Direita

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A “Direita”: Causas do Declínio. Muitos que se dizem de direita queixam-se de que esta não tem representação no mainstream político e comunicacional. Tudo é de esquerda agora, variando apenas na intensidade do igualitarismo apregoado. Porém, o termo “direita” é usado em todo o lado e temos a sensação de que ela existe e que se move. Ela tem representantes na televisão a verbalizar coisas supostamente de direita; e mais, alegadamente há gente de direita a escrever na imprensa e em blogues. Na realidade, com as devidas excepções, não há direita no discurso mainstream político e tal explica-se com uma das mais ferozes críticas à postura conservadora: que esta se limita a conservar as revoluções dos outros (i.e. da esquerda). Se há algo que difere a esquerda da direita é a perspectiva moral com que encaram a igualdade e a desigualdade. Enquanto que a esquerda faz do igualitarismo um deus intocável, um bem moral último, a direita vê a desigualdade humana como natural e respeitante da ordem humana e daí deriva a sua força moral positiva. Por outras palavras, a direita idealiza a qualidade (que implica desigualdade) e a esquerda idealiza a igualdade. Desta forma, talvez fosse mais correcto usar os termos “vertical (hierarquia) vs horizontal (igualdade)” em vez do clássico “direita vs esquerda” que saiu do parlamento francês durante a revolução francesa.

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Estudo sobre a Direita Política

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A “Direita”: Causas do Declínio.

Muitos que se dizem de direita queixam-se de que esta não tem

representação no mainstream político e comunicacional. Tudo é de esquerda

agora, variando apenas na intensidade do igualitarismo apregoado. Porém, o

termo “direita” é usado em todo o lado e temos a sensação de que ela existe e

que se move. Ela tem representantes na televisão a verbalizar coisas

supostamente de direita; e mais, alegadamente há gente de direita a escrever

na imprensa e em blogues. Na realidade, com as devidas excepções, não há

direita no discurso mainstream político e tal explica-se com uma das mais

ferozes críticas à postura conservadora: que esta se limita a conservar as

revoluções dos outros (i.e. da esquerda).

Se há algo que difere a esquerda da direita é a perspectiva moral com

que encaram a igualdade e a desigualdade. Enquanto que a esquerda faz do

igualitarismo um deus intocável, um bem moral último, a direita vê a

desigualdade humana como natural e respeitante da ordem humana e daí

deriva a sua força moral positiva. Por outras palavras, a direita idealiza a

qualidade (que implica desigualdade) e a esquerda idealiza a igualdade. Desta

forma, talvez fosse mais correcto usar os termos “vertical (hierarquia) vs

horizontal (igualdade)” em vez do clássico “direita vs esquerda” que saiu do

parlamento francês durante a revolução francesa.

O problema daquilo que passa por direita hoje em dia é ter absorvido

muitos dos valores das revoluções igualitárias do passado e defendê-los como

se fossem seus. Muitos destes valores poderiam ser discutidos, mas para este

artigo interessam particularmente 3: liberalismo, materialismo e racionalismo.

Liberalismo

O liberalismo fez-se contra a tradição, contra a autoridade religiosa,

contra a aristocracia, ou seja, fez-se contra a ordem hierárquica natural que se

tinha desenvolvido na Europa durante milénios. Fez-se a favor do indivíduo e

da igualdade e liberdade do Homem. Do ponto de vista moral, o liberal

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considera que todos os homens são formalmente iguais e que no indivíduo e só

nele reside a soberania última. Daí a crença liberal em “direitos”, sejam eles

“humanos”, de propriedade ou de libertação. Esta foi uma revolução igualitária

contra a autoridade da tradição e que a direita tentou combater desde sempre.

Em Inglaterra, os liberais estavam à esquerda do parlamento e passaram o

século XIX a lutarem contra a ordem tradicional hierárquica.

