Direita
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A “Direita”: Causas do Declínio.
Muitos que se dizem de direita queixam-se de que esta não tem
representação no mainstream político e comunicacional. Tudo é de esquerda
agora, variando apenas na intensidade do igualitarismo apregoado. Porém, o
termo “direita” é usado em todo o lado e temos a sensação de que ela existe e
que se move. Ela tem representantes na televisão a verbalizar coisas
supostamente de direita; e mais, alegadamente há gente de direita a escrever
na imprensa e em blogues. Na realidade, com as devidas excepções, não há
direita no discurso mainstream político e tal explica-se com uma das mais
ferozes críticas à postura conservadora: que esta se limita a conservar as
revoluções dos outros (i.e. da esquerda).
Se há algo que difere a esquerda da direita é a perspectiva moral com
que encaram a igualdade e a desigualdade. Enquanto que a esquerda faz do
igualitarismo um deus intocável, um bem moral último, a direita vê a
desigualdade humana como natural e respeitante da ordem humana e daí
deriva a sua força moral positiva. Por outras palavras, a direita idealiza a
qualidade (que implica desigualdade) e a esquerda idealiza a igualdade. Desta
forma, talvez fosse mais correcto usar os termos “vertical (hierarquia) vs
horizontal (igualdade)” em vez do clássico “direita vs esquerda” que saiu do
parlamento francês durante a revolução francesa.
O problema daquilo que passa por direita hoje em dia é ter absorvido
muitos dos valores das revoluções igualitárias do passado e defendê-los como
se fossem seus. Muitos destes valores poderiam ser discutidos, mas para este
artigo interessam particularmente 3: liberalismo, materialismo e racionalismo.
Liberalismo
O liberalismo fez-se contra a tradição, contra a autoridade religiosa,
contra a aristocracia, ou seja, fez-se contra a ordem hierárquica natural que se
tinha desenvolvido na Europa durante milénios. Fez-se a favor do indivíduo e
da igualdade e liberdade do Homem. Do ponto de vista moral, o liberal
considera que todos os homens são formalmente iguais e que no indivíduo e só
nele reside a soberania última. Daí a crença liberal em “direitos”, sejam eles
“humanos”, de propriedade ou de libertação. Esta foi uma revolução igualitária
contra a autoridade da tradição e que a direita tentou combater desde sempre.
Em Inglaterra, os liberais estavam à esquerda do parlamento e passaram o
século XIX a lutarem contra a ordem tradicional hierárquica.
Hoje em dia, perante o esmagador triunfo do liberalismo no ocidente do
pós guerra, a direita cedeu e abraçou o liberalismo. Regra geral, acredita em
“direitos humanos”, no mercado, no universalismo do Homem, no secularismo
de Estado, na democracia liberal, etc… Por outras palavras, acredita em todas
as revoluções feitas pela esquerda igualitária e agora convence-se que estas
são as suas causas.
Isto advém em grande parte da aversão patológica que a direita
geralmente tem a ideias abstractas. O “direitista” médio diz-se um homem
pragmático, desprovido de grandes utopias loucas, que gere o que a vida
apresenta, mas sem saber tornou-se num escravo das ideias igualitárias; pior,
convenceu-se que estas ideias são suas, mesmo que muitas vezes sinta que
elas não funcionam, ele acha que elas são moralmente boas.
Ao abraçar o liberalismo a direita ignorou a sua posição tradicional anti-
individualista baseada na família, nação, tradição, sangue, autoridade,
hierarquia e espiritualidade. Aliás, tirando os mais eruditos, os “direitistas”
médios não fazem ideia do que é a direita tradicional e acham que ser de
direita é defender o indivíduo até ao infinito. Não é surpreendente que a
esquerda tenha uma vida tão fácil e que mantenha a sua hegemonia, mesmo
quando o seu modelo social igualitário vai colapsando a olhos vistos. Assim,
perante a progressiva derrota da direita não é de admirar que o liberalismo
clássico, outrora uma ideologia de esquerda, seja agora o último refúgio da
direita que não tem coragem ou engenho para sair do actual paradigma; desta
forma, a luta ideológica fica limitada a 2 liberalismos: o clássico (de inspiração
Lockeana) e o social de pendor ainda mais igualitário (de J. S. Mill a John
Rawls).
