2001.39

O incorporador é o elemento realizador do condomínio, donde lhe advém a designação, por analogia com o organizador das sociedades. Pode o incorporador ser o próprio dono do terreno, mas geralmente é o terceiro compromissário comprador ou simples titular de opção de compra e venda - que procura os interessados na aquisição de aparta­mentos; com eles combina o empreendimento, obtém os recursos fi­nanceiros necessários, contrata a construção e, a final, concretiza o ne­gócio simultaneamente com o proprietário do terreno, com os tomado­res de apartamentos, com o financiador da obra e com o construtor, num ajuste único, ou em sucessivos contratos complementares da in­corporação. Já se decidiu que o incorporador é simples corretor, seme­lhante ao de mercadorias e títulos,40 mas Pontes de Miranda se opõe a essa classificação, demonstrando que nem sempre funciona como sim­ples mediador, pois muitas vezes realiza a incorporação como tomador

38. Sobre condomínio em gerai, v. o cap. 1, item 3, e, sobre restrições espe­ciais de condomínio de apartamentos, v. o cap. 3, item 2.12. Sobre ações de con­domínio consulte-se o cap. 9, item 1.11.

39. “Para efeito desta Lei, considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autôno­mas” (art. 28, parágrafo único).

40. TJDF, RF 100/70.

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de apartamentos, e em outros casos como proprietário do terreno.41 Na verdade, a figura do incorporador apresenta-se multiforme, ora median­do o negócio, ora financiando o empreendimento, ora construindo o edifício, ora adquirindo apartamentos para revenda futura - mas, em todas essas modalidades, a sua constante é ser o elemento propulsor do condomínio.42

Quanto à construção, tanto pode o proprietário do terreno ou o in­corporador executá-la diretamente, desde que seja firm a construtora (individual ou coletiva), ou empreitá-la com terceiro, ou mesmo com os próprios tomadores de apartamentos, ou ainda realizá-la pelo sistema de administração. Se a construção for por empreitada, o preço será fixo e inalterável até a conclusão da obra, segundo a regra do art. 619 do Códi­go Civil de 2002, salvo a superveniência de fatos imprevisíveis e excep­cionais que ensejem a sua revisão; se for por administração, do próprio incorporador ou de terceiro, o custeio da obra corre por conta dos toma­dores de unidades autônomas, que suportam as oscilações de preço e de­mais riscos econômicos da construção.43 Nada impede, entretanto, que o incorporador ou terceiro financie a construção, recebendo, a final, dos condôminos, o preço do custo da obra com os acréscimos da administra­ção e juros convencionados. Esse o sistema em voga, conhecido por con­domínio pelo preço de custo, visto que o preço inicialmente estabelecido é de simples estimativa, sujeitando-se cada condômino a pagar, a final, o custo efetivo da construção. Se o custo exceder o estimado, os condô­minos completarão o acrescido; se for inferior à estimativa inicial, o incorporador devolverá o que recebeu em excesso, ou reduzirá o mon­tante ou o número das prestações, se se tratar de aquisição a prazo.

O contrato preliminar de incorporação assim como o de constru­ção do edifício e o regulamento do condomínio podem ser feitos, como já se disse, por escritura pública ou instrumento particular, por não se­rem atributivos de direito real, mas devem ser registrados, para que operem efeitos em relação a terceiros e a futuros condôminos que não tenham tomado parte na convenção institucional do condomínio.

O título constitutivo do condomínio, seja qual for a sua natureza e origem, deverá, necessariamente, ser transcrito no Registro de Imóveis

41. Tratado de Direito Predial, Ia ed., 11/81.42. O art. 29 da Lei 4.591, embora com péssima redação, conceitua a figura

do incorporador.43. A Lei 4.591, nos arts. 48 a 66, dispõe minuciosamente sobre a construção

do edifício e sobre os contratos de empreitada e administração.

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CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO E CONTRATOS CONEXOS 275

da circunscrição em que se situa o terreno, visto que é por ele que se opera a transferência da propriedade das unidades autônomas e das par­tes ideais do condomínio (Código Civil de 2002, arts. 1.245 e 1.246, combinados com o art. I a da Lei 4.591/1964).

Feita a construção, cada unidade autônoma deverá ser assinalada por uma designação numérica e averbada no Registro de Imóveis, para os efeitos de identidade e discriminação (Lei 4.591/1964, art. 44).

Neste ponto convém advertir que o contrato de incorporação de condomínio não se confunde com o contrato de construção do edifí­cio. Aquele é a convenção que se faz entre o incorporador e os interes­sados na formação do condomínio para a realização do empreendimen­to; este é o ajuste que se realiza entre o incorporador e o construtor para o levantamento do edifício.44

Enquanto o contrato de incorporação pode ser feito entre quais­quer pessoas ou sociedades, o contrato de construção só pode ser fir­mado com empresa construtora, assim entendido o engenheiro ou o arquiteto registrado no CREA como firma individual de construção, ou sociedade construtora igualmente registrada no CREA como firma coletiva de construção, de acordo com as exigências da Lei 5.194/1966.

Nulo de pleno direito é o contrato de construção firmado com pes­soa inabilitada para trabalhos de Engenharia e Arquitetura, ou com so­ciedade não registrada no CREA como firma construtora, visto que todo trabalho de Engenharia ou Arquitetura é privativo destes profissio­nais ou de firmas coletivas registradas para essas atividades e que te­nham como responsável técnico um profissional legalmente habilitado (Lei 5.194/1966, art. 15).

Nada impede, todavia, que no mesmo instrumento em que se con­vencionar a incorporação se faça também o contrato de construção do edifício, com profissional habilitado ou sociedade construtora registra­da no CREA. A unidade do instrumento não confunde os dois contra­tos, que subsistirão autônomos para todos os fins de direito, inclusive para a incidência tributária.

3.5 CONTRATO DE GERENCIAMENTO

Contrato de gerenciamento é aquele em que o proprietário come­te ao gerenciador a condução de um empreendimento de Engenharia,

44. A ABNT expediu a NBR-12.721/1992, sobre os aspectos técnicos da construção de edifício de apartamentos, mas o fez com tais minúcias e prolixidade, que essa norma nem sempre é seguida pelos construtores.

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276 DIREITO DE CONSTRUIR

reservando para si as decisões sobre a execução da construção e os en­cargos financeiros da obra. Nessa moderna modalidade contratual, to­das as atividades necessárias à implantação do empreendimento são transferidas ao gerenciador (empresa de Engenharia ou profissional ha­bilitado) pelo dono da obra, retendo apenas o poder de decisão sobre as propostas e trabalhos apresentados, e, uma vez aprovados, passa a suportar o seu custo, nas condições ajustadas com seus executores.

O gerenciamento é, pois, atividade técnica de mediação entre o dono da obra e seus executores. No gerenciamento, o gerenciador não repre­senta o dono da obra, que o contratou, nem age em nome dele, mas atua para ele, elaborando projetos e sugerindo as providências para sua cor­reta e econômica execução. Não representando o dono da obra, o ge­renciador não dispõe de poderes para celebrar contratos com terceiros, nem para desfazer ajustes celebrados entre estes e o proprietário. O ge­renciador tanto pode ser o autor do projeto como qualquer outro pro­fissional ou empresa de Engenharia com capacidade técnica para de­sempenhar as suas funções na condução da obra, sugerindo e plane­jando o que for conveniente do ponto de vista técnico, econômico e administrativo. Tal contrato só se justifica nas grandes construções, que exigem complexas e diversificadas providências para sua correta execução.45

45. Para maiores esclarecimentos sobre este contrato, v., do Autor, as obras Direito Administrativo Brasileiro, 30a ed., atualizada por Eurico de Andrade Aze­vedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emanuel Burle Filho, São Paulo, Malheiros Editores, 2005, e Licitação e Contrato Administrativo, 13a ed., São Paulo, Malhei- ros Editores, 2002, cap. 5.

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Capítulo 8

RESPONSABILIDADES DECORRENTESDA CONSTRUÇÃO

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS: 1.1 Fundamentos da responsabilidade; 1.2 Fontes de responsabilidade; 1.3 Causas de isenção de responsabilida­de; 1.4 Responsabilidade civil em geral; 1.5 Responsabilidade contratual do construtor. 1.6 A responsabilidade civil no Código de Defesa do Con­sumidor; 2. RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRU­ÇÃO: 2.1 Responsabilidade pela perfeição da obra no Código Civil; 2.2 Responsabilidade pela perfeição da obra no Código de Defesa do Consu­midor; 2.3 Responsabilidade pela solidez e segurança da obra no Código Civil; 2.4 Responsabilidade pela solidez e segurança da obra no Código de Defesa do Consumidor; 2.5 Informações do construtor e obrigações do consumidor; 2.6 Responsabilidade por danos a vizinhos e terceiros: 2.6.1 Danos a vizinhos; 2.6.2 Danos a terceiros; 2.6.3 Responsabilidade da Ad­ministração por danos a vizinhos e terceiros; 2.7 Responsabilidade ético- proftssional; 2.8 Responsabilidades trabalhista e previdenciar ia; 2.9 Res­ponsabilidade por fornecimentos; 2.10 Responsabilidade por tributos; 2.11 Responsabilidade administrativa; 2.12 Responsabilidade penal por desabamento: 2.I2.I Crime de desabamento; 2.12.2 Contravenção de de­sabamento; 2.12.3 Contravenção de perigo de desabamento; 2.13 Respon­sabilidade por construção clandestina.

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

Da construção, como realização material e intencional do homem,1 podem resultar responsabilidades diversas do construtor para com o

1. Sobre o conceito de construção, v. o cap. 10, itens 1 e 2. Sobre responsabili­dade decorrente de construção, v. Marco Aurélio S. Viana, Contrato de Construção e Responsabilidade Civil, São Paulo, Saraiva, 1980; Luiz Rodrigues Wambier, “Res­ponsabilidade civil do construtor”, RT 659/14; Sérgio Cavalieri Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 6a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2005; Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil, vol. III - “Res­ponsabilidade Civil”, São Paulo, Saraiva, 2003; Tereza Ancona Lopes, Comentários ao Código Civil, vol. 7 - “Da Empreitada”, São Paulo, Saraiva, 2003; Cláudia Lima Marques, Antônio Herman Benjamin e Bruno Miragem, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Ia ed., 2a tir., São Paulo, Ed. RT, 2004 (p. 287).

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proprietário da obra, e deste para com vizinhos e terceiros que venham a ser prejudicados pelo só fato da construção ou por ato dos que a executam. Tais responsabilidades, segundo a culpabilidade do agente, a extensão do dano, a natureza da lesão e a situação da vítima, repar- tem-se em várias espécies e modalidades, que veremos adiante.

Essas responsabilidades são independentes e inconfundíveis entre si, e geralmente surgem de fatos ou atos distintos, mas podem resultar e coexistir como conseqüências de um mesmo fato ou ato decorrente da construção, desde que lesivo de bens ou direitos alheios. Assim, se uma obra vier a desabar, por imperícia do construtor, causando danos materiais a terceiros e lesões pessoais em operários, dará ensejo, si­multaneamente, às quatro espécies de responsabilidades, ou seja, à re­paração do dano patrimonial (responsabilidade civil), à punição crimi­nal (responsabilidade penal), à sanção profissional (responsabilidade administrativa) e à indenização do acidente dos operários (responsabi­lidade trabalhista). O exemplo põe ao vivo a importância do conheci­mento das responsabilidades decorrentes da construção, e que, em cer­tos casos, podem abranger e solidarizar, com o construtor, o autor do projeto, o fiscal da obra e o proprietário que a encomendou, como se verá no decorrer deste capítulo.

Antes, porém, vejamos os fundamentos da responsabilidade e te­çamos breves considerações sobre as fontes de responsabilidade e so­bre as causas de isenção de responsabilidade, para, ao depois, anali­sarmos a responsabilidade civil como obrigação de indenizar, e no item seguinte apreciarmos destacadamente cada uma das responsabili­dades decorrentes da construção.

1.1 FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE

O fundamento normal da responsabilidade é a culpa ou o dolo, mas, como judiciosamente observou o Prof. Alvino Lima, “o legisla­dor brasileiro, consagrando a teoria da culpa, nem por isso deixou de abrir exceção ao princípio, admitindo casos de responsabilidade sem culpa, muito embora não tivesse acompanhado, com mais amplitude, a orientação moderna de outras legislações, como seria de desejar”.2

Age com culpa todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, viola direito ou causa dano a outrem, por negligência, imprudência ou

2. Da Culpa ao Risco, São Paulo, 1938, p. 215.

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imperícia de conduta, embora não desejando o resultado lesivo (Códi­go Civil de 1916, art. 159; Código Penal, art. 18, II). Daí podermos repetir, com Planiol, que a culpa é a violação de um dever preexisten­te: dever de atenção, dever de cautela, dever de habilidade, dever de prudência em todos os atos da conduta humana.

Age com dolo todo aquele que almeja o resultado lesivo ou assu­me o risco de produzi-lo (Código Penal, art. 18 ,1). A diferença entre a culpa e o dolo é meramente subjetiva. O dolo exterioriza-se na lesão desejada pelo agente; a culpa revela-se na lesão não desejada, mas ocorrida por imprudência, imperícia ou negligência na conduta de quem a causa. Em ambos os casos sempre haverá ilícito - ilícito dolo­so ou ilícito culposo - ensejador de responsabilidade.

A responsabilidade sem culpa surge nos casos expressos em lei, em que se exige apenas o nexo causai entre o ato ou a omissão e o dano. E a denominada responsabilidade objetiva, resultante da só con­duta lesiva, independentemente da voluntariedade do ato ou do desejo do agente, como ocorre nos casos de dano de obra vizinha ou de inse­gurança da construção no qüinqüênio de sua conclusão. Em tais ocor­rências, basta a constatação do fato danoso, sem participação da víti­ma, para ensejar a reparação civil.

O Código Civil de 2002 manteve, em princípio, o conceito tradi­cional de culpa. E quem age com culpa, causando dano a terceiro, pra­tica ato ilícito, obrigando-se a reparar o dano, inclusive o dano moral. Ao mesmo tempo, equipara ao ato ilícito o abuso de direito - assim considerado o exercício anormal de um direito. Mas vai mais longe, ao dispor que haverá também obrigação de reparar o dano, independente­mente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natu­reza, risco para os direitos de outrem (arts. 186, 187 e 927 e seu pará­grafo único).

Como se vê, o Código ampliou consideravelmente a responsabili­dade civil pelos danos causados a terceiros. Em primeiro lugar quanto ao objeto - ou seja, não só o dano material deve ser reparado, mas tam­bém o dano moral. Em seguida, considera ato ilícito o abuso de direi­to. E, ao depois, determina a reparação, independentemente de culpa de seu autor, dos danos causados por atividade de risco ou perigosa. Além disso, prevê que os empresários individuais e as empresas res­pondem, independentemente de culpa, pelos danos causados pelos produtos postos em circulação (art. 931). Todos esses preceitos vão

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influenciar sensivelmente a construção civil, no que tange às conse­qüências dela decorrentes.

Convém, aqui, esclarecer desde togo que o engenheiro ou arquite­to, quando exerce atividade construtiva, responde objetivamente pelos vícios e defeitos que a obra apresentar durante o prazo de garantia de cinco anos (art. 618). Ele está atuando como empresário, quer tenha efetuado um contrato de empreitada ou de administração. Considera- se empresário, de acordo com o art. 966 do Código Civil, “quem exer­ce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. Por isso mesmo, deverá efetuar sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respecti­va sede onde exerce sua atividade (art. 967). Esta atividade, em geral, é exercida através de uma firma, individual ou societária, e neste caso é a pessoa jurídica a responsável pela reparação dos danos, indepen­dentemente da apuração de culpa. Quando o engenheiro ou arquiteto atua como profissional liberal sua responsabilidade é subjetiva, depen­dendo de verificação da culpa, como dispõe o Código de Defesa do Consumidor (art. 14, § 4Q).

1.2 FONTES DE RESPONSABILIDADE

As responsabilidades podem provir de três fontes, a saber: a lei (responsabilidade legal), o contrato (responsabilidade contratual) e o ato ilícito (responsabilidade extracontratual).

Responsabilidade legal é toda aquela que a lei impõe para deter­minada conduta, independentemente de qualquer outro vínculo. Exem­plo típico dessa responsabilidade é a que incide sobre o construtor pela solidez da obra durante cinco anos de sua conclusão, nos termos do art. 618 do Código Civil - prazo, esse, que a jurisprudência considera como de garantia. Para surgir essa responsabilidade basta a ocorrência do fato ou a prática do ato nas condições descritas na norma legal. Tal responsabilidade é de ordem pública e por isso mesmo irrenunciável e intransacionável pelas partes. Como observamos acima, o Código Ci­vil de 2002 ampliou os casos em que há responsabilidade objetiva por força de lei, como o exercício de atividade de risco (art. 927, parágrafo único), os danos causados por produtos (art. 931) e outros mais.

Responsabilidade contratual é aquela que surge do ajuste das par­tes, nos limites em que for convencionada para o cumprimento da obri­gação de cada contratante. É normalmente estabelecida para garantia da execução do contrato, tomando-se exigível nos termos ajustados,

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diante do descumprimento do estipulado. Como responsabilidade ne­gociai, pode ser renunciada e transacionada pelos contratantes a qual­quer tempo e em quaisquer circunstâncias. Não obstante, após a edição do Código de Defesa do Consumidor, a convenção estabelecida pelas partes não pode contrariar suas normas, por se tratar de lei de ordem pública e de interesse social, com fundamento direto na Constituição Federal (arts. 5Q, XXXII, e 170, V). Daí por que o Código de Defesa do Consumidor contém longa relação de cláusulas consideradas abusi­vas, nulas de pleno direito (art. 51).

Responsabilidade extracontratual é toda aquela que surge de ato ilícito, isto é, contrário ao Direito. Tal responsabilidade não é regulada por lei, nem depende de estipulação contratual, porque tanto a lei quan­to o contrato só regem atos lícitos. O que a lei determina é a obrigação de reparar o dano causado a outrem por ato ilícito, a ele se equiparan- do agora o abuso de direito (Código Civil, arts. 186 e 187; Código Pe­nal, art. 9 1 ,1), indicando a forma de reparação civil (Código Civil, arts. 944 e ss.). Neste tipo de responsabilidade, o princípio dominante é o de que todo ato ilícito e lesivo a terceiro gera obrigação de indenizar, independentemente das demais sanções cabíveis.

L 3 CA USAS DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Embora a prática de atos que normalmente seriam considerados ilícítos, e sujeitariam o agente a alguma sanção ou indenização, outras causas podem interferir que retiram a ilicitude da conduta e isentam o autor de qualquer responsabilidade. Assim, declara a lei que não cons­tituem atos ilícitos e não geram responsabilidade alguma os praticados em legitima defesa, em estado de necessidade, ou no exercício regular de um direito reconhecido, como também a ocorrência de caso fortui­to ou de força maior libera o devedor do cumprimento de suas obriga­ções, como veremos a seguir.

Legitima defesa é a situação de quem, usando moderadamente dos meios necessários, causa lesão ao contendor, no repelir injusta agres­são, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (Código Civil, art. 188, I; Código Penal, art. 23, II). Assim, aquele que fere um invasor, armado, de sua casa não comete crime, nem se sujeita a qualquer res­ponsabilidade, porque agiu em legítima defesa; mas, se numa simples discussão atira e lesa o adversário inerme, responde pelo crime cometido e pela indenização cabível.

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Estado de necessidade é a situação de perigo que obriga alguém a sacrificar bens alheios para evitar ou livrar-se de um mal maior. Esta situação, quando caracterizada, retira do ato lesivo o caráter ilícito (Có­digo Civil, art. 188, II; Código Penal, arts. 2 3 ,1, e 24), mas o causador do dano só se libera de indenização se não concorreu com culpa para o evento perigoso (Código Civil, art. 929).

Exercício regular de um direito reconhecido é a prática normal de faculdade ou atividade concedida por lei (Código Civil, art. 188,1, par­te final; Código Penal, art. 23, III, parte final). Em tal hipótese, a legi­timidade do ato exonera o agente de responsabilidade, ainda que cause dano a terceiros, salvo nos casos de responsabilidade objetiva, como ocorre nos danos de construção a prédio vizinho.

Caso fortuito é o fato da Natureza que, por sua imprevisibilidade e inevitabilidade, gera para uma das partes impossibilidade insuperá­vel para o cumprimento de suas obrigações. A tromba d’água que des- trói a obra, o vendaval que arrebata a construção podem ser considera­dos casos fortuitos, se a região não é sujeita a esses fenômenos.

Força maior é o ato humano irresistível que, por sua imprevisibi­lidade e inevitabilidade, cria para outrem impossibilidade irremovível para o cumprimento de obrigações assumidas. Assim, uma greve que paralisa os transportes ou um ato governamental que proíba a importa­ção, fazendo desaparecer do mercado materiais necessários e insubsti­tuíveis para uma construção, erigem-se em força maior impediente do cumprimento do contrato, que deles depende fundamentalmente.

E o que dispõe genericamente o Código Civil no art. 393: “O de­vedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou for­ça maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. E o parágrafo único deste artigo esclarece que o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fa to necessário, cujos efeitos não era possível evi­tar, ou impedir. O caso fortuito não se confunde com a força maior, mas ambos produzem os mesmos efeitos liberatórios da responsabili­dade contratual.3

O que caracteriza o caso fortuito e & força maior é a imprevisibili­dade (não a imprevisão) do evento, aliada à inevitabilidade de seus efeitos. Fato ou ato imprevisível, mas de efeitos evitáveis, quando sur­ja, não constitui caso fortuito. Situação inevitável, mas de efeitos con-

3. Amoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, Rio, 1943, pp. 77 e ss.

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tomáveis, ainda que onerosos, também não é motivo de força maior, liberatório de obrigações.

A fortuidade e a força maior só se verificam e liberam o devedor da obrigação quando não houver imprevidência de sua parte, nem con­corra ele com culpa para que seja colhido pelos efeitos danosos do ato ou fato superveniente. O contratante que já esteja em mora quando so­brevêm o caso fortuito ou de força maior não se exime de responsabili­dade para com a outra parte, salvo se provar que o dano ocorreria mes­mo que tivesse cumprido a sua obrigação. Se, porém, o contrato está sendo cumprido regularmente e a parte que o executa é surpreendida por um fato ou ato impeditivo, enquadrável no conceito legal de caso fortuito ou de força maior, o ajuste torna-se rescindível, sem qualquer indenização, ainda que acarrete prejuízo para o outro contratante. Mas a parte que invoca a impossibilidade de execução do contrato fica obri­gada a provar essa circunstância.

1.4 RESPONSABILIDADE CIVIL EM GERAL

Antes do exame das responsabilidades específicas da construção, convém tecer algumas considerações sobre a responsabilidade civil em geral, dando-lhe o conceito e as características de sua atuação.

Responsabilidade civil é a que impõe a obrigação de reparar o dano patrimonial e se exaure com a indenização. Como obrigação me­ramente patrimonial, a responsabilidade civil transmite-se aos suces­sores do autor da lesão e só se extingue pela composição do dano (Có­digo Civil, arts. 943 e 389). E se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação (art. 942).

A reparação civil deve ser a mais ampla possível, compreendendo não só o que o lesado efetivamente perdeu - dano emergente - como, também, o que razoavelmente deixou de ganhar - lucros cessantes (Có­digo Civil, art. 402). Embora a responsabilidade civil seja independen­te da criminal (Código Civil, art. 935), de toda condenação penal re­sulta a obrigação de reparar o dano da vítima (Código Penal, art. 91, I; Código de Processo Penal, art. 63). Isto porque o ilícito civil é um minus em relação ao ilícito criminal: sempre que houver responsabilidade pe­nal, haverá responsabilidade civil, mas pode surgir esta sem aquela. No caso particular de construções lesivas a vizinhos surge a responsa­bilidade civil independentemente da ilicitude do ato, por se tratar de uma exceção de nosso Direito ao princípio da culpa, exceção expres­

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samente consignada no art. 1.299 do Código Civil, combinado com o parágrafo único do art. 927.

Embora o Código Civil de 2002 tenha mantido o principio de que a reparação civil deve ser a mais ampla possível, dispondo expressa­mente que a indenização mede-se pela extensão do dano (art. 944), es­tabeleceu que, “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitati vãmente, a indenização” (art. 944, parágrafo único). Ora, na responsabilidade objetiva não há falar em culpa. Não se cogita de indagar de imprudência, negligência ou imperícia, e nem se houve abuso de direito por parte do autor do dano. Sua responsabilidade decorre da lei. Assim, quer-nos parecer que esse preceito do Código Civil só se aplica nos casos de responsabilida­de com culpa. E tanto isto é verdade que o artigo seguinte trata da com­pensação de culpas quando a vítima tenha concorrido para o evento danoso (art. 945).4

A responsabilidade civil decorrente da construção tem ensejado fundas divergências na doutrina e na jurisprudência. O desentendimen­to, a nosso ver, provém da indevida unificação que se tem dado ao as­sunto, quando, na realidade, ele se diversifica em vários aspectos, que estão a exigir apreciação distinta e aplicação de normas jurídicas dife­rentes.

No que tange à responsabilidade do construtor - pessoa física ou jurídica - , é necessário que se levem em conta não só as normas civis que a disciplinam, como, também, as disposições éticas e administrati­vas regulamentadoras do exercício da Engenharia e da Arquitetura. Ja­mais se poderá desconhecer, como desconhecia o Código Civil anterior, os encargos e direitos dos técnicos da construção, encargos e direitos, esses, que interferem e agravam a responsabilidade civil comum, com o impor obrigações e conceder prerrogativas específicas aos profissio­nais legalmente habilitados. Em 1916, ao tempo da promulgação do antigo Código Civil, as profissões de engenheiro e de arquiteto não es- tavam regulamentadas no Brasil, permitindo-se tanto aos diplomados como aos leigos inabilitados o direito de projetar e executar construções, numa equiparação técnica absurda, mas existente na prática e admitida na lei. E tanto era assim que o Código Civil de 1916 confundiu e igua­lou o exercício da profissão liberal do arquiteto com a atividade mate­rial do construtor leigo, reunindo-os num só dispositivo (art. 1.246) e

4. Cf. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de D i­reito Civil, vol. III - “Responsabilidade Civil”, pp. 159 e ss.

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permitindo que ambos firmassem contrato de empreitada para constru­ção, quando, a partir da Lei 5.195/1966, era vedado a leigos inabilita­dos celebrar ajustes referentes a qualquer ramo da Engenharia ou da Arquitetura (Lei 5.194/1966, art. 15).

Outro despautério do Código anterior, superado pela legislação regulamentadora do exercício da Engenharia e da Arquitetura, estava no art. 1.245, quando consignava que o construtor poderia eximir-se de responsabilidade pela solidez e segurança da obra desde que preve­nisse o proprietário sobre a falta de firmeza do solo. Tais exemplos demonstram o defasamento de nosso Código de 1916 e seu atraso quanto à responsabilidade dos profissionais da Engenharia e da Arqui­tetura. Daí a necessidade de confronto da lei civil com as normas ad­ministrativas reguladoras das atividades da construção.

O exame isolado do Código Civil, como muitas vezes era feito em tema de construção, levaria, fatalmente, o intérprete a equívocos, visto que muitas de suas disposições já estavam derrogadas por leis posterio­res, que a elas não se referiam explicitamente, mas eram com elas in­compatíveis. E é da própria Lei de Introdução ao Código Civil que a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quan­do seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a maté­ria de que tratava a lei anterior. Como o antigo Código Civil era ante­rior, e em muitos aspectos incompatível com a legislação posterior re­guladora da atividade dos engenheiros e arquitetos, como profissionais e como empresas construtoras, é óbvio que as disposições colidentes estavam revogadas pelas normas federais subseqüentes, notadamente no campo da responsabilidade civil.

Isto já era dito desde as primeiras edições deste livro, na década de 1960. O que dizer do Código Civil promulgado em 2002, depois de setenta anos de evolução da indústria da construção civil - talvez a fase de maior progresso das técnicas construtivas? Haja vista as megacida- des, que proliferam no mundo, com edifícios de mais de cem andares. A Região Metropolitana de São Paulo possui hoje cerca de vinte mi­lhões de habitantes, com milhares de prédios sendo construídos anual­mente. E o atual Código Civil simplesmente ignorou o contrato de construção como figura autônoma, dele cuidando apenas como uma espécie de empreitada. Em matéria de responsabilidade pelos danos decorrentes da construção, não resolveu as dúvidas existentes e provo­cou outras. Também não procurou harmonizar seus preceitos com os do Código de Defesa do Consumidor, em vigor desde 1991, que inclui a construção entre as atividades sujeitas às suas regras (art. 3fl). Por

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outro lado, definindo a propriedade e o direito de construir com as mes­mas palavras do Código de 1916 (arts. 1.228 e 1.299) não se pôs em consonância com os preceitos da Constituição Federal (arts. 170, III, e 182, § 2Ü), e nem com a evolução do Direito Urbanístico, que culmi­nou com a edição do Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10.7.2001). São temas a merecer revisão a curto prazo.

1.5 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL DO CONSTRUTOR

A responsabilidade específica do construtor pela execução da obra surge com a celebração do contrato de construção e só termina com o fiel cumprimento do ajuste e entrega da obra perfeita, sólida e segura. Enquanto isto não ocorrer, subsistem as três responsabilidades decor­rentes da construção: a legal, a extracontratual e a contratual, sendo esta última a que iremos apreciar neste tópico.

Pela infringência do contrato de construção responde o constru­tor, menos como profissional do que como simples contratante inadim­plente, uma vez que o fundamento dessa responsabilidade civil não é a falta técnica, mas sim a falta contratual, isto é, a inexecução culposa das obrigações assumidas. Da falta técnica, por imperícia, imprudên­cia ou negligência na realização dos trabalhos, podem advir outras res­ponsabilidades, como veremos no item seguinte.

Da responsabilidade contratual o construtor só se libera cumprin­do fielmente o contrato ou demonstrando que a sua inexecução, total ou parcial, deveu-se a caso fortuito ou força maior. Fora dessas hipóte­ses, sujeitar-se-á à indenização devida.

A indenização por inexecução parcial ou total de contrato deve cobrir os prejuízos ocasionados à parte inocente. Não cumprindo as obrigações assumidas, ou deixando de cumpri-las pelo modo e no tem­po devidos, responde o construtor por perdas e danos, mais juros, atua­lização monetária e honorários de advogado (Código Civil, art. 389). Estas perdas e danos abrangem, além do que o proprietário efetivamen­te perdeu, o que, razoavelmente, deixou de lucrar (Código Civil, art. 402). Computam-se, pois, para efeitos de indenização, o prejuízo efeti­vamente suportado pela parte inocente (dano emergente) e o ganho que auferiria se a obra viesse a ser concluída nos termos do contrato (lucro cessante), tais como a valorização do prédio, o resultado do negócio que nele seria explorado, os alugueres que renderia, e tudo mais que a construção pudesse produzir para o seu dono. Incluem-se, ainda, na in­denização de perdas e danos, a correção monetária, os juros, as custas

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judiciais, os salários dos peritos e os honorários do advogado que de­mandou os prejuízos (Código de Processo Civil, art. 20).

A fixação da indenização devida pela parte que infringir o contra­to, se não for liquidada por acordo, será estabelecida judicialmente, por meio de cálculos e perícias, tendentes a apurar, quantitativamente, as perdas e danos decorrentes da inexecução contratual. Para tanto, serão previamente delimitados os prejuízos ressarcíveis, para, em ato subse­qüente, se fixar o quantum da indenização, nela incluídos todos os da­nos a que aludimos acima. Nesta ação o juiz nomeará um perito e cada parte poderá indicar o seu assistente e formular os quesitos pertinentes.

Além da indenização, sempre apurável posteriormente à infração, as partes poderão estabelecer multas cobráveis isolada ou cumulativa­mente com os danos que advierem de eventual infração do contrato.

A multa contratual, cláusula penal ou pena convencional, como é indiferentemente denominada, costuma ser estabelecida pelas partes como elemento confirmatório e compulsório das obrigações avença- das. Havendo estipulação de multa, por ela responde sempre a parte que descumprir culposamente o combinado.

A multa contratual pode ser de duas espécies: moratória e compen­satória. Multa moratória é a que se estipula para os casos de simples retardamento na execução do contrato, ou de cumprimento inexato de alguma prestação prometida; multa compensatória é a que as partes estabelecem como prefíxação de prejuízos genericamente presumidos para os casos de inexecução total ou parcial do contrato. A primeira é cumulável com o pedido de perdas e danos advindos da mora ou da infidelidade entre o prometido e o executado pela parte faltosa; a se­gunda não o é, por já representar uma fixação antecipada dos eventuais prejuízos que possam resultar da inexecução total ou parcial do con­trato. Paga a multa compensatória, entende-se, legalmente, que a par­te está ressarcida de todos os prejuízos. Daí a necessidade de se con­ceituar, com precisão, a espécie de multa que os contratantes estabele­ceram, dado que cada uma delas tem função própria e conseqüências diversas.

O Código Civil, ao dispor sobre a multa (arts. 409 a 426), aludiu às funções e particularidades de cada espécie, m as não as diferençou conceitualmente, relegando essa missão à doutrina e à jurisprudência. E, na prática, os juristas e os tribunais têm entendido, uniformemente, que o escopo da multa, como pacto acessório do contrato principal, é reforçar o cumprimento das obrigações prometidas, com um agrava­

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mento patrimonial para a parte faltosa.5 Daí se infere que o cumprimento da cláusula penal não libera o devedor da execução da obrigação prin­cipal; ao revés, fica ele obrigado a pagar a multa em que incidiu e a cumprir a obrigação prometida.6

Convém, ainda, assinalar que a multa pode ser fixada livremente pelas partes até o limite do valor do contrato, mas, quando as obriga­ções forem cumpridas em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, é facultado ao juiz reduzi-la eqüitativamen- te, consoante autoriza o art. 413 do Código Civil. Este dispositivo é de ordem pública (conforme decidiu o Autor com base no Código de 1916, com plena confirmação do Tribunal de Justiça de São Paulo7); assim sendo, não podem os contratantes convencionar o pagamento da multa na totalidade para o caso de descumprimento parcial das obriga­ções, e, se o fizerem, tal cláusula será nula na parte da irredutibilidade da pena convencionada.

1.6 A RESPONSABILIDADE CIVILNO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) foi promul­gado com o objetivo de equilibrar as relações negociais de consumo

5. Múcio Continentino, D a Cláusula Penal no D ireito Brasileiro, 1928, pp. 26 e ss.; Lacerda de Almeida, Obrigações, Ia ed., pp. 213 e ss.; M. I. Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, Ia ed., p. 203.

6. Função diversa da multa contratual, cláusula penal ou pena convencional exerce a cláusula penitencial, cláusula de arrependimento, sinal ou arras, prevista nos arts. 417 a 420 do Código Civil e comumente utilizada nos compromissos de compra e venda retratáveis. Enquanto a cláusula pen a l reforça o cumprimento das obrigações assumidas, a cláusula penitencial o enfraquece, por facultar o desfazi- mento unilateral do contrato, desde que a parte arrependida devolva em dobro as quantias recebidas ou perca as importâncias pagas, conforme a hipótese ocorrente. A multa confirma o contrato e toma obrigatória a sua execução; a cláusula peniten­cial toma certa a existência do contrato, mas possibilita a sua inexecução, por arre­pendimento de qualquer dos contratantes, desde que satisfaça a pena estabelecida. São, pois, institutos distintos e inconfundíveis, com funções diversas e até mesmo opostas. Enquanto a multa é de grande utilidade nos contratos de construção, a cláusula penitencial é incompatível com a natureza e finalidade destes ajustes, ser­vindo a outras estipulações. O Código Civil de 2002 admite que a parte inocente possa pedir indenização suplementar, se provar maior prejuízo, valendo as arras como taxa mínima; ou solicitar a execução do contrato, com as perdas e danos, valendo as arras como mínimo da indenização (art. 419).

7. RT 178/796; STJ, R T 6 85/193 e 679/202.

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entre o fornecedor e o consumidor, reconhecidamente a parte mais fra­ca nessa relação. A Constituição Federal já havia considerado a prote­ção do consumidor como direito do cidadão e dever do Estado (art. 5Q, XXXII), bem como um dos princípios fundamentais da ordem econô­mica e social (art. 170, V).

As normas do Código do Consumidor são de ordem pública e apli­cam-se a qualquer ramo do Direito onde haja relação de consumo. Tem razão Sérgio Cavalieri ao dizer que “o Código do Consumidor criou uma sobre-estrutura jurídica multidisciplinar, normas de sobredireito aplicáveis em todos os ramos do Direito - Público ou Privado, Material ou Processual - onde ocorrerem relações de consumo”.8 Assim, não há dúvida de que o Código de Defesa do Consumidor incide sobre as ati­vidades da construção, interagindo com as normas do Código Civil - o que nos leva a examinar em conjunto os preceitos civilistas com os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, no que tange às res­ponsabilidades decorrentes da construção.

A construção de obra particular constitui, em geral, uma relação de consumo, considerada esta a que possui, numa ponta, um fornece­dor (o construtor) e, na outra, um consumidor (o dono da obra). Para o Código de Defesa do Consumidor, consumidor é a pessoa física ou jurí­dica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (art. 2a). E fornecedor é toda pessoa física ou jurídica que desenvolve atividades de produção, montagem, criação, construção, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (art. 3Ü). Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, mate­rial ou imaterial (art. 3Q, § 1Q). E serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista (§ 2Q).

Destinatário fina l é a idéia-chave para identificar uma relação de consumo. Se a obra de engenharia foi executada para uma pessoa físi­ca ou jurídica que vai utilizá-la como destinatária final, estamos diante de uma relação de consumo - e, neste caso, as normas do Código do Consumidor deverão ser aplicadas prioritariamente e as normas do Có­digo Civil subsidiariamente.

Embora o Código Civil não faça distinção entre vício e defeito, o Código de Defesa do Consumidor a faz. O vício afeta a perfeição da

8. Programa de Responsabilidade Civil, 6a ed., p. 381 - obra primorosa de Sérgio Cavalieri Filho, em que o autor examina, com proficiência, clareza e estilo, os vários aspectos da responsabilidade civil do construtor e incorporador e as inter­faces entre as normas do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor.

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obra, diminuindo seu valor. O defeito constitui um vício mais grave, que põe em risco a segurança do consumidor, de seus bens ou de ter­ceiros. Esclarece Sérgio Cavalieri que, “enquanto na responsabilidade pelo defeito da obra, por sua gravidade, visa-se a proteger a integrida­de pessoal do consumidor e dos seus bens, na responsabilidade pelo vício protege-se a equivalência entre a prestação e a contraprestação”.9

Com relação aos defeitos o Código do Consumidor afastou-se da teoria da culpa, para acolher inteiramente a teoria do risco. Risco do empreendimento, que é a obra concluída. Na construção por empreita­da (de lavor e materiais) há um amálgama de fornecimento de materiais e serviços; na construção por administração só há a prestação de servi­ços. Qualquer seja o tipo de contrato, porém, responderá o construtor pelos defeitos que a obra apresentar, causando danos ao consumidor - a este equiparando-se, neste casos, todas as vítimas do evento (Código de Defesa do Consumidor, arts. 12 a 17).

Quanto aos vícios construtivos, também responde o construtor (por empreitada ou por administração) pelos danos que causar ao consumi­dor (arts. 18 a 25). Neste caso, porém, o Código do Consumidor não repetiu a locução “independentemente da existência de culpa”, utiliza­da nos arts. 12 e 14 para os defeitos. Mas isto não transmuda sua res­ponsabilidade em subjetiva, dependente de apuração de culpa. Há um dever legal do fornecedor de que o serviço ou produto oferecido ao mercado corresponda ao que dele se espera - dever de qualidade-ade- quação, no dizer de Cláudia Lima Marques.10 Basta a comprovação da existência do vício para gerar a responsabilidade do construtor - pelo quê se conclui ser esta de caráter legal.

A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais ficou condi­cionada à apuração de sua culpa (art. 14, § 4Q). Assim, a responsabili­dade do engenheiro ou arquiteto, como profissionais liberais, depende de verificação de sua culpa (negligência, imprudência ou imperícia). Mas, quando exercem a atividade técnico-econômica da construção, sua responsabilidade será objetiva.

Importa ainda salientar que os direitos previstos no Código do Consumidor não excluem outros decorrentes de tratados ou conven­ções internacionais de que o Brasil seja signatário, nem da legislação interna ordinária, bem como os que derivem dos princípios gerais de

9. Programa de Responsabilidade Civil, 6a ed., p. 385 (grifo no original).10. Cláudia Lima Marques, Antônio Herman Benjamin e Bruno Miragem,

Comentários ao Código de D efesa do Consumidor, Ia ed., 2a tir., p. 287.

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RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO 291

Direito, analogia, costumes e eqüidade, como dispõe o respectivo art. 7U. No que concerne à construção, em que as normas da legislação ci­vil se entrelaçam com as do Código do Consumidor, há de se buscar a aplicação da lei mais favorável ao consumidor, em cumprimento aos preceitos constitucionais constantes dos arts. 5a, XXXII, e 170, V. A codificação do direito do consumidor é permeável à incidência de ou­tras normas que lhe sejam mais convenientes, conforme disposto em seu art. 7Q. Assim, a circunstância de ser o Código Civil lei geral, sub­sidiária do Código do Consumidor, lei especial, não impede que am­bas as normas incidam sobre o mesmo fato jurídico. E o que esclarece Cláudia Lima Marques: “Diante da pluralidade atual de leis, há que se procurar o diálogo, utilizando a lei mais favorável ao consumidor. As­sim, no caso do Código Civil/2002, o ideal não é mais perguntar so­mente qual o campo de aplicação do novo Código Civil, quais os seus limites, qual o campo de aplicação do Código de Defesa do Consumi­dor e quais seus limites, mas visualizar que a relação jurídica de con­sumo é civil e é especial, tem uma lei subsidiária por base e uma (ou mais) lei especial para proteger o sujeito de direito, sujeito de direitos fundamentais, o consumidor. Nesta ótica, ambas as leis se aplicam à mesma relação jurídica de consumo e colaboram com a mesma fina­lidade, concorrendo, dialogando, protegendo, com luzes e eficácias diferentes caso a caso, mas com uma mesma finalidade, a cumprir o mandamento constitucional”.11

2. RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO

A construção de obra particular ou pública,’2 além das responsa­bilidades estabelecidas no contrato, pode acarretar outras para o cons­trutor, para o autor do projeto, para o fiscal ou consultor e para o pro­prietário ou Administração contraente. São responsabilidades legais e extracontratuais, de ordem pública, decorrentes da lei, de fatos da obra e da ética profissional, e, por isso mesmo, independentes de conven­ção das partes.

í 1. Cláudia Lima Marques, Antônio Herman Benjamin e Bruno Miragem, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Ia ed., 2a tir., p. 186.

12. Neste item estudaremos conjuntamente as responsabilidades decorrentes da construção particular e pública, mudando a sistemática adotada em edições an­teriores, em que as separávamos. Pois, sendo ambas regidas pelos mesmos princí­pios, não se justifica a separação, bastando que se indiquem as peculiaridades da obra pública, que as distinguirem da obra particular.

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O Código de Defesa do Consumidor deixou isso claro ao dispor que suas normas são de ordem pública (art. lü) e, por conseguinte, nulas de pleno direito todas as cláusulas contratuais que disponham em contrário. Também deixou claro que as normas técnicas relacionadas com a cons­trução são obrigatórias, ao vedar a colocação no mercado de qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos ór­gãos especiais competentes (art. 39, VIII), como veremos no cap. X.

Daí a necessidade de ser apreciada separadamente cada uma des­sas responsabilidades, para se fixar com precisão os encargos de todos os participantes da obra e de quem a encomendou.

Nesta ordem de idéias, examinaremos as seguintes responsabilida­des: a) responsabilidade pela perfeição da obra; b) responsabilidade pela solidez e segurança da obra’, c) responsabilidade por danos a vizi­nhos e terceiros; d) responsabilidade ético-profissional; e) responsabi­lidade trabalhista; f) responsabilidade por fornecimentos; g) respon­sabilidade por tributos; h) responsabilidade administrativa', i) res­ponsabilidade penal por desabamento.

Cumpre observar, inicialmente, que ao distinguirmos, nos tópicos seguintes, a responsabilidade no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, o fazemos apenas por uma questão didática, uma vez que ambas as normas co-incidem nos mesmos fatos, devendo-se per- quirir qual a lei mais favorável ao consumidor, em cumprimento aos preceitos constitucionais constantes dos arts. 5Q} XXXII, e 170, V, como alertamos anteriormente, invocando a lição de Cláudia Lima Marques.13

2.1 RESPONSABILIDADE PELA PERFEIÇÃO DA OBRANO CÓDIGO CIVIL

A responsabilidade pela perfeição da obra é o primeiro dever le­gal de todo profissional ou firma de Engenharia, Arquitetura ou Agro­nomia, sendo de se presumir em qualquer contrato de construção, par­ticular ou pública, mesmo que não conste de nenhuma cláusula do ajus­te. Isto porque a construção civil é, modernamente, mais que um em­preendimento leigo, um processo técnico de alta especialização, que exige, além da peritia artis do prático do passado, a peritia technica do profissional da atualidade.

13. Cláudia Lima Marques, Antônio Herman Benjamin e Bruno Miragem, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Ia ed., 2a tir., pp. 345-346.

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RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO 293

Fundado nesse dever de perfeição é que o Código Civil autoriza quem encomendou a obra a rejeitá-la quando defeituosa, ou a recebê- la com abatimento no preço, se assim lhe convier (arts. 615 e 616). Essa regra é inteiramente aplicável à obra particular e à pública, cujas exigências de estrutura, execução e acabamento são idênticas. Dessa responsabilidade não se exime o profissional ou firma construtora, ain­da que tenha seguido instruções do proprietário ou da Administração, pois não pode aplicar material inadequado ou insuficiente, nem relegar a técnica apropriada para a obra contratada, nem infringir a legislação pertinente.

O contrato de construção, qualquer seja sua modalidade (por em­preitada ou por administração), envolve uma obrigação de resultado. Seu objeto é a obra pronta e acabada, apta a ser utilizada para os fins a que se destina. Assim, responde o construtor pelos eventuais defeitos que vierem a aparecer na obra. Esta responsabilidade perdura durante todo o tempo de razoável expectativa de durabilidade do produto, como veremos adiante. Se o defeito aparecer no prazo de garantia de cinco anos previsto no art. 618 do Código Civil, a responsabilidade do cons­trutor será objetiva, bastando a prova da relação de causa e efeito entre o vício e o dano resultante. Se, contudo, o defeito surgir após o prazo de cinco anos, mas durante o tempo de razoável expectativa de durabi­lidade da obra, é indispensável a prova da culpa do construtor, com a demonstração de que o dano é conseqüência de falha construtiva cau­sada por dolo ou por imperícia, imprudência ou negligência do cons­trutor.

Juntamente com o construtor, podem ser responsabilizados o au­tor do projeto14 e o fiscal ou consultor da obra, desde que se apure sua incorreção profissional, equiparável à culpa comum. Neste caso se há de demonstrar que a ocorrência resultou da inobservância de norma técnica ou, simplesmente, da falta de cuidados recomendáveis na ela­boração do projeto ou nas atividades de fiscalização.

Dispõe o Código Civil que, “concluída a obra, de acordo com o ajuste, ou o costume do lugar, o dono é obrigado a recebê-la. Poderá,

14. A Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610, de 19.2.1998) inclui entre os direi­tos morais do autor o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações, ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la, ou atingi~lo, como autor, em sua reputação ou honra, assim como o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada (art. 24, incisos IV e V). Antes, o TCU já havia reconhecido ao autor do projeto o direito de acompanhar a execução da obra, para se certificar de que esta não sofreu alteração ou distorções (RDA 164/443).

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porém, rejeitá-la, se o empreiteiro se afastou das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas em trabalhos de tal natureza” (art. 615). Nestes casos o proprietário pode, em vez de rejeitar a obra, recebê-la com abatimento no preço (art. 616).

Três, portanto, são as hipóteses que podem ocorrer: a) se a obra estiver perfeita, de acordo com o respectivo projeto e sem falhas apa­rentes, o dono é obrigado a recebê-la, sob pena de entrar em mora (arts. 611 e 613); b) se a obra desobedeceu aos planos, afastou-se das regras técnicas ou apresentou defeitos, o dono pode rejeitá-la ou, c) alternati­vamente, recebê-la com abatimento no preço.

Essas falhas são aquelas verificáveis no momento da entrega da obra, chamadas vícios ou defeitos aparentes, por serem de fácil cons­tatação, até mesmo por um leigo. E, ainda que o dono tenha recebido a obra sem percebê-las, poderá reclamar pela sua correção, ou indeniza­ção, no prazo de noventa dias, a contar do momento da entrega da obra, nos termos do art. 26, § 1Q, do Código de Defesa do Consumidor. O prazo é de decadência, mas a lei admite sua interrupção pela reclama­ção comprovada do consumidor perante o fornecedor até a resposta negativa correspondente, ou pela instauração de inquérito civil até seu encerramento (art. 26, § 2a).

Os vícios ou defeitos ocultos só vão aparecer depois do recebi­mento da obra e de sua utilização pelo respectivo morador. Constituem eles a maior fonte de desentendimento entre o construtor e o dono da obra. São infiltrações, vazamentos, rachaduras, mau funcionamento das instalações elétricas ou hidráulicas etc. A gama de variedade desses vícios é enorme, apresentando um amplo espectro de falhas construti­vas que vão desde as mais graves, que podem comprometer a seguran­ça e a solidez da obra, até as mais leves, que podem ser corrigidas com facilidade.

Comecemos com os vícios redibitórios, regulados nos arts. 441 e ss. do Código Civil, ínsitos no título dos contratos em geral (Tít. V).

Redibir significa devolver a mercadoria recebida em virtude de contrato comutativo e pleitear sua anulação em decorrência de vício oculto, que a torne imprópria ao uso a que se destina ou lhe diminua o valor (art. 441). O adquirente pode, em vez de rejeitar o produto, soli­citar abatimento no preço (art. 442).

Assim, o chamado “vício redibitório” é um vício grave existente no produto adquirido, mas não percebido no momento da aquisição; vício de tal gravidade que, se o adquirente tivesse conhecimento dele

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RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO 295

antes do ajuste, não o teria adquirido, ou pleitearia abatimento no pre­ço.15 Veja-se que, de certa forma, o vício redibitório aproxima-se dos defeitos aparentes, contemplados nos arts. 615 e 616. Por isso mesmo, o prazo para pleitear o desfazimento do negócio é de decadência e re­lativamente curto - ou seja, um ano a partir da entrega efetiva do imó­vel, ou sua metade se já estiver na posse do mesmo (art. 445, caput). Não obstante, quando o vício, por sua natureza, só puder ser conheci­do mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que o adquirente dele tiver ciência, conforme dispõe o § 1Q do mesmo artigo.

A redação desses dispositivos não foi feliz. Acrescente-se que tais prazos não correm na constância de cláusula de garantia, nos termos do art. 446. Tais preceitos, aplicados ao contrato de construção, leva­riam à situação de se admitir a redibição do ajuste e a devolução da obra até seis anos após sua entrega definitiva (cinco da garantia, mais um ano para a propositura da ação). O contrato de construção de obra de engenharia (por empreitada ou por administração) é o único que dis­põe de um prazo de garantia legal de cinco anos para seu objeto, esta­belecido no art. 618 do Código Civil, originalmente aplicável apenas a problemas envolvendo a solidez e segurança da edificação, mas que a jurisprudência adotou como prazo geral de garantia da construção ci­vil. Eliminar este período na contagem dos prazos de decadência - os quais, por sua natureza, são de pouca duração - seria contrariar a siste­mática do próprio estatuto privado. Os vícios ocultos que venham a aparecer nos cinco anos de garantia e afetar a segurança e solidez da obra, previstos no art. 618 e seu parágrafo único, são tratados como um caso especial, e podem até mesmo admitir a redibição do contrato, como será examinado mais à frente, no item 2.3.

Diante desse quadro, entendemos que o prazo do art. 445, caput (um ano), é um prazo de garantia para os vícios redibitórios, dentro do qual o vício ou defeito oculto deve aparecer, para permitir a redibição do contrato ou o abatimento no preço. Conhecido o vício, dentro desse prazo, o proprietário terá o prazo decadencial de um ano para pleitear seu direito, conforme o § 1Q do art. 445. Isto significa que a ação redi- bitória, ou a quanti minoris, só poderá ser demandada no prazo máxi­mo de dois anos após a entrega efetiva da obra, à semelhança do que dispõe o Código Civil português.16

15. Clóvis Beviláqua, Código Civil Comentado, vol. IV, Livraria Francisco Alves, 1917, p. 269.

16. O Código Civil português assim dispõe:

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Problema que se coloca é saber se o construtor deve responder por todos os vícios ou defeitos ocultos que vierem a surgir no prazo de cinco anos, ou se tal prazo só abrange os vícios que afetem a solidez e segurança da obra (art. 618). A jurisprudência pátria encarregou-se de ampliar esse conceito, para nele incluir casos em que os defeitos não tinham como conseqüência a ruína do edifício, mas poderiam compro­meter a saúde e a segurança de seus moradores, ainda que num futuro mediato, como ocorre com as rachaduras, infiltrações, queda de reves­timentos etc.17 Por outro lado, já vimos que para redibir o contrato é preciso que o vício seja suficientemente grave e apareça no primeiro ano da entrega do imóvel. E para os outros vícios ocultos, que podería­mos chamar de leves? Seriam vícios que não poriam em risco a saúde e a segurança dos usuários do edifício, tais como o descascamento da pintura, empeno de portas, quebra de torneiras e outros assemelhados. Estariam eles cobertos pela garantia legal de cinco anos?

Voltamos a repetir que o contrato de construção envolve uma obri­gação de resultado. Seu objeto é a obra pronta e acabada, apta a ser utilizada para os fins a que se destina. Equipara-se a qualquer produto (ou serviço) colocado no mercado, respondendo seu fabricante ou pres­tador pelas falhas que ele vier a apresentar, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos, como pres-

“Art. 1.220“ (Denúncia dos defeitos)“1. O dono da obra deve, sob pena de caducidade dos direitos conferidos nos

artigos seguintes, denunciar ao empreiteiro os defeitos da obra dentro dos trinta dias seguintes ao seu descobrimento.

“2. Eqüivale à denúncia o reconhecimento, por parte do empreiteiro, da exis­tência do defeito.”

“Art. 1.224a (Caducidade)“1 .0 direito de eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do con­

trato e indenização caducam, se não forem exercidos dentro de um ano a contar da recusa da aceitação da obra ou da aceitação com reserva, sem prejuízo da caduci­dade prevista no art. 1.220“

“2. Se os defeitos eram desconhecidos do dono da obra e este a aceitou, o prazo de caducidade conta-se a partir da denúncia; em nenhum caso, porém, aque­les direitos podem ser exercidos depois de decorrerem dois anos sobre a entrega da obra.”

17. STJ, REsp 32.676, rei. Min. Athos Carneiro, DJU 16.5.1994; REsp 27.223, rei. Min. Eduardo Ribeiro, j. 27.6.1994; REsp 66.565, rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 21.10.1997; REsp 161.351, rei. Min. Waldemar Zveiter, j. 20.8.1998; REsp 47.476, rei. Min. Barros Monteiro, j. 19.2.1999; REsp 46.568, rei. Min. Ari Pargendler, j. 1.7.1999; REsp 411.535, rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 20.8.2002; REsp 215.832, rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 6.3.2003.

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RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO 297

crevem os arts. 13 e 14 do Código de Defesa do Consumidor, para os defeitos. Não há prazo de garantia estabelecido pelo Código do Con­sumidor. Considera-se que essa garantia deve estender-se pelo prazo razoável de durabilidade que o próprio fornecedor transmite ao consu­midor. Por isso, os fabricantes de produtos móveis costumam fixar um prazo de garantia, dentro do qual respondem pelos defeitos apresenta­dos. Os construtores devem adotar essa providência nos Manuais do Consumidor, fornecendo informações adequadas para a utilização da obra e para sua manutenção. Diante disso, não há como deixar de apli­car o prazo de garantia previsto no art. 618 do Código Civil como o período dentro do qual responderá o construtor por todos os vícios e defeitos que a obra vier a apresentar, sejam eles gravíssimos, graves ou leves. E essa responsabilidade é objetiva, bastando que o prejudica­do demonstre a relação de causa e efeito entre a falha construtiva e o dano sofrido.

Como lembra Mário Moacyr Porto, “inclui-se na garantia qüin­qüenal todo defeito que compromete a destinação do imóvel, pois se­gurança também significa garantia de que a construção serve, a con­tento, ao fim para que foi construída ou destinada”.18

Sem dúvida, há uma zona cinzenta entre os vícios ocultos que ve­nham a surgir durante o prazo de garantia de cinco anos. Se o vício aparecer no primeiro ano da entrega da obra e for suficientemente gra­ve para justificar a redibição do contrato, terá o interessado o prazo de um ano para ingressar com a ação redibitória ou a quanti minoris. Se o vício oculto for daqueles que venham a afetar a segurança e solidez da obra (no seu sentido amplo), poderá o interessado demandar a repara­ção civil no prazo de três anos, para os vícios ocultos (Código Civil, art. 206, § 3Ü, V;) ou cinco, para os defeitos (Código de Defesa do Con­sumidor, art. 27), a contar do aparecimento do dano; ou, alternativa­mente, pleitear a redibição do contrato nos cento e oitenta dias seguin­tes ao aparecimento do vício ou defeito, nos termos do parágrafo único do art. 618 do Código Civil, como veremos no item 2.3. Se, porém, o vício for daqueles considerados leves, o dono da obra somente poderá solicitar a reparação civil no prazo de três anos (Código Civil, art. 206, § 3*, V).

Alguns autores procuram distinguir os vícios e defeitos, constata­dos na obra, que devem ser reclamados no prazo de um ano, concedi­do pelo art. 445, e os danos deles resultantes, cujos prejuízos podem

18. Artigo in RF 303/19.

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ser pleiteados no prazo de prescrição de três anos de reparação civil. Exemplificando: o proprietário deve reclamar dentro do prazo deca- dencial de um ano pelo desabamento da laje de sua garagem; entretan­to, se o desabamento atingir seu automóvel, o ressarcimento do dano causado ao veículo poderá ser demandado no prazo prescricional de três anos.

Embora se possa fazer tal distinção do ponto de vista técnico, não nos parece seja procedente sob o aspecto jurídico. Dano é a ofensa ao patrimônio — material ou moral - de uma pessoa em decorrência de ação ou omissão de outrem. Em geral, o dano tem origem em ato cul­poso de seu autor, a ele se equíparando o abuso de direito. E quem viola direito de outrem fica obrigado a reparar o dano (arts. 186 e 187). Em determinadas situações, porém, a lei determina que o autor do dano responda pela sua reparação mesmo sem ter agido com culpa. E o que acontece na construção civil (art. 618).

Na construção o vício ou defeito já é considerado um dano - ou seja, a queda de uma laje já é uma lesão ao patrimônio do dono da obra. Evidente que esta lesão pode ocasionar outras; um curto-circuito na rede elétrica pode provocar um incêndio e ferir pessoas da casa e terceiros. Todas essas lesões poderão ser atribuídas ao construtor se forem oriundas de uma falha construtiva decorrente do material em­pregado ou do serviço malfeito. A ordem dos fatores é a seguinte: a falha construtiva (material inadequado por falta de qualidade ou quan­tidade, ou serviço mal executado, ou não aplicação de norma técnica da ABNT) provoca danos na construção (vícios ou defeitos), que po­dem ocasionar outros danos eventualmente mais graves. A nosso ver, o prazo para reclamar o ressarcimento de todos esses danos há de ser único, não se justificando que para uns se conceda o prazo decadencial de um ano e para outros a prescrição de três anos. Para todos os danos decorrentes de falhas construtivas só percebidas após o recebimento da obra a pretensão de reparação civil prescreve em três anos, confor­me o art. 206, § 3Ü, V, do Código Civil.

2.2 RESPONSABILIDADE PELA PERFEIÇÃO DA OBRANO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor dispõe diferentemente do Código Civil. Enquanto este considera vício e defeito como sinônimos, o Código do Consumidor os distingue. O vício afeta a perfeição da obra, diminuindo seu valor. O defeito constitui uma falha mais grave

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que põe em risco a segurança do consumidor. Como já anotado, escla­rece Sérgio Cavalieri que, “enquanto na responsabilidade pelo defeito da obra, por sua gravidade, visa-se a proteger a integridade pessoal do consumidor e dos seus bens, na responsabilidade pelo vício protege-se a equivalência entre a prestação e a contraprestação”.19

Dispõe o Código do Consumidor que os fornecedores de produtos duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quan­tidade que os tomem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam, ou lhes diminuam o valor (art. 18), o mesmo ocorrendo com o fornecedor de serviços (art. 20). São impróprios ao uso ou consumo os produtos que, por qualquer motivo, se revelem imprestáveis ao fim a que se destinam (art. 18, § 6°, III), assim como os serviços que se mostrem inadequados para os fms que razoavelmente deles se espe­ram, bem como aqueles que não atendam às normas regulamentares de prestabilidade (art. 20, § 2C).

O Código do Consumidor não estabeleceu prazos fixos de garan­tia dentro dos quais os vícios ocultos devem surgir, para que possam ser reclamados. E nem poderia fazê-lo, tal a variedade de produtos e serviços oferecidos ao mercado. Considera-se que essa garantia deve estender-se pelo prazo razoável de durabilidade que o próprio fornece­dor transmite ao consumidor. No caso da construção, porém, o Código Civil é expresso ao fixar o prazo irredutível de garantia de cinco anos contra os vícios e defeitos da obra - prazo, este, que pode ser ampliado por acordo das partes, mas não diminuído (art. 618). Dentro desse pe­ríodo o construtor responderá por todos os vícios que venham a surgir na obra, conforme interpretação jurisprudencial.

Ao cuidar dos vícios dos produtos e serviços (arts. 18 e 20), o Có­digo de Defesa do Consumidor não inseriu a locução “ independente­mente da existência de culpa”, constante dos arts. 12 e 14. Isto não quer dizer, contudo, que a responsabilidade dos fornecedores do pro­duto ou serviço dependa de apuração de culpa. Há uma presunção le­gal de sua culpa, pois tanto o produto como o serviço devem atender aos fins a que se destinam, ao que deles razoavelmente se espera, como diz a lei. O que se pode admitir é a inversão do ônus da prova: o forne­cedor há de demonstrar que não agiu com imprudência, negligência ou imperícia, para se eximir da responsabilidade. Tal aspecto será mais fácil ao fornecedor de serviços que possa evidenciar que sua atividade é atividade de meio, e não de resultado.

19. Programa de Responsabilidade Civil, 6a ed., p. 385 (grifo no original).

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300 DIREITO DE CONSTRUIR

Verificado o vício, o consumidor tem o prazo decadencial de no­venta dias para reclamar sua correção (art. 26, § 3fi). O prazo é curto, mas se admite sua suspensão pela reclamação comprovada do consu­midor perante o fornecedor até a resposta negativa deste, ou pela ins­tauração de inquérito civil até seu encerramento (Código do Consumi­dor, art. 26, §§ 2° e 3Ü). Nada impede, contudo, que o consumidor ve­nha a optar pelo prazo prescricional do Código Civil, desde que lhe seja mais favorável (Código do Consumidor, art. Ia).

O Código do Consumidor apresenta algumas vantagens, ao deixar claro que “a ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade” (art. 23). E mais: “Sendo o dano causado por componente ou peça in­corporada ao produto ou serviço, são responsáveis solidários seu fabri­cante, construtor ou importador e o que realizou a incorporação” (art. 25, § 2o). E, ainda: “Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista” (art. 25, § 1Q).

Tais dispositivos facilitam em muito a correção da falha encontra­da, cercando de obstáculos a costumeira fuga dos responsáveis. Nos dias de hoje, com a prática de se incorporar à construção equipamen­tos de maior conforto, como sistemas de ar condicionado, cozinhas aparelhadas e outros similares, não escapa o construtor da responsabi­lidade pelos vícios que tais aparelhos venham a apresentar. Nem será possível o estabelecimento de cláusula contratual que impossibilite, exonere ou atenue a cláusula de indenizar (Código do Consumidor, art. 25, caput). Não obstante, os construtores têm pleiteado que, para esses produtos fornecidos por terceiros e incorporados à obra, deveriam pre­valecer os prazos de garantia concedidos pelos respectivos fabricantes, contados da data do alvará de habitação - “habite-se” - e não da data da entrega efetiva do imóvel ao proprietário.

2.3 RESPONSABILIDADE PELA SOLIDEZE SEGURANÇA DA OBRA NO CÓDIGO CIVIL

Na vigência do Código Civil de 1916, escreveu o Autor esta me­morável página, até hoje citada pelos estudiosos do tema:

A responsabilidade pela solidez e segurança da obra , particular ou pública, é de natureza legal, pois está consignada ímpositivãmente no Có­digo Civil, nestes termos: “Art. 1.245. Nos contratos de empreitada de edi­fícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e exe-

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cução responderá, durante cinco anos, pela solidez e segurança do traba­lho, assim em razão dos materiais, como do solo, exceto, quanto a este, se, não o achando firme, preveniu em tempo o dono da obra”.

Este artigo sugere uma série de considerações necessárias à sua corre­ta inteligência, uma vez que o seu conteúdo tem dado margem a sensíveis divergências na doutrina e na jurisprudência, desde o alcance do dispositi­vo até a natureza jurídica do prazo qüinqüenal e da garantia que ele encer­ra. Lavra, ainda, discórdia sobre a conceituação de “edifícios e construções consideráveis”, bem assim sobre a presunção de culpa do construtor e da exoneração de responsabilidade quando houver prevenido o proprietário sobre a impropriedade do solo para a construção. Tais os aspectos que ire­mos focalizar no decorrer deste tópico.

Como todos sabem, o empreiteiro pode obrigar-se a fomecer os mate­riais e o trabalho ou somente este. Daí a clássica distinção entre em preite i­ro de m ateria is e execução e em preiteiro d e lavor.

O art. 1.245, em exame, alude expressamente ao “empreiteiro de ma­teriais e execução” como responsável, por cinco anos, pela solidez e segu­rança da obra. Diante do texto legal pode parecer que o empreiteiro de la­vor e demais construtores que não concorram com o material ficarão isen­tos pela solidez e segurança da construção. Mas, na realidade, não é assim. O que a lei quer dizer é que, tratando-se de empreiteiro de materiais e exe­cução, responde sempre e necessariamente pelos defeitos do material que aplica e pela imperfeição dos serviços que executa. Se a obra assim reali­zada apresentar vícios de solidez e segurança, já se entende que outro não pode ser o responsável por esses defeitos senão o construtor. Contra ele milita uma presu nção lega l e abso lu ta de culpa por todo e qualquer defei­to de estabilidade da obra que venha a se apresentar dentro de cinco anos de sua entrega ao proprietário. Até mesmo pelos erros do projeto responde o construtor enquanto não demonstrar a sua origem.

O mesmo já nào se pode dizer do empreiteiro que só concorre com o serviço, recebendo do proprietário o material a ser empregado na obra. Em tal caso, responderá de maneira absoluta pelo seu trabalho e de modo rela­tivo pelo material utilizado. Isto porque, como técnico da construção, in­cumbe-lhe rejeitar tudo quanto for visivelmente impróprio ou insuficiente para a obra, a fim de não comprometer a solidez e segurança, mas não res­ponde pelos defeitos imperceptíveis do material que lhe é fornecido.

Diante da norma civil e das disposições reguladoras do exercício da Engenharia e da Arquitetura, a responsabilidade pela solidez e segurança da obra é extensiva a todo construtor, qualquer que seja a modalidade con­tratual da construção. Em princípio, a responsabilidade pela perfeição da obra e pela sua so lid ez e segurança é integral e única do construtor, mas pode ser transferida ao autor do projeto ou partilhada com os que nele in­terfiram, conforme a culpa de cada um.

O Código Civil restringe a responsabilidade qüinqüenal pela solidez e segurança da obra aos “edifícios e construções consideráveis” (art. 1.245).

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Na linguagem técnica, “edifício” é a obra específica e imediatamente utili­zada pelo homem, como a casa, o templo, a escola, o hospital, diversamen­te de “construção”, que designa, genericamente, toda realização material de dominação da Natureza, tais como estradas, pontes, usinas, as quais, embora visando à satisfação de necessidades humanas, não são ocupadas diretamente pelo homem, mas, sim, por seus instrumentos de trabalho. A responsabilidade de que cuidamos incide sobre todo e qualquer “edifício”, mas, quanto às demais construções, somente sobre as “consideráveis”, ou seja, as de grande porte e de caráter permanente, visto que as provisórias, por sua própria natureza, dispensam tal garantia.

Esta responsabilidade é de natureza leg a l, e, mais que isto, é de o r­dem p ú b lica , pois que interessa a toda a coletividade. Daí não ser possível ao construtor dela se eximir, ou reduzir o seu prazo ou a sua amplitude. Resulta da lei, independentemente de cláusula que a consigne, e não admi­te modificações pela vontade das partes. E originariamente do construtor - profissional ou empresa mas pode estender-se ao autor do projeto, ao fiscal e ao consultor da obra, e até ao proprietário ou à Administração con­tratante, quando a lesão atingir vizinhos ou terceiros, vítimas da inseguran­ça da obra particular ou pública.

O prazo qüinqüenal dessa responsabilidade é de garan tia , e não de p rescriçã o , como erroneamente têm entendido alguns julgados. Desde que a falta de solidez ou de segurança da obra apresente-se dentro de cinco anos de seu recebimento, a ação contra o construtor e demais participantes do empreendimento subsiste pelo prazo prescricional comum de 20 anos, a contar do dia em que surgiu o defeito.

Por outro lado, tratando-se de p ra zo de garan tia , não admite inter­rupção ou suspensão, mas poderá ser ampliado contratualmente, se assim o desejarem as partes. O que não pode é ser suprimido ou reduzido, pois a lei civil fixa um mínimo de ordem pú b lica .

Quanto à imprestabilidade do solo para construir, consta da parte fi­nal do art. 1.245 do Código Civil que o construtor poderá eximir-se da res­ponsabilidade “se, não o achando firme, preveniu em tempo o dono da obra”. Tal dispositivo está superado pelas normas reguladoras do exercício da Engenharia e da Arquitetura, que impõem deveres éticos aos seus pro­fissionais e obrigações técnicas incompatíveis com essa exoneração de res­ponsabilidade, prevista na lei civil em época anterior à regulamentação des­sas profissões. Por estas razões, tem-se considerado derrogada a exonera­ção de responsabilidade, admitida pela lei civil, decorrente da falta de fir­meza do solo comunicada ao dono da obra, condenando-se o construtor que assim agir.20

20. José de Aguiar Dias, D a Responsabilidade Civil, 1/348, Rio, 1944; Alfre­do de Almeida Paiva, A spectos do Contrato de Em preitada , Rio, 1955, pp. 87 e 109 e ss.; Miranda de Carvalho, Contrato de Empreitada, Rio, 1953, pp. 244 e ss.; Costa Sena, Da Em preitada no Direito Civil, Belo Horizonte, 1935, ns. 42 e ss.; Carvalho Santos, Código C ivil Interpretado , XVII/364 e ss., Rio, 1945.

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Conforme já acentuamos, o Código Civil de 2002 não cuidou do contrato de construção como espécie autônoma, motivo pelo qual re­produziu no art. 618 o indigitado art. 1.245 do estatuto anterior, expur­gando apenas a parte final, que permitia ao construtor eximir-se da res­ponsabilidade em relação ao solo “se, não o achando firme, preveniu em tempo o dono da obra” - exceção, esta, já considerada derrogada pelas normas referentes à regulamentação das profissões de Engenha­ria e Arquitetura. Por outro lado, acrescentou parágrafo único, que di­ficultou ainda mais a apreciação da matéria. Realmente, assim dispõe:

“Art. 618. Nos contratos de construção de edifícios e outras cons­truções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução respon­derá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

“Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito.”

A doutrina e a jurisprudência já haviam assentado que o prazo de cinco anos, previsto no artigo, era de garantia, e não de prescrição ou decadência. A ação pessoal para reclamar a reparação do dano só pres­crevia em vinte anos, de acordo com o art. 177 do antigo estatuto civil. Nos termos do novo parágrafo único, o dono da obra decairá do direito de reclamar se não o fizer no prazo de cento e oitenta dias da data da verificação do defeito.

Divergem os comentadores a respeito da natureza desse prazo. En­tendem alguns não ser prazo de decadência, mas sim prescricional, por se tratar de ação de reparação de dano. E, neste caso, o prazo para sua propositura seria de três anos, conforme o art. 206, § 3e, V, do Código Civil de 2002.21 Outros consideram o prazo ali previsto como deca- dencíal, mas destinado a redibir o contrato e rejeitar a obra, ou pleitear abatimento no preço, caso os vícios encontrados prejudiquem a quali­dade da obra, constituindo regra específica em face do art. 445 do Có­digo de 2002. Se o proprietário preferir, contudo, poderá pleitear a re­paração dos danos, no prazo de cinco anos (Código de Defesa do Con­sumidor) ou no de três anos (Código Civil), caso se trate, ou não, de relação de consumo.22

21. Cf. Tereza Ancona Lopes, Comentários ao Código Civil, vol. 7, p. 299.22. Cf. Pablo Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de Direito

Civil, vol. III - “Responsabilidade Civil”, pp. 355-356.

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Já anotamos que a jurisprudência pátria estendeu o conceito de so­lidez e segurança, para nele incluir casos em que os defeitos não ti­nham como conseqüência a ruína do edifício, mas poderiam compro­meter a saúde e a segurança de seus moradores, ainda que num futuro mediato, como ocorre com as rachaduras e infiltrações. Não se trata, portanto, de vícios leves, sem maiores conseqüências para o bem-estar dos usuários da obra, mas de defeitos que, embora aparentemente sem gravidade, tomam a obra inadequada ao uso a que se destina. Carlos Roberto Gonçalves observa que isto “se justifica plenamente pelo pro­gresso e desenvolvimento da indústria da construção civil e pela ne­cessidade de se preservar a incolumidade física e patrimonial das pes­soas que possam ser afetadas pelos mencionados vícios e defeitos” .23

Conseqüentemente, o preceito do art. 618 engloba todos os vícios graves decorrentes de uma construção malfeita. Ao tempo do Código anterior (art. 1.245) o dono da obra tinha vinte anos para reclamar a indenização correspondente, por inexistência de prazo específico para a reparação civil - interpretação que veio a se consolidar na Súmula 194 do Superior Tribunal de Justiça: “Prescreve em vinte anos a ação para obter do construtor indenização por defeitos da obra”.

Como interpretar, diante de tais antecedentes, o disposto no pará­grafo único do art. 618: “Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito”?

Ora, é do senso comum que, em seis meses, não tem o proprietá­rio leigo condições de avaliar os riscos de um defeito que venha a apa­recer na obra - obra, esta, lembre-se, recém-construída —, salvo, é claro, se o defeito for daqueles que imponham o chamamento imediato do Corpo de Bombeiros...

Paulo Grandiski, ilustre engenheiro especialista em perícias judi­ciais, explica que “profissionais especializados em patologias constru­tivas sabem que o vício ou defeito estrutural grave, embora seja um problema de nascença, ou seja, originado no período da construção, pode se evidenciar muito depois dos citados cinco anos e mais seis me­ses. Por exemplo, uma falha na espessura do cobrimento da ferragem pode se evidenciar depois de dez a quinze anos. Neste caso, um com­prador de boa-fé perderia o prazo de seis meses para reclamar de uma falha construtiva que, no início do processo de carbonatação do con-

23. Responsabilidade Civil, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 414.

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ereto, não constitui falha estrutural grave, Este comprador só toma co­nhecimento do fato quando no concreto surgem as manchas amarron- zadas resultantes do enferrujamento do aço. Só poderia saber antecipa­damente da existência de tal falha se contratasse ensaio não destrutivo em laboratório que disponha de pacômetro, ou se realizasse um desa- conselhável ensaio destrutivo de verificação da espessura de carbonato do concreto”.24

Aceitar, portanto, que o dono da obra (ou primeiro comprador) só tenha cento e oitenta dias para propor a ação de reparação civil pelos danos causados pelas falhas construtivas é, na prática, anular a garan­tia outorgada pelo caput do referido art. 618. Em conseqüência, só se pode entender que o citado prazo de seis meses contemple o direito do dono da obra de redibir o contrato de construção e receber o que foi pago, com os acréscimos legais. Trata-se de um caso especial de vício redibitório, constituindo exceção ao previsto nos arts. 441 e ss. do Có­digo Civil, que regulam os vícios ocultos.

O Superior Tribunal de Justiça, em recentíssima decisão de sua 4a Turma, deu provimento a recurso de compradores de apartamentos em edifício localizado em São José do Rio Preto/SP, objetivando o direito de rescindir o contrato de compra por existência de vício oculto no imóvel, que desabou em 16.10.1997 em conseqüência de defeitos cons­tatados na estrutura do prédio. De acordo com o Código Civil de 1916 o prazo de seis meses para se ingressar com a ação redibitória começa­va a correr no momento da entrega do bem, mas o Tribunal entendeu que, no caso de vício oculto, esse prazo tem início ao se conhecer o problema.23

Essa decisão do Superior Tribunal de Justiça - proferida em caso sujeito ainda à lei civil anterior, muito mais rigorosa no termo inicial da contagem do prazo - nos induz a concluir que a interpretação mais condizente com o preceito do parágrafo único do art. 618 seja a de que o termo de cento e oitenta dias, ali previsto, destina-se a permitir a re­dibição do contrato ainda que o defeito tenha surgido somente no final do prazo de garantia de cinco anos. Mesmo assim, parece-nos incon­gruente que o Código admita que para os vícios redibitórios comuns o

24. Perícias em Edificações (Aspectos Técnico-Legais Polêmicos Envolven­do a Atividade da Constinçào Civil), apostila elaborada para curso especial do IBA- PE de Santa Catarina, abri1/2004, pp. IV-62.

25. STJ, EREsp 413.353, rela. Min. Nancy Andrighi, j. 2.3.2005 (acórdão ainda não publicado).

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prazo da ação redibitória seja de um ano (art. 445), e para o defeito que ameace a solidez e a segurança da obra seja apenas de seis meses (art. 618, parágrafo único).

De qualquer forma, o dono da obra terá sempre a opção de, em vez de propor a anulação do contrato, pleitear a indenização por per­das e danos sofridos em decorrência das falhas construtivas apresenta­das no seu imóvel. Aparecendo o defeito e sendo este capaz de afetar a solidez e segurança da obra - em seu senso amplo o proprietário terá três anos para propor a ação de reparação civil, conforme consta do art. 206, § 3a, V, do estatuto civil. Anteriormente nossos Tribunais concediam o prazo de vinte anos, por se tratar de ação pessoal e ine- xistir, na lei anterior, prazo menor previsto para a reparação civil. Mas agora existe, e é de três anos, como referido acima.

Três anos, portanto, a partir do conhecimento do vício ou defeito, é o prazo que tem o dono da obra, ou qualquer outra vítima, para pleitear a indenização pelos danos decorrentes de falhas construtivas surgidas em edifícios ou outras construções consideráveis (art. 618). Poderá, even­tualmente, utilizar-se do prazo de cinco anos previsto no Código de Defesa do Consumidor para os danos causados por fato do produto ou do serviço, como veremos adiante (art. 27).

Isto não significa, entretanto, que o construtor fique exonerado de toda e qualquer responsabilidade por vício ou defeito que venha a apa­recer depois dos cinco anos de garantia. A durabilidade de um imóvel não é apenas de cinco anos. O senso comum sabe que a durabilidade de um edifício é de muitos e muitos anos, conforme sua estrutura e acabamento. O Direito não pode ignorar a realidade dos fatos. A res­ponsabilidade do construtor perdura durante todo o tempo de razoável expectativa de durabilidade do produto. Há de se invocar, aqui, o Có­digo do Consumidor. É sabido que o Código do Consumidor não esta­belece prazos de garantia para produtos e serviços colocados no mer­cado. E nem seria possível, em razão da enorme variedade de opções existentes. Mas estabelece que “os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decor­rência de sua natureza e fruição, obrigando-se, os fornecedores, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito” (art. 8a). E com­plementa: “O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera” (art. 12, § 1Q).

Pondera Herman Benjamin que “o Código não estabelece um sis­tema de segurança absoluta para os produtos e serviços. O que se quer

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é uma segurança dentro dos padrões de expectativa legítima dos con­sumidores. E esta não é aquela do consumidor-vítima. O padrão não é estabelecido tendo por base a concepção individual do consumidor, mas, muito ao contrário, a concepção coletiva da sociedade de consu­mo”.26

O mesmo entendimento aplica-se às obras de engenharia civil. O construtor responde pela reparação dos danos causados pelos defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção e montagem da obra, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua uti­lização e riscos (Código de Defesa do Consumidor, art. 12). Se o de­feito surgir dentro do prazo de garantia de cinco anos (Código Civil, art. 618), a responsabilidade do construtor é objetiva. Todavia, se o defeito aparecer após o qüinqüênio inicial, é preciso examinar o pro­blema da culpa. O Código do Consumidor dispõe que o construtor só não será responsabilizado se demonstrar que o defeito inexiste, ou que é decorrente de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros (art. 12, § 3°). A vida útil do produto será um dado relevante na apreciação da culpa. Quanto mais novo o edifício, maior a probabilidade de falha construtiva; quanto mais antiga a construção, maior a probabilidade de culpa do proprietário, por falta de conservação ou utilização inadequa­da. Neste campo há uma larga margem de apreciação do juiz. Não é possível estabelecer uma regra fixa em teoria. Hão de ser levadas em conta, sempre, as regras da experiência comum.

O fato é que, descoberto o defeito, tem o interessado três anos (Có­digo Civil, art. 206, § 3a, V) ou cinco anos (Código do Consumidor, art. 27) para solicitar a reparação civil. Não se aplica ao caso o prazo de dez anos previsto no art. 205 do Código Civil. Por outro lado, não se exime o construtor de qualquer responsabilidade depois de decorridos quinze anos (cinco de garantia e mais dez de prescrição). Sua respon­sabilidade permanece durante a vida útil do produto, mas é indispensá­vel que o dono da obra demonstre que o defeito surgido é decorrente de uma falha na construção. Daí a importância de serem aprovadas e divulgadas as normas de desempenho dos materiais empregados na construção civil e as normas de manutenção e conservação desses ma­teriais. Por essas razões, chamamos a atenção para a relevância das in­formações a serem prestadas ao dono da obra pelo construtor, porque delas é que surgirão os deveres do proprietário ou usuário pela manu­

26. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 60.

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tenção da mesma - motivo pelo qual, mais à frente, abrimos um tópico especial a respeito do tema.

Os erros de concepção ou de cálculo do projeto tomam seus auto­res responsáveis pelos danos deles resultantes. Perante o proprietário ou a Administração responderá sempre o construtor da obra, mas com direito a chamamento de quem elaborou o projeto ou efetuou os cálcu­los, se os defeitos tiverem origem em falhas desses profissionais ou empresas especializadas.

Embora o Código Civil não se refira expressamente aos vícios de concepção da obra, nem por isso ficam liberados de responsabilidade os que a projetaram e calcularam as cargas e resistências. E nunca se entendeu de outro modo, pois, se a lei civil é omissa a respeito, tal res­ponsabilidade é imanente ao exercício profissional e deflui das normas regulamentadoras da Engenharia e da Arquitetura como atividades técnicas vinculadas à construção, motivo pelo qual é uma responsa­bilidade legal e não contratual, como supõem alguns autores menos familiarizados com as normas administrativas e com os preceitos éti- co-profíssionais que regem a matéria (arts. 17 a 23 da Lei 5.194/1966).

Projetando ou construindo, o arquiteto, o engenheiro ou a empre­sa habilitada, cada um é autônomo no desempenho de suas atribuições profissionais e responde técnica e civilmente por seus trabalhos, quer os execute pessoalmente, quer os faça executar por prepostos ou auxi- liares. Em tema de construção, pode-se dizer que há uma cadeia de res­ponsabilidades, que se inicia no autor do projeto e termina no seu exe­cutor, solidarizando todos os que participam do empreendimento.

Se, além do projetista e do construtor, houver, ainda, um fiscal ou consultor da obra, responderá também por seus defeitos e insegurança. Nem é por outra razão que se confia o acompanhamento dos trabalhos a esses técnicos, para confronto do projeto com a sua execução. Se o fis­cal ou o consultor falha no seu ofício, há que responder, como os outros profissionais vinculados à obra, pela sua perfeição, solidez e segurança.27

É necessário dizer, também, que o incorporador responde solidari­amente com o construtor pelos vícios e defeitos das obras realizadas

27. A norma NBR 5.671, da ABNT - Participação dos Intervenientes em Ser­viços e Obras de Engenharia e Arquitetura - define quem é responsável pelo quê na construção civil, esclarecendo direitos e deveres entre proprietário, firma proje­tista, autor do projeto, executante, fiscal técnico, empreiteiro técnico, subemprei­teiro, consultor técnico, tecnólogo, fabricante de materiais e/ou equipamentos, for­necedor, concessionário de serviço público, corretor, adquirente, usuário etc.

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por meio de incorporação imobiliária, Nos termos da Lei 4.591/1964, incorporador é “a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que, embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em constru­ção sob regime condominial, ou que meramente aceita propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorpo­ração e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo pra­zo, preço e determinadas condições, das obras concluídas” (art. 29). Por isso, a incorporação imobiliária é definida como “a atividade exer­cida com intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas” (art. 28, parágrafo único, da mesma lei).

Como se vê, a responsabilidade do incorporador decorre da pró­pria lei, sem mencionar o contrato, pelo qual ele assume uma obriga­ção de resultado. Não importa que tenha cometido a construção a ter­ceiro. Ele é o responsável pela entrega do edifício aos compradores; e, nestas condições, solidariza-se com o construtor pelas falhas construti­vas que vierem a ocorrer. Esta é também a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.28

Em certas circunstâncias até mesmo a entidade financiadora da in­corporação pode ser responsabilizada pelos defeitos e vícios decorren­tes da construção. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “a obra iniciada mediante financiamento do Sistema Financeiro da Habitação acarreta responsabilidade civil solidária do agente financeiro pela res­pectiva solidez e segurança da construção, porque este tem obrigação de fiscalizar a obra”.29

28. “Empreiteiro e incorporador - Solidez e segurança da obra. A responsabi­lidade do empreiteiro se funde na do incorporador que a absorve e cujo prazo de prescrição é o comum ou ordinário de vinte anos” (STJ, REsp 2.302, rei. Min. Wal- demar Zveiter, DJU 4.6.1990); “O incorporador, como fornecedor de um produto durável, é solidariamente responsável pelos vícios de qualidade ou quantidade, se­jam aparentes, ocultos ou de estrutura, que forem verificados na obra. O incorpora­dor que não executa a obra responde solidariamente com o construtor pelos defei­tos de qualidade, eventualmente encontrados na edificação, que a tomem impró­pria à utilização ou lhe diminuam o valor, como também por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária” (STJ, 4a T., REsp 120.110, rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 16.9.1997, DJU 5.10.1998, v.u., RT 760/206).

29. STJ, 3a T., REsp 51.169, rei. Min. Ari Pargendler, j. 9.12.1999, DJU 28.2.2000, m.v.

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2.4 RESPONSABILIDADE PELA SOLIDEZ E SEGURANÇADA OBRA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Como vimos anteriormente, o Código de Defesa do Consumidor distingue vício de defeito. O defeito constitui uma falha mais grave e põe em risco a segurança da obra. Trata-se, aqui, da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, contemplada nos arts. 12 a 17. Aque­les que oferecem ao mercado um produto ou serviço devem responder pela sua qualidade e segurança. A lei cria, assim, um dever de segu­rança e perfeição da obra, pelo qual respondem todos aqueles que a produziram ou colaboraram para sua introdução no mercado. Veja-se o que diz o art. 12, para o produto: “O fabricante, o produtor, o cons­trutor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, indepen­dentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, cons­trução, montagem, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequa­das sobre sua utilização e riscos”. E o art. 14, para o serviço: “O for­necedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defei­tos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações in­suficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.

Conforme dissemos em relação aos vícios, o Código do Consumi­dor não estabeleceu prazos fixos de garantia dentro dos quais os defeitos do produto ou do serviço devem aparecer, para que possam ser recla­mados. E nem poderia fazê-lo, tal a variedade de produtos e serviços oferecidos ao mercado. Considera-se que essa garantia deve estender- se pelo prazo razoável de durabilidade que o próprio fornecedor trans­mite ao consumidor. Em relação à construção civil este prazo é muito superior aos cinco anos previstos no art. 618 do Código Civil. Sabe-se que um edifício bem construído tem sua durabilidade presumida para mais de cinqüenta anos, no que diz respeito à sua estrutura. E claro que esta previsão não se estende a todas as partes da obra, muitas das quais dependem de substituição ao longo do tempo. O que pretendemos di­zer é que, nos termos do Código do Consumidor, o consumidor pode reclamar dos defeitos da construção mesmo depois de decorridos os cinco anos do prazo fixado no art. 618 do Código Civil. Basta demons­trar que o defeito é oriundo de falha construtiva, uma violação do de­ver de qualidade e segurança decorrente da colocação do produto no mercado: o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele se espera (Código de Defesa do Consumidor, art. 12, § l ü).

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O prazo de cinco anos estabelecido no art. 618 do Código Civil é o prazo mínimo de garantia legal assegurado ao consumidor no que diz respeito à perfeição da obra e, como pressuposto, à sua solidez e segurança. Ocorrendo o dano, o defeito é presumido. O construtor só não será responsabilizado se provar que o defeito inexiste, ou que de­corre de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (art. 12, § 3a, do Código do Consumidor). E assim deve ser, efetivamente. Uma obra de engenharia, quando entregue pronta e acabada, deve estar apta ao seu regular desempenho, pois se trata de uma obrigação de resultado. As­sim, como diz Sérgio Cavalieri: “O prédio desabou? Então, é porque a obra tinha defeito, até prova em contrário” .30

O prazo para reclamação dos danos causados pelos defeitos do produto ou do serviço é de cinco anos, iniciando-se a partir do conhe­cimento do dano e de sua autoria (art. 27 do Código do Consumidor). Isto significa que, se o dano ocorrer no último dia do prazo de garantia (cinco anos), o consumidor terá mais cinco anos para propor a ação de indenização correspondente. Note-se que, neste caso, o prazo ofereci­do pelo Código do Consumidor é superior ao do Código Civil, três anos (art. 205, § 3“ V).

Além disso, cabe ressaltar que o Código de Defesa do Consumi­dor permite a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade construtora ou incorporadora, nas condições previstas no art. 28. São conhecidos as tramóias e os artifícios empregados por inescrupulosas empresas construtoras e incorporadoras, que iludem a boa-fé dos ad- quirentes, deixando-os ao relento quando o edifício construído vem ao solo, em decorrência dos materiais utilizados ou dos serviços malfei­tos. O art. 28 e seus parágrafos procuram cercear os subterfúgios utili­zados por tais empresas, dispondo textualmente que a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que, de alguma forma, for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

2.5 INFORMAÇÕES DO CONSTRUTOR E OBRIGAÇÕES DO CONSUMIDOR

Um dos aspectos de certa forma negligenciados na construção ci­vil é a transmissão de informações ao consumidor para a conservação e manutenção do produto que lhe foi entregue — ou seja, a obra de en­genharia principalmente quando esta obra se destina a usuários lei­

30. Programa de Responsabilidade Civil, 6a ed., p. 384.

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gos, como casas, apartamentos, escritórios e similares. Não obstante, o Código do Consumidor estabelece como direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e servi­ços, com especificação correta de quantidade, características, compo­sição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem” (art. 6Ü, III).

Paralelamente, dispõe o mesmo Código que “a garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante termo escrito”, es­clarecendo: “O termo de garantia ou equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada, em que consiste a mesma garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e o ônus a cargo do consumidor, devendo ser-lhe entregue, devidamente preenchido pelo fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado do manual de instrução, de instalação e uso de produtos em linguagem didática, com ilustrações” (art. 50 e parágrafo único).

Mas, antes de ensinar ao consumidor como manter os produtos, é preciso ensiná-lo a utilizá-los adequadamente. Muitos dos materiais uti­lizados na construção sequer têm a durabilidade de cinco anos da ga­rantia legal, prevista no art. 618 do Código Civil, sem a devida manu­tenção. Assim como os produtores de veículos motorizados entregam ao primeiro comprador o Manual do Proprietário, com toda a orienta­ção necessária para sua utilização e manutenção (inclusive com as re­visões necessárias para assegurar a garantia), assim deve proceder o construtor com o dono da obra ou seu primeiro comprador, E preciso que o proprietário saiba que a manutenção do imóvel é de sua responsa­bilidade e que o uso adequado das instalações é indispensável para que o defeito que venha a aparecer seja de responsabilidade do construtor.

Ora, é sabido que o mau uso das instalações elétricas ou hidráulicas ou, ainda, de outros equipamentos empregados na obra pode causar danos consideráveis ao imóvel. Mas, se o consumidor não foi devida­mente instruído, não se livra o construtor da responsabilidade pela re­paração. E, no entanto, o Código do Consumidor permite a exclusão de sua responsabilidade se provar “a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro” (arts. 12, § 3Ü, e' 14, § 3fi).

É obrigatória a entrega, ao dono da obra ou primeiro comprador do imóvel, do Manual do Proprietário. Mesmo antes do Código do Consumidor, a NBR-5.671/1989 já previa a obrigatoriedade do forne­cimento ao proprietário do “Manual de Uso e Manutenção do Em­preendimento”. Atualmente, como informa Paulo Grandiski, há vários roteiros para a redação do Manual do Proprietário, convindo lembrar

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a NBR-5.674/1999, que se refere ao procedimento para a “Manuten­ção de Edificações”, e a NBR-14.037/1998, contendo várias recomen­dações para a elaboração e apresentação do “Manual de Operação, Uso e Manutenção das Edificações”.3’

Para enfrentar esse problema, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), por meio de seu Comitê Brasileiro da Construção Civil (COBRACON), criou a “Comissão de Estudos 02.136.01 - De­sempenho de Edificações”, com o objetivo de elaborar e estabelecer normas de desempenho para os edifícios habitacionais como um todo e as respectivas partes que o compõem. Em julho/2004 o Comitê pu­blicou sua primeira versão para recebimento de sugestões - situação em que atualmente se encontra.32

A versão divulgada contém seis partes: 1. Requisitos Gerais; 2. Estrutura; 3. Pisos Internos; 4. Fachadas e Paredes Internas; 5. Cober­turas; e 6. Sistemas Hidrossanitários. Destina-se a edificações de até cinco pavimentos, mas esclarece que, excetuados os critérios que de­pendam diretamente da altura do edifício (segurança estrutural e segu­rança contra incêndio), os demais requisitos estabelecidos podem ser aplicados a edifícios com maior número de pavimentos. Esclarece, tam­bém, que são fixados em três os níveis de desempenho: Mínimo (M), que deve ser obrigatoriamente atendido, Intermediário (I) e Superior (S), tendo em vista as diferentes possibilidades de agregação de quali­dade aos produtos utilizados na obra - o que deve ser definido pelos interessado. Para cada nível de desempenho esta norma define diferen­tes prazos de vida útil de projeto e de garantia mínimos, fazendo dis­tinção entre eles conforme a seguinte definição: “Prazo de garantia - Período de tempo em que é muito elevada a probabilidade de que even­tuais defeitos embutidos no produto, em estado de novo, venham a se manifestar (falhas de fabricação, montagem ou instalação, que reper­cutam em desempenho inferior àquele previsto nesta Norma); se o pro­duto foi fornecido com eventuais defeitos, espera-se que estes se mani­festem rapidamente, dentro do prazo de garantia” .

Daí a importância do “Manual de Operação, Uso e Manutenção”, que a norma define como “Manual elaborado pelo incorporador e en­tregue ao usuário, destinado a orientá-lo quanto ao correto uso, opera­

31. Perícias em Edificações (Aspectos Técnico-Legais Polêmicos Envolven­do a Atividade da Construção Civil), apostila elaborada para curso especial do ÍBA- PE de Santa Catarina, abril/2004, pp. 111-78.

32. Cf. site: www.cobracon.org.br.

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ção e manutenção do imóvel, definindo ainda os prazos de garantia dos componentes da edificação. Também é conhecido como Manual do Proprietário, para as unidades autônomas, e Manual das Areas Co­muns ou Manual do Sindico, para as áreas de uso comum”. Evidente­mente, a obrigação de entrega do Manual não é só do incorporador, mas também e principalmente do construtor, pois ele é o principal res­ponsável pelas obrigações decorrentes da construção.

2.6 RESPONSABILIDADE POR DANOS A VIZINHOS E TERCEIROS

2.6.1 DANOS A VIZINHOS

A construção, por sua própria natureza, e mesmo sem culpa de seus executores, comumente causa danos à vizinhança, por recalques do terreno, vibrações do estaqueamento, queda de materiais e outros eventos comuns na edificação. Tais danos hão de ser reparados por quem os causa e por quem aufere os proveitos da construção. Daí a solidariedade do construtor e do proprietário pela reparação civil de todas as lesões patrimoniais causadas a vizinhos pelo só fato da cons­trução. E um encargo de vizinhança, expressamente previsto no art. 1.279 do Código Civil, que, ao garantir ao proprietário a faculdade de levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, assegurou aos vizinhos a incolumidade de seus bens e de suas pessoas e condicionou as obras ao atendimento das normas administrativas.

Essa responsabilidade independe de culpa do proprietário ou do construtor, uma vez que não se origina da ilicitude do ato de construir, mas, sim, da lesividade do fato da construção. E um caso típico de res­ponsabilidade sem culpa, consagrado pela lei civil, como exceção de­fensiva da segurança, da saúde e do sossego dos vizinhos (art. 1.277). E sobejam razões para essa orientação legal, uma vez que não se há de exigir do lesado em seus bens mais que a prova da lesão e do nexo de causalidade entre a construção vizinha e o dano.33 Estabelecido esse liame, surge a responsabilidade objetiva e solidária de quem ordenou e de quem executou a obra lesiva ao vizinho, sem necessidade da de­monstração de culpa na conduta do construtor ou do proprietário. Daí a afirmativa peremptória de Pontes de Miranda, sufragando a boa dou­trina, de que “a pretensão à indenização que nasce da ofensa a direito

33. STF, RT 555/261, 614/240; TJSP, RT 586/69, 620/88, 621/76, 673/57; Ia TACivSP, R T 632/13; TJRS, RT5551202\ TJRJ, RT 670/139.

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de vizinhança é independente de culpa”.34 Para fins indenizatórios de danos a vizinhos, equipara-se ao proprietário o promissário comprador e o incorporador do edifício em condomínio, porque, na realidade, as­sumem eles a posição de donos da obra e5 por isso, arcam com as res­ponsabilidades decorrentes da construção que empreendem.35

A jurisprudência pátria, hesitante a princípio, firmou-se, depois, na responsabilidade solidária do construtor e do proprietário e na dis­pensa de prova de culpa pelo evento danoso ao vizinho,36 admitindo, porém, a redução da indenização quando a obra prejudicada concorreu para o dano, por insegurança própria, ou defeito de construção.37 Tal critério jurisprudencial é razoável e equitativo, mas deve ser aplicado com prudência e restrições. Se a construção vizinha, embora sem a re­sistência das edificações modernas, se mantinha firme e intacta na sua estrutura e veio a ser abalada ou danificada pela obra das proximida­des, não há lugar para desconto na indenização, porque o dano se deve, tão-só, à construção superveniente; se, porém, a obra lesada, por sua idade ou vícios de edificação, já se apresentava abalada, trincada ou desgastada pelo tempo e uso, e tais defeitos se agravaram com a cons­trução vizinha, a indenização há de se limitar aos danos agravados. O que convém fíxar é que a idade das edificações vizinhas e a sua maior ou menor solidez não eximem, desde logo, o proprietário e o constru­tor de responsabilidade civil pelo que suas obras venham a produzir ou a agravar em tais construções. Em princípio, ocorre a obrigação de in­denizar a vizinhança por todas as lesões ocasionadas; por exceção, po- der-se-á reduzir essa responsabilidade, provando-se a concorrência de eventos de ambos os vizinhos para a lesão em causa.

Não importa para o vizinho a natureza do contrato de construção firmado entre o proprietário e o construtor, porque tal ajuste, seja ele de empreitada ou administração, é ato indiferente a terceiros - res inter alios que não interfere nas relações de vizinhança (TJSP, R T 233/264).

34. Tratado de Direito Privado, 2a ed., XIII/293.35. TJSP, 232/146, 237/203; TJDF, 286/885.36. STF, RT 734/254, RT 266/831; RTJ 6/76; RF 108/322, 170/793; TJSP, RT

190/233, 191/166, 232/146, 233/264, 234/203, 237/203, 241/222, 242/175, 247/ 416, 249/147, 253/224, 254/300, 259/203, 260/286 e 319, 266/592, 267/176 e 250, 269/339, 270/208, 271/219, 272/166, 281/211 e 350, 284/251, 286/355, 287/201, 258/322, 290/179, 294/247; TJDF, /?7’286/885; Ia TACivSP, R T 6 \5 /\ 17, 673/108, 675/128; TJRJ, ^ 6 7 0 /1 3 9 ; STJ, RT 676/195; TJSP, R T 61 1/48, 620/89, 627/123, 651/67, 664/73, 673/57; TJPR, R T 609/192; TJMT, RT 636/157.

37. TJSP, RT 160/740, 217/227, 235/469, 269/349, 276/406.

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O que solidariza e vincula os responsáveis pela reparação do dano é, ob­jetivamente, a lesão aos bens do vizinho proveniente do fato da constru­ção, fato, este, proveitoso tanto para o dono da obra como para quem a executa com fim lucrativo. Sendo princípio de Direito que quem aufere os cômodos suporta os ônus, um e outro devem responder pelas lesões decorrentes da construção. Nessa responsabilidade não se incluem o au­tor do projeto e o fiscal da construção, nem o mestre ou encarregado da obra, visto que aqueles só têm encargos profissionais para com o pro­prietário; e estes, obrigações trabalhistas para com o construtor, de quem são meros prepostos leigos, como veremos adiante (cap. 10, item 4.6).

Convém distinguir, ainda, para fins de responsabilização civil, os impropriamente denominados “empreiteiros de serviço” e “subemprei­teiros de obra”, os quais não passam de artífices leigos subordinados do construtor diplomado ou do construtor “licenciado”, que os incum­be de realizar determinados serviços ou certas partes da obra, sob sua orientação e responsabilidade. Tais “empreiteiros” e “subempreiteiros”, a nosso ver, não respondem civilmente perante terceiros, nem são soli­dários com o proprietário e o construtor na composição dos danos à vizinhança. A responsabilidade técnica e civil desses partícipes da construção não vai além das obrigações particulares assumidas com o construtor, sem afetar o direito dos vizinhos e o contrato da obra com o proprietário.

Quanto ao autor do projeto, não nos parece também que responda por danos a vizinhos. Suas responsabilidades são encampadas pelo construtor, que, como profissional da mesma categoria, assume intei­ramente os riscos técnicos e econômicos da construção perante o proprietário e com ele responde perante a vizinhança. Poderá o cons­trutor demandado chamar regressívamente à responsabilidade o autor do projeto, provando que o evento danoso resultou de defeito de con­cepção da obra ou erro de cálculo das resistências.

O fiscal da construção - engenheiro, arquiteto ou agrônomo como já se assinalou anteriormente, só é responsável técnica e civil­mente perante quem o contratou, uma vez que não está vinculado ao construtor, aos vizinhos ou a terceiros por qualquer imposição legal ou convencional que obrigue a reparar danos ocasionados pela obra a es­tranhos.

2.6.2 DANOS A TERCEIROS

No regime do Código Civil de 1916 assim se manifestava o Autor:

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A atividade da construção muitas vezes causa danos a pessoas e bens sem qualquer situação de vizinhança, ou seja, terceiros em relação ao pro­prietário e ao construtor. Em tais casos, a apuração da responsabilidade su­jeita-se às normas comuns da indenização civil fundada na culpa extracon- tratual (Código Civil, arts. 159 e 1.528). Aqui não se aplicam as regras de vizinhança (Código Civil, arts. 555 e 572), nem se dispensa a prova da conduta culposa do construtor e do proprietário, para que respondam pelo dano decorrente da construção.

Em princípio, o responsável pelos danos que a construção causar a terceiros (não vizinhos) é o construtor - pessoa física ou jurídica legalmen­te autorizada a construir. Como bem salienta Sourdat, “sc n ’est pas seule- ment vis-à-vis du proprietaire qui les emploi, que les auteurs d’une cons- truction encourent la responsabilité de leur oeuvre; c ’est encore vis-à-vis des tiers avec lesquels ils n ’ont pas contracíé”.3S O proprietário só se soli­darizará na responsabilidade se houver confiado a obra a pessoa inabilita­da para os trabalhos de Engenharia e Arquitetura. Neste caso, o simples desatendimento da regulamentação profissional já evidencia a culpa in eli- gendo na escolha do construtor. Se, porém, a execução do projeto está co­metida a profissional diplomado ou a sociedade legalmente autorizada a construir, fica afastada a presunção de culpa do proprietário, ainda que o dano decorra de ato culposo do construtor ou de seus prepostos, porque não é admissível que o leigo fiscalize o profissional na sua atividade técni­ca. Daí por que não há falar em culpa in vigilando do dono da obra em relação ao construtor habilitado, qualquer que seja a modalidade do con­trato de construção. Desde que as leis administrativas reguladoras do exer­cício da Engenharia e da Arquitetura afastam os leigos dessas atividades, não é admissível que se solidarize o proprietário na reparação de danos decorrentes da falta técnica nos trabalhos desses profissionais. Não cabe, aqui, a exceção da responsabilidade conjunta e sem culpa imposta para os danos de vizinhança (Código Civil, art. 572).

O construtor - engenheiro, arquiteto, agrônomo, “licenciado” ou so­ciedade autorizada a construir — responde sempre pelos atos culposos e le­sivos a estranhos resultantes de atividade própria ou de seus prepostos na construção - mestres ou encarregados de obra ou, ainda, de seus operá­rios (Código Civil, arts. 1.521, III, e 1.522), e, tratando-se de responsabili­dade civil por culpa extracontratual, ficam solidários todos os autores e co- autores da lesão (Código Civil, art. 1.518), até a completa reparação do dano causado à vítima.(Código do Consumidor, art. 17).39 Se o ato lesivo exceder os limites do ilícito civil, responderão os autores e co-autores pela infração penal correspondente (Código Penal, art. 256; Lei das Con­travenções Penais, art. 29), como veremos adiante, neste mesmo capítulo (item 2.9).

38. Traité Générale de la Responsabilité, 5a ed., p. 779.39. STF, RF 125/56; RT 140/727; TJSP, RT 206/219, 212/154, 219/241.

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Quid ju ris se o construtor subcontratar determinados serviços ou par­tes da obra com outra firma ou profissional habilitado, e desses trabalhos resultarem danos ou lesão a terceiros não vizinhos? Em tal hipótese, a res­ponsabilidade é exclusiva da empresa ou profissional subcontratante que assume com autonomia técnica e financeira os trabalhos de sua especiali­dade* Perante o proprietário e os vizinhos subsiste a responsabilidade do construtor por todos os danos decorrentes da obra, mas, perante terceiros, vitimados pelo trabalho de outro profissional habilitado, incumbe a este a reparação de seus atos lesivos e culposos.40

Mui comum é o traspasse da responsabilidade civil do construtor para o proprietário, por via contratual, por todos os danos decorrentes da obra. A nosso ver, tal cláusula tem, apenas, validade para solidarizar ambos pe­las indenizações, sem operar efeito excludente da responsabilidade legal do construtor, porque esta decorre de sua habilitação profissional, e, como tal, é uma imposição ética, de ordem pública, inarredável pela vontade das partes. Nem se concebe que o Direito reconheça uma profissão e tolere isenções de responsabilidade de seus profissionais. Além disso, as conven­ções particulares são inoperantes em relação a terceiros, salvo quando re­gularmente registradas (Código do Consumidor, arts. 25 e 51,1 e III).

Com a promulgação do Código Civil de 2002, o tema merece nova apreciação. Realmente, embora mantendo como regra geral a respon­sabilidade civil fundamentada na culpa do autor do dano, o Código ampliou consideravelmente os casos de responsabilidade sem culpa. O art. 931 dispõe que, “ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemen­te de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”. Ora, a obra de Engenharia é um produto, como nos deixa claro o Códi­go de Defesa do Consumidor, no art. 3Ú, § 1Q: “Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”. O assunto há de ser examina­do à luz do que dispõem o Código Civil e o Código do Consumidor, mesmo porque, com relação a este tema - responsabilidade pelo fato do produto e do serviço - o Código do Consumidor equipara aos con­sumidores todas as vítimas do evento (art. 17).

Comecemos pelo parágrafo único do art. 927 do Código Civil: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desen­volvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

40. Esta situação decorre do fato, já assinalado em diversas oportunidades, de que só há responsabilidade sem culpa entre vizinhos, por expressa exceção do art. 1.299 do Código Civil e do Código do Consumidor, arts. 12 a 14.

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“Atividade normalmente desenvolvida” é conceito jurídico inde­terminado, que há de ser concretizado pela jurisprudência ao longo do tempo. A nosso ver, a locução pretende referir-se à profissão exercida pelo causador do dano. Mas só este aspecto não resolveria o problema, porque, neste caso, todos os que exercem profissão de alto risco, mas indispensável à vida social (como medicina nuclear, transporte de resí­duos tóxicos etc.), teriam que responder objetivamente pelos danos causados, embora tenham usado de todas as cautelas indispensáveis à sua atuação. Parece-nos, pois, que a atividade de risco normalmente exercida há de estar ligada ao conceito de segurança. As regras do Có­digo de Defesa do Consumidor ajudam-nos a equacionar o problema. Dispõe seu art. 8Ü que “os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumi­dores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hi­pótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito”. Assim, ao lado do dever de segurança, há o dever de informação rela­tiva à periculosidade do produto. O art. 9a do Código do Consumidor enfatiza a importância da informação: “O fornecedor de produtos e ser­viços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deve­rá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua noci­vidade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto”.

A profissão de construtor é, normalmente, uma profissão de risco, principalmente quando se trata de grandes obras de engenharia, como estradas, pontes, túneis, prédios gigantescos etc. A despeito de se utili­zar as mais modernas maquinas e acessórios, não são raros os aciden­tes que ocorrem durante a construção, atingindo terceiros estranhos ao empreendimento. A responsabilidade do construtor é objetiva, indepen­dendo de apuração de sua culpa. O construtor só não será responsável quando provar a culpa exclusiva do terceiro ou a inexistência de qual­quer falha da obra ou do serviço (art. 12, § 3o). Há, sim, uma inversão do ônus probatório, visto que ao prejudicado cumprirá apenas demons­trar que o dano foi decorrente da construção.

Construtor, no caso, é a pessoa física ou jurídica habilitada a cons­truir e devidamente registrada no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), como veremos no capítulo da regulamentação profissional. O engenheiro, o arquiteto e o agrônomo, que atuam como profissionais liberais, terão sua responsabilidade civil apurada median­te a verificação de culpa (Código do Consumidor, art. 14, § 4Q). A res­

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ponsabilidade objetiva é do empresário individual ou da empresa, não do profissional liberal. Por essa razão, o autor do projeto e o fiscal da obra, profissionais devidamente habilitados, não respondem solidaria­mente com o construtor por danos a terceiros. Poderão eventualmente ser demandados pelo construtor, caso se demonstre que o dano foi cau­sado por falhas de sua atuação.

Se o construtor subcontratar determinados serviços ou partes da obra com outra firma ou profissional habilitado e desses trabalhos re- sultarem danos a terceiros, responderão eles pela reparação de seus atos lesivos, em solidariedade com o construtor, porque ambos exercem ati­vidade de risco (Código Civi, art. 927, parágrafo único).

O mesmo não ocorre com o dono da obra. Ele não exerce, nor­malmente, atividade de risco. Nem pode dar ordens ao profissional ha­bilitado e contratado para garantir a segurança da construção. O em­presário construtor é o único responsável pelas providências técnicas a serem tomadas para evitar danos a terceiros, assim como a respeito das informações necessárias e adequadas a esse fim. De igual modo, não se pode fundamentar sua responsabilidade solidária no art. 937 do Có­digo Civil, que trata da ruína de edifício ou construção por falta de reparos. Estamos falando de edifício em construção e de danos causa­dos em decorrência dela. Quando muito, pode-se falar em responsabi­lidade subsidiária, em razão do princípio jurídico de que quem aufere os cômodos suporta os ônus. Neste caso, sim, o proprietário responde­rá pela reparação dos danos causados a terceiros, se o construtor não

, puder suportá-los, já que ele é o beneficiário da obra.Tratando-se de danos a vizinhos e terceiros quando resultantes da

ruína de edifício ou construção carentes de reparos, cuja necessidade fosse manifesta, o Código Civil é expresso ao responsabilizar seu pro­prietário (art. 937). Neste caso - bem pondera Aguiar Dias a culpa do proprietário é legalmente presumida do só fato da ruína, que signi­fica abandono negligente da construção.41 Se a obra estiver sendo re­parada e, mesmo assim, vier a causar danos a vizinhos ou a terceiros, então surgirá a responsabilidade solidária do proprietário e do constru­tor que se incumbiu dos reparos necessários e não o fez a tempo. É mais um caso de responsabilidade objetiva, em que se dispensa a pro­va de culpa do proprietário e do construtor para que respondam ambos in solidum pelos danos da construção ou da demolição da obra ruinosa.

41. “Responsabilidade civil decorrente da ruína de edifícios”, Revista de Di­reito da Prefeitura do Rio de Janeiro, 1/34.

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O dispositivo em exame, a nosso ver, contém uma imposição de ordem pública visando a agravar, deliberadamente, a responsabilidade daqueles que descuram da segurança de seus edifícios e outras cons­truções que põem em risco a vizinhança e a coletividade em geral. Cumpre distinguir, entretanto, o dano causado pela ruína da obra do dano causado por ato do construtor ou de seus prepostos, como, p. ex., a queda de um andaime ou de uma ferramenta que atinja um transeun­te. Na primeira hipótese a responsabilidade é objetiva e exclusiva do proprietário, ex vi do art. 937 do Código Civil; na segunda, é do cons­trutor, respondendo o proprietário subsidiariamente, por ser o benefi­ciário da obra.

2.6.3 RESPONSABILIDADES DA ADMINISTRAÇÃO POR DANOS A VIZINHOS E TERCEIROS

A Administração Pública é Um vizinho de todos nós, mas um vizi­nho em posição especial, com poderes e deveres inerentes à sua condi­ção estatal, o que impõe a conciliação dos preceitos da responsabilida­de civil com as normas administrativas que regem suas atividades. O que não se admite é que o Poder Público, com suas obras, cause danos a alguém e se exima de indenizar. Quando a obra é executada direta­mente pela Administração Pública centralizada ou descentralizada, a responsabilidade civil fixa-se e se exaure na entidade que a realiza; quando, porém, a obra é confiada a construtor particular, já o proble­ma da composição de danos complica-se, pela presença de um agente estranho à Administração, mas a ela vinculado contratualmente para a execução do projeto. Daí a necessidade de se apreciar separadamente a posição da Administração como dona da obra e a situação do constru­tor particular como seu executor.

A obra pública é um fato administrativo, e, como tal, sujeito às regras específicas da Administração, quer quanto à sua localização e execução, quer quanto às implicações com os bens e direitos dos parti­culares. Pelos danos causados pela obra pública a vizinhos e terceiros responde imediata e diretamente a entidade administrativa que executa ou ordena a sua execução. É a regra geral inferida do art. 37, § 6Q, da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos atos lesivos de seus agentes. Diante do precei­to constitucional, a responsabilidade civil da Administração pelos da­nos da obra pública ao particular surge do só fa to lesivo da constru­ção,, sem necessidade de se comprovar culpa ou dolo de seus agentes, bastando que o lesado demonstre o nexo causai entre a obra e o dano.

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Essa é a dominante orientação da doutrina42 e da jurisprudência,43 cal­cada no preceito constitucional da responsabilidade objetiva das pes­soas administrativas e na justiça comutativa, que impõe se repartam os ônus entre todos aqueles que auferem os benefícios da Administração. É o princípio da “repartição dos encargos públicos, ou da igualdade dos indivíduos diante das cargas públicas”, que Caio Tácito assinala com tanta propriedade dentre as atuais tendências da responsabilidade civil do Estado.44

Até mesmo nas obras públicas empreitadas com empresas parti­culares prevalece a regra constitucional da responsabilidade objetiva da Administração pelo só fato da obra, porque, ainda aqui, o dano pro­vém de uma atividade administrativa ordenada pelo Poder Público no interesse da comunidade, colocando-se o executor da obra na posição de preposto da Administração, equiparável, portanto, aos seus agen­tes.45 Essa responsabilidade é inafastável da Administração e intrans­ferível ao construtor particular de obra pública, por resultante de man~ damento constitucional intransacionável, e, além disso, se liberada a Fazenda Pública, ficaria a vítima, em muitos casos, prejudicada em seu direito índenizatório, pela falta de recursos da empresa executora das construções lesivas.

Não se nega à Administração o direito regressivo de responsabili­zar o construtor que, culposamente, causar danos a vizinhos ou a ter­ceiros na execução da obra pública, mas tal responsabilização só pode ser feita depois de indenizado o particular lesado, nos precisos termos do art. 37, § 6Q, da Constituição Federal. Por esta disposição constitu­cional toma-se dispensável - e até mesmo vedado - o chamamento do construtor na ação indenizatória do particular contra a Administração, porque nesta ação não se discute culpa, e a responsabilização do cons­trutor só pode basear-se em execução culposa da obra. Há que distin­

42. Gastou Jèze, Derecho Administrativo, IV/408, trad., Depalma, 1950; R. Savatier, Traité de la Responsabilitê Civile, Paris, 1951, pp. 549 e ss.; José de Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, 11/191 e ss., Rio, 1944; Onofre Mendes Júnior, Natureza da Responsabilidade da Administração Pública, Belo Horizonte, 1951, pp. 142 e ss.; Rui Stoco, “Responsabilidade civil do Estado por obras que realiza”, RT 689/114.

43. STF, RDA 11/141,20/45,55/261, 97/177; TFR, RDA 42/253, 58/319; W 193/514, 220/502; TJSP, RDA 31/288, 40/337, 49/198, 63/168; RT 197/168, 202/ 163, 203/299, 211/189, 330/270, 382/138, 449/104.

44. “Tendências atuais sobre a responsabilidade civil do Estado”, RDA 55/262.

45. TJSP, RT 142/612, 229/130, 233/153, 236/95.

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guir, entretanto, o dano resultante do só fato da obra, imputável unica­mente à Administração, tal como o que advém da simples localização, destinação, porte, estrutura, materiais e outras imposições do projeto, dos que resultam dos trabalhos de livre iniciativa e condução técnica do em­preiteiro. Por estes responde o construtor, quando obrar com culpa; por aqueles responde a Administração, independentemente de culpa. Exem­plificando: se o sòfato da localização da obra pública ou de sua normal execução causa dano a vizinhos ou a terceiros, este dano é da exclusiva responsabilidade da Administração. Se, porém, o dano é produzido pela imperícia, imprudência ou negligência do construtor na execução do pro­jeto, a responsabilidade originária é da Administração, como dona da obra, mas pode ela haver, regressivamente, do executor culpado tudo quanto pagou à vítima. Se, numa terceira hipótese, o dano é causado a vizinhos ou terceiros por ato culposo do construtor, relacionado com a obra, mas não constante do projeto, nem imposto pelo contrato - como o transporte e o depósito de materiais, ou a instalação do canteiro de obras, a vedação ou a sinalização do local - , a responsabilidade é ori- ginariamente do construtor e subsidiariamente da Administração, de­vendo o lesado dirigir-se diretamente contra aquele ou em conjunto com a Administração. Mas, nestes casos, terá de demonstrar a culpa in diligendo do construtor e a culpa in eligendo da Administração, para obter a indenização de um ou de outro, ou de ambos solidariamente.

Tendo em vista, precisamente, a possibilidade de danos a vizinhos e a terceiros, o Decreto-lei 73, de 21.11.1966, ao dispor sobre o Siste­ma Nacional de Seguros Privados, tomou obrigatório o seguro de res­ponsabilidade civil do construtor de imóveis em zonas urbanas por danos a pessoas ou coisas (art. 20, “c”, e Decreto regulamentar 61.867, de 7.12.1967, art. 11). Essa obrigação incumbe igualmente aos órgãos da Administração direta ou indireta que executem obras públicas nas condições acima referidas. Tal seguro não exime o segurado nem a Ad­ministração da obrigação de indenizar integralmente os prejuízos da vítima, ainda que excedentes do mínimo legal do seguro.

A composição dos danos segue as regras comuns das indeniza­ções civis (Código Civil, arts. 402 e ss.), abrangendo o que o lesado efetivamente perdeu (dano emergente) e o que razoavelmente deixou de ganhar (lucro cessante) em razão do evento lesivo, sendo de acres­centar à condenação os juros legais e a correção monetária, para a per­feita restitutio in integrum do patrimônio da vítima.46

46. Sobre responsabilidade civil da Administração, v., do Autor, Direito Ad­ministrativo Brasileiro, 30a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2005.

RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO 323

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Freqüentemente a Administração inclui em contrato de empreitada de obra pública cláusula excludente de sua responsabilidade por danos a vizinhos e terceiros, pretendendo, com isso, liberar-se desses encar­gos. Tal cláusula não tem qualquer efeito liberatório perante as víti­mas, porque essa responsabilidade é de ordem pública , inferida da Constituição (art. 37, § 6Ü), para garantia dos lesados, sendo, por isso, intransacionável pelos contratantes. A Administração pode reforçar essa responsabilidade com a solidariedade do empreiteiro, mas não pode reduzi-la ou excluir-se da obrigação de indenizar o dano causado por suas obras.

2.7 RESPONSABILIDADE ÉTICO-PROFISSIONAL

Além das responsabilidades contratuais e legais, a construção em geral pode gerar responsabilidade ético-profissional para o autor do projeto, para o seu executor, para os fiscais e consultores. Essa respon­sabilidade deriva de imperativos morais, de preceitos regedores do exercício da profissão e do respeito mútuo entre profissionais e suas empresas. Os deveres ético-profissionais não são estranhos às relações jurídicas e, muitas vezes, consorciam-se para fundamentar responsabi­lidades, o que levou Georges Ripert a assinalar a influência da regra moral nas obrigações civis.47

Para Alcides Greca: “La responsabilidad ético-profesional emer­ge de las normas que debe observar todo profesional en sus relaciones con los clientes”.48 Acrescentamos que não só no trato com os clientes, mas também na conduta com os colegas, impõe-se a observância de preceitos ético-profissionais, expressos no Código de Ética e implíci­tos nas normas reguladoras do exercício da profissão.

O desrespeito aos preceitos éticos consignados no respectivo Có­digo de Ética Profissional (Resolução CONFEA-1002, de 26.11.2002) é punido com uma das sanções previstas no art. 72 da Lei 5.194/1966, ou seja, advertência reservada ou censura pública , aplicada origina- riamente ao infrator (pessoa física) pela Câmara Especializada do CREA, com recurso para o seu Plenário e deste para o CONFEA. Tais sanções independem de responsabilidade administrativa, civil ou penal que o mesmo ato ensejar. Visam a proteger unicamente os di­reitos autorais e a conduta profissional e só incidem sobre faltas do­

47. A Regra Moral nas Obrigações Civis, trad. de Osório de Oiiveira, São Paulo, Saraiva, 1937, pp. 203 e ss.

48. El Régimen Legal de la Constmcción, Buenos Aires, 1956, p. 136.

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losas, não punindo qualquer ação culposa, como demonstramos adian­te (cap. 10, item 3.6).

A propriedade imaterial é protegida pela Constituição Federal (art. 5Q, XXVII e XXVIII) e, anteriormente, era regulada pelo Código Civil e outras leis extravagantes. A Lei 9.610, de 19.2.1998, consolidou a legislação a respeito da matéria e revogou expressamente os dispositi­vos do Código Civil, bem como vários outros diplomas posteriores (art. 115). Nos termos do art. 7Q dessa Lei, são obras intelectuais protegi­das as criações do espírito, expressas por qualquer meio, entre as quais as obras de desenho (inciso VIII) e os projetos, esboços e obras plásti­cas concernentes à engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência (inciso X). A proteção aos direitos do autor inde­pende de registro e abrange tanto aspectos morais como patrimoniais. Quanto aos primeiros, cabe ao autor reivindicar a autoria da obra; as­segurar a sua integridade, opondo-se a quaisquer alterações; e modifi­car a obra antes ou depois de utilizada (art. 24). Quanto aos segundos, abrange a utilização, a fruição e a disposição da obra (art. 28)

As faltas éticas podem assumir as mais variadas e disfarçadas for­mas, merecendo destaque o plágio de projeto, a usurpação de projeto e a alteração de projeto, que podem tipificar o crime de violação de direito autoral (Código Penal, art. 184), como tudo veremos a seguir.

O plágio de projeto é a cópia da concepção de outro profissional, com modificações de detalhe que apenas visam a dissimular a repro­dução. A reprodução por outrem, ainda que com modificações, consti­tui plágio ou contrafação ofensiva do direito autoral, e dará ensejo à responsabilização civil do plagiador. Nem mesmo com o intuito de aprimorar o projeto poderá outro profissional modificá-lo, sem autori­zação do autor, para subseqüente execução, porque, ainda assim, es­barrará na proibição da lei civil, que veda a reprodução de obra a pre­texto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la (Lei 9.610/1998, art. 33), e na vedação do art. 18 da Lei 5.194, de 24.2.1966.