Hoje em dia, perante o esmagador triunfo do liberalismo no ocidente do

pós guerra, a direita cedeu e abraçou o liberalismo. Regra geral, acredita em

“direitos humanos”, no mercado, no universalismo do Homem, no secularismo

de Estado, na democracia liberal, etc… Por outras palavras, acredita em todas

as revoluções feitas pela esquerda igualitária e agora convence-se que estas

são as suas causas.

Isto advém em grande parte da aversão patológica que a direita

geralmente tem a ideias abstractas. O “direitista” médio diz-se um homem

pragmático, desprovido de grandes utopias loucas, que gere o que a vida

apresenta, mas sem saber tornou-se num escravo das ideias igualitárias; pior,

convenceu-se que estas ideias são suas, mesmo que muitas vezes sinta que

elas não funcionam, ele acha que elas são moralmente boas.

Ao abraçar o liberalismo a direita ignorou a sua posição tradicional anti-

individualista baseada na família, nação, tradição, sangue, autoridade,

hierarquia e espiritualidade. Aliás, tirando os mais eruditos, os “direitistas”

médios não fazem ideia do que é a direita tradicional e acham que ser de

direita é defender o indivíduo até ao infinito. Não é surpreendente que a

esquerda tenha uma vida tão fácil e que mantenha a sua hegemonia, mesmo

quando o seu modelo social igualitário vai colapsando a olhos vistos. Assim,

perante a progressiva derrota da direita não é de admirar que o liberalismo

clássico, outrora uma ideologia de esquerda, seja agora o último refúgio da

direita que não tem coragem ou engenho para sair do actual paradigma; desta

forma,  a luta ideológica fica limitada a 2 liberalismos: o clássico (de inspiração

Lockeana) e o social de pendor ainda mais igualitário (de J. S. Mill a John

Rawls).

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Materialismo/Economicismo

Existe a ideia de que foi Marx quem nos trouxe o materialismo

(histórico), onde o fenómeno social é explicado segundo as condições

materiais existentes. Porém, tal como em tudo o resto, Marx limitou-se a seguir

a lógica do liberalismo clássico que colocou o foco da moralidade no material

quando fez da propriedade sinónimo de liberdade individual. A partir daí os

“direitos” ganharam uma componente material.

Hoje em dia tudo é explicado em termos materiais: quanto cresceu o

PIB? Qual a dívida pública? A política X cria ou não mais riqueza material?

Outras considerações à “direita”, especialmente de índole cultural e particular,

praticamente desapareceram do discurso político, permitindo à esquerda

basear todo o seu discurso na igualdade material (i.e. justiça social). Isto

baseia-se na assumpção de que se o problema do crescimento económico for

resolvido, tudo está resolvido. Porém, o que vemos no mundo é a conquista

demográfica de povos com culturas pouco materialistas, com práticas nada

liberais e com mercados muito menos desenvolvidos; e como se costuma dizer:

a demografia é destino. A resposta aqui está na cultura e no seu impacto. Nisto

a “direita” calou-se, ou quando fala é para criticar práticas anti-liberais de outros

povos (e.g. muçulmanos). Mais uma vez, a melhor defesa das revoluções

igualitárias e anti-tradicionais vem da actual “direita”.

Racionalismo

A direita sempre foi céptica em relação ao racionalismo. Sempre

assumiu que os homens são competitivos, instintivos e vítimas de paixões.

Reagiu negativamente contra o iluminismo alegando que a crença na razão é

simplesmente isso: uma crença infundada.

Porém, hoje a direita entregou-se de corpo e alma ao racionalismo,

esquecendo a velha máxima de David Hume que a “Razão é a escrava das

paixões”. Isto é particularmente evidente quando tenta convencer

racionalmente as massas de que o que é preciso são “contas em dia”,

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“austeridade”, “procura e oferta” e mercado (mais ou menos) livre. Como a

direita já devia saber, os seres humanos sentem primeiro e pensam depois

(quando pensam). A “direita” postula que é preciso austeridade e continhas no

sítio, mas como perdeu o lado do discurso que permitia ser convincente e

persuasiva (a nação, Portugal, a cultura, a “raça” portuguesa), tornou-se na

coisa menos apelativa de sempre … não admira que o povo seja todo de

esquerda. Ao ignorar o tribalismo natural e o emocionalismo humano a direita

entregou as cartas todas à esquerda. Ficando apenas com reivindicações de

baixos impostos, mercado globalista e austeridade sem ter valores colectivos

para oferecer. Isto, claro está, é a melhor receita para derrotas infinitas, quer na

frente económica, quer na frente cultural.

Em suma, não se combate a esquerda do século XXI com ideologias de

esquerda do século XIX.

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Faz Sentido ser de Direita, mas não Liberal

Depois de escrever o meu texto sobre o declínio da direita, o Rui

Albuquerque escreveu um texto com uma posição contrária aos meus

argumentos, apesar de não me mencionar no seu texto. Depois de ler o texto

em questão optei por fazer alguns comentários que me parecem vitais em

temas de filosofia política.

O Rui parece determinado em provar que o liberalismo clássico é uma

ideologia de direita. Vale a pena lembrar que no meu texto eu não disse que

este não era visto como de direita no actual momento. Perante a total rendição

da direita ao liberalismo, o liberalismo clássico apresenta-se como uma forma

menos igualitária do que o vigente liberalismo social. Mas, por todas as razões

que expliquei no meu texto, é uma teoria com fortes elementos igualitários,

anti-tradicionalistas e universalistas, que a afastam da direita tradicional. Uma

coisa é certa, um liberal clássico no século XIX era de esquerda de caras. Foi a

vitória da esquerda actual que os colocou na alegada “direita” sem que eles

saíssem do mesmo lugar.

Seja como for, há pontos na argumentação do Rui que violam as bases

consensuais da teoria política. O Rui alega que o que caracteriza a direita é o

individualismo (por oposição ao que eu escrevi: que a direita é tradicionalmente

anti-individualista, familista e tribal). Diz também que o indivíduo visto como

parte de um colectivo é uma posição de esquerda. Nas palavras do Rui:

“Enquanto que a direita vê nele o indivíduo, a esquerda

tem-no como cidadão. Nesta perspectiva, o homem é,

para a direita, por si mesmo, sujeito e objecto de direitos

face ao poder político, enquanto que, para a esquerda, ele

existe essencialmente na sua relação com a coisa

pública”

Obviamente, é possível subverter as bases da teoria política para

colocar o liberalismo na direita, mas basta abrir uma enciclopédia para

encontrar a definição básica de conservadorismo. Da Encyclopedia Brittanica:

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“Conservatism, political doctrine that emphasizes the

value of traditional institutions and practices.

Conservatism is a preference for the historically inherited

rather than the abstract and ideal. This preference has

traditionally rested on an organic conception of society -

that is, on the belief that society is not merely a loose

collection of individuals but a living organism comprising

closely connected, interdependent members.”

O conservadorismo é tribal e comunitário, considera as tradições locais e

particulares acima do indivíduo. E, claro, a não ser que achemos que o

conservadorismo é de esquerda, a lógica “a direita vê o indivíduo antes do

colectivo” não é válida.

O Rui escreve que “para a esquerda o homem nunca é, por si só,

suficiente”. Podemos aceitar perfeitamente esta definição. Porém, à direita,

aquilo que a esquerda pode chamar de cidadão, a direita tradicional chama de

“pertença” (membership). Como diria Roger Scruton, que talvez, quem sabe,

seja um “colectivista de esquerda”, todos nós precisamos de pertencer a um

grupo para nos identificarmos e lutarmos juntos por objectivos; que a felicidade

passa por essa submersão do eu num colectivo maior que nós.

Assim, é muito claro que a direita tradicional também não vê o homem

como suficiente por si só. E nem precisamos de recorrer a teorias Hobbesianas

para o verificar.