Materialismo/Economicismo
Existe a ideia de que foi Marx quem nos trouxe o materialismo
(histórico), onde o fenómeno social é explicado segundo as condições
materiais existentes. Porém, tal como em tudo o resto, Marx limitou-se a seguir
a lógica do liberalismo clássico que colocou o foco da moralidade no material
quando fez da propriedade sinónimo de liberdade individual. A partir daí os
“direitos” ganharam uma componente material.
Hoje em dia tudo é explicado em termos materiais: quanto cresceu o
PIB? Qual a dívida pública? A política X cria ou não mais riqueza material?
Outras considerações à “direita”, especialmente de índole cultural e particular,
praticamente desapareceram do discurso político, permitindo à esquerda
basear todo o seu discurso na igualdade material (i.e. justiça social). Isto
baseia-se na assumpção de que se o problema do crescimento económico for
resolvido, tudo está resolvido. Porém, o que vemos no mundo é a conquista
demográfica de povos com culturas pouco materialistas, com práticas nada
liberais e com mercados muito menos desenvolvidos; e como se costuma dizer:
a demografia é destino. A resposta aqui está na cultura e no seu impacto. Nisto
a “direita” calou-se, ou quando fala é para criticar práticas anti-liberais de outros
povos (e.g. muçulmanos). Mais uma vez, a melhor defesa das revoluções
igualitárias e anti-tradicionais vem da actual “direita”.
Racionalismo
A direita sempre foi céptica em relação ao racionalismo. Sempre
assumiu que os homens são competitivos, instintivos e vítimas de paixões.
Reagiu negativamente contra o iluminismo alegando que a crença na razão é
simplesmente isso: uma crença infundada.
Porém, hoje a direita entregou-se de corpo e alma ao racionalismo,
esquecendo a velha máxima de David Hume que a “Razão é a escrava das
paixões”. Isto é particularmente evidente quando tenta convencer
racionalmente as massas de que o que é preciso são “contas em dia”,
“austeridade”, “procura e oferta” e mercado (mais ou menos) livre. Como a
direita já devia saber, os seres humanos sentem primeiro e pensam depois
(quando pensam). A “direita” postula que é preciso austeridade e continhas no
sítio, mas como perdeu o lado do discurso que permitia ser convincente e
persuasiva (a nação, Portugal, a cultura, a “raça” portuguesa), tornou-se na
coisa menos apelativa de sempre … não admira que o povo seja todo de
esquerda. Ao ignorar o tribalismo natural e o emocionalismo humano a direita
entregou as cartas todas à esquerda. Ficando apenas com reivindicações de
baixos impostos, mercado globalista e austeridade sem ter valores colectivos
para oferecer. Isto, claro está, é a melhor receita para derrotas infinitas, quer na
frente económica, quer na frente cultural.
Em suma, não se combate a esquerda do século XXI com ideologias de
esquerda do século XIX.
Faz Sentido ser de Direita, mas não Liberal
Depois de escrever o meu texto sobre o declínio da direita, o Rui
Albuquerque escreveu um texto com uma posição contrária aos meus
argumentos, apesar de não me mencionar no seu texto. Depois de ler o texto
em questão optei por fazer alguns comentários que me parecem vitais em
temas de filosofia política.
O Rui parece determinado em provar que o liberalismo clássico é uma
ideologia de direita. Vale a pena lembrar que no meu texto eu não disse que
este não era visto como de direita no actual momento. Perante a total rendição
da direita ao liberalismo, o liberalismo clássico apresenta-se como uma forma
menos igualitária do que o vigente liberalismo social. Mas, por todas as razões
que expliquei no meu texto, é uma teoria com fortes elementos igualitários,
anti-tradicionalistas e universalistas, que a afastam da direita tradicional. Uma
coisa é certa, um liberal clássico no século XIX era de esquerda de caras. Foi a
vitória da esquerda actual que os colocou na alegada “direita” sem que eles
saíssem do mesmo lugar.
Seja como for, há pontos na argumentação do Rui que violam as bases
consensuais da teoria política. O Rui alega que o que caracteriza a direita é o
individualismo (por oposição ao que eu escrevi: que a direita é tradicionalmente
anti-individualista, familista e tribal). Diz também que o indivíduo visto como
parte de um colectivo é uma posição de esquerda. Nas palavras do Rui:
“Enquanto que a direita vê nele o indivíduo, a esquerda
tem-no como cidadão. Nesta perspectiva, o homem é,
para a direita, por si mesmo, sujeito e objecto de direitos
face ao poder político, enquanto que, para a esquerda, ele
existe essencialmente na sua relação com a coisa
pública”
Obviamente, é possível subverter as bases da teoria política para
colocar o liberalismo na direita, mas basta abrir uma enciclopédia para
encontrar a definição básica de conservadorismo. Da Encyclopedia Brittanica:
“Conservatism, political doctrine that emphasizes the
value of traditional institutions and practices.
Conservatism is a preference for the historically inherited
rather than the abstract and ideal. This preference has
traditionally rested on an organic conception of society -
that is, on the belief that society is not merely a loose
collection of individuals but a living organism comprising
closely connected, interdependent members.”
O conservadorismo é tribal e comunitário, considera as tradições locais e
particulares acima do indivíduo. E, claro, a não ser que achemos que o
conservadorismo é de esquerda, a lógica “a direita vê o indivíduo antes do
colectivo” não é válida.
O Rui escreve que “para a esquerda o homem nunca é, por si só,
suficiente”. Podemos aceitar perfeitamente esta definição. Porém, à direita,
aquilo que a esquerda pode chamar de cidadão, a direita tradicional chama de
“pertença” (membership). Como diria Roger Scruton, que talvez, quem sabe,
seja um “colectivista de esquerda”, todos nós precisamos de pertencer a um
grupo para nos identificarmos e lutarmos juntos por objectivos; que a felicidade
passa por essa submersão do eu num colectivo maior que nós.
Assim, é muito claro que a direita tradicional também não vê o homem
como suficiente por si só. E nem precisamos de recorrer a teorias Hobbesianas
para o verificar.
Depois há a questão da dominação e alteração do social pela via do
poder. O Rui escreve:
“A esquerda entende que o “mundo” pode ser
transformado por golpes de vontade e é o resultado de
forças inteligentes e direccionadas.”
Aqui eu tendo a concordar parcialmente. A esquerda tende a preferir a
ruptura porque num mundo onde a igualdade é uma utopia, é sempre preciso
mudar algo mais. Onde eu discordo é que esta seja a única a agir com via a
transformar o social. Todos os governos, da esquerda à direita, tentam gerir a
sociedade no seu sentido, usando retórica, propaganda, valores ou
espiritualidade. As elites, para o bem ou para o mal, lideram e modelam as
massas. Mas mais, o mundo pode facto ser transformado com golpes de
vontade das elites. Se à esquerda temos exemplos como a Escola de
Frankfurt, à direita temos os conservadores/nacionalistas judeus que
visualizaram e criaram um etno-Estado para o seu povo. Nietzsche, que é
insuspeito de ser de esquerda, sabia bem que o mundo é transformado por
“golpes de vontade” (the will to power) dos homens com grandes capacidades.
Por fim, o Rui escreve que a direita existe quando existem direitos
negativos (universais e igualitários, suponho) protegidos por uma constituição
liberal. Nas palavras dele:
“Os direitos naturais do indivíduo à liberdade e à
propriedade, isto é, os direitos negativos sobre os quais o
estado não poderá nunca dispor, reconhecidos por via da
Constituição ou de outros instrumentos normativos que o
protejam perante o poder público, é marca da direita.”
Com isto, (e em forma de caricatura) somos obrigados a concluir que a
civilização ocidental viveu em esquerdismo durante milênios até que o
constitucionalismo liberal foi inventado pelos pensadores do iluminismo. Os
gregos clássicos, que na sua polis tinham um noção política tribal, distinguindo
perfeitamente os cidadãos dos escravos, eram portanto esquerdistas.
Esquerdistas estes que continuaram pelas monarquias divinas durante séculos
até que se inventou o constitucionalismo liberal. É caso para dizer que a
civilização ocidental foi inventada e vivida pela esquerda; isto claro, se
aceitarmos que a marca da direita são direitos naturais à liberdade e
propriedade pela via constitucional.
A meu ver, a distinção que ofereci de direita e esquerda no meu texto
anterior continua a ser a distinção fundamental desta divisão. Tenho agora o
prazer único de me citar; escrevi:
“Se há algo que difere a esquerda da direita é a
perspectiva moral com que encaram a igualdade e a
desigualdade. Enquanto que a esquerda faz do
igualitarismo um deus intocável, um bem moral último, a
direita vê a desigualdade humana como natural e
respeitante da ordem humana e daí deriva a sua força
moral positiva. Por outras palavras, a direita idealiza a
qualidade (que implica desigualdade) e a esquerda
idealiza a igualdade.”
Se a direita idealiza a qualidade, essa qualidade significa hierarquia; não
só entre indivíduos, mas igualmente entre grupos.
Isto tudo, claro, para dizer que o que define a direita não poderá ser o
seu individualismo moral e muito menos o liberalismo constitucional.
Leitura complementar: Roger Scruton: How to be a Non-Liberal, Anti-Socialist
Conservative.
PS: Percebo que a minha posição seja anátema para muitos neste blogue,
porém, eu sou da opinião de que quando algo não está a funcionar é preciso
mudar e perceber as “causas da doença”. É assim que se vencem
determinadas lutas e é a obrigação daqueles que percebem os problemas
articulá-los perante a sua comunidade. Sei também que as comunidades
sobrevivem à volta de certos axiomas e que se tornam colectivamente
antagonistas quando esses axiomas são questionados. Se for esse o caso,
então a parte mais fraca é o dissidente e não a comunidade. Isto é algo que
temos de aceitar como uma evidência humana. Por isso, novas comunidades
se formam.
Faz ainda algum sentido ser de “direita”?
Num tempo de diluição de fronteiras políticas e ideológicas, agravado
pela queda do muro de Berlim e pela convicção generalizada de que, desde
esse momento, o mundo vive numa panaceia de capitalismo liberal, questiona-
se frequentemente a pertinência de se manterem as categorias de “esquerda” e
“direita”, como se entre ambas, e dentro de cada uma delas, as diferenças
fossem tênues, ou mesmo inexistentes. Está também muito em voga a moda
de tentar criar novas categorias políticas que horizontalmente ocupem espaços
à direita e à esquerda, sem verdadeiramente se poderem catalogar numa ou
noutra posição. Para algumas pessoas, o liberalismo, o anarco-capitalismo e a
social-democracia (da «terceira via» blairiana) são bons exemplos de teorias e
práticas políticas que não se podem catalogar em nenhum daqueles dois
campos tradicionais. Frequentemente, ouvimos figuras históricas da esquerda,
como Mário Soares, acusarem correligionários seus, como Tony Blair ou
mesmo José Sócrates, de cedências ao “mercado” e ao “capitalismo”, como
ouvimos e lemos liberais e anarco-capitalistas a recusarem ser catalogados na
direita. Fará, então, algum sentido manter ainda essa dicotomia fundadora da
nossa modernidade política?
A minha resposta é claramente afirmativa: mais do que nunca, faz agora
sentido o aggiornamento político e ideológico à esquerda e à direita. E
acrescento que esta diluição só prejudica aqueles que defendem uma ideia
liberal da liberdade, o livre-mercado, a iniciativa privada, a redução do estado e
os direitos naturais do indivíduo. É graças a essa diluição e à crescente falta de
identidade política, que vemos a esquerda a condenar a direita e o “mercado”
ou o “neoliberalismo” (que ela habilmente utiliza como sinônimos) dos
resultados catastróficos das suas próprias políticas. Ou será que, por exemplo,
não foram José Sócrates e o governo do PS os responsáveis pela crise
econômica portuguesa, mas sim os “mercados especulativos”, a
“desregulamentação financeira”, enfim, o “neoliberalismo” os grandes
responsáveis, como nos pretendem impingir?
É da tradição católica dizer-se que o grande truque do diabo é negar a
sua inexistência. Com a falta de demarcação entre direita e esquerda, esta
última, que manieta habilmente a comunicação social e, por meio dela, a
opinião pública, tem vindo a alijar as suas responsabilidades na crise dos
últimos anos, endossando-as a quem elas não são devidas, nem poderiam
nunca ser, desde logo, por ausência de responsabilidades governativas. Mas, a
“explicação” oficial, é que os pobres governos de esquerda ficaram reféns dos
grandes interesses dos criminosos mercados especulativos, inspirados por um
desapiedado «neoliberalismo», que agora há que dominar com férrea
regulamentação. As consequências disto, a não ser desmentido, poderão ser
avassaladoras para a liberdade. Até porque, no meio desta intencional
confusão, a esquerda não deixa para outros os seus próprios valores…
Como poderemos, então, estabelecer uma demarcação entre esquerda
e direita? Saliente-se, desde já, que se tratam de duas grandes famílias, de
dois ramos separados de um enorme tronco comum – a das ideologias
políticas modernas e democráticas, porque só destas faz sentido falar – que
conhecem, dentro de cada uma delas, variações consideráveis. Tem que
haver, todavia, um, ou vários, critérios de distinção, assim como elementos
comuns em cada uma delas, para que a distinção possa manter-se e fazer
sentido.
O primeiro e mais significativo de todos os critérios diferenciadores é o
da forma como esquerda e direita olham para o homem.
Enquanto que a direita vê nele o indivíduo, a esquerda tem-no como
cidadão. Nesta perspectiva, o homem é, para a direita, por si mesmo, sujeito e
objeto de direitos face ao poder político, enquanto que, para a esquerda, ele
existe essencialmente na sua relação com a coisa pública, sendo esta que lhe
garante os direitos (e impõe as obrigações) que a direita vê como naturais e
inerentes à sua condição.
Esta distinção parte de uma perspectiva diferente da natureza humana.
Para a direita, o homem não é naturalmente bom, tão-pouco é mau por
ter sido corrompido pela sociedade. Mas também não é naturalmente mau,
nem segue instintos que sejam antissociais ou destrutivos. Para a direita, o
homem tem interesses e manifesta-os, defende-os e, se necessário for,
conflitua por eles, mas consegue habitualmente compor as suas necessidades
com as necessidades dos outros. É por isso que a direita acredita no princípio
da cooperação como instinto social primário, e que acredita que as pessoas
podem articular, entre si mesmas, os seus interesses fundamentais. Poderá
dizer-se, a este respeito, que a direita varia entre uma confiança plena nas
capacidades ordenadoras naturais dos indivíduos (o mercado) e uma confiança
reservada quanto a essas capacidades, confiando ao governo e às instituições
políticas e jurídicas (bem mais do que ao estado) os poderes necessários e
suficientes para evitar, ou dirimir, conflitos mais acentuados. No primeiro caso
temos as posições liberais, no segundo teremos as posições ideologicamente
mais conservadoras. Arriscaria, contudo, dizer que as segundas são, na
prática, a face político-governativa das primeiras, e que não existe verdadeira
antinomia política (que não teórica) entre ambