Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

download Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

of 173

Transcript of Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

  • GRADUAO 2013.1

    DIREITO DAS OBRIGAESE RESPONSABILIDADE CIVIL

    PRODU ZIDO POR CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA, RAFAEL VIOLA E DANILO DONEDA

  • SumrioDireito das Obrigaes e Responsabilidade Civil

    PROGRAMA DA DISCIPLINA: .................................................................................................................................. 3

    PARTE I: DIREITO DAS OBRIGAES ......................................................................................................................... 4

    AULA 2: PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DAS OBRIGAES ................................................................................ 4

    AULA 3: CONTORNOS DA BOA-F OBJETIVA .............................................................................................................. 10

    AULA 4: A RELAO OBRIGACIONAL ....................................................................................................................... 16

    AULA 5: AS OBRIGAES NATURAIS E AS OBRIGAES PROPTER REM ............................................................................ 22

    AULA 6: CLASSIFICAO DAS OBRIGAES: OBRIGAES DE DAR, FAZER E NO-FAZER ...................................................... 28

    AULA 7: CLASSIFICAO DAS OBRIGAES: OBRIGAES INDIVISVEIS, SOLIDRIAS E ALTERNATIVAS ................................... 36

    AULA 8: PAGAMENTO: LUGAR, TEMPO E PROVA ........................................................................................................ 50

    AULA 9: FORMAS ESPECIAIS DE PAGAMENTO ........................................................................................................... 58

    AULA 10: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E PAGAMENTO INDEVIDO ................................................................................ 80

    AULA 11: INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAES ........................................................................................................ 89

    AULA 12: CLUSULA PENAL E JUROS ...................................................................................................................... 99

    AULA 13: TRANSMISSO DAS OBRIGAES ............................................................................................................ 106

    PARTE 2 RESPONSABILIDADE CIVIL ..................................................................................................................... 113

    AULA 14. ESTRUTURA E FUNES DA RESPONSABILIDADE CIVIL ................................................................................. 113

    AULA 14. DANO MATERIAL E DANO MORAL ............................................................................................................ 121

    AULA 16. CULPA E RESPONSABILIDADE SUBJETIVA ................................................................................................. 130

    AULA 17. RISCO E RESPONSABILIDADE OBJETIVA .................................................................................................... 136

    AULA 19. NEXO CAUSAL .................................................................................................................................... 141

    AULA 20. EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE CIVIL ............................................................................................. 146

    AULA 21. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO DE TERCEIRO ....................................................................................... 154

    AULA 10. ABUSO DO DIREITO ............................................................................................................................. 159

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 3

    PROGRAMA DA DISCIPLINA:

    Aula 1: Apresentao do curso

    Parte I: Direito das ObrigaesAula 2: A Relao ObrigacionalAula 3 Princpios fundamentais do direito das obrigaesAula 4 Contornos da boa-f objetivaAula 5: As Obrigaes Naturais e as Obrigaes Propter RemAula 6: Classifi cao das Obrigaes: Obrigaes de Dar, Fazer e No-FazerAula 7: Classifi cao das Obrigaes: Obrigaes Indivisveis, Solidrias

    e AlternativasAula 8: Pagamento: Lugar, Tempo e ProvaAula 9: Formas Especiais de PagamentoAula 10: Enriquecimento sem Causa e Pagamento IndevidoAula 11: Inadimplemento das ObrigaesAula 12: Clusula Penal e JurosAula 13: Transmisso das Obrigaes

    Parte II: Responsabilidade CivilAula 14: Estrutura e funes da responsabilidade civilAula 15 Dano material e dano moralAula 16 Culpa e Responsabilidade subjetivaAula 17 Risco e Responsabilidade objetivaAula 18 DanoAula 19 Nexo causalAula 20 Excludentes de responsabilidade civilAula 21 Responsabilidade Civil por ato de terceiroAula 22 Abuso do Direito

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 4

    PARTE I: DIREITO DAS OBRIGAES

    AULA 2: PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DAS OBRIGAES

    EMENTRIO DE TEMAS:

    Autonomia da Vontade e Funo Social das Obrigaes e do Contrato

    LEITURA OBRIGATRIA:

    Tepedino, Gustavo. As relaes de consumo e a nova teoria contratual, in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 217-ss.

    LEITURAS COMPLEMENTARES:

    Martins-Costa, Judith. Refl exes sobre o princpio da funo social dos contratos, in Revista Direito GV n 01 (maio/2005); pp. 41/66. Salomo Filho, Calixto. Funo social do contrato: primeiras anotaes, in Revista de Direito Mercantil n 132; pp. 07/24. Bueno de Godoy, Cludio Luiz. Funo Social do Contrato. So Paulo: Saraiva, 2004; pp. 110/130.

    1. ROTEIRO DE AULA:

    Ao se iniciar o estudo da teoria e prtica das obrigaes, fundamental ter-se em mente a transio pela qual atravessa esse especfi co e importante campo do Direito Civil. Tradicionalmente vinculada soberania da vontade individual (autonomia da vontade), insculpida nos preceitos que tutelam a liberdade contratual, a disciplina dos contratos atualmente v-se permeada por uma srie de interesses que ultrapassam a vontade do particular, gerando um debate sobre os limites da interveno de dispositivos de ordem pblica na regulao das relaes contratuais.

    Pode-se, em linhas gerais, dizer que os princpios tradicionais, que funda-mentaram a construo clssica da teoria dos contratos so os seguintes: (i) autonomia da vontade; (ii) fora obrigatria; e (iii) relatividade. Esses prin-cpios encontram hoje diversas reas de fl exibilizao geradas pela ascenso de novos princpios contratuais, como (iv) a funo social do contrato; (v) a boa-f objetiva; e (vi) o equilibrio econmico-fi nanceiro da relao contratual.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 5

    Todos os seis princpios acima mencionados sero trabalhados nas aulas a seguir. Na presente aula ser conferida ateno especial aos princpios da autonomia da vontade e da chamada funo social do contrato.

    A autonomia privada pode ser entendida, segundo lio de Dez-Picaso e Gulln como o poder de se auto-ditar a lei ou preceito, o poder de governar-se a si prprio. Conforme complementam os mesmos autores:

    Poder-se-ia tambm defi ni-la como um poder de governo da prpria es-fera jurdica, e como essa formada por relaes jurdicas, que so a causa da realizao de interesses, a autonomia privada pode igualmente conceituar-se como o poder da pessoa de desregulamentar e ordenar as relaes jurdicas nas quais , ou h de ser, parte.1

    O estudo da autonomia privada assume, na seara contratual, a forma da tutela da liberdade contratual. Nesse particular importante no confundir liberdade de contratar com liberdade contratual. A primeira relaciona-se com o momento formativo da relao contratual, isto , com o grau de liber-dade envolvida na deciso sobre concluir ou no um contrato. J a segunda diz respeito ao contedo do contrato.

    Segundo Francesco Messineo, existem quatro signifi cados para liberdade contratual: (i) o fato de que nenhuma parte pode impor unilateralmente outra o contedo do contrato, e que esse deve ser o resultado de livre debate entre as partes; (ii) liberdade de negociao, no sentido de que o objeto do contrato livre, salvo bens indisponveis e excees previstas no ordenamen-to; (iii) o poder de derrogar as normas dispositivas ou supletivas; e (iv) o fato de que, em algumas matrias, admitida a auto-disciplina, ou seja, a regula-o estabelecida pelas partes interessadas.2

    Os alicerces sobre os quais se funda a liberdade de contratar podem ser en-contrados nos princpios elaborados pela Escola do Direito Natural, respon-svel por conferir importncia crescente contratualidade, a partir do sculo XVI, sob a infl uncia do conceito de autonomia da vontade desenvolvido pelo Humanismo. O primado da vontade individual consolidado no sculo XVII, quando a prpria existncia da sociedade passa a ser fundamentada no contrato. Essa tendncia explicita por John Gilissen:

    A Idade Mdia no reconhecia o primado da vontade individual; esta no era respeitvel seno nos limites da f, da moral e do bem co-mum. Os interesses da comunidade familiar, religiosa ou econmica, ultrapassam os dos indivduos que a compem. (...) Escola Jusnatu-ralista que a autonomia da vontade deve a sua autoridade, o seu prima-do. Mas foi sobretudo o jurista holands Hugo Grcio que desenvolveu a nova teoria: a vontade soberana; o respeito da palavra dada uma regra de direito natural; pacta sunt servanda um princpio que deve ser aplicado no apenas entre os indivduos, mas mesmo entre as naes.3

    1 Luis Diz-Picaso e Antonio Gulln. Sis-tema de derecho civil. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1994, v. 1, p. 371.2 Francesco Messineo. Il contratto in ge-nere. Pdua: CEDAM, 1973, pp. 43 e 44.3 John Gilissen. Introduo histrica ao direito. 2a ed. Lisboa: Fundao Calous-te Gulbenkian, 1995, pp. 738 e 739.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 6

    Aps a consagrao dos ideais da Revoluo Francesa e a abolio dos pri-vilgios estamentais e corporativos, a promulgao do Cdigo Napoleo em 1804 veio a positivar explicitamente o primado da autonomia da vontade, na mxima de que o contrato faz lei entre as partes (art. 1.134), a qual ser traduzida na clebre frase de Fouille: quem diz contratual diz justo.

    A conseqncia imediata desse cenrio a crescente importncia conferi-da pela doutrina contratualista do sculo XIX para a anlise da manifestao da vontade e seus vcios. Com a primazia da autonomia da vontade, interpre-tar o contrato tornou-se um exerccio de descobrimento das reais intenes das partes e das formas pelas quais elas foram verbalizadas. Trata-se de uma verdadeira mstica da vontade.

    As restries liberdade contratual comeam a surgir com a mudana do cenrio histrico, assegurando-se, inicialmente, maior igualdade de oportu-nidades no mercado, em termos da proibio de discriminao em razo de gnero, raa, etnia. Posteriormente, razes sociais passaram a determinar certas discriminaes positivas, como o tratamento mais protetivo s partes contratualmente mais vulnerveis (tais como o consumidor, o idoso, o tra-balhador).

    Portanto, razes de justia e equidade vieram a determinar a interveno do Estado sobre as relaes contratuais, em um movimento que fi cou conhe-cido como dirigismo contratual. Trata-se da insero, no ordenamento jur-dico, de uma srie de normas cogentes, a delimitar os assuntos sobre os quais se pode contratar, em que limites se pode dispor de determinados direitos, e que clusulas sero consideradas intrinsecamente abusivas e, por conseguin-te, nulas.