A usurpação de projeto é também falta ético-profissional ensejado- ra de responsabilização civil, dadas as conseqüências lesivas ao direito e patrimônio do autor. No plágio, o projeto é mantido na sua concepção, mas alterado em detalhes; na usurpação, é reproduzido na íntegra, sem autorização do autor. Em ambos os casos o profissional comete falta ética e infringe o direito autoral do colega, pela reprodução desautori­zada de sua concepção originária.49

49. A primeira decisão judicial conhecida sobre direito autoral de projeto é a referente à reprodução desautorizada do monumento do Cristo Redentor, do Cor-

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A alteração do projeto é falta ético-profissional, caracterizada pela introdução de modificações na concepção original sem prévia aquies­cência do seu autor. Diversamente do plágio e da usurpação, que atin­gem os direitos patrimoniais do autor do projeto, a alteração atenta con­tra os seus direitos morais, pelo quê o libera da responsabilidade pela imperfeição ou insegurança da obra, a qual se transfere, solidariamente, ao proprietário e aos profissionais que fizeram ou aconselharam as mo­dificações. Além disso, cabe ao autor, com base nos arts. 24, IV, da Lei 9.610, de 19.12.1998, e 18 da Lei 5.194/1966, impedir as modificações prejudiciais ao projeto ou à sua reputação profissional. Se elas já estive­rem executadas, poderá retirar o seu nome do projeto e haver as indeni­zações cabíveis dos responsáveis pelas alterações. Mas a mesma Lei 9.610/1998 atenuou o rigor dessas disposições quanto às construções, ao permitir que o proprietário da obra, sem alterar materialmente o projeto, lhe introduza modificações, durante a execução ou depois de concluída, à revelia do autor do projeto, cabendo a este apenas repudiar a paterni­dade da concepção, ficando o proprietário impedido de, em proveito pró­prio, dar a obra como concebida por quem a rejeitou (art. 26).

O crime de violação de direito autoral está definido no Código Penal nestes termos (conforme alteração introduzida pela Lei 10.695, de 1.7.2003):

covado. Na primeira instância, o autor do projeto obteve a apreensão dos exempla­res reproduzidos à sua revelia, mas, em recurso, a 4a Câmara do TJSP reformou a sentença, sob o fundamento de que não é vedada a reprodução de desenhos de um monumento público (cf. acórdão in RT 82/56). Data venia, discordamos do enten­der da superior instância, porque a publicidade do monumento não retira a prote­ção dos direitos do autor do projeto. Público tornou-se o monumento do Cristo Redentor, do Corcovado, mas nem por isso o seu projeto caiu no domínio público, de modo a poder ser reproduzido sem autorização do autor. A decisão do Tribunal de São Paulo confundiu a publicidade material do monumento com a exclusivida­de de sua concepção artística. Aquela é do domínio público; esta é privativa do autor e só cedida para aquele monumento, razão pela qual não podia ser utilizada em outro sem autorização do titular do direito autoral. Outro caso interessante é relatado por Paulo Grandiski: arquiteto contratou em conjunto a elaboração do pro­jeto e a administração da obra, no valor de 15% do seu custo. O proprietário, ale­gando que o orçamento da construção era muito elevado, dispensou os seus servi­ços e contratou outro profissional, que fez pequenas alterações no projeto, sem des­caracterizá-lo, Proposta ação para recebimento de honorários, foi julgada proce­dente com base na prova pericial que comprovou ser o projeto executado simples adaptação do original. Além disso, mesmo que o projeto executado fosse diferente, o autor teria direito à remuneração, pois já havia executado 90% dos serviços con­tratados (Curso Básico de Perícias e Anomalias das Edificações, 26a ed., São Pau­lo, 1999, publicação do IBAPE/SP). No mesmo sentido de que o autor de projeto tem direito à indenização, v. STF, RT 605/194 e 609/214.

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“Art. 184. Violar direito de autor e os que lhe são conexos:“Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.“§ l c. Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com

intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autoriza­ção expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente:

“Pena ~ reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.“ § 2a. Na mesma pena do § 1° incorre quem, com o intuito de lu­

cro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente.

“§ 3Q. Se a violação consistir no oferecimento ao público, median­te cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que per­mita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização ex­pressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente:

“Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.“§ 4fl. O disposto nos §§ Ia, 2a e 3C não se aplica quando se tratar

de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.”

O autor do projeto ou dos trabalhos ou estudos referidos tem ex­clusividade na sua concepção, divulgação e utilização, não sendo lícito a ninguém alterá-los, divulgá-los, utilizá-los ou reproduzi-los sem au­torização do autor, como, também, mantê-los em seu poder para os fins de exploração. Toda essa conduta constitui crime de violação de direi­to autoral, concernente ao exercício da Engenharia, da Arquitetura e da Agronomia, inclusive quando se tratar de obra pública. Daí por que a Lei 8.666, de 21.6.1993, exige a prévia cessão dos direitos do autor do projeto à Administração para a sua regular utilização (art. 111).

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328 DIREITO DE CONSTRUIR

A sanção penal em exame pode ~ e deve - ser acompanhada das sanções civis e administrativas previstas na lei de proteção ao direito autoral (Lei 9.610/1998, tít. VII), visto que tais responsabilidades são independentes e se impõem em processos autônomos.

2.8 RESPONSABILIDADES TRABALHISTA E PREV1DENCIÁR1A

Responsabilidades trabalhista e previdenciária são todas aquelas que resultam das relações de trabalho entre o empregador - pessoa fí­sica ou jurídica - e seus empregados, unicamente pessoas físicas. Nes­sas responsabilidades incluem-se os salários e adicionais, os demais direitos do trabalhador (férias, aviso prévio, indenizações etc.), como, também, os encargos acidentários e previdenciários. Todas essas res­ponsabilidades são atribuídas legalmente ao construtor, que é obriga­do a inscrevê-las na carteira profissional de seus empregados (Lei 2.959, de 17.11.1956) e a satisfazê-las no devido tempo.

A Consolidação das Leis do Trabalho considera “empregador a empresa individual ou coletiva que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços” (art. 1Q). Perante a legislação trabalhista, portanto, o engenheiro, o ar­quiteto ou o agrônomo, como a firma de Engenharia, de Arquitetura ou de Agronomia, que mantêm empregados para o exercício da profis­são ou para execução de obra particular ou pública, são empresa, com todos os encargos decorrentes dessa situação legal.

Daí por que o contrato de construção não precisa especificar as responsabilidades trabalhistas da empresa construtora, que são sempre as da legislação pertinente, e por isso mesmo insuscetíveis de ser redu­zidas, excluídas ou transferidas a outrem. Como encargos de ordem pública, independem de cláusula contratual para sua efetivação.

Se, antes, o proprietário não era solidariamente responsável com o construtor pelos encargos salariais, acidentários e previdenciários dos empregados da obra, agora o é, por força do disposto nos arts. 30, VI, VII e VIII, e 33, § 4Q, da Lei 8.212, de 24.7.1991.

Além disso, a mesma lei torna obrigatória a apresentação da ma­trícula no INSS quando do pedido do alvará de construção (aprovação do projeto) e da certidão negativa de débito para averbação da constru­ção no Registro de Imóveis, ou o registro da venda da primeira unida­de construída no local.

Na posição de empresa construtora coloca-se a Administração Pú­blica quando executa suas obras diretamente por seus órgãos ou enti­

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dades e com seu pessoal, suportando todos os encargos e responsabili­dades que caberiam ao construtor particular. Quando, porém, contrata a construção com empresa habilitada a construir, mantém-se na situa­ção de simples dono da obra e só responde pelas obrigações que lhe são inerentes.

De acordo com a Lei 8.666, de 21.6.1993 (art. 71), na redação dada pela Lei 9.032, de 28.4.1995, à Administração não se transfere a responsabilidade pelos encargos trabalhistas do contratado; mas res­ponde ela solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciá- rios resultantes da execução do contrato, nos termos da Lei 8.212/1991, art. 31.

2.9 RESPONSABILIDADE POR FORNECIMENTOS

A responsabilidade pelo pagamento dos materiais fornecidos para a construção pode ser do construtor ou do dono da obra, ou de ambos, conforme a modalidade do contrato: por empreitada, por admi­nistração ou por tarefa.

Na construção por empreitada há que distinguir, ainda, a emprei­tada de lavor, em que o empreiteiro só concorre com seu trabalho, e a empreitada de materiais, em que o empreiteiro entra com o trabalho e a matéria-prima. Naquela, o empreiteiro não tem qualquer responsabi­lidade pelo fornecimento dos materiais; nesta, responde integralmente perante o fornecedor, por seu pagamento, e perante o proprietário, por sua qualidade e adequação à obra. Para que essa responsabilidade se fixe unicamente no empreiteiro é necessário que o contrato de emprei­tada seja firmado por escritura pública ou por instrumento particular devidamente transcrito no Registro de Títulos e Documentos, para pro­va e validade perante terceiros, consoante dispõe o art. 128, I, da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015, de 31.12.1973, com modificações posteriores). Isto porque o contrato particular, antes de levado a regis­tro, só produz efeitos entre as partes, sendo ato indiferente a terceiros, como é corrente na doutrina e tem sido proclamado pelos tribunais. Se o contrato de empreitada não foi registrado, subsiste a responsabili­dade conjunta e solidária do proprietário e do construtor pelos materiais adquiridos para a obra,31 uma vez que ambos são beneficiários da

50. STF, RF } 22/408; TJDF, RD 139/78.51. TJSP, RT 243/185, 249/177, 269/383, 278/586; TASP, RT 250/451, 274/

636, 290/358.

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330 DIREITO DE CONSTRUIR

construção e, nessa qualidade, devem suportar os encargos econômi­cos do empreendimento perante aqueles que concorrem para a sua exe­cução e valorização.

A responsabilidade conjunta do dono da obra e do seu executor decorre do princípio geral de Direito que veda o enriquecimento sem causa. Tal princípio, embora não expresso na legislação pátria, é paci­ficamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, como base da ação de locupletamento ilícito contra aqueles que auferem vanta­gens indevidas à custa do patrimônio alheio.52

Se, porém, o contrato de empreitada constar de escritura pública ou de instrumento particular regularmente registrado, presume-se le­galmente conhecido de todos aqueles que entretêm negócios com as partes, e, portanto, se sujeitam ao convencionado no ajuste, no que tan­ge ao pagamento dos materiais adquiridos para a obra. Desde que o fornecedor conhecia o contrato, ou tinha a possibilidade de conhecê- lo, em todas as suas cláusulas, só poderá haver o preço do material fornecido de quem está contratualmente obrigado a pagá-lo, já pelas condições da avença, já por ser o comprador responsável pela merca­doria adquirida.

Na construção por administração a responsabilidade pelos mate­riais fornecidos à obra é normalmente do proprietário que os adquire,33 visto que o construtor-administrador não assume, pelo contrato, os en­cargos econômicos do empreendimento. Limita-se a executar a obra, em conformidade com o projeto aprovado e com a técnica adequada, aplicando os materiais que lhe são entregues pelo dono da construção, embora por ele escolhidos ou indicados ao proprietário.2’4

Nessa modalidade de contrato de construção fica o construtor-ad- mínistrador liberado do pagamento do preço do material que haja sido adquirido pelo proprietário, uma vez que, se não participou da compra e venda da mercadoria, não responde pelos encargos econômicos do negócio. Permanecerá estranho à relação contratual que se estabeleceu

52. Agostinho Alvim, “Do enriquecimento sem causa”, RT 259/3.53. TJSP, RT 135/360; TASP, *7230/360.54. Não se confunda contrato de construção p o r administração com contrato

de fiscalização de construção, pois que aquele visa à execução material da obra e este à prestação de serviços profissionais consistentes na verificação técnica da exe­cução do projeto. O construtor por administração, em certos casos, como já vimos, responde pelo pagamento dos materiais adquiridos para a obra; o engenheiro ou o arquiteto-fiscal nenhuma responsabilidade têm pelo pagamento dos materiais em­pregados na construção.

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RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO 331

entre o proprietário da obra e seus fornecedores, sem se vincular às obrigações negociais resultantes do fornecimento. Se, ao revés, adqui­riu pessoalmente os materiais, e assinou notas, faturas ou duplicatas em nome próprio, solidariza-se com o proprietário pelo pagamento do preço das mercadorias destinadas à obra. Ainda aqui cabe a observa­ção feita para o contrato de empreitada quanto à necessidade do regis­tro, para validade perante terceiros.

Na ausência de publicidade ou registro do contrato de construção por administração - como no de empreitada - , subsiste a responsabili­dade conjunta e solidária do construtor e do proprietário pelos materiais aplicados na obra, por não se poder sujeitar o fornecedor às condições de um ajuste desconhecido e inoperante em relação a terceiros. Rece­bido o material na obra pelo construtor-administrador ou por seus pre- postos, surge a obrigação do pagamento do preço, por perfeita e acaba­da a compra e venda de efeitos móveis (Código Civil, art. 482). Não o pagando o proprietário, e não exibindo o construtor-administrador con­trato por escritura pública ou instrumento particular regularmente trans­crito no Registro Público, que o exima do pagamento do material, fi­cam ambos responsáveis pelo preço, como beneficiários da construção, que se valorizou com a coisa alheia. A razão de ser da responsabili­dade solidária é o benefício conjunto que ambos auferem da constru­ção, e o fundamento da ação de cobrança do fornecedor é o enriqueci­mento sem causa, decorrente da valorização do empreendimento com o emprego do material em débito.

Na construção por tarefa os materiais podem ficar a cargo do dono da obra ou do construtor-tarefeiro, e, conseqüentemente, a responsabi­lidade pelo seu fornecimento será daquele ou deste, conforme o ajusta­do. No que tange à qualidade e adequação dos materiais à obra, é de se repetir que o construtor-tarefeiro, como técnico e profissional da cons­trução, será sempre responsável pelo seu emprego, devendo recusá-los quando comprometam a perfeição ou a segurança da obra. E, se hou­ver insistência na sua aplicação, poderá pedir judicialmente a rescisão do contrato, por inadimplência do ajustado, com as perdas e danos que forem devidas.

Na prática têm-se generalizado, com graves inconvenientes para as partes, os contratos verbais de construção - por empreitada e por administração a despeito do vulto das obras e do valor das obriga­ções avençadas. Tais contratos, como é bem de ver, são inoponíveis a terceiros, e mesmo entre as partes se tomam muitas vezes inoperantes, pela incerteza das condições ajustadas. A falta de contrato escrito não

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pode, nunca, prejudicar os fornecedores, estranhos ao combinado en­tre o proprietário e o construtor. Os materiais entregues hão de ser pa­gos por um ou por ambos os interessados na construção, conforme a mo­dalidade contratual comprovada, e as conseqüências dela decorrentes.

2.10 RESPONSABILIDADE POR TRIBUTOS

A responsabilidade por tributos (impostos, taxas e contribuições) incidentes sobre a atividade da construção é, em princípio, do constru­tor, pessoa física ou jurídica, que executa a obra, e, subsidiariamente, do dono da obra.33 Se a execução é feita diretamente por órgão públi­co, sobre este recaem todos os encargos tributários.

O que pode haver é atenuação ou partilha dos encargos tributários entre o dono da obra e o construtor, por via contratual, como estímulo ou vantagem econômica para a execução da obra. Mas este ajuste não desonera a firma construtora, nem solidariza o proprietário perante o fisco ou autarquia interessada na arrecadação do contribuinte parafis- cal. Opera efeitos unicamente entre os contratantes.

O mais significativo dos tributos incidentes sobre a atividade dos engenheiros e arquitetos, assim como sobre a construção civil (nela in­cluída a obra pública), é o Imposto sobre Serviços (ISS).

Pela Lista de Serviços, estão abrangidas pelo ISS não só as ativi­dades da profissão liberal desses técnicos como, também, a atividade econômica ou empresarial da construção civil.36

Outra responsabilidade de natureza tributária a cargo do construtor é a contribuição para o Plano de Integração Social (PIS), instituído pela Lei Complementar 7, de 7.9.1970, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar 26, de 11.9.1975. O PIS é um Fundo de Parti­cipação constituído por recolhimentos das empresas na Caixa Econô­mica Federal.

Além desses tributos, os profissionais e firmas de construção civil ficam sujeitos, como as demais empresas, a todas as imposições fiscais e parafíscais incidentes sobre o estabelecimento, o material ou traba­lho empregado na obra, independentemente de qualquer cláusula contra­tual, porque tais responsabilidades decorrem da lei, e não do contrato.

55. TFR, Súmula 126.56. Cf. Bernardo Ribeiro de Moraes, Doutrina e Prática do Imposto sobre

Serviços, São Paulo, 1975, pp. 220 e ss.

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2.11 RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA

A construção civil, sendo uma atividade policiada pela Adminis­tração e pelos órgãos fiscaliza dores do exercício profissional da Enge­nharia e da Arquitetura, sujeita os que a exercem a encargos e respon­sabilidades de natureza administrativa. Nesta responsabilidade podem incidir os profissionais e as firmas de projeto, consultoria ou construção que desatendam às exigências legais do Poder Público, ou às normas re- gulamentadoras dessa atividade, expedidas pelo Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura (CONFEA), ou pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA) competente.

A responsabilidade administrativa é autônoma e inconfundível com as demais, visto que resulta objetivamente da violação de preceito legal ou regulamentar da atividade profissional ou de exigência formal para o projeto ou para a realização da obra. Enquanto a responsabilidade civil provém de lesão ao patrimônio de outrem, a responsabilidade ad­ministrativa origina-se simplesmente de atentado ao interesse público, sempre presumido nas imposições da Administração ao administrado.

O ilícito administrativo, se é bem distinto do ilícito civil, tende a confundir-se com o ilícito penal, mas pode e deve ser diferençado des­te, porque a infração penal ofende diretamente a uma vítima e indireta­mente à ordem pública, ao passo que a infração administrativa atinge diretamente a Administração e reflexamente a coletividade. Em última análise, os dois ilícitos - o administrativo e o penal - lesam a socieda­de, mas por vias e intensidade diversas, que reclamam sanções distin­tas, como ocorre nos casos em que a gravidade da infração administra­tiva tipifica também crime ou contravenção penal, sujeitando o autor a ambas as punições.

As sanções administrativas normalmente escalonam-se em multa, embargo de obra, suspensão e interdição de atividade, e, não tendo natureza penal, como não têm, podem recair tanto sobre a pessoa física do profissional da Engenharia, da Arquitetura ou da Agronomia, como sobre a pessoa jurídica de sua firma, sendo suportadas quer pelo autor da infração, quer por seus sucessores na obra ou na empresa, mas não se transmitem ao proprietário nem à Administração contratante, desde que o contrato tenha sido celebrado com firma ou profissional legal­mente habilitado.

O art. 56 do Código do Consumidor estabelece também sanções administrativas, que serão aplicadas sem prejuízo das sanções de natu­reza civil, penal e das definidas em normas específicas, pela autorida­

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de administrativa, no âmbito da respectiva atribuição, sanções, essas, que poderão ser aplicadas cumulativamente, inclusive através de medi­da cautelar antecedente ou incidente de procedimento administrativo (parágrafo único do art. 56).

Os profissionais da Engenharia, Arquitetura e da Agronomia, bem assim as firmas construtoras, estão sujeitos à fiscalização administrati­va do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura - CREA no que concerne ao exercício profissional e à atividade técnico-econômica da construção civil, sempre com recurso para o Conselho Federal de En­genharia e Arquitetura - CONFEA, na forma da legislação pertinente. Justificam-se plenamente o controle do exercício profissional e a fisca­lização das empresas que se dedicam à construção civil, por se tratar de profissões legalmente regulamentadas e de atividade comercial co­nexa e dependente dos conhecimentos científicos dos profissionais ha­bilitados, que necessariamente são encarregados da parte técnica da construção. Daí por que sustentamos que a construção civil é, moder­namente, não só uma atividade econômica, mas também uma atividade técnico-econômica, dadas as suas exigências técnicas, ao lado do in­vestimento financeiro, com intuito de lucro, que caracteriza essa nova indústria (v. cap. 10).

Da inscrição dos profissionais e das firmas construtoras no CREA surgem responsabilidades administrativas perante esse órgão fiscaliza- dor, e tais são as referentes ao pagamento de anuidades, à colocação de placa nas obras que projetam ou executam, ao acobertamento de traba­lhos de pessoas inabilitadas, à conduta técnica e ético-profissional no desempenho de suas atribuições e atividades. A infringência às obriga­ções legais e regulamentares dá lugar à aplicação de sanções adminis­trativas, consistentes em multa, suspensão temporária do exercício profissional ou cancelamento definitivo do registro e, por faltas éticas, advertência reservada ou censura pública (Lei 5.194/1966, art. 71).

As legislações federal, estadual e municipal impõem, concorren- temente, certos requisitos para as construções e cominam penalidades administrativas para os que os desatendem. Desde a apresentação do projeto até sua final execução, fica o construtor responsável perante as autoridades públicas competentes pela adequação da obra às exigências sanitárias e de segurança, e até mesmo de estética e funcionalidade (v. caps. 3, 4 e 6).

Enquanto os trabalhos da construção estiverem em andamento, entende-se que toda responsabilidade pela conformidade da obra às imposições de ordem pública é do construtor, que assume os encargos

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técnicos e os ônus decorrentes de seus atos de ofício. Na prática, as repartições públicas costumam responsabilizar, erroneamente, o pro­prietário pelas infrações administrativas da construção, quando essa responsabilidade é, a nosso ver, tipicamente do construtor habilitado, que, como profissional ou empresa, tem a obrigação legal e ético-pro- físsional de projetar e conduzir a obra de acordo com os preceitos téc­nicos e legais pertinentes. Não será o proprietário leigo o competente para nortear a conduta do técnico, nem lhe incumbe confrontar o pro­jeto com as exigências técnicas e legais da construção. Tal obrigação é exclusiva do construtor, e, por este motivo, o seu descumprimento não pode gerar encargos para o proprietário leigo. Nem é por outra razão que as repartições públicas só aceitam projetos subscritos por profis­sionais habilitados e só permitem a sua execução por estes mesmos profissionais atuando como empresas, ou por sociedades legalmente autorizadas a construir, sempre sob a responsabilidade técnica de pro­fissional habilitado.

Nesta ordem de considerações, concluímos que a indevida res­ponsabilização do proprietário pelo Poder Público não exonera o profis­sional ou a empresa construtora dos encargos da infração administrati­va decorrente da construção, até o ténnino da obra. Se a sanção for de natureza pecuniária (multa), satisfeita esta pelo proprietário, terá ele ação regressiva contra o construtor que lhe deu causa, por execução irregular da obra, ainda que o defeito seja do projeto e tenha sido apro­vado pela Prefeitura. Se a sanção contra a construção irregular for de interdição, demolição ou adaptação da obra, incumbirá ao construtor realizar à sua custa os trabalhos ordenados pelo Poder Público e com­por os prejuízos que eventualmente tenha dado ao proprietário, por ine- xação técnica no desempenho de suas atribuições (v., neste capítulo, os itens 2.6 e 2.7).

Quanto ao autor do projeto, sua responsabilidade administrativa perante o Poder Público cessa com a aprovação de seu trabalho. Muito comum é a imposição de modificações do projeto originário, para o seu perfeito ajustamento às exigências técnicas e legais da obra proje­tada. Em tal caso, o projetista tem a obrigação de realizar as adapta­ções necessárias à aprovação, sem o quê não se considera concluído o projeto e findos os seus encargos profissionais perante o cliente. Nem se admite, do ponto de vista ético, que outro profissional passe a alte­rar projeto alheio, sem a aquiescência do autor.

Quanto ao fiscal e ao consultor da obra, não nos parece que te­nham qualquer responsabilidade administrativa perante o Poder Públi­

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co, uma vez que só assumem obrigações com quem os contrata para supervisionar a construção. Não há, assim, vinculação de suas atribui­ções com a Administração Pública, o que os exonera de encargos ad­ministrativos, subsistindo apenas os contratuais e ético-profissionais.

2.12 RESPONSABILIDADE PENAL POR DESABAMENTO

Responsabilidade penal é toda aquela que resulta do cometimento de infração definida em lei como crime ou contravenção, sujeitando o autor e o co-autor - unicamente pessoas físicas - a sanções de natureza corporal (reclusão, detenção, prisão simples), pecuniária (multa) ou res­tritiva de direito.

Para o crime exige-se dolo ou culpa; para a contravenção, basta a voluntariedade do ato injurídico definido como tal. Dolo é a intenção de ofender a vítima ou de assumir o risco da ofensa; culpa é simples­mente a falta de prudência, de atenção, de perícia, causadora da infra­ção. Doloso é o crime intencional; culposo é o crime não desejado, mas previsível (Código Penal, art. 18).

A responsabilidade penal é personalíssima, e, por essa razão, não se transmite aos sucessores do infrator, diversamente do que ocorre com as sanções civis e as administrativas. Outra característica da res­ponsabilidade penal é a de que só atinge os imputáveis, isto é, as pessoas físicas dotadas de senso ético, capazes de entender o caráter criminoso do fato e de se conduzirem de acordo com esse entendimento. Por este motivo são insuscetíveis de responsabilização penal os loucos de todo gênero, os menores de 18 anos (Código Penal, arts. 26 e 27) e as pes­soas jurídicas. Em infração penal respondem pelo mesmo fato e ficam sujeitos à mesma pena tanto os autores como os co-autores, conside- rando-se autor o agente principal e co-autor todo aquele que, de qual­quer modo, concorre para o crime (Código Penal, art. 29).

A responsabilidade penal é independente da civil (Código Civil, art. 935), mas de toda condenação criminal resulta a obrigação de in­denizar o dano causado pelo infrator (Código Penal, art. 9 1 ,1; Código do Processo Penal, art. 63). Isto porque a responsabilidade civil é um minus em relação à penal. Onde houver responsabilidade penal haverá, necessariamente, responsabilidade civil, porque aquela já contém esta, mas pode haver ilícito civil sem ilícito penal. A responsabilidade penal decorre de uma exigência de ordem pública e é imposta pelo poder pu­nitivo do Estado, com a tríplice finalidade intimidativa, retributiva e de defesa social, diversamente da responsabilidade civil, que é um encar­

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go de ordem privada, visando tão-somente à reparação patrimonial do lesado.^7

Também não se confunde a responsabilidade penal com a admi­nistrativa. Aquela resulta de crime ou contravenção; esta, de simples descumprimento de exigências do Poder Público para a conduta do ad­ministrado perante a Administração. Nem mesmo se identifica a multa penal com a multa administrativa, embora ambas se expressem em di­nheiro, pois aquela, em certas circunstâncias, é conversível em detenção (Código Penal, art. 51), e esta não o é nunca. O que pode haver é cumu- lação da responsabilidade penal com a administrativa e com a civil; mas cada uma independe da outra e é apurável em processo autônomo.

No que concerne a infrações penais decorrentes da obra particular ou pública, nossa legislação contempla um crime - o de desabamento ou desmoronamento — e duas contravenções - a de desabamento e a de perigo de desabamento, como veremos a seguir.

2.12.1 CRIME DE DESABAMENTO

O Código Penal prevê duas modalidades de crimes de desaba­mento ou desmoronamento — dolosa e culposa definindo-as nestes termos:

“Art. 256. Causar desabamento ou desmoronamento, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

“Parágrafo único. Se o crime é culposo: Pena - detenção de seis meses a um ano”.

Para efeitos penais, desabamento e desmoronamento equivalem- se, embora, no rigor técnico, sejam fatos diversos: desabamento é a queda de construção por desequilíbrio ou ruptura dos elementos de sus­tentação; desmoronamento é a destruição de obra da Natureza, ou de realização humana, por desagregação ou deformação de suas estrutu­ras, como ocorre nos morros e aterros que se esboroam.

A modalidade dolosa do crime de desabamento ou desmorona­mento é punida com reclusão e multa cumuladas, dada a gravidade da infração. Causar, dolosamente, desabamento ou desmoronamento é propiciar, por ação ou omissão intencional, a queda de construção ou

57. Vicente de Paulo Vicente de Azevedo, Crime ~ Dano - Reparação, São Paulo, 1943, p. 250; A. L. Câmara Leal, Dos Efeitos Civis do Julgamento Crimi­nal, São Paulo, 1930, p. 172.

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de partes do solo, expondo a perigo direto a vida, a integridade física ou o patrimônio de alguém. Neste crime incorrem os que executam ou ordenam demolições por meios violentos (v.g., com dinamite, solapa- mento de alicerces etc.), ou que, realizando trabalhos em outra obra, provocam o desabamento de construção vizinha, em razão de abalo, recalques, infiltrações ou escavações. No primeiro caso, o agente quis o resultado lesivo (dolo direto); no segundo, assumiu o risco de produ­zi-lo (dolo eventual).

Convém assinalar que a demolição em si não é crime, nem pode­ria sê-lo, uma vez que se trata de atividade lícita e permitida a todo proprietário, no uso regular do seu direito de construir e destruir as obras que lhe aprouver, desde que o faça com observância das normas técnicas e regulamentares pertinentes. Modernamente adota-se a técni­ca da implosão,58 ou seja, da destruição de edifícios mediante explo­sões combinadas de seus elementos de sustentação, de modo a fazer com que a estrutura destruída convirja para o centro e caía sobre si mesma e que as partes destacadas não ultrapassem uma determinada área. Assim, a implosão não caracteriza o crime de desabamento do art. 256, nem o de explosão, definido no art. 251 do Código Penal, por­que não é antijurídica. Todavia, na implosão (como em qualquer mo­dalidade de demolição) há sempre o risco de vida ou de dano, que cum­pre ser evitado. Se, por culpa de quem a projetou ou realizou, ocorrer morte ou lesão corporal de alguém, o agente responderá por esses cri­mes; se houver apenas dano material à propriedade alheia, não haverá crime, por ausência de dolo, mas o executor e o dono da obra implodi- da estarão sujeitos à responsabilização civil (indenização).

A modalidade culposa do crime de desabamento ou desmorona­mento, prevista no parágrafo único do art. 256 do Código Penal, é pu­nida simplesmente com detenção. A culpa pode revestir as mais varia­das formas de imprudência, negligência ou imperícia e se situar em fa­lhas na execução da obra, ou em erros do projeto. Em qualquer caso, porém, o causador do fato lesivo responde por suas conseqüências, des­de que se estabeleça a relação de causa e efeito entre a ação ou omis­são culposa e o desabamento ou desmoronamento?9

58. O termo implosão é usado em Astronomia para indicar o fenômeno de concentração das estrelas que se reduzem de tamanho sem perder matéria, e em Física significa a concentração de ondas de choque num determinado ponto no es­paço. Daí, passou à contemporânea engenharia de demolições com o estranho e paradoxal sentido de “explosão para dentro”.

59. STF, RT 612/419.

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A responsabilidade pelo crime culposo de desabamento ou des­moronamento é, em princípio, dos profissionais habilitados, que elabo­raram o projeto ou se incumbiram de sua execução, não alcançando, em regra, o proprietário, nem os encarregados, mestres de obra e ope­rários que colaboraram na construção. E sobejam razões para essa orien­tação, uma vez que a construção civil moderna é atividade acentuada- mente técnica, que exige conhecimentos científicos fora do alcance dos leigos. Para que artífices e operários respondam por autoria ou co-au- toría no desabamento ou desmoronamento da obra impõe-se demons­trar que agiram com culpa na execução dos trabalhos a seu cargo, ou que descumpriram ordens do profissional que a conduzia. Quanto ao fiscal da obra - engenheiro ou arquiteto por ser um profissional do mesmo nível do encarregado da construção, responde penalmente pelo desabamento ou desmoronamento, em co-autoria com o construtor, uma vez que a causa do evento criminoso passou pelo crivo de sua fiscalização.

Cumpre esclarecer que basta a existência de perigo efetivo a pes­soas ou bens para caracterizar o crime de desabamento ou desmorona­mento, doloso ou culposo. Se, em razão do fato, resultam morte ou le­sões corporais graves a alguém, o crime é qualificado pelo resultado, nos termos do art. 258 do Código Penal. Assim, se o desabamento ou desmoronamento foi doloso, a pena de reclusão é aumentada da meta­de, se houve lesões corporais graves, ou aplicada em dobro, se ocorreu morte. Tratando-se de desabamento ou desmoronamento culposo, a pena aumenta-se da metade, se houve lesão corporal (leve ou grave), e, se do fato resultou morte, a pena é a do homicídio culposo aumenta­da de um terço. No caso de desabamento ou desmoronamento doloso, se resultou somente lesão leve em alguém, o responsável será punido com a pena de reclusão prevista no art. 256, aumentada de um sexto até a metade, por se tratar de concurso formal de crimes, previsto no art. 7Q do Código Penal.

Situação penal diversa é a do homicídio culposo ou lesão culposa decorrente de queda de material ou ferramentas da construção. Nessa hipótese, a responsabilidade é do artífice ou operário que deu causa ao evento, e o construtor só responderá por co-autoria se se provar que concorreu com culpa na condução da obra, de modo a propiciar o acidente. Essas distinções são fundamentais para a apuração da res­ponsabilidade penal, que é personalíssima e intransferível a terceiros, só alcançando o autor e o co-autor, ou co-autores, do fato punível, di­versamente da responsabilidade civil (para a reparação do dano), que

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se transmite do preposto ao preponente e, em certos casos, do constru­tor ao proprietário e respectivos sucessores.

2.12.2 CONTRAVENÇÃO DE DESABAMENTO

A Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688, de 3.10.1941) prevê duas modalidades de infrações, apenadas com multa, relaciona­das com a construção: a confravenção de desabamento e a contraven­ção de perigo de desabamento.

Vejamos, separadamente, as duas figuras contravencionais. A pri­meira está assim definida: “Art. 29. Provocar o desabamento de cons­trução, ou, por erro no projeto ou na execução, dar-lhe causa, se o fato não constitui crime contra a incolumidade pública”.

Essa contravenção constitui um minus em relação ao crime de de­sabamento, dele se distinguindo porque, para o crime, exige-se que do fato tenha resultado perigo efetivo para a incolumidade de pessoas ou bens, ao passo que, para a contravenção, basta a possibilidade de peri­go. Exemplificando: se, numa rua movimentada, alguém provoca de­sabamento incontrolado, cometerá crime (Código Penal, art. 256); se, porém, provocar esse mesmo desabamento em horas ermas, incidirá apenas na contravenção (Lei das Contravenções Penais, art. 29). Isto porque, no primeiro caso, houve perigo concreto para as pessoas e veí­culos que transitavam pelo local; no segundo, não existiu perigo con­creto, mas perigo eventual, dado que havia sempre a possibilidade de que alguém passasse pelo local na ocasião.

Observe-se que, para a existência de contravenção, é inexigível a comprovação de dolo ou culpa, sendo suficiente a voluntariedade da ação ou omissão que provocou o evento delituoso, nos termos do art. 3Ü da Lei das Contravenções Penais. A voluntariedade é sempre presu­mida, cabendo, portanto, ao agente provar que o ato de que resultou o desabamento foi involuntário. Todavia, no dispositivo em exame (art.29 da Lei das Contravenções Penais) prevê-se também modalidade cul­posa de contravenção de desabamento, ou seja, a ocasionada por erro do projeto ou da execução, caso em que o autor do projeto ou o encar­regado da construção só responderá penalmente se se provar que agiu com imprudência, negligência ou imperícia.

O termo construção foi empregado no sentido amplo, abrangendo qualquer realização material e intencional do homem para adaptar a Natureza às suas conveniências, quer em andamento, quer acabada. Assim, comete a contravenção de desabamento quem provoca a que­

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da, total ou parcial, de construção ou obra tanto em fase de realização como já concluída. O legislador usou o termo construção apenas para diferençar a obra humana da natural, tanto que não se referiu a desmo­ronamento, como o fez na tipificação do crime previsto no art. 256 do Código Penal, que estudamos no tópico anterior. Por isso mesmo, o derruimento de um outeiro, p. ex., desde que não tenha ocasionado pe­rigo efetivo à incolumidade de pessoas ou bens (caso em que configu­raria crime), é penalmente irrelevante.

2.12.3 CONTRAVENÇÃO DE PERIGO DE DESABAMENTO

Além da contravenção de desabamento, que comentamos no tópico precedente, a mesma lei define a contravenção de perigo de desaba­mento, nestes termos: “Art. 30. Omitir alguém a providência reclamada pelo estado ruinoso de construção que lhe pertence ou cuja conserva­ção lhe incumbe”.

Nesta hipótese, a infração contravencional configura-se pela só omissão das providências - reparos ou demolição - exigidas pelo esta­do ruinoso da obra, que se presume sempre perigoso, pela potencial possibilidade de desabamento ou desmoronamento.

Os juristas, baldadamente, têm procurado no Direito o conceito de ruína e de estado ruinoso de construção, quando a sua definição compete ao estudo da Mecânica das Estruturas, e é conhecida nos domí­nios da técnica das construções. “Verifica-se a ruína de uma estrutura- explica o Prof. Telêmaco van Langendonck, da Escola Politécnica de São Paulo - quando se dá a ruptura de um de seus elementos ou quando estes se deformam além de um certo limite compatível com a finalidade da estrutura. Também se pode atingir aquela ruína quando a solicitação da estrutura for de tal intensidade qué à sua forma primitiva deixe de corresponder um equilíbrio estável, o qual passa a ser instá­vel, dando-se a flambagem da estrutura ou de seus elementos”.60

O problema está em se comprovar o estado ruinoso da constru­ção, segundo o conceito técnico, e em se determinar as providências necessárias a evitar o desabamento, porque, se este vier a ocorrer, a infração será outra (Código Penal, art. 256, ou Lei das Contravenções Penais, art. 29). Para a verificação da ruína e indicação das providências convenientes, é mister se faça uma vistoria, administrativa ou judicial,

60. Curso de Mecânica das Estruturas: Resistência dos Materiais - Tensões, São Paulo, 1956, p. 120.

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sem o quê tudo ficará em conjecturas sobre a possibilidade do desaba­mento da obra arruinada. Só após essas providências e persistindo a omissão do proprietário ou do responsável pela conservação da obra é que caberá o processo contravencional, para a punição prevista no art.30 da Lei das Contravenções Penais.

Assinale-se, por derradeiro, que valem aqui as observações feitas no tópico anterior sobre a amplitude do conceito de construção e de obra, razão pela qual não podemos concordar com decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de que a norma em exame só abrange prédio que está sendo ediftcado.61 Data venia, a contravenção tanto atinge a construção em andamento quanto a obra concluída, desde que numa ou noutra se caracterize o estado ruinoso a que se refere a lei.

2.13 RESPONSABILIDADE POR CONSTRUÇÃO CLANDESTINA

Já vimos em tópico especial, ao qual remetemos o leitor (cap. 6, item 1.8), que as obras clandestinas ensejam sanções diversas - multa, embargo ou demolição - segundo a gravidade da infração. Resta veri­ficar quem responde pela obra clandestina e de que modo se efetivam as sanções contra os infratores.

A construção clandestina, assim considerada a obra realizada sem licença, é uma atividade ilícita, por contrária à norma edilícia que con­diciona a edificação à licença prévia da Prefeitura. Quem a executa sem projeto regularmente aprovado, ou dele se afasta na execução dos tra­balhos, sujeita-se à sanção administrativa correspondente. Se dessa ati­vidade ilegal decorrem prejuízos patrimoniais para o Poder Público ou para o particular vizinho, haverá lugar para a responsabilização civil do agente do dano, com todos os consectários do ato ilícito.62

Pelas obras clandestinas responde, em regra, o proprietário, mas com ele pode solidarizar-se o construtor que se prestar à execução. Essa solidariedade deflui do princípio geral de Direito que vincula à falta administrativa, à infração penal ou à ilicitude civil todos os que dela participam voluntariamente.

O proprietário responde também pelas obras clandestinas feitas pelo inquilino63 e até mesmo por intrusos,64 uma vez que lhe incumbe,

61. TJSP, RF 139/424.62. TJSP, RT 190/334, 192/234 e 706, 194/741 e 745, 249/457; TASP, RT

219/469.63. TJSP, RT 231/296; TASP, RT 200/505.64. TASP, R T 209/363, 236/357, 237/555.

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como dono, velar pelo prédio locado, desocupado ou baldio. A omis­são de vigilância sobre o locatário, ou sobre terceiros, que ostensiva ou sub-repticíamente passem a construir ou reformar a propriedade alheia, gera responsabilidade para o proprietário perante a Administração Pú­blica e perante vizinhos ou terceiros que venham a ser prejudicados pela atividade ilícita da obra clandestina, sempre passível de embargo pelo dono do prédio,'^ pelo Poder Público ou pelos vizinhos, se lesa­dos em seus direitos individuais ou interesses legítimos.

Quanto à construção clandestina realizada por promissário com­prador, entendemos que não atribui responsabilidade ao promitente vendedor, porque a posse do imóvel, neste caso, é transmitida ao futu­ro dono, acompanhada do direito de construir, por sua conta e risco, tanto assim que o Poder Público aceita projetos assinados pelo promis­sário comprador e instruídos com o contrato de compromisso. Se o pro­mitente vendedor despoja-se do direito de construir e o traspassa legal­mente ao promissário comprador, titular da posse direta do imóvel, não se compreende permaneça responsável pelas obras regulares ou irre­gulares que nele forem feitas em decorrência do compromisso.66

As sanções administrativas contra as obras clandestinas escalo­nam-se em multa, embargo e demolição. É aplicável a multa a todo aquele que realiza obra sem alvará de construção, quando exigido para os trabalhos, ainda que executados em plena conformidade com as nor­mas de edificação. Além da multa, ficará o infrator sujeito à regulari­zação do projeto e ao pagamento de todos os emolumentos do proces­so respectivo.

O embargo da obra clandestina pode ser feito por via administra­tiva ou judicial. A Administração Pública tem a faculdade de execução de seus próprios atos, sem recorrer ao Judiciário, máxime quando emanam do poder de polícia e visam a preservar os altos interesses da coletividade.67 Errônea é a jurisprudência, de ranço civilista, que subordina os atos de execução direta da Administração Pública à pré­via autorização da Justiça. O embargo administrativo é a forma normal e correta de se impedir, prontamente, as atividades particulares ilícitas e contrárias às normas de ordem pública. Só a Administração pode op­tar entre o processo administrativo e o judicial, porque aquele é o ins­trumento normal de sua atuação, e este o mecanismo excepcional de

65. TJSP, RT 191/226.66. TJSP, RT 132/255.67. TJSP, R T 204/283, 220/273; RDA 35/293, 38/263.

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controle do procedimento do Executivo. Ao particular, sim, cabe re­correr ao Judiciário toda vez que desejar impedir a atividade de outro particular ou obstar à atuação administrativa que repute lesiva aos seus direitos individuais.

A demolição da obra clandestina só se impõe quando desconfor- me com as normas da construção. Essa desconformidade tanto pode ser de localização (v.g., construção em zona proibida ou fora do ali­nhamento, ou sem o recuo legal) como de estrutura, altura, volume, funcionalidade ou estética, pois cabe ao Poder Público regulamentar a edificação em todos os aspectos urbanísticos, sanitários e de seguran­ça.68 Verificada a infringência legal, em processo administrativo regu­lar, a Prefeitura ordenará a demolição da obra em andamento ou con­cluída, e, se desatendida, poderá efetivá-la com seus próprios meios, carregando as despesas ao infrator.

Pelo Código de Processo Civil, o Poder Público pode usar da via cominatória (art. 287) para interditar construção clandestina, ou da ação de nunciação de obra nova69 (art. 934, III) para embargá-la e ob­ter a demolição, mas estes meios judiciais são facultativos e não obri­gatórios para a Administração, que poderá sempre executar diretamente as suas decisões. Por cautela, e não havendo urgência, é que o embar­go e a demolição da obra poderão ser submetidos à prévia apreciação judicial, antecipando-se o ingresso do particular na Justiça e forrando- se a Administração dos eventuais riscos de uma atuação discricionária.

Se a construção clandestina admitir adaptações às exigências le­gais, deverá ser conservada, desde que o interessado as satisfaça no prazo concedido e nas condições técnicas determinadas pela Adminis­tração, ou pela Justiça na ação pertinente.70

Quanto à situação do vizinho prejudicado por construção clandesti­na, poderá embargá-la e obter a demolição por via judicial - cominató­ria, demolitória ou nunciatória, conforme o caso desde que demons­tre a lesão a seus direitos. Esses direitos não são só e exclusivamente os decorrentes das restrições de vizinhança estabelecidas no Código Civil, mas, também, os direitos públicos subjetivos que nascem das

68. STF, RTJ 6/623; RT 134/309; TJRJ, RDA 40/344, 50/244, 54/143; TJSP, RT 100/407, 104/502. V., também, o cap. 6, item 1.8.

69. Sobre a via cominatória e a ação de nunciação de obra nova, v. o cap. 9, itens 1.2 e 1.13. E, sobre embargo administrativo e demolição de obra, v. cap. 6, itens 1.7 e 1 .S.

70. TJSP, RT 137/614, 189/296 e 690; Ia TACivSP, RT 201/409, 288/691.

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normas administrativas e urbanísticas criadoras de situações especiais para os proprietários em determinado bairro ou zona com limitações específicas. Constitui civilismo superado a denegação de ação ao par­ticular para impedir descumprimento de normas administrativas ou ur­banísticas pelos vizinhos. A atuação e eficácia das normas urbanísticas exigem o respeito e a cooperação de todos, porque é dessa atuação con­junta que surgem os benefícios individuais e coletivos almejados pelas limitações de funcionalidade e estética urbanas.

Essa a orientação correta nas construções, principalmente nas edi­ficações urbanas, que constituem a tessitura dos bairros, e dela depen­dem o bem-estar recíproco dos vizinhos e a harmonia na vida comuni­tária. Daí por que o particular pode exigir de seu vizinho o respeito às normas administrativas e urbanísticas da construção, tão essenciais como as restrições civis de vizinhança.71

RESPONSABILIDADES DECORRENTES DA CONSTRUÇÃO 345

71. TJSP, R T 312/262, confirmado pelo STF, RE 49.042 (DJU 19.7.1963); e, no mesmo sentido: TJDF, RDA 45/333; lc TACivSP, RT 241/513; TJSP, RT 225/ 242, 246/168, 254/333, 275/249.

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Capítulo 9

AÇÕES D E VIZINHANÇA E PERÍCIAS JUDICIAIS

1. AÇÕES DE VIZINHANÇA: 1.1 Ação de indenização de danos de vizi­nhança; 1.2 Ação de nunciação de obra nova; 1.3 Ação demolitória e caução de dano iminente; 1.3.1 Ação demolitória; 1.3.2 Caução de dano iminente; 1.4 Ação de construção e conservação de tapumes divisórios; 1.5 Ação de travejamento em parede divisória; 1.6 Ação de passagem

forçada; 1.7 Passagem forçada de cabos e tubulações; 1.8 Ação de ser­vidão de água; 1.9 Ações possessórias; 1.10 Ações de demarcação e de divisão: 1.10.1 Demarcação; 1.10.2 Divisão; 1.11 Ações de condomínio:1.11.1 Venda, locação e administração da coisa comum; 1.11.2 Venda de quinhão em coisa comum; 1.11.3 Outras ações de condomínio; L12 Ações de loteamento: 1.12.1 Impugnação; 1.12.2 Dúvida; 1.12.3 Adjudicação compulsória; 1.13 Pedido cominatório; 1.13.1 Pelo vizinho; 1.13.2 Pela Administração; 1.13.3 Contra a Administração. 2. PERÍCIAS JUDICIAIS:2.1 Generalidades: 2.1.1 Perícia; 2.1.2 Perito; 2.1.3 Laudo; 2.2 Exame judicial; 2.3 Vistoria judicial; 2.4 Avaliação judicial: 2.4.1 Conceito de avaliação; 2.4.2 Determinação do valor pela avaliação; 2.4.3 Métodos de avaliação; 2.4.4 Avaliação de imóveis; 2.4.5 Imóveis urbanos; 2.4.6 Imó­veis rurais; 2.4.7 Empreendimentos; 2.4.8 Outras avaliações.

Acham-se reunidos neste capítulo, para facilidade de estudo e compreensão, sob o título de ações de vizinhança e perícias judiciais, os procedimentos que visam a solucionar conflitos entre vizinhos e des­tes com o Poder Público, decorrentes de construções.

Reconhecemos que nem todas as ações aqui tratadas são privati­vas de vizinhança, mas as reunimos sob a mesma epígrafe por intima­mente ligadas às relações de vizinhança ou derivadas do direito de construir, ou, ainda, de atividades conexas à construção. Pela mesma razão cuidamos das perícias judiciais, que comumente acompanham ou precedem as ações de vizinhança, objetivando solucionar conflitos de­correntes de construções.

Com essa advertência, tendente a evitar confusões conceituais so­bre a natureza das ações aqui tratadas, passamos a examinar, separada­mente, cada uma das espécies enumeradas no sumário.

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AÇÕES DE VIZINHANÇA E PERÍCIAS JUDICIAIS 347

I. ÂÇÕES D E VIZINHANÇA

O Código Civil de 2002 não contém a antiga disposição de que “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura” (art. 75), por ser desnecessária, já que direito sem ação não é direito. Por outro lado, a Constituição Federal assegura a todos o livre acesso ao Poder Judiciá­rio contra lesão ou ameaça a direito (art. 5a, XXXV). Por sua vez, o Código de Processo Civil declara que, “para propor ou contestar ação, é necessário ter interesse e legitimidade” (art. 3a).

Desde que existam direitos e restrições de vizinhança, bem assim limitações administrativas ao direito de construir, necessariamente há ações correspondentes, para torná-los efetivos e reparar as eventuais lesões ao patrimônio dos vizinhos.

Para cada ofensa real ou potencial ao vizinho há uma ação corre­lata para o resguardo ou restabelecimento do direito ameaçado ou lesa­do. E, como variam as modalidades de ofensa ao direito, variam os meios judiciais adequados à sua proteção. Esses meios de proteção ao direito é que constituem as ações e procedimentos que iremos exami­nar neste capítulo, a saber: a) ação de indenização de danos de vizi­nhança; b) ação de nunciação de obra nova; c) ação demolitória e caução de dano iminente; d) ação de construção e conservação de ta­pume divisório; e) ação de travejamento em parede divisória; f) ação de passagem forçada; g) ação de servidão de aqueduto; h) ações pos­ses sór ias; i) ações de demarcação e de divisão; j) ações de loteamen­to; k) ações de condomínio; l) pedido cominatório.

1.1 AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANOS DE VIZINHANÇA

A mais freqüente das ações entre vizinhos é a de indenização de danos ocasionados por obras em suas proximidades.1 Atualmente esta ação é de procedimento sumário,2 como determina o Código de Pro-

1. Vizinho não é apenas o confínante, mas todo aquele que suporta os efeitos das construções e emissões das proximidades de seu prédio. Como, também, pré­dio não é unicamente o edifício, mas o imóvel em seu conjunto, abrangendo o ter­reno, suas construções e servidões. A proteção ao vizinho é ampla, amparando não só a incolumidade do prédio como a de seus moradores, sejam proprietários, loca­tários ou simples ocupantes precários, desde que legítimos.

2. O antigo procedimento sumariíssimo, previsto pelo Código de Processo Civil (arts. 275 e ss.), passou a ter a denominação de procedimento sumário, em face das modificações determinadas pela Lei 9.245, de 26.12.1995. A ação de in­denização por danos em prédio urbano ou rústico foi mantida no inciso II, letra

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1

348 DIREITO DE CONSTRUIR

cesso Civil (art. 275, II, “c”), com fundamento material no Código Ci­vil, que dispõe: “O proprietário pode levantar em seu terreno as cons­truções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamen­tos administrativos” (art. 1.299).

Esse dispositivo resguarda os vizinhos contra quaisquer danos de­correntes de construção. Desde que a obra ou suas atividades conexas causem lesão ao vizinho, tem este o direito de ser indenizado dos pre­juízos, independentemente da demonstração da culpa do agente do dano. E uma peculiaridade do direito de vizinhança, que desonera o lesado da prova de culpa do causador da lesão, como já demonstramos no capítulo das responsabilidades (cap. 8, item 2.6).

A responsabilidade pelos danos de vizinhança resultantes de cons­trução é objetiva: nasce do só ato ou fato lesivo da obra ou de seus trabalhos preparatórios. Não se exige, para a reparação, nem dolo, nem culpa, nem voluntariedade do agente da ação lesiva. Pode o ato danoso ser legítimo, como geralmente é a construção; pode resultar de um ato involuntário do dono da obra; pode provir de um fato estranho à vonta­de do construtor: em qualquer caso, sujeitará o proprietário e o cons­trutor à obrigação de indenizar o dano causado pela construção às pes­soas e bens da vizinhança. E exceção expressa na lei (Código Civil, art. 1.299), reconhecida pela jurisprudência dominante de nossos Tri­bunais.3

Essa responsabilidade sem culpa pelos danos de vizinhança de­corre da só lesividade do ato, e não da culpabilidade do agente, ou, se quiserem, de uma culpa presumida entre vizinhos por todo ato ou fato danoso aos confrontantes. Ao vizinho é indiferente que a atividade do confinante seja lícita - como é a construção; o que importa é que não seja lesiva à sua pessoa ou bens.

O Código de Defesa do Consumidor confirma a responsabilidade sem culpa pelos danos de vizinhança, dispondo o art. 17 que, para os efeitos da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, equipa­ram-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

“c”, admitindo-se agora que, na inicial, o autor requeira a perícia, formule quesitos e indique o assistente técnico. No prazo de 30 dias deverá ser realizada a audiência de conciliação; não se concretizando esta, o réu oferecerá sua resposta, designando o juiz a audiência de instrução e julgamento para data não excedente a 30 dias.

3. STF, RTJ 6/75; TJSP, RT 190/233, 242/175, 249/147, 254/300, 259/203, 260/286 e 319, 267/176, 269/339, 270/208, 271/219, 272/166, 281/211 e 350,286/ 335, 287/258, 294/247, 533/88, 539/111.

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AÇÕES DE VIZINHANÇA E PERÍCIAS JUDICIAIS 349

Com a responsabilidade do proprietário solidariza-se o construtor, isto é, o engenheiro, arquiteto, agrônomo ou sociedade autorizada a construir, que assume os encargos técnicos da construção e aufere as vantagens econômicas da execução da obra, juntamente com o seu dono.4 Desde que a construção civil passou a ser uma atividade legal­mente regulamentada, e privativa de profissionais habilitados e de em­presas autorizadas a executar trabalhos de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, tornaram-se os construtores responsáveis técnica e econo­micamente pelos danos da construção perante vizinhos, em paridade de situação com o proprietário que encomenda a obra, qualquer que seja a modalidade do contrato de construção. Daí ser desnecessária a indagação de culpa do construtor para a indenização dos prejuízos oca­sionados pela obra, conjunta e solidariamente com o proprietário, pois ambos assumem idênticas responsabilidades perante os vizinhos: o pro­prietário, porque ordena a obra; o construtor, porque a executa com responsabilidade técnica própria e intransferível ao leigo (v. cap. 8, item 2.6). Portanto, a ação de indenização decorrente de obra particular pode ser ajuizada pelo vizinho contra o proprietário ou o construtor, ou contra ambos, por serem solidariamente responsáveis pelos danos de construção, conforme remansada jurisprudência.3

A construção em ruína e a queda de objetos do prédio vizinho estão previstas no Código Civil como ensejadoras de responsabilidade objetiva, respectivamente, do proprietário (art. 937) e do morador (art. 938).6 Nesses casos, dispensa-se a prova de culpa, bastando a compro­vação do nexo causai entre o evento e o dano. Na hipótese do art. 938- queda de objetos ou coisas lançadas em lugar indevido responde o construtor ou o morador, e não o proprietário do prédio, se este não for o seu ocupante.7

A reparação de dano estético ao vizinho foi admitida pioneira­mente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, confirmando sentença do juiz Antônio Carlos Matias Coltro.8 Tratava-se da construção de edí-

4. STF, *27 82/941.5. STF, RT 266/831; TJSP, RT 191/166, 234/203, 241/222, 253/224, 267/

250, 284/251, 287/201 e 322, 290/179; RTJ 82/941.6. “Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que re-

sultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.

“Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano pro­veniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido.”

7. TJSP, RT 258/62.8. TJSP, RT 543/92.

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350 DIREITO DE CONSTRUIR

cuias e de muro alto, sem acabamento, que afetou consideravelmente a residência confínante, reduzindo-lhe o valor econômico. Desde que tal construção afete patrimonial mente a propriedade vizinha, desvalorizan­do-a, rende ensejo à reparação pecuniária, como à de qualquer dano material.

Tratando-se de danos causados por o b ra p ú b lic a , a ação será sem­pre e unicamente dirigida contra a Administração que ordenou a cons­trução e responde objetivamente pelos atos de seus prepostos, na for­ma do art. 37, § 6D, da Constituição Federal. Se o construtor agiu com culpa, caberá à Administração, após a indenização da vítima, cobrar regressivamente o que despendeu no ressarcimento, mas nunca poderá eximir-se da responsabilidade sob a alegação de ter contratado a obra com terceiro, pois o Poder Público e suas entidades descentralizadas permanecem sempre na condição de don os das obras que m an darem con stru ir , e, como tais, respondem perante vizinhos, independentemen­te de culpa, bastando que estes demonstrem o nexo causai entre a obra e o dano.9 Alguns julgados, desgarrados da doutrina e da jurisprudên­cia dominante da matéria, têm admitido a responsabilidade e a ação conjunta contra a Administração e o construtor da obra pública, deter­minando, mesmo, a integração da lide por este, mas isto contraria o princípio constitucional do citado art. 37, § 6a, obrigando a vítima a comprovar culpa em ação de responsabilidade sem culpa.

Não respondem pelos danos da construção os mestres e encarre­gados de obras, nem os demais leigos que nela trabalham, por não te­rem encargos técnicos, nem poderem substituir os profissionais e as empresas construtoras, na assunção dos riscos econômicos do empre­endimento. Comumente se confunde o construtor (que só pode ser o profissional legalmente habilitado, como o engenheiro civil, o arquite­to, o agrônomo, o “licenciado” ou a empresa autorizada a construir) com o simples subcontratista de serviço, impropriamente denominado “empreiteiro de mão-de-obra”. Este nada tem a ver com vizinhos e ter­ceiros: suas relações são meramente empregatícias, com o construtor.

A f ix a ç ã o da in den ização obedece aos critérios comuns de arbi­tramento dos danos emergentes e lucros cessantes (Código Civil, art. 402) e deve incluir não só o montante do dano em si mesmo como, também, o necessário para repor a propriedade danificada no seu esta­

9. STF, RDA 11/1.41, 20/45, 55/261, 97/177; TFR, RDA 42/253, 58/319; RT 193/514, 220/502; TJSP, RDA 31/288, 40/337, 49/198, 63/168; RT 197/168, 202/ 163, 203/299, 21 i / l 89, 330/270, 382/138, 449/104.

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AÇÕES DE VIZINHANÇA E PERÍCIAS JUDICIAIS 351

do anterior, pelos meios que a técnica indicar. Cabem, ainda, na inde­nização os honorários de advogado, salários de peritos e custas da de­manda, juros e correção monetária.

A jurisprudência tem admitido a redução da indenização quando o estado do prédio danificado concorreu para o dano, por sua ancianida- de ou insegurança.10 A atenuação é feita por eqüidade e merece prudên­cia na sua aplicação, porque, se a obra, embora envelhecida e insegura, se mantinha intacta, não há motivo para a partilha de responsabilidade. Se, porém, a construção se apoiava no prédio do vizinho e veio a aba­lar-se ou ruir com a demolição deste, justifica-se a proporcionalização dos encargos, visto que, se, de um lado, há o direito à incolumidade da propriedade, de outro, há o direito de construir, que não pode ser anu­lado pela insolidez da obra vizinha.

O art. 944 do Código Civil dispõe que a indenização mede-se pela extensão do dano, mas seu parágrafo único estabelece que, “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”. Como se fala em gravi­dade da culpa, parece-nos que este dispositivo só se aplica aos casos de responsabilidade com culpa, não incidindo nas hipóteses de respon­sabilidade objetiva, como já deixamos dito no capítulo anterior (cap. 8).

1.2 AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA

A ação de nunciação de obra nova, também conhecida por em­bargo de obra nova, é adequada para impedir o prosseguimento de construção prejudicial ao vizinho. Não é ação possessória, nem real:11 é ação pessoal própria para deter obras em andamento que ofendam algum direito de vizinhança, e, em especial, como diz o Código Civil, “para impedir que a construção vizinha invada a propriedade confinan­te, ou sobre esta deite goteiras, ou abra janela a menos de metro e meio da linha divisória” (art. 1.301). Por sua vez, o Código de Processo Ci­vil alargou o âmbito desta ação, concedendo-a: “I - ao proprietário ou possuidor, a fim de impedir que a edificação de obra nova em imóvel vizinho lhe prejudique o prédio, suas servidões ou fins a que é destina­

10. STF, RTJ 83/212; TJSP, RT 160/740, 217/227, 235/469, 269/349.11. Não obstante o disposto confusamente nos arts. 10, parágrafo único, I, e

95 do Código de Processo Civil, continuamos a entender que a ação de nunciação de obra nova não é real, mas sim pessoal, já agora com apoio em decisões do TJSP (RT 507/70, 510/106, 594/105, 673/54; RJTJSP 89/200).

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352 DIREITO DE CONSTRUIR

do; II - ao condômino, para impedir que o co-proprietário execute al­guma obra com prejuízo ou alteração da coisa comum; III - ao Muni­cípio, a fim de impedir que o particular construa em contravenção da lei, do regulamento ou da postura” (art. 934).

A nunciatória é, portanto, apta a proteger não somente a incolumi- dade estrutural do prédio como, também, suas servidões e utilidades, para plena fruição do imóvel segundo a sua normal destinação. Qualquer dano ou interferência da obra nova no prédio alheio legitima esta ação, para impedir a construção lesiva e propiciar as reparações devidas.12

Conquanto o Código de Processo Civil tenha dado maior amplitu­de à ação de nunciação de obra nova, o seu redator incidiu em dois equívocos de técnica que poderiam restringir sensivelmente o campo de sua incidência, por ter-se referido, erroneamente, no n. I, à espécie “edificação”, ao invés de fazê-lo ao gênero construção, e, no n. III, ter mencionado especificamente o “Município”, quando deveria referir-se genericamente à Administração Pública, abrangente de todas as enti­dades estatais, autárquicas e paraestatais, que podem utilizar-se da nun­ciatória. Realmente, a edificação é apenas uma das modalidades de construção, como demonstraremos adiante (v. cap. 10, item 1.2), e, por outro lado, não é o Município a única entidade que pode valer-se desta ação, pois dela são titulares também a União, o Distrito Federal, os Estados, os Territórios, suas autarquias e entidades paraestatais, para impedir obras ilegais e prejudiciais aos seus bens e serviços. Anote-se, ainda, que nesse mesmo dispositivo (art. 934, III) o redator do Código emprega o vocábulo reinol “postura”, já de há muito abolido da mo­derna Administração municipal e sem nenhum sentido técnico dentre as normas edilícias.