Depois há a questão da dominação e alteração do social pela via do

poder. O Rui escreve:

“A esquerda entende que o “mundo” pode ser

transformado por golpes de vontade e é o resultado de

forças inteligentes e direccionadas.”

Aqui eu tendo a concordar parcialmente. A esquerda tende a preferir a

ruptura porque num mundo onde a igualdade é uma utopia, é sempre preciso

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mudar algo mais. Onde eu discordo é que esta seja a única a agir com via a

transformar o social. Todos os governos, da esquerda à direita, tentam gerir a

sociedade no seu sentido, usando retórica, propaganda, valores ou

espiritualidade. As elites, para o bem ou para o mal, lideram e modelam as

massas. Mas mais, o mundo pode facto ser transformado com golpes de

vontade das elites. Se à esquerda temos exemplos como a Escola de

Frankfurt, à direita temos os conservadores/nacionalistas judeus que

visualizaram e criaram um etno-Estado para o seu povo. Nietzsche, que é

insuspeito de ser de esquerda, sabia bem que o mundo é transformado por

“golpes de vontade” (the will to power) dos homens com grandes capacidades.

Por fim, o Rui escreve que a direita existe quando existem direitos

negativos (universais e igualitários, suponho) protegidos por uma constituição

liberal. Nas palavras dele:

“Os direitos naturais do indivíduo à liberdade e à

propriedade, isto é, os direitos negativos sobre os quais o

estado não poderá nunca dispor, reconhecidos por via da

Constituição ou de outros instrumentos normativos que o

protejam perante o poder público, é marca da direita.”

Com isto, (e em forma de caricatura) somos obrigados a concluir que a

civilização ocidental viveu em esquerdismo durante milênios até que o

constitucionalismo liberal foi inventado pelos pensadores do iluminismo. Os

gregos clássicos, que na sua polis tinham um noção política tribal, distinguindo

perfeitamente os cidadãos dos escravos, eram portanto esquerdistas.

Esquerdistas estes que continuaram pelas monarquias divinas durante séculos

até que se inventou o constitucionalismo liberal. É caso para dizer que a

civilização ocidental foi inventada e vivida pela esquerda; isto claro, se

aceitarmos que a marca da direita são direitos naturais à liberdade e

propriedade pela via constitucional.

A meu ver, a distinção que ofereci de direita e esquerda no meu texto

anterior continua a ser a distinção fundamental desta divisão. Tenho agora o

prazer único de me citar; escrevi:

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“Se há algo que difere a esquerda da direita é a

perspectiva moral com que encaram a igualdade e a

desigualdade. Enquanto que a esquerda faz do

igualitarismo um deus intocável, um bem moral último, a

direita vê a desigualdade humana como natural e

respeitante da ordem humana e daí deriva a sua força

moral positiva. Por outras palavras, a direita idealiza a

qualidade (que implica desigualdade) e a esquerda

idealiza a igualdade.”

Se a direita idealiza a qualidade, essa qualidade significa hierarquia; não

só entre indivíduos, mas igualmente entre grupos.

Isto tudo, claro, para dizer que o que define a direita não poderá ser o

seu individualismo moral e muito menos o liberalismo constitucional.

Leitura complementar: Roger Scruton: How to be a Non-Liberal, Anti-Socialist

Conservative.

PS: Percebo que a minha posição seja anátema para muitos neste blogue,

porém, eu sou da opinião de que quando algo não está a funcionar é preciso

mudar e perceber as “causas da doença”. É assim que se vencem

determinadas lutas e é a obrigação daqueles que percebem os problemas

articulá-los perante a sua comunidade. Sei também que as comunidades

sobrevivem à volta de certos axiomas e que se tornam colectivamente

antagonistas quando esses axiomas são questionados. Se for esse o caso,

então a parte mais fraca é o dissidente e não a comunidade. Isto é algo que

temos de aceitar como uma evidência humana. Por isso, novas comunidades

se formam.

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Faz ainda algum sentido ser de “direita”?

Num tempo de diluição de fronteiras políticas e ideológicas, agravado

pela queda do muro de Berlim e pela convicção generalizada de que, desde

esse momento, o mundo vive numa panaceia de capitalismo liberal, questiona-

se frequentemente a pertinência de se manterem as categorias de “esquerda” e

“direita”, como se entre ambas, e dentro de cada uma delas, as diferenças

fossem tênues, ou mesmo inexistentes. Está também muito em voga a moda

de tentar criar novas categorias políticas que horizontalmente ocupem espaços

à direita e à esquerda, sem verdadeiramente se poderem catalogar numa ou

noutra posição. Para algumas pessoas, o liberalismo, o anarco-capitalismo e a

social-democracia (da «terceira via» blairiana) são bons exemplos de teorias e

práticas políticas que não se podem catalogar em nenhum daqueles dois

campos tradicionais. Frequentemente, ouvimos figuras históricas da esquerda,

como Mário Soares, acusarem correligionários seus, como Tony Blair ou

mesmo José Sócrates, de cedências ao “mercado” e ao “capitalismo”, como

ouvimos e lemos liberais e anarco-capitalistas a recusarem ser catalogados na

direita. Fará, então, algum sentido manter ainda essa dicotomia fundadora da

nossa modernidade política?

A minha resposta é claramente afirmativa: mais do que nunca, faz agora

sentido o aggiornamento político e ideológico à esquerda e à direita. E

acrescento que esta diluição só prejudica aqueles que defendem uma ideia

liberal da liberdade, o livre-mercado, a iniciativa privada, a redução do estado e

os direitos naturais do indivíduo. É graças a essa diluição e à crescente falta de

identidade política, que vemos a esquerda a condenar a direita e o “mercado”

ou o “neoliberalismo” (que ela habilmente utiliza como sinônimos) dos

resultados catastróficos das suas próprias políticas. Ou será que, por exemplo,

não foram José Sócrates e o governo do PS os responsáveis pela crise

econômica portuguesa, mas sim os “mercados especulativos”, a

“desregulamentação financeira”, enfim, o “neoliberalismo” os grandes

responsáveis, como nos pretendem impingir?

É da tradição católica dizer-se que o grande truque do diabo é negar a

sua inexistência. Com a falta de demarcação entre direita e esquerda, esta

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última, que manieta habilmente a comunicação social e, por meio dela, a

opinião pública, tem vindo a alijar as suas responsabilidades na crise dos

últimos anos, endossando-as a quem elas não são devidas, nem poderiam

nunca ser, desde logo, por ausência de responsabilidades governativas. Mas, a

“explicação” oficial, é que os pobres governos de esquerda ficaram reféns dos

grandes interesses dos criminosos mercados especulativos, inspirados por um

desapiedado «neoliberalismo», que agora há que dominar com férrea

regulamentação. As consequências disto, a não ser desmentido, poderão ser

avassaladoras para a liberdade. Até porque, no meio desta intencional

confusão, a esquerda não deixa para outros os seus próprios valores…

Como poderemos, então, estabelecer uma demarcação entre esquerda

e direita? Saliente-se, desde já, que se tratam de duas grandes famílias, de

dois ramos separados de um enorme tronco comum – a das ideologias

políticas modernas e democráticas, porque só destas faz sentido falar – que

conhecem, dentro de cada uma delas, variações consideráveis. Tem que

haver, todavia, um, ou vários, critérios de distinção, assim como elementos

comuns em cada uma delas, para que a distinção possa manter-se e fazer

sentido.

O primeiro e mais significativo de todos os critérios diferenciadores é o

da forma como esquerda e direita olham para o homem.

Enquanto que a direita vê nele o indivíduo, a esquerda tem-no como

cidadão. Nesta perspectiva, o homem é, para a direita, por si mesmo, sujeito e

objeto de direitos face ao poder político, enquanto que, para a esquerda, ele

existe essencialmente na sua relação com a coisa pública, sendo esta que lhe

garante os direitos (e impõe as obrigações) que a direita vê como naturais e

inerentes à sua condição.

Esta distinção parte de uma perspectiva diferente da natureza humana.

Para a direita, o homem não é naturalmente bom, tão-pouco é mau por

ter sido corrompido pela sociedade. Mas também não é naturalmente mau,

nem segue instintos que sejam antissociais ou destrutivos. Para a direita, o

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homem tem interesses e manifesta-os, defende-os e, se necessário for,

conflitua por eles, mas consegue habitualmente compor as suas necessidades

com as necessidades dos outros. É por isso que a direita acredita no princípio

da cooperação como instinto social primário, e que acredita que as pessoas

podem articular, entre si mesmas, os seus interesses fundamentais. Poderá

dizer-se, a este respeito, que a direita varia entre uma confiança plena nas

capacidades ordenadoras naturais dos indivíduos (o mercado) e uma confiança

reservada quanto a essas capacidades, confiando ao governo e às instituições

políticas e jurídicas (bem mais do que ao estado) os poderes necessários e

suficientes para evitar, ou dirimir, conflitos mais acentuados. No primeiro caso

temos as posições liberais, no segundo teremos as posições ideologicamente

mais conservadoras. Arriscaria, contudo, dizer que as segundas são, na

prática, a face político-governativa das primeiras, e que não existe verdadeira

antinomia política (que não teórica) entre ambas.

Em contrapartida, para a esquerda o homem nunca é, por si só,

suficiente. Ele é uma criatura indefesa, que carece de proteção. Seja pela via

hobbesiana, que alguma direita ideologicamente mais conservadora também

aceita, do perigo da conflitualidade social extremada, seja pela via mais

esquerdista da dominância de exploradores – detentores do capital – dos

pobres explorados – apenas detentores da força “bruta” do trabalho – a

esquerda considera que o homem só será objeto de direitos se esses direitos

forem reconhecidos e protegidos pelo estado (mais do que pelo governo). Por

isso, para a esquerda, antes do homem está o cidadão. Melhor dizendo, o

homem só o será em pleno se existir uma estrutura política que o proteja e lhe

confira os direitos fundamentais à liberdade e à igualdade. Também na

esquerda existem óbvias tonalidades de cores diferentes deste princípio, que

vão dos que pretendem a conciliação entre um estado interventor e um

mercado devidamente regulado, aos que pretendem que o mercado é sempre

uma fonte de desigualdade e discriminação, pelo que só subsidiariamente, face

ao poder público, poderá funcionar.

A segunda distinção tem a ver com a forma como a direita e a esquerda

vêem a sociedade.

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A direita considera a sociedade o resultado de forças que extravasam o

político, podendo essas forças oscilar do indivíduo isolado no universo ao

indivíduo como parte integrante de uma ordem transcendental. A esquerda

entende que o “mundo” pode ser transformado por golpes de vontade e é o

resultado de forças inteligentes e direcionadas. Enquanto que a direita olha

para a sociedade como o resultado da ação individual, e/ou da aprendizagem

com tradição cumulativa, da eficácia das instituições comunitárias, ou mesmo

da vontade superior de Deus, ela será sempre, de todo o modo, algo que não é

transformável por atos direcionado da simples vontade humana, a esquerda

olha para a sociedade como uma ideia moldável pelas convicções ideológicas

de quem a dirige, isto é, do governo regulamentador e intervencionista, atuante

sobre os indivíduos e a sociedade, ou mesmo de vanguardas ditas

esclarecidas.

Esta última distinção estabelece uma diferença subtil, mas substantiva,

quanto à forma como a esquerda e a direita olham para a razão humana.