    Segundo identifi ca Eros Roberto Grau:A mudana de perspectiva sobre a compreenso da autonomia da vonta-

    de , portanto, profunda: deixa-se de considerar o indivduo como senhor absoluto da sua vontade, para compreend-lo como sujeito autorizado pelo ordenamento a praticar determinados atos, nos exatos limites da autorizao concedida.4

    O mesmo diagnstico dessa fase de transio realizado por Gustavo Te-pedino ao afi rmar que:

    Com o Estado intervencionista delineado pela Constituio de 1988 teremos, ento, a presena do Poder Pblico interferindo nas re-laes contratuais, defi nindo limites, diminuindo os riscos do insuces-so e protegendo camadas da populao que, merc daquela igualdade aparente e formal, fi cavam margem de todo o processo de desenvol-vimento econmico, em situao de ostensiva desvantagem.5

    4 Eros Roberto Grau. Um novo paradig-ma dos contratos. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 5, jan/mar 2001, p. 78.5 Gustavo Tepedino. Temas de Direito Civil. 2a edio. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 204.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 7

    Todavia, a fl exibilizao da autonomia da vontade a preceitos contidos na legislao no representa uma completa anulao desse princpio nas relaes contratuais. Muito ao reverso, a autonomia da vontade, e, mais especifi ca-mente, a liberdade contratual, permanecem como princpio, e sua derivao respectivamente, a reger os vnculos contratuais, agora atrelada funo so-cial do contrato, consoante o disposto no art. 421:

    Art. 421. A liberdade de contratar ser exercida em razo e nos limi-tes da funo social do contrato.

    Uma constatao de que a autonomia da vontade ainda desempenha papel de destaque na formao dos contratos pode ser encontrado no art. 425 do Cdigo Civil, o qual determina que as partes podero elaborar contratos at-picos, ou seja, contratos que no seguem os modelos de contrato tipifi cados na legislao:

    Art. 425. lcito s partes estipular contratos atpicos, observadas as nor-mas gerais fi xadas neste Cdigo.

    A dinmica existente entre autonomia da vontade e funo social pode ser percebida em alguns exemplos retirados da prtica dos contratos de locao. Nesse sentido, vale investigar os limites do direito de retomada do imvel por parte do locador para uso prprio. A lei de locaes (Lei n 8245/91) prev, no seu art. 52, 1, que o locador, salvo se remunerar o locatrio pelo fundo de comrcio, no poder exercer o mesmo ramo de atividade desempenhado ento pelo locatrio. a redao do artigo:

    Art. 52. O locador no estar obrigado a renovar o contrato se: (...)II o imvel vier a ser utilizado por ele prprio ou para transferncia

    de fundo de comrcio existente h mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cnjuge, ascendente ou descendente.

    1 Na hiptese do inciso II, o imvel no poder ser destinado ao uso do mesmo ramo do locatrio, salvo se a locao tambm envolvia o fundo de comrcio, com as instalaes e pertences.

    Ao interpretar o referido artigo, Fbio Ulhoa Coelho afi rma que, em tela, est-se diante de um confl ito entre o direito de inerncia ao ponto do locat-rio e o direito de propriedade do locador. Conforme expressa o autor:

    Quando o direito de propriedade do locador entra em confl ito com o direito de inerncia a ponto do locatrio, est em oposio uma sim-ples oposio de interesses privados, individuais.6

    6 Fbio Ulhoa Coelho. Curso de Direito Comercial, v. I. So Paulo, Saraiva, 4ed., 2000; p. 103.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 8

    Complementa ento o autor afi rmando que a restrio ao direito de reto-mada, constante do art. 52 seria inconstitucional, pois imporia restries ao direito de propriedade.

    Essa justamente a espcie de situao em que a ampla autonomia da vontade cede espao para mandamentos constantes da lei, impondo a pre-servao de determinados interesses. Ao afi rmar que o dispositivo que veda o restabelecimento do locador no negcio desenvolvido pelo locatrio, o legis-lador no confronta o direito de propriedade, mas o funcionaliza. Nessa dire-o, o artigo tutela no apenas a funo social da propriedade, mas tambm a funo social do contrato de locao, que se transforma em incentivo para que locatrios desenvolvam cada vez melhores negcios, seguros de que no sofrero a retomada do imvel sob o argumento de uso prprio para que o locador venha a se aproveitar o trabalho realizado no ponto.

    Clusulas de no restabelecimento, ou clusulas de no concorrncia, atu-almente desempenham importante papel na confi gurao dos limites da au-tonomia da vontade nos contratos. A clusula de no-concorrncia pode ser decorrncia natural da venda de um negcio, principalmente nos casos em que seja necessrio assegurar ao comprador as condies necessrias para que este usufrua integralmente dos benefcios diretos e indiretos da aquisio. A referida clusula, todavia, deve ser razoavelmente delimitada, no tempo, no espao e no setor relevante.

    O prprio cdigo civil estabelece que, salvo estipulao em contrrio, na aquisio de estabelecimentos empresariais o alienante no poder concorrer com o comprador pelo prazo de cinco anos. Essa a redao do art. 1147 do Cdigo Civil:

    Art. 1147. No havendo autorizao expressa, o alienante do esta-belecimento no pode fazer concorrncia ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subseqentes transferncia.

    Ainda na dinmica dos estabelecimentos empresariais, e mais especifi ca-mente nos shopping centers, as clusulas de no concorrncia assumem a feio de clusulas de raio, sendo comum que no contrato de locao com a empresa que administra o shopping center conste uma clusula que veda a abertura de estabelecimento idntico ao que o lojista explora no shopping por uma certa distncia especifi cada no contrato.

    2. CASO GERADOR:

    A administradora do Shopping Iguatemi, localizado na cidade de Porto Alegre, tem fi gurado na imprensa por conta de um litgio instaurado com a

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 9

    cadeia de farmcias Panvel. Segundo consta das notcias veiculadas, ela teria ingressado com ao de despejo contra a empresa que explora a farmcia Pan-vel localiza no shopping por conta da abertura de uma outra farmcia Panvel no shopping Bourbon Country, construdo posteriormente e praticamente vizinho do terreno onde se localiza o shopping Iguatemi.

    Alega a administradora do Shopping Iguatemi que a abertura de uma far-mcia Panvel no shopping vizinho representaria violao da clusula de raio estabelecida no contrato de locao. Vale ressaltar que no shopping Bourbon Country tambm foram abertas lojas das redes O Boticrio e McDonalds.

    Se voc fosse o juiz dessa ao judicial, como seria a sua deciso? Fundamente.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 10

    AULA 3: CONTORNOS DA BOA-F OBJETIVA

    EMENTRIO DE TEMAS:

    As trs funes da boa-f objetiva Os deveres anexos de conduta

    LEITURA OBRIGATRIA:

    Tepedino, Gustavo e Schreiber, Anderson. A Boa-F Objetiva no C-digo de Defesa do Consumidor e no novo Cdigo Civil, in Gustavo Tepedino (org.) Obrigaes: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 29/44.

    LEITURAS COMPLEMENTARES:

    Negreiros, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 115/153. Azevedo, Antonio Junqueira de. Insufi cincias, defi cincias e desatualizao do Projeto de Cdigo Civil na questo da boa-f objetiva nos contratos, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. So Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158.

    1. ROTEIRO DE AULA:

    A boa-f tradicionalmente fi gura como elemento dos estudos jurdicos quando se deve investigar se o indivduo possui ou no cincia sobre uma determinada condio, como, por exemplo, se o individuo conhece, ou no, um vcio que macula a sua posse sobre determinado terreno. Essa perspectiva da boa-f convencionou-se denominar boa-f subjetiva.

    Existe, todavia, uma outra forma de atuao da boa-f no direito brasilei-ro, denominada boa-f objetiva, a qual foge de qualquer ilao sobre um es-tado de esprito do agente para se fi xar em uma anlise voltada para critrios estritamente objetivos.

    As trs funes da boa-f objetiva comum delimitar-se trs funes tpicas desempenhadas pela boa-f ob-

    jetiva no direito brasileiro. Sendo assim, pode-se defi nir a funo trplice da boa-f objetiva da seguinte forma:

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 11

    A boa-f objetiva desempenha inicialmente um papel de critrio para a interpretao da declarao da vontade nos negcios jurdicos. Essa funo prevista no art. 113 do novo Cdigo Civil:

    Art. 113. Os negcios jurdicos devem ser interpretados conforme a boa-f e os usos do lugar de sua celebrao.

    Esse dispositivo ganha relevo ao indicar que a primeira funo da boa-f objetiva dirigir a interpretao do juiz ou rbitro relativamente ao negcio celebrado, impedindo que o contrato seja interpretado de forma a atingir fi nalidade oposta quela que se deveria lici tamente esperar.

    A boa-f objetiva atua ainda como forma de valorar o abuso no exerccio dos direitos subjetivos, conforme consta do art. 187 do Cdigo Civil:

    Art. 187. Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fi m econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons costumes.

    E, por fi m, a boa-f objetiva , ainda, norma de conduta imposta aos con-tratantes, segundo o disposto no art. 422 do Cdigo Civil:

    Art. 422. Os contratantes so obrigados a guardar, assim na conclu-so do contrato, como em sua execuo, os princpios de probidade e boa-f.

    A funo desempenhada pela boa-f objetiva a partir do dispositivo no art. 422 , sem dvida, a sua atuao mais comentada pela doutrina e da qual mais se vale a jurisprudncia dos tribunais nacionais.

    Os deveres anexos de condutaO motivo pelo qual a terceira funo da boa-f objetiva recebeu tamanho

    destaque deriva justamente do seu prprio contedo: impor s partes contra-tantes deveres objetivos de conduta, que no necessariamente precisam cons-tar do instrumento contratual para que possam ser cobrados e cumpridos. Tratam-se dos chamados deveres secundrios, ou anexos, aos quais todas as partes de um negcio devem manter estrita observncia.

    Essa caracterizao da boa-f objetiva como a disposio de deveres de conduta que as partes devem guardar difere frontalmente daquela concepo clssica de boa-f subjetiva, ligada a um estado psicolgico do agente.

    Os deveres secundrios impostos pelo art. 422 foram gradativamente sendo construdos pela doutrina e pela jurisprudncia, podendo-se mesmo falar em qua-tro deveres bsicos: (i) dever de informao e esclarecimento; (ii) dever de coope-rao e lealdade; (iii) deveres de proteo e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 12

    Todavia, diversas derivaes podem surgir desses quatro deveres bsicos, como bem explicita Judith Martins-Costa, os deveres secundrios podem abranger um vasto leque de condutas que devero ser observadas pelas partes, como, por exemplo:

    a) os deveres de cuidado, previdncia e segurana, como o dever do depositrio de no apenas guardar a coisa, mas tambm de bem acon-dicionar o objeto deixado em depsito; b) os deveres de aviso e esclare-cimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passvel de escolha para a satisfao de seu desideratum, o do consultor fi nanceiro de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do mdico, de esclarecer ao paciente sobre a relao custo/benefcio do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pr-contratual, o do sujeito que entra em negociaes, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formao da decla-rao negocial; c) os deveres de informao, de exponencial relevncia no mbito das relaes jurdicas de consumo, seja por expressa disposi-o legal (CDC, arts. 12, in fi ne, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em ateno ao mandamento da boa-f objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatrios, em sentido amplo; e) os deveres de colaborao e cooperao, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestao principal, ao qual se liga, pela ne-gativa, o de no difi cultar o pagamento, por parte do devedor; f ) os deveres de proteo e cuidado com a pessoa e o patrimnio da contra-parte, como, v.g., o dever do proprietrio de uma sala de espetculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prdio, a fi m de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omis-so e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razo do contrato ou de negociaes preliminares.7

    A imposio desses deveres se reveste de papel fundamental para a orde-nao dos contratos na prtica, uma vez que se busca, com a sua afi rmao, proteger um bem que se encontra na prpria essncia da contratao: a con-fi ana. Por esse motivo, o enquadramento legal da boa-f objetiva sempre se mostrar atrelada tutela da confi ana, sobretudo no que diz respeito aplicao desse princpio aos casos de responsabilidade pr-contratual.

    Mas a redao do art. 422 no est afastada de qualquer espcie de crtica. Muito ao reverso, Antonio Junqueira de Azevedo afi rma que a redao do art. 422 se mostra insufi ciente, defi ciente e desatualizada perante s exigncias da prtica contratual moderna. Segundo o autor, o artigo seria insufi ciente em 7 Judith Martins-Costa. A Boa-F no Direito Privado. So Paulo: RT, 1999,

    p. 439.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 13

    sua redao pois no deixa claro se os seus dispositivos constituem norma cogente ou meramente dispositiva, alm de no mencionar as fases pr e ps-contratuais para fi ns de responsabilizao. O artigo seria ainda defi ciente por no prever de forma explcita quais so os chamados deveres anexos. E, por fi m, o dispositivo seria desatualizado pois confere poderes desmesurados ao juiz para interferir nas relaes contratuais, abrindo possibilidade para se in-crementar a sobrecarga de processos que impede o regular funcionamento do Poder Judicirio, alm de no serem os juizes tradicionalmente preparados para decidir casos nos quais fi gurem contratos de extrema especialidade tc-nica. Nesse sentido, menciona o autor, a poca atual estaria passando do pa-radigma do juiz para o paradigma do rbitro.8

    2. CASO GERADOR:9

    A Newcell Telecom S/A (Newcell) uma companhia aberta, com aes negociadas em bolsa de valores, que atua no setor de telecomunicaes, espe-cifi camente na prestao de servios de telefonia mvel (SMP), Regies I e II. At muito recentemente, 50% de suas aes ordinrias pertenciam acionis-ta Macroservice Ltd. (Macroservice), 40% Celular do Brasil Ltda. (Ce-lular do Brasil) e os 10% restantes ao pblico investidor. A recente mudana no seu quadro acionrio deu-se em razo da alienao das aes ordinrias de propriedade da Celular do Brasil (Aes), operao esta que permitiu a entrada da Trama Telecom S/A (Trama) orginariamente prestadora da mesma modalidade de servio apenas na Regio III. A operao hoje alvo de uma disputa judicial, iniciada pela Celular do Brasil, conforme os fatos a seguir relatados.

    Desde julho de 1999, por fora de um acordo de acionistas celebrado entre a Celular do Brasil e a Macroservice (Acordo de Acionistas), a trans-ferncia das aes ordinrias de emisso da Newcell estava sujeita a procedi-mento prvio, que inclua a realizao de um leilo informal e a outorga de direito de preferncia entre os acionistas acima designados. Assim, dispunha o Acordo de Acionistas que o acionista remanescente teria o direito de pre-ferncia, podendo adquirir a participao do acionista alienante desde que o fi zesse nos mesmos termos e condies constantes da oferta de um terceiro.

    Em janeiro de 2004, desejando alienar a participao de 40% que detinha no capital votante da Newcell, a Celular do Brasil deu incio tentativa de obter a melhor oferta possvel pelas suas aes.

    Entre os analistas que acompanhavam as diligncias que antecederam ao leilo promovido pela Celular do Brasil, no havia dvida: todas as apostas convergiam para a Trama, cujos planos de expanso eram notrios. Median-te a aquisio de 40% das aes ordinrias de emisso da Newcell, poderia

    8 Antonio Junqueira de.Azevedo. Insu-fi cincias, defi cincias e desatualizao do Projeto de Cdigo Civil na questo da boa-f objetiva nos contratos, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. So Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/1589 Caso gerador extrado da Apostila Princpios Contratuais, elaborada por Teresa Negreiros para os cursos de edu-cao continuada da Escola de Direito da Fundao Getlio Vargas no Rio de Janeiro.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 14

    a Trama aproveitar-se das considerveis sinergias em jogo para se tornar a maior potncia no mercado de telefonia celular do Brasil, operando simul-taneamente nas Regies I, II e III. Ou seja, a Trama era a maior interessada na aquisio das Aes, e por isso estimava-se que sairia vencedora do leilo.

    No se sabia, porm, que, naquele mesmo ms de janeiro de 2004, en-quanto a Celular do Brasil organizava o leilo disponibilizando aos po-tenciais interessados informaes sobre a Newcell , Trama e Macroservice assinavam, secretamente, uma carta de intenes (Carta de Intenes), que dispunha sobre o comportamento de ambas com relao ao iminente leilo.

    O objetivo da Trama e da Macroservice, ao assinarem a Carta de Inten-es, era permitir que, ao fi nal, e fosse quem fosse o vencedor do leilo, ambas Trama e Macroservice formassem o bloco de controle da companhia, possuindo, cada uma, 45% do capital votante da Newcell. Assim, caso fosse a Trama a vencedora do leilo, a Macroservice obrigava-se a no exercer o direito de preferncia e a lhe vender 5% da sua participao. Caso, pelo con-trrio, a Trama no fosse a vencedora, poderia esta, a seu exclusivo critrio, e mediante a entrega dos recursos necessrios, obrigar a Macroservice a exercer o direito de preferncia e, ato contnuo, lhe transferir as Aes, mais os 5% relativos sua prpria participao original. Nestes termos, a Macroservice adquiriria as aes com base no seu direito de preferncia mas com recursos provenientes da Trama, sendo esta a destinatria fi nal das Aes.

    E foi o que de fato aconteceu.Realizado o leilo, contrariamente s estimativas do mercado, a oferta

    apresentada pela Trama no foi nada agressiva, vindo a mesma a perder o certame para outra licitante, a Trim Telecom S/A (Trim), companhia de origem alem recm constituda no Brasil.

    Foi assim celebrado entre a Trim e a Celular do Brasil, em fevereiro de 2004, contrato de compra e venda de aes, no valor de US$ 400 milhes contrato este sujeito condio suspensiva do no-exerccio do direito de preferncia pela Macroservice. A mencionada compra e venda extinguiu-se com o exerccio do direito de preferncia pela Macroservice, que, tal como previsto na Carta de Intenes, transferiu ato contnuo as Aes assim adqui-ridas Trama, mais 5% de sua participao original, de modo a que ambas se tornassem co-controladoras em absoluta igualdade de condies. Tudo con-forme havia sido estabelecido na Carta de Intenes, ento tornada pblica.

    A operao motivou uma expressiva alta das aes de emisso das socieda-des envolvidas. Em particular, o representante dos acionistas preferenciais da Newcell fez questo de divulgar ao mercado a sua satisfao diante das novas perspectivas que se abriam para a companhia.

    A Celular do Brasil, contudo, sentindo-se prejudicada, acaba de ingressar em juzo com uma ao civil de reparao de danos em face da Macroservi-ce, pleiteando o ressarcimento de lucros cessantes, no montante de US$ 50

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 15

    milhes, alegando, em resumo, que a execuo da Carta de Intenes entre a Trama e a Macroservice, com o imediato repasse das Aes, violou o acordo de acionistas que at ento vigorara entre ela e a Macroservice.

    Como se resolve o caso acima? Quantos e quais princpios da nova teoria contratual voc consegue identifi car para o deslinde da questo?

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 16

    AULA 4: A RELAO OBRIGACIONAL

    EMENTRIO DE TEMAS:

    Noo geral de obrigao Distines entre direito das obrigaes e direitos reais Estrutura da relao obrigacional Fontes das obrigaes

    LEITURA OBRIGATRIA:

    Calixto, Marcelo Junqueira. Refl exes em torno do conceito de obrigao, seus elementos e suas fontes, in Gustavo Tepedino (org) Obrigaes: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 1/15; 25/28.

    LEITURAS COMPLEMENTARES:

    Lbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigaes. So Paulo: Saraiva, 2005; pp. 16/37. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Cdigo Civil interpretado conforme a Constitui-o da Repblica, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 492/495.

    1. ROTEIRO DE AULA:

    Noo Geral de Obrigao

    Numa lio clssica contida nas Institutas de Justiniano, pode-se encon-trar a noo de que obrigao um vnculo jurdico que nos obriga a pagar alguma coisa. Apesar de aparentemente simplria, essa antiga lio remete com bastante propriedade idia essencial que circunda o direito das obri-gaes a idia de relao jurdica entre duas ou mais pessoas, sejam elas naturais ou jurdicas.

    Tendo em vista a natureza intuitiva do conceito, o legislador preferiu no defi ni-lo no atual Cdigo Civil. Na doutrina, Caio Mrio defi ne obrigao como o vnculo jurdico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra prestao economicamente aprecivel.10

    10 Caio Mario da Silva Pereira. Institui-es de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2003; p. 7.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 17

    J Washington de Barros Monteiro, de forma menos sucinta, enuncia que obrigao a relao jurdica, de carter transitrio, estabelecida entre devedor e credor, cujo objeto consiste numa prestao pessoal econmica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento atravs do seu patrimnio. Nessa segunda defi nio inte-ressante observar a presena do elemento responsabilidade, uma vez que a sua presena ser fundamental quando dos efeitos decorrentes do descum-primento da obrigao.

    Outro elemento que merece destaque o carter de transitoriedade, ine-rente s obrigaes. A obrigao , em verdade, uma relao jurdica que nasce tendo por fi m a sua prpria extino, ou ainda melhor, a sua realizao. justamente a satisfao do credor, que ocorre com o regular adimplemento da obrigao, que enseja o fi m desta e, por conseguinte, o fi m do vnculo jurdico que une credor e devedor.