Desde o Código de Processo Civil anterior, confirmado pelo atual, a ação de nunciação de obra nova é utilizável tanto pelo proprietário exclusivo quanto pelo condômino, e por qualquer ocupante legítimo do prédio lesado ou ameaçado pelas obras do vizinho, que pode ser outro particular ou mesmo o Poder Público, que é um vizinho de todos nós.13 O indispensável é que a construção prejudicial se localize nas proximidades do prédio do autor e ainda não esteja concluída quando

12. TJSP, RT 627/108; TJRJ, RT 605/190. A nunciatória improcedente, por si só, não acarreta a condenação em despesas com a paralisação da obra (TJSP, RT 611/98).

13. STF, RDPG 6/401; TJSP, RT 171/241, 222/194, 329/283, 578/188; tam­bém o loteador, ainda que tenha vendido todos os lotes (art. 45 da Lei 6.766/1979).

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AÇÕES DE VIZINHANÇA E PERÍCIAS JUDICIAIS 353

do ajuizamento da causa. Nesta ação, o autor pode alegar infrações ad­ministrativas, como é detalhado no item 1.3, abaixo, e - além da para­lisação da obra, pelo embargo inicial - para o julgamento de mérito (modificação, reconstituição ou demolição do que foi feito) deve tam­bém pedir cominação de pena para o caso de inobservância do preceito e condenação em perdas e danos causados pela construção ilegal (Có­digo de Processo Civil, art. 9 3 6 ,1 a III), bem como apreensão de mate­riais e produtos já retirados, quando for o caso (Código de Processo Civil, art. 936, parágrafo único).

O ato inicial e específico desta ação é o embargo da obra nova, concedido liminarmente ou após justificação prévia (Código de Pro­cesso Civil, art. 937), prosseguindo daí por diante em rito ordinário,14 com prazo de cinco dias para a contestação do dono da construção (Có­digo de Processo Civil, art. 938). Não havendo contestação, presumem- se aceitos como verdadeiros os fatos alegados pelo autor, caso em que o juiz deverá decidir dentro de cinco dias (Código de Processo Civil, art. 939, combinado com o art. 803). Se não houver embargo liminar da obra, por não estar iniciada ou por já estar concluída a construção, é incabível a nunciatória.

O Código de Processo Civil vigente criou um complicado e inefi­ciente embargo verbal extrajudicial, para casos urgentes, mas depen­dente de ratificação judicial a ser requerida dentro de três dias, sob pena de cessação de seus efeitos (art. 935 e parágrafo único). Esse embargo é cópia do Código Civil português (art. 4132, II) e não apresenta qual­quer vantagem prática, pois, se o interessado tem que o ratificar em juízo, certamente é mais conveniente requerer diretamente o embargo judicial e inicial da ação.

O embargo da obra admite levantamento, em qualquer fase da ação, mediante caução prestada no juízo de origem, salvo quando se tratar de construção em desacordo com norma administrativa (Código de Obras, Lei de Zoneamento etc.), segundo dispõe o próprio Código de Processo Civil (art. 940, §§ lü e 2fl). Vale dizer que só é admissível caução para o prosseguimento da obra argüida apenas de afronta a di­reito individual de vizinhança, e não a norma de ordem pública, como são as que proíbem determinadas construções ou certas modalidades de edificação em áreas sujeitas a zoneamento e limitações de uso e ocu­pação do solo urbano ou urbanizável.

14. TJSP, RT 470/97.

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Por fim, é de se lembrar que a nunciatória pode ser ajuizada mes­mo depois de decorridos ano e dia do início da construção prejudicial ao autor, uma vez que não há decadência extintiva da ação, a qual sub­siste enquanto a obra estiver inacabada. Por obra inacabada, segundo a jurisprudência corrente, deve-se entender toda aquela em que ainda faltam partes de sua estrutura, e não apenas pintura ou remate de mate­riais já empregados.13

1.3 AÇÃO DEMOLÍTÓR1A E CAUÇÃO DE DANO IMINENTE

Esses dois procedimentos - ação demolitória e caução de dano iminente conquanto autônomos, merecem estudados conjuntamente, porque se embasam nos mesmos preceitos de proteção ao vizinho e à coletividade, ficando a caução quase sempre ligada à ação para a pre­servação de danos futuros, e esta servindo para a eliminação de obra danosa.

1.3.1 AÇÃO DEMOLITÓRIA

A ação demolitória visa, especificamente, à demolição de cons­trução em ruína ou de obra em desacordo com as disposições de vizi­nhança. Para tanto, o Código Civil estabelece: “O proprietário tem di­reito de exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou reparação necessária, quando este ameace ruína, bem como que preste caução

15. TJSP, RT 187/746, 228/232, 261/290, 301/320. Não obstante, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou que um muro, de reduzidas dimen­sões, não pode ser considerado concluido se ainda lhe falta o reboco, porque se trata de obra que pode ser feita em curto período de tempo: RJTJRG 146/212. Se a obra já estiver concluída não é cabível a ação nunciatória: TJSP, RT 320/232, 416 e 428, 490/68, 501/í 13. Mas o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que a conclusão da obra posteriormente ao ajuizamento da ação não afasta o interesse de agir, que apenas se transmuda na demolição e em perdas e danos: JTJ 168/123. De igual forma, o Superior Tribunal de Justiça rejeitou a carência da ação só porque a obra estava praticamente concluída, sobretudo quando o embargo é cumulado com outros pedidos compatíveis, como o indenizatório. O Relator, Min. Cesar Asfor Rocha, ressaltou que esse entendimento se ajusta à tendência das modernas legisla­ções processuais de restringir os casos de impossibilidade jurídica de pleito judicial, em face da ampliação do acesso ao processo e à justiça (STJ, 4a T., REsp 64.323- SC, j. 3.9.1996, v.u.).

Sobre ação de nunciação de obra nova e conceitos de “obra inacabada” e “obra concluída”, v. nossos pareceres in Estudos e Pareceres de Direito Público, V/217 e 224 e VI/427, Ed. RT.

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pelo dano iminente” (art. 1.280). E foi mais longe, ao estabelecer que “todo aquele que violar as disposições estabelecidas nesta Seção [ "Do “direito de Construir ”] é obrigado a demolir as construções feitas, res­pondendo por perdas e danos” (art. 1.312).

Estes artigos concedem ação de demolição ao vizinho para casos diferentes: o art. 1.280 faculta a ação para a hipótese de estar o prédio em ruína, oferecendo dano efetivo ou perigo para os confrontantes-, e o art. 1.312 a concede para o prejudicado por alguma violação das regras de vizinhança, nelas se incluindo as normas administrativas incidentes sobre a construção na área.

Neste ponto, é conveniente alertar que o art. 1.312 ampliou consi­deravelmente o campo da ação demolitória, pois a estendeu também às construções vizinhas que infringirem as normas administrativas in­cidentes na área (limitações urbanísticas, de higiene e segurança, de proteção ao patrimônio histórico etc.). Na verdade o art. 586 do estatu­to anterior, ao referir-se à demolição de construções irregulares, limi­tava-a à violação dos arts. 580 e ss., não incluindo o art. 554, que se referia à obrigatoriedade de obediência aos regulamentos administra­tivos. O Autor já defendia a tese de que o vizinho tinha direito subjeti­vo à observância das limitações administrativas (especialmente as ur­banísticas) por todos aqueles proprietários sujeitos à suas exigências (cf. cap. 4). E a jurisprudência acabou evoluindo nesse sentido. Agora, o Código Civil de 2002 acabou de sacramentar essa orientação ao as­segurar a demolição de toda construção que violar as proibições esta­belecidas na Seção “Do Direito de Construir” (arts. 1.299 e ss.).

Ambas as ações resultam do direito de vizinhança, e não da posse, podendo ser utilmente intentadas depois de ano e dia da ocorrência le­siva ao vizinho, salvo se houver decadência do direito, como há no caso do art. 1.302.

Esta ação pode ser ajuizada com o rito comum das ações ordinárias, ou, no procedimento especial da nunciação de obra nova (arts. 934 a 940 do Código de Processo Civil), o autor incluirá o pedido de demoli­ção, podendo ser cumulado ainda com cominação de pena e indeniza­ção de prejuízos (art. 936, í a III).

O Código de Processo Civil concedeu também ação demolitória, como medida provisional, ao Poder Público, para resguardar a saúde, a segurança ou outro interesse público (art. 888, VIII); vale dizer que, além do vizinho, a Administração pode usar desse procedimento para proteção da coletividade quando ameaçada por construção perigosa ou,

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simplesmente, em desacordo com as normas administrativas (art. 934, III, combinado com o art. 9 3 6 ,1).

Compete, assim, à Administração Pública promover com seus pró­prios meios e sumariamente a demolição de obras que ameacem ruína ou representem um perigo iminente para a coletividade, sem que seus proprietários ou responsáveis tomem as medidas cautelares convenien­tes. Quanto a estas construções não há discrepância na doutrina nem na jurisprudência, porque, em tal caso, além do privilégio da auto-exe- cutoriedade do ato administrativo, a demolição é autorizada pelo esta­do de necessidade, previsto no art. 188, II, e parágrafo único, do Códi­go Civil, como preceito de ordem geral, utilizável tanto pelos particu­lares como pelo Poder Público.

1.3.2 CAUÇÃO DE DANO IMINENTE

A caução de dano iminente ou de dano infecto é medida preventi­va autorizada pelo Código Civil (arts. 1.280 e 1.281) e contemplada pelo Código de Processo Civil dentre os procedimentos cautelares es­pecíficos (Livro III, tit. único, cap. II, seção III), com conceituação pró­pria e rito especial (arts. 826 a 838), podendo ser utilizada nos casos em que a natureza dos trabalhos ou o estado da obra ofereçam perigo ao vizinho. Como as situações perigosas para a vizinhança constituem mau uso da propriedade (Código Civil, art. 1.277), qualquer eventual vítima pode requerer a caução de dano iminente em procedimento au­tônomo ou como medida preparatória de futura ação demolitória do que já foi feito, embora o Código de Processo Civil nada diga a respei­to. Se a caução for requerida como preparatória da ação demolitória, subsistirá por 30 dias, como as demais medidas cautelares (art. 806); se em procedimento autônomo, acautelador do perigo de dano da cons­trução, persistirá durante todo o tempo da obra que a ensejou.

A caução pode ser em dinheiro ou em fiança, a critério do reque­rente, que indicará o seu valor para apreciação e julgamento do juiz, na forma estabelecida no próprio Código de Processo Civil (arts. 829 a 838). Essa caução é passível de ser requerida mesmo depois de ajuiza­da qualquer ação de vizinhança, desde que persista a iminência ou a continuação do dano pela obra ou pelos trabalhos vizinhos. Não obs­tante a lei civil só se referir à caução para prédio em ruína (art. 1.280), entende-se que possa ser exigida em qualquer outra situação capaz de produzir dano ao vizinho, tais como trabalhos perigosos, deficiência de tapumes, insegurança nos andaimes, vibrações nos cravamentos de estacas e demais atividades prejudiciais à vizinhança, casos em que pó-

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derá ser invocado o poder cautelar geral do juiz para o estabelecimento da caução adequada (arts. 798 e 799, última parte).16

Lamentável é a imprecisão do Código de Processo Civil de 1973 no trato desses dois procedimentos - ação demolitória e caução de d a m iminente dispersando simples referências aqui e ali, sem or­dem ou sistematização da matéria, o que dificulta o seu entendimento e utilização tanto pelos vizinhos quanto pela Administração Pública.

1.4 AÇÃO DE CONSTRUÇÃO E CONSERVAÇÃODE TAPUMES DIVISÓRIOS

Os tapumes divisórios, assim entendidos os muros, cercas, sebes e demais elementos de vedação entre prédios confmantes, presumem- se de utilidade comum para ambos os vizinhos, e, por isso, a lei civil obriga-os a concorrerem em partes iguais para as despesas de constru­ção e conservação (art. 1.297, § l ü). Correlatamente, o Código de Pro­cesso Civil concedia ação de procedimento sumaríssimo, aos vizinhos, para esses mesmos fins (art. 275, II, “g”). Posteriormente, contudo, a Lei 9.245, de 26.12.1995, retirou essa faculdade do texto processual, confirmando a observação anteriormente feita, de que a sumariedade da demanda era ilusória, porque dependeria sempre de perícia para a verificação do tipo do tapume a ser feito e das despesas a serem parti­lhadas. O procedimento, agora, é o ordinário.

Cumpre esclarecer que o vizinho não é obrigado a concorrer para a construção e conservação de todo e qualquer tipo de tapume divisó­rio, mas somente para aquele que é imposto pelas normas municipais visando ao fechamento das propriedades confmantes e vedação de grandes animais (Código Civil, art. 1.297, § l fi), pois que as cercas des­tinadas à vedação de pequenos animais correm inteiramente por conta de seus proprietários (v. cap. 3, item 2.3).

Os muros divisórios, diversamente das paredes divisórias, não ad­mitem madeiramento ou travejamento pelo vizinho, pela razão, já ex­posta, de que não são elementos de sustentação, mas somente de veda­ção. A jurisprudência tem admitido erroneamente a utilização de mu­ros divisórios para sustentar construções do vizinho, mas isto constitui uma ilegalidade e uma aberração técnica, porque a lei não os autoriza, nem as normas de construções aconselham que se aproveitem muros

16. Cf. Sydney Sanches, Poder Cautelar Gerai do Juiz, São Paulo, Ed. RT, 1978, pp. 102 e ss.

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para as funções de paredes. Note-se, ainda, que, se as paredes divisórias podem ser construídas até meia espessura sobre o terreno do vizinho, os muros jamais poderão ultrapassar a linha divisória. Nenhuma lei per­mite essa invasão do muro sobre a propriedade confinante. O que se permite é a utilização comum do muro, pelos vizinhos, na sua função específica de vedação. E compreende-se que, se já existe um muro, não há necessidade de o vizinho construir outro, ao lado, para vedar a pro­priedade já cercada pelo confinante. Mas à revelia do vizinho não po­derá servir-se desse muro como parede, para suas construções, ainda que pague a metade de seu custo. Permite-se, todavia, que o confinan­te alteie o muro comum, à sua custa, se assim o desejar.17 Se o muro não for comum, o vizinho não poderá alterá-lo.

Há uma generalizada suposição entre os leigos de que o muro per­tence ao proprietário do terreno do lado em que se salientem os pilares. Nenhuma relação têm os pilares com a propriedade do muro. O que o caracteriza como comum ou exclusivo de um dos vizinhos é a partici­pação dos confinantes no pagamento do seu custo, ou a exclusividade de sua construção por um dos vizinhos. Quem constrói o muro em seu terreno e à sua custa é o seu único proprietário, qualquer que seja a posição em que se assentem os pilares.

1.5 AÇÃO DE TRA VEJAMENTO EM PAREDE DIVISÓRIA

Segundo a nossa lei civil, o proprietário de terreno urbano que pri­meiro construir tem duas alternativas quanto ao levantamento da pare­de divisória: erguê-la rente à linha da divisa ou assentá-la até meia es­pessura sobre o terreno vizinho (art. 1.305). Em qualquer dos casos, porém, fica o vizinho com direito de travejar ou madeirar nessa pare­de, desde que ela suporte a construção e o interessado indenize o valor correspondente (art. 1.304). Na primeira hipótese (parede rente à linha divisória), o confinante deverá indenizar a metade do terreno e da pa­rede; na segunda (parede com meia espessura sobre o terreno confron- tante), pagará apenas a metade do valor da parede, porque a metade do terreno já lhe pertence.18

A verificação das condições da parede divisória e do valor a ser indenizado é feita por meio de vistoria e arbitramento, para, após, ser decidida a pretensão do vizinho. Só depois do trânsito da sentença em

17. TJSP, RT 177/760.18. V. estes aspectos no cap. 3, item 2.4.

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julgado e do depósito da quantia arbitrada é que será expedida autori­zação para o vizinho travejar ou madeirar na parede divisória de seu confínante.

A expressão “travejamento” - que, ao pé da letra, significa “pôr traves em” - é usada no Código Civil para as paredes que recebem cargas, no sentido de servir de apoio, sustentação ou reforço estrutural, em oposição à simples vedação dos muros divisórios.

Outra observação a fazer é que tanto a lei substantiva como a ad­jetiva só permitem o travejamento ou madeiramento em parede divisó­ria (não muro divisório) de edifícios urbanos, sujeitos a alinhamento. Os tribunais têm confundido, lamentavelmente, “parede” com “muro”, quando são elementos distintos e com funções diversificadas pelo pró­prio Código Civil, que trata de “paredes” sob a epígrafe do direito de constt'uir (arts. 1.304 a 1.306) e cuida de “muros” no direito de tapa- gem (art. 1.297). Parede é, precipuamente, elemento de sustentação, e, por isso, admite cargas provenientes de travejamento ou madeira­mento compatíveis com a sua espessura e resistência; muro é elemento essencialmente de vedação, e, por esse motivo, não admite madeiras ou traves sobre a sua estrutura. Nos grandes edifícios as paredes estão se transformando em simples elementos de vedação, porque a susten­tação da obra é confiada às estruturas de concreto armado, erguidas sobre pilares e vigas que suportam as cargas sem transmiti-las às ou­tras partes da construção.

O travejamento em parede divisória é uma velharia do tempo das Ordenações, que bem merecia ser expungido de nossa atual legislação, mas, lamentavelmente, permanece no Código Civil, quando deveria ser expressamente vedada, para evitar conflitos de vizinhança.

1.6 AÇÃO DE PASSAGEM FORÇADA

A açao de passagem forçada ou de desencravamento de imóvel destina-se a propiciar judicialmente saída para a via pública, fonte ou porto quando a propriedade do autor não a tem ou vem a perdê-la (art. 1.285). Pode, ainda, excepcionalmente, o proprietário ou o morador do prédio que teve a passagem obstruída ou fechada violenta ou clandes­tinamente pelo vizinho ou pelo Poder Público utilizar-se da ação de manutenção ou de reintegração de posse cumulada com o pedido de perdas e danos (arts. 920 a 931 do Código de Processo Civil), ou mes­mo do interdito proibitório contra nova turbação ou esbulho em seu caminho (art. 932).

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O conteúdo da sentença proferida em tais ações é, geralmente, de- claratório-constitutivo: declaratório na parte que reconhece o direito preexistente concedido pelo art. 1.285 do Código Civil; constitutivo na parte que estabelece o rumo da passagem a ser aberta e fixa as indeni­zações a serem pagas aos vizinhos por onde vai passar a estrada.19 O Código Civil de 2002 não cuida da perda do direito de passagem pelo seu desuso, tratada no art. 561 do antigo estatuto, que facultava ao pro­prietário negligente obter o restabelecimento do caminho, desde que pagasse ao vizinho o dobro do valor da primeira indenização.

Embora o Código Civil só se refira ao dono do prédio encravado (art. 1.285), tem-se admitido também o exercício desta ação pelo legí­timo possuidor do imóvel, em lugar do proprietário inativo, pois não se pode conceber que alguém habite ou utilize uma propriedade sem acesso à via pública, fonte ou porto. Mais liberal ainda se tem mostra­do a jurisprudência na conceituação do encravamento. A despeito de a lei civil só conceder passagem forçada ao prédio que se achar sem saí­da para via pública, fonte ou porto, os tribunais vêm dando ação não só ao prédio que não tem saída alguma para esses logradouros públi­cos como, ainda, para o que a tem, mas de tal forma onerosa, perigosa ou intransitável que impossibilite a exploração econômica do imóvel, tornando-o imprestável à sua destinação originária.20 Esta orientação, conquanto humana e coincidente com a função social da propriedade, que é a de produzir utilidade individual e bem-estar coletivo, merece prudência na sua aplicação, para que não se imponha exagerado sacri­fício aos prédios vizinhos, para simples comodidade particular de um proprietário. Em tais casos, é de rigor uma verificação criteriosa sobre a verdadeira situação do prédio que reclama outra saída para a via pú­blica. Se, na realidade, o caminho existente for inseguro ou economi­camente impraticável, por aniquilador da utilidade do imóvel, será ad­missível a concessão de outra passagem, segundo as normas da lei ci­vil (art. 1.285). Se, porém, a passagem existente é apenas incômoda ou onerosa pelo seu traçado, não se trata de prédio encravado, sendo, em tal caso, inadmissível a ação de desencravamento.

Como a passagem forçada não é servidão, mas tão-somente restri­ção de vizinhança, a ação respectiva não se confunde com a confesso- ria ou negatória de servidão. Pela ação de passagem forçada apenas se impõe aos vizinhos a obrigação de permitir que suas propriedades se­

19. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Predial, XIII/333, Rio, 1956.20. TJSP, RT 78/123; TJMG, RT 162/206; TJRJ, RT 157/821; RF 99/723.

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jam atravessadas por caminho necessário ao prédio encravado; cessan­do a necessidade, cessa a restrição. Nela se fixam, judicialmente, o rumo da estrada e as indenizações que o interessado deverá pagar aos proprietários onerados com esse encargo de vizinhança. A ação de pas­sagem forçada é imprescritível, subsistindo o direito de exercitá-la en­quanto houver o encravamento.

1.7 PASSAGEM FORÇADA DE CABOS E TUBULAÇÕES

O Código Civil incluiu dois dispositivos a respeito da passagem for­çada de cabos e tubulações através de propriedades de terceiros, para a prestação de serviços de utilidade pública. “Mediante recebimento de in­denização que atenda, também, à desvalorização da área remanescen­te, o proprietário é obrigado a tolerar a passagem, através de seu imó­vel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa” (art. 1.286).

Note-se que o preceito refere-se apenas à instalação de serviços públicos. A titularidade da ação, portanto, pertence ao Poder Público ou ao concessionário do serviço a ser prestado. Ao mesmo tempo, é indispensável que se prove que, sem a passagem forçada, a execução do serviço é impossível ou se toma excessivamente onerosa. Atente- se, também, a que o proprietário só está obrigado a tolerar a passagem mediante o recebimento da indenização. Isto significa, a nosso ver, que não basta, eventualmente, a fixação judicial da indenização; é preciso que ela tenha sido efetivamente paga ao proprietário do prédio serviente.

O proprietário prejudicado pode exigir que a instalação seja feita de modo menos gravoso ao seu prédio, podendo posteriormente, à sua custa, removê-la para outro local do imóvel (art. 1.286, parágrafo úni­co). E pode, ainda, exigir que sejam realizadas obras de segurança, se as instalações oferecerem grave risco (art. 1.287).

L8 AÇÃO DE SERVIDÃO DE ÁGUA2]

O Código de Águas (Decreto 26.643, de 10.7.1934), ao dispor so­bre a servidão legal de aqueduto (arts. 117 a 138), instituiu uma ação especial para a constituição dessa servidão.

21. O regime jurídico das águas sofreu radical transformação com a promul­gação da Lei 9.433, de 8.1.1997, que regulamentou o art. 21, XIX, da Constituição

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De iníeio, o legislador declarou que a todos é permitido canalizar pelo prédio de outrem as águas a que tenham direito mediante prévia indenização: a) para as primeiras necessidades da vida; b) para os ser­viços de agricultura ou da indústria; c) para o enxugo ou bonificação dos terrenos (art. 117).

Em dispositivos subseqüentes, o mesmo Código estabeleceu que essa servidão será decretada pelo governo, no caso de aproveitamento das águas em virtude de concessão por utilidade pública, e pelo ju iz , nos outros casos, fixando-se judicialmente a indenização (art. 120) e a direção, natureza e forma do aqueduto (art. 123).

Nesse procedimento judicial há duas fases bem diferençadas: a primeira em que se verifica e proclama o direito do requerente à servi­dão; a segunda em que se apura o valor da indenização e se estabele­cem o rumo e as condições do aqueduto, segundo os requisitos que a própria lei impõe. Trata-se, ao que se vê, de uma servidão administra- tiva, imposta por considerações de ordem pública, para a captação e ca­nalização de água através de prédios alheios, para as necessidades hu­manas mais prementes, ou para o beneficiamento de terrenos alagadiços.

A ação em exame é de rito especíalíssimo e finalidade restrita à instituição da servidão de aqueduto, não podendo ser utilizada para qualquer outro fim, nem permitindo discussões laterais ao seu objeto. Tal servidão pode recair sobre prédios rurais ou urbanos, devendo, nes­te caso, observar as normas sanitárias gerais e as edilícias vígorantes na localidade, consoante determina o próprio Código de Águas (art. 138).22

A sentença passada em julgado constitui o título dessa servidão, e, como tal, deve ser inscrita no Registro de Imóveis da situação dos

Federal, e instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, criando o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Essa lei passa a considerar a água um bem de domínio público, recurso natural limitado e dotado de valor eco­nômico. A partir dessa nova lei, o uso da água para qualquer fim - salvo para os aproveitamentos considerados insignificantes - fica sujeito à outorga onerosa pelo Poder Público (arts. 12 e 19). Assim, para a utilização da ação prevista neste tópi­co, é necessário, antes, que o interessado obtenha a outorga para o uso da água pretendida.

22. São admissíveis ações idênticas para a instituição de servidões adminis­trativas concernentes à exploração das riquezas minerais em geral, regidas pelo Có­digo de Mineração (Decreto-lei 227, de 28.2.1967), e à exploração do petróleo em especial, disciplinada pelo Código do Petróleo (Decreto-lei 3.236, de 7.5.1941, complementado pela Lei 2.004, de 3.10.1953, que instituiu a PETROBRÁS).

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prédios interessados (Lei de Registros Públicos, arts. 167,1, n. 6, e 168), mesmo porque consubstancia um direito real, sujeito a essa formalida­de para gravar os respectivos bens a que adere.

O Código Civil também tem uma Seção “Das Águas” (arts. 1.288 a 1.296), no capítulo “Dos Direitos de Vizinhança”. Os dispositivos são assemelhados aos preceitos do Código de Águas, com algumas inova­ções, entre as quais a que determina seja aplicado ao direito de aqueduto o disposto para a passagem forçada de cabos e tubulações (art. 1.294).

1.9 AÇÕES POSSESSÓRIAS

As açõespossessórias, abrangentes dos interditos de reintegração, de manutenção e de proibição, também podem ser utilizadas pelo vizi­nho na defesa do prédio e de suas servidões.

O Código Civil declara que “o possuidor tem direito a ser manti­do na posse em caso de turbação, e restituído, no de esbulho” (art. 1.210), e o Código de Processo Civil esclarece que essas ações serão sumárias, quando intentadas dentro de ano e dia da turbação ou do es­bulho, e ordinárias daí por diante, não perdendo, contudo, o caráter possessório (arts. 920 a 931), complementado, ainda, pelas disposições do interdito proíbitório, que visa a resguardar o possuidor de turbação ou esbulho iminente, com cominação de pena pecuniária (arts. 932 e 933). Tais procedimentos poderão sempre ser cumulados com os pedi­dos de condenação em perdas e danos, de cominação de pena para o caso de nova turbação ou esbulho e de desfazimento do que foi feito em detrimento da posse do autor (art. 921), que tanto pode ser o pro­prietário do imóvel como o locatário ou qualquer outro legítimo ocu­pante. Esclareça-se mais uma vez que vizinho não é somente o confi­nante, mas todo aquele que suporta os efeitos da proximidade de outro prédio.

Outra particularidade da possessória é a de que, havendo por par­te do autor avanço na posse do réu quando do desforço imediato, pode este, em defesa, alegar a ofensa à sua posse, independentemente de re- convenção, e obter a restituição da área invadida ou turbada, com a indenização que for cabível (CPC, art. 922), mas em procedimento pos­sessório só se discute posse, e não propriedade, se bem que esta possa servir de base para o reconhecimento daquela (CPC, art. 923, e Código Civil, art. 1.210, § 3Q).

Como bem observa Couto e Silva, ao comentar o art. 924: “Tenha a ação como objeto a restituição de posse nova (de menos de ano e

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dia), com rito especial, ou de posse velha (de mais de ano e dia), obe­decendo ao procedimento comum, são sempre procedimentos posses- sórios. isto significa que as disposições gerais são aplicáveis ainda quando a turbação ou esbulho datarem de mais de ano e dia”. Outra observação do mesmo autor é a de que “a cumulação dos pedidos de indenização e de cominação para o caso de futura e possível repetição da turbação não exige que o procedimento seja ordinário, pois, em se tratando de posse de menos de ano e dia, faculta-se cumular essas pre­tensões, e o procedimento continuará a ser especial”.23

A manutenção ou a reintegração de posse bem como o interdito proibitório admitem o mandado liminar, com ou sem audiência do réu, em face da prova que instrui a inicial ou mediante justificação prévia do alegado (arts. 928 e 933 do Código de Processo Civil), prosseguin­do a ação com procedimento ordinário (art. 931). Da denegação da li­minar ou do seu deferimento cabe agravo de instrumento, o que tem ensejado mandado de segurança contra o despacho impugnado, quan­do os seus efeitos são lesivos de direito líquido e certo do impetrante e ficam imunes diante da não suspensividade daquele recurso.34

As vias possessórias são aptas a proteger as servidões de trânsito, de água, de luz e outras, mas o art. 1.213 do Código Civil estabelece, como regra, que as servidões não aparentes não gozam de proteção possessória, salvo quando tituladas. E compreende-se que assim seja, porque as servidões não se presumem e nesta espécie falecem elemen­tos visíveis para indicar a sua existência. O rigor dessa regra tem sido atenuado pela jurisprudência nos casos em que a servidão não aparen­te, como a de caminho, se transforma em aparente pela freqüência do trânsito, iá, então, se toma merecedora de proteção possessória, ainda que destitulada.25

Essa mudança de orientação, para conceder-se a proteção possessó­ria à servidão de trânsito, deve-se a Mendes Pimentel, que, em luminoso estudo, demonstrou que, se o uso e gozo da servidão se manifestam por obras visíveis e permanentes, nas quais o possuidor caracteriza o

23. Comentários ao Código de Processo Civil, XI-I/141, São Paulo, Ed. RT,1977.

24. STF, RTJ70/504, 71/786, 72/743; TFR, RTFR 6/224; TJRS, RT 423/210; TJPR, RT 451/213; TJGB, RT 466/203; TJMG, RT 467/218; TJMT, RT 476/191; TASP, RT 351/416, 395/219,436/140, 447/131,449/141,466/121, 490/150; TJSP,. RT 434/63, 497/48.

25. TJSP, R F 93/519; RT 146/275, 161/213, 169/173,179/126, 181/304, (86/ 756, 188/805; l“ TACivSP, R T 604/116, 606/140; TAMG, R T 613/213.

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seu direito de passar através do prédio alheio, adquire a continuidade e aparência exigidas pela lei.26

Pelos procedimentos possessórios, como expõe Lafaiete Rodri­gues Pereira, não se defende o direito à servidão, mas, e tão-somente, a quase-posse exteriorizada na sua utilização contínua e aparente, visan­do a restabelecer a situação anterior e a indenizar perdas e danos.27 O direito real de servidão, se contestado, só poderá ser apreciado e julga­do em ação confessória, fundada nas disposições pertinentes da lei ci­vil (arts. 1.378 a 1.389), ou da legislação de águas (Código de Águas, arts. 12, 17, 35, 77, 117, 126, 127, 129, 130, 136 e 138) ou de minas (Regulamento do Código de Mineração, arts. 81 a 85) e de outras nor­mas especiais.

Conclui-se, assim, que não só o imóvel como também suas servi­dões, aparentes ou inaparentes, ainda que não estejam inscritas no Re­gistro Imobiliário, poderão merecer proteção possessória, desde que comprovadas em juízo e demonstrado o esbulho, a turbação ou a amea­ça à fruição de suas utilidades, provenha o atentado à posse de outro particular ou mesmo do Poder Público.28

As ações possessórias são admissíveis também contra a Adminis­tração Pública, que é um vizinho de todos nós, e com suas obras e ser­viços pode turbar, esbulhar ou ameaçar de atentado a posse do particu­lar. Tanto isto pode ocorrer que o Código de Processo Civil admite expressamente os procedimentos possessórios contra as pessoas jurí­dicas de Direito Público, só não permitindo o mandado liminar sem prévia audiência dos respectivos representantes judiciais (art. 928, pa­rágrafo único).

Havendo o apossamento ilegal do bem particular pelo Poder Pú­blico e não desejando o proprietário recuperá-lo através do interdito de reintegração, poderá indenizar-se por meio da ação de desapropriação indireta, já consagrada pela doutrina e aceita pela jurisprudência pací­fica de nossos Tribunais.

1.10 AÇÕES DE DEMARCAÇÃO E DE DIVISÃO

As ações de demarcação e de divisão, conquanto visem a objeti­vos diferentes, são reguladas em conjunto pelo Código de Processo Ci­

26. R F 40/296. No mesmo sentido: Noé Azevedo, in RT 177/38.27. Direito das Coisas, 5a ed., 1/445, Rio, § 136.28. STF, RT 166/167,212/636; TJSP, R T W 215 , 87/331 e 730, 114/157, 132/

221, 136/661, 173/791.

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vil (arts. 946 a 981), uma vez que o procedimento de ambas é asseme­lhado e geralmente são reunidas num só processo, para que se delimite a propriedade, repartindo-a, a seguir, entre os condôminos. A lei pro­cessual, atendendo a que há normas aplicáveis a ambas as ações - de- marcatória e divisória - e regras específicas para cada uma delas, esta­beleceu preceitos comuns e disposições peculiares a uma e outra. Em qualquer dessas ações há duas fases bem diferençadas: na primeira ve­rifica-se e decide-se o direito de demarcar ou dividir; na segunda efeti­vam-se os atos concretos de demarcação ou de divisão. Sendo ações derivadas do domínio ou do condomínio, só os seus titulares podem requerê-las» e para tanto devem instruir a inicial com os títulos de pro­priedade e identificar o imóvel a ser demarcado ou dividido.29

1.10.1 DEMARCAÇÃO

A ação de demarcação destina-se a fixar os limites dos imóveis confinantes. Nasce, portanto, dos direitos de vizinhança consignados no Código Civil, que assim dispõe: “Todo proprietário pode obrigar o seu confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruina­dos, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respecti­vas despesas” (art. 1.297).

“No caso de confusão, os limites, em falta de outro meio, se deter­minarão de conformidade com a posse; e, não se achando ela provada, o terreno contestado se repartirá proporcionalmente entre os prédios ou, não sendo possível a divisão cômoda, se adjudicará a um deles, mediante indenização ao proprietário prejudicado” (art. 1.298).

Paralelamente, o Código de Processo Civil esclarece que “cabe a ação de demarcação ao proprietário para obrigar o seu confinante a es­tremar os respectivos prédios, fixando-se novos limites entre eles ou aviventando-se os já apagados” (art. 9 4 6 ,1), podendo cumulá-la com a de divisão (art. 947). Em dispositivos subseqüentes, o mesmo Código minudencia os atos próprios da demarcatória (arts. 950 a 966), que se­rão realizados por um agrimensor e dois arbitradores de nomeação do juiz, que elaborarão o laudo, a planta, o memorial descritivo e o traça-

29. Sobre demarcação e divisão , v.: Afonso Fraga, D ivisão e Demarcação de Terras, Rio, 1923; Firmino Whitaker, Terras, São Paulo, 1926; J. A. Faria Mota, Condomínio e Vizinhança, São Paulo, 1942; Milton Evaristo dos Santos, “Posses- sória - Demarcação - Coisa julgada”, RT 206/22.

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do da linha demarcanda, com base nos trabalhos de campo, para, a fi­nal, o auto de demarcação ser homologado por sentença.

É de se esclarecer que, na primeira fase da ação, não havendo con­testação, o juiz a julgará de plano; se contestada, observar-se-á o pro­cedimento ordinário (art. 955). Recorde-se, ainda, que se trata de uma ação agora considerada real pelo Código de Processo Civil (art. 95), sendo facultado ao vizinho pedir e obter, ao mesmo tempo, a demarca­ção e a restituição das áreas invadidas, mediante queixa de esbulho, formulada em conjunto com a postulação demarcatória. Aliás, a resti­tuição das áreas ocupadas ilegalmente pelos confrontantes é efeito na­tural e lógico da demarcação, pois não seria justo nem jurídico que, fixada a linha divisória dos imóveis, continuasse um confmante com terras do outro.30

A imprecisa redação da segunda parte do art. 948 do Código de Processo Civil trouxe dúvidas quanto à possibilidade da cumulação da queixa de esbulho com a demarcatória, mas Clóvis do Couto e Silva bem esclarece o sentido daquele dispositivo, dizendo: “É que os confi- nantes e réus da ação demarcatória que não tiverem cumulado sua pre­tensão demarcatória com a queixa de esbulho não perdem o direito de fazê-lo em outro procedimento. Esta ação, através da qual os confman­tes vindicam ‘os terrenos de que se julguem despojados por invasão das linhas limítrofes constitutivas do perímetro’, tanto pode ser ação possessória como reivindicatória” .31

1.10.2 DIVISÃO

A ação de divisão destina-se a repartir a propriedade entre os con­dôminos ou comproprietários, atribuindo-lhes parte certa e determina­da no imóvel e pondo fim ao condomínio. Funda-se ela no art. 1.320 do Código Civil, que diz: “A todo tempo será lícito ao condômino exi­gir a divisão de coisa comum, respondendo o quinhão de cada um pela sua parte nas despesas da divisão”. O Código de Processo determinou que “cabe a ação de divisão ao condômino para obrigar os demais con­sortes a partilhar a coisa comum” (art. 946, II), e aditou que “é lícita a cumulação desta ação com a demarcatória, caso em que se processará primeiramente a demarcação total ou parcial da coisa comum, citando- se os confmantes e condôminos” (art. 947).

30. TJSP, RT 132/522, 145/625, 185/116, 186/269, 386/106.3!. Comentários ao Código de Processo Civil, XI-I/201, São Paulo, Ed. RT,

1977.

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Como se vê, a divisória é ação somente exercitável entre condô­minos, vale dizer, entre proprietários de terras em comum, para pôr ter­mo ao condomínio. Não é ação de vizinhança, como a demarcatória. Todavia, como a divisão gera novos vizinhos, pelo desmembramento da propriedade comum, em quinhões certos e fisicamente determina­dos na gleba dividenda, justifica-se o seu estudo neste capítulo em que se cuida das ações de vizinhança. Além disso, a ação divisória está de tal forma entrosada com a demarcatória - ação típica de vizinhança - que seria difícil explicar uma sem estudar a outra, sendo certo, ainda, que a própria lei processual admite o concurso de ambas num só pro­cesso, para se demarcar e em seguida se dividir a propriedade comum (art. 947). E é racional que primeiro se demarque, depois se divida, visto que seria inexeqüível a divisão de uma propriedade com limites incertos. Outro pressuposto da ação de divisão é que o imóvel esteja efetivamente em poder dos condôminos, pois os trabalhos divisórios exigem operações físicas nas terras dividendas, não sendo admissível que se realizem sem a posse dos interessados, por si, seus mandatários ou inquilinos. Se as terras estiverem detidas por terceiros estranhos aos condôminos, necessário é que sejam primeiramente reivindicadas por ação própria, para depois serem divididas, uma vez que a reivindica­ção é inacumulável, por incompatível, com a divisão.32

Além das disposições comuns a ambas as ações, o Código de Pro­cesso Civil estabelece privativamente para o procedimento divisório que, feitas as citações e decididas as defesas, todos os condôminos se­rão intimados a apresentar, dentro de 10 dias, os seus títulos, se ainda não o tiverem feito, e a formular seus pedidos sobre a constituição dos quinhões (art. 970).

As medições e os demais trabalhos de campo serão realizados pelo agrimensor assistido pelos arbitradores, na forma dos arts. 960 a 963, devendo a planta e o memorial descritivo conter todas as indicações dos §§ lü e 2C do art. 975, sendo tais peças complementadas pelo laudo de avaliação com a proposta de divisão (art. 978 e parágrafos). Apro­vado o plano divisório e deliberada a partilha, o escrivão lavrará o auto de divisão, acompanhado de uma folha de pagamento para cada con­dômino, com as especificações da lei (art. 980 e parágrafos). Com a homologação desse auto finda-se a divisão, cabendo unicamente o re­curso de apelação, com o só efeito devolutivo (art. 5 2 0 ,1).

32. TJSP, RT 152/155, 164/272, 171/168, 182/663. O Tribunal de Justiça de São Paulo considerou a nunciação de obra nova descabida em lugar da ação divi­sória (RT 673/54).

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1.11 A ÇÕES DE CONDOMÍNIO

O condomínio é forma atípica de propriedade, porque esta, por natureza, deve ser exclusiva.33 Conclui-se, daí, que a principal ação dos condôminos é a divisória, já examinada precedentemente (item 1.10), para fazer cessar a comunhão, seguindo-se a de venda, locação e ad­ministração da coisa comum e a de venda de quinhão em coisa co­mum, prevista no Código Civil (arts. 1.320 a 1.322), bem como as ações específicas do condomínio de apartamentos, decorrentes da Lei4.591, de 16.12.1964, as quais serão apreciadas a seguir.

1.11.1 VENDA, LOCAÇÃOE ADMINISTRAÇÃO DA COISA COMUM

A ação para venda, locação e administração da coisa comum está relacionada no Código de Processo Civil dentre os procedimentos es­peciais de jurisdição voluntária (Livro IV, tít. II), sem maiores indica­ções para o seu ajuizamento e tramitação que as simples referências em alguns dispositivos esparsos (arts. 1.112, ÍV; 1.117, II; 1.118 e 1.119). Esse procedimento destina-se a possibilitar a alienação ou a locação, ou, ainda, a forma de administração do bem indiviso, caso os condôminos pretendam explorá-lo em conjunto. Em qualquer dessas hipóteses, os direitos e deveres dos condôminos reger-se-ão pelas nor­mas gerais do Código Civil (arts. 1.314 a 1.321).

Admite-se a venda da coisa comum quando for ela indivisível, ou pela divisão se tomar imprópria a seu destino. O conceito de indivisi­bilidade jurídica é diverso do de indivisibilidade matemática. O Código Civil esclarece que são indivisíveis os bens que, embora naturalmente divisíveis, se consideram indivisíveis por lei ou convenção das partes (art. 88). Desde que ocorra uma dessas circunstâncias, que tome a coi­sa juridicamente indivisível, qualquer condômino poderá requerer a venda, na forma dos arts. 1.117, II, do Código de Processo Civil e 1.322 do Código Civil.

Poderá, ainda, qualquer condômino pedir que a coisa comum in­divisível seja alugada ou administrada em proveito de todos, caso a maioria não concorde com a venda (Código Civil, art. 1.323). Em qual­quer dessas hipóteses, a manifestação do desejo do condômino diver­

33. V. a conceituação de condomínio no cap. 1, item 3, e, sobre contrato de incorporação de condomínio, leia-se o cap. 7, item 3.4.

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gente e a deliberação da maioria devem ser expressas na forma proces­sual adequada, sob pena de invalidade da resolução.

1.11.2 VENDA DE QUINHÃO EM COISA COMUM

A ação para venda do quinhão em coisa comum é dada ao condô­mino que quiser alienar parte na coisa indivisível, observadas as prefe­rências do art. 1.118 do Código de Processo Civil. Este dispositivo está em correspondência direta com o art. 504 do Código Civil, que veda ao condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranho sem antes oferecê-la judicialmente aos demais condôminos, em igualdade de preço e condições ofertados peto estranho. Se a venda se efetuar sem essa formalidade, poderá qualquer condômino, no prazo de seis meses, depositar o preço e haver para si a parte vendida a estranho (Có­digo Civil, art. 504, parágrafo único).

1.11.3 OUTRAS AÇÕES DE CONDOMÍNIO

Outras ações de condomínio surgiram da modalidade atual de edi­fício de apartamentos, que, na realidade, é um condomínio anômalo, porque as unidades horizontais são autônomas e de propriedade exclu­siva de quem as adquire, só havendo condomínio das áreas e equipa­mentos de utilização comum (elevadores, escadas, vestíbulos etc.). Tal modalidade de compropriedade está regulada, presentemente, pela Lei4.591, de 16.12.1964, complementada pelo Código Civil de 2002, nos arts. 1.331 a 1358, que regulamentam o agora denominado “condomí­nio edilício”. Ambas as normas atribuem ao síndico a representação ativa e passiva do condomínio, com o encargo de promover ação exe­cutiva para a cobrança judicial das cotas dos condôminos em atraso com as despesas do edifício e defender o condomínio nas ações que lhe forem movidas.

Neste ponto é de observar-se que o Código de Processo Civil, com a modificação da Leí 9.245, de 26.12.1995 (art. 275, II “b”), deu pro­cedimento sumário às causas, qualquer que seja o seu valor, de cobran­ça ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio, e con­siderou títulos executivos extrajudiciais o crédito decorrente de encar­go do condomínio, desde que comprovado por contrato escrito (art. 585, IV), o que se harmoniza com a precitada Lei 4.591/1964, que, antes, já havia concedido ação executiva para cobrança de multa em que incidir o condômino por infração das obrigações estabelecidas na convenção do condomínio ou no regimento do edifício (art. 21, pará-

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grafo único), como também para os adquirentes reaverem do incorpo­rador as importâncias pagas, se rescindida a incorporação e tais quantias não forem restituídas amigavelmente dentro de 30 dias (art. 36).

A mesma lei de condomínio instituiu também ação adjudicatória, a favor da maioria, para a aquisição das partes da minoria dissidente sobre a reconstrução do edifício (art. 15) e estabeleceu o praceamento da cota de terreno e das partes construídas, para o ressarcimento da construção, quando inadimplente o condômino contratante (art. 63).

Por derradeiro, a citada lei erigiu em crime contra a economia po­pular a afirmação falsa sobre constituição do condomínio, ou sobre a venda das partes ideais do terreno, ou, ainda, sobre a construção do edifício (art. 65), e considerou contravenção penal, punível na forma da Lei 1.521, de 26.12.1951, a prática, pelo incorporador, dos atos que especifica no art. 66, estendendo-se a punição, em certos casos (pará­grafo único do art. 66), ao construtor, ao corretor e ao proprietário ou compromissário comprador do terreno.

De um modo geral, as ações do condomínio de apartamentos po­dem e devem ser promovidas pelo síndico, que é o representante legal dos condôminos, mas essa representação nem sempre exclui a legiti­midade ativa do condômino para, individualmente, acionar outros con­dôminos, ou o próprio condomínio, ou mesmo para a defesa de seus direitos contra terceiros, embora por fatos relacionados com os interes­ses condominiais. A omissão do síndico, por si só, não exclui a ação . individual do condômino.

1.12 AÇÕES DE LOTEAMENTO

O loteamento de terras, notadamente de terrenos urbanos, como for­ma de parcelamento do solo em unidades edifícáveis (lotes), está sujeito a normas civis, processuais e administrativas, para sua legal realização.

Por igual, as unidades loteadas e compromissadas à venda regem- se por normas específicas das leis civil e processual, tendentes a com­pelir os contratantes ao cumprimento do avençado e a regulamentar a forma dos contratos e de sua rescisão.

Não cabem, neste tópico, considerações sobre o loteamento como atividade econômica ou como destinação do uso do solo, o que já fize­mos precedentemente (cap. 4, item 2.1.8), mas, tão-somente, indicações sobre os processos judiciais resultantes de loteamento, relativamente ao registro do plano e à adjudicação compulsória de lotes compromissados.

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As ações de loteamento, assim entendidos os procedimentos judi­ciais decorrentes de impugnação ou dúvida sobre o registro do imóvel loteado, e os pedidos de adjudicação compulsória de lotes compromis­sados e quitados estão regulados simultaneamente pela lei de loteamen­to (Lei 6.766, de 19.12.1979, com plem entada pela Lei 649, de11.3.1949, e pela Lei 5.532, de 14.11.1968) e, ainda, pelo antigo Códi­go de Processo Civil (arts. 345 a 349), neste ponto mantido pelo atual (art. 1.218, I). São, pois, ações especiais destinadas à verificação da legalidade do registro do loteamento (no caso de dúvida ou impugna­ção dos títulos) ou ao reconhecimento do direito do compromissário comprador quite com o pagamento do preço (no caso de recusa da ou­torga da escritura definitiva) para a respectiva adjudicação judicial.

1.12.1 IMPUGNAÇÃO

A impugnação ao registro de imóvel loteado pode ser feita por terceiros, no prazo de 15 dias, contados da última publicação do edital de loteamento, mas há de vir fundada em direito real comprovado, sem o quê será rejeitada in limine (Código de 1939, art. 345, e Lei 6.766/ 1979, art. 19). Se houver fundamento para a impugnação, o juiz man­dará dar vista ao impugnado para manifestar-se no prazo de três dias e, após, decidirá sem mais formalidades. Dessa decisão caberá apelação com os efeitos próprios desse recurso, mas nem por isso deixará de ser uma solução administrativa, originária do juiz corregedor do registro.34 Como bem ponderou Wilson de Souza Campos Batalha, “a decisão proferida em impugnação fundada num direito real tem seus efeitos res­tritos à esfera administrativa. Nada obsta a que se reencete o debate no juízo contencioso”.33

1.12.2 DÚVIDA

A dúvida levantada pelo oficial de registro sobre a regularidade do plano do loteamento, no que tange ao atendimento das exigências legais, rende ensejo ao exame pelo juiz, em condições assemelhadas às da impugnação por terceiros, visto que ambas estão reguladas pelas

34. No Estado de São Paulo a impugnação é julgada peio Juiz Corregedor do Cartório, e a apelação pelo 2Ü Tribunal de Alçada Civil.

35. Loteamentos e Condomínios, 1/321, São Paulo, 1959. No mesmo sentido: Serpa Lopes, Tratado dos Registros Públicos, Ia ed., 111/92, Rio; Sílvio Pereira, Imóveis a Prestações, Ia ed., São Paulo, p. 74.

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mesmas disposições processuais (Código de 1939, art. 345 e parágra­fos). Cabe ao oficial de registro verificar se o plano de loteamento apre­sentado à inscrição contém todos os elementos formais impostos pela Lei 6.766/1979, bem como se está aprovado pelas autoridades que de­vam intervir no processo (autoridades militares, sanitárias, florestais, conforme o caso) e, finalmente, pela Prefeitura local. Todas essas exi­gências são de ordem pública, e, portanto, irrelegáveis, sob pena de nulidade do registro. Suscitada a dúvida e ouvido o Ministério Públi­co, se não forem requeridas diligências, o juiz proferirá decisão no pra­zo de 15 dias, com base nos elementos constantes dos autos, e dessa sentença poderão apelar, com ambos os efeitos, o Ioteador interessado, o Ministério Público e o terceiro prejudicado, segundo expressa men­ção da Lei de Registros Públicos (art. 202), mas é de entender-se que também o oficial suscitante e o Município têm legitimidade para essa apelação, pois àquele incumbe velar pela regularidade do seu registro e a este compete preservar o seu território contra loteamento irregular sob o aspecto urbanístico.36

1.12.3 ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA

A adjudicação compulsória de terrenos compromissados à venda embasa-se no art. 25 da Lei 6.766/1979, combinado com os arts. 346 a 349 do Código de Processo Civil de 1939, agora com rito sumário es­tabelecido pelos arts. 275 a 281 do estatuto processual civil de 1973, que, por seu art. 1.218,1, manteve o procedimento anterior. Mas a nova sistemática do Código vigente impõe algumas alterações no rito dessa ação, devendo considerar-se revogados os §§ 2a e 3Ü do citado art. 346, por incompatíveis com a sumariedade do atual procedimento. Neste particular, Sydney Sanches, em preciosa monografia sobre a execução específica das obrigações de contratar, aponta as modificações no novo procedimento, em que o promítente vendedor deverá ser citado para a audiência de instrução e julgamento, na qual apresentará sua defesa, ao invés de ser intimado para outorgar a escritura definitiva dentro de cinco dias, como era antes.37 Como se percebe, a pretensa sumariedade do novo procedimento piorou a tramitação do anterior, pois no antigo sistema o réu tinha cinco dias para outorgar a escritura (e quase sem­

36. No Estado de São Paulo a dúvida é julgada pelo Juiz Corregedor do Car­tório, e a apelação pelo Conselho Superior da Magistratura.

37. Execução Específica, São Paulo, Ed. RT, 1978, pp. 17 e ss.

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pre a outorgava neste prazo), e no atual não há prazo para essa outor­ga, ficando na dependência da sentença de mérito, sempre retardada pela instrução da causa. Da sentença caberá, ainda, apelação com am­bos os efeitos.

A Lei 9.785, de 29.1.1999, que introduziu modificações na Lei 6.766/1979 (parcelamento do solo urbano), passou a dispensar a ação de adjudicação compulsória para o registro dos compromissos de com­pra e venda, as cessões e as promessas de cessão, visto que estes vale­rão como títulos para o registro da propriedade do lote adquirido, quan­do acompanhados da respectiva prova de quitação (§ 6Q do art. 26 da Lei 6.766/1979). Ao mesmo tempo, possibilita também, nos loteamen­tos populares, “a cessão da posse em que estiverem provisoriamente imitidas a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas entidades delegadas, o que poderá ocorrer por instrumento particular, ao qual se atribui, para todos os fins de direito, caráter de escritura pú­blica, não se aplicando a disposição do inciso II do art. 134 do Código Civil” [de 1916 - art. 108 do Código de 2002] (§ 3Ü do art. 26). Com o registro da sentença no processo expropriatório, essa posse converter- se-á em propriedade e a sua cessão em compromisso de compra e ven­da, conforme haja obrigações a cumprir ou estejam sendo cumpridas, circunstâncias que, demonstradas ao Registro de Imóveis, serão aver­badas na matrícula relativa ao lote (§ 5Ü do art. 26).

Por expressa determinação da Lei 649, de 11.3.1949, o privilégio da adjudicação compulsória foi estendido a todos os titulares de com­promisso de compra e venda de imóveis não loteados, desde que o contrato não contenha cláusula de arrependimento e seja inscrito, a qualquer tempo, no Registro Imobiliário competente. Em tal caso, o compromissário comprador poderá valer-se da adjudicação compulsó­ria, na conformidade dos arts. 346 do Código de Processo Civil de 1939, que acabamos de comentar, e 640 do atual.

A citada Lei 649/1949 não equipara em todos os seus efeitos os compromissos de imóveis não loteados aos de imóveis loteados, mas lhes atribui direitos reais e lhes confere o privilégio da adjudicação, em idênticas condições dos contratos de terrenos loteados. Cabe, ain­da, assinalar que, para efeitos adjudicatórios, tanto valem os instrumen­tos públicos como os contratos particulares, desde que firmados e ins­critos regularmente.

O depósito do lote pelo promitente vendedor pode ser feito ju ­dicialmente se o preço estiver integralmente pago e o compromissário comprador se desinteressar pela escritura definitiva. Em tal hipótese, o

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Código de Processo Civil de 1939 (art. 347) autoriza a consignação do lote, notificando-se, por mandado judicial, o adquirente para que, den­tro de 30 dias, compareça em cartório a fim de receber a escritura. Em caso de ausência ou recusa, será depositado em juízo, por conta e risco do compromissário, que suportará, daí por diante, todos os ônus inci­dentes sobre o imóvel.

1.13 PEDIDO COMINATÓRIO

O pedido cominatório é o meio processual de que o proprietário ou inquilino dispõe para exigir que o vizinho pratique ou deixe de pra­ticar ato ou fato imposto como obrigação de vizinhança, sob pena de incidir na pena cominada. Substantivamente, a via cominatória do vi­zinho podé assentar-se, conforme a situação ocorrente, nos arts. 1.277 a 1.284 do Código Civil, e, adjetivãmente, embasa-se no art. 275, II, “j ”, combinado com o art. 287, do Código de Processo Civil. E lamen­tável a supressão da ação cominatória como procedimento especial au­tônomo, que tão bons resultados produziu na vigência do Código ante­rior, que bem lhe definia os objetivos e a tramitação processual. Ago­ra, o pedido cominatório é enxertado em qualquer ação, sem procedi­mento específico e sem indicação precisa dos casos de seu cabimento.

Ficamos, assim, somente com o Código Civil, a declarar, generi­camente, que “o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direi­to de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e a à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de proprie­dade vizinha” (art. 1.277). Na senda da jurisprudência existente sobre o mau uso da propriedade, o atual Código acrescentou a seguinte dis­posição: “Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos mo­radores da vizinhança” (art. 1.277, parágrafo único).

Nesse dispositivo de proteção geral à segurança, ao sossego e à saúde da vizinhança é que se assenta, materialmente, o pedido comi­natório, para a prática ou abstenção de ato ou fato prejudicial ao pos­tulante, que tanto pode ser o proprietário como o simples ocupante do imóvel, prejudicado.

1.13.1 PELO VIZINHO

O pedido cominatório pelo vizinho, com fundamento no Código Civil, é admissível, em geral, para impedir qualquer utilização anor­

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mal da propriedade que afete a segurança, o sossego ou a saúde dos vizinhos (art. 1.277) e, em especial: para impor ao vizinho a demoli­ção de prédio em ruína, ou exigir os reparos necessários, ou, ainda, para obter caução pelo dano iminente (art. 1.280); para obrigar o pré­dio inferior a receber as águas que se escoam naturalmente do superior (art. 1,288);38 para obrigar o dono do prédio superior a não piorar a condição natural e anterior das águas que se escoam para o inferior (art. 1.288); para que se desviem as águas artificialmente levadas ao prédio superior que correrem para o inferior (art. 1.288); para obrigar o dono do prédio superior a não impedir o curso natural das sobras das águas não captadas para o prédio inferior (art. 1.290); para impedir que o proprietário levante construção nociva ao vizinho (art. 1.277); para impedir que a menos de metro e meio da linha divisória o proprietário abra janela ou faça eirado, terraço ou varanda (art. 1.301); para impe­dir que a construção deite goteira sobre o seu prédio (art. 1.300); para impedir que se localizem construções ou atividades incômodas ou pre­judiciais à vizinhança, em desacordo com as normas administrativas (art. 1.299); para impedir que se construa armário ou obra semelhante na parede-meia, correspondentes a outra do lado oposto (art. 1.306); para impedir que o vizinho encoste na parede divisória chaminés, fo­gões, fornos ou quaisquer aparelhos ou depósitos suscetíveis de pro­duzir infiltrações ou interferências prejudiciais (art. 1.308); para impe­dir a poluição ou inutilização de água por obra do vizinho (art. 1.309); para impedir escavação que tire ao poço ou fonte do vizinho a água necessária (art. 1.310); para obrigar o proprietário a demolir obra feita em desacordo com as imposições do direito de vizinhança (art. 1.312); para obrigar o vizinho a permitir que o confrontante entre no seu pré­dio para realizar reparação, limpeza, construção e reconstrução de seu prédio e respectivas instalações, ou apoderar-se de coisas suas, inclusi­ve animais, que ali se encontrem casualmente (art. 1.313). Pode, ainda, ser utilizada a via cominatória com base na Lei 4.591, de 16.12.1964, que dispõe sobre o condomínio de apartamentos, como também para obrigar o vizinho a observar os regulamentos administrativos da cons­trução e das atividades que afetem a vizinhança.

O necessário é que haja um fundamento legal ou negociai para embasar o pedido cominatório, que tanto pode visar à demolição como à construção ou reparos no prédio, ou à prática de um ato, ou à realiza­ção de um fato, ou, finalmente, à abstenção de uma atividade ou con­duta nociva ao vizinho.

38. V. também arts. 69 e 102 e ss. do Código de Águas.

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O pedido cominatório é adequado para impedir construção ou ati­vidade nociva, quer ao prédio vizinho {damno ad retri), quer às pessoas que o ocupam {damno adpersonam), como também é meio hábil para exigir-se caução por dano iminente.

Em nossos dias a via cominatória absorveu no seu conteúdo e fi­nalidades os obsoletos procedimentos romanos operis novi nuntiatio, interdictum quod vi ant ciam, cautio damni infecti, que nos deram as complicadas ações nunciatórias, demolitórias e caucionárias, em cujo ritual tanto se detiveram os praxistas, mais preocupados com o forma­lismo processual que com a finalidade judiciária.

Na atualidade, pode-se afirmar que cabe na via cominatória o acer- tamento de todos os conflitos de vizinhança em que a lei ou o contrato imponham determinada conduta, omissiva ou comissiva. O Código de 1973 espancou a dúvida anterior sobre a possibilidade do pedido de pena diária, pelo próprio autor (arts. 644 e 645), mas é claro que o juiz poderá reduzi-la se for exagerada, fixando-a em quantia razoável, na sentença.

Além do objeto específico da cominatória - prestação ou absten­ção de fato ou ato sob sanção é admissível pelo Código de Processo Civil o pedido de perdas e danos na mesma ação, desde que os prejuí­zos resultem do ato ou fato em apuração no processo. Essa orientação se nos afigura útil e racional, embora a ela se oponham alguns proces- sualistas mais apegados à tradição que à boa razão. Na realidade, nada impede a cumulação de pedidos quando a tramitação é idêntica para a cominação e a indenização e os fatos a apurar são os mesmos a serem considerados na sentença. Com esta junção de pedidos ganha-se em celeridade e economia processual, o que, por si só, justifica sua admis­sibilidade. Cabe ainda, com a cominação, a exigência de caução por dano iminente, quando antes da demolição ou da reparação necessária houver risco de futuros prejuízos decorrentes do mesmo fato ou ato que ensejou o pedido principal.

1.13.2 PELA ADMINISTRAÇÃO

O pedido cominatório pela Administração Pública , conquanto muito mal-expresso no Código de Processo Civil, pode ser inferido do inciso III do art. 934, combinado com os incisos I e II do art. 936, que se referem a embargo de obra e cominação de pena para o caso de inobservância do preceito , o que outra coisa não é senão a postulação cominatória encaixada na ação de nunciação de obra nova. Nessa es­

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pecificação, aliás, o redator do Código cometeu outro deslize ao refe- rir-se unicamente “ao Município” (art. 934, III), quando deveria men­cionar genericamente o Poder Público, pois não é admissível que a União, o Distrito Federal, os Estados e os Territórios não tenham ação e cominação contra obras de terceiros que contravenham suas leis e regulamentos e prejudiquem seus bens e serviços.

Observamos, porém, que a via cominatória é facultada, e não im­posta ao Poder Público, para impedimento de atividades e demolição de obras ilegais do particular, pois é certo que a Administração pode valer-se da interdição e do embargo administrativo, executando dire­tamente as suas decisões de repressão às construções irregulares ou clandestinas e às obras que ofereçam perigo iminente à coletividade, independentemente de ordem judicial.39 A execução direta dos atos de polícia das construções decorre do poder de autotutela administra­tiva, sustentado pela melhor doutrina40 e acolhido pela jurisprudên­cia mais atualizada com os preceitos do Direito Público.41 Ao parti­cular que se sentir lesado pelas determinações e embargos da Admi­nistração é que cabe recorrer ao Judiciário para o acertamento de seus eventuais direitos.