Diferenciam, assim, o racionalismo político de uma e de outra, isto para os

ramos das duas famílias que adoptam o racionalismo como critério

fundamental da natureza humana. Enquanto que para a direita a razão é

sempre atributo do indivíduo, com o qual ele pode aprender, descobrir e tomar

decisões para a sua vida, para a esquerda existe uma razão coletiva das

coisas e dos movimentos da História que pode ser conhecida e manipulada por

quem governa a sociedade e os homens.

Como corolários destas duas essenciais diferenças, a esquerda e a

direita abraçam valores políticos e filosóficos bem diferenciados.

O primado do coletivo e do coletivismo, para as posições mais

extremadas, é apanágio da esquerda. O primado do indivíduo, ou do indivíduo

enquanto filho de Deus e centro do plano divino, para a direita mais próxima

das religiões tradicionais, é apanágio da direita.

A propriedade privada, enquanto direito a dispor de si mesmo ou

enquanto direito fundamental a dispor do que é seu por legítima aquisição,

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versus a sujeição da propriedade privada a critérios de utilidade e finalidade

pública, distinguem também a direita da esquerda.

Os direitos naturais do indivíduo à liberdade e à propriedade, isto é, os

direitos negativos sobre os quais o estado não poderá nunca dispor,

reconhecidos por via da Constituição ou de outros instrumentos normativos que

o protejam perante o poder público, é marca da direita. O estabelecimento, ou

a criação, dos direitos dos indivíduos, não enquanto tal, mas como cidadãos,

isto é, os direitos que o estado atribui às pessoas na sua relação com o poder

político é marca da esquerda.

O respeito pela tradição, enquanto experiência acumulada pelas

sucessivas gerações, é próprio da direita. A possibilidade de rupturas sociais,

mais ou menos violentas, com pendor revolucionário ou simplesmente dirigista,

é próprio da esquerda.

E, last but not least, a função da política e do governo. Seja por acreditar

numa ordem social espontânea, seja por duvidar da bondade do poder, seja

por um certo cepticismo antropológico, seja, ainda, por crer que existem

valores de ordem superior que não estão à disposição da simples vontade

humana, a direita oscila entre as posições liberais do ideal do não-governo e do

reconhecimento objetivo de um aparelho de poder público, que importa reduzir

ao mínimo expoente possível, e as posições mais conservadoras, segundo as

quais se aceita a necessidade de um governo concentrado nas funções

tradicionais da soberania (justiça, segurança, negócios estrangeiros) e

distanciado daquelas que pertencem ao domínio privado (economia, educação,

ambiente, etc.). Em qualquer dos casos, a direita defende sempre um governo

mínimo ou um governo com funções bem determinadas. Em contrapartida, o

voluntarismo idealista da esquerda atira-a para um governo de amplas

dimensões. Se o homem é um ser indefeso, se a sociedade é aquilo que nós

quisermos que ela seja e se o destino está nas nossas mãos,  então faz todo o

sentido que o político, este consubstanciado nos seus aparelhos de poder, o

estado e o governo, tenha poderes suficientes para proteger o homem e

transformar a sociedade. Num caso e no outro, significa isto que a função

principal do político, segundo a esquerda, é promover a igualdade entre os

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homens, de modo, primeiro, a protegê-los reciprocamente e a formar a

sociedade justa, depois. Para isso, impõe-lhes direitos e deveres que os

tornam cidadãos, isto é, iguais para e perante o estado, e promove as leis

necessárias à igualdade material, distribuindo recursos e desenvolvendo

políticas de promoção econômica e de igualdade social.

Este conjunto de diferenças não esgotará a distinção entre esquerda e

direita. Certamente que mais haverá a acrescentar e que certamente

encontraremos algumas exceções a estas regras. Todavia, parecem-me

suficientes para estabelecer critérios de diferenciação e para manter a utilidade

da dicotomia. E para dizer, também, que o liberalismo, por esta casa, o

entendemos, é de direita, apesar de haver quem, noutros lugares, se diga

liberal e de esquerda.