    Na dinmica obrigacional, os atores encontram-se subsumidos nas fi guras do credor e do devedor. A idia de vinculao, que traduz o ponto principal do instituto, une duas ou mais pessoas que se encontrem envoltas numa re-lao de crdito e dbito. O credor e o devedor correspondem aos dois lados da obrigao, aos plos ativo e passivo respectivamente.

    O vnculo aqui descrito marcado pela pessoalidade. Essa caracterstica remete ao fato de que numa relao obrigacional h um nmero determinado (ou ao menos determinvel) de pessoas envolvidas. Os credores e devedores so conhecidos, ou ao menos conhecveis. Ao credor no dado cobrar sua dvida de um estranho relao obrigacional, e o devedor, por sua vez, no se ver desembaraado de sua obrigao se pagar a outro que no quele a quem deve (ou que pelo menos tenha poder de receber representando o credor).

    Outro ponto crucial para entender as obrigaes a delimitao do seu objeto. Este nada mais do que uma atividade do devedor, em prol do credor e essa atividade recebe a designao de prestao. As formas que essa presta-o pode assumir so bem diversas11 e ensejaro diferentes classifi caes das obrigaes.

    A prpria experincia cotidiana mostra que as obrigaes esto sujeitas ao inadimplemento, sendo que este, em certos ramos da atividade econmica, demasiadamente grande. Nesses casos, o direito resguarda o credor de ver a sua expectativa de satisfao inteiramente frustrada defi nindo que dever o patrimnio do devedor responder, em ltima anlise, pelo adimplemento.

    justamente a possibilidade de procurar no patrimnio do devedor a satisfao do crdito que faz com que essas vinculaes jurdicas no sejam desacreditas. Contudo, nem sempre foi assim.

    Na Antiguidade Clssica, por exemplo, o devedor respondia com o pr-prio corpo em face das obrigaes assumidas, podendo ser submetido inclu-sive situao de escravido. Contudo, o direito tal qual hoje concebido,

    11 Como ser visto posteriormente, es-sas prestaes podem ser uma simples entrega de um bem, uma conduta que represente um agir (fazer), ou ainda uma simples absteno (no fazer).

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 18

    embasado dentre outros princpios pelo da dignidade da pessoa humana, repele o uso da fora fsica no intuito de compelir algum a satisfazer uma obrigao assumida.

    Embasando a idia acima descrita, veja-se o exemplo acadmico do pintor que assume a obrigao de pintar um quadro, mas depois se arrepende. Qual seria a soluo para satisfazer quem o contratou? No h como forar o artista a pintar, pois forte o embasamento constitucional no sentido de vedar o uso da fora para consecuo de tais intentos. No estudo da responsabilidade civil ser observado que, nesse caso, a legislao reserva parte prejudicada a possibilidade de recorrer ao judicirio demandando reparao por perdas e danos.

    Outro elemento que deve ser destacado o cunho pecunirio das obri-gaes, visto que o seu objeto sempre ser um valor de natureza econmica. certo que o direito pode at mesmo reservar, em certos momentos, uma especial considerao s obrigaes de natureza exclusivamente moral, mas no sendo as mesmas dotadas de juridicidade, no podem ser inseridas no estudo das obrigaes.

    Igualmente no h que se pensar que as obrigaes do direito de famlia muitas vezes no propriamente pecunirias constituem forma de excep-cionar a idia de carter econmico acima expressa. Cumpre apenas destacar que natureza jurdica dessa espcie de obrigaes no convm ao tema ora abordado, devendo ser pormenorizadas no estudo do direito de famlia.

    Contextualizando o direito das obrigaes com a realidade das relaes econmicas vivenciadas hoje, percebe-se que a sua pertinncia se ressalta quando so analisadas as relaes de consumo. Pode-se destacar como os principais fatores para essa situao os seguintes fatos: (i) a dinmica do con-sumo cada vez mais marcada pela publicidade, inclusive reconhecendo para esse artifcio inegvel teor contratual; e (ii) o fenmeno da massifi cao dos contratos, tendncia hoje j consolidada e que ocorre quando os consumido-res simplesmente aderem a contratos j previamente redigidos (como no caso dos contratos bancrios).

    Certo que em todas as atividades econmicas, da produo distribui-o de bens e servios, imiscui-se o direito obrigacional.

    Distino entre direito das obrigaes e direitos reaisOs direitos reais (ius in re) incidem diretamente sobre uma coisa ao

    passo que o direito obrigacional (jus ad rem), tem por objeto uma determi-nada prestao. Ambos tm, como se pode antever, um carter patrimonial inerente.

    No quadro esquemtico a seguir pode-se visualizar algumas das principais distines:

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 19

    DIREITOS REAIS DIREITOS OBRIGACIONAIS

    Quanto ao objeto

    Os direitos reais recaem sobre uma coisa, geralmente um objeto corpreo, apesar de serem admissveis direitos reais em relao

    a bens imateriais.

    O direito obrigacional recai essencialmente sobre relaes

    humanas.

    Quanto oponibilidade

    O direito real um direito absoluto sendo oponvel perante todos (erga omnes).

    O direito obrigacional relativo na medida em que a prestao s pode ser exigida do devedor

    da relao.

    No que consiste o direito

    Direito ao uso, gozo e fruio de bens. Direito a uma ou mais prestaes

    efetuadas por uma pessoa.

    Extenso no tempo Carter de permanncia.Carter essencialmente

    transitrio, fadado extino.

    Existncia ou no de direito de seqela

    O direito real absoluto, oponvel contra todos e por conta disso, seu titular possui o direito de seqela, isto , de perseguir o exerccio do direito perante qualquer um

    que esteja de posse da coisa.

    O direito de seqela no existe no direito obrigacional. O credor

    no pode individualizar bens no patrimnio do devedor para

    garantir o regular adimplemento da obrigao. A garantia

    representada pelo patrimnio do devedor se manifesta de

    forma abstrata.

    Enumerabilidade dos direitos

    So numerus clausus, isto , so somente aqueles assim enunciados pela lei.

    Apresentam-se como um nmero indeterminado. Isso se deve ao fato de que as relaes

    obrigacionais so infi nitas e dotadas de grande variabilidade.

    Estrutura da Relao Obrigacional

    A noo geral de obrigao foi examinada no tpico anterior. Trata-se do expediente jurdico mediante o qual surge o vnculo entre dois sujeitos um ativo e ou outro passivo. Ao sujeito passivo compete cumprir a prestao a que est adstrito e agindo nesse sentido propiciar: (i) a sua liberao face ao credor; (ii) a extino da prpria obrigao onde est imerso.

    As relaes obrigacionais no esto necessariamente fadadas ao sucesso, que se traduz com o cumprimento obrigao. O desejo do credor que o devedor (sujeito passivo), satisfaa, de modo voluntrio ou coativo, a presta-o. Quando isso no se verifi ca, surge a possibilidade de se valer da sujeio do patrimnio do devedor. Contudo, devemos destacar que esta opo s vai aparecer em momento posterior, na execuo coativa, com a interveno do poder do Estado. Aqui observamos de forma clara os dois elementos essen-

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 20

    ciais da obrigao: o dbito (debitum, Schuld, em alemo) e a responsabili-dade (obligatio, Haftung).

    Na estrutura da obrigao, crucial a existncia de dois sujeitos. Um o sujeito ativo, ou credor. ativo no sentido de que titulariza o crdito. No plo oposto est o sujeito passivo, ou devedor, obrigado ao exerccio de uma determinada prestao pela qual pode vir a responder pelo seu patrimnio no caso de inadimplemento (haftung).

    A noo de determinabilidade tambm outro trao das obrigaes. Os sujeitos devem ser determinveis, embora possam no ser, desde o incio, determinados. No necessrio que desde a origem da obrigao haja indi-viduao precisa do credor e do devedor, mas no obstante, no momento da realizao da obrigao os sujeitos devem ser conhecidos.

    Um exemplo de indeterminao de sujeito na formao do vnculo obri-gacional ocorre na promessa de recompensa. Na promessa, o devedor certo (quem fez a oferta), mas o credor indeterminado, vindo a constitui-se aque-le que adimplir com os requisitos especifi cados.

    Outro exemplo, dessa vez de indeterminao no plo passivo, o caso do adquirente de imvel hipotecado que responde pelo pagamento da dvida embora no tenha sido o devedor originrio.

    O objeto da relao obrigacional a prestao que constitui uma ativida-de, uma conduta do devedor. fundamentalmente um dar, um fazer ou um no fazer algo. A prestao , portanto, a atividade do devedor em prol do credor, que se constitui no objeto imediato da obrigao. H tambm um objeto mediato, que nada mais do que um objeto material ou imaterial sobre o qual incide a prestao. Dessa forma, quando se refere ao objeto da prestao, est sendo enfocado o objeto imediato; quando se menciona o objeto da obrigao, a referncia ser o objeto mediato.

    Por exemplo, na obrigao de pintar um quadro (obrigao de fazer), a prestao, ou objeto imediato, o ato de pintar. O objeto mediato nada mais ser do que a prpria tela que consubstancia a ao realizada.

    A prestao deve ser possvel, lcita e determinvel, sendo essas qualifi ca-es incidentes seja em relao prestao em si, objeto imediato, seja em relao ao objeto que corporifi ca a relao obrigacional, objeto mediato. A dinmica segue a mesma observada por ocasio do estudo dos negcios jur-dicos (art. 166, II, Cdigo Civil).

    Tradicionalmente, sempre foi muito debatida a necessidade de que as obrigaes manifestassem contedo patrimonial, apesar da legislao civilista expressamente no determinar essa caracterstica. Mais coerente parece man-ter o foco, no na patrimonialidade, mas sim no real interesse do credor no cumprimento da obrigao, o qual pode no necessariamente estar direciona-do obteno de alguma vantagem econmica.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 21

    Certas obrigaes apresentam difi culdade de mensurao do carter eco-nmico das prestaes. Nesse sentido pode ser destacada a seguinte hiptese de algum que doa imvel para a Municipalidade, mas estabelece que ali de-ver ser instalado um parque pblico, com o encargo de que o mesmo tome o nome do doador. Quem exerce tal liberalidade no aufere vantagem pecu-niria, mas no se pode dizer que o carter de obrigao est desnaturado.

    Fontes das ObrigaesFontes das obrigaes so todos os atos jurdicos atravs dos quais nas-

    cem as obrigaes. Essa matria essencialmente marcada pela construo da doutrina e dessa forma, h grande variao de entendimentos acerca de que elementos constituem fontes das obrigaes.