1.13.3 CONTRA A ADMINISTRAÇÃO

O pedido cominatório contra a Administração Pública é admissí­vel quando o particular dispõe de um direito subjetivo a determinada prestação ou abstenção do Poder Público a seu favor, que tanto pode ser um serviço como um ato ou fato administrativo.42 O essencial é que a prestação ou abstenção objetivada se apresente como um direito de fruição individual, uti singuli, do autor, ainda que extensivo a toda uma categoria de beneficiários. Assim, um serviço público de utiliza­ção geral, uti universi, como o calçamento e a iluminação de vias pú­blicas, não pode ser exigido pelo particular por via cominatória,43 mas

39. V. o cap. 6, item 1.8, sobre embargo de obra.40. V. nosso Direito Administrativo Brasileiro, 30a ed., Malheiros Editores,

2005, cap. IV, n. 2, Atributos do ato administrativo. No mesmo sentido: Machado Guimarães, Comentários ao Código de Processo Civil, IV/184, 1942; Caio Tácito, “O poder de polícia e seus limites”, RDA 27/1; Darci Bessone, “Poder de polícia”, £7210/49; Antão de Moraes, “Parecer” in R T 220/41.

41. STF, RF 124/438; TJSP, RDA 34/297, 35/293, 95/114; £7204/283, 220/ 273, 227/136; TASP, £7307/690, 428/276.

42. TJSP, RT 178/798, 293/323, 618/78; TASP, £ 7 293/447.43. TASP, RT 235/492.

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os equipamentos domiciliares como água encanada, telefone, eletrici­dade e outros que eventualmente sejam criados para serventia indivi­dual de usuários podem ser exigidos judicialmente pelo particular que estiver na área de prestação de tais serviços e não for atendido pela Administração encarregada de os prestar.44 Pelos mesmos motivos, o particular ameaçado ou lesado por obra ou coisa pública (canalizações, viadutos, árvores da via pública, condutores de energia elétrica etc.) pode exigir cominatoriamente as providências necessárias para a re­moção do perigo ou cessação do dano, bem como a indenização do prejuízo consumado. Não se nos afigura cabível, entretanto, o pedido de caução, nem o embargo da construção pública, porque a Adminis­tração não se sujeita ao oferecimento de garantias prévias aos adminis­trados, nem pode ter os seus serviços e obras paralisados por oposição do particular, desde que executados em seus próprios bens.

2. PERÍCIAS JUDICIAIS

As ações oriundas de construções ou resultantes de danos de vizi­nhança exigem, comumente, perícias judiciais para a verificação do estado da obra ou fixação de prejuízos decorrentes do ato lesivo em discussão na demanda. Além disso, a perícia judicial é de rigor nas de­sapropriações e noutros processos especiais em que a lei impõe a apu­ração técnica de fatos ou valores necessários ao julgamento do feito. Estas considerações bastam para evidenciar a conveniência do estudo das perícias judiciais em seguimento ao das ações de vizinhança e ou­tros procedimentos relacionados com o direito de construir.

2.1 GENERALIDADES

As perícias estão previstas como meios de prova pelo Código Ci­vil (art. 212, V) e pelo Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Da prova pericial” (arts. 420 e 439), sendo admitidas sempre que a com­provação do fato depender do conhecimento técnico ou científico (Có­digo de Processo Civil, art. 145).

44. Pelos mesmos fundamentos cabe pedido cominatório do usuário contra o concessionário para obter serviço de utilidade pública, conforme já decidimos (RDA 25/263), e outros julgados admitiram, posteriormente, a mesma via: TJSP, RT 232/ 196,304/764; TASP, R T290/425, 302/506; TJDF, RDA 55/144. O Código do Con­sumidor (art. 22, parágrafo único) regula a hipótese, permitindo seja a Administra­ção compelida judicialmente a executar os serviços e reparar os danos causados.

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Perícia judicial é toda verificação de fato ou fixação de valor, rea­lizada em juízo e expressa em laudo, por pessoa compromissada no processo. A perícia judicial (gênero) apresenta-se sob três espécies bem diferençadas: exame, vistoria e avaliação.

O objetivo da perícia judicial é a obtenção de um juízo técnico es­pecializado sobre questões de fato, de interesse para a decisão da causa, destacando-se, em particular, um tipo de perícia denominada avalia­ção, que tem por objeto a apuração do valor de coisas, direitos ou obri­gações, determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes.

Para tanto, os litigantes, o Ministério Público e o juiz podem for­mular quesitos sobre a matéria em apuração pericial, no prazo comum de cinco dias seguintes à nomeação do perito, admitindo-se quesitos suplementares durante a realização da diligência (Código de Processo Civil, arts. 421, II, e 425). Entende-se por quesito toda indagação es­crita e articulada, feita ao perito, visando aos pontos a serem esclareci­dos no laudo.

O juiz negará a perícia requerida quando o fato depender do teste­munho comum, e não do parecer especial de técnicos; quando desne­cessária, à vista das demais provas; ou quando a verificação for impra­ticável, por qualquer circunstância (art. 420, I a III, do CPC). Essas disposições legais visam a impedir perícias inúteis ou protelatórias. A perícia só se justifica quando o esclarecimento de pontos controverti­dos ou improvados nos autos depender de apuração técnica ou cientifi­ca, fora do alcance da informação leiga de testemunhas, ou não eluci­dados por outros elementos instrutórios do processo. E, ainda, dispen­sável a perícia quando a natureza transeunte do fato já não permitir sua identificação ou quando o fato a periciar for irrelevante para o julga­mento da causa.46

O juiz pode - e deve - indeferir quesitos impertinentes e tumultuá- rios da matéria a esclarecer, competindo-lhe formular os que reputar convenientes ao aclaramento dos pontos em controvérsia (art. 4 2 6 ,1 e

45. Sobre perícias em geral, relativamente a seus aspectos técnicos, consulte- se, na parte de legislação, a Norma Básica para Perícia de Engenharia do IBAPE/ SP e, restrita à engenharia civil, a NBR 13.752/1996, “Perícias de Engenharia na Construção Civil”. V. também Carlos Alberto Carmona, “A prova pericial e a re­cente alteração do Código de Processo Civil”, RT 691/26.

46. A supressão da perícia, quando necessária, pode ser considerada cercea­mento de defesa (TJSP, RT 604/59).

2.1.1 PER ÍC IA 45

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AÇÕES DE VIZINHANÇA E PERÍCIAS JUDICIAIS 381

II, do CPC), pois é muito comum a apresentação de indagações estra­nhas ao objeto da demanda, que mais complicam do que elucidam a causa. Pode, ainda, o magistrado determinar, de ofício ou a requeri­mento da parte, nova perícia, quando a primeira não for suficientemen­te esclarecedora, mas essa faculdade é de ser usada com prudência, para não protelar o julgamento e onerar as partes, pois, se o laudo ofi­cial não é claro, poderá ser completado ou substituído pelo de qual­quer dos assistentes, dispensando-se nova perícia, mesmo porque esta não inovará o objeto da primeira, mas apenas esclarecerá os pontos obscuros da anterior (CPC, arts. 437 a 439).

E de observar-se, ainda, neste tópico, que as perícias tanto podem ser deferidas na ação quanto em procedimento cautelar (CPC, arts. 796 a 812), como prova antecipada (arts. 846 a 851), para resguardo de direitos perecíveis, ou comprovação de perigo ou de circunstâncias transeuntes que possam desaparecer com o tempo, sendo admissível, em tais casos, até mesmo a concessão liminar da medida, para preser­vação do direito em risco de aniquilamento. A perícia realizada em pro­cesso cautelar, se constritiva do direito do requerido, obriga ao ajuiza- mento da ação dentro de 30 dias de sua efetivação, sob pena de perder a eficácia (arts. 806 e 808, II); se não for impeditiva do exercício de qualquer direito sobre o bem pericíado, conserva indefinidamente a efi­cácia, podendo a ação ser proposta a qualquer tempo, enquanto não prescrita, com base no laudo.47

2.1.2 PERITO

O perito será sempre de nomeação do juiz, cabendo a cada uma das partes indicar o seu assistente técnico (CPC, art. 421). O perito deverá apresentar o laudo, no prazo fixado pelo juiz, respondendo a todos os quesitos deferidos e aditando as informações convenientes à elucidação da matéria periciada. Na elaboração do laudo, e especial­mente nas respostas aos quesitos, o perito deverá ater-se unicamente às questões técnicas, abstendo-se de indagações ou sustentações jurídi­cas, que não são de seu ofício.

De acordo com a Lei 8.455/1992, que alterou o Código de Pro­cesso Civil, foi dispensado o compromisso do perito e dos chamados assistentes técnicos. Estes últimos passaram a ser, na realidade, meros

47. Humberto Theodoro Júnior, Processo Cautelar, Ed. Universitária de Di­reito, 1976, p. 144.

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assessores das partes, já que não oferecem mais laudos, mas sim pare- ceres, nem incorrem nos impedimentos e suspeições do perito. A mes­ma lei determinou que, quando a natureza do fato o permitir, a perícia poderá consistir apenas na inquisição do perito e dos assistentes, por ocasião da audiência de instrução e julgamento (CPC, art. 421, § 2Ü).

“Peritos - ensina Chiovenda - são pessoas chamadas a expor ao juiz não só as observações de seus sentidos e suas impressões pessoais sobre os fatos observados, senão também as induções que se devem tirar objetivamente dos fatos observados ou que se lhes dêem por exis­tentes. Isso faz supor que eles são dotados de conhecimentos teóricos ou aptidões em domínios especiais tais, que não devam estar ao alcan­ce ou no mesmo grau de qualquer pessoa culta”.48 No mesmo sentido é a lição de Pedro Batista Martins: “O perito é um cientista ou um técni­co a quem o juiz delega a função de raciocinar por ele, ou de proceder a exames que, por lhe faltarem conhecimentos especializados, não lhe seria possível realizar com êxito”.49

Daí por que o perito e os assistentes não emitem opinião sobre o direito ou a pretensão das partes, mas juízo técnico sobre o objeto da perícia, em face de sua verificação pessoal. Para tanto, podem e devem recorrer a todos os meios de informação a seu alcance e utilizar os mé­todos e processos técnico-científícos adequados à elucidação das ques­tões que lhes foram propostas nos quesitos (CPC, art. 429).

A Lei 7.270, de 10.12.1984, acrescentou três parágrafos ao art. 145 do Código de Processo Civil, exigindo que os peritos sejam esco­lhidos entre profissionais de nível universitário, devidamente inscritos no órgão de classe competente, devendo eles comprovar sua especiali­dade na matéria por meio de certidão da mesma entidade. Somente nas localidades onde não houver profissionais qualificados o perito poderá ser escolhido livremente pelo juiz.

Tais disposições se harmonizam com as das leis de regulamenta­ção profissional, que tomam privativas de seus destinatários as ativi­dades que especificam, dentre as quais as perícias judiciais, no campo das respectivas profissões, a exemplo da Lei 5.194, de 24.12.1966, que regula o exercício profissional do engenheiro, do arquiteto e do enge­nheiro agrônomo, tão vinculados à construção civil e às perícias em imóveis urbanos e rurais.

48. Instituições de Direito Processual Civil, III/173, São Paulo, 1945.49. Comentários ao Código de Processo Civil, III/157, São Paulo, 1942.

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E sobejam razões para que o perito seja um técnico, e não um lei­go: a informação leiga cabe à testemunha, o juízo técnico é que com­pete ao perito; a apreciação leiga está sempre ao alcance do próprio juiz, ao passo que os conhecimentos especializados é que o juiz pede ao perito; a apuração de fato comum é feita pelos meios comuns de prova; a realização de atividade científica ou de atribuição técnica é que depende de especialistas habilitados para exercê-las. Entretanto, como nem sempre há profissionais habilitados, na comarca, à disposi­ção da Justiça, para a realização das diversificadas perícias, pode o juiz nomear pessoa idônea com algum conhecimento sobre o assunto, a fim de suprir a falta do técnico. Mas isto é uma contingência da realidade nacional, em caráter emergencial e supletivo. O normal, a regra, é a no­meação de perito e a indicação de assistentes dentre técnicos de grau universitário, com habilitação adequada ao objeto da perícia e inscrição na respectiva entidade profissional, sob pena de invalidade do laudo.30

O perito, uma vez nomeado, passa a ser auxiliar da Justiça, com todos os encargos e prerrogativas da função, devendo elaborar o laudo no prazo, com eficiência e probidade profissional, sob pena de incorrer em responsabilidade civil e processual (Código de Processo Civil, art. 147), podendo incidir também em crime contra a administração da Jus­tiça se fizer afirmação falsa, negar ou calar a verdade nas suas verifica­ções (Código Penal, art. 342).

Finalmente, é de se lembrar que o perito pode escusar-se do encar­go dentro de cinco dias da designação, desde que tenha justo motivo para a recusa, como pode ser argüido de impedimento ou de suspeição para funcionar no processo, caso em que deverá ser substituído, se acolhida a escusa ou a impugnação (Código de Processo Civil, arts. 146 e 423).

2.1.3 LAUDO

O laudo é o resultado da perícia, expresso em conclusões escritas, fundamentadas e assinadas pelo perito. Os assistentes oferecerão seus

50. A Resolução CONFEA-345/1990, publicada no DOU de 2.8.1990, seção I, p. 14.737, determinou serem nulas de pleno direito as perícias e avaliações quan­do efetivadas por pessoas físicas ou jurídicas não registradas nos CREAs. Estabe­leceu, ainda, que a plena validade dos trabalhos técnicos está condicionada à Ano­tação de Responsabilidade Técnica (ART), exigida pela Lei 6.496/1977.

A jurisprudência dos tribunais tem entendido que a nomeação de perito deve recair, necessariamente, em profissional habilitado (TFR, AgPet 22.181; TJRS, Ap. cível 33.448; TJSC, Ap. cível 2.663; TAPR, Ap. cível 3.519/1966).

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pareceres no prazo comum de 10 dias após a intimação às partes da apresentação do laudo do perito (Código de Processo Civil, art. 433, parágrafo único).M

No laudo devem ser respondidos todos os quesitos deferidos pelo juiz, mencionando-se os fatos e circunstâncias em que se baseiam as conclusões e respostas às indagações das partes, do Ministério Público ou do magistrado, podendo ser instruído com plantas, desenhos, cro- quis, fotografias e quaisquer outros elementos elucidativos da perícia (Código de Processo Civil, art. 429).

As virtudes do laudo resumem-se em clareza, objetividade e fun­damentação: clareza na exposição dos fatos periciados; objetividade na metodologia da pesquisa; fundamentação para abonar as conclusões e respostas aos quesitos. Sendo o laudo uma peça de esclarecimento técnico, deverá ser absolutamente claro na redação e preciso nos con­ceitos, além de objetivo na motivação, visto que a sua credibilidade decorre mais da justificação de suas respostas que das opiniões subje­tivas do perito. De nada valem as respostas monossilábicas “sim” ou “não” aos quesitos, se não vierem justificadas pelos fatos apurados na perícia e pela motivação técnica ou científica, abonadora da conclusão, como, também, são inócuos os juízos pessoais do expert, derivados de suas predileções ou aversões individuais. O que importa é a fundamen­tação do laudo, calcada em elementos objetivos, analisados e interpre­tados por métodos adequados, que conduzam a conclusões técnicas irrefutáveis. Inúteis, também, são as considerações de ordem jurídica que alguns peritos se permitem enxertar no laudo, esquecidos de que sua missão é meramente técnica e de absoluta neutralidade perante o alegado direito das partes.

O laudo assim elaborado é peça fundamental para a decisão da causa, mas o juiz não fíca adstrito às conclusões do perito nem às dos assistentes, podendo aceitar qualquer dos laudos ou recusar todos eles, caso em que nomeará outro perito apenas “para corrigir eventual omis­são ou inexatidão” do anterior (arts. 436 a 439). Já advertimos prece­dentemente que essa faculdade deve ser usada com cautela, para não protelar o julgamento do litígio nem onerar o vencido com despesas da nova perícia, pois que, mesmo quando o laudo oficial é insatisfatório, o juiz pode aceitar qualquer dos laudos do assistente que ofereça ele­mentos suficientes para a decisão, ou conjugar os elementos válidos dé todos eles para formar a sua convicção. Como bem observou Heroti-

5.1, 2Ü TACivSP, RT 712/210.

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des da Silva Lima, “se o laudo obrigasse o juiz, o perito, nas questões em que interviesse, é que seria, na realidade, o julgador, usurpando fun­ção que, privativamente, cabe a certos órgãos do Estado, investidos do poder de julgar”.32

O que se requer do laudo é o aclaramento das questões técnicas submetidas à apreciação pericial. Por isso, há de ser objetivo e conclu­sivo, afirmando ou negando o que foi indagado nos quesitos, sem omis­sões ou evasivas e, obviamente, sem desvios ou falsidades nas suas in­formações e conclusões. Laudo omisso, faccioso, confuso ou incon­clusivo é imprestável.

O laudo há de estar em cartório no prazo fixado pelo juiz, pelo menos 20 dias antes da audiência de instrução e julgamento, para que as partes possam examiná-lo e formular, por petição, perguntas escla­recedoras a serem respondidas pelo perito ou assistentes na própria au­diência, e para isto deverão ser intimados com antecedência mínima de cinco dias, dando-se-lhes ciência das indagações (arts. 435 e 452, I). Essas “perguntas esclarecedoras” não se confundem com “quesitos su­plementares”, pois devem limitar-se à elucidação do que já foi indagado na perícia, sem inovação do questionário inicial. Embora as “perguntas esclarecedoras” sejam formuladas por escrito, o juiz deverá permitir re~ perguntas na audiência, diante dos esclarecimentos prestados pelos lou­vados, desde que pertinentes e contidas no âmbito do que foi indagado na petição, para não constituir surpresa e inovação da matéria.

A NBR 14.653-1, de maio/2001, que dispõe sobre os procedimen­tos gerais para a avaliação de bens, relaciona os requisitos mínimos que o laudo avaliatório deve conter, bem como explicita que pode ser apresentado em duas modalidades: simplificado, contendo de forma sucinta as informações necessárias ao seu entendimento; e completo, contendo todas as informações necessárias e suficientes à sua compre­ensão. Admite ainda uma terceira hipótese, que é o laudo de avaliação de uso restrito, obedecendo às condições específicas pré combinadas entre as partes contratantes, e que não tem validade para outros usos ou exibição a terceiros - fato que deve ser explicitado no laudo. A NBR14.653-1 define laudo de avaliação como o relatório técnico elabora­do por engenheiro de avaliações em conformidade com ela, esclare­cendo em nota de rodapé que na Engenharia Legal este termo é reser­vado ao trabalho do perito. Por outro lado, a NBR 13.752/1996 dá as diretrizes para as perícias de engenharia na construção civil, apresen­

52. Código de Processo Civil Comentado, 1/257, São Paulo, 1940.

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tando os requisitos essenciais e complementares dessas perícias, bem como os relativos à apresentação dos respectivos laudos.

Feitas essas considerações gerais sobre perícia, perito e laudo, ve­jamos, agora, as perícias judiciais em espécie, que, na expressão do Código de Processo CiviJ, repartem-se em exame, vistoria e avaliação (art. 420). Essas perícias tanto podem ser produzidas no bojo da ação como em procedimento autônomo, para prova antecipada da futura de­manda (arts. 846 a 851), as quais, no Direito anterior, tinham a desig­nação genérica de “vistoria ad perpetuam rei memoriarrí\ Examine­mos separadamente cada uma dessas espécies periciais.

2.2 EXAME JUDICIAL

Exame judicial é a inspeção feita em pessoa, animais ou coisas móveis por perito nomeado pelo juiz para a verificação de fatos ou cir­cunstâncias que interessem à solução da causa. O Código processual, embora dando sentido específico a exame no art. 420, onde o distingue da vistoria e da avaliação, empresta-lhe o significado genérico de pe­rícia judicial nos arts. 335, 846 e 851, numa gritante falta de técnica. Deste modo, torna-se difícil conceituar o exame em face da norma ad­jetiva, que ora especifica e restringe, ora generaliza e alarga o seu sig­nificado, confundindo-o com as demais espécies. Malgrado essa im­precisão conceituai da lei, a doutrina tem ensinado, corretamente, que o exame judicial é espécie do gênero perícia judicial e se caracteriza como inspeção em pessoas, animais ou bens móveis, para quaisquer verificações de interesse da Justiça.

A propósito, vem a lição de Frederico Marques: “Exame é a ins­peção realizada por perito para cientificar-se da existência de algum fato ou circunstância que interesse à solução do litígio. O exame pode ter por objeto coisas móveis, semoventes, livros comerciais, documen­tos e papéis em geral, e até mesmo pessoas (como, v.g., o exame mé­dico)” .53 No mesmo sentido é o conceito de João Carlos Pestana de Aguiar: “O exame pericial consistirá na inspeção direta feita pelo peri­to sobre pessoas, animais e coisas móveis em geral, para verificação de algum fato ou circunstância que interesse à decisão da causa”.34

Daí os conhecidos “exame da escrituração” (Código Civil, arts. 1.190 e ss.), “exame de corpo de delito” (CPP, arts. 158 e ss.), e os

53. M am ai de D ireito P rocessual Civil, 11/225, São Paulo, 1977.54. Comentários ao Código de Processo Civil, IV/362, São Paulo, 1977.

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demais exames indicados no próprio Código de Processo Civil: “exa­me de documento” (art. 434), “exame contábil” (art. 915, § 3Q), “exame do interditando” (art. 1.183), e outros. Todos esses exames constituem perícias técnicas, privativas de profissionais habilitados nas especiali­zações correspondentes e registrados nos respectivos Conselhos ou Or­dens regionais.

2.3 VISTORIA JUDICIAL

Vistoria judicial é a inspeção feita em imóvel, por perito compro­missado nos autos, para verificação de seu estado ou de circunstâncias a ele concernentes. Pode objetivar as mais diversas elucidações relati­vas ao prédio, e não raras vezes é conjugada com outra espécie de pe­rícia, que é a avaliação. Mas o que caracteriza a vistoria é a inspeção de bem imóvel, para fixar sua localização, averiguar suas condições estruturais, constatar atributos, defeitos ou danos do prédio e de suas servidões.

A vistoria é realizada comumente na fase instrutória da ação, mas, como medida preventiva ou cautelar, pode ser requerida antes do ajui- zamento da causa, como prova antecipada, em procedimento autôno­mo (arts. 846 a 851), outrora denominado ad perpetuam rei memoriam (Código de 1939, art. 676, VI). Tanto a vistoria feita na ação quanto a efetivada em procedimento cautelar específico constituem espécie do gênero perícia judicial e se sujeitam às mesmas normas procedimen­tais para a nomeação do perito, indicação dos assistentes e elaboração do laudo (arts. 420 a 439, combinados com os arts. 846 a 851).

Por defeito de redação e de técnica, o Código de Processo Civil omite a vistoria dentre as provas que admitem produção antecipada, só mencionando o “exame pericial” (arts. 846 e 849), numa imprópria in­clusão da espécie (exame) em lugar do gênero {perícia); mas nem por isso ficou a vistoria excluída desse procedimento, pois não é compre­ensível que os imóveis não possam ser inspecionados e até avaliados cautelarmente, como na realidade o têm sido. Efetivada a vistoria como procedimento cautelar não constritivo do direito de terceiro, a sua efi­cácia subsiste indefinidamente (sem a limitação do art. 806 do Código de Processo Civil), podendo a ação ser ajuizada a qualquer tempo, en­quanto não prescrita, com base nas conclusões do laudo.

Suprindo lacunas existentes nas normas técnicas da ABNT, o IBAPE/SP editou sua Norma de Inspeção Predial, regulamentando vis­

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torias nas edificações direcionadas para seus planos de manutenção, bem como sua Norma de Inspeção Ambiental, primeira norma especi­fica sobre o tema.

2A AVALIAÇÃO JUDICIAL

Dentre as perícias judiciais destaca-se, por sua importância e fre­qüência, a avaliação,55 notadamente a avaliação de imóveis, obriga­tória nas desapropriações e usual nas ações reparatórias de dano, reno- vatórias e revísionais de aluguel e nas vendas de bens realizadas em juízo. Por isso daremos maior desenvolvimento ao tema, dèsde a sua conceituação até os seus objetivos, métodos e processos adotados na atualidade para essa espécie de perícia.

2.4.1 CONCEITO DE AVALIAÇÃO

Avaliação judicial é a fixação do valor pecuniário de coisas, direi­tos ou obrigações, feita por perito nomeado ou avaliador do juízo. O

55. Sobre avaliações, em seus aspectos técnicos, consultem-se: Roberto Soares de Camargo, “Conceitos gerais sobre avaliações” (in Engenharia de Avaliações, ed. Pini, 1974); Hélio de Caires, “Avaliações de glebas e depreciação de imóveis*1 (idem); Fernando Guilherme Martins e José Carlos Pellegrino, “Critério para cálculo de fun­do de comércio” (idem); Miguel Carlos Kozma, “Avaliação de propriedades rurais” (idem); Victor Carlos Fillinger, “Avaliação de máquinas, equipamentos, instalações industriais e indústrias” (idem); Joaquim da Rocha Medeiros Júnior, “Vantagem da coisa feita na avaliação de imóveis pelo método de custo” (idem); Ernesto Whitaker Carneiro e Joaquim da Rocha Medeiros Júnior, “Avaliações de terrenos supera- proveitados’5 (RT 522/263); José Carlos Peílegrirío e Joaquim da Rocha Medei­ros Júnior, “Avaliação de escritórios e apartamentos pelo método comparativo direto” (RT 486/243); Fernando Guilherme Martins, “Avaliação de glebas, subsí­dios para pré-píanos” (in Construções e Terrenos, ed. Pini, 1980); Hélio de Caires e Hélio Roberto de Caires, Avaliação de Glebas Urbanizáveis (ed. Pini, 1984); José Carlos Pellegrino, “A propósito do Valor Potencial - raízes, problemas, im­plicações” (in Avaliações p a ra Garantias, ed. Pini, 1983); Joaquim da Rocha Me­deiros Júnior, “Avaliação de Lotes Urbanos” e “Avaliações de Benfeitorias de Imó­veis Urbanos” (íbidém); Joaquim da Rocha Medeiros Júnior e José Carlos Pelle- grino, “Método dei Custo: o terceiro componente” (rbidem); Milton Carideloro, “Ar­bitramento de Aluguéis1’ (ed. Pini, 1991). Tendo em vista á fase de transição por que passam as normas técnicas da área, existem interpretações divergentes, que po­dem ser encontradas na bibliografia mais recente: Rubens Alves Dantas, Engenha­ria de Avaliações - Uma Introdução à M etodologia Cientifica (ed. Pini, 1998); Mar­celo Corrêa Mendonça e outros, Fundamentos de Avaliações Patrimoniais e Perí­cias de Engenharia (ed. Pini, 1998); Sérgio Antônio Abunahrhan, Curso Básico de Engenharia Legal e Avaliações (ed. Pini, 1999); IBAPE/SP, Glossário de Termino­logia Básica Aplicável à Engenharia de Avaliações e Perícias dó IBAPE/SP, 2002.

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Código de Processo Civil incluiu-a, dentre as provas periciais, ao lado do exame e da vistoria (art. 420), sujeitando-a, portanto, ao mesmo pro­cedimento dessas perícias (arts. 421 a 439, c/c o art. 145), muito em­bora em outros dispositivos parifique a avaliação com o arbitramento, numa deplorável confusão conceituai, que toma difícil distinguir um instituto do outro, pois em cada texto o vocábulo arbitramento tem um sentido, ora diversificando-se, ora identificando-se com avaliação.56

Bem por isso, Frederico Marques, depois de acentuar o caráter pe­ricial da avaliação, advertiu: “Costuma-se dar a denominação de arbi­tramento a essa perícia, quando a verificação ou estimativa tem por ob­jeto um serviço, ou compreende cálculo abstrato sobre indenização ou sobre o valor de alguma obrigação. O Código de Processo Civil usa expressamente o vocábulo arbitramento (em lugar de avaliação) em al­guns textos”.37 Realmente, o Código usa - e abusa - o termo arbitra­mento como sinônimo de avaliação ou com sentido diverso, impossi­bilitando uma conceituação uniforme daquele instituto. O inegável é que avaliação ou arbitramento, quando este se equipara àquela, cons­tituem prova pericial, regida pelos mesmos preceitos processuais.

Sendo a avaliação judicial, como é, meio técnico de apuração do valor de quaisquer bens, inclusive direitos e obrigações, há de ser rea­lizada, em regra, por técnico, ressalvadas as exceções em que a própria lei processual admite sua efetivação por leigo (v.g., avaliador judicial). As avaliações são sempre exigidas nas desapropriações, cuja lei se an­tecipou no sistema do perito único nomeado pelo juiz, acompanhado de assistentes técnicos indicados pelas partes (Decreto-lei 3.365/1941, art. 14), presentemente adotado como regra processual geral para to­das as perícias judiciais (art. 421 do Código de Processo Civil).

O essencial em qualquer avaliação é que o valor fixado pelo peri­to corresponda à realidade e â finalidade da perícia, apoiando-se em dados objetivos, comprovados e ponderados tecnicamente no laudo. Embora relevantes a idoneidade e a capacidade profissionais do avalia­dor, o laudo não deve conter juízos subjetivos do perito, mas sim de­monstração efetiva de justeza dos valores encontrados. Também nem sempre os métodos e fórmulas matemáticas de avaliação conduzem ao

56. Não confundir arbitramento com arbitragem, figura regulada pela Lei 9.307, de 23.9.1996, e destinada a dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, através da indicação de um árbitro de confiança das partes, ficando a critério destas se a arbitragem será de direito ou de eqüidade.

57. Manual de Direito Processual Civil, 11/226, São Paulo, 1977.

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real valor do bem avaliado, porque podem interferir fatores excepcio­nais ou peculiaridades distorcivas - valorizantes ou desvalorizantes - que alterem as regras adotadas. Necessário é que o perito considere e sopese, em cada caso, as especificidades ocorrentes, para dar certeza e confiabilidade ao seu laudo.

Por outro lado, a avaliação não é de ser rejeitada diante de simples divergências de valores entre a estimativa do perito do juiz e a dos as­sistentes técnicos das partes, porque tais discrepâncias são normais tra­tando-se de apuração pecuniária, não devendo, porém, ser pela média aritmética da soma do laudo do perito e dos valores apresentados pelos assistentes em seus pareceres, sendo mais acertada a adoção integral ou parcial das conclusões que se apresentarem mais convincentes na justificação dos valores encontrados ou, ainda, em último caso, ser re­novada a perícia (arts. 436 e 439 do Código de Processo Civil). Se o valor aceito já estiver desatualizado pelo transcurso do tempo, será pas­sível de correção monetária, na liquidação do julgado, pelo índice le­gal aplicável à espécie.

Finalmente, é de lembrar que a avaliação, como as demais provas periciais, pode ser requerida e produzida antecipadamente como medi­da incidente, no curso do processo principal, em autos apartados (art. 809), mas antes do momento adequado para o início da instrução, ou seja, durante a fase meramente postulatória (arts. 796 e 849), quando houver perigo na demora da produção dessa prova.

2.4.2 DETERMINAÇÃO DO VALOR PELA AVALIAÇÃO

O objetivo de qualquer avaliação é a determinação do valor do bem periciado, mas esse valor pode variar consoante a destinação e a finalidade de sua fixação. Daí as diversas modalidades e conceituações de valor de mercado, também denominado valor de venda ou valor venal. Além desse valor, merecem algumas considerações, por sua in­fluência nas avaliações, o preço , o custo e a renda, conceitos conexos, que sempre aparecem nos laudos avaliatórios.

Valor é a estimativa pecuniária que se atribui a um bem para de­terminada finalidade. O valor pode variar conforme o fim a que se des­tina o bem ou as circunstâncias quê concorrem para sua obtenção. Eis por que, consoante os objetivos de cada avaliação, a estimativa pode ser diferente para o mesmo bem, em razão do valor que se procura. Como já se disse, usualmente se busca, nas avaliações judiciais, o va­

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lor de mercado, valor de venda, valor venal, relegando-se os outros valores para situações especiais.38

Valor de mercado, valor de venda ou valor venal é aquele que o bem encontra normalmente para sua livre alienação e aquisição, em dinheiro e à vista. É, ainda, valor de mercado o que se obtém no prazo, no tempo e condições habituais da praça para determinada espécie de bem. Assim, o valor de mercado, valor venal ou valor de venda será sempre aquele que o bem obterá nas condições usuais de sua livre ne­gociação. Embora a utilidade e a necessidade do bem sejam os fatores preponderantes de seu valor, causas circunstanciais poderão intervir e modificá-lo, o que obriga o avaliador a consultar o mercado e confron­tar as livres alienações de bens semelhantes, em épocas próximas e em condições idênticas. Por isso mesmo, é indicado o método comparativo como o mais adequado para as avaliações imobiliárias, quando pude­rem ser encontrados elementos comparativos semelhantes, principal­mente de terrenos sem construção, podendo ser conjugado com outros

58. Conceitos diversos de valor.- Valor econômico é o que se atribui ao bem em função de sua capacidade de

produzir renda, em comparação com as taxas normais de investimento.- Valor histórico é o custo do bem à época de sua produção ou aquisição,

constante dos registros contábeis ou comprovado por documentos pertinentes.- Valor contábil é o constante dos registros da empresa, atualizado com os

acréscimos e deduções legais.- Valor de custo é o da obtenção do bem, acrescido de todas as despesas até a

sua disponibilidade para uso ou alienação.- Valor intrínseco é o que o bem apresenta por suas qualidades substanciais e

estruturais.- Valor de uso é o que o bem apresenta para determinada pessoa, em função

de sua utilidade específica e individual para aquele interessado.- Valor de liquidação forçada é o que corresponde à hipótese de uma venda

compulsória ou em prazo menor que o médio de absorção pelo mercado.- Valor potencial é o que o bem alcançaria no seu máximo aproveitamento

ou com determinados melhoramentos.- Valor fisca l é o que as autoridades competentes atribuem ao bem para fins

unicamente de tributação. Não se confunde com valor venal, nem se presta para qualquer avaliação.

- Valor cadastral é o que consta da planta genérica de valores para fins ad­ministrativos em geral, e em especial para fins de tributação. Neste particular, con­funde-se com o valor fiscaí, mas não se confunde nunca com o valor venal (embo­ra comum ente isso ocorra).

Observamos que nas avaliações judiciais normalmente não se procura qual­quer desses valores, mas sim o valor de mercado, valor de venda ou venal, que conceituamos no texto.

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métodos ou critérios, quando houver também edificações, instalações, plantações ou rendas a avaliar.

Circunstâncias especiais ocorrem nas desapropriações. Por se tra­tar de uma venda forçada, onde a vontade e a disposição do vendedor não têm ensejo de ser manifestadas livremente, a avaliação da indeni­zação, para ser justa, pode objetivamente cogitar de dois valores:

a) do valor de mercado, que é aquele pelo qual se realizaria uma transação de compra e venda entre partes desejosas mas não obrigadas à operação e dispondo de prazo razoável para se encontrarem, ou:

b) do valor de reposição, que é aquele que permitiria ao expropria­do recompor seu patrimônio, pela reconstituição do imóvel, cobrindo- se de todos os dispêndios previsíveis necessários para isso, diretos ou indiretos.

As avaliações concernentes a valor de mercado são feitas essencial­mente pelo método comparativo, enquanto que as relativas ao valor de reposição o são pelo método de custo ou da reedição, onde se procura reconstituir todas as parcelas componentes do custo do imóvel (valor do terreno, custo da construção, despesas financeiras etc.).

Em condições normais de mercado, e fora dos casos excepcionais, os dois valores devem coincidir, ou estar muito próximos, não ocor­rendo problemas maiores. Quando o mercado se apresenta em condi­ções anormais, especialmente em épocas de recessão, porém, é previ­sível, se não certo, que existirá uma diferença sensível nos resultados. Tal se dá porque, ocorrendo a estagnação, esta acarreta excesso de ofer­tas e os preços de mercado podem, paulatinamente, se tomar menores que o próprio custo. Essa situação praticamente coloca o avaliador em um dilema, se for levado em conta que a situação de mercado pode ser conjuntural e passageira. Em face disso, e considerando os costumei­ros prolongados atrasos nos pagamentos das indenizações, toma-se possível que, na época do recebimento das mesmas, os valores de mer­cado antigos, ainda que corrigidos monètariamente, não permitam re­compor o patrimônio do expropriado.

Outro caso que pode trazer dúvidas nas desapropriações é aquele concernente a imóveis contendo benfeitorias fora de mercado, isto é, de acabamentos ou características funcionais em desacordo com a vo­cação de uso do local e construídas pelo proprietário para satisfação de seus gostos, interesses ou hábitos particulares (p. ex., em zonas de ca­sas populares, onde o proprietário dá a um sobrado acabamento de luxo, com mármore, vidros blindados etc.). Nestas circunstâncias, o

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valor que o mercado poderia pagar certamente será sensivelmente infe­rior ao deste caso, que é o de uso.

Por princípio e em ambas as hipóteses, a indenização mais justa deve ser a que represente o máximo valor, sendo recomendável que o avaliador, por lhe fugir competência para opinar sobre o problema, apresente, no laudo, as duas opções, para que o juiz decida qual a mais apropriada.

Feitas essas considerações sobre a determinação do valor na ava­liação, convém se fixem os conceitos de preço, custo e renda, por fre­qüentemente invocados nos laudos avaliatórios, e não raro numa inde­vida confusão conceituai.

Preço é a quantia em dinheiro que se paga por um bem. Na técni­ca financeira, o preço pode ser público, semipúblico e privado. Preço público ou político é o que o Estado fixa para bens ou serviços públi­cos ou de utilidade pública, independentemente das influências do mer­cado, como ocorre com a tarifa; preço semipúblico é o que se obtém ainda por imposição do Estado, mas atendendo às oscilações do mer­cado, como são os preços tabelados, de bens ou serviços particulares; preço privado ou preço de mercado é o que se forma livremente, em decorrência da oferta e da procura do bem ou do serviço. Para fins de avaliação só interessa o preço privado, porque os demais já estão fixa­dos por ato do Poder Público competente. O preço privado ou de mer­cado deveria coincidir com o valor de mercado, mas nem sempre coin­cide, visto que a alienação onerosa depende de condições pessoais do alienante e do adquirente (v.g., interesse, necessidade, utilidade do bem ou serviço), de circunstâncias momentâneas (v.g., excesso ou escassez do bem ou serviço no local), que podem alterar o preço sem modificar o valor do bem negociado. Daí as cautelas que o perito deve tomar na apreciação comparativa dos preços para chegar ao valor efetivo do bem ou serviço avaliado.

Custo é o total das quantias despendidas na obtenção de um bem, que tanto pode ser por construção (bem imóvel), fabricação (coisa mó­vel), produção (animais, vegetais, minerais e derivados, ou serviços, ou investimentos para renda) ou aquisição (qualquer bem ou serviço). 0 que convém assinalar é que o custo abrange a totalidade dos gastos para obtenção do bem ou serviço em condições de uso ou alienação. O custo, normalmente, é inferior ao valor de mercado e ao preço de mercado ou de venda, pois nestes entra uma nova parcela, que é a do lucro, ou seja, a vantagem pecuniária que o proprietário acresce ao dispor do bem, embora existam, por exceção, bens cujo custo é superior ao seu

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valor ou ao seu preço, dada a sua pouca utilidade ou o reduzido inte­resse na sua aquisição ou utilização. E assim é porque o custo resulta de fatores determinados e objetivos, ao passo que o valor e o preço surgem de elementos variáveis, subjetivos e circunstanciais, que o pe­rito deve sempre considerar na avaliação.

Renda é todo fruto do capital ou da exploração de qualquer bem ou serviço, tais como juros, dividendos, aluguéis, lucros do empreen­dimento etc. A renda influi no valor e no preço do bem ou do serviço que a produz, razão pela qual é de ser considerada na avaliação, prin­cipalmente das coisas ou empreendimentos rentáveis por natureza ou destinação. Por isso, nas avaliações em geral, e em especial nas de imó­veis, urbanos ou rurais, ter-se-á sempre que sopesar sua renda efetiva ou potencial, porque tais bens têm seu valor e seu preço vinculados, normalmente, ao rendimento que produzem ou são aptos a produzir.

2.4.3 MÉTODOS DE AVALIAÇÃO

Tem-se dito, e com razão, que comparativos são todos os métodos de avaliação, porque não há outro meio de se fixar valores a não ser por comparação com valores já conhecidos. Todavia, a predominância de determinado fator para a obtenção do valor do bem avaliado - prin­cipalmente quando se trata de imóvel - tipifica o método adotado. Daí a freqüente divisão dos métodos em três grandes grupos, a saber: mé­todo comparativo propriamente dito, também chamado de dados de mercado ou de vendas; método de renda; e método de custo ~ todos eles admitindo combinações de cálculos, sendo considerados direto o primeiro e indiretos os últimos. O denominado método involutivo cons­titui-se de uma combinação do método comparativo com o de custo, apli­cável na determinação de valores de glebas urbanas ou urbanizáveis.

Método comparativo, de dados do mercado ou de vendas é aquele em que o valor do bem é obtido pelo confronto com outros semelhan­tes, cujos valores já são conhecidos no mercado pelos negócios reali­zados ou por ofertas confiáveis. Coligidos os elementos de compara­ção e feita a homogeneização devida, com as correções, transposições e atualizações necessárias, chega-se ao valor do bem avaliando. Como adverte Luiz Carlos Berrini: “Quando se faz uma avaliação pelo méto­do das vendas, é necessário que o imóvel que serve de base de compa­ração seja da mesma natureza, e tenha o máximo possível de suas ca­racterísticas comparáveis com o imóvel que se está avaliando”.39 Real­

59. Avaliações de Imóveis, São Paulo, 1957, p. 83.

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mente, imóveis diferentes e negócios dessemelhantes ou realizados em lugares ou circunstâncias distintas não se prestam a comparação, pois o confronto exige identidade de coisas e de situações. Para isso, usa-se mais modernamente a inferência estatística (tratamento científico), ou realizam-se operações de homogeneização (tratamento por fatores) dos elementos coligidos, a fim de se tomarem comparáveis através de cor­reções das diferenças de características entre os elementos amostrais e o elemento avaliando, tais como localização, testada, profundidade, topografia, características valorizantes ou desvalorizantes da vizi­nhança, redução do preço para valor equivalente para pagamento à vista, correção da elasticidade dos valores ofertados etc.60 Com essas operações de ajustamento ao imóvel avaliando, e com as devidas cau­telas na colheita dos elementos pesquisados, o método comparativo conduz a resultados satisfatórios; mas, se houver falha na pesquisa ou na homogeneização, o laudo não apresentará o real valor do bem ava­liando.

O método da capitalização de renda é possível de ser aplicado na avaliação de bens produtivos e “identifica o valor do bem, com base na capitalização presente da sua renda líquida prevista, considerando- se cenários viáveis”, conforme o item 8.2.4 da NBR 14.653-1. Consis­te no cálculo do valor conjunto do terreno com suas acessões (constru­ções, equipamentos, plantações) em função do rendimento efetivo ou potencial, obtido pelo conhecimento direto ou pela comparação de ren­dimentos de bens assemelhados, em suas proximidades, com aplicação da taxa de renda compatível para o empreendimento. O valor do bem será o resultado do valor do terreno mais o de suas acessões, com o acréscimo do denominado valor da coisa feita ou vantagem da coisa feita, correspondente às rendas que seriam obtidas do capital investido durante o tempo necessário à montagem do empreendimento. Abor­dando este aspecto, Joaquim da Rocha Medeiros Júnior esclarece que “a vantagem da coisa feita de um imóvel pronto e em condições de uso deve corresponder ou aos dispêndios referentes à sua montagem, não previstos nos custos específicos do terreno e das benfeitorias, ou, então, aos ganhos que poderiam advir do uso do imóvel, como se ele estivesse pronto, durante um prazo equivalente ao da duração das obras”.61

60. Cf. NBR 14.653-1 e NBR 14.654-2, em vigor a partir de julho/2004.61. “Vantagem da coisa feita na avaliação de imóveis pelo método de custo”,

in Engenharia de Avaliações, IBAPE, ed. Pini, 1974, p. 77.

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396 DIREITO DE CONSTRUIR

O método de custo, usuai na avaliação de imóveis com constru­ções, consiste na determinação dos gastos de reprodução de uma obra nova, ou nos de substituição de uma obra antiga, através de estimati­vas, levando-se em consideração os fatores de depreciação física e fun­cional da obra em razão de sua idade e demais fatores desvalorizantes. Quando é pretendido maior rigor, as estimativas devem ser feitas atra­vés de orçamentos detalhados qualitativos e quantitativos, podendo nos outros casos ser usadas as tabelas de composição de preços estampa­das em publicações técnicas, como as da revista A Construção em São Paulo. Tais tabelas são de grande utilidade, porém sua confiabilidade é restrita para as avaliações da região da pesquisa, pois quase sempre não expressam os custos unitários de outras regiões, notório que na Capital dos Estados o custo da construção é muito mais elevado que nas cidades do Interior; assim sendo, os custos tabelados pesquisados para uma área não devem ser cegamente aplicados em outra, sob pena de distorcer o laudo assim elaborado.

Em 1998, o Comitê Brasileiro da Construção - CB2, da Associa­ção Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), através do Subcomitê 134 - Engenharia de Avaliações e Perícias, constituiu a Comissão de Estu­dos 02:134:02 - Avaliações, encarregada da atualização e unificação de todas as normas do setor. Com essa finalidade, entrou em vigor em 30.5.2001 a NBR 14.953, cuja Parte 1 desempenha o papel de guia, indicando os procedimentos gerais para as demais partes:

- Parte 1: Procedimentos Gerais- Parte 2: Imóveis Urbanos- Parte 3: Imóveis Rurais- Parte 4: Empreendimentos- Parte 5: Máquinas, Equipamentos, Instalações e Bens Industriais

em Geral- Parte 6: Recursos Naturais e Ambientais- Parte 7: Patrimônios Históricos.Das partes listadas, já entraram em vigor, a partir de julho/2004,

as NBRs 14.653-2, 3 e 4, prevalecendo a NBR 8.977/1985 para avalia­ção de máquinas, equipamentos, instalações e complexos industriais enquanto não for aprovada a Parte 5.

A NBR 14.953-1, como ela mesma diz, visa a consolidar os con­ceitos, métodos e procedimentos gerais para os serviços técnicos de avaliação de bens. A metodologia escolhida dependerá, basicamente,

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da natureza do bem avaliando, da finalidade da avaliação e da disponi­bilidade, qualidade e quantidade de informações colhidas no mercado. Por isso mesmo, a Norma distingue os métodos para identificar o valor de um bem; para identificar o custo de um bem; e para identificar a viabilidade econômica de um empreendimento. Cada um com suas pe­culiaridades próprias e seus desdobramentos.

Na verdade, todos eles têm por objetivo estimar o valor do bem, dependendo da finalidade para a qual é feita a avaliação. Para a identi­ficação do valor de um bem utiliza-se: a) o método comparativo direto de dados do mercado; b) o método involutivo, alicerçado no seu apro­veitamento eficiente, mediante hipotético empreendimento compatível com as características do bem e com as condições do mercado; c) o método evolutivo, pelo qual se identifica o valor do bem pelo somató­rio de seus componentes; d) o método da renda, pelo qual o valor do bem é calculado com base na capitalização presente de sua renda líqui­da prevista. Para a identificação do custo de um bem, utiliza-se: a) o método comparativo direto de custo; ou b) o método da quantificação de custo. E, finalmente, para identificar a viabilidade econômica de um empreendimento, os procedimentos avalíatórios usuais são baseados no seu fluxo de caixa projetado, a partir do qual são determinados os indi­cadores de decisão.

A NBR 14.653-1 introduziu importantes modificações nas avalia­ções, que agora podem ser especificadas quanto à fundamentação e à precisão. A fundamentação decorrerá do aprofundamento do trabalho avaliatório, com o envolvimento da seleção da metodologia, em razão da confiabilidade, qualidade e quantidade dos dados amostrais dispo­níveis. A precisão será estabelecida na medida em que for possível de­terminar o grau de certeza e o nível de erro tolerável numa avaliação, que depende da natureza do bem, do objetivo da avaliação, da conjuntu­ra de mercado, da abrangência alcançada na coleta de dados (quantida­de, qualidade e natureza), da metodologia e dos instrumentos utiliza­dos. Os graus de fundamentação e de precisão nas avaliações - que substituíram os antigos “níveis de rigor” - são definidos nas demais partes da NBR 14.653, guardado o critério de atribuir graus em ordem numérica e crescente, onde o “grau I” é o menor. E importante ressal­tar que a especificação contratual de determinado grau implica apenas determinar a intensidade do empenho a ser utilizado pelo avaliador, mas o grau atingido pode ser menor, em função das várias condicio- nantes acima listadas.

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2.4.4 AVALIAÇÃO DE IMÓVEIS

Até meados da década de 60 as avaliações de imóveis faziam-se, no Brasil e mais especificamente em São Paulo, com base em técnica e bibliografia estrangeira, ou em trabalhos esparsos de um número redu­zido de estudiosos, em grande parte tomando como baliza formulações de autores norte-americanos.

Essas formulações e critérios importados, adotados em nosso meio sem maiores indagações, não estavam livres de impropriedades, que, porém, não suscitavam maiores dúvidas ou problemas, porque os ca­sos de avaliações não eram numerosos, nem grandes os interesses e valores em jogo.

Os problemas trazidos pelo uso desses critérios estrangeiros tor­naram-se evidentes, em São Paulo, a partir de 1966, após o início da gestão do Prefeito Brigadeiro Faria Lima, que deu início a uma com­pleta reformulação do antiquado sistema viário da cidade e à constru­ção do Metrô.

Essas obras implicaram desapropriações maciças, que exigiram a consecução de um número sem precedentes de avaliações pela via ju ­dicial, cujo efeito se refletia sobre o patrimônio de uma verdadeira mul­tidão de indivíduos, a maior parte afetada na sua residência, única pro­priedade da família, originando verdadeira questão social.

Preocupados com esse problema, os juizes das Varas da Fazenda Municipal de São Paulo criaram, em 1967, uma Comissão de Peritos62 com a incumbência de solucioná-lo e propiciar indenizações mais justas e equânimes. Em outubro de 1968, procurando equacionar os proble­mas mais agudos no tocante aos critérios de avaliação, dita Comissão organizou e deu a público um trabalho preliminar, que ficou conheci­do como Sugestões de Normas Gerais para Avaliações em Desapro­priações, as quais, a rigor, se constituíram nas primeiras diretrizes prá­ticas ou “Normas” para avaliações organizadas no Brasil.

A essas iniciais Sugestões de Normas, que eram ainda pouco abrangentes e destinavam-se a aplicação ao campo restrito e específico das desapropriações judiciais, seguiram-se novas, ampliando a abran­gência, organizadas em 1973, pelo Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia - IBAPE e pela Divisão de Avaliações e Perí­

62. Comissão composta pelos Engenheiros: Ernesto Whitaker Cameiro, Pau­lo Roberto Ottoni Rossi, Ênio Azambuja Neves, Hugo Laloni Filho e Joaquim da Rocha Medeiros Júnior.

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AÇÕES DE VIZINHANÇA E PERÍCIAS JUDICIAIS 399

cias do Instituto de Engenharia de São Paulo, que passaram a ser ob­servadas tanto nos laudos judiciais referentes a desapropriações e de outros destinos, como de outras esferas.

O movimento iniciado com as Sugestões de Normas e continuado com a edição das Normas do IBAPE/1973 representa, a bem dizer, o marco inicial da criação da “Engenharia de Avaliações” no Brasil, onde, hoje, já existem cursos universitários complementares sobre a matéria (inexistentes até a década de 70).

Os critérios avaliatórios recomendados nas Normas do IBAPE de 1973 constituíram-se em uni avanço no sentido de, deixando de lado processos empíricos importados, procurar alcançar resultados mais pró­ximos e consentâneos com o nosso mercado.

Não obstante esses critérios avaliatórios tenham representado um progresso, eles estavam longe de alcançar a perfeição. Em primeiro lu­gar por terem sido estabelecidos em base dedutiva e por racionaliza­ções e com dados de apoio de um momento atípico do mercado, 1973, em que a Lei de Zoneamento de São Paulo havia sido colocada em vigor recentemente e quando, também, coincidentemente, o referido mercado atravessava uma fase de boom excepcional (primeira crise do petróleo, recrudescimento da inflação e saída do recesso provocado pela Bolsa até 1971).

Eles também não poderiam ser considerados absolutamente confiá­veis, por terem o caráter, a bem dizer, universal, abrangendo, com pou­cas fórmulas ou modelos matemáticos, avaliações de imóveis dos mais variados gêneros, usos e localizações, que, como é intuitivo, não de­vem, por razões óbvias, receber tratamentos iguais: os fatores que de­terminam a variação de valores, especialmente no caso dos terrenos, podem mudar, sensível e cumulativamente, com o tipo de uso (residen­ciais, comerciais, mistos, de incorporação etc.), com o bairro (alterando- se dentro de uma mesma cidade), e, também, no tempo e no espaço.

As referidas dúvidas sobre esses procedimentos, gerando confli­tos técnicos e questionamentos, deram origem a um movimento entre os avaliadores mais experientes e preparados no sentido de aprimorar os métodos avaliatórios, os quais se dirigiram para o campo da infe­rência estatística, então tornado acessível em face do surgimento dos microcomputadores, capazes de permitir, em tempo útil, solução práti­ca para os complexos e extensos cálculos matriciais nela exigidos.

Entre 1976 e 1977, ao ser organizada, por iniciativa da ABNT, a NBR-5.676/1977 - Norma Brasileira para Avaliação de Imóveis Ur­

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banos (primitivamente designada como NB-502/1977), nela foi aberta a previsão para orientar os procedimentos no sentido do referido cam­po indutivo usando a inferência estatística.

Com a experiência adquirida pelo uso dessas Normas e a renovação e intensificação de estudos sobre a avaliação de imóveis, discussões em simpósios, congressos e a disseminação de cursos sobre o assunto, surgiu a necessidade de revisão e aperfeiçoamento dessas Normas Bra­sileiras, das quais uma nova edição foi aprovada e passou a vigorar em1989 (NBR-5.676/1989), nas quais foi dada ênfase a esses procedimen­tos avançados.

Em 1994, o IBAPE/SP aprovou sua Norma Básica para Perícias de Engenharia, seguida em 1995 pela nova versão de sua Norma para Avaliação de Imóveis Urbanos, que foi atualizada em 2005, agregando novos conceitos, aprimorando especialmente os critérios destinados a avaliações na Capital de São Paulo.

Atualmente, como referido no tópico anterior, a avaliação de bens, inclusive imóveis, fundamenta-se na NBR 14.653-1 e seus desdobra­mentos.

2.4.5 IMÓVEIS URBANOS

Com o progresso da ciência avaliatória, consoante ficou mencio­nado antes, caíram em desuso as fórmulas empíricas importadas, pas­sando as avaliações a ser feitas por dois tipos de tratamento dos dados coletados no mercado imobiliário: o tratamento por fatores, baseado no princípio cartesiano de dividir o problema avaliatório em vários pro­blemas menores, visando a ajustar eventuais diferenças pelo emprego de fatores indicados periodicamente pelas entidades técnicas regionais reconhecidas; e o tratamento científico, no qual o tratamento de evi­dências empíricas é feito pelo uso de metodologias científicas, entre as quais a mais empregada atualm ente é a inferência estatística.

Em 30.6.2004 entrou em vigor a NBR 14.653-2, que visa a detalhar os procedimentos gerais da norma de avaliação de bens — NBR 14.653- 1/2001 — no que diz respeito à avaliação de imóveis urbanos, inclusive glebas urbanizáveis, unidades padronizadas e servidões urbanas.

A referida Norma, depois de um longo capítulo de definições, es­tabelece a classificação dos im óveis urbanos quanto ao: a) uso — resi­dencial, comercial, industrial, institucional e misto; b) tipo — terreno, apartamento, casa, galpão, loja etc.; c) agrupamento — prédio de apar­tamentos, casas em condom ínio, conjunto habitacional, loteamento etc.

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Em seguida, relaciona as atividades básicas a serem seguidas pelo engenheiro avaliador, a começar por definir com o solicitante do laudo qual a finalidade da avaliação (aquisição, locação, venda, garantia etc.); qual o critério desejado (valor de mercado, custo de reedição, valor patrimonial); qual o prazo para a apresentação do laudo; e qual moda­lidade de laudo é desejada. A NBR 14.653-1 define as modalidades de laudo em simplificado - contendo de forma sucinta as informações ne­cessárias ao seu entendimento - e completo, contendo todas as infor­mações necessárias e suficientes para ser auto-explicável. A Norma admite ainda um laudo de avaliação de uso restrito, que obedece a condições específicas pré-combinadas entre as partes contratantes e não tem validade para outros usos ou exibição para terceiros - fato que deve ser explicitado no laudo.

Com essas providências preliminares, o engenheiro avaliador de­verá realizar a vistoria no imóvel avaliando, a fim de conhecer as ca­racterísticas da região onde se encontra, do próprio terreno e das edifi­cações e benfeitorias nele levantadas. Escolherá, então, o método a ser utilizado, de acordo com as indicações da NBR 14.653-1 e detalha­mento da NBR 14.653-2, para posterior oferecimento do laudo.

Além disso, a NBR 14.653-2 contém procedimentos específicos para desapropriações, servidões, glebas urbanizáveis e aluguéis.

Nas desapropriações é indispensável verificar se abrangem a to­talidade do imóvel ou somente parte dele. Neste caso, o laudo deve contemplar o valor do imóvel antes do desmembramento e depois dele. No caso de o valor de reedição ser superior ao de mercado, o laudo deverá fazer referência aos dois.

Na avaliação de servidões é necessário caracterizar sua natureza, ou seja, se impostas pelo Poder Público (servidões administrativas) ou se se trata de servidão predial, quando a restrição é imposta a um imóvel serviente para uso e utilidade do imóvel serviendo; qual sua finalidade (passagem de pedestres ou veículos, linhas de transmissão, tubulações etc.); qual sua duração (perpétua ou temporária); e qual a intervenção física efetuada - ou seja, se a servidão é aparente ou não aparente. A estimativa far-se-á pela perda de valor do imóvel em decorrência das restrições impostas.

Para as glebas urbanizáveis recomenda-se o método comparativo direto de dados do mercado. Quando não for possível, utilizar-se-á o método involutivo.

Na avaliação de aluguéis deve ser usada a comparação direta de dados do mercado, referentes à locação de imóveis semelhantes. Este é

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402 DIREITO DE CONSTRUIR

o procedimento usualmente empregado em ações renovatórias e revisio- nais. Não sendo possível, utiliza-se o agora denominado “método de remuneração do capital”, quando o aluguel é determinado em função do valor do imóvel, cuja utilização exige a determinação da taxa de remuneração e do valor do imóvel.

2.4.6 IMÓVEIS RURAIS

As avaliações de imóveis rurais são regidas atualmente pela NBR14.653-3, que entrou em vigor a partir de 30.6.2004. A Norma classifi­ca os imóveis rurais pelo seu tamanho e pela sua exploração. No pri­meiro caso, ele pode ser pequeno (até quatro módulos fiscais), médio (de quatro a quinze módulos) e grande (acima de quinze módulos). No segundo, verifica-se qual o tipo de exploração empregado (agricultura, pecuária etc.). Na vistoria, deve o perito, em primeiro lugar, efetuar a caracterização cia região, relacionando seus aspectos físicos (relevo e classes de solos, recursos hídricos etc.); a infra-estrutura pública exis­tente (transporte, energia elétrica etc.); a vocação econômica da região e a disponibilidade de mão-de-obra; e as restrições, legais, físicas e ambientais, eventualmente existentes ao aproveitamento da terra.

Em seguida, cumpre efetuar a caracterização do imóvel em si mesmo, suas terras (vegetação nativa, florestas, recursos hídricos), construções e instalações, produção, máquinas e equipamentos, e ou­tras atividades, se existentes, como turismo, hotelaria, mineração etc.

Os métodos de avaliação são os mesmos já referidos no item 2.4.3: método comparativo direto de dados do mercado, que exige o levanta­mento prévio desses dados; método involutivo, que se baseia em apro­veitamento hipotético do imóvel, segundo suas características; método evolutivo, que é a soma dos componentes do imóvel; e método da ren­da, pelo qual o valor do bem é calculado com base na capitalização presente de sua renda líquida prevista.

2.4.7 EMPREENDIMENTOS

Em 2003, a ABNT aprovou sua primeira Norma Técnica a respei­to da avaliação de empreendimentos, que antes eram contemplados de forma esparsa em algumas normas de avaliação específicas. A NBR14.653-4 entrou em vigor em 30.1.2003, e faz parte do conjunto de normas sob o mesmo número voltadas para a avaliação de bens, que vimos examinando.

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Empreendimento é a organização formada para a exploração de um negócio, com vistas à obtenção de lucro futuro. Conforme a Nor­ma, os empreendimentos podem ser classificados de acordo com sua base: a) imobiliários, que tcrn por finalidade o parcelamento do solo ou a construção de benfeitorias, com o objetivo de venda das unidades geradas; b) de base imobiliária, que se destinam à exploração comer­cial ou de serviços, como hotéis, shopping centers, teatros etc.; c) base industrial, de transformação ou de construção civil; d) base rural, para exploração agrícola, animal, ou mista; e) base comercial ou de servi­ços, como transmissão de dados ou teleinformática; f) base mineral, para extração ou beneficiamento de minérios; g) base em concessão de serviços públicos, como produção e distribuição de água, coleta e tra­tamento de.esgoto, transporte coletivo etc.

A metodologia escolhida deve ser compatível com a natureza do empreendimento e sua fmalidade. Para a identificação do valor a Nor­ma apresenta uma tabela em que se cruzam os métodos utilizáveis (comparativo de dados de mercado; involutivo, evolutivo e renda) com o valor pretendido (valor patrimonial, valor econômico, valor de des­monte e valor de mercado), facilitando a tarefa do perito. Se o que se deseja é identificar o custo do empreendimento, deve-se utilizar o mé­todo comparativo direto de custo ou o método de quantificação de cus­to, conceituados na Norma-guia, NBR 14.653-1. Se o que se deseja é identificar a viabilidade econômica do empreendimento, os indicado­res serão outros, entre os quais o valor presente líquido, a taxa interna de retomo, o período de recuperação e os índices de lucratividade.

Os requisitos mínimos do laudo constam da Norma, com a obser­vação de que os laudos de avaliação de empreendimentos para identi­ficação de indicadores de viabilidade só serão admitidos na modalida­de completa (v. item 2.1.3).

2.4.8 OUTRAS AVALIAÇÕES

Outras avaliações vêm sendo objeto de estudos especializados e de métodos ou critérios próprios para sua correta realização, tais como as de jazidas, as de máquinas e equipamentos industriais, as de aluguéis e fundo de comércio. Todas essas avaliações, quando realizadas em juí­zo, enquadram-se no conceito de perícias judiciais e ficam sujeitas aos preceitos processuais pertinentes (art. 145, c/c os arts. 420 a 439) e às regras técnicas específicas de cada modalidade.

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404 DIREITO DE CONSTRUIR

A avaliação de jazidas, no dizer do especialista Cláudio Bock, “foge à técnica rotineira da avaliação, porque envolve, além do valor superficial do imóvel, avaliável por uma perícia normal, a eventual ava­liação de reservas minerais reguladas por leis especiais, que são o Có­digo de Minas (Lei 6.567, de 25.9.1978) e seu Regulamento”. E pros­segue, esclarecendo que: “O cálculo do valor da jazida é baseado es­sencialmente no lucro proporcionado pela mesma, seja lucro cessante ou lucro planejado, devendo neste caso ser admitido o lucro previsto no projeto industrial ou no plano da lavra”, e para esse cálculo reco­menda a aplicação da fórmula de Hoskold;63 mas há também a fórmula dç Findlay, de uso corrente nessas avaliações. Este tipo de avaliação será feito conforme as NBRs 14.653-1 e 14.653-6, após a entrada em vigor desta, como vimos acima.

A avaliação de máquinas e equipamentos industriais baseia-se es­sencialmente na capacidade de produção desses bens, e, para tanto, exi­ge uma estimativa do que eles representam no complexo industrial que integram. Daí a necessidade de um levantamento técnico e econômico do conjunto, para, a final, destacar-se o valor das máquinas, equipa­mentos e instalações da indústria. O procedimento é trabalhoso e sele­tivo, pois, como bem observa Víctor Carlos Filinger, “a valoração e avaliação de uma máquina, de uma instalação industrial ou de uma in­dustria, integrada ou não, não deve ser considerada como a simples so­matória de valores atribuídos aos componentes físicos ou tangíveis, mas sim essa mesma somatória acrescida ou diminuída de valores correspondentes à parte intangível representada por marcas e paten­tes, tecnologia atualizada ou obsoleta, ou superada, e neste caso isto se constituirá em fator negativo ou depreciativo, mesmo que vá de encontro aos sentimentos ou interesses diretos ou indiretos do dono da coisa”.64

Chamamos a atenção do leitor a que a avaliação de máquinas e equipamento industriais está em estudo pela ABNT, devendo consti­tuir a quinta parte da NBR 14.653, a ser aprovada futuramente.

Na avaliação de aluguéis os conceitos mais atuais e as normas vigentes dão preferência ao método comparativo, só sendo considera­do útil o método de renda para aferição de resultados quando se tratar

63. Cláudio W. F. Bock, “Avaliação de jazidas minerais”, in Engenharia de Avaliações, São Paulo, IBAPE, ed. Pini, 1974, p. 111.

64. “Avaliação de máquinas, equipamentos, instalações industriais e indús­trias”, in Engenharia de Avaliações, São Paulo, IBAPE, ed. Pini, 1974, p. 114.

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de imóveis atípicos ou na falta de dados de confronto válidos em quan­tidade suficiente. É vedado adotar como aluguel a simples atualização do aluguel vigente, assim como, também, deduzir o resultado final pela média daqueles obtidos pelos métodos comparativo e de renda quando discrepantes mais de 15% ou na hipótese de merecerem classificações de rigor distintas. Quando usado o método comparativo através de cri­térios e fórmulas aceitos para avaliações de nível de rigor normal e tra­tando-se de terrenos com construções, nas homogeneizações os fatores de “transporte” só devem afetar a parcela do valor global relativa ao “capital terreno” e os de “idade” e “padrão construtivo” apenas o qui­nhão correspondente ao “capital construção”.63

As avaliações de fundo de comércio são freqüentes nos grandes centros urbanos, notadamente nos casos de desapropriação para obras públicas e renovação de áreas envelhecidas. Tais avaliações exigem conhecimentos especializados e acuidade profissional do perito, não só para a valoração dos bens materiais mas, sobretudo, para a quantifica­ção do fundo de comércio, abrangente do ponto e da clientela, fatores de alto valor econômico na estimativa dessas perícias. Nesses casos, na avaliação da indenização deverão ser considerados os seguintes componentes: despesas de desmonte e transporte de maquinismos ins­talados; instalações; aluguéis não desfrutados e diferenças de aluguéis; despesas de pessoal; fundo de comércio; lucros cessantes. Em precioso estudo, José Carlos Pellegrino e Fernando Guilherme Martins apreciam e esclarecem todos os elementos a serem valorados no cálculo do fun­do de comércio, indicando suas especificidades e as respectivas fór­mulas para obtenção do valor final.66

Convém lembrar, ainda, que duas outras Normas da ABNT de­vem ser editadas, de acordo com a Norma-mãe das avaliações, a NBR14.653-1: a que se refere aos recursos naturais e ambientais (Parte 6) e a que contempla os patrimônios históricos (Parte 7).

65. Milton Candeloro, Avaliação de Aluguéis, ed. Pini, 1991.66. “Critério para cálculo de fundo de comércio”, in Engenharia de Avalia­

ções, São Paulo, IBAPE, ed. Pini, 1974, p. 90. A tendência jurisprudenciaí é atual­mente no sentido de considerar atribuição de profissionais da área contábil-econô- mica o cálculo de fundo de comércio.

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Capítulo 10

A CONSTRUÇÃO CIVIL E A REGULAM ENTAÇÃO PROFISSIONAL

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A CONSTRUÇÃO: 1.1 Origens e evolução da construção; 1.2 A construção civil; 1.3 Normas técnicas da construção civil; 1.4 Normas legais da construção. 2. A CONSTRUÇÃO CIVIL COMO ATIVIDADE TÉCNICO-ECONÔMICA: 2 .[ O aspecto téc­nico; 2.2 O aspecto econômico. 3. A REGULAMENTAÇÃO PROFISSIO­NAL: 3.1 A formação dos profissionais da construção civil; 3.2 Antece­dentes da regulamentação profissional; 3.3 O Decreto 23.569/1933 e a Lei 5.194/1966; 3.4 O Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia; 3.5 Os Conselhos Regionais; 3.6 O Código de Etica Profissio­nal. 4. OS PROFISSIONAIS DA CONSTRUÇÃO CIVIL: 4.1 Engenheiros; 4.2 Arquitetos; 4.3 Agrônomos; 4.4 Técnicos de nível superior; 4.5 Técni­cos de 2a grau; 4.6 Encarregados e mestres-de-obras.

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SO BRE A CONSTRUÇÃO

1.1 ORIGENS E E VOLUÇÃO DA CONSTRUÇÃO

A construção remonta às origens da Humanidade. A intuição do perigo e o instinto de conservação levaram o homem a procurar abrigo nos recôncavos da Natureza. Depois, escavou a rocha e habitou a ca­verna; abateu a árvore e fez a choupana; lascou a pedra e construiu a casa; argamassou a areia e ergueu o palácio; forjou o ferro e levantou o arranha-céu, num lento e perene aprimoramento da técnica de cons­truir, que marcou o advento da Engenharia e da Arquitetura.

Construindo a habitação, o homem construiu a cidade. Urbanizou- se. Surgiram os problemas de segurança, de higiene e de estética, re­clamando uma arte - o Urbanismo - para ordenar os espaços habitá­veis e uma técnica para o cultivo do campo - a Agronomia.

Na cidade, passou o homem a desenvolver suas funções sociais precípuas - habitar, trabalhar, recrear, circular utilizando-se da pro­priedade particular e dos bens públicos, num estreitamento, cada vez maior, das relações comunitárias. Daí adveio a necessidade de normas

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A CONSTRUÇÃO CIVIL EA REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 407

técnicas reguladoras da construção e de regras legais normativas do di­reito de construir.

A construção, em suas origens uma atividade leiga e individual, evoluiu para uma atividade técnica e social. O nomadismo do homem primitivo e a simplicidade de seus hábitos permitiram-lhe construir a própria casa, rústica e provisória, insegura e isolada da comunidade in­cipiente em que vivia. O sedentarismo, o trabalho habitual como meio de subsistência e a invenção da cidade' passaram a exigir habitações duradouras e afeiçoadas às imposições sociais. Finalmente, a comple­xidade da vida urbana e a trama das metrópoles converteram a constru­ção numa atividade eminentemente técnica e especializada, privativa de profissionais habilitados, que porfiam em adaptar a estrutura e a for­ma à função social que a construção desempenha em nossos dias. Ante essa realidade, pôde Mies Van Der Rohe expressar, numa síntese feliz e verdadeira, que: “A arte de construir é a vontade de uma época, tra­duzida em espaço. Vivente. Mutável. Original”.2

A construção evoluiu da homogeneidade da habitação primitiva para a variedade da edificação contemporânea, mas a moradia, a casa, constitui ainda, e constituirá sempre, o tema fundamental da Engenha­ria, da Arquitetura e do Urbanismo, que, como técnicas e artes sociais, almejam o objetivo comum de dar ao homem ambientes de segurança e bem-estar individual e coletivo, tomando os lares mais confortáveis e as cidades mais humanas.

1.2 A CONSTRUÇÃO CIVIL

A construção, como atividade técnica, iniciou-se com as obras mi­litares, as fortificações, donde proveio a designação de “engenheiro” para os que se dedicavam aos engenhos bélicos. Posteriormente, sur­giu a construção de paz, a edificação das cidades - civitas sendo esta nova atividade denominada “construção civil”, e os que a ela se dedicavam foram intitulados “engenheiros civis”, para diferençá-los dos “engenheiros militares”, que cuidavam das obras bélicas.

Por tradição, mantém-se a designação de “construção civil” para toda e qualquer obra, particular ou pública, que não tenha caráter béli­co. A expressão “construção civil”, portanto, não se opõe à natureza

1. Atribuem-se a Hipodamus de Mileto a invenção da cidade regular e a enun- ciação das primeiras regras de Urbanismo, no século IV a.C.

2. Aforismos sobre a Arquitetura e a Forma, 1956, p. 126.

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408 DIREITO DE CONSTRUIR

industrial da construção, mas, sim, à natureza militar das obras bélicas, especialmente das fortificações, que normalmente circundavam a cida­de antiga.

A influência que a construção civil - notadamente a habitação - passou a ter na vida do indivíduo e na existência da comunidade exigiu sujeição dessa atividade a normas técnicas e normas legais que asse­gurassem ao proprietário a solidez e a perfeição da obra contratada e pusessem a coletividade a salvo dos riscos da insegurança das edifica­ções. Estabeleceram-se, assim, requisitos mínimos de solidez, higiene, funcionalidade e estética das obras, a serem atendidos desde a elabora­ção do projeto até sua cabal execução, o que exige do Poder Público permanente e atenta fiscalização, para sua fiel observância. Além dis­so, desde que a construção civil se transformou numa atividade, pas­sou a exigir profissionais habilitados e auxiliares especializados nos vários elementos e serviços que compõem a edificação particular e a obra pública. Todos esses aspectos relacionados com a construção civil constituirão objeto de estudo nos tópicos subseqüentes. Antes, porém, impõe-se a fixação de alguns conceitos técnicos da construção civil, para que a imprecisão terminológica ou a diversidade de linguagem do profissional, do leigo e do jurista não os levem a desentendimentos conceituais de graves conseqüências práticas na aplicação da lei ou na interpretação dos contratos.

Construção, em sentido técnico, oferece-nos o duplo significado de atividade e de obra. Como atividade, indica o conjunto de opera­ções empregadas na execução de um projeto; como obra, significa toda realização material e intencional do homem, visando a adaptar a natu­reza às suas conveniências. Neste sentido, até mesmo a demolição se enquadra no conceito de construção, porque objetiva, em última análi­se, a preparação do terreno para subseqüente e melhor aproveitamento.

Construção e edificação são expressões técnicas de sentido diver­so, mui comumente confundidas pelos leigos. Construção é o gênero, do qual a edificação é a espécie. Construção, como realização material, é toda obra executada, intencionalmente, pelo homem; edificação é a obra destinada a habitação, trabalho, culto, ensino ou recreação/ Nas

3 .0 Ato 663, de 10.8.1934, antigo Código de Obras do Município da Capital de São Paulo, em seu art. 2o, conceituava: “Construir é, de modo geral, fazer qual­quer obra nova, muro, cais, edifício etc.; edificar é, de modo particular, fazer edifí­cio destinado a habitação, fábrica, culto ou qualquer outro fim”. Sobre os vários significados do termo “construção”, v. Adolfo Morales de Los Rios Filho, Teoria e Filosofia da Arquitetura, Rio, 1955, pp. 47 e ss.

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A CONSTRUÇÃO CIVIL EA REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 409

edificações distingue-se, ainda, o edifício das edículas: edifício é a obra principal; edicula são as obras complementares (garagem, dependências de serviços etc.).

Projeto, planta e plano exprimem conceitos técnicos fundamen­talmente diferentes, mas geralmente confundidos na linguagem leiga e na redação legislativa. Projeto de construção é o conjunto de estudos, cálculos e desenhos necessários à expressão técnica e artística da obra a ser executada. O projeto abrange, normalmente: a) estudos prelimi­nares, tais como sondagens do terreno e ensaios de laboratório; b) cál­culos estruturais e de outros tipos; c) desenhos, tais como plantas, cor­tes, fachadas ou elevações; d) memorial descritivo, com especificações de material e de mão-de-obra; e) orçamentos dos trabalhos a executar e do material a empregar; f) cronogramas indicativos do andamento dos serviços em suas sucessivas fases. Além destes elementos, outros poderão ser impostos pela natureza e complexidade da obra, ou exigi­dos pela repartição competente para a aprovação do projeto.

Planta é a representação gráfica e em escala de um corte ou de uma vista da construção, ou de parte dela. Não há confundir, portanto, as plantas com os demais desenhos que comumente ilustram o projeto. Escala é a relação existente entre as dimensões do objeto real e as do desenho que o representa. Corte, segundo a conceituação da Associa­ção Brasileira de Normas Técnicas, “é a projeção, em plano vertical, colocado imediatamente antes da parte a representar, indicando-se as seções em hachurado”. Convém, ainda, distinguir corte de fachada ou elevação. Fachada ou elevação é a projeção em plano vertical, coloca­do imediatamente antes do conjunto a representar, sem corte de qual­quer peça. O termo “fachada” é reservado especificamente para os pro­jetos de edificação, e o vocábulo “elevação” é de uso genérico para qualquer projeto de construção.

Plano, em sentido amplo, é toda programação. Com esta amplitu­de, porém, não é usado na terminologia específica das construções. Em Urbanismo emprega-se a expressão “plano” com diversos qualificati­vos, para designar a ordenação físico-social de determinada área, ou a destinação urbanística do terreno. Assim, se diz, corretamente, “Plano Regional”, “Plano Diretor”, “Plano Viário”, “Plano de Zoneamento”, “Plano de Loteamento” etc. O nosso Código Civil emprega erronea­mente o vocábulo “plano” como sinônimo de “projeto de construção” (art. 6194). Mais grave ainda é a repetição deste erro nos Códigos de

4. “Art. 619. Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou,

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410 DIREITO DE CONSTRUIR

Obras municipais, que, mui freqüentemente, confundem “planta”, “pla­no” e “projeto”, sinonimizando termos que expressam conceitos técni­cos diversos.

A construção civil como atividade técnico-econômica está sujeita a duas ordens de normas, bem diferençadas entre si, mas conjugadas na sua atuação para o conseguimento de um duplo fim: o aprimora­mento da obra e sua adequação ao meio ambiente. Tais os objetivos das normas técnicas e das normas legais da construção.

1.3 NORMAS TÉCNICAS DA CONSTRUÇÃO CIVIL

Normas técnicas são as prescrições científicas que colimam o aperfeiçoamento estrutural, funcional e estético da construção e sua econômica execução. Da reiterada aplicação dos princípios científico- teóricos e da observação experimental surgiram as normas técnicas da construção, como sistematização dos melhores resultados de materiais e de método de trabalho. Estas indicações técnico-científicas são elaboradas por entidades especializadas em cada país,3 que tendem a unificar-se para o estudo e enunciação de normas técnicas uniformes e universais.

Até o advento do Código de Defesa do Consumidor (1990), a obrigatoriedade das normas técnicas definitivas para as obras e servi­ços públicos era imposta pela Lei 4.150, de 21.11.1962, que instituiu o regime compulsório de preparo e observância dessas normas em todas as construções e materiais empregados no serviço público realizado ou concedido pela União, suas autarquias e empresas governamentais, bem como nas obras e serviços estaduais e municipais executados, sub­vencionados, dirigidos ou fiscalizados por repartições federais, motivo pelo qual a inobservância dessas normas dava ensejo à rescisão do con­trato pela Administração, uma vez que a lei impunha o seu atendimen­to como condição essencial para a regular execução das obras e servi­ços públicos ou de interesse público.

Quanto às normas técnicas recomendadas, o Autor entendia que, dado o seu caráter provisório e experimental, não seriam de atendimen­

5. Dentre as entidades estrangeiras de normalização, podemos citar: a Ameri­can StandardÀssociation — ASA, dos EUA; a Das Ist Norm - DIN, da Alemanha; a Dirección General de Normas, do México; a UNIX, do Uruguai; a INDITEC- NOR, do Chile; a IRAM, da Argentina; o CPRANT, Comitê Pan-Americano de Normas Técnicas (em organização); e, com caráter internacional, a ISO -Interna­tional Organízation for Standardization.

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to obrigatório, uma vez que teriam de ser comprovadas, definitivamen­te, as vantagens de sua utilização. Certo é que até mesmo as normas definitivas eram suscetíveis de revisão pela própria entidade que as enunciara, mas esta possibilidade de aperfeiçoamento não lhes retirava a eficácia até o momento em que fossem substituídas por regras mais eficientes. O de que não padece dúvida são as vantagens da normaliza­ção, que tende a substituir o empirismo leigo pela técnica científica, que assegure às construções não só perfeição estrutural, funcional e es­tética como, também, sua econômica execução.

O art. 39, VIII, do Código de Defesa do Consumidor vedou ao fornecedor de produtos ou serviços “colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existi­rem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial - CONMETRO”.

O CONMETRO foi criado pela Lei 5.966, de 11.12.1973, como órgão normativo do Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial, cujo órgão executivo é o INMETRO, Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial, instituí­do pela mesma lei como autarquia federal.

A Resolução 1 do CONMETRO, de 8.1.1992, definiu como Nor­ma Brasileira toda e qualquer norma elaborada pela Associação Brasi­leira de Normas Técnicas - ABNT,6 ao mesmo tempo em que revogou Resoluções anteriores que estabeleciam classes de Normas Brasileiras (definitiva e recomendada), bem como as decisões relativas aos méto­dos, especificações, padrões e terminologias, como antes se fazia. Agora, toda e qualquer decisão normativa, tomada no âmbito do Foro Nacional de Normalização, é uma Norma Brasileira Registrada (NBR), cuja numeração foi alterada, para se tornar seqüencial a partir do nú­mero seguinte da última Norma Técnica Brasileira registrada pelo IN- METRO (Resolução CONMETRO 7, de 24.8.1992).

6. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), segundo dispõe o art. P de seu Estatuto, aprovado em 18.12.1957, é sociedade civil de intuitos não lucrativos, fundada em setembro de 1940, com sede e foro no Rio de Janeiro, e tem por objetivos: a) a elaboração de normas técnicas nos campos científico, industrial e comercial; b) a adoção e difusão de suas normas e a incentivação do movimento de normalização no País; c) a concessão do direito de uso de “Marcas de Confor­midade” às normas da ABNT; d) a representação do Brasil como associação nacio­nal de normalização.

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Cabe ainda distinguir a normalização técnica da regulamentação ténica. A primeira compete à ABNT, por delegação do CONMETRO, e diz respeito a “especificações que definam as qualidades dos produ­tos; a elaboração de normas que estabeleçam regras para a execução de serviços; a imposição de padrões que reduzam os tipos produzidos a um número mais econômico; e a fixação de terminologias que uni­formizem as designações técnicas em todo o Pais”.7 A segunda cabe à autoridade estatal competente, contendo regras administrativas de cum­primento obrigatório e relativas às características técnicas de um pro­duto, tais como símbolos, embalagens, rotulagens etc., principalmente nas áreas de saúde, meio ambiente e proteção ao consumidor (Resolu­ção 7 do CONMETRO, de 24.8.1992).

Portanto, o uso das normas é obrigatório nas relações de consu­mo, por estar expresso no art. 39 do Código de Defesa do Consumidor. Numa escala hierárquica, essa observância passa, em primeiro lugar, pelos regulamentos técnicos emitidos pelo CONMETRO; em seguida, pelas normas técnicas aprovadas pela ABNT; e, finalmente, na falta destas ou existência de lacunas em seu texto, o construtor poderá uti­lizar normas de outras entidades internacionais reconhecidas e creden­ciadas pelo CONMETRO, tais como as normas da ISO, do IEC e do Mercosul.

O disposto nessas normas é considerado como um padrão mínimo que deve ser seguido pelos fornecedores de produtos e serviços, tam­bém aplicável às relações que não são de consumo, por entendermos que o Código do Consumidor, como norma de sobredireito, permeia todos os demais ramos da matéria (cf. cap. 8, item 1.6). Em outras pa­lavras, as normas técnicas não pretendem “engessar” o progresso da Ciência, que está em constante evolução. O fornecedor pode pesquisar e utilizar técnicas ainda não cobertas pelas normas, desde que superem o desempenho nelas previsto, correndo os riscos daí advindos.

A ABNT traduziu e adotou a Parte 3 das diversas normas ISO- IEC/1989 - referentes à redação e à apresentação das normas interna­cionais - como Diretiva Nacional específica para a redação e apresen­tação das Normas Brasileiras. Nessa Parte 3, merecem destaque os sig­nificados específicos das formas verbais: onde constar “deve”, deve ser entendido “exige-se que”; onde constar “somente é permitido”, enten­da-se “é necessário”; onde constar “convém que” deve ser entendido

7. Normas Brasileiras, Publicação Oficial da Associação Brasileira de Nor­mas Técnicas, 1946, p. IV.

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“é recomendado que”, “é indicado c[ue”; Onde constar “pode”, entén- de-se “está apto*’, “é capaz de”, “há urna possibilidade de”, “é possível que”.

Entre as normas técnicas da ABNT aplicáveis à construção civil, merecem destaque, pela sua abrangência genérica, as seguintes:

NBR 5.671/1989 - Participação dos Intérvenientes em Serviços e Obras de Engenharia e Arquitetura, que pretendeu definir quem é res­ponsável pelo quê na construção civil, definindo direitos e deVefes de todos os seus intervenientes, tais como proprietário, firma projetista, autor do projeto, execütante, fiscal técnico, empreiteiro técnico, subem­preiteiro, consultor técnico, tecnólogo, fabricante de materiais e oü/ equipamentos, fornecedor, concessionário de serviço público, corretor ̂adquirente, usuário etc.

NBR 5.675/1980 - Recebimento de Serviços e Obras de Engenha­ria e Arquitetura, que regulamenta as medições parciais, provisórias e finais destinadas ao recebimento definitivo ou parcial das obras;

NBR 13.531/1995 - Elaboração de Projetos de Edificações - Ati­vidades Técnicas, e NBR 13.532/1995 ~ Elaboração de Projetos dê Edificações - Arquitetura, que definem e classificam as atividades en­volvidas em projetos arquitetônicos;

NBR 6.118/2003 - Projeto de Estruturas de Concreto - Procedi­mento, que concentra todos os procedimentos de projeto dessas estru­turas, inclusive os cobrimeiítos mínimos das armaduras, conforme as quatro classes de agressividade ambiental, especificando, no seu item 13.4.2, os limites para fissuraçao e proteção das armaduras;

NBR 12.655/1996 - Concreto - Preparo, Controle e Recebimen­to, que define quem é responsável pelo quê na área do concreto, e in­troduz o conceito d e fck para os casos de controle total-amostragem em todos os lotes de concreto ou caminhôes-bétonéira;

NBR 14.931/2003 - Estruturas de Concreto - Execução - Proce­dimento, que estabelece alguns requisitos gerais para a execução dás estruturas de coiicretd, incluindo limites de tolerância de execução e de desaprumos, mas não aplicáveis a todos os procedimentos envol­vendo execução de concreto; e, finalmente,

NBR 9.050/2004 - Acessibilidade a Edificações, Mobiliário, Es­paços e Equipamentos Urbanos, que estabelece critérios é parâmetros técnicos a serem observados quando do projeto, construção, instalação e adaptação dê edificações, mobiliário* espaços e equipamentos urba­nos às condições de acessibilidade.

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1.4 NORMAS LEGAIS DA CONSTRUÇÃO

Normas legais da construção dizem-se todas as prescrições ex­pressas em lei, ou regulamento, visando à ordenação individual da obra ou à sua adequação ao meio social. Estas normas bipartem-se em civis e administrativas. As normas civis regulam o direito de construir nas suas relações entre vizinhos, daí por que são chamadas restrições de vizinhança,8 As normas administrativas destinam-se a proteger os inte­resses da coletividade, condicionando o direito de construir e o uso da propriedade à sua função social (Constituição Federal, arts. 5a, XXIII, e 182, § 2Q), motivo por que são conhecidas por limitações administra­tivas.9 As restrições de vizinhança, como preceitos de ordem privada, estão consubstanciadas no Código Civil (arts. 1.277 a 1.977); as limi­tações administrativas, como imposições de ordem pública, encontram- se dispersas na legislação protetora da comunidade, como as normas de proteção ao meio ambiente, à saúde e ao desenvolvimento urbano, notadamente no Estatuto da Cidade, no Plano Diretor e no Código de Obras do Município.10

As normas jurídicas, embora distintas das normas técnicas da construção, atuam em conjunto e, o mais das vezes, expressam regras cientificas da técnica de construir sob a forma de disposições legais do direito de construir e das limitações administrativas. Tal o que ocorre com os preceitos de segurança, de higiene e de funcionalidade das edi­ficações, consagrados pelas normas técnicas e acolhidos pelas normas legais, que os tornam coativos e obrigatórios, como é da índole das regras jurídicas. A partir do Código de Defesa do Consumidor (1990), as normas técnicas, tão logo sejam enunciadas pelos órgãos e entida­des competentes, convertem-se em normas legais da construção, de aplicação compulsória para todos os que se dedicam a essa atividade técnico-social que é, hoje, a construção civil. A estes preceitos técni- co-legais normativos da construção em si mesma aliam-se, ainda, as prescrições regulamentadoras do exercício da profissão de engenheiro, de arquiteto e de agrônomo, que condicionam a elaboração dos proje­tos e a execução das obras a novos requisitos de caráter ético-profís- sional, como veremos adiante.

Neste conjunto de normas técnico-legais é que se expressa o po­der de polícia administrativa das construções e trabalhos de agrono­

8. V. cap. 3, sobre restrições de vizinhança.9. V. cap. 4, sobre limitações administrativas.10. V. as considerações sobre o Código de Obras no cap. 6, item 1.4.

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mia, que exige o registro prévio dos contratos, denominado Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), além do licenciamento para a execução da obra e sua fiscalização.11

O licenciamento administrativo das obras é o meio de que o Poder Público lança mão para impor e controlar a observância das normas técnico-legais da construção. Desde a elaboração do projeto até a con­clusão da obra, a construção fica sujeita à fiscalização da autoridade competente,12 que, para o início da edificação, expede o alvará de construção e, para o início de uso da obra concluída, expede o alvará de ocupação ou auto de vistoria, vulgarmente conhecido por “habite- se”. Esse policiamento da construção tanto pode alcançar as obras ur­banas como as edificações rurais, visto que umas e outras têm profun­das implicações com o bem-estar do indivíduo e da coletividade; mas, por incúria das Administrações, até hoje só se tem legislado para as construções urbanas. A inobservância ou desatendimento das normas técnico-legais da construção ou da regulamentação profissional sujeita o infrator a penalidades diversas, que podem variar desde a aplicação de multas até a interdição e demolição da obra, com suspensão ou mes­mo cassação do exercício profissional ou da empresa construtora res­ponsável pela ilegalidade.13

O policiamento administrativo das construções é da competência concorrente das três entidades estatais - União, Estado-membro e Mu­nicípio - porque a todas elas incumbe o dever de velar pelo bem-estar social, nos limites de suas atribuições institucionais. Ocorre, porém,

11. Lei 6.496, de 7.12.1977, e Resoluções CONFEA 194, de 22.5.1970, e 253, de 17.12.1977.

12. O Código Sanitário estadual e o Código de Obras municipal é que indi­cam as autoridades a que devem ser submetidos os projetos de construção, para fins de aprovação e fiscalização da obra urbana particular. A obra pública e os em­preendimentos rurais sujeitam-se a normas especiais. Há, ainda, normas específi­cas que condicionam a construção nas proximidades de aeroportos, na faixa de fron­teira, nas margens das rodovias etc.

1 3 . 0 Código Sanitário e o Código de Obras, como normas administrativas que são, estabelecem as infrações relativas à construção e cominam as respectivas sanções e embargos administrativos. As leis e resoluções normativas do exercício profissional estabelecem condições para desempenho da atividade liberal do enge­nheiro e do arquiteto e para a indústria da construção civil, cominando, igualmente, as sanções para os infratores. O Código de Processo Civil concede os meios adequa­dos (embargos e ações judiciais) para se tomar efetiva a sanção administrativa, quando resistida pelo infrator, dispondo também sobre as ações de vizinhança, oriundas de preceitos do Código Civil, ou de danos decorrentes das construções.

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que a construção afeta mais de perto os interesses locais, e, por isso mesmo, a maioria de suas normas provém do Município, que regulamen­ta as obras em seu território e sobre elas exerce intensa fiscalização. Além disso, a União e o Estado-membro geralmente delegam poderes ao Município para a inspeção das habitações, no que tange à observân­cia das normas sanitárias federais e estaduais. Daí por que, na prática, aparece o Município como entidade preponderantemente policiadora da construção.

2. A CONSTRUÇÃO CIVILCOMO ATIVIDADE TÉCNICO-ECONÔMICA

A construção civil contemporânea apresenta-se como atividade técnico-econômica, uma vez que os trabalhos de Engenharia e Arqui­tetura exigem a participação de profissionais habilitados e inversões financeiras que propiciem a execução da obra. Conjuga-se, assim, a técnica do profissional com os recursos econômicos do industrial. Mas nem por isso se confundem as duas atividades que se consorciam na construção civil.

Atento a essa realidade, o legislador brasileiro estabeleceu nítida distinção entre a atividade técnica dos profissionais da Engenharia e da Arquitetura e a atividade econômica dos que se dedicam à indústria da construção civil, e isto desde o primeiro Decreto 23.569, de 11.12.1933 (art. 8Q), até a vigente Lei 5.194, de 24.12.1966 (arts. 59 e 60).

Esses dois aspectos foram magistralmente assinalados pelo Prof. Vicente Ráo, ao acentuar que “a lei distingue, pois, o exercício da pro­fissão da simples exploração econômica de qualquer dos ramos da En­genharia ou da Arquitetura por pessoas físicas; e, feita essa distinção, prescreve que o exercício da profissão, em qualquer hipótese, só com­pete aos profissionais diplomados, ou habilitados, ao passo que a ex­ploração - obrigação de prestar ou prestação desses serviços, com fins de lucro - também pode ser praticada por sociedade”.14

No mesmo sentido expressa-se o Prof. Vítor da Silva Freire, ob­servando que “essa distinção é capital e acompanha como a própria

14. Vicente Ráo, “Parecer” dado ao CREA da 6a Região, em 10.9.1951, so­bre a interpretação do art. 8a do Decreto federal 23.569, in Pareceres sobre o Exer­cício da Engenharia, Arquitetura e Agrimensura, coligidos por Adolfo Morales de Los Rios Filho, publicação do Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura, Ia série, Rio, 1959, p. 9.

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sombra a regulamentação da profissão, em toda parte em que ela é in­tentada”.15

Impõe-se, por isso, o estudo desses dois aspectos inseparáveis da construção civil - o técnico e o econômico visto que, em nossos dias, o direito de construir fica sujeito a mais esse condicionamento da re­gulamentação profissional, que exige a participação dos técnicos da Engenharia e da Arquitetura e das empresas (individuais ou coletivas) legalmente autorizadas a construir. A construção civil é, pois, uma ati­vidade técnico-econômica que conjuga os processos científicos e artís­ticos da Engenharia e da Arquitetura com os recursos do capital e do trabalho leigo, para a concepção do projeto e sua econômica execução, que é o resultado da simbiose entre o exercício da profissão liberal e a indústria da construção civil.

2.1 O ASPECTO TÉCNICO

A atividade técnica da construção civil, nas suas várias modali­dades, revela-se no exercício da profissão liberal do engenheiro e do arquiteto, enquanto projetam ou fiscalizam a execução das obras idea­das, ao passo que a atividade industrial da construção se traduz na rea­lização material das obras projetadas. Naquela predomina a preocupa­ção científica e artística do profissional; nesta prepondera o interesse econômico da empresa - pessoa física ou jurídica - que se incumbe da construção.

A intelectualidade do trabalho realizado pelo profissional, com a técnica adequada e o cunho artístico pessoal, é que caracteriza o exer­cício da profissão liberal, distinguindo-a do empreendimento econô­mico da construção. Certo é que os serviços profissionais admitem remuneração, mas nem por isso caem no domínio dos atos de comér­cio, praticados com precípuo fito de lucro. A criatividade de concep­ção técnica e artística do projeto não se confunde com a realização ma­terial da obra.16 Daí a distinção entre honorários profissionais e preço da construção.

15. A Regulamentação das Profissões de Engenheiro, de Arquiteto e de Agri- mensor, Rio, 1936, p. 71. No mesmo sentido, na doutrina estrangeira, v. Colin e Capitant, Droit Civil França is, 8a ed., 11/729, Paris; Aubry e Rau, Droit Civil Fran- çais, 5a ed., V/405, Paris; Planiol e Ripert, Droit Civil Français, 2'ã ed., 11/911, Paris; Salvat, Derecho Civil Argentino, Ia ed., 1/256, Buenos Aires; Alcides Greca, El Règimen Legal de la Construcción, Buenos Aires, 1956, p. 80 . .

16. Cunha Gonçalves, Princípios de Direito Civil, 11/900, São Paulo, 1951.

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Não há confundir, portanto, a atividade técnica e os encargos éti- co-profissionais do engenheiro e do arquiteto, enquanto prestam servi­ços de suas especialidades, com a atividade industrial e os encargos econômicos dos que se encarregam de executar materialmente a cons­trução. Nada impede se reúnam no mesmo indivíduo o profissional e o construtor, mas nem assim se amalgamam as fUnções de um e de outro, porque, embora reunidas na mesma pessoa, coexistirão justapostos, sem se confundirem, os encargos do técnico e as responsabilidades do industrial construtor.

Essa discriminação de atividades é do maior interesse prático para a apuração das responsabilidades decorrentes da construção, visto que os encargos técnicos são, em regra, dos profissionais habilitados,17 que respondem pelo projeto e por sua execução, ao passo que os encargos econômicos da construção e de seus danos podem ser de responsabili­dade única do construtor, ou conjunta de todos os interessados na obra, conforme a hipótese ocorrente. Dada a complexidade do assunto, e o entrosamento com os contratos, relegamos o estudo das responsabili­dades decorrentes da construção para capítulo autônomo (cap. 8), após a apreciação das várias modalidades contratuais (cap. 7).

2.2 O ASPECTO ECONÔMICO

Ao lado da atividade precipuamente técnica e liberal do engenhei­ro, do arquiteto e do urbanista, desenvolve-se a indústria da constru­ção civil como atividade econômica ou, mais precisamente, técnico- econômica. Ambas estas atividades, como já vimos, podem coexistir no mesmo indivíduo, que atuará simultaneamente como profissional li­beral e como empresa, encarregando-se, a um tempo, da elaboração do projeto e da realização material da obra; mas o normal é que o profissio­nal cuide da parte técnica e a empresa se incumba da parte industrial da construção.

A legislação federal, como já vimos, ao dispor sobre os trabalhos de Engenharia e de Arquitetura, considerou e distinguiu essas duas situações, e com base nessa distinção restringiu a atividade técnica à pessoa física dos profissionais, facultando a atividade econômica da construção tanto à pessoa física dos profissionais como à pessoa jurí­

17. Só por exceção a lei admitiu a assunção de encargos técnicos por leigos “licenciados” (Decreto 23.569, de ! 1,12.1933, arts. 3fl e 5a, parágrafo único), crité­rio suprimido pela Lei 5.194, de 24.12.1966, que só manteve as licenças expedidas até a data de sua publicação (art. 2a, parágrafo único).

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dica das sociedades, ainda que constituída de ieigos, desde que a parte técnica fique a cargo exclusivo de profissional habilitado e registrado regularmente na forma da Lei 5.194/1966 (art. 59) e da Resolução CONFEA 336, de 27.10.1989.

A construção civil enseja, portanto, o desempenho de duas ativi­dades nitidamente diferentes, e que, por isso mesmo, devem reger-se por normas diversas. A atividade técnica e liberal do profissional que concebe e fiscaliza a obra há de pautar-se pelos postulados ético-pro- fissionais da legislação civil; a atividade industrial da construção, como empreendimento econômico que é, deve regular-se pelas normas co­merciais. Nega-se à construção civil18 o seu caráter industrial, sob o capcioso argumento de que tal atividade só produz imóveis. Mas a construção, como atividade econômica, não é o imóvel, nem se con­funde com o imóvel. E neste passo invocamos a lição de Baudry-La- cantinerie e Barde, que bem distinguem o objeto da construção, da ope­ração de construir: “Toda obrigação de fazer ou de não fazer (se opomos esta expressão à de obrigação de dar) é móvel. Com efeito, não se pode considerar coisa imóvel o fato ou a abstenção que constitui seu objeto. Urge, pois, classificá-lo entre os móveis, visto que, em princípio, todos os direitos ativos e passivos são, segundo o objeto a que eles se diri­gem, móveis ou imóveis. Isto é verdade até quanto à obrigação de cons­truir uma casa, pois a matéria desta obrigação não é a casa, mas o fato em si de construí-la. É preciso, pois, não confundir o resultado da exe­cução de uma obrigação com o objeto da obrigação”.59

Ante esta realidade, proclamou a Câmara Argentina de la Cons- trucción: “Si, de acuerdo con la lengua, ha de entenderse por industria al conjunto de operaciones materiales ejecutadas para la obtención, transformación y elaboración, en cualquiera de sus grados o etapas, de los produtos naturales, la construcción es una industria”.20

A renitência dos civilistas ortodoxos, que se apegam à imobilida­de da construção civil para negar caráter industrial à atividade que a produz, assenta, ao que se vê, na confusão que fazem entre a indústria da construção civil e a exploração imobiliária que campeia em nossos

18. A expressão “construção civil”, como já salientamos, não se opõe ao ca­ráter industrial da construção, servindo apenas para diferençar as obras de paz, das obras militares.

19. Traité Théorique et Pratique de Droit Civil, 3a ed., XII/1, n. 429.20. “La industria de la construcción”, in Publicação Oficial da Câmara Ar­

gentina de la Construcción, 1946-1947, p. 5.

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dias. Mas o equívoco é manifesto. A indústria da construção civil é uma atividade transformadora, que, conjugando materiais distintos e coor­denando operações diversas, compõe novas estruturas e obtém novos efeitos plásticos, que caracterizam a construção moderna. A exploração imobiliária, ao revés, é apenas atividade mediadora, que nada cria e nada transforma, baseando-se unicamente na valorização dos bens com que opera. Nem mesmo a denominada “incorporação de condomínio” se confunde com a construção do edifício, pois que aquela é simples meio de obtenção de recursos financeiros para a edificação, ao passo que esta é a realização do empreendimento, objetivado pelos condôminos.

As próprias entidades sindicais que representam a indústria da construção civil têm porfiado em manter nítida essa distinção,21 e a Consolidação das Leis do Trabalho enquadra a construção civil entre as “Indústrias da Construção e do Mobiliário”.22

Os autores pátrios, em sucessivos pronunciamentos doutrinários e projetos de lei, acentuaram a distinção entre o aspecto técnico e o eco­nômico da construção civil, forçando o reconhecimento legal dessa si­tuação em nosso País,23 como já o era no Estrangeiro.24

O caráter industrial da construção civil é hoje pacificamente reco­nhecido no Brasil, tanto assim que a Lei 4.864, de 29.11.1965, ao criar medidas de estímulo à indústria da construção civil, legitimou o aspec­

21. Anais das Reuniões Plenárias das Convenções dos Sindicatos da Indústria da Construção Civil e Entidades Congêneres, realizadas em Belo Horizonte (1952), São Paulo (1953), Rio de Janeiro (1954), Porto Alegre (1955) e Recife (1956).

22. A Consolidação das Leis do Trabalho, no quadro a que se refere o art. 577, inclui os construtores no 3Ü Grupo da Indústria (Indústria da Construção e do Mobiliário) e coloca os corretores de imóveis no 3a Grupo do Comércio (Agentes Autônomos do Comércio).

23. Benedito Pereira Porto, '‘Emissão de duplicatas pelos construtores”, in A Indústria da Construção Civil, Memorial, 1948; “Certificado de valor”, 1949, in RT 179/13. Com base nesses trabalhos, o deputado Herbert Levy apresentou na Câ­mara Federal o Projeto de lei 4.030/1954 (Diário do Congresso Nacional, lü.2 .1954, p. 358), e o deputado Armando Rolemberg ofereceu o substitutivo 4.030-A/1957 (RF 172/99), ambos considerando a construção civil como indústria e permitindo aos construtores o uso dos instrumentos de crédito próprios do comércio.

João Leão de Faria Júnior sustentou a mesma tese, acolhida pelo TFR no MS 68.542-SP, como nos informam Sylvio de Castro Continentino e Pedro Paulo de Cas­tro Pinheiro, ao transcreverem os ftmdamentos do citado acórdão, em sua obra Enge­nharia - Arquitetura - Agronomia, Rio, 1976, pp. 210 e ss.

24. Alcides Greca, El Règimen Lega/ de la Construcción, 1956, p. 81; Ripert, Traitê de Droit Cornmercial, 1948, p. 65; Vivante, Tratato di Diritto Commerciale, 1934, p. 105.

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to técnico e o econômico, o que mais tarde foi reafirmado pelo Decreto 66.079, de 16.1.1970, que, ao instituir grupo de trabalho para estudar e propor medidas e normas regulamentares dos diferentes ângulos da in­dústria da construção civil, tomou-a em sentido amplo e determinou a inclusão na comissão de representantes de entidades de classe de enge­nheiros e arquitetos e de firmas construtoras em geral (art. 2Ü, § 2a).

Ante essa realidade, foi promulgada a Lei 4.068, de 9.6.1962, de­clarando comerciais as empresas de construção e permitindo-lhes a emissão de duplicatas na forma das demais organizações mercantis.23 Essa lei baseou-se nas sugestões de Pereira Porto, que reclamava, de há muito, o enquadramento das firmas construtoras como empresas comer­ciais para que pudessem ter o seu título de crédito representativo das obras realizadas e mais o certificado de valor expedido pelas reparti­ções públicas, após a medição dos trabalhos já concluídos. Lamenta­velmente, o Congresso Nacional desfigurou o projeto original, que con­tinha essas inovações, só aprovando o uso da duplicata pelas empresas construtoras, agora erigidas em firmas comerciais.26 Hoje, a emissão de duplicatas pelos engenheiros e empresas de construção está autori­zada pela Lei 5.474, de 18.7.1968, que estendeu o uso desse título de crédito a todas as espécies de locadores de serviços intelectuais, revo­gando expressamente, pelo art. 28, a citada Lei 4.068/1962; mas nem por isso ficou excluído o caráter técnico-econômico da construção civil.

Na verdade, a construção civil é uma indústria sui generis, com características próprias e exigências específicas. E uma indústria nô­made e descontínua; executa obras a longo prazo e, por isso mesmo, sofre mais intensamente as variações de preço dos materiais e dos salá­rios; sujeita-se à mobilidade dos artífices e à instabilidade da mão-de- obra especializada; antecipa o valor da obra, enquanto as outras indús­trias só fixam o preço de seus produtos depois de fabricados e no ato da venda. Tais particularidades da construção civil exigem uma legis­lação própria, que contemple todos os aspectos que lhe são peculiares.

Ainda ao tempo do Código Civil de 1916 e do antigo Código Comer­cial (hoje unificados) o Autor fazia a seguinte crítica às suas disposições:

25. Artur Bosisio, A Empreitada de Constmçào como Ato de Comércio no Direito Positivo Brasileiro, tese, 1939; Noé Azevedo, “Parecer”, in RT 176/449; Ernesto Leme, “Parecer”, in RT 179/16; Benedito Pereira Porto, A Indústria da Construção Civil em face da Lei, 1948, p. 15, e “Problemas da indústria da cons­trução civil”, in Engenharia 66/3, 1948.

26. A legislação tributária, mesmo antes da Lei 4.068/1962, já considerava a construção civil como indústria, taxando especificamente os seus contratos.

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A despeito dessa evidência, o nosso Código Comercial ignora a exis­tência desta moderna indústria, e o Código Civil confunde o exercício da profissão liberal do arquiteto e do engenheiro com a atividade industrial do empreiteiro-construtor, equiparando-lhes as funções e responsabilidades (art. 1.246). Tal confusão já mereceu ajusta e autorizada crítica de Costa Sena, ao escrever que “empreiteiro, arquiteto e construtor, reunidos em uma disposição comum e única, são termos equivalentes para o Código. Não podemos elogiar-lhe a terminologia. Rejeitada pelos codificadores franceses, é acolhida aqui, quase um século depois, quando os arquitetos têm funções inteiramente distintas da única que lhes assinala o artigo. Tão distintas que, quando as qualidades do empreiteiro e arquiteto se juntam, os fatos que o exoneram como empreiteiro deixam subsistir sua responsabilidade como arquiteto”.27

O atraso do nosso Código Civil em matéria de construção é tanto mais sensível e lamentável quando desconhece essa distinção palmar entre a atividade técnica dos profissionais da Engenharia e da Arquitetura e a ati­vidade econômica da realização da obra, como produto de uma indústria perfeitamente caracterizada - a indústria da construção civil. Dessa indis­tinção legal de atividades que, na realidade, são distintas resultam concei­tos errôneos no campo da responsabilidade civil e, principalmente, da res­ponsabilidade ético-profissional. Além disso, provindo a nossa lei civil de uma época em que a construção era atividade permitida indistintamente a técnicos e a leigos, equiparou-lhes os direitos e encargos e os identificou na expressão genérica de “empreiteiros” (arts. 1.237 a 1.247), sem estabe­lecer a necessária hierarquia técnica entre os profissionais habilitados e seus concorrentes leigos. Para culminar em aberração ético-profissional, permi­tiu o Código Civil o traspasse da responsabilidade técnica, do construtor ao proprietário leigo, quanto à falta de firmeza do solo, para o levantamen­to da edificação pretendida (art. 1.245). De resto, o Código Civil brasileiro reproduz obsoletos conceitos e restrições do Direito português da época das Ordenações, desconhecendo, por completo, os novos métodos, os no­vos materiais e a moderna técnica de construir. Tais omissões e defeitos impõem ao aplicador da nossa lei civil, principalmente ao julgador, um es­forço contínuo de adaptação e temperamento das disposições vigentes do direito de construir, já incompatíveis com a construção contemporânea.

Como já alertado anteriormente, o Código Civil de 2002 não cui­dou de corrigir as deficiências apontadas pelo Autor, apesar do extra­ordinário avanço tecnológico da construção civil em nosso País na segunda metade do século passado. Salvo em um ou outro caso - já comentados o atual estatuto civil manteve os mesmos equívocos do anterior.

27. Da Empreitada no Direito Civil, Rio, 1936, p. 69.

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A CONSTRUÇÃO CIVIL EA REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 423

3. A REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL

3.1 A FORMA ÇÃO DOS PROFISSIONAISDA CONSTRUÇÃO CIVIL

A construção civil, como atividade técnica, sucedeu à construção bélica, e seus profissionais formaram-se, inicialmente, nas escolas de Engenharia Militar. A pouco e pouco, as construções de paz sobrepu­jaram as obras de guerra, as fortificações, os engenhos bélicos.

A construção civil, que principiou com a edificação urbana, es­tendeu-se gradativamente a todos os domínios da atividade pacífica do homem como fator de progresso e elemento de civilização. Transfor- mou-se em indústria - a industria da construção civil descobriu no­vos campos, aplicou novas técnicas, utilizou novos materiais, solicitou novas especializações, ensejando, assim, o florescer da Engenharia Ci­vil e da Arquitetura e, paralelamente, o alvorecer do Urbanismo.

Para atender à diversidade da construção civil e à perene evolução de sua técnica, as primitivas escolas de Engenharia Militar se foram transmudando em escolas mistas - militar e civil depois se desmem­braram em cursos autônomos e, afinal, as escolas de Engenharia Civil se transformaram em escolas politécnicas, repartindo seus cursos nas várias especializações contemporâneas.

Entre nós, o processo de formação de engenheiros seguiu a mes­ma evolução dos países mais antigos, criando-se, inicialmente, a Real Academia Militar do Rio de Janeiro, por Carta Régia de D. João VI, de 4.12 .1810 , transformada pelo Decreto Imperial de 1842 em estabele­cimento misto - militar e civil —, com a denominação de Escola Central de Engenharia, e convertida, em 1874, em curso exclusivo de Enge­nharia Civil, sob a designação de Escola Politécnica, hoje denominada Escola Nacional de Engenharia.28

Quanto ao ensino da Arquitetura, deve-se à Missão Lebreton, que, por um de seus membros, o arquiteto Grandjean de Montigny, iniciou o primeiro curso de Arquitetura no Brasil, em 1 2 .8 .1 8 1 6 , na então Es­cola Real de Ciências, Artes e OJicios, do Rio de Janeiro, transforma­da em 1820 em Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Ar­quitetura Civil, reorganizada em 1826, sob a designação de Academia

28. Sobre a evolução da Engenharia no Brasil, v. o excelente estudo de Adol­fo Morales de Los Rios Filho, no preâmbulo da publicação do Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura, intitulado Legislação do Exercício da Engenharia, Ar­quitetura e Agrimensura no Brasil, Rio, 1956, pp. 7-97.

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de Belas-Artes, e hoje denominada Escola Nacional de Belas-Artes. Posteriormente, desmembrou-se o curso de Arquitetura do de Belas- Artes, passando a ser ministrado isoladamente na Faculdade Nacional de Arquitetura e permanecendo com a tradicional Escola Nacional de Belas-Artes o ensino artístico de Pintura, Gravura, Escultura e Dese­nho. Na maioria das escolas de Belas-Artes brasileiras continua, ainda, a ser ministrado o curso de Arquitetura em conjunto com o das Belas- Artes, propriamente ditas.29

Quanto ao Urbanismo, o seu ensino superior e autônomo só foi oficializado no Brasil a partir de 1946, com o Decreto-lei 8.620 e a Resolução 56 do CONFEA, que dispôs sobre o exercício dessa especia­lização profissional, admitindo o registro de “urbanista” nos CREAs, com as atribuições que constarem do respectivo currículo escolar (art. 3Ü). Até então, o Urbanismo era ministrado incidentalmente nas es­colas de Engenharia e Arquitetura, como disciplina subsidiária desses cursos, sem a autonomia didática e científica que modernamente lhe é reconhecida.

O apontado Decreto-lei 8.620/1946, além da especialização Ur­banismo, autorizou a definição de atribuições de outros especialistas, no setor da construção civil - engenheiros naval e aeronáutico - de­terminando que o Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura indi­casse novos âmbitos profissionais de acordo com a evolução do ensino técnico superior (art. 17).

O campo das especializações está, na atualidade, delimitado pela Resolução 218, de 29.6.1973, do Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura, a partir de 1966 denominado Conselho Federal de Enge­nharia, Arquitetura e Agronomia (Lei 5.194, de 24.12.1966, art. 26), na qual estão, também, discriminadas as atribuições do engenheiro de fortificação e construção, engenheiro eletricista, engenheiro eletricista modalidade eletrônica, engenheiro eletrônico, engenheiro de comuni­cação, engenheiro mecânico, engenheiro mecânico e de automóveis, engenheiro mecânico e de armamentos, engenheiro de automóveis, en­genheiro industrial modalidade mecânica, engenheiro metalurgista, engenheiro industrial e de metalurgia, engenheiro industrial modali­dade metalurgia, engenheiro de minas, engenheiro de petróleo, enge­

29. Sobre a evolução da Arquitetura no Brasil, v. Adolfo Morales de Los Rios Filho, Grandjean de Montigny e a Evolução da Arte Brasileira, 1941, pp. 190 e ss.; Afonso de Taunay, Missão Artística de 1816, ed. do Ministério da Educação e Cultura, 195 6,passim.

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A CONSTRUÇÃO CIVIL E A REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 425

nheiro químico, engenheiro industrial modalidade química, engenheiro sanitarista, engenheiro têxtil e, ainda, dos técnicos de nível superior e de nível médio, nas suas diversas modalidades. Além desta Resolução, o Conselho Federal expediu inúmeras outras regulando novas especia­lidades, que foram surgindo com o passar dos anos, tais como enge­nharia de produção, de materiais, de pesca, sanitarista etc.

3.2 ANTECEDENTES DA REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL

Desde que a construção civil se tomou uma atividade técnica, com marcante repercussão social, passou a exigir profissionais habilitados e especialistas diversos para seus trabalhos. Essa realidade foi sentida por todos os povos civilizados, e a partir da segunda década deste sé­culo universalizou-se o movimento de regulamentação profissional do engenheiro e do arquiteto,30 disciplinando-se, subseqüentemente, a profissão de urbanista e a atividade dos auxiliares da construção ci­vil. Entre nós, observou-se o mesmo movimento de regulamentação profissional, culminando com a legislação vigente (Lei 5.194/1966), que reserva os trabalhos de Engenharia, Arquitetura e Agronomia a profissionais diplomados por curso superior e atribui os serviços com- plementares dessas atividades a técnicos de nível superior e médio, não mais permitindo o licenciamento de leigos.

A Engenharia e a Arquitetura, no Brasil, foram atividades livres a diplomados e leigos até o advento do Império. Com o Decreto Imperial de 29.8.1828 surgiram as primeiras exigências para a elaboração de pro­jetos e trabalhos de construtor, que àquela época se denominava “em­preiteiro” . Estas exigências foram sendo gradativamente aumentadas pelo Decreto 2.922, de 1862, que criou o Corpo de Engenheiros Civil, para execução de obras públicas; pelo Decreto 3.918, de 1863, que esta­beleceu novos requisitos para os serviços de Engenharia, e pelo Decreto 4.696, de 1871, que passou a exigir o diploma de engenheiro civil para o exercício de certas funções do Corpo de Engenheiros de Obras Públicas.

Proclamada a República, passaram os Estados-membros e o Dis­trito Federal a editar leis e regulamentos normativos dos trabalhos de Engenharia e Arquitetura em seus territórios, mas o faziam sem qual­

30. A mais antiga regulamentação legal da profissão de engenheiro e de ar­quiteto parece-nos ser a da Espanha, que data de 1757, quando Fernando VI criou a Academia de Nobles Aries e discriminou as atribuições de seus diplomados, se- guindo-se o Decreto Real de 22.7.1864, modificado sucessivas vezes até a regula­mentação atual.

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quer diretriz federal que orientasse a atividade dos que se dedicavam à construção civil. Com a insistência dos órgãos de classe, notadamente do então Instituto Politécnico Brasileiro (1884-1886), do Instituto de Engenharia de São Paulo (1921-1924), do Instituto Central de Arqui­tetos (1930), do Instituto Paulista de Arquitetos (1931), capitaneados pelo Prof. Adolfo Morales de Los Rios Filho, e, finalmente, com base no anteprojeto do Sindicato Nacional de Engenheiros (1932), foi edi­tado o Decreto 23.569, de 11.12.1933 (com força de lei), complemen­tado pelo Decreto-lei 3.995, de 31.12.1941, e pelo Decreto-lei 8.620, de 10.1.1946, atualmente substituídos pela Lei 5.194, de 24.12.1966.

3.3 O DECRETO 23.569/1933 E A LEI 5.194/1966

O Decreto 23.569/1933 foi o diploma legal que primeiro regula­mentou o exercício das profissões de engenheiro, arquiteto e agrimen- sor, e instituiu o Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura (CON- FEA) e os Conselhos Regionais (CREAs), como entes de coordenação e fiscalização dessas atividades profissionais. Embora deficiente, o De­creto 23.569/1933 propiciou um considerável avanço no campo da re­gulamentação profissional da Engenharia e da Arquitetura, discrimi­nando atribuições e vedando a leigos o desempenho de funções técni­cas, salvo as exceções de funcionários (art. 2Ü), as de direito adquirido (art. 3Ü) e as exigências da realidade nacional (art. 5Q, parágrafo único).

O exercício das profissões de engenheiro e de arquiteto, consoan­te o Decreto 23.569/1933, tomou-se privativo de diplomados nesses cursos por escolas nacionais oficiais ou oficializadas (art. 1Q, “a” e “b”), ou diplomados no Estrangeiro que revalidassem seus diplomas, na for­ma da legislação federai do Ensino Superior do Brasil (art. 1Q, “c”), salvo para os que já tinham direito adquirido pelo registro de seus títulos até 18.6.1915, de conformidade com a permissão do Decreto Imperial 3.001, de 9.10.1880 (art. lc, “d”). Por exceção, foi admitida a continua­ção das atividades dos projetistas e construtores leigos “licenciados” que já desempenhavam essas funções à data da publicação do Decreto 23.569, de 11.12.1933 (art. 3Q), e, em caráter precário e supletivo das deficiências locais, podiam os CREAs expedir licenças provisórias para pessoas idôneas, leigas, realizarem trabalhos de Engenharia e Arquite­tura nos Municípios em que não houvesse profissionais (art. 5Ü, pará­grafo único).

Outro mérito do Decreto 23.569/1933 foi o de ter criado o Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura (CONFEA) e os Conselhos Regio­

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nais (CREAs), como entes ordenadores e fiscalizadores do exercício pro­fissional e da atividade econômica e industrial da construção civil, até então desordenada e promíscua entre leigos e profissionais habilitados.

E de lamentar-se que o diploma de 1933 não se tenha revestido da organicidade desejável para um estatuto de classe, nem haja cogitado dos princípios éticos que devem nortear as relações dos profissionais entre si e para com os clientes, nem tenha estabelecido, em toda pleni­tude, os direitos e deveres decorrentes da profissão. Ressentiu-se, ain­da, de defeitos conceituais graves, e pecou na técnica de alguns de seus dispositivos, o que gerou dificuldades e confusões na sua aplicação. Daí os anseios de revisão expressos nos vários anteprojetos de reforma elaborados pelas entidades de classe, interessadas numa regulamenta­ção profissional consentânea com o progresso da Engenharia, da Ar­quitetura e do Urbanismo e com a importância da atuação desses pro­fissionais no desenvolvimento técnico, econômico e cultural do País.

No Congresso patrocinado pelo CONFEA, no Rio de Janeiro, em julho de 1960, foram apresentados mais três anteprojetos de regulamen­tação profissional, inclusive um de nossa autoria, por designação da Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo, mas o Plenário dissolveu o conclave sem aprovar qualquer dos ante­projetos ou apresentar substitutivo. No anteprojeto referido procuramos sistematizar a matéria relativa à Engenharia, à Arquitetura e ao Urba­nismo, bem como estabelecer princípios normativos da construção ci­vil no que se relacionava com as atividades liberais conexas e com os instrumentos de crédito necessários a essa nova indústria.

Em 24.12.1966 foi promulgada a Lei 5.194, substituindo e revo­gando toda a legislação anterior, pois passou a disciplinar inteiramente a matéria antes regida pelo Decreto 23.569/1933 e pelos Decretos-leis 3.995/1941 e 8.620/1946. Embora reconheçamos ter melhor discipli­nado vários aspectos da regulamentação profissional, a lei pecou por omissões e deficiências conceituais, mantendo, no entanto, a orienta­ção da legislação anterior.

3.4 O CONSELHO FEDERAL DE ENGENHARIA,ARQUITETURA E AGRONOMIA^

O Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA), nos moldes em que foi instituído pelo Decreto 23.569/

31. A Lei 9.649, de 27.5.1998, que dispôs sobre a reorganização da adminis­tração federal, modificou a natureza da personalidade jurídica de todos os Conse-

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1933 e mantido pela Lei 5.194/1966 (arts. 24, 26 e 80), é uma autar­quia profissional ou corporativa com a tríplice atribuição normativa, supervisora e disciplinadora do exercício das profissões que indica.

E autarquia, porque tem personalidade jurídica de Direito Público interno, instituída por lei, dispõe e gere patrimônio próprio, exerce fun­ções públicas in nomine suo, organiza os seus serviços e desempenha com autonomia funcional suas atribuições específicas. É uma autar­quia profissional ou corporativa, porque tem a missão precípua de orde­nar, coordenar e controlar as atividades de seus filiados, exercendo so­bre eles o poder disciplinar e a jurisdição administrativa plena no que tange ao exercício da profissão. É uma daquelas entidades que, no di-

Ihos de fiscalização de profissões regulamentadas, abrangendo o CONFEA. Em face do disposto no art. 58, embora sejam considerados serviços públicos, e, por­tanto, gozando de imunidade tributária total, as atividades dos conselhos de fiscali­zação de profissões regulamentadas deveriam ser exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público, mediante autorização legislativa. Tais Conselhos seriam dotados de personalidade jurídica de direito privado sem qualquer vínculo a Administração Pública, mas podendo, arrecadar as contribuições de seus associa­dos e puni-los por infrações disciplinares. Desse regime o citado dispositivo legal excluiu somente a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, que continua regida pela Lei 8.906/1994. Proposta a ADI 1.717-6, o Supremo Tribunal Federal, em jul­gamento de 22.9.1999 (publicado no DJU de 6.10.1999), sendo Relator o Min, Sydney Sanches, concedeu medida liminar para suspender a aplicação daquele dis­positivo, a té o julgamento do mérito. Em decisão proferida em 10. i 1.2002 (ADI 1.717-6, rei. Min. Sydney Sanches, j. 7.11.2002, DJU 18.11.2002), o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente, por unanimidade, a ação para decla­rar inconstitucionais o art. 58 da Lei 9.649/1998 e todos os seus parágrafos, com exceção do § 3C, considerado prejudicado. A ementa do acórdão é a seguinte:

“Direito Constitucional e Administrativo - Ação direta de inconstitucionali- dade do art. 58 e seus parágrafos da Lei n. 9.649, de 27.5.1998, que tratam dos serviços de fiscalização de profissões regulamentadas.

Estando prejudicada a ação quanto ao § 3Ü do art. 58 da Lei n. 9.649, de 27.5.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida caute­lar, a ação direta é julgada procedente quanto ao mais, declarando-se a inconstitu- cionalidade do caput e dos §§ lü, 2a, 4Ü, 5C, 6fl, 7fl e 8a do mesmo art. 58.

“2. Isso porque a interpretação conjugada dos arts. 5a, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal leva à conclusão no sentido da indelegabil idade, a uma entidade privada, de uma atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os disposi­tivos impugnados.

“3. Decisão unânime.”Em face dessa decisão, não há o que modificar no texto do Autor.

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zer abalizado de Emmanuel Gounot, “reveste a forma de corporação nas profissões liberais”.32

Autarquia sui generis, porque, além das funções administrativas comuns a tais entidades, o CONFEA dispõe de poder normativo para regulamentar e suprir a legislação federal no que concerne às profis­sões e atividades técnicas sujeitas ao seu controle. Tal poder tem sido largamente utilizado nas resoluções do CONFEA, pelas quais vem sen­do ordenado o exercício profissional, e discriminadas as atribuições das especializações da Engenharia. Só assim se consegue acompanhar e regrar, com disposições normativas adequadas, a perene ampliação do campo da Engenharia, da Arquitetura e da Agronomia, que, a todo mo­mento, se reparte em novos ramos de especialização técnica.

O pioneiro Decreto 23.569/1933 definiu, no seu cap. IV, as espe­cializações profissionais existentes à época (arts. 28 a 37). O Decreto- lei 8.620, de 1946, baixado para “completar disposições, dirimir dúvidas e preencher omissões” da lei anterior, na linguagem de seus “conside­randos”, delegou ao CONFEA competência para estabelecer os limites de atribuições para as especializações não definidas na anterior (art. 10) e, ainda, estabelecer os atributos das profissões civis de engenhei­ro naval, construtor naval, engenheiro aeronáutico, engenheiro meta­lúrgico, engenheiro químico e urbanista (art. 16). A Lei 5.194 ampliou esta competência, outorgando ao CONFEA autoridade plena para de­finição das modalidades profissionais.

Bem andou o legislador pátrio quando, reconhecendo os inconve­nientes de uma legislação estática para regular a dinâmica profissional, concedeu a uma entidade de classe, como é o CONFEA, a missão de atualizar as normas dísciplinadoras da profissão, sempre que o evolver da Ciência, aprimoramento da técnica e as novas concepções da Arte ultrapassarem os preceitos legais vigentes. Mas essa faculdade conce­dida ao CONFEA é excepcional em nosso ordenamento jurídico, e, por isso mesmo, há de ser exercida nos estritos limites da competência re­gulamentar, sem invadir a área normativa reservada à lei, como em certos casos já se verificou. Suas resoluções, portanto, só podem ser interpretativas, supletivas ou complementares das disposições legais existentes, sem contrariá-las ou inová-las naquilo que constitui matéria privativa de lei. A nosso ver, a competência normativa do CONFEA restringe-se à fixação de atribuições das especializações profissionais, à enunciação de regras éticas, disciplinares e regulamentares do exer­

32. L 'Organization Corporative, Paris, 1945, p. 406.

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cício das profissões sujeitas à sua fiscalização e controle. Além desses limites, sua ação normativa importaria atividade legislativa por um ente executivo, o que atenta contra a vedação constitucional de delegação de atribuições de um Poder a outro. Mas, quando essas resoluções são editadas nos limites legais, obrigam, desde a sua publicação oficial, a todos os que exercem a profissão ou estejam vinculados à atividade da construção, inclusive os proprietários de obras, as autoridades e entes estatais, autárquicos ou paraestatais responsáveis por serviços públicos (Lei 5.194/1966, arts. 12, 27, “g”, e 76).

As atribuições do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia distribuem-se em três linhas bem distintas: a regulamen­tar; a contenciosa de terceira e última instância; e a administrativa co­mum, como se infere da discriminação do art. 27 da Lei 5.194/1966.

No uso da faculdade normativa excepcional que lhe foi conferida por lei, como já se disse, o CONFEA supre e complementa a legisla­ção federal naqueles assuntos próprios da alçada regulamentar. E o faz através de deliberações de seus conselheiros, tomadas em sessões ple­nárias e concretizadas em resoluções de caráter geral e impositivo para todos os CREAs, filiados profissionais da classe e demais pessoas físi­cas ou jurídicas que exerçam atividades sujeitas à sua ordenação e fis­calização.

No desempenho das atribuições contenciosas de última instância, o CONFEA conhece e decide administrativamente, em julgamento fi­nal, os recursos interpostos de decisões dos Conselhos Regionais so­bre os assuntos indicados na Lei 5.194/1966. Tais decisões, embora terminativas no âmbito administrativo, não fazem coisa julgada perante o Judiciário, porque o nosso ordenamento constitucional nega poder conclusivo às jurisdições administrativas. Diversificado da organiza­ção européia e afeiçoado à tradição anglo-saxônia, o contencioso de nossas repartições administrativas não tem aquele poder conclusivo a que Emst Freund denomina mui adequadamente de final enforcing po- wer33 e que corresponde à coisa julgada das decisões judiciais. Entre nós, nenhum órgão estranho ao Judiciário poderá proferir julgamento ju- risdicional com efeito de coisa julgada, inatacável pelas vias judiciais comuns.

No exercício das atribuições administrativas, o CONFEA gere seus bens e interesses e exerce excepcional poder hierárquico sobre os CREAs, na sua estruturação e na revisão de seus atos, como, também,

33. Administrative Power, Nova York, 1928, p. 170.

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A CONSTRUÇÃO CIVIL EA REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 431

dirimindo suas dúvidas. Essas funções, todavia, não autorizam o en­tendimento de que os CREAs são autarquias inteiramente subordina­das ao CONFEA. O que existe é uma vinculação anômala, com recur­sos hierárquicos impróprios dos entes regionais ao ente superior cen­tral, caracterizando um controle especial, com vínculo mais rigoroso que no normal das autarquias administrativas. Isto ficou evidenciado por duas normas legais que dispuseram sobre a regulamentação dos CREAs pe­rante o CONFEA. Com efeito, o Decreto-lei 620, de 10.6.1969, alte­rou os arts. 24, 27, 29, “a”, 36 e 80 da Lei 5.194/1966, para impor a subordinação desses Conselhos Regionais ao Federal, mas, 19 dias após, baixou-se novo decreto-lei, o de n. 711, de 29.6.1969, revogando o anterior e restabelecendo apenas o vínculo autárquico. Permanecem, assim,.os CREAs e o próprio CONFEA como autarquias profissionais sui generis. Desde que o CONFEA e os CREAs são entidades de Di­reito Público, personalizados e patrimonializados por lei e com gestão própria de seus bens e interesses, não se pode negar-lhes o caráter au­tárquico, mas de autarquias especiais, escalonadas em dois graus, vin­culados os Regionais ao Federal e autônomos nas suas relações com terceiros. Aliás, esta característica de autarquias especiais não se apre­senta somente nos Conselhos de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, mas em quase todos os conselhos profissionais do País, como se cons­tata no Decreto-lei 968, de 13.10.1969, que dispõe sobre a supervisão ministerial relativa às entidades incumbidas da fiscalização do exercício de profissões liberais, que, no seu art. Ia, determina que não se aplicam a estas autarquias as normas legais sobre pessoal e demais disposições de caráter geral relativas à administração interna das autarquias federais.34

Agora, a mesma norma que criou o registro de contratos de ser­viços de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, sob a designação de “Assunção de Responsabilidade Técnica” (ART), instituiu também a “Mútua de Assistência dos Profissionais da Engenharia, Arquitetura e Agronomia” (Lei 6.496, de 7.12.1977).35

34. Observe-se que o CONFEA bem como os CREAs não mais estão sujeitos a supervisão ministerial, tendo em vista a revogação do parágrafo único do art. lfl do Decreto-lei 968/1969 pelo art. 3ü do Decreto-lei 2.299/1986. Acrescente-se que o art. Ia do Decreto 93.617/1986 expressamente dispôs: “Não será exercida super­visão ministerial sobre as entidades incumbidas da fiscalização do exercício de pro­fissões liberais, a que se refere o Decreto-lei 968, de 13.10.1969”.

35. Em edição anterior conceituamos a Mútua como entidade autárquica, mas, reexaminando a matéria e consultando seu Estatuto, chegamos à conclusão de que é uma sociedade civil sem fins lucrativos, do gênero paraestatal e da espécie ente

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O Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia tem sede e foro no Distrito Federal (Brasília) e jurisdição em todo o territó­rio nacional. Quanto às contas de sua gestão financeira, é de se dizer que os CREAs e o CONFEA devem prestá-las ao Tribunal de Cóntas da União, que é o órgão competente para o controle externo da admi­nistração financeira de todas as autarquias federais, qualquer que seja a sua natureza.

3.5 OS CONSELHOS 'REGIONAIS

Os Conselhos Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CREAs) foram também instituídos pelo Decreto 23.569/1933, com a imprópria designação de “órgãos” auxiliares do Conselho Federal (CONFEA) e a este hierarquizados (art. 25). Posteriormente, o Decre­to-lei 8.620, de 10.1.1946, declarou, em seu art. que: “O Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura e seus Conselhos Regionais cons­tituem em seu conjunto uma autarquia, sendo cada um deles dotado de personalidade jurídica de Direito Público”. A Lei 5.194/1966 reitera essa conceituação (art. 80). Assim dispondo, a legislação pertinente tor­nou expresso, embora com impropriedade técnica, que o CONFEA e cada um dos CREAs são entidades públicas de natureza autárquica. O equívoco está em que tais entes não constituem apenas uma só autar­quia, mas tantas quantas forem os Conselhos existentes, pois não se pode admitir em Direito uma entidade com diversas personalidades ju­rídicas. Cada Conselho constitui, pois, uma pessoa jurídica autônoma da sua congênere. E a realidade vem demonstrando que o Conselho Federal e cada Conselho Regional atuam individualmente, com perso­nalidade e responsabilidades próprias.

Cada Conselho Regional é uma autarquia autônoma, apenas com natureza, finalidade e objetivos idênticos.36 Mas uma autarquia anô­mala, porque os CREAs estão vinculados a outra autarquia, que é o

de cooperação, não integrante da Administração indireta da União, embora sujeita ao controle do CONFEA e do Ministro do Trabalho. É, pois, uma sociedade civil anômala e um serviço social sxti generis, visto que, regida pelo Direito Privado e não pertencendo à Administração indireta da União, a lei que autorizou a sua cria­ção (Lei 6.496/1977) estabeleceu verdadeira subordinação ao CONFEA e ao Mi­nistro do Trabalho.

36. Neste mesmo sentido é a abalizada opinião de Sílvio de Castro Continen- tino e Pedro Paulo de Castro Pinheiro, em seu valioso estudo Engenharia - Arqui­tetura - Agronomia, Rio, 1976, pp. 33 e ss.

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CONFEA. Tais observações se nos afiguram convenientes para o aper­feiçoamento futuro da estrutura e posicionamento dessas entidades na organização administrativa brasileira.37

As atribuições dos Conselhos Regionais, além da fiscalização do exercício profissional, destacada no art. 33 da Lei 5.194/1966, são todas aquelas discriminadas no art. 34, que abrangem funções administrati­vas, organizatórias, disciplinares e julgadoras de segunda instância, pois que as de primeira são normalmente da competência das Câmaras Especializadas (art. 45). Com esse amplo poder, os CREAs exercem a função corretiva de seus filiados e policiam administrativamente a exe­cução de obras e serviços, registram profissionais e firmas3S e a autoria de planos e projetos (art. 23). Cabe ainda aos CREAs fazer a “Anota­ção de Responsabilidade Técnica” (ART) concernente aos contratos escritos ou verbais de Engenharia, Arquitetura ou Agronomia, nos ter­mos da Lei 6.496/1977 (art. Ia), para que tal trabalho integre o acervo técnico do profissional responsável, e não o da empresa contratante.39

Correlatamente a essa fiscalização, compete ao CREA impor as sanções correspondentes aos profissionais e empresas incursos nas in­frações legais, sempre com recurso final para o CONFEA, sendo que certas faltas são julgadas em primeira instância pela Câmara Especializa­da, a ser constituída em todo CREA que tenha um mínimo de três mem­bros do mesmo grupo profissional (arts. 47 e 48).

Através de atos ordinatórios, cada CREA pode complementar, adequando às peculiaridades da região, as normas superiores, desde que não invada a competência originária e privativa do CONFEA, pois que sua alçada é meramente de execução, e nunca de criação de Direi­to novo (art. 34, “k”).

A composição dos Conselhos Regionais obedece ao disposto nos arts. 37 a 44 da Lei 5.194/1966, sendo seus membros escolhidos den-

37. A Resolução 318, de 31.10.1986, do CONFEA, dispõe complementar- mente sobre a composição e organização dos Conselhos Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia.

3 8 .0 TFR entendeu que não cabe exigência de registro da empresa no CREA quando a mesma não tem por atividade-fim a prestação de serviços de Engenharia a terceiros (RDA 166/100).

39. A Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) está regulamentada pela Resolução CONFEA 317, de 31.10.1986. O TFR entendeu incompatível com o preceito constitucional do livre exercício da profissão a limitação imposta pelo CREA de número máximo de obras sob controle de um único profissional (RDA 160/216).

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tre brasileiros diplomados em curso superior de Engenharia, Arquite­tura e Agronomia, sempre com o representante de cada escola ou fa­culdade com sede na região e das entidades de classe da mesma região indicados na forma de seus estatutos. Os CREAs funcionarão em ses­são plenária e, para assuntos específicos, em Câmaras Especializadas (art. 42). O mandato dos conselheiros regionais será de três anos, re­novável anualmente pelo terço de seus membros.

3.6 O CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL

O Código de Ética Profissional do engenheiro, arquiteto e enge­nheiro agrônomo está apenas mencionado na Lei 5.194/1966, com a indicação de que deve ser elaborado pelas entidades de classe (art. 27, “n”), para que suas faltas sejam julgadas em primeira instância pelas Câmaras Especializadas (arts. 45 e 46, “b”), em segunda, pelo Conse­lho Regional (art. 34, “d”), e, em instância final, pelo Conselho Fede­ral (art. 27, “n”), tendo esclarecido, ainda, que são aplicáveis aos pro­fissionais infratores unicamente as penas de advertência reservada e de censura pública (art. 71).

Com base nessas indicações foi aprovado o Código de Ética pela Resolução CONFEA 205, de 30.9.1971, substituído pela Resolução CONFEA 1.002, de 21.11.2002, que melhor relaciona os princípios éti­cos, os deveres e direitos dos profissionais e as respectivas condutas vedadas, que caracterizam a infração ética, definida como “todo ato cometido pelo profissional que atente contra os princípios éticos, des- cumpra os deveres do ofício, pratique condutas expressamente veda­das ou lese direitos reconhecidos de outrem”.

Continua válida a crítica do Autor à sistemática do Código anterior, e mais ainda à sua imprecisa redação, ao definir as condutas puníveis. De qualquer forma, a falta ética só se caracteriza quando cometida com dolo e enquadrável no tipo descrito, pois não se admite infração deon- tológica culposa e carente da tipicidade legal, que, no caso, é a defini­da na norma profissional.

A Resolução 1.004, de 27.6.2003, aprovou o Regulamento para a Condução do Processo Ético Disciplinar, estabelecendo todas as suas fases e formalidades, determinando que o procedimento corra em cará­ter reservado, com acesso exclusivo às partes e seus advogados. A Co­missão de Ética, constituída no âmbito do CREA, incumbe instruir o processo e apresentar relatório à Câmara Especializada, a quem com­pete o julgamento em primeira instância; desta cabe recurso ao Plená­

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rio do CREA e deste ao CONFEA. Mesmo depois de transitada em jul­gado a decisão e aplicada a pena, é admissível ainda o pedido de recon­sideração, baseado em fatos novos, à semelhança do que ocorre com a revisão no processo penal (Código de Processo Civil, arts. 621 e ss.).

A infringência de preceito ético-profissional tipificado no Código sujeitará o infrator à pena de advertência reservada ou de censura pú­blica, previstas na Lei 5.194/1966 (art. 71, “a” e “b”), independente­mente de qualquer outra sanção, administrativa, civil ou penal, a que a mesma infração der causa, porque, como se sabe, o ilícito ético é autô­nomo e não se confunde com os demais. A punibilidade das faltas éti­cas prescreve em cinco anos, contados da data de verificação do ato ou fato punível, devendo ser arquivado, de ofício ou a requerimento da parte, o processo disciplinar paralisado há mais de três anos, consoante dispõe a Lei 6.838, de 29.10.1980.

Finalmente, é de se advertir que as faltas éticas podem assumir as mais variadas e disfarçadas formas, merecendo destaque o plágio de pro­

je to , a usurpação de projeto e a alteração de projeto de outrem, que, conforme a sua gravidade, pode tipificar infração civil40 e até crime de violação de direito autoral (Código Penal, art. 184), como vimos ao cui­dar das responsabilidades decorrentes da construção (cap. 8, item 2.7).

4. OS PROFISSIONAIS DA CONSTRUÇÃO CIVIL

Os profissionais da construção civil, em acepção ampla, são to­dos aqueles que se dedicam à edificação em geral, ou em especial à urbanização, à realização de estradas, pontes, portos, aeroportos, dre­nagens, represas, diques, canais, e obras complementares. Em sentido restrito, são os diplomados em curso superior, os especialistas de grau médio e até os artífices leigos que se empenham na construção. Dentre estes profissionais têm preeminência os engenheiros, os arquitetos e os engenheiros agrônomos, porque em torno deles é que gravitam os gra­duados de níveis superior e médio e os leigos, mestres e encarregados de obras.41

40. STF, RT 609/214.41. Já não mais se registram os “licenciados”, nem os “auxiliares de enge­

nheiro”, antes admitidos respectivamente pelos arts. 22 e 3o e 20 do Decreto-lei 8.620/1946, e abolidos pela Lei 5.194/1966, que não os mencionou dentre os pro­fissionais registráveis nos CREAs, razão pela qual o CONFEA, pela Resolução 202, de 1« 7.1971, e pelas Decisões 752, de 24.1.1967, e 132, de 26.6.1974, vedou tais inscrições.

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Estabelecem-se, assim, entre todos esses participantes da constru­ção civil, uma partilha de atribuições e um encàdeamento de responsa­bilidades que vão desde os encargos técnicos e econômicos reservados aos profissionais habilitados e às firmas construtoras, passando pela responsabilidade restrita dos especialistas de determinadas partes ou serviços da obra, até as obrigações meramente trabalhistas dos prepos- tos do construtor e dos operários da construção.

Sobre estes profissionais, especialistas e leigos, que se dedicam à atividade técnico-econômica da construção civil é que versarão as con­siderações deste tópico, focalizando suas atribuições e distinguindo suas responsabilidades perante o Poder Público, o proprietário, os vizi­nhos e terceiros eventualmente sujeitos aos efeitos benéficos ou lesi­vos da obra empreendida.

E de esclarecer-se, desde logo, que, na sistemática vigente, as ati­vidades das diferentes modalidades profissionais - do engenheiro, do arquiteto e do agrônomo - e suas respectivas atribuições são estabele­cidas por resolução do Conselho Federal, que indica especificamente cada uma das especializações e o campo de sua atuação.42 Presente­mente, essas especializações profissionais estão relacionadas na Reso­lução CONFEA 218, de 29.6.1973, e outras que a complementam. Es­tão eles obrigados a se registrar no CREA de seu local de trabalho e obter sua carteira de identidade profissional, inclusive os profissionais estrangeiros, com visto provisório ou permanente no Brasil, conforme a Resolução 1007, de 5.12.2003.

Feitas essas considerações de ordem geral sobre as profissões regu­lamentadas, diremos algo sobre os seus profissionais, a começar pelos engenheiros.

4.1 ENGENHEIROS

Os engenheiros, e notadamente os engenheiros civis - agora jun­tamente com os engenheiros de fortificação e construção - , são, no Brasil, os profissionais de competência mais ampla no campo da construção. Eis que a Resolução CONFEA 218/1973, ao discriminar as modalidades profissionais e ao deferir-lhes as atribuições, conferiu ao engenheiro civil e ao de fortificação e construção todas as 18 ativi-

42. Cf. Resolução CONFEA 430, de 13.8.1999. Sobre tal matéria já demos parecer anteriormente a essa resolução (cf. nosso Estudos e Poreceres de Direito Público, 1/95, São Paulo, Ed. RT, 1971).

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A CONSTRUÇÃO CIVIL E A REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 437

dades enumeradas no art. l u, referentes a “edificações, estradas, pistas de rolamento e aeroportos; sistemas de transportes, de abastecimento de água e de saneamento; portos, rios e canais, barragens e diques, dre­nagens e irrigação; pontes e grandes estruturas; serviços afins e corre- latos” (art. I a, I). Nessas atribuições, algumas deveriam, a rigor, per­tencer a outras especialidades, mas continuam com esses engenheiros pela tradição de seus currículos, organizados em época anterior ao des­dobramento das especializações.

A Engenharia Civil desenvolveu-se com aquele sentido politécni­co que marcou sua evolução desde que se desgarrou da arte bélica para atuar nas construções de paz. No correr do século XX, com o progres­so da Ciência e da Técnica, a Engenharia Civil se desdobrou em novas ramificações, já existindo no Brasil cerca de três dezenas de especiali­zações regulamentadas pela citada Resolução CONFEA 218/1973 e as que se lhe seguiram, inclusive nas áreas não urbanas, em que atuam o engenheiro agrônomo, o engenheiro florestal, o engenheiro ambiental e o engenheiro de pesca.

Outras ramificações da Engenharia estão sendo criadas no País e sendo reconhecidas por resolução do Conselho Federal como especia­lizações profissionais autônomas, como o engenheiro de computação (Resolução 380/1993) e, mais recentemente, o engenheiro de controle e automação (Resolução 427/1999).

4.2 ARQUITETOS

Os arquitetos ou engenheiros arquitetos têm suas atribuições de­finidas na mesma Resolução CONFEA 218/1973, que lhes comete o desempenho de todas as atividades enumeradas no art. Ia, referentes a “edificações, conjuntos arquitetônicos e monumentos, arquitetura pai­sagística e interiores; planejamento físico local, urbano e regional; seus serviços afins e correlatos” (art. 2Q).

Vê-se, da discriminação supra, que as atribuições do arquiteto con­correm, em boa parte, com as do engenheiro civil e adentram, em al­guns pontos, o campo do urbanista. Esta interpenetração profissional decorre dos mesmos motivos que ditaram a ampliação da competência do engenheiro civil a trabalhos de outras especializações, ou seja, a ca­rência de profissionais especializados. Mas é inegável a diversificação técnica desses três esgalhos da Engenharia moderna. Ao engenheiro civil competem os problemas de estruturas, ligados às Ciências Exatas; ao arquiteto tocam os problemàs de forma e função individual da cons­

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trução, vinculados às Ciências Sociais e à orientação artística; e ao ur­banista incumbem os problemas de forma, função, volume e coordena­ção da construção (planejamento), coletivamente considerados, em face das Ciências Sociais e das normas jurídicas vigentes. São três técnicas distintas, que se completam para a dominação da Natureza e composi­ção dos espaços utilizáveis pelo indivíduo e pela comunidade.

A Arquitetura contemporânea é, fundamentalmente, uma técnica de plástica social, visando adequar a forma à função e à estética. No exato conceito de J. M. Richards: “Architecture is social art, related to the life it serves, not an academic exercise in applied omaments”.43 O que caracteriza a Arquitetura moderna é a procura da forma útil para o homem, na composição dos espaços habitáveis. Tal preocupação é re­velada por Le Courbusier nesta confissão: “Je recherche avec une véri- table avidité ces maisons qui sont des maisons d’hommes et nJont pas des maisons d’architectes” 44

Ao lado do arquiteto e do engenheiro surge o urbanista, profissio­nal do planejamento e da organização dos espaços habitáveis, no seu conjunto cidade-campo. Esta especialização foi reconhecida pelo art. 16 do Decreto-lei 8.620, de 10.1.1946 e, hoje, está contemplada no art. 21 da Resolução CONFEA 218/1973, com as seguintes atribuições: “de­sempenho das atividades 0 1 a l 2 e l 4 a l 8 d o art. \% referente a de­senvolvimento urbano e regional, paisagismo e trânsito; seus serviços afins e correlatos” . Atribuições ainda muito restritas, talvez pela pouca amplitude dos cursos, que só recentemente cuidaram da matéria. Real­mente, trata-se de uma técnica nova de ordenação espacial, ainda não suficientemente conhecida e aprofundada no Brasil, onde o seu concei­to se prende, erroneamente, ao de Engenharia urbana. Tal confusão se deve à inadequação do vocábulo “Urbanismo” e ao seu primitivo e res­trito significado de arte de alindar cidades. Modernamente, o Urbanismo tem um sentido mais amplo, de técnica de ordenação integral do conjun­to urbano (zona rural e urbana), visando ao sinergismo da cidade e do campo, para a propiciaçao do exercício pleno e confortável das quatro funções sociais do homem: habitação, trabalho, recreação, circulação.^

43. An Introduction to Modem Architecture, Londres, 1953, p. 7. V., ainda, Adolfo Morales de Los Rios Filho, Teoria e Filosofia da Arquitetura, Rio, 1955, pp. 3 5 e ss .

44. Précisions, Paris, 1949, p. 15.45. A “Carta de Atenas”, elaborada no Congresso Internacional de Arquitetu­

ra Moderna (CIAM), em 1933, proclamou, em sua 77a conclusão: “Les clefs de 1’Urbanisme sont dans les quatre fonctions: habiter, travai ller, se recréer (dans les

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A CONSTRUÇÃO CIVIL EA REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 439

Da imprecisão conceituai e legal do campo do Urbanismo e da função do urbanista tem resultado o desempenho indiscriminado de suas atribuições por engenheiros e arquitetos, o que até certo ponto se justifica pela carência desses profissionais em nosso País e pela conexão das profissões, embora distintas na sua formação e nos seus objetivos.

Já dissemos, e convém repetir, que à Engenharia competem pre- cipuamente as soluções de estrutura; à Arquitetura, as soluções de for­ma; ao Urbanismo, as soluções de função coletiva. Entre essas três ati­vidades profissionais há sensíveis inter-relações, porém mais estreita é a contactação do arquiteto com o urbanista, porque se preocupam fun­damentalmente com os problemas da habitação. Mas, enquanto o ar­quiteto cuida de ambientes para o indivíduo, o urbanista prepara espa­ços para a coletividade. A técnica de ambos é social, com repercussões profundas na comunidade, mas com objetivos bem diversificados. Pa­rafraseando Lewis Munford, podemos dizer que o arquiteto visualiza o conjunto para projetar a unidade; o urbanista planeja a unidade para harmonizar o conjunto.46

4.3 AGRÔNOMOS

Os agrônomos ou engenheiros agrônomos tiveram sua profissão regulamentada pelo Decreto 23.196, de 12.10.1933, complementado pelo Decreto-lei 9.585, de 15.8.1946, e são, atualmente, os profissio­nais incumbidos da organização, execução e desenvolvimento dos em­preendimentos rurais em geral. Cabem-lhes, assim, o estudo e solução dos problemas da exploração agrícola e pecuária, da conservação do solo e dos recursos naturais, bem como a racionalização da comerciali­zação agroindustrial e o projeto e construção das benfeitorias rurais e dos implementos agrícolas.

Diante dessa realidade, a Resolução CONFEA 218/1973 relacio­nou para o engenheiro agrônomo todas as atividades compreendidas no art. lü, referentes a “Engenharia Rural; construções para fins rurais e suas instalações complementares; irrigação e drenagem para fins agrícolas; fitotecnia e zootecnia; melhoramento animal e vegetal; recursos naturais

heures libres), circuler”. A declaração de La Sarraz, de 1928, também do CIAM, definiu os objetivos do Urbanismo nestes termos: “L’Urbanisme est 1’aménagement des lieux et des locaux, divers qui doivent abriter !e dévelopment de la vie matérielle, sentimentale et spirituelle dans toutes ses manifestations, individuelles ou collecti- ves. 11 embrasse aussi bien les aglomérations urbaines que les groupements ruraux”.

46. Roots o f Contemporany American Archiíecture, Nova York, 1951, p. 25.

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renováveis; ecologia; agrometeorologia; defesa sanitária; química agrí­cola; alimentos; tecnologia de transformação (açúcar, amidos, óleos, la­ticínios, vinhos e destilados); beneficiamento e conservação dos produ­tos animais e vegetais; zinotecnia; agropecuária; edafologia; fertilizantes e corretivos; processo de cultura e de utilização do solo; microbiologia agrícola; biometria; parques e jardins; mecanização na agricultura; im­plementos agrícolas; nutrição animal; agrostologia; bromatologia e rações; economia rural e crédito rural; seus serviços afins e correlatos” (art. 5a).

Como se vê, o engenheiro agrônomo detém amplas atribuições nos empreendimentos organizacionais e construtivos no meio rural, cujas atividades lhe são privadas desde a reformulação empreendida pela Lei 5.194/1966, que o nivelou profissionalmente ao engenheiro e ao arqui­teto, demarcando apenas o seu campo de atuação.

4.4 TÉCNICOS DE NÍVEL SUPERIOR

Com base na Lei 5.540, de 28.11.1968,47 criaram-se cursos pro­fissionais de curta duração, destinados a proporcionar habilitação in­termediária de grau superior (arts. 18 e 23). Por sua vez, o Decreto-lei 542, de 18.4.1969, autorizou as Escolas Técnicas Federais, mantidas pelo Ministério da Educação, a organizar cursos de curta duração de nível superior, de acordo com as necessidades do mercado de trabalho. Esses técnicos vieram substituir aqueles que o Decreto-lei 8.620/1946 admitia para trabalhos sob responsabilidade profissional de engenheiros e arquitetos (art. 18), com a denominação de técnicos de nível superior ou tecnólogos, e com suas atribuições especificadas na Resolução CONFEA 218/1973 (depois substituída pela Resolução 313/1986), para o devido registro no CREA.

Esses profissionais, uma vez inscritos no CREA, podem realizar os seus trabalhos com autonomia técnica, sujeitos ao mesmo controle ético-profissional dos demais, mas não se confundem com os enge­nheiros, arquitetos e engenheiros agrônomos, porque, como esclare­ce a própria legislação que os rege, sua habilitação é intermediária de

47. A Lei 5.540/1968 foi revogada pela Lei 9.394, de 20.12.1996 (novas Di­retrizes e Bases da Educação Nacional), que não manteve os chamados “cursos de curta duração de nivel superior”. Contempla apenas a educação profissional de nível médio (art. 39), assim como a possibilidade de o ensino médio, atendida a forma­ção geral do educando, prepará-lo para o exercício das profissões técnicas (art. 36). O CONFEA mantém a Resolução 313/1986, pela possibilidade de ainda existirem diplomados por aqueles cursos de nível superior.

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A CONSTRUÇÃO CIVIL EA REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 441

grau superior e com responsabilidades limitadas às partes das obras que executam.

4.5 TÉCNICOS DE 2Q GRAU

Os técnicos de 2a grau (antes denominados técnicos de grau mé­dio) são admitidos a executar determinados serviços ou partes de uma obra de responsabilidade de um profissional habilitado ou de uma fir­ma legalmente autorizada a construir. Foram inicialmente regulados pela Lei 5.524, de 5.11.1968, regulamentada pelo Decreto 90.922, de 6.2.1985, e pela Lei 5.692, de 11.8.1971, que fixou as Diretrizes e Ba­ses para o ensino de Ia e 2Ü graus (ciclo colegial). Esta última norma instituiu o ensino profissionalizante, criando uma segunda espécie de técnicos artesanais, aos quais deferiu qualidade para se registrarem nos CREAs, consoante a permissão do art. 84 da Lei 5.194/1966. Diante disso, a Resolução CONFEA 218/1973 discriminou suas atribuições nos seguintes termos: “desempenho das atividades 14 a 18 do art. lü, circunscritas ao âmbito das respectivas modalidades profissionais, e as relacionadas nos ns. 07 a 12 do art. Ia, desde que enquadradas no de­sempenho das atividades referidas no item I” (art. 24).48 Posteriormen­te, as atribuições desses técnicos foram explicitadas na Resolução CONFEA 262/1979, sendo o seu registro no CREA admitido pela mes­ma resolução. Anote-se que a Lei 5.692/1981 foi substituída pela Lei 9.394, 20.12.1997 (“Diretrizes e Básicas da Educação Nacional”), que manteve o ensino profissionalizante em outros termos. Anote-se, ain­da, que o art. 2Q dessa Resolução CONFEA 262/1979 foi revogado pela Resolução 473/2002, que discrimina os títulos dos profissionais de ní­vel superior, tecnólogos e técnicos de grau médio.

Suas atribuições são, pois, assemelhadas às dos técnicos de nível superior, com exclusão das atividades enunciadas nos itens 06 e 13 do art. 1Q da mesma Resolução CONFEA 218/1973. É de observar-se que, presentemente, estes profissionais não têm competência para executar pequenas construções, como tinham na vigência do Decreto-lei 8.620/ 1946, o que importa um vazio a ser preenchido, dadas a vastidão do território nacional e a carência de engenheiros e arquitetos para proje­tar e dirigir a edificação das modestas moradias. Cabe aos Conselhos Regionais suprir esta lacuna, com ato permissivo para que esses técni-

48. Os antigos “auxiliares de engenheiro”, instituídos pelo Decreto-iei 8.620/ 1946 (art. 20), já não são admitidos pela atual legislação.

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cos realizem essas atividades, de alto interesse social, para as denomi­nadas “construções econômicas”.

Desde que registrados nos CREAs esses técnicos sujeitam-se aos preceitos ético-profíssionais e à fiscalização de sua conduta nos traba­lhos que desempenham.

4.6 ENCARREGADOS E MESTRES-DE-OBRAS

Os encarregados e os mestres-de-obras são auxiíiares leigos do construtor, sem qualquer formação técnica ou atribuição profissional reconhecida por lei. Na prática, encontra-se em toda obra o encarregado ou o mestre, ou ambos, como empregados de confiança do profissional habilitado ou licenciado que responde pela construção. Referindo-se a esses auxiíiares, o Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura os excluiu da regulamentação profissional do Decreto 23.569/1933 e os conceituou nestes termos: “Encarregado é a pessoa que, tendo a seu cargo dirigir operários na execução de uma obra, serve de intermediá­rio entre o profissional e os operários da obra; Mestre é o artífice que pelos seus conhecimentos de um ofício orienta operários do mesmo ofí­cio” (Resolução CONFEA 6, de 9.8.1934).

Além dessas missões específicas, comumente o encarregado ou o mestre de uma obra é incumbido de admitir e despedir operários e artí­fices, de distribuir e anotar serviços, de receber e conferir material, de efetuar pagamentos, de acompanhar, enfim, os trabalhos internos e de rotina do andamento da construção, pondo o construtor permanente­mente a par do que se passa na obra, mesmo porque todos os seus atos e suas ordens se presumem praticados por conta e risco do profissional a que está subordinado.

Não se hão de confundir, pois, o encarregado e o mestre-de-obras, simples prepostos leigos do construtor, com os auxiíiares técnicos da construção. Nem se equiparem o encarregado e o mestre ao construtor “licenciado”, porque este, quando autorizado a construir, tem a mesma autonomia, as mesmas atribuições e as mesmas responsabilidades do construtor diplomado.

O encarregado e o mestre-de-obras não exercem atribuições téc­nicas, nem suportam encargos econômicos decorrentes da construção. Auxiliam o construtor, sem qualquer responsabilidade ético-profíssional pela execução da obra. O vínculo que se estabelece entre estes auxilia- res leigos e o construtor legalmente autorizado a construir é meramente

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A CONSTRUÇÃO CIVIL E A REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL 443

contratual-trabalhista,49 sem qualquer liame técnico-profissional. Daí por que, em caso de insegurança ou imperfeição da obra, ou de outro insucesso na construção, a responsabilidade técnica e econômica recai exclusivamente sobre o profissional ou a empresa que executou, libe­rando os subordinados leigos.

49. A Lei 2.959, de 17.11.1956, complementando o art. 443 da Consolidação das Leis do Trabalho, dispôs que: “No contrato individual de trabalho por obra certa, as inscrições na carteira profissional do empregado serão feitas pelo constru­tor, desse modo constituído em empregador, desde que exerça a atividade em cará­ter permanente” (art. P). Em face dessa orientação legal, o construtor será sempre o “empregador”, qualquer que seja a modalidade de seu contrato de construção com o proprietário, pois que, preenchendo a carteira profissional dos empregados da obra, passa a responder por todos os encargos trabalhistas (salários, férias, indeni­zações etc.). Entenda-se por “construtor” a pessoa física ou jurídica que assume os encargos técnico-econômicos da obra, colocando-se na posição de “empresa”. A própria Consolidação das Leis do Trabalho, depois de considerar todo empregador como “empresa” (art. 2a), equipara, para esse fim, os profissionais liberais que ad­mitirem trabalhadores como empregados (§ P do art. P ). Por outro lado, a mesma Consolidação considera “empregado” toda pessoa física que prestar serviços de na­tureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Nes­sas condições, o encarregado e o mestre-de-obras serão sempre considerados em­pregados do construtor - pessoa física ou jurídica - a que estiverem subordinados.

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APÊNDICE D E LEGISLAÇÃO *

* Em razão das constantes mudanças introduzidas na legislação, e em face da facilidade de consulta por meios eletrônicos da legislação, das Resoluções do CON­FEA e das normas da ABNT (especialmente pelas páginas www.planalto.gov.br, http://www.confea.org.br e http://www.abnt.org.br) limitacno-nos a transcrever os artigos da CF e do Código Civil que dizem respeito ao direito de construir, além das Leis 5.194/1966 e 6.496/1977 (esta na parte que interessa aos leitores desta obra).

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CONSTITUIÇÃO DE 1988(Disposições referentes à propriedade e à política urbana)

T í tu lo II - DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

C a p í tu lo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos

Art. 5“. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin­do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e ã propriedade, nos termos seguintes: (...)

XXII - é garantido o direito de propriedade;XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; (...)

T í tu lo III - DA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO

C a p í tu lo II - Da União

Art. 21. Compete à União: (...)IX — elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de

desenvolvimento econômico e social; (...)

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico,

espacial e do trabalho;II - desapropriação; (...)

Art. 23. É competência comum da Uniao, dos Estados, do Distrito Federal e dos Mu­nicípios: (...)

IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; (...)

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentementesobre:

I — direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; (...)VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;VIII — responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos

de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (...)XII - previdência social, proteção e defesa da saúde; (...)

C a p í tu lo IV — Dos Municípios

A r t 30. Compete aos Municípios: (...)

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448 DIREITO DE CONSTRUIR

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planeja­mento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legisla­ção e a ação fiscalizadora federal e estadual. (...)

T í tu lo VII - DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA

C a p í tu lo I - Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;II - propriedade privada;III - função socia! da propriedade;IV - livre concorrência;V - defesa do consumidor;VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o

impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (redação dada pela EC 42/2003)

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;VIII - busca do pleno emprego;IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis

brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (redação dada peta EC 6/1995')Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômi­

ca, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Caí>ítulo II - Da Política Urbana

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público muni­cipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi­mento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

§ Ia. O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2Q. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fun­damentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

§ 3a. As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indeniza­ção em dinheiro.

§ 4°. É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluí­da no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;II - imposto sobre a propriedade prediai e territorial urbana progressivo no tempo;III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão

previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parce­las anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor reai da indenização e os juros legais.

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta me­tros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua mo­

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 449

radia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1B. O titulo de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mu­lher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2U. Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.§ 3Ü. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

CÓDIGO CIVIL (DE 2002)(Disposições referentes ao direito de construir)

PARTE ESPECIAL

LIVRO I - DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

Título V - DOS CONTRATOS EM GERAL

Capítulo I — Disposições Gerais

Seção V — Dos Vicios Redibitòrios

An. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe dimi­nuam o valor.

Parágrafo único. E aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas.Art. 442. Em vez de rejeitar a coisa, redibindo o contrato (art. 441), pode o adquirente

reclamar abatimento no preço.Art. 443. Sc o alienante conhecia o vicio ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu

com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as des­pesas do contrato.

Art. 444. A responsabilidade do alienante subsiste ainda que a coisa pereça em poder do alienatário, se perecer por vício oculto, já existente ao tempo da tradição.

Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço noprazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.

§ l ü. Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitentadias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.

Art. 446. Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência.

Seção VI — Da Evicção

Art. 447. Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta ga­rantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.

Art. 448. Podem as partes, por cláusula expressa, reforçar, diminuir ou excluir a res­ponsabilidade pela evicção.

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450 DIREITO DE CONSTRUIR

Art. 449. Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se der, tem direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do risco da evicção, ou, dele informado, não o assumiu.

Art. 450. Salvo estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição inte­gral do preço ou das quantias que pagou:

I - à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir;II - à indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente re-

sultarem da evicção;III - às custas judiciais e aos honorários do advogado por ele constituído.Parágrafo único. O preço, seja a evicção total ou parcial, será o do valor da coisa, na

época em que se evenceu, e proporcional ao desfalque sofrido, no caso de evicção parcial.Art. 451. Subsiste para o alienante esta obrigação, ainda que a coisa alienada esteja

deteriorada, exceto havendo dolo do adquírente.Art. 452. Se o adquirente tiver auferido vantagens das deteriorações, e não tiver sido

condenado a indenizá-las, o valor das vantagens será deduzido da quantia que lhe houver de dar o alienante.

Art. 453. As benfeitorias necessárias ou úteis, não abonadas ao que sofreu a evicção, serão pagas pelo alienante.

An. 454. Se as benfeitorias abonadas ao que sofreu a evicção tiverem sido feitas pelo alienante, o valor delas será levado em conta na restituição devida.

Art. 455. Se parcial, mas considerável, for a evicção, poderá o evicto optar entre a rescisão do contrato e a restituição da parte do preço correspondente ao desfalque sofrido. Se não for considerável, caberá somente direito a indenização.

Art. 456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notifi­cará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determi­narem as leis do processo.

Parágrafo único. Não atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo manifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação, ou usar de re­cursos.

Art. 457. Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa.

T í tu lo VI - DAS VÁRIAS ESPÉCIES DE CONTRATO

C a p í tu lo VIII — Da Empreitada

Art. 610. O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais.

§ 1“ A obrigação de fornecer os materiais não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.

§ 2U. O contrato para elaboração de um projeto não implica a obrigação de executá-io, ou de fiscalizar-lhe a execução.

Art. 611. Quando o empreiteiro fornece os materiais, correm por sua conta os riscos até o momento da entrega da obra, a contento de quem a encomendou, se este não estiver em mora de receber. Mas se estiver, por sua conta correrão os riscos.

Art. 612. Se o empreiteiro só forneceu mão-de-obra, todos os riscos em que não tiver culpa correrão por conta do dono.

Art. 6 i 3. Sendo a empreitada unicamente de lavor (art. 610), se a coisa perecer antes de entregue, sem mora do dono nem culpa do empreiteiro, este perderá a retribuição, se não

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 451

provar que a perda resultou de defeito dos materiais e que em tempo reclamara contra a sua quantidade ou qualidade.

Art. 614. Se a obra constar de partes distintas, ou for de natureza das que se determi­nam por medida, o empreiteiro terá direito a que também se verifique por medida, ou segun­do as partes em que se dividir, podendo exigir o pagamento na proporção da obra executada.

§ K Tudo o que se pagou presume-se verificado.§ 2U. O que se mediu presume-se verificado se, em trinta dias, a contar da medição,

não forem denunciados os vícios ou defeitos pelo dono da obra ou por quem estiver incum­bido da sua fiscalização.

Art. 615. Concluída a obra de acordo com o ajuste, ou o costume do lugar, o dono é obrigado a recebê-la. Poderá, porém, rejeitá-la, se o empreiteiro se afastou das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas em trabalhos de tal natureza.

Art. 616. No caso da segunda parte do artigo antecedente, pode quem encomendou a obra, em vez de enjeitá-la, recebê-la com abatimento no preço.

Art. 617. O empreiteiro é obrigado a pagar os materiais que recebeu, se por imperícia ou negligência os inutilizar.

Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções considerá­veis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela soiidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito.

Art. 619, Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas modificações no projeto, a não ser que estas resultem de instruções escritas do dono da obra.

Parágrafo único. Ainda que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou.

Art. 620. Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apurada.

Art. 621. Sem anuência de seu autor, não pode o proprietário da obra introduzir modi­ficações no projeto por ele aprovado, ainda que a execução seja confiada a terceiros, a não ser que, por motivos supervenientes ou razões de ordem técnica, fique comprovada a incon­veniência ou a excessiva onerosidade de execução do projeto em sua forma originária.

Parágrafo único. A proibição deste artigo não abrange alterações de pouca monta, res­salvada sempre a unidade estética da obra projetada.

Alt. 622. Se a execução da obra for confiada a terceiros, a responsabilidade do autor do projeto respectivo, desde que não assuma a direção ou fiscalização daquela, ficará limita­da aos danos resultantes de defeitos previstos no art. 618 e seu parágrafo único.

Art. 623. Mesmo após iniciada a construção, pode o dono da obra suspendê-la, desde que pague ao empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais indeniza­ção razoável, calculada em função do que ele teria ganho, se concluída a obra.

Art. 624. Suspensa a execução da empreitada sem justa causa, responde o empreiteiro por perdas e danos.

Ari. 625. Poderá o empreiteiro suspender a obra:I - por culpa do dono, ou por motivo de força maior;II - quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de

execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que

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452 DIREITO DE CONSTRUIR

torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços;

111 - se as modificações exigidas pelo dono da obra, por seu vulto e natureza, forem desproporcionais ao projeto aprovado, ainda que o dono se disponha a arcar com o acrésci­mo de preço.

Art. 626. Não se extingue o contrato de empreitada pela morte de qualquer das partes, salvo se ajustado em consideração às qualidades pessoais do empreiteiro.

LIVRO III - DO DIREITO DAS COISAS

T í tu lo III - DA PROPRIEDADE

C a p í tu lo II - Da Aquisição da Propriedade Imóvel

Subseção V - Das Construções e Plantações

Art. 1.253. Toda construção ou plantação existente em um terreno presumc-se feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário.

Art. 1.254. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno próprio com sementes, plantas ou materiais alheios, adquire a propriedade destes; mas fica obrigado a pagar-lhes o valor, além de responder por perdas e danos, se agiu de má-fé.

Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a in­denização.

Parágrafo único. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, median­te pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.

Art. L256. Se de ambas as partes houve má-fé, adquirirá o proprietário as sementes, plantas e construções, devendo ressarcir o valor das acessões.

Parágrafo único. Presume-se má-fé no proprietário, quando o trabalho de construção, ou lavoura, se fez em sua presença e sem impugnação sua.

Art. 1.257. O disposto no artigo antecedente aplica-se ao caso de não pertencerem as sementes, plantas ou materiais a quem de boa-fé os empregou em soio alheio.

Parágrafo único. O proprietário das sementes, plantas ou materiais poderá cobrar do pro­prietário do solo a indenização devida, quando não puder havê-ia do plantador ou construtor.

Art. 1.258. Se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigésima parle deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indenização que represente, também, o valor da área perdida e a desvalorização da área re­manescente.

Parágrafo único. Pagando em décuplo as perdas e danos previstos neste artigo, o cons­trutor de má-fé adquire a propriedade da parte do solo que invadiu, se em proporção à vigé­sima parte deste e o valor da construção exceder consideravelmente o dessa parte e não se puder demolir a porção invasora sem grave prejuízo para a construção.

Art. 1.259. Se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio exceder a vigé­sima parte deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais o da área perdida e o

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 453

da desvalorização da área remanescente; se de má-fé, é obrigado a demolir o que nele cons­truiu, pagando as perdas e danos apurados, que serão devidos em dobro.

C ap ítu i.o V — Dos Direitos de Vizinhança

Seção 1 — Do Uso Anormal da Propriedade

( Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar asj interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas| pela utilização de propriedade vizinha.j Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utiliza-} ção, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e

os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.Art. 1.278. O direito a que se refere o artigo antecedente não prevalece quando as in­

terferências forem justificadas por interesse público, caso em que o proprietário ou o possui­dor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal.

Alt. 1.279. Ainda que por decisão judicial devam ser toleradas as interferências, pode­rá o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis.

Art. 1.280. O proprietário ou o possuidor tem direito a exigir do dono do prédio vizi­nho a demolição, ou a reparação deste, quando ameace ruína, bem como que lhe preste cau­ção pelo dano iminente.

Art. 1.281. O proprietário ou o possuidor de um prédio, em que alguém tenha direito de fazer obras, pode, no caso de dano iminente, exigir do autor delas as necessárias garantias contra o prejuízo eventuai.

I Seção II — Das Arvores Limítrofes

\ Art. 1.282. A árvore, cujo tronco estiver na linha divisória, presume-se pertencer emj comum aos donos dos prédios confinantes.1. Art. 1.283. As raízes e os ramos de árvore, que ultrapassarem a estrema do prédio,

poderão ser cortados, até o plano vertical divisório, pelo proprietário do terreno invadido.Art. 1.284. Os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo

onde caíram, se este for de propriedade particular.

Seção III - Da Passagem Forçada

j Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto,\ pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem,

cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário, i § l S o f r e r á o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se

prestar à passagem.§ 2a. Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das partes perca o aces­

so a via pública, nascente ou porto, o proprietário da outra deve tolerar a passagem.§ 3U. Aplica-se o disposto no parágrafo antecedente ainda quando, antes da alienação,

existia passagem através de imóvel vizinho, não estando o proprietário deste constrangido, depois, a dar uma outra.

Seção IV - Da Passagem de Cabos e Tubulações

Art. 1.286. Mediante recebimento de indenização que atenda, também, à desvaloriza­ção da área remanescente, o proprietário é obrigado a tolerar a passagem, através de seu

| imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade públi-| ca, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessi-| vãmente onerosa.

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454 DIREITO DE CONSTRUIR

Parágrafo único. O proprietário prejudicado pode exigir que a instalação seja feita de modo menos gravoso ao prédio onerado, bem como, depois, seja removida, à sua custa, para outro local do imóvel.

Alt. 1.287. Se as instalações oferecerem grave risco, será facultado ao proprietário do prédio onerado exigir a realização de obras de segurança.

Seção V - Das Águas

Art. 1.288. O dono ou o possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior, não podendo realizar obras que embaracem o seu fluxo; porém a condição natural e anterior do prédio inferior não pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior.

Art. 1.289. Quando as águas, artificialmente levadas ao prédio superior, ou aí colhi­das, correrem dele para o inferior, poderá o dono deste reclamar que se desviem, ou se lhe indenize o prejuízo que sofrer.

Parágrafo único. Da indenização será deduzido o valor do benefício obtido.Art. 1.290. O proprietário de nascente, ou do solo onde caem águas pluviais, satisfei­

tas as necessidades de seu consumo, não pode impedir, ou desviar o curso natural das águas remanescentes pelos prédios inferiores.

Art. 1.291. O possuidor do imóvel superior não poderá poluir as águas indispensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis inferiores; as demais, que poluir, deverá recuperar, ressarcindo os danos que estes sofrerem, se não for possível a recu­peração ou o desvio do curso artificial das águas.

Art. 1.292. O proprietário tem direito de construir barragens, açudes, ou outras obras para represamento de água em seu prédio; se as águas represadas invadirem prédio alheio, será o seu proprietário indenizado pelo dano sofrido, deduzido o valor do benefício obtido.

Art. 1.293. E permitido a quem quer que seja, mediante prévia indenização aos proprie­tários prejudicados, construir canais, através de prédios alheios, para receber as águas a que tenha direito, indispensáveis às primeiras necessidades da vida, e, desde que não cause pre­juízo considerável à agricultura e à indústria, bem como para o escoamento de águas supér­fluas ou acumuladas, ou a drenagem de terrenos.

§ Io. Ao proprietário prejudicado, em tal caso, também assiste direito a ressarcimento pelos danos que de futuro lhe advenham da infiltração ou irrupção das águas, bem como da deterioração das obras destinadas a canalizá-las.

§ 2D. O proprietário prejudicado poderá exigir que seja subterrânea a canalização que atravessa áreas edificadas, pátios, hortas, jardins ou quintais.

§ 3o. O aqueduto será construído de maneira que cause o menor prejuízo aos proprietá­rios dos imóveis vizinhos, e a expensas do seu dono, a quem incumbem também as despesas de conservação.

Art. 1.294. Aplica-se ao direito de aqueduto o disposto nos arts. 1.286 e 1.287.Art. 1.295. O aqueduto não impedirá que os proprietários cerquem os imóveis e cons­

truam sobre ele, sem prejuízo para a sua segurança e conservação; os proprietários dos imó­veis poderão usar das águas do aqueduto para as primeiras necessidades da vida.

An. 1.296. Havendo no aqueduto águas supérfluas, outros poderão canalizá-las, para os fins previstos no art. 1.293. mediante pagamento de indenização aos proprietários preju­dicados e ao dono do aqueduto, de importância equivalente às despesas que então seriam necessárias para a condução das águas até o ponto de derivação.

Parágrafo único. Têm preferência os proprietários dos imóveis atravessados pelo aqueduto.

Seção V! — Das Limites entre Prédios e do Direito de Tapagem

Art. 1.297. O proprietário tem direito a cercar, murar, vaiar ou tapar de qualquer modoo seu prédio, urbano ou rural, e pode constranger o seu confinante a proceder com ele à

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 455

demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou aiTui nados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas.

§ Ia. Os intervalos, muros, cercas e os tapumes divisórios, tais como sebes vivas, cer­cas de arame ou de madeira, valas ou banquetas, presumem-se, até prova em contrário, per­tencer a ambos os proprietários confinantes, sendo estes obrigados, de conformidade com os costumes da loca!idade, a concorrer, em partes iguais, para as despesas de sua construção e conservação.

§ 2a. As sebes vivas, as árvores, ou plantas quaisquer, que servem de marco divisório, só podem ser cortadas, ou arrancadas, de comum acordo entre proprietários.

§ 3Ü. A construção de tapumes especiais para impedir a passagem de animais de pe­queno porte, ou para outro fim, pode ser exigida de quem provocou a necessidade deles, pelo proprietário, que não está obrigado a concorrer para as despesas.

Art. 1.298. Sendo coniusos, os limites, em falta de outro meio, se determinarão de conformidade com a posse justa; e, não se achando ela provada, o terreno contestado se divi­dirá por partes iguais entre os prédios, ou, não sendo possível a divisão cômoda, se adjudica­rá a um deles, mediante indenização ao outro.

Seção VII - Do Direito de Construir

Art. 1.299. O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprou- ver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.

Art. 1.300. O proprietário construirá de maneira que o seu prédio não despeje águas, diretamente, sobre o prédio vizinho.

Art. 1.301. É defeso abrir janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de metro e meio do terreno vizinho.

§ l u. As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as perpendicu­lares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros.

§ 2U. As disposições deste artigo não abrangem as aberturas para luz ou ventilação, não maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de comprimento e construídas a mais de dois metros de altura de cada piso.

Art. 1.302. O proprietário pode, no lapso de ano e dia após a conclusão da obra, exigir que se desfaça janela, sacada, terraço ou goteira sobre o seu prédio; escoado o prazo, não poderá, por sua vez, edificar sem atender ao disposto no artigo antecedente, nem impedir, ou dificultar, o escoamento das águas da goteira, com prejuízo para o prédio vizinho.

Parágrafo único. Em se tratando de vãos, ou aberturas para luz, seja qual for a quanti­dade, altura e disposição, o vizinho poderá, a todo tempo, levantar a sua edificação, ou con- tramuro, ainda que lhes vede a claridade.

Art. ! .303. Na zona rural, não será permitido levantar edificações a menos de três me­tros do terreno vizinho.

Art. 1304. Nas cidades, vilas e povoados cuja edificação estiver adstrita a alinhamen­to, o dono de um terreno pode nele edificar, madeirando na parede divisória do prédio contí­guo, se ela suportar a nova construção; mas terá de embolsar ao vizinho metade do valor da parede e do chão correspondentes.

Art. 1.305. O confinante, que primeiro construir, pode assentar a parede divisória até meia espessura no terreno contíguo, sem perder por isso o direito a haver meio valor dela seo vizinho a travejar, caso em que o primeiro fixará a largura e a profundidade do alicerce.

Parágrafo único. Se a parede divisória pertencer a uni dos vizinhos, e não tiver capaci­dade para ser travejada pelo outro, não poderá este fazer-lhe alicerce ao pé sem prestar cau­ção àquele, pelo risco a que expõe a construção anterior.

Art. 1.306. O condômino da parede-meia pode utilizá-la até ao meio da espessura, não pondo em risco a segurança ou a separação dos dois prédios, e avisando previamente o outro condômino das obras que ali tenciona fazer; não pode sem consentimento do outro, fazer, na

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456 DIREITO DE CONSTRUIR

parede-meia, armários, ou obras semelhantes, correspondendo a outras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto.

Art. 1.307. Qualquer dos confinantes pode altear a parede divisória, se necessário re­construindo-a, para suportar o alteamento; arcará com todas as despesas, inclusive de con­servação, ou com metade, se o vizinho adquirir meação também na parte aumentada.

Art. 1.308. Não é lícito encostar à parede divisória chaminés, fogões, fomos ou quais­quer aparelhos ou depósitos suscetíveis de produzir infiltrações ou interferências prejudi­ciais ao vizinho.

Parágrafo único. A disposição anterior não abrange as chaminés ordinárias e os fogões de cozinha.

Alt. 1.309. São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso ordiná­rio, a água do poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes.

Art. 1.310. Não é permitido fazer escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nascente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais.

Art. 1.311. Não é permitida a execução de qualquer obra ou serviço suscetível de pro­vocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometa a segurança do prédio vizinho, senão após haverem sido feitas as obras acautelatórias.

Parágrafo único. O proprietário do prédio vizinho tem direito a ressarcimento pelos prejuízos que sofrer, não obstante haverem sido realizadas as obras acautelatórias.

Art. 1.312. Todo aquele que violar as proibições estabelecidas nesta Seção é obrigado a demolir as construções feitas, respondendo por perdas e danos.

Art. 1.313. O proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para:

1 - dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, recons­trução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório;

il - apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.§ l*1. O disposto neste artigo aplica-se aos casos de limpeza ou reparação de esgotos,

goteiras, aparelhos higiênicos, poços e nascentes e ao aparo de cerca viva.§ 2C. Na hipótese do inciso II, uma vez entregues as coisas buscadas pelo vizinho,

poderá ser impedida a sua entrada no imóvel.§ 3". Se do exercício do direito assegurado neste artigo provier dano, terá o prejudica­

do direito a ressarcimento.

T í tu lo V - DAS SERVIDÕES

C a p í tu lo II — Do Exercício das Servidões

Art. 1.380. O dono de uma servidão pode fazer todas as obras necessárias à sua con­servação e uso, e, se a servidão pertencer a mais de um prédio, serão as despesas rateadas entre os respectivos donos.

Art. 1.381. As obras a que se refere o artigo antecedente devem ser feitas pelo dono do prédio dominante, se o contrário não dispuser expressamente o título.

Art. 1.382. Quando a obrigação incumbir ao dono do prédio serviente, este poderá exonerar-se, abandonando, total ou parcialmente, a propriedade ao dono do dominante.

Parágrafo único. Se o proprietário do prédio dominante se recusar a receber a proprie­dade do serviente, ou parte dela, caber-lhe-á custear as obras.

Art. 1.383. O dono do prédio serviente não poderá embaraçar de modo algum o exercí­cio legítimo da servidão.

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 457

Art. i .384. A servidão pode ser removida, de um local para outro, pelo dono do prédio serviente e à sua custa, se em nada diminuir as vantagens do prédio dominante, ou pelo dono deste e à sua custa, se houver considerável incremento da utilidade e não prejudicar o prédio serviente.

Art. 1.385. Restriugir-se-á o exercício da servidão às necessidades do prédio dominan­te, evitando-se, quanto possível, agravar o encargo ao prédio serviente.

§ lQ. Constituída para certo fim, a servidão não se pode ampliar a outro.§ 2°. Nas servidões de trânsito, a de maior inclui a de menor ônus, e a menor exclui a

mais onerosa.§ 3U. Se as necessidades da cultura, ou da indústria, do prédio dominante impuserem à

servidão maior largue2a, o dono do serviente é obrigado a sofrê-la; mas tem direito a ser indenizado pelo excesso.

Art. i .386. As servidões prediais são indivisíveis, e subsistem, no caso de divisão dos imóveis, em beneficio de cada uma das porções do prédio dominante, e continuam a gravar cada uma das do prédio serviente, saivo se, por natureza, ou destino, só se aplicarem a certa parte de um ou de outro.

C a p í tu lo 111 ~ Da Extinção das Servidões

Alt. ! .387. Salvo nas desapropriações, a servidão, uma vez registrada, só se extingue, com respeito a terceiros, quando cancelada.

Parágrafo único. Se o prédio dominante estiver hipotecado, e a servidão se mencionar no título hipotecário, será também preciso, para a cancelar, o consentimento do credor.

Art. 1.388. O dono do prédio semente tem direito, pelos meios judiciais, ao cancela­mento do registro, embora o dono do prédio dominante lho impugne:

I - quando o titular houver renunciado a sua servidão;II - quando tiver cessado, para o prédio dominante, a utilidade ou a comodidade, que

determinou a constituição da servidão;[II - quando o dono do prédio serviente resgatar a servidão.Art. 1.389. Também se extingue a servidão, ficando ao dono do prcdio serviente a fa­

culdade de fazê-la cancelar, mediante a prova da extinção:I - pela reunião dos dois prédios no domínio da mesma pessoa;II - pela supressão das respectivas obras por efeito de contrato, ou de outro título ex­

presso;III - pelo não uso, durante dez anos contínuos.

LEI 5.194, DE 24 DE DEZEMBRO DE 1966

Regula o exercício das profissões de Engenheiro, Arquiteto e Engenheiro- Agrânomo, e dá outras providências

T ítulo I - DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL DA ENGENHARIA,DA ARQUITETURA E DA AGRONOMIA

C a p í tu lo I - Das atividades profissionais

Seção I - Caracterização e exercício das profissões

Art. 1“. As profissões de engenheiro, arquiteto e engenheiro-agrôn omo são caracteri­zadas pelas realizações de interesse social e humano que importem na realização dos seguin­tes empreendimentos:

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458 DIREITO DE CONSTRUIR

a) aproveitamento e utilização de recursos naturais;b) meios de locomoção e comunicações;c) edificações, serviços e equipamentos urbanos, rurais e regionais, nos seus aspectos

técnicos e artísticos;d)instalações e meios de acesso às costas, cursos e massas de água e extensões terrestres;e) desenvolvimento industrial e agropecuário.

Art. 2U. O exercício, no País, da profissão de engenheiro, arquiteto ou engenheiro- agrônomo, observadas as condições de capacidade e demais exigências legais, é assegurado:

a) aos que possuam, devidamente registrado, diploma de faculdade ou escola superior de engenharia, arquitetura ou agronomia, oficiais ou reconhecidas, existentes no País;

b) aos que possuam, devidamente revalidado e registrado no País, diploma de faculda­de ou escola estrangeira de ensino superior de engenharia, arquitetura ou agronomia, bem como os que tenham esse exercício amparado por convênios internacionais de intercâmbio;

c) aos estrangeiros contratados que, a critério dos Conselhos Federal e Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, considerados a escassez de profissionais de determi­nada especialidade e o interesse nacional, tenham seus títulos registrados temporariamente.

Parágrafo único. O exercício das atividades de engenheiro, arquiteto e engenheiro-agrò- nomo é garantido, obedecidos os limites das respectivas licenças e exciuídas as expedidas, a título precário, até a publicação desta Lei, aos que, nesta data, estejam registrados nos Con­selhos Regionais.

Seção II - Do uso do título profissional

Art. 3U. São reservadas exclusivamente aos profissionais referidos nesta Lei as deno­minações de engenheiro, arquiteto ou engenheiro-agrônomo, acrescidas, obrigatoriamente, das características de sua formação básica.

Parágrafo único. As qualificações de que trata este artigo poderão ser acompanhadas de designações outras referentes a cursos de especialização, aperfeiçoamento e pós-graduação.

Art. 4U. As qualificações de engenheiro, arquiteto ou engenheiro-agrônomo só podem ser acrescidas à denominação de pessoa jurídica composta exclusivamente de profissionais que possuam tais títulos.

Art. 5". Só poderão ter em sua denominação as palavras engenharia, arquitetura ou agronomia a firma comercial ou industrial cuja diretoria for composta, em sua maioria, de profissionais registrados nos Conselhos Regionais.

Seção III - Do exercício ilegal da profissão

Art. 6“. Exerce ilegalmente a profissão de engenheiro, arquiteto ou engenheiro-agrâ-nomo:

a) a pessoa física ou jurídica que realizar atos ou prestar serviços públicos ou privados reservados aos profissionais de que irata esta lei e que não possua registro nos Conselhos Regionais;

b) o profissional que se incumbir de atividades estranhas às atribuições discriminadas em seu registro;

c) o profissional que emprestar seu nome a pessoas, firmas, organizações ou empresas executoras de obras e serviços sem sua real participação nos trabalhos delas;

d) o profissional que, suspenso de seu exercício, continue em atividade;e) a firma, organização ou sociedade que, na qualidade de pessoa jurídica, exercer atri­

buições reservadas aos profissionais da engenharia, da arquitetura e da agronomia, com in- fringência do disposto no parágrafo único do art. Su desta iei.

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 459

Seção IV - Atribuições profissionais e coordenação de suas atividades

Art. 7“ As atividades e atribuições profissionais do engenheiro, do arquiteto e do en- genheiro-agrônomo consistem em:

a) desempenho de cargos, funções e comissões em entidades estatais, paraestatais, au­tárquicas, de economia mista e privada;

b) planejamento ou projeto, em geral, de regiões, zonas, cidades, obras, estruturas, transportes, explorações de recursos naturais e desenvolvimento da produção industrial e agropecuária;

c) estudos, projetos, análises, avaliações, vistorias, perícias, pareceres e divulgação tcc-nica;

d) ensino, pesquisas, experimentação e ensaios;e) fiscalização de obras e serviços técnicos;f) direção de obras e serviços técnicos;g) execução de obras e serviços técnicos;h) produção técnica especializada, industrial ou agropecuária.Parágrafo único. Os engenheiros, arquitetos e engenheiros-agrônomos poderão exercer

qualquer outra atividade que, por sua natureza, se inclua no âmbito de suas profissões.

Art. 8U. As atividades c atribuições enunciadas nas alíneas “a”, "b”, "c”, “d”, “e” e " f’ do artigo anterior são da competência de pessoas físicas, para tanto legalmente habilitadas.

Parágrafo único. As pessoas jurídicas e organizações estatais só poderão exercer as atividades discriminadas no art. 7Ü, com exceção das contidas na alínea “a”, com a participa­ção efetiva e autoria declarada de profissional legalmente habilitado e registrado peio Conse­lho Regional, assegurados os direitos que esta lei lhe confere.

Art. 9a. As atividades enunciadas nas alíneas “g” e “h” do art. 7C, observados os pre­ceitos desta lei, poderão ser exercidas, indistintamente, por profissionais ou por pessoas jurí­dicas.

Art. tO. Cabe às congregações das escolas e faculdades de engenharia, arquitetura e agronomia indicar, ao Conselho Federal, em função dos títulos apreciados, através da fonna- ção profissional, em termos genéricos, as características dos profissionais por elas diplomados.

Art. II. O Conselho Federal organizará e manterá atualizada a relação dos títulos con­cedidos pelas escolas e faculdades, bem como seus cursos e currículos, com a indicação das suas características.

Art. 12. Na União, nos Estados e nos Municípios, nas entidades autárquicas, paraesta­tais e de economia mista, os cargos e funções que exijam conhecimentos de engenharia, ar­quitetura e agronomia, relacionados conforme o disposto na alínea “g” do art. 27, somente poderão ser exercidos por profissionais habilitados de acordo com esta lei.

Art. 13. Os estudos, piantas, projetos, laudos e qualquer outro trabalho de engenharia, de arquitetura e de agronomia, quer público, quer particular, somente poderão ser submeti­dos ao julgamento das autoridades competentes e só terão valor jurídico quando seus autores forem profissionais habilitados de acordo com esta lei.

Art. 14. Nos trabalhos gráficos, especificações, orçamentos, pareceres, laudos, e atos judiciais ou administrativos, é obrigatória, além da assinatura, precedida do nome da empre­sa, sociedade, instituição ou fuma a que interessarem, a menção explícita do título do profis­sional que os subscrever e do número da carteira referida no art. 56.

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460 DIREITO DE CONSTRUIR

Art. 15. São nulos de pleno direito os contratos referentes a qualquer ramo da enge­nharia, arquitetura ou da agronomia, inclusive a elaboração de projeto, direção ou execução de obras, quando firmados por entidade pública ou particular com pessoa física ou jurídica não legalmente habilitada a praticar a atividade nos termos desta lei.

Art. 16. Enquanto durar a execução de obras, instalações e serviços de qualquer natu­reza, é obrigatória a colocação e manutenção de placas visíveis e legíveis ao público, conten­do o nome do autor e co-autores do projeto, em todos os seus aspectos técnicos e artísticos, assim como os dos responsáveis pela execução dos trabalhos.

C a i t j i j lo II — Da responsabilidade e auloria

Art. 17. Os direitos de autoria de um plano ou projeto de engenharia, arquitetura ou agronomia, respeitadas as relações contratuais expressas entre o autor e outros interessados, São do profissional que os elaborar.

Parágrafo único. Cabem ao profissional que os tenha elaborado os prêmios ou distin­ções honoríficas concedidas a projetos, planos, obras ou serviços técnicos.

Art. 18. As alterações do projeto ou plano original só poderão ser feitas pelo profissio­nal que o tenha elaborado.

Parágrafo único. Estando impedido ou recusando-se o autor do projeto ou plano origi­nal a prestar sua colaboração profissional, comprovada a solicitação, as alterações ou modi­ficações deles poderão ser feitas por outro profissional habilitado, a quem caberá a responsa­bilidade pelo projeto ou plano modificado.

Art. 19. Quando a concepção geral que caracteriza um plano ou projeto foi elaborada em conjunto por profissionais legalmente habilitados, todos serão considerados co-autores do projeto, com seus direitos e deveres correspondentes.

Art. 20. Os profissionais ou organizações de técnicos especializados que colaborarem numa parte do projeto deverão ser mencionados explicitamente como autores da parte que lhes tiver sido confiada, tornando-se mister que todos os documentos, como piantas, dese­nhos, cálculos, pareceres, relatórios, análises, normas, especificações e outros documentos relativos ao projeto, sejam por eles assinados.

Parágrafo único. A responsabilidade técnica pela ampliação, prosseguimento ou con­clusão de qualquer empreendimento de engenharia, arquitetura ou agronomia caberá ao pro­fissional ou entidade registrada que aceitar esse encargo, sendo-lhe, também, atribuída a res­ponsabilidade das obras, devendo o Conselho Federal adotar resolução quanto às responsabi­lidades das partes já executadas ou concluídas por outros profissionais.

Art. 21. Sempre que o autor do projeto convocar, para o desempenho do seu encargo,o concurso de profissionais da organização de profissionais, especializados e legalmente ha­bilitados, serão estes havidos como responsáveis na parte que lhes diga respeito.

Art. 22. Ao autor do projeto ou a seus prepostos é assegurado o direito de acompanhar a execução da obra, de modo a garantir a sua realização de acordo com as condições, especi­ficações e demais pormenores técnicos nele estabelecidos.

Parágrafo único. Terão o direito assegurado neste artigo, ao autor do projeto, na parte que lhes diga respeito, os profissionais especializados que participarem como co-responsá­veis, na sua elaboração.

Art. 23. Os Conseihos Regionais criarão registros de autoria de planos e projetos, para salvaguarda dos direitos autorais dos profissionais que o desejarem.

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 461

T í tu lo II - DA FISCALIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS PROFISSÕES

C a p í tu lo I — Dos órgãos ftscalizadores

Art. 24. A aplicação do que dispõe esta lei e a fiscalização do exercício das profissões nela referidas serão, para a necessária harmonia e unidade de ação, reguladas peio Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA). (redação dada pelo Decreto- lei 620/7S)

Art. 25. Mantidos os já existentes, o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia promoverá a instalação, nos Estados, Distrito Federal e Territórios Federais, dos Conselhos Regionais necessários à execução desta lei, podendo, a ação de qualquer deles, estender-se a mais de um Estado.

§ l u. A proposta de criação de novos Conselhos Regionais será feita pela maioria das entidades de classe e escolas ou faculdades com sede na nova Região, cabendo aos Conselhos atingidos pela iniciativa opinar e encaminhar a proposta à aprovação do Conselho Federal.

§ 2a. Cada unidade da Federação só poderá ficar na jurisdição de um Conselho Regional.§ 3a. A sede dos Conselhos Regionais será no Distrito Federal, em capital de Estado ou

de Território Federal.

C a p í t u l o II — Do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia

Seção I — Da instituição do Conselho e suas atribuições

Art. 26. O Conselho Federa! de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA) é a instância superior da fiscalização do exercício profissional da engenharia, da arquitetura e da agronomia.

Art. 27. São atribuições do Conselho Federal:a) organizar o seu regimento interno e estabelecer normas gerais para os regimentos

dos Conselhos Regionais;b) homologar os regimentos internos organizados pelos Conselhos Regionais;c) examinar e decidir em última instância os assuntos relativos ao exercício das profis­

sões de engenharia, arquitetura e agronomia, podendo anular qualquer ato que não estiver de acordo com a presente lei;

d) tomar conhecimento e dirimir quaisquer dúvidas suscitadas nos Conselhos Regionais;e) julgar em última instância os recursos sobre registros, decisões e penalidades im­

postas pelos Conselhos Regionais;f) baixar e fazer publicar as resoluções previstas para regulamentação e execução da

presente lei, e, ouvidos os Conselhos Regionais, resolver os casos omissos;g) relacionar os cargos e funções dos serviços estatais, paraestatais, autárquicos e de

economia mista, para cujo exercício seja necessário o título de engenheiro, arquiteto ou en­genheiro-agrônomo;

h) incorporar ao seu balancete de receita e despesa os dos Conselhos Regionais;i) enviar aos Conselhos Regionais cópia do expediente encaminhado ao Tribunal de

Contas, até 30 (trinta) dias após a remessa;j) publicar anualmente a relação de títulos, cursos e escolas de ensino superior, assim

como, periodicamente, relação de profissionais habilitados;k) fixar, ouvido o respectivo Conselho Regional, as condições para que as entidades de

classe da região tenham nele direito a representação;1) promover, pelo menos uma vez por ano, as reuniões de representantes dos Conse­

lhos Federal e Regionais previstas no art. 53 desta lei;m) examinar e aprovar a proporção das representações dos grupos profissionais nos

Conselhos Regionais;

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462 DIREITO DE CONSTRUIR

n) julgar, em grau de recurso, as infrações do Código de Ética Profissional do enge­nheiro, arquiteto e engenheiro-agrônomo, elaborado pelas entidades de classe;

o) aprovar ou não as propostas de criação de novos Conselhos Regionais;p) fixar e alterar as anuidades, emolumentos e taxas a pagar pelos profissionais e pes­

soas jurídicas referidos no art. 63;q) autorizar o presidente a adquirir, onerar ou, mediante licitação, alienar bens imó­

veis. {redação dada pela Lei 6.619/78)Parágrafo único. Nas questões relativas às atribuições profissionais, a decisão do Con­

selho Federal só será tomada com o mínimo de 12 (doze) votos favoráveis.

Art. 28. Constituem renda do Conselho Federal; (redação dada pela Lei 6.619/78)I - 15% do produto da arrecadação prevista nos itens I a V do art. 35;II - doações, legados, juros e receitas patrimoniais;III - subvenções;IV - outros rendimentos eventuais.

Seção II - Da composição e organização

Art. 29. O Conselho Federal será constituído por 18 menibros, brasileiros, diplomados em Engenharia, Arquitetura ou Agronomia, habilitados de acordo com esta lei, obedecida a seguinte composição:

a) 15 representantes de grupos profissionais, sendo 9 engenheiros representantes de modalidades de engenharia estabelecidas em termos genéricos pelo Conselho Federal, no mí­nimo de 3 modalidades, de maneira a corresponderem às formações técnicas constantes dos registros nele existentes; 3 arquitetos e 3 engenheiros-agrônomos;

b) 1 representante das escolas de engenharia, 1 representante das escolas de arquitetu­ra e 1 representante das escolas de agronomia.

§ 1u. Cada membro do Conselho Federal terá 1 suplente.§ 2Ú. O presidente do Conselho Federal será eleito, por maioria absoluta, dentre os seus

membros.§ 3Ü. A vaga do representante nomeado presidente do Conselho será preenchida por

seu suplente.

Art. 30. Os representantes dos grupos profissionais referidos na alínea “a” do art. 29 e seus suplentes serão eleitos pelas respectivas entidades de classe registradas nas regiões, em assembléias especialmente convocadas para este fim pelos Conselhos Regionais, cabendo a cada região indicar, em forma de rodízio, um membro do Conselho Federal.

Parágrafo único. Os representantes das entidades de classe nas assembléias referidas neste artigo serão por elas eleitos, na forma dos respectivos estatutos.

Art. 31. Os representantes das escolas ou faculdades e seus suplentes serão eleitos por maioria absoluta de votos em assembléia dos delegados de cada grupo profissional, designa­dos pelas respectivas congregações.

Art. 32. Os mandatos dos membros do Conselho Federal e do presidente serão de 3 anos.Parágrafo único. O Conselho Federal renovará anualmente pelo terço de seus membros.

Capítulo III — Dos Conselhos Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia

Seção 1 - Da instituição dos Conselhos Regionais e suas atribuições

Art. 33. Os Conselhos Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CREA) são órgãos de fiscalização do exercício das profissões de engenharia, arquitetura e agrono­mia, em suas regiões.

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 463

Art. 34. São atribuições dos Conselhos Regionais:a) elaborar e alterar seu regimento intemo, submetendo-o à homologação do Conselho

Federal;b) criar as Câmaras Especializadas atendendo às condições de maior eficiência da fis­

calização estabelecida na presente lei;c) examinar reclamações e representações acerca de registros;d) julgar e decidir, em grau de recurso, os processos de infração da presente lei e do

Código de Ética, enviados pelas Câmaras Especializadas;e) julgar, em grau de recurso, os processos de imposição de penalidades e multas;f) organizar o sistema de fiscalização do exercício das profissões reguladas pela pre­

sente lei;g) publicar relatórios de seus trabalhos e relações dos profissionais e firmas registrados;h) examinar os requerimentos e processos de registro em geral, expedindo as carteiras

profissionais ou documentos de registro;i) sugerir ao Conselho Federa! medidas necessárias à regularidade dos serviços e à fis­

calização do exercício das profissões reguladas nesta lei;j) agir, com a colaboração das sociedades de classe e das escolas ou faculdades de

engenharia, arquitetura e agronomia, nos assuntos relacionados com a presente lei;k) cumprir e fazer cumprir a presente lei, as resoluções baixadas pelo Conselho Fede­

ral, bem como expedir atos que para isso julguem necessários;1) criar inspetores e nomear inspetores especiais para maior eficiência da fiscalização;m) deliberar sobre assuntos de interesse geral e administrativos e sobre os casos co­

muns a duas ou mais especializações profissionais;n) julgar, decidir ou dirimir as questões da atribuição ou competência das Câmaras

Especializadas referidas no art. 45, quando não possuir o Conselho Regional número sufi­ciente de profissionais do mesmo grupo para constituir a respectiva Câmara, como estabe­lece o art. 48;

o) organizar, disciplinar e manter atualizado o registro dos profissionais e pessoas jurí­dicas que, nos termos desta lei, se inscrevam para exercer atividades de engenharia, arquite­tura ou agronomia, na Região;

p) organizar e manter atualizado o registro das entidades de classe referidas no art. 62 e das escolas e faculdades que, de acordo com esta lei, devam participar da eleição de repre­sentantes destinada a compor o Conselho Regional e o Conselho Federal;

q) organizar, regulamentar, e manter o registro de projetos e planos a que se refere o art. 23;

r) registrar as tabelas básicas de honorários profissionais elaboradas pelos órgãos de classe;

s) autorizar o Presidente a adquirir, onerar ou, mediante licitação, alienai bens imó­veis. (redação dada pela Lei 6.619/78)

Art. 35. Constituem renda dos Conselhos Regionais (redação dada pela Lei 6.619/78)I - anuidades cobradas de profissionais e pessoas jurídicas;II - taxas de expedição de carteiras profissionais e documentos diversos;III - emolumentos sobre registros, vistos, e outros procedimentos;IV - 4/5 (quatro quintos) da arrecadação da taxa instituída pela Lei n. 6.496, de 7 de

dezembro de 1977;V - multas aplicadas de conformidade com esta Lei e com a Lei n. 6.496, de 7 de

dezembro de 1977;VI - doações, legados, juros e receitas patrimoniais;VII-subvenções;VIU - outros rendimentos eventuais.

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464 Dl RE [TO DE CONSTRUIR

Art. 36. Os Conselhos Regionais recolherão ao Conselho Federal, até o dia 30 (trinta) do mês subseqüente ao da arrecadação, a cota de participação estabelecida no item I do art. 28.

Parágrafo único. Os Conselhos Regionais poderão destinar parte de sua renda líquida, pro­veniente da arrecadação das multas, a medidas que objetivem o aperfeiçoamento técnico e cultu­ral do engenheiro, do arquiteto e do engenheiro-agrônomo. {redação dada pela Lei 6.619/78)

Seção 11 - Da composição e organização

Art. 37. Os Conselhos Regionais serão constituídos de brasileiros diplomados em cur­so superior, legalmente habilitados de acordo com a presente lei, obedecida a seguinte com­posição:

a) um presidente, eleito por maioria absoluta pelos membros do Conselho, com man­dato de 3 anos;

b) um representante de cada escola ou faculdade de engenharia, arquitetura e agrono­mia com sede na Região;

c) representantes diretos das entidades de classe de engenheiro-arquiteto e engenheiro- agrônomo, registradas na Região de conformidade com o art. 62.

Parágrafo único. Cada membro do Conselho terá um suplente.

Art. 38. Os representantes das escolas e faculdades e seus respectivos suplentes serão indicados por suas congregações.

Art. 39. Os representantes das entidades de classe e respectivos suplentes serão eleitos por aquelas entidades na forma de seus Estatutos.

Art. 40. O número de conselheiros representativos das entidades de classe será fixado nos respectivos Conselhos Regionais, assegurados o mínimo de um representante por entidade de classe e a proporcionalidade entre os representantes das diferentes categorias profissionais.

Art. 41. A proporcionalidade dos representantes de cada categoria profissionai será estabelecida em face dos números totais dos registros, no Conselho Regional, de engenheiros das modalidades genéricas previstas na alínea “a” do art. 29, de arquitetos e de engenheiros- agrônomos, que houver em cada região, cabendo a cada entidade de classe registrada no Conselho Regional um número de representantes proporcional à quantidade de seus associa­dos, assegurado o mínimo de um representante por entidade.

Parágrafo único. A proporcionalidade de que trata este artigo será submetida à prévia aprovação do Conselho Federal.

Art. 42. Os Conselhos Regionais funcionarão em Pleno e, para os assuntos específi­cos, organizados em Câmaras Especializadas correspondentes às seguintes categorias profis­sionais: engenharia nas modalidades correspondentes às formações técnicas referidas na alí­nea “a” do art. 29, arquitetura e agronomia.

Art. 43. O mandato dos conselheiros regionais será de 3 anos e se renovará anualmen­te pelo terço de seus membros.

Art. 44. Cada Conselho Regional terá inspetorias, para fins de fiscalização, nas cida­des ou zonas onde se fizerem necessárias.

C a p í tu lo IV - Das Câmaras Especializadas

Seção I - Da instituição das Câmaras e suas atribuições

Art. 45. As Câmaras Especializadas são os órgãos dos Conselhos Regionais encarre­gados de julgar e decidir sobre os assuntos de fiscalização pertinentes às respectivas especia­lizações profissionais e infrações do Código de Ética.

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 465

Art. 46. São atribuições das Câmaras Especializadas:a) julgar os casos de infração da presente lei, no âmbito de sua competência profissio­

nal específica;b) julgar as infrações do Código de Ética;c) aplicar as penalidades e multas previstas;d) apreciar e julgar os pedidos de registro de profissionais, das fumas, das entidades

de direito público, das entidades de classe e das escolas ou faculdades na Região;e) elaborar as normas para a fiscalização das respectivas especializações profissionais;f) opinar sobre os assuntos de interesse comum de duas ou mais especializações pro­

fissionais, encaminhando-os ao Conselho Regional.

Seção II - Da composição e organização

Art. 47. As Câmaras Especializadas serão constituídas pelos conselheiros regionais.Parágrafo único. Em cada Câmara Especializada haverá um membro, eleito pelo Con­

selho Regional, representando as demais categorias profissionais.

Art. 48. Será constituída Câmara Especializada desde que entre os conselheiros regio­nais haja um mínimo de 3 do mesmo grupo profissional.

C a p í tu lo V - Generalidades

Art. 49. Aos presidentes dos Conselhos Federal e Regionais compete, afém da direção do respectivo Conselho, sua representação em juízo.

Art. 50. O conselheiro federal ou regional que durante l ano faltar, sem licença prévia, a 6 sessões consecutivas ou não, perderá automaticamente o mandato, passando este a ser exercido, em caráter efetivo, pelo respectivo suplente.

Art. 51. O mandato dos presidentes e dos conselheiros será honorífico.

Art. 52. O exercício da função de ntembro dos Conselhos por espaço de tempo não infe­rior a dois terços do respectivo mandato será considerado serviço relevante prestado à Nação.

§ Io. O Conselho Federai concederá aos que se acharem nas condições deste artigo o certificado de serviço relevante, independentemente de requerimento do interessado; dentro de 12 meses contados a partir da comunicação dos Conselhos.

§ 2a. Será considerado como serviço público efetivo, para efeito de aposentadoria e disponibilidade, o tempo de serviço como Presidente ou Conselheiro, vedada, porém, a con­tagem comutativa com tempo exercido em cargo público. (§ 2“ mantido pelo Congresso, rejeitando o veto presidencial)

Art. 53. Os representantes dos Conselhos Federal e Regionais reunir-se-ão pelo menos uma vez por ano para, conjuntamente, estudar e estabelecer providências que assegurem ou aperfeiçoem a aplicação da presente lei, devendo o Conselho Federal remeter aos Conselhos Regionais, com a devida antecedência, o temário respectivo.

Art. 54. Revogado pelo Decreto-lei 620, de 10.6.1969

T í tu lo 111 - DO REGISTRO E FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL

C a p í tu lo I — Do registro dos profissionais

Art. 55. Os profissionais habilitados na forma estabelecida nesta lei só poderão exer­cer a profissão após o registro no Conselho Regional, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade.

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466 DIREITO DE CONSTRUIR

Art. 56. Aos profissionais registrados de acordo com esta lei será fornecida a carteira profissional, conforme modelo adotado peio Conselho Federal, contendo o número do registro, a natureza do título, especializações e todos os elementos necessários à sua identificação.

§ l u, A expedição da carteira a que se refere o presente artigo fica sujeita à taxa que for arbitrada pelo Conselho Federal.

§ 2a. A carteira profissional, para os efeitos desta lei, substituirá o diploma, valerá como documento de identidade e terá fé pública.

§ 3“. Para emissão da carteira profíssionai os Conselhos Regionais deverão exigir do interessado a prova de habilitação profissional e de identidade, bem como outros elementos julgados convenientes, de acordo com instruções baixadas pelo Conselho Federal.

Art. 57. Os diplomados por escolas ou faculdades de engenharia, arquitetura ou agro­nomia, oficiais ou reconhecidas, cujos diplomas não tenham sido registrados, mas estejam em processamento na repartição federal competente, poderão exercer as respectivas profis­sões mediante registro provisório no Conselho Regional.

Art. 58. Se o profissional, firma ou organização, registrado em qualquer Conselho Re­gional, exercer atividade em outra Região, ficará obrigado a visar, nela, o seu registro.

Capítulo II - Do registro de firmas e entidades

Art. 59. As firmas, sociedades, associações, companhias, cooperativas e empresas em geral, que se organizem para executar obras ou serviços relacionados na forma estabelecida nesta lei, só poderão iniciar suas atividades depois de promoverem o competente registro nos Conselhos Regionais, bem como o dos profissionais do seu quadro técnico.

§ 1°. O registro de firmas, sociedades, associações, companhias, cooperativas e empre­sas em geral só será concedido se sua denominação for realmente condizente com sua finali­dade e qualificação de seus componentes.

§ 2a. As entidades estatais, paraestatais, autárquicas e de economia mista que tenham atividade na engenharia, na arquitetura ou na agronomia, ou se utilizem dos trabalhos de profissionais dessas categorias, são obrigadas, sem quaisquer ônus, a fornecer aos Conselhos Regionais todos os elementos necessários à verificação e fiscalização da presente lei.

§ 3Ü. O Conselho Federal estabelecerá, em resoluções, os requisitos que as firmas ou demais organizações previstas neste artigo deverão preencher para o seu registro.

Art. 60. Toda e qualquer firma ou organização que, embora não enquadrada no artigo anterior, tenha alguma seção ligada ao exercício profissional da engenharia, arquitetura e agronomia, na forma estabelecida nesta lei, é obrigada a requerer o seu registro e a anotação dos profissionais legalmente habilitados delas encarregados.

Art. 61. Quando os serviços forem executados em lugares distantes da sede da entida­de, deverá esta manter, junto a cada um dos serviços, um profissional devidamente habilita­do naquela jurisdição.

Art. 62. Os membros dos Conselhos Regionais só poderão ser eleitos pelas entidades de classe que estiverem previamente registradas no Conselho em cuja jurisdição tenha sede.

§ 1°. Para obterem registro, as entidades referidas neste artigo deverão estar legaliza­das, ter objetivo definido permanente, contar no mínimo trinta associados engenheiros, ar­quitetos ou engenheiros-agrônomos e satisfazer as exigências que forem estabelecidas pelo Conselho Regional.

§ 2“ Quando a entidade reunir associados engenheiros, arquitetos e engenheiros-agrô- nomos, em conjunto, o limite mínimo referido no parágrafo anterior deverá ser de sessenta.

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 467

C a p í tu lo III — Das anuidades, emolumentos e taxas

Art. 63. Os profissionais e pessoas jurídicas registrados de conformidade com o que preceitua a presente lei são obrigados ao pagamento de uma anuidade ao Conselho Regional, a cuja jurisdição pertencerem.

§ l u. A anuidade a que se refere este artigo será devida a partir de l u de janeiro de cadaano.

§ 2Ü. O pagamento da anuidade após 31 de março terá o acréscimo de 20% (vinte por cento), a título de mora, quando efetuado no mesmo exercício.

§ 3Ü. A anuidade paga após o exercício respectivo terá o seu valor atualizado para o vigente à época do pagamento, acrescido de 20% (vinte por cento), a título de mora. (reda­ção dada pela Lei 6.619/78)

Art. 64. Será automaticamente cancelado o registro do profissional ou da pessoa jurí­dica que deixar de efetuar o pagamento da anuidade a que estiver sujeito, durante 2 (dois) anos consecutivos, sem prejuízo da obrigatoriedade do pagamento da dívida.

Parágrafo único. O profissional ou pessoa jurídica que tiver seu registro cancelado nos termos deste artigo, se desenvolver qualquer atividade regulada nesta lei, estará exercendo ilegalmente a profissão, podendo reabilitar-se mediante novo registro, satisfeitas, além das anuidades em débito, as multas que lhe tenham sido impostas e os demais emolumentos e taxas regulamentar es.

Art. 65. Toda vez que o profissional diplomado apresentar a um Conselho Regional sua carteira para o competente “visto” e registro, deverá fazer prova de ter pago a sua anui­dade na Região de origem ou naquela onde passar a residir.

Art. 66. O pagamento da anuidade devida por profissional ou pessoa jurídica somente será aceito após verificada a ausência de quaisquer débitos concernentes a multas, emolu­mentos, taxas ou anuidades de exercícios anteriores.

Art. 67- Embora legalmente registrado, só será considerado no legítimo exercício da profissão e atividades de que trata a presente lei o profissional ou pessoa jurídica que esteja em dia com o pagamento da respectiva anuidade.

Art. 68. As autoridades administrativas e judiciárias, as repartições estatais, paraesta- tais, autárquicas ou de economia mista não receberão estudos, projetos, laudos, perícias, ar­bitramentos e quaisquer outros trabalhos, sem que os autores, profissionais ou pessoas jurí­dicas façam prova de estar em dia com o pagamento da respectiva anuidade.

Art. 69. Só poderão ser admitidos nas concorrências públicas para obras ou serviços técnicos, e para concursos de projetos, profissionais e pessoas jurídicas que apresentarem prova de quitação de débito ou visto do Conselho Regiona! da jurisdição onde a obra, o serviço técnico ou projeto deva ser executado.

Art. 70. O Conselho Federal baixará resoluções estabelecendo o Regimento de Custas e, periodicamente, quando julgar oportuno, promoverá sua revisão.

T í tu lo IV - DAS PENALIDADES

Art. 71. As penalidades aplicáveis por infração da presente lei são as seguintes, de acordo com a gravidade da falta:

a) advertência reservada;b) censura pública;

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468 DIREITO DE CONSTRUIR

c) multa;d) suspensão temporária do exercício profissional;e) cancelamento definitivo do registro.Parágrafo único. As penalidades para cada grupo profissional serão impostas pelas res­

pectivas Câmaras Especializadas ou, na falta destas, pelos Conselhos Regionais.

Art. 72. As penas de advertência reservada e de censura púbiica são aplicáveis aos profissionais que deixarem de cumprir disposições do Código de Ética, tendo em vista a gravi­dade da falta e os casos de reincidência, a critério das respectivas Câmaras Especializadas.

Art. 73. As multas são estipuladas em função do Maior Valor de Referência fixado pelo Poder Executivo e terão os seguintes valores, desprezadas as frações de um cruzeiro: {redação dada pela Lei 6.619/78)

a) de um a três décimos do valor de referência, aos infratores dos artigos 17 e 53 e das disposições para as quais não haja indicação expressa de penalidade;

b) de três a seis décimos do vaíor de referência, às pessoas físicas, por infração da alínea “b” do artigo 6“, dos artigos 13, 14 e 55 ou do parágrafo único do artigo 64;

c) de meio a um valor de referência, às pessoas jurídicas, por infração dos artigos 13, 14, 59 e 60, e parágrafo único do artigo 64;

d) de meio a um valor de referencia, às pessoas físicas, por infração das alíneas “a", “c” e “d” do artigo 6°;

e) de meio a três valores de referência, às pessoas jurídicas, por infração do artigo 6“Parágrafo único. As multas referidas neste artigo serão aplicadas em dobro nos casos

de reincidência.

Art. 74. Nos casos de nova reincidência das infrações previstas no artigo anterior, alí­neas “c”, “d” e “e”, será imposta, a critério das Câmaras Especializadas, suspensão temporá­ria do exercício profissional, por prazos variáveis de 6 (seis) meses a 2 anos e, pelos Conse­lhos Regionais em Pleno, de 2 a 5 anos.

Art. 75. O cancelamento do registro será efetuado por má conduta pública e escânda­los praticados pelo profissional ou sua condenação definitiva por crime considerado infa- mante.

Art. 76. As pessoas não habilitadas que exercerem as profissões reguladas nesta lei, independentemente da multa estabelecida, estão sujeitas às penalidades previstas na Lei de Contravenções Penais.

Art. 77, São competentes para lavrar autos de infração das disposições a que se refere a presente lei os funcionários designados para esse fim pelos Conselhos Regionais de Enge­nharia, Arquitetura e Agronomia nas respectivas Regiões.

Art. 78. Das penalidades impostas pelas Câmaras especializadas poderá o interessado, dentro do prazo de 60 dias, contados da data da notificação, interpor recurso que terá efeito suspensivo para o Conselho Regional e no mesmo prazo, deste para o Conselho Federal.

§ l u. Não se efetuando o pagamento das multas, amigavelmente, estas serão cobradas por via executiva.

§ 2U. Os autos de infração, depois de julgados definitivamente contra o infrator, consti­tuem títulos de dívida líquida e certa.

Art. 79. O profissional punido por falta de registro não poderá obter a carteira profis­sional, sem antes efetuar o pagamento de multas em que houver incorrido.

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APÊNDICE DE LEGISLAÇÃO 469

T í tu lo V ~ DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 80. O Conselho Federai de Engenharia, Arquitetura e Agronomia constitui servi­ço público federal descentralizado sob forma autárquica, gozando os seus bens, rendas e ser­viços, bem como os dos CREAs, que lhe são subordinados, de imunidade tributária (artigo 20, inciso III, alínea “a” e seu § lü, da Constituição do Brasil).1

Art. 81. Nenhum profissional poderá exercer funções eletivas em Conseihos por mais de 2 períodos sucessivos.

Art. 82. As remunerações iniciais dos engenheiros, arquitetos e engenheiros-agrôno- mos, qualquer que seja a fonte pagadora, não poderão ser inferiores a 6 (seis) vezes o maior saíãrio mínimo da respectiva região, (artigo mantido pelo Congresso, rejeitando o veto pre­sidencial)

Art. 83. Os trabalhos profissionais relativos a projetos não poderão ser sujeitos a con­corrência de preço, devendo, quando for o caso, ser objeto de concurso.

Art. 84. O graduado por estabelecimento de ensino agrícola ou industrial de grau médio, oficial ou reconhecido, cujo diploma ou certificado esteja registrado nas repartições competen­tes, só poderá exercer suas funções, ou atividades após registro nos Conselhos Regionais.

Parágrafo único. As atribuições do graduado referido neste artigo serão regulamenta­das pelo Conselho Federal, tendo em vista seus curriculos e graus de escolaridade.

Art. 85. As entidades que contratarem profissionais nos termos da alínea “c” do art. 2a são obrigadas a manter, junto a eles, um assistente brasileiro do ramo profissional respectivo.

T í tu lo VI - DAS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS

Art. 86. São assegurados aos atuais profissionais de engenharia, arquitetura e agrono­mia e aos que se encontrem matriculados nas escolas respectivas, na data da publicação des­ta lei, os direitos até então usufruídos e que venham de qualquer forma a ser atingidos por suas disposições.

Parágrafo único. Fica estabelecido o prazo de 12 meses, a contar da publicação desta lei, para os interessados promoverem a devida anotação nos registros dos Conselhos Regionais.

Art. 87. Os membros atuais dos Conselhos Federal e Regionais completarão os man­datos para os quais foram eleitos.

Parágrafo único. Os atuais presidentes dos Conselhos Federal e Regionais completarão seus mandatos, ficando o presidente do primeiro desses Conselhos com o caráter de membro do mesmo.

Art. 88. O Conselho Federal baixará resoluções, dentro de 60 (sessenta) dias a partir da data da presente lei, destinadas a completar a composição dos Conseihos Federal e Regionais.

Art. 89. Na constituição do primeiro Conselho Federal após a publicação desta lei serão escolhidos por meio de sorteio as Regiões e os grupos profissionais que as representarão.

Art. 90. Os Conselhos Federai e Regionais, completados na forma desta lei, terão o prazo de 180 dias, após a posse, para elaborar seus regimentos internos, vigorando, até a expiração desse prazo, os regulamentos e resoluções vigentes no que não colidam com os dispositivos da presente lei.

Art. 91. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 92. Revogam-se as disposições em contrário.

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470 DIREITO DE CONSTRUIR

LEI 6.496, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1977

Institui a ''Anotação de Responsabilidade Técnica ” na prestação de serviços de engenharia, de arquitetura e agronomia; autoriza a criação pelo Conselho

Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CONFEA de uma Mútua de Assistência Profissional, e dá outras providências

Art. P . Todo contrato, escrito ou verbal, para a execução de obras ou prestação de quaisquer serviços profissionais referentes à Engenharia, à Arquitetura e à Agronomia fica sujeito à “Anotação de Responsabilidade Técnica” (ART).

Art. Ia. A ART define para os efeitos legais os responsáveis técnicos pelo empreendi­mento de Engenharia, Arquitetura e Agronomia.

§ Ia. A ART será efetuada pelo profissional ou pela empresa no Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CREA, de acordo com Resolução própria do Conse­lho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CONFEA.

§ 2a. O CONFEA fixará os critérios e os valores das taxas da ART “ad referendum” do Ministro do Trabalho.

Art. 3D. A falta da ART sujeitará o profissional ou a empresa à multa prevista na aiínea “a” do art. 73 da Lei 5.194, de 24 de dezembro de 1966, e demais cominações legais.

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ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO

ABNT- normas técnicas da construção, 353 AÇÃO- civil pública, 156- popular, 156AÇOES DE VIZINHANÇA- condomínio, 369-371- construção e conservação de tapu­

mes divisórios, 357- dano iminente, 356- demarcação e divisão, 366- demolição, 354- divisão, 367- e perícias judiciais, 346- indenização de dano, 347- loteamento, 371- nunciação de obra nova, 86, 351- parede divisória, 358- passagem forçada, 359- pedido cominatório, 375- possessória, 363- servidão de água, 361- tapumes divisórios, 357- travejamento em paredes divisórias,

358ADMINISTRAÇÃO- contratada, 255- de condomínio, 23 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA- responsabilidades na construção, 321 AERONÁUTICA- espaço aéreo, 27 AEROPORTO- construção nas vizinhanças, 146- vizinhança, 146 AGRÔNOMO- atribuições profissionais, 382 ÁGUA- ação de servidão, 361

- correntes e subterrâneas, 68- pluviais, 68, 73- poluição, 73- servidão, 361- utilização, 68-69 ALINHAMENTO- conceito, 121 ALVARÁ- conceito, 100- de autorização, 214- de licença, 214- espécies, 213-214 AMBIENTE- proteção ambiental, 222 ANÚNCIOS- regulamentação, 140 APARELHOS- térmicos e higiênicos, 65 APARTAMENTO- condomínio, 79 APROVAÇÃO- de projeto, 210 ÁREA URBANA- delimitação, 119 ARMÁRIOS EMBUTIDOS- construção, 65 ARQUITETOS- atribuições profissionais, 380 ARRUAMENTO- conceito, 120 ÁRVORES- limítrofes, 67 AUTO-EXECUTORIEDADE- do ato de polícia, 104-105 AUTOR- de projeto, 324 AUTORIZAÇÃO- alvará, 100

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472 DIREITO DE CONSTRUIR

AVALIAÇÃO- dc imóveis, 398

- urbanos, 400- judicial, 388- métodos, 394- para desapropriação, 197 AVALIAÇÃO JUDICIAL- conceito, 388- imóveis rurais, 402- imóveis urbanos, 400- métodos, 394- valor e preço, 390-391, 393

BEM-ESTAR SOCIAL- proteção, 42 BNH- construções, 45

CABOS CONDUTORES- servidão para passagem de, 175,361 CASO FORTUITO- conceito, 282 CAUÇÃO- de dano iminente, 356 CERCA- construção, 55 CERCA DIVISÓRIA- construção, 58 CIDADE- Veja-se: Urbanismo CIRCULAÇÃO- limitação urbanística, 123- na cidade, 123 CLÁUSULA PENAL- muita contratual, 287 CÓDIGO- Brasileiro de Aeronáutica, 27- de Águas, 68, 73- de Ética Profissional, 325, 376- de mineração, 26- de obras, 209- Nacional da Saúde, 145- sanitário, 147-148 CÓDIGO CIVIL- e responsabilidade civil, 288- e responsabilidade pela solidez e

segurança da obra, 300

CÓDIGO DE DEFESA DO CON­SUMIDOR

- e responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros, 279,288

- e responsabilidade pela perfeição da obra, 298

- e responsabilidade pela solidez e segurança da obra, 310

COMÉRCIO- zonas comerciais, 131 COMINAÇÃO- nas ações de vizinhança, 263 COMINATÓRIA- ação, 375 CONDOMÍNIO- ações, 369- administração, 23- conceito, 21-22- contrato de incorporação, 22, 272- edilício, 79- incorporação, 22, 272- restrições especiais, 79- venda de quinhão, 370 CONFEA- organização e atribuições, 370 CONSÓRCIO IMOBILIÁRIO- e Estatuto da Cidade, 172 CONSTRUÇÃO- abertura para luz, 64- ações de vizinhança, 347- administração contratada, 255- alvará, 100,213- alvará de licença, 100,213- aparelhos térmicos, 65- aprovação de projetos, 210- armários embutidos, 65- árvores limítrofes, 67- atividade técnica-econômica, 358- caso fortuito, 282- cercas, 55, 58- civil, 351- clandestina, 220, 342- Código de Obras, 209- condomínio edilício, 79,369- contratos, 228, 285, 293- contratos conexos, 266- controle, 205, 207- dano a vizinho, 375

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ÍNDICE ALFAB ÉTICO-REMISSIV0 473

de obra particular, 230 de obra pública, 258 demolição, 88,219 desabamento, 337 direito de construir, 30 distância, 53distância entre prédios, 53 e Estatuto da Cidade, 212 e Estudo Prévio de Impacto Ambien­tal, 212e Estudo Prévio de Impacto de Vizi­nhança, 212 edificação, 352embargo da obra clandestina, 343 embargo de obra, 217 empreitada, 235, 260 encarregados e mestres-de-obras, 384 entrada em prédio vizinho, 76 força maior, 282 fornecedores, 329 habitações populares, 44 “habite-se”, 357incorporação de condomínio, 22,272 indenização de dano, 84,347 invasão de área, 62 janela, 63liberdade de construir, 31 limitações administrativas, 87, 107 limitações urbanísticas, 107 mestres-de-obras, 384 muros, 55, 57nas margens de rodovias, 146 normalidade, 32normas técnicas e legais, 354-358 obra em ruína, 221 obra licenciada, 219 obra particular, 230 obra pública, 258 origem e evolução, 350 paredes, 61 passagem forçada, 77 planos urbanísticos, 208 policiamento administrativo, 99 prejudicial ao vizinho, 74 profissionais da construção, 377 projeto, 210proteção ambiental, 205,222 recebimento da obra, 243 regime de tarefa, 265

- regulamentação edilicia, 116- regulamentação profissional, 365- responsabilidade da Administração,

321- responsabilidade pela perfeição, 292,

298- responsabilidade pela solidez e segu­

rança da obra, 300, 310- responsabilidade por insegurança da

obra, 285- responsabilidade trabalhista e previ-

denciária, 328- responsabilidades, 277, 291, 348- restrições de vizinhança, 47,48, 51,

80, 83- substâncias corrosivas, 65- suspensão da construção pelo em-

preitador, 252- suspensão da construção pelo em­

preiteiro, 253- tapumes, 55, 56, 357- técnicos de 2fl grau, 383- telhado, 63- terraço e varanda, 63- ventilação, 64CONSTRUÇÃO CLANDESTINA- responsabilidades, 342CONSTRUTOR- e responsabilidade pelo fato do pro­

duto e do serviço, 318- informações do, 3 1 1- responsabilidades, 277, 286CONSUMIDOR- obrigações do, 3 11CONTRATO DE CONSTRUÇÃO- administração contratada, 255- de obra particular, 228- de obra pública, 258- empreitada, 235- execução e inexecução, 233- extinção do contrato de empreitada,

252- modificações no projeto original, 251- por administração, 255- regime de tarefa, 265- suspensão da construção pelo em-

preitador, 252- suspensão da construção pelo em­

preiteiro, 253

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474 DIREITO DE CONSTRUIR

CONTRATOS CONEXOS À CONSTRUÇÃO

- de financiamento, 270- de gerenciamento, 275- de incorporação de condomínio, 272- de projeto e fiscalização, 266, 269- de trabalho para obra certa, 270 CONTROLE- da construção, 146, 205, 207- do solo urbano, 125 CORROSIVOS- substâncias corrosivas, 65 CREA- organização e atribuições, 374-376 CRIMES AMBIENTAIS, 141 CULPA- conceito, 278 CUSTO- conceito, 393

DANO- a vizinhos e terceiros, 314, 317- caução, 356- de vizinhança, 347- estético, 349- perícias judiciais, 379 DEMARCAÇÃO- ação demarcatória, 51,365 DEMOLIÇÃO- ação demolitória, 354- de obra, 219- de obra clandestina, 220- de obra em ruína, 221- de obra ilegal, 83- de obra licenciada, 219 DESABAMENTO- contravenção, 336,340- responsabilidade penal, 336 DESAPROPRIAÇÃO, 177-204- características, 179- conceito, 178- e Estatuto da Cidade, 161- indenização, 194- pagamento, 199- para urbanização, 182- por zona, 181- processo, 191- retrocessão, 201- sancionatória, 203

DIREITO- de preempção e Estatuto da Cidade,

167- de propriedade, 19, 27- de retenção, 248- de superfície e Estatuto da Cidade,

167- posse, 24 DIREITO AUTORAL- do projetista, 327 DIREITO DE CONSTRUIR- alteração do uso do solo e Estatuto

da Cidade, 168- conceito, 30- conceito de normalidade, 32- e seus limites, 31- licença, 100- limitações administrativas, 87, 107- limitações urbanísticas, 107- outorga onerosa e Estatuto da Cida­

de, 168- paredes, 58- Plano Diretor, 114- planos urbanísticos, 208- proteção à segurança, 36- proteção ao sossego, 36, 39- regulamentação edilícia, 116- responsabilidades do construtor,

277, 286- restrições de loteamento, 137- restrições de vizinhança, 47- tapumes, 55- transferência do direito e Estatuto da

Cidade, 169DIREITO DE PROPRIEDADE- conceito, 19,27- desapropriação, 177 DISTRITO- industrial, 131, 183-183 DIVISÃO- ação divisória, 367 DOLO- conceito, 279 DOMÍNIO- conceito, 20- propriedade, 19, 27 DUVIDA- em registro imobiliário, 372

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ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 475

DÚVIDA DE REGISTRO- processo, 372

ECOLOGIA- proteção ambiental, 222 EDIFICAÇÃO- construção, 352- e Estatuto da Cidade, 165 EIRADO- conceito, 64- construção, 63 EMBARGO- de obra, 217,333, 343 EMPREITADA- de obra particular, 235- de obra pública, 260 ENCARREGADOS- de obras, 384 ENCRAVAMENTO- passagem forçada, 77, 79,359 ENGENHEIRO- atribuições profissionais, 378 ERRO DE CALCULO- no projeto, 308, 316 ESPAÇO AÉREO- conceito, 26 ESTATUTO DA CIDADE- diretrizes, 173- e Administração pública, 68- e direito de propriedade, 44- e Estudo Prévio de Impacto Ambien­

tal, 212- e Estudo Prévio de Impacto de Vizi­

nhança, 51,212- e loteamento, 135- e loteamentos clandestinos, 139- e Plano Diretor, 115- e proteção ambiental, 212- instrumentos ambientais, 172- instrumentos de planejamento, 158- instrumentos jurídicos, 160

- assistência técnica e jurídica para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos, i 71

- concessão de direito real de uso, 163

- concessão de uso especial para fins de moradia, 164

- consórcio imobiliário, 165, 172

- desapropriação, 161- direito de preempção, 167- direito de superfície, 167- instituição de unidades de conser­

vação, 162- instituição de zonas especiais de

interesse social, 162- limitações administrativas, 162- operações urbanas consorciadas,

169- outorga onerosa do direito de

construir e a alteração de uso, 168- parcelamento, edificação ou utili­

zação compulsórios, 165- referendo popular e plebiscito, 171- regularização fundiária, 170- servidão administrativa, 161- tombamento de imóveis ou de

mobiliário urbano, 162- transferência do direito de cons­

truir, 169- usucapião especial de imóvel

urbano, 166- instrumentos tributários, 159- solo criado, 127 ESTÉTICA URBANA- proteção da cidade, 139 ESTUDO PRÉVIO DE IMPACTO

AMR 5 FATAL, 36- e controle da construção, 2 12- e Estatuto da Cidade, 212 ESTUDO PRÉVIO DE IMPACTO

DE VIZINHANÇA, 36- e controle da construção, 212- e Estatuto da Cidade, 51,212 ÉTICA PROFISSIONAL- Código, 377- responsabilidade, 324 EXAME- perícia judiciai, 386

FATO ADMINISTRATIVO- obra pública, 321 FISCALIZAÇÃO- de obra, 268 FORÇA MAIOR- conceito, 282FORNECIMENTO DE MATERIAL- responsabilidade, 329

Page 472: Direito de Construir - Helly Lopes Meirelles - 2005

476 DIREITO DE CONSTRUIR

FRONTEIRA- construções, 149 FUNCIONALIDADE- urbana, 124

GASODUTOS- servidão para passagem de, 175 GERENCIAMENTO- contrato, 275

HABITAÇÕES- populares, 44, 136 “HABITE-SE”- alvará de ocupação, 357 HIGIENE- da cidade, 141 HISTÓRIA- proteção, 141HONORÁRIOS PROFISSIONAIS- distinção do preço da construção, 360

ILÍCITO- administrativo, 333 IMÓVEIS- rurais, 402 INCORPORAÇÃO- contrato, 272- de condomínio, 22,272 INDENIZAÇÃO- de dano de construção, 84, 347- de desapropriação, 194- de servidão, 176- no tombamento, 155- por danos de vizinhança, 347- por obra ilegal, 84

JANELA- conceito, 64- construção, 63

LAUDO- pericial, 383LICENÇA PARA CONSTRUIR- alvará, 100,213LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS- ao direito de construir, 87- conceito, 89- de higiene e segurança, 141,146- direito subjetivo, 93

- e Estatuto da Cidade, 162- espécies, 107- fonte de direito, 93- militares, 149- natureza jurídica, 91- poder de policia, 98- servidão pública, 175- tombamento, 151- urbanísticas, 98, 107 LIMITES- entre prédios, 51 LOTEAMENTO URBANO- ações, 371- aprovação, 136- conceito, 133- especial, 138- fechado, 138- legislação, 134- restrições, 134 LUZ- aberturas para luz, 64- servidão, 65

MARGENS DE RODOVIAS- restrições de construção, 146 MEIO AMBIENTE- Ver: Proteção ambiental MESTRES- de obras, 384 MONUMENTO- proteção, 141 MULTA- contratual, 287 MUNICÍPIO- defesa e proteção da saúde, 143- loteamento urbano, 133- perímetro urbano, 119- Plano Diretor, 114- regulamentação edilícia, 117- traçado urbano, 120- zona urbana, 119- zoneamento urbano, 128 MUROS- construção, 55- divisórios, 57, 357

NATUREZA- proteção ambiental, 222

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ÍNDICE ALFABÉT1COREMISS1VO 477

NECESSIDADE PÚBLICA- desapropriação, 187 NIVELAMENTO- conceito e efeitos, 122 NORMALIDADE- direito de construir, 32 NORMAS GERAIS- de defesa e proteção da saúde, 143 NORMAS TÉCNICAS- da ABNT, 355- de construção, 354- e legais da construção civil, 356-358 NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA- ação, 86,351

OBRA- Ver: Construção OBRA NOVA- ação de nunciação, 86,351 OBRA PARTICULAR- contrato de construção, 230 OBRA PÚBLICA- contrato de construção, 258- contrato de empreitada, 260- fato administrativo, 321

PAISAGEM- proteção, 141 PAREDES- ação de travejamento, 358- divisórias, 58- parede-meia, 60- parede translúcida, 61 PASSAGEM- forçada, 77,359

- de cabos e tubulações, 361 PATRIMÔNIO HISTÓRICO- tombamento, 150 PERÍCIAS JUDICIAIS- avaliação, 388- conceito, 379

. - exame judicial, 386- laudo pericial, 383- vistoria, 387 PERÍMETRO URBANO- alinhamento, 121- arruamento, 120- circulação, 123- delimitação, 119

- nivelamento, 122 PLANO DIRETOR- conceito, 114-115- do Município, 116- e Estatuto da Cidade, 159- instrumentos, 36 PLANTA- projeto, 353 PODER DE POLÍCIA- alvará de construção, 213- auto-executoriedade, 104-105- limitações administrativas, 98- nas construções, 98- polícia sanitária, 142 POLÍCIA SANITÁRIA- conceito, 143 POLUIÇÃO- ambiental, 224- das águas, 73 POSSE- ações possessórias, 363- conceito, 24 PRÉ-OCUPAÇÃO- conceito, 129-130- do bairro, 35 PREÇO- conceito, 393 PRÉDIOS- construção civil, 351- dano a vizinho, 314, 375- distância, 53- limites, 51- vizinhança, 51 PREFEITURA- alvará de construção, 213- embargo de obra, 217 PROFISSIONAIS- da construção civil, 377 PROJETO DE CONSTRUÇÃO- alteração, 326- aprovação, 210- contrato, 267-270- direito autoral, 325- erro de cálculo, 308,316- plágio, 325- plantas, 353- usurpação, 325 PROPRIEDADE- conceito, 19

Page 474: Direito de Construir - Helly Lopes Meirelles - 2005

478 DIREITO DE CONSTRUIR

- condomínio, 21- direito, 27- domínio, 20- posse, 24- restrição de vizinhança, 47- uso anormal, 31, 34,37, 41,48 PROTEÇÃO AMBIENTAL- competência, 222- controle da construção, 205- controle da poluição, 224- e Estatuto da Cidade, 212- e Estudo Prévio de Impacto Ambien­

tal, 212- e Estudo Prévio de Impacto de Vizi­

nhança, 212- planos urbanísticos, 208- preservação do meio ambiente, 222

QUEIMADAS- na zona rural, 38

REGISTRO IMOBILIÁRIO- dúvida, 372REGISTRO PROFISSIONAL- Ver: Regulamentação profissional REGULAMENTAÇÃO- edilícia, 117REGULAMENTAÇÃO PROFISSIO­

NAL- agrônomos, 382- antecedentes, 367- arquitetos, 380- Código de Ética, 376- CONFEA, 370- CREA, 374- encarregados e mestres-de-obras, 384- engenheiros, 378- profissionais da construção civil, 377- técnicos de nível superior, 382- técnicos de 2Q grau, 383 RENDA- conceito, 394 RESIDÊNCIAS- zonas residenciais, 130 RESPONSABILIDADE

' />MniF ativa>enção, 281- civil em geral, 283- civil no Código de Defesa do Consu­

midor, 288- contratual, 286- contratual da construtora, 284, 286- da Administração Pública, 321- decorrente da construção, 277, 291- ético-profissional, 324- extracontratual, 281- pela perfeição da obra

- no Código Civil, 292- no Código de Defesa do Consumi

dor, 298- pela solidez e segurança da obra

- no Código Civil, 300- no Código de Defesa do Consumi

dor, 310- penal, 336- por construção clandestina, 342- por danos a terceiros, 314- por danos a vizinhos, 314, 348- por desabamento, 336- por fornecimento, 329- por insegurança da obra, 296- por tributos, 332- técnica, 357- trabalhista e previdenciária, 328 RESPONSABILIDADE PENAL- por desabamento, 336 RESTRIÇÕES- de loteamento, 137- de vizinhança, 47-50, 80- especiais de condomínio edilício, 79 RESTRIÇÕES DE VIZINHANÇA- direito de construir* 47, 50- na construção, 83 RIQUEZAS NATURAIS- regime jurídico, 25 RODOVIAS- construção nas margens, 146 RUAS- arruamento, 120- perímetro urbano, 120 RUÍDOS- na vizinhança, 40- proteção ao sossego, 39

SALUBRIDADE- urbana, 123 SAÚDE PÚBLICA- defesa e proteção, 36, 41, 143

Page 475: Direito de Construir - Helly Lopes Meirelles - 2005

ÍNDICE ALFABÉTICO-REM1SS1V0 479

SEGURANÇA- proteção, 37- urbana, 123, 141 SERVIÇO PÚBLICO- normas técnicas, 354 SERVIDÃO- administrativa, 174

- e Estatuto da Cidade, 161- de água, 361- de luz, 64SERVIDÃO ADMINISTRATIVA- conceito, 174- indenização, 176- instituição, 175 SOLO- regime jurídico, 25- riquezas naturais, 25- urbano - zoneamento, 127-128 SOLO URBANO- controle, 126- c Estatuto da Cidade, 165- uso eocupação, 125-126 SOSSEG O- proteção, 39, 41 SUBSTÂNCIAS CORROSIVAS- encostamento a parede, 65

TAPUMES- ação de construção e conservação,

357- construção, 55, 357- muros e cercas, 55 TAREFA- contrato, 266- regime de construção, 266 TÉCNICA- acervo técnico, 354- na construção, 354 TÉCNICOS- de nível superior, 382- de 2a grau, 383 TELHADO, 63 TERRAÇO- construção, 63 TERRAÇO E VARANDA- conceito, 63 TOMBAMENTO- conceito, 151

- e Estatuto da Cidade, 162- indenização, 155- omissão administrativa, 156- processo, 153 TRAÇADO URBANO- conceito, 120 TUBULAÇÕES- servidão para passagem de, 175, 361

URBANISMO- alinhamento, 121- arruamento, 120- circulação, 123- Código de Obras, 209- consórcio imobiliário e Estatuto da

Cidade, 172- controle da construção, 205, 207- controle da poluição, 224- desapropriação, 182- embargo de obra, 217, 343- Estatuto da Cidade, 157- estética urbana, 139- formação profissional, 365- funcionalidade urbana, 124- higiene e segurança, 141- limitações urbanísticas, 107- loteamento urbano, 133- patrimônio histórico, 150- perímetro urbano, 119- Plano Diretor, 114- projeto de construção, 210- proteção ambiental, 222- proteção paisagística, monumental e

histórica, 141- regulamentação edilícia, 117- salubridade urbana, 123- segurança urbana, 123- servidão administrativa, 174- solo urbano, 125- tombamento, 151- traçado urbano, 120- uso e ocupação do solo, 125, 129- usos permitidos, 133- zona urbana, 119- zoneamento urbano, 127 USOS URBANOS- conformes, 129- desconformes, 129-130

Page 476: Direito de Construir - Helly Lopes Meirelles - 2005

480 DIREITO DE CONSTRUIR

- tolerados, 130USUCAPIÃO ESPECIAL DE IMÓ­

VEL URBANO- e Estatuto da Cidade, 159 UTILIDADE PÚBLICA- desapropriação, IBS

VALOR- avaliação, 390 VARANDA- construção, 63 VENTILAÇÃO, 64 VIA COMINATÓRIA- ação de vizinhança, 375 VISTORIA JUDICIAL- conceito, 387 VIZINHANÇA- bem-estar social, 43- conceito, 48- construção de aeroporto, 146- entrada em prédio vizinho, 76- invasão de área, 61- proteção, 36- relatório de impacto, 51, 213- responsabilidade por dano, 314

- restrições, 48-50- restrições convencionais, 80- ruídos, 40- sossego, 39 VIZINHOS- proteção à saúde, 36, 41

ZONA RURAL- queimadas, 38 ZONA URBANA- delimitação, 119ZONAS ESPECIAIS DE INTERES­

SE SOCIAL- e Estatuto da Cidade, 162 ZONEAMENTO- conceitos, 127-128- pré-ocupação, 129- traçado urbano, 120- usos admitidos, 130- zona comercial, 131- zona industrial, 131- zona institucional, 132- zona mista, 133- zona residencial, 130- zona urbana, 119

* * %

,Universidade Presbiteriano Mackenzie^0) Biblioteca George Alexander Data: 29/09/06 Preço: RS: SX,51 Identificação; Dl NF : 011188Curso: Direito (Opinião)Professor(a): Silas Rodrigues Gonçalves

GRÁFICA PAYMTel. (011)4392-3344

[email protected]

Page 477: Direito de Construir - Helly Lopes Meirelles - 2005

E u r ic o d e A n d r a d e A z e v e d o é Procurador de Justiça do Estado de São Paulo, aposenta­do, e foi Secretário de Planejamento do Estado (1970/1971), Presidente da EMPLASA - Em­presa de Planejamento da Grande São Paulo (1975/1979), Presidente do CEPAM (1968/1970) e da Fundação Prefeito Faria Lima.

A d i l s o n A b r e u D a l l a r i é Professor Titular de Direito Administrativo da Pontifícia Univer­sidade Católica de São Paulo e de Direito Ur­banístico, na área de pós-graduação da mesma Universidade. Publicou pela Malheiros Editores os livros Processo Administrativo e Estatuto da Cidade, ambos em co-autoria com Sérgio Fer­raz. E diretor da Revista Trimestral de Direito Público, desta Editora.

D a n ie la L ib ó r io D r S a r n o é Mestre e Dou- / tora em Direito Urbanístico e Professora na Pon­

tifícia Universidade Católica de São Paulo.Obras de H e l y L o p e s M e i r e l l e s publica­

das por esta Editora:• D IR E IT O A D M IN ISTRA TIVO BR A SI­

L E IR O , 31- edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanüel Burle Filho

• M ANDADO DE SEG U RA N ÇA E A ÇÃ O PO PU LA R , 28a edição, atualizada por Ar- noldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes

• D IR E IT O M U N IC IPA L B R A SILEIR O ,13a' edição, atualizada por Márcio Schneider Reis e Célid Marisa Prendes, .y . ' í

• L IC ITA Ç Ã O E CO N TRA TO A D M IN IS­TRATIVO, 13a edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo e Maria Lúcia Mazzei de Alencar

~-MALHEIROS s^sED ITORES

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DIREITO DE CONSTRUIR

Este livro, fruto das aulas na Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo, visava dar aos seus alunos uma visão do Direito aplicável àquela atividade. Foi, posteriormente, bastante ampliado, passando a ser, também, para os operadores do Direito uma exposição de modernos conceitos do Direito Civil e do Direito Adminis­trativo, retomando temas importantíssimos, como restrições de vizinhança e limitações administrativas ao direito de construir; servidões administrativas e desapropriações; controle da construção e proteção ambiental; responsa­bilidade civil decorrente da construção, envolvendo todas as partes interessadas (proprietário, projetista, construtor, etc.); ações de vizinhança; perícias judiciais no campo da engenharia civil; contratos de construção e conexos, e a regulamentação profissional da construção civil. Ao final do volume o Autor reuniu toda a legislação mais importante, ligada à matéria.

Esta obra, única na nossa literatura jurídica e sempre extremamente prestigiada tanto entre os especialistas do Direito como entre os profissionais da engenharia civil, constitui-se numa das obras clássicas do Autor.