    No Direito Romano, as fontes das obrigaes eram identifi cadas como sen-do compostas pelos seguintes elementos: os contratos, os quase contratos, os delitos e os quase-delitos. O cdigo francs, por sua vez, reproduziu essa enu-merao acrescentando o elemento lei. Essa classifi cao no foi reproduzida na atual sistemtica do direito das obrigaes no ordenamento jurdico ptrio.

    No atual Cdigo Civil, so fontes das obrigaes o contrato, os atos uni-laterais e o ato ilcito. O enriquecimento sem causa e o abuso de direito tam-bm so abordados, sendo equiparados aos atos ilcitos.

    Os contratos e as manifestaes unilaterais de vontade so fontes das obriga-es nas quais pode-se observar claramente a vontade humana como fonte direta.

    O ato ilcito provm de situaes onde esto presentes aes ou omisses marcadas pela culpa, seja culpa em sentido estrito, seja uma conduta dolo-sa. Deve-se observar a previso no art. 186 do Cdigo Civil ao dispor que: Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, co-mete ato ilcito.

    Por fi m, destaque-se o grande dissenso acerca da considerao da lei como fonte das obrigaes. Em breve anlise, pode-se dizer que todas as obrigaes se balizam pela lei, no podendo confront-la, mas no necessariamente as obrigaes surgiriam diretamente dela.

    A necessidade da prtica de certos atos que surge por fora da lei no sufi ciente para classifi c-la como fonte, mesmo porque, em regra, esses atos so deveres jurdicos e no propriamente obrigaes.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 22

    AULA 5: AS OBRIGAES NATURAIS E AS OBRIGAES PROPTER REM

    EMENTRIO DE TEMAS:

    Obrigaes civis Obrigaes naturais Obrigaes propter rem nus reais e obrigaes propter rem.

    LEITURA OBRIGATRIA:

    Lbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigaes. So Paulo: Saraiva, 2005; pp. 105/111.

    LEITURAS COMPLEMENTARES:

    Arajo, Brbara Almeida de. As obrigaes propter rem, in Gustavo Tepedino (org) Obrigaes: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 99/120. Pereira, Caio Mrio da Silva. Ins-tituies de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro: Forense, 2004; p. 285/304..

    1. ROTEIRO DE AULA:

    Obrigaes Civis

    Como visto nas sees anteriores, a obrigao desdobra-se numa perspectiva dupla: por um lado o dbito, caracterizado pela necessidade de realizar uma de-terminada prestao. Por outro, existe a garantia, que corresponde prerrogativa do credor de se valer dos meios legais no intuito de compelir o devedor a pagar. As obrigaes dotadas desses elementos constitutivos, so chamadas de perfeitas ou obrigaes civis. Contrapem-se s obrigaes naturais que, grosso modo, podem-se denominar de incompletas. Diferem ainda das obrigaes propter rem, que congregam elementos ora de direitos reais ora de obrigaes civis.

    Obrigaes Naturais

    O estudo das obrigaes naturais dotado de certos particularismos. Se-gundo a viso de alguns autores, elas se colocam num caminho intermedirio

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 23

    entre o domnio moral e o campo jurdico. No so de modo algum exclusi-vamente morais, pois fato inconteste que o direito as confere no s efeitos, como tambm certa proteo jurdica ainda que incompleta.

    De premente importncia verifi car que a juridicidade da obrigao na-tural somente se manifesta no momento de seu cumprimento. Antes que esse ocorra, a obrigao natural, no sendo dotada de coercibilidade, encontra-se em estado de latncia. A exemplo dos deveres morais, no pode ningum demandar o seu cumprimento. Paradoxalmente, no adimplemento da obri-gao que corresponde concomitantemente ao momento de extino que surge a sua face jurdica.

    Como j mencionado, as obrigaes naturais so obrigaes incompletas na medida em que apresentam como particularidade, o fato dos devedores no poderem ser judicialmente compelidos a pagar. No obstante, se forem cumpridas espontaneamente, ser tido por vlido o pagamento, que no po-der ser repetido (h reteno do pagamento, soluti retentio).

    No h que se equiparar obrigao natural com obrigao moral, que sen-do mero dever de conscincia, no obtm tutela jurdica.

    A distino da obrigao natural em relao obrigao civil est na no existncia de coercibilidade por parte da primeira. Contudo, se o devedor, de forma livre e consciente, cumpre uma obrigao natural, o pagamento considera-se legal. O pagamento era devido, mas de cumprimento no coer-cvel. No h aqui que se falar em mover o Poder Judicirio para reaver o que houver sido pago porque esse pagamento era de fato devido.

    A legislao no aborda em profundidade o tema das obrigaes naturais, competindo doutrina o estudo das suas caractersticas.

    No estudo do tema, surge de partida uma indagao: repetvel, isto , pode o devedor pedir de volta a quantia que tiver entregue, quando tal pa-gamento houver se operado com erro no que tange a coercibilidade dessa obrigao?

    Em outras palavras: o devedor, se soubesse da no coercibilidade caracte-rstica das obrigaes naturais no teria pago; o fez por pensar que tratava-se de obrigao civil, que alm de ser juridicamente exigvel, encontra no pa-trimnio do devedor a garantia do seu cumprimento. Tendo cometido esse equvoco, pode repetir?

    A espontaneidade ou no do pagamento nesse caso irrelevante. A obri-gao natural exigvel, embora no dotada de coatividade. Dessa forma, se o devedor a adimplir, esse pagamento vlido, no havendo o que se falar em repetio.

    A lei no minudencia os casos em que nos deparamos com obrigaes naturais, estando os mesmos esparsos na legislao. Grosso modo, podemos citar trs casos onde se pode encontrar obrigaes naturais: dvida prescrita, dvida de jogo e juros no estipulados.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 24

    Dvida Prescrita. Talvez seja a mais eloqente das hipteses de obrigao natural, sendo circunstncia que se desenvolve desde os trabalhos do Direi-to Romano. Evitando dvidas, o legislador manifesta expressamente o seu entendimento no art. 882 do CC, no qual opera equiparao entre dvida prescrita e obrigao natural:

    Art. 882. No se pode repetir o que se pagou para solver dvida prescrita, ou cumprir obrigao judicialmente inexigvel.

    Dvida de Jogo. Segundo dispe o art. 883 do Cdigo Civil, no ter direito a repetir aquele que deu alguma coisa para obter fi m ilcito ou no permitido pela legislao.

    Percebe-se aqui a expressa aplicao do princpio de que a ningum dado benefi ciar-se da prpria torpeza. Nesse sentido, a hiptese mais elucidativa sem dvida a de dvida de jogo. No pode o devedor, nesse caso, ser obrigado ao pagamento, mas, uma vez o tendo efetuado, no pode o solvens recobrar o que voluntariamente foi pago, excepcionando-se no caso de dolo, ou se o pre-judicado for menor ou interdito. Nesse sentido, o art. 814 do Cdigo Civil:

    Art. 814. As dvidas de jogo ou de aposta no obrigam a pagamento; mas no se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente menor ou interdito.

    1o Estende-se esta disposio a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novao ou fi ana de dvida de jogo; mas a nulidade resultante no pode ser oposta ao terceiro de boa-f.

    2o O preceito contido neste artigo tem aplicao, ainda que se tra-te de jogo no proibido, s se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos.

    3o Excetuam-se, igualmente, os prmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competio de natureza esportiva, intelectual ou artstica, desde que os interessados se submetam s prescries legais e regulamentares.

    De acordo com a redao do caput do art. 814, pouco importa que o jogo seja lcito ou ilcito, pois em qualquer uma das hipteses se estar diante de uma obrigao natural. Contudo, h que se ressalvar que a existncia de jogos que so regulamentados ou autorizados pelo prprio Estado. o caso das loterias ofi ciais, o jogo semanal da loto e da loteria esportiva, as apostas de turfe, entre outros. Assim, pode-se verifi car a existncia tanto de jogos proibidos, tolerados e autorizados.

    Os jogos autorizados so aqueles caracterizados pela regulamentao ofi -cial, e no so abarcados pelo disposto no art. 814 caput. Se o prprio Estado regula a atividade, cria uma obrigao civil com toda a sua exigibilidade.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 25

    Juros no estipulados. Sob a gide do antigo cdigo, a obrigao de pagar juros no convencionados era inexigvel, e quando realizada, poderia ser reti-da. O atual cdigo de 2002, em seu artigo 591, alterou a regra:

    Art. 591. Destinando-se o mtuo a fi ns econmicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de reduo, no podero exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalizao anual.

    Sendo assim, somente nos emprstimos sem fi ns econmicos o pagamen-to voluntrio de juros no convencionados constituir obrigao natural.

    Obrigaes propter rem

    A distino entre direitos reais e obrigacionais um expediente que serve muito mais para fi ns tericos do que para aplicao pratica dos profi ssionais jurdicos. Todavia, cumpre observar que essas diferentes modalidades de di-reitos constantemente se relacionam. No so universos de todo apartados e, nesse sentido, pode-se perceber situaes onde o proprietrio torna-se sujeito de obrigaes somente por ser proprietrio.

    Um exemplo de obrigao propter rem a necessidade de arcar com as despesas condominiais de imveis, conforme dispositivo constante do artigo art. 1315 do Cdigo Civil.12 A obrigao se vincula quele que detm a pro-priedade e no permanece com o mesmo no caso, por exemplo, de alienao do bem. O novo proprietrio quem arcar com as cotas vincendas, inclusi-ve com aquelas que mesmo vencidas ainda no foram pagas.

    Qualquer outro indivduo que o suceda nessa posio de proprietrio ou possuidor igualmente assumir tal obrigao. No obstante, o proprietrio poder liberar-se da obrigao no momento em que abdicar da condio de proprietrio.

    Analisando a etimologia da expresso propter rem percebe-se o contedo dessa obrigao: propter, como preposio signifi ca em razo de, em vista de. Trata-se, pois, de uma obrigao relacionada com a coisa (rem), uma obrigao que surge em vista dessa.

    A obrigao propter rem contraria a espcie regular de obrigaes. Nas obrigaes civis, os sucessores a ttulo particular no substituem em regra o sucedido em seu passivo. J nas obrigaes propter rem, o sucessor a ttulo singular assume automaticamente as obrigaes do sucedido, ainda que no saiba de sua existncia. o caso do adquirente de imvel que deve arcar com todas as taxas condominiais em mora.

    12 Art. 1315 do Cdigo Civil: O cond-mino obrigado, na proporo de sua parte, a concorrer para as despesas de conservao ou diviso da coisa, e a suportar os nus a que estiver sujeita. Pargrafo nico. Presumem-se iguais as partes ideais dos condminos.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 26

    nus reais e obrigaes propter rem

    De forma sucinta, pode-se afi rmar que o nus real um gravame que recai sobre determinada coisa, restringindo o direito de um titular de um direito real. Diferentemente do dever, no nus no h a fi gura da coatividade, po-dendo a parte interessada praticar o ato ou no, e nesse caso, sujeita-se a parte s suas conseqncias.

    Outras diferenas podem ser apontadas, dentre podem ser destacadas as seguintes:

    nus reais Obrigaes propter rem

    A responsabilidade pelo nus real limitada ao bem onerado,

    ao valor deste.

    Na obrigao propter rem, o obrigado responde com seu patrimnio,

    sem limite.

    O nus desaparece caso seja superado o seu objeto.

    Os efeitos da obrigao real podem permanecer, ainda que desaparecida

    a coisa.

    O nus gera sempre uma prestao positiva.

    J a obrigao propter rem pode surgir com uma prestao negativa.

    2. QUESTO DE CONCURSO:

    Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)

    40. Joo Carlos, proprietrio de um apartamento, no efetua o pagamento das prestaes condominiais h pelo menos 3 (trs) anos, o que j foi inclu-sive objeto de discusso em algumas Assemblias. No entanto, antes que o condomnio praticasse qualquer ato relativo cobrana das prestaes em atraso, Joo alienou o imvel a Maria Santos, sendo a escritura devidamen-te registrada no Registro Geral de Imveis, para os devidos efeitos legais. Sabendo-se que, aps um ms no apartamento, Maria foi citada em ao de cobrana proposta pelo condomnio, pode-se afi rmar que:

    a) a cobrana em face de Maria no legtima, apesar de se confi gurar obrigao propter rem, pois todos os condminos tinham cincia dos dbitos antes da negociao do imvel;

    b) a inrcia do condomnio enquanto Joo estava no imvel operou a remisso da dvida;

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 27

    c) a prestao condominial uma obrigao propter rem, sendo leg-tima a cobrana

    d) Joo pode efetuar o pagamento extrajudicial, e entrar com ao de regresso contra Maria;

    e) Maria no ter que pagar, pois o Cdigo Civil de 2002 alterou a natureza da obrigao condominial, tornando-a obrigao intuitu personae.

    Gabarito: 40 (c)

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 28

    AULA 6: CLASSIFICAO DAS OBRIGAES: OBRIGAES DE DAR, FAZER E NO-FAZER

    EMENTRIO DE TEMAS:

    Classifi cao das obrigaes quanto ao objeto Obrigao de dar e restituir coisa certa Responsabilidade pela perda ou deteriorao da coisa na obrigao de dar coisa certa Obrigaes de fazer e no fazer

    LEITURA OBRIGATRIA:

    Birenbaum, Gustavo. Classifi cao: Obrigaes de dar, fazer e no fazer, in Gustavo Tepedino (org) Obrigaes: Estudos na perspectiva civil-consti-tucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 121/146.

    LEITURAS COMPLEMENTARES:

    Lbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigaes. So Paulo: Saraiva, 2005; pp. 112/133. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Cdigo Civil interpretado conforme a Consti-tuio da Repblica, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 491/523.

    1. ROTEIRO DE AULA:

    Classificao das obrigaes quanto ao objeto

    Talvez a mais usual classifi cao das obrigaes seja aquela que a divide em obrigaes de dar, fazer e no fazer. Trata-se de uma classifi cao que tem em foco o objeto da relao obrigacional (prestao) para determinar o enqua-dramento de cada obrigao analisada.

    Na terminologia romana clssica, a prestao podia consistir num dare, num facere ou ainda num praestare. O facere, que hoje equivaleria obri-gao de fazer, englobava em seu conceito o que atualmente se defi ne como obrigao de no fazer.

    A obrigao de dar indica o dever de transferir ao credor alguma coisa ou alguma quantia. A obrigao de fazer aquela na qual o devedor se incumbe de praticar determinado ato, sendo essa ao a prestao. O objeto da obriga-

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 29

    o a prpria prestao, ou seja, a realizao de uma atividade. Por fi m, na obrigao de no fazer, deve o devedor se abster da prtica de um determi-nado ato. Essa uma conduta omissiva, ou seja, uma absteno de praticar determinado ato.

    As obrigaes de dar e fazer so obrigaes positivas, ao passo que as obri-gaes de no fazer, marcadas pela necessidade de absteno, so as obriga-es negativas.

    Obrigao de dar e restituir coisa certaA noo contida na obrigao de dar pode parecer bastante simples, pois

    consiste, em linhas gerais, na entrega de uma coisa. Contudo, h certos ca-racteres que devem ser ressaltados, em especial, a distino existente entre o nosso sistema jurdico e outras opes legislativas estrangeiras.

    De acordo com a opo legislativa vigente, a obrigao de dar no importa na transferncia efetiva da coisa, mas apenas num comprometimento de sua entrega. Isso refl ete uma reminiscncia do Direito Romano onde a obrigao de dar refl etia apenas um crdito e no um direito real.

    importante compreender que a obrigao de dar gera apenas um direito coisa e no exatamente um direito real. No nosso sistema jurdico, para que se aperfeioe a propriedade quando derivada de uma obrigao, mister se faz a transcrio do ttulo no Registro de Imveis (quando se tratar de bem im-vel), ou a tradio13 da coisa (quando o bem objeto da prestao for mvel).

    No entanto, como lembra Silvio Venosa, as constantes reformas pelas quais passou o sistema de direito processual ptrio constituram um verdadei-ro elenco de medidas constritivas para o adimplemento coercitivo de obriga-es, como medidas cautelares, antecipaes de tutela, multas dirias ou pe-ridicas, aproximando muito os efeitos de direito obrigacional aos efeitos de direito real.14

    Em sistemas estrangeiros, como o italiano e o francs, a obrigao de dar cria por si s um direito real, isto , importa na transferncia da propriedade.

    Como j pode ser constatado, o verbo dar deve ser entendido como o ato de entregar. Dar coisa certa , portanto, entregar uma coisa determinada, perfeitamente caracterizada e individuada, diferente de todas as demais da mesma espcie. Esse entendimento foi expressamente enunciado no art. 313 do atual Cdigo Civil:

    Art. 313. O credor no obrigado a receber prestao diversa da que lhe devida, ainda que mais valiosa.

    Tendo em vista esse enunciado, verifi camos que o credor no obrigado a receber prestao outra que no a que lhe devida. O fato dessa prestao, do bem oferecido ou do ato que se intenta realizar, ser ainda mais valioso, nada

    13 O vocbulo tradio aqui usado em sentido tcnico-jurdico representando o ato de entregar a coisa, ato esse que segundo nosso sistema jurdico, trans-fere a propriedade de um bem mvel.14 Silvio Venosa. Direito Civil, v. 2. So Paulo: Atlas, 2004; p. 83.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 30

    infl ui nessa faculdade do credor. Ainda que no estivesse expressamente previs-to, esse princpio, segundo regras gerais do direito, seria plenamente aplicvel.

    A obrigao de restituir se processa de forma semelhante, diferenciando-se pelo fato de que o credor receber aquilo que j lhe pertence.

    O princpio da acessoriedade plenamente aplicvel s obrigaes de dar coi-sa certa (art. 233 CC) e deve ser entendido em conformidade com o artigo 237:

    Art. 233. A obrigao de dar coisa certa abrange os acessrios dela embora no mencionados, salvo se o contrrio resultar do ttulo ou das circunstncias do caso.

    Art. 237. At a tradio pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acrescidos, pelos quais poder exigir aumento no pre-o; se o credor no anuir, poder o devedor resolver a obrigao.

    Pargrafo nico. Os frutos percebidos so do devedor, cabendo ao credor os pendentes.

    Nesse particular, a preocupao da lei abrange tambm os acessrios de natureza incorprea. Trata-se do exemplo no qual o alienante de uma deter-minada coisa responde pela evico da mesma.

    Responsabilidade pela perda ou deteriorao da coisa na obrigao de dar coisa certa

    No estudo da responsabilidade pelas hipteses de perda ou deteriorao da coisa, de grande relevncia precisar-se o momento da tradio da mesma.

    Perda o desaparecimento completo da coisa para fi ns jurdicos. o caso da destruio por incndio ou a ocorrncia de furto. Em suma, qualquer hiptese na qual se verifi ca a indisponibilidade completa do objeto na sua acepo patrimonial.

    O elemento mais importante no estudo da responsabilidade a aferio da existncia ou no de culpa por parte do devedor. Em todas as hipteses em que o mesmo agir de alguma forma que implique em culpa de sua parte surgir a necessidade de indenizao por perdas e danos.

    A perda da coisa antes da tradio est regulada no art. 234 do Cdigo Civil, o qual assim dispe:

    Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradio, ou pendente a condio suspensiva, fi ca resolvida a obrigao para ambas as partes; se a perda resultar de cul-pa do devedor, responder este pelo equivalente e mais perdas e danos.

    Se o bem se perde antes do momento aprazado para a entrega, como no exemplo do cavalo que morre no pasto quando vitimado por um raio, h o fi m da obrigao sem qualquer forma de nus para as partes. Logicamente, se

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 31

    o bem destrudo j tiver sido pago, ou tiver havido qualquer forma de adian-tamento de valor, o mesmo dever ser devolvido com a atualizao monet-ria. Isso corolrio lgico do princpio que veda o enriquecimento ilcito.

    A parte fi nal do art. 234 menciona que resultando a perda por culpa do devedor, responder o mesmo pelo equivalente, mais perdas e danos. Nesse caso, deve-se ressaltar o disposto no art. 402 do CC.15

    Voltando ao exemplo acima suscitado, se ao invs de vitimado por um raio o cavalo viesse a perecer por culpa do devedor, surgiria a necessidade do culpado pagar o valor do animal acrescido de eventuais perdas e danos. Essas perdas e danos abarcariam o montante de prejuzo decorrente do no recebimento de bem por parte do credor. Esse prejuzo no pode enveredar pelo campo da abstrao, mas, pelo contrrio, deve ater-se ao prejuzo que pode efetivamente ser comprovado. Nesse sentido, poderia o credor alegar prejuzo pela impossibilidade de utilizar o animal na funo de reprodutor, na apresentao em exposies, ou na revenda do mesmo.

    Obrigao de dar coisa incertaA obrigao de dar coisa incerta implica na entrega de quantidade de certo

    gnero, e no na de uma coisa individualizada. O art. 243 do Cdigo Civil, sobre o tema, esclarece que:

    Art. 243. A coisa incerta ser indicada, ao menos, pelo gnero e pela quantidade.

    Incerteza aqui no implica em indeterminao, mas sim, como alude o art. 243, numa determinao feita de modo genrico. Como exemplo de en-trega de coisa incerta, pode-se citar: a entrega de duzentos quilos de ouro, ou ainda de trezentos livros de direito civil, de mesmo ttulo, do mesmo autor e da mesma edio.

    A obrigao de dar coisa incerta se caracteriza pela existncia de um mo-mento que antecede entrega da coisa, momento esse denominado concen-trao. Ele corresponde escolha da coisa que vai de ser entregue, e a partir dele a obrigao ser regida pelas regras da obrigao de dar coisa certa. Dessa forma podemos observar a transformao da obrigao de dar coisa incerta, de carter marcadamente genrico, em obrigao de dar coisa certa, que uma obrigao especfi ca.

    A obrigao de dar coisa incerta , em tese, mais favorvel ao devedor, uma vez que a obrigao corresponde a da entrega de uma coisa ou um conjunto delas tendo em vista o seu gnero. O objeto das obrigaes de dar coisa in-certa constitudo por coisas fungveis.

    Por outro lado, nas obrigaes de dar coisa incerta, a responsabilidade quanto ao perecimento da coisa tambm ser maior para o devedor: Enquan-to na obrigao de dar coisa certa, a perda da coisa sem culpa do devedor de-

    15 O art. 402, que trata das perdas e danos, possui a seguinte redao: Art. 402. Salvo as excees expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, alm do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 32

    riva na resoluo da obrigao, na obrigao de dar coisa incerta a prestao ainda ser devida. A razo disso a aplicao da regra genus nunquam perit (o gnero nunca perece antes da escolha). Essa regra destacada no art. 246 do Cdigo Civil:

    Art. 246. Antes da escolha, no poder o devedor alegar perda ou deteriorao da coisa, ainda que por fora maior ou caso fortuito.

    Em relao escolha, ou seja, o momento de concentrao da obrigao, o art. 245 dispe que:

    Art. 245. Cientifi cado da escolha o credor, vigorar o disposto na Seo antecedente.

    Em sntese: a obrigao de dar coisa incerta perdura at o momento de es-colha. At esse momento, a obrigao tinha em vista o gnero e a quantidade da coisa objeto da prestao. Depois da escolha, esse objeto individuado, especifi cado. A obrigao transmuda-se para uma obrigao de dar coisa certa e, como tal, deve ser pautada pelas regras da seo antecedente.

    Ressalte-se que essa escolha da obrigao obedece a determinados critrios constantes dos artigos 244 e 245 do Cdigo Civil. A faculdade de realizar a escolha dever ser decidida pela conveno entre as partes, mas no silncio destas, competir ao devedor.

    As obrigaes de dar coisa incerta tm por objeto coisas determinadas pelo gnero e pela quantidade. Pode ocorrer, no entanto, que sendo essas coisas de existncia restrita, toda a espcie dentro da qual a obrigao esteja inserida venha a se extinguir. Nesse caso, no obstante a falta de previso legal, a dou-trina converge no sentido de dissoluo da obrigao sem que o devedor seja responsabilizado por perdas e danos.

    Obrigaes de fazer e no fazerA obrigao de fazer importa numa atividade do devedor. O contedo

    dessa obrigao uma atividade, seja ela eminentemente fsica ou intelectual. Da mesma forma que a obrigao de dar, trata-se de uma obrigao positiva.

    Essa obrigao de fazer pode ser contrada tendo em vista a fi gura do deve-dor, no se admitindo que outro a realize. Isso se daria, por exemplo, quando o devedor fosse um artista famoso e estivesse obrigado a pintar um quadro. No prestaria o quadro de qualquer pessoa, mas sim o daquele artista que congrega caractersticas a ele inerentes.

    Essa regra redunda da dico do art. 247 do Cdigo Civil, que determina:

    Art. 247. Incorre na obrigao de indenizar perdas e danos o deve-dor que recusar a prestao a ele s imposta, ou s por ele exeqvel.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 33

    Essas so as obrigaes de fazer de natureza infungvel, tambm conhe-cidas como intuitu personae. De acordo com elas, a obrigao assumida tendo em vista a fi gura do devedor e este no pode ser substitudo. Essa impossibilidade deriva tanto da natureza da obrigao, como no exemplo do pintor do quadro, como da livre conveno das partes, quando mesmo havendo outras pessoas que poderiam executar a mesma tarefa, acertam os contratantes no sentido da impossibilidade de substituio do devedor.

    Na ausncia de conveno, compete analisar o caso concreto para se veri-fi car a existncia ou no desse carter intuitu personae.

    Em havendo impossibilidade da execuo por terceiro de obrigao fung-vel, o art. 249 enuncia a seguinte regra:

    Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, ser livre ao credor mand-lo executar custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuzo da indenizao cabvel.

    Pargrafo nico. Em caso de urgncia, pode o credor, independen-temente de autorizao judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.

    A distino entre as obrigaes de dar e de fazer pode se mostrar, certas vezes, de difcil apreciao. O critrio mais usual verifi car se esse dar ou no conseqncia direta da obrigao de fazer.

    Se o devedor deve previamente confeccionar o bem para ento entreg-lo, est-se diante de uma obrigao de fazer. Se por outro lado, o ato de constru-o, anterior a entrega do bem, no fi ca a cargo do devedor, trata-se de uma obrigao de dar.

    A questo da coatividade no caso de inadimplemento no deixa de ser ou-tro fator diferenciador. As obrigaes de dar autorizam, em regra, a execuo coativa, ao passo que o mesmo no ocorre nas obrigaes de fazer. Por conta de uma srie de valores encampados pelo ordenamento, os indivduos no podem ser compelidos a executar atividades contrariamente a sua vontade. No pode o Estado intervir diretamente compelindo o devedor a prestar, podendo valer-se somente de meios indiretos, como cominao de multa ou a condenao do devedor a arcar com perdas e danos.

    As obrigaes de fazer podem ento ser descumpridas atentando-se a trs situaes distintas:

    Quando a prestao se torna impossvel, por culpa do devedor; Quando a prestao se torna impossvel, sem culpa do devedor; e Quando o devedor se recusa ao cumprimento da obrigao.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 34

    A dinmica de cumprimento da obrigao assume novos contornos com as recentes alteraes no cdigo de processo civil, em especial as modifi caes que surgiram nos arts 273 e 461 do CPC, e que colocam disposio do juiz uma srie de instrumentos voltados execuo especfi ca da obrigao assu-mida, como a cominao de multa diria em virtude do descumprimento.

    As obrigaes de no fazer so obrigaes negativas. Segundo essas obriga-es, o devedor se compromete a manter uma absteno.

    O devedor se compromete a no praticar determinada atividade que, sob condies normais, no encontraria qualquer restrio. Vale destacar que a necessidade de licitude, inerente a todos os negcios jurdicos, assume aqui uma dimenso particular: a obrigao de no fazer no pode atentar contra a liberdade individual. Dessa maneira, ilcita a obrigao de no contrair ma-trimnio, de no gerar descendentes, de no professar determinada religio.

    Como exemplos de obrigaes de no fazer podemos destacar a obrigao do vizinho em no usar aparelhos sonoros em volume alto, de no bloquear servido a imvel, de no sublocar, de no revelar segredo industrial, en-tre outros. Um exemplo bem interessante a clusula de raio que consiste na estipulao entre vendedor e comprador, mediante a qual o alienante se compromete a no abrir negcio do mesmo ramo nas proximidades. Essa matria ser analisada na aula sobre o princpio da autonomia da vontade nos contratos.

    Vale ressaltar que justamente a absteno da prtica de uma atividade, a qual de outra forma seria plenamente admissvel, que representa o cumpri-mento dessa modalidade de obrigao. O devedor cumpre a obrigao a todo momento, sempre que pode executar a ao especifi cada, mas no faz.

    O art. 250 determina uma hiptese de extino desse tipo de obrigao, defi nindo que:

    Art. 250. Extingue-se a obrigao de no fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossvel abster-se do ato, que se obrigou a no praticar.

    Na hiptese aqui destacada o devedor d ensejo prtica do ato pela im-possibilidade de abster-se da conduta. No h culpa na prtica desse ato. Por outro lado, se a situao diversa, e o devedor culposamente enseja a execuo da ao a qual devia abster-se, dever arcar com perdas e danos face ao credor.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 35

    2. QUESTO DE CONCURSO:

    Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) pro-va azul

    30. Quando se impossibilita a absteno do fato, sem culpa do devedor, a obrigao extingue-se. Tal hiptese ocorre nos casos de obrigao:

    a) de no fazer;b) de fazer;c) de dar coisa incerta;d) extintiva;e) alternativa.

    Gabarito: 30 (a)

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 36

    AULA 7: CLASSIFICAO DAS OBRIGAES: OBRIGAES INDIVISVEIS, SOLIDRIAS E ALTERNATIVAS

    EMENTRIO DE TEMAS:

    Obrigaes Divisveis e Indivisveis Pluralidade de Credores e Devedores Indivisibilidade e Solidariedade Solidariedade Ativa Solidariedade Passiva Obrigaes Cumulativas e Alternativas Concentrao e cumprimento da obri-gao alternativa Obrigaes Facultativas Obrigaes Principais e Acessrias

    LEITURA OBRIGATRIA:

    Lbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigaes. So Paulo: Saraiva, 2005; pp. 134/166.

    LEITURAS COMPLEMENTARES:

    Sampaio da Cruz, Gisela. Obrigaes alternativas e com faculdade alter-nativa. Obrigaes de meio e de resultado, in Gustavo Tepedino (org) Obriga-es: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 147/168. Zangerolame, Flavia Maria. Obrigaes divisveis e indivis-veis e obrigaes solidrias, in Gustavo Tepedino (org) Obrigaes: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 181/210.

    1. ROTEIRO DE AULA:

    Obrigaes Divisveis e Indivisveis

    Nem sempre as obrigaes se apresentam de forma singularizada. Nas cha-madas obrigaes complexas, por exemplo, pode-se identifi car a pluralidade de credores ou de devedores, ou ainda a pluralidade de objetos da prestao.

    Ao qualifi car as relaes obrigacionais quanto divisibilidade (divisveis ou indivisveis) deve-se ter em mente os seguintes critrios: (i) divisveis so as obrigaes passveis de cumprimento fracionado; (ii) indivisveis so as obrigaes que s podem ser cumpridas em sua integralidade.

    A noo de indivisibilidade se encontra na prpria lei, expressa atravs do art. 258 do Cdigo Civil:

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 37

    Art. 258. A obrigao indivisvel quando a prestao tem por ob-jeto uma coisa ou um fato no suscetveis de diviso, por sua natureza, por motivo de ordem econmica, ou dada a razo determinante do negcio jurdico.

    Logicamente, considerado sob o aspecto material, tudo pode ser fracionado. Contudo, na acepo jurdica, a obrigao considerada divisvel quando as partes fracionadas conservam as mesmas propriedades outrora encontradas no todo, notadamente o seu valor econmico. Em certa obrigao que foi dividida, o valor da soma de cada uma das fraes deve ser semelhante ao valor do todo.

    Imagine-se o seguinte exemplo: um cavalo um bem indivisvel e, por-tanto, a obrigao de entregar um determinado cavalo (obrigao de dar) tambm no pode ser fracionada; por outro lado, a obrigao de entregar du-zentas sacas de arroz pode ser perfeitamente dividida. Nesse segundo exem-plo, a entrega de cem sacas de cada vez no implicaria diminuio do valor econmico atribuvel ao todo.

    O exemplo do cavalo, suscitado acima, um caso de indivisibilidade ma-terial. Decorre da prpria natureza do objeto envolvido na prestao. Em outros casos, a indivisibilidade pode resultar de fora da lei, sendo jurdica ou mesmo da conveno entre os contratantes, quando ser convencional.

    A indivisibilidade jurdica pode se manifestar da seguinte forma: do ponto de vista ftico, todo imvel passvel de fracionamento, mas a lei pode criar restries de zoneamento proibindo que um imvel seja dividido de forma a se alcanar metragem inferior a um determinado parmetro.

    Em outros casos, a vontade das partes que pode tornar o objeto de uma prestao, que de incio perfeitamente divisvel como a obrigao de entre-gar uma tonelada de soja em indivisvel. Nesse caso, a vontade das partes se manifestou no sentido de que a obrigao s poder ser cumprida por inteiro. Essa possibilidade enunciada, inclusive, atravs da redao do art. 314 do Cdigo Civil, sendo decorrncia lgica da noo de que o credor no obri-gado a receber de forma diversa do estipulado.

    Art. 314. Ainda que a obrigao tenha por objeto prestao divis-vel, no pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim no se ajustou.

    A par das consideraes aqui j traadas, inclusive a da enunciao expres-sa da lei acerca da noo de indivisibilidade, deve-se buscar auxlio nos artigos 87 e 88 do Cdigo Civil para a defi nio precisa da idia de indivisibilidade.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 38

    Art. 87. Bens divisveis so os que se podem fracionar sem alterao na sua substncia, diminuio considervel de valor, ou prejuzo do uso a que se destinam.

    Art. 88. Os bens naturalmente divisveis podem tornar-se indivis-veis por determinao da lei ou por vontade das partes.

    O cerne do conceito de indivisibilidade reside na possibilidade ou impos-sibilidade de fracionamento do objeto da prestao. Adicionalmente, no basta s essa considerao quanto viabilidade da diviso, mas se requer, igualmente, a visualizao de uma pluralidade de sujeitos, pois do contrrio no haver sentido em se realizar essa distino.

    Pluralidade de Credores e DevedoresA pluralidade de devedores ou de credores matria tratada, inicialmente,

    no art. 257 do Cdigo Civil, da seguinte forma:

    Art. 257. Havendo mais de um devedor ou mais de um credor em obrigao divisvel, esta presume-se dividida em tantas obrigaes, iguais e distintas, quantos os credores ou devedores.

    Nesse dispositivo a lei opera a presuno de que a obrigao se divide quando se d a pluralidade de agentes em um ou em ambos os plos da re-lao. Quando, ao contrrio, verifi ca-se a existncia de um s credor e um s devedor, tem-se a necessidade de que a obrigao se realize de uma s vez, excetuando-se os casos em que as partes acordaram o pagamento fracionado.

    Na pluralidade de devedores, quando a prestao for indivisvel, isto , quando no puder ser fracionada sob pena de se desnaturar o seu valor econ-mico, ser manejada a soluo prevista pelo art. 259, caput, do Cdigo Civil:

    Art. 259. Se, havendo dois ou mais devedores, a prestao no for divisvel, cada um ser obrigado pela dvida toda.

    Pargrafo nico. O devedor, que paga a dvida, sub-roga-se no direi-to do credor em relao aos outros coobrigados.

    O pargrafo nico dispe sobre situao que ser pormenorizada mais adiante, no estudo dos efeitos da sub-rogao. Por ora, vale destacar que sub-rogao, nesse caso, um expediente jurdico mediante o qual o devedor que pagou assumir a posio de credor em relao aos demais devedores. Conforme ser examinado mais adiante, a sub-rogao constitui uma das modalidades especiais de pagamento.

    Nesse caso de pluralidade no plo passivo em obrigao cuja prestao indivisvel, embora cada um dos devedores deva apenas frao da obrigao, a sua liberao est condicionada entrega do todo.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 39

    Na situao em que dois devedores comprometem-se a entregar um deter-minado veculo no possvel o fracionamento. Um deles entregar o veculo em sua totalidade, sub-rogando-se no direito de demandar do outro devedor o valor referente parte desse devedor que no entregou diretamente o bem.

    Os devedores podem tanto ser responsveis pela prestao em partes iguais ou em qualquer outra proporo fi xada quando da pactuao do negcio jurdico. O negcio jurdico deve ser sempre examinado de modo a se identi-fi car que parte compete a cada indivduo na partio da dvida. Igual racioc-nio deve ser empregado na abordagem do art. 261 do Cdigo Civil.

    Adicionalmente, se ao contrrio, a prestao indivisvel for devida a uma plu-ralidade de credores, abrir-se- a possibilidade de cada um deles demandar a inte-gralidade da dvida. Nesse sentido, dispem os arts. 260 e 261 do Cdigo Civil:

    Art. 260. Se a pluralidade for dos credores, poder cada um destes exi-gir a dvida inteira; mas o devedor ou devedores se desobrigaro, pagando:

    I a todos conjuntamente;II a um, dando este cauo de ratifi cao dos outros credores.Art. 261. Se um s dos credores receber a prestao por inteiro, a

    cada um dos outros assistir o direito de exigir dele em dinheiro a parte que lhe caiba no total.

    A obrigao una e indivisvel. O devedor paga por inteiro, dado que o fracionamento implicaria no perecimento da coisa. Pagar a um credor que igualmente se obriga a repassar aos outros o quinho respectivo. Essa a teleologia do art. 261. Aqui tambm deve se examinar o negcio jurdico para saber qual a parte que incumbe a cada credor, presumindo-se a partio eqitativa no caso de omisso.

    Outra hiptese peculiar o caso de remisso da dvida por parte de um dos credores. Ela vem regulada pelo art. 262 CC:

    Art. 262. Se um dos credores remitir a dvida, a obrigao no fi car extinta para com os outros; mas estes s a podero exigir, descontada a quota do credor remitente.

    Pargrafo nico. O mesmo critrio se observar no caso de transa-o, novao, compensao ou confuso.

    A remisso da dvida por parte de um credor signifi ca que o mesmo abriu mo do seu cumprimento. No entanto, quando a prestao indivisvel os demais cre-dores no podem ser prejudicados. Nesse caso, a dvida deve ser paga aos credores no remitentes, mas estes, ao exigi-la, devem descontar a quota remitida.

    A converso de uma obrigao em perdas e danos implica na perda do seu carter de indivisvel:

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 40

    Art. 263. Perde a qualidade de indivisvel a obrigao que se resolver em perdas e danos.

    1o Se, para efeito do disposto neste artigo, houver culpa de todos os devedores, respondero todos por partes iguais.

    2o Se for de um s a culpa, fi caro exonerados os outros, respon-dendo s esse pelas perdas e danos.

    Se a indenizao tiver sido motivada por culpa imputvel a todos os de-vedores, respondero eles por partes iguais (1). Por outro lado, se a culpa for de um s, apenas este responder por perdas e danos (2). Destaque-se, evidentemente, que pelo valor da prestao respondero todos.

    Outro ponto que merece destaque a questo da prescrio. Ela aproveita a todos os devedores, mesmo que seja reconhecida a apenas um deles; da mesma forma, sua suspenso ou interrupo aproveita ou prejudica a todos. Na mesma linha, certo afi rmar que qualquer ato defeituoso em relao a uma das partes danifi ca o ato com relao aos demais integrantes da relao obrigacional.

    Indivisibilidade e Solidariedade

    H necessidade de se esclarecer as principais distines entre os institutos da indivisibilidade e da solidariedade, uma vez que existe, na prtica, certa confuso sobre a sua identifi cao e efeitos:

    OBRIGAES INDIVISVEIS OBRIGAES SOLIDRIAS

    Quanto causaA causa geralmente resulta da natureza da prestao. Pode, entretanto, resultar

    da conveno das partes.

    A causa reside no prprio ttulo, no vnculo jurdico.

    Quanto parte devida

    O demandado no devedor do total, mas a natureza da prestao no admite

    o cumprimento fracionado.O demandado devedor do total.

    Derivaes da natureza

    A indivisibilidade geralmente objetiva na medida em que decorre na natureza

    da prestao.

    A regra que a solidariedade seja sub-jetiva. artifcio jurdico para reforar o vnculo e facilitar o adimplemento da

    obrigao.

    de origem material. de origem tcnica. Decorre da lei ou

    do ttulo constitutivo (art. 265).

    Converso em perdas e danos

    Quando se converte em perdas e danos, desaparece a caracterstica de indivisibi-

    lidade (art. 263).

    Quando se converte em perdas e danos o atributo da solidariedade permanece.

  • DIREITO DAS OBRIGAES E RESPONSABILIDADE CIVIL

    FGV DIREITO RIO 41

    Obrigaes Solidrias

    A solidariedade um expediente de ordem tcnica que tem por escopo re-forar o vnculo, facilitando o adimplemento da obrigao. Em linhas gerais implica na possibilidade de reclamar a totalidade da prestao. Ela pode estar em qualquer um dos plos da obrigao e dessa forma, temos a solidariedade ativa solidariedade de credores , e a solidariedade passiva solidariedade de devedores.

    A solidariedade no deriva da natureza das prestaes, mas sim da vontade das partes ou da lei. Sendo assim, solidariedade no se presume. A sua carac-terizao deriva do disposto no art. 264 do Cdigo Civil:

    Art. 264. H solidariedade, quando na mesma obrigao concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, dvida toda.

    No se deve confundir solidariedade com certas situaes em que dois ou mais agentes devem arcar integralmente com a prestao. So exemplos disso: a responsabilidade concomitante do condutor do veculo e de seu proprietrio que respondem pela totalidade da indenizao; os coobrigados nos ttulos de crdito; a possibilidade de demandar tanto do autor do incndio como da seguradora.

    Esses so exemplos das chamadas obrigaes in solidum, que possuem como caractersticas gerais: (i) a independncia dos liames que unem os deve-dores ao credor o que implica independncia no que toca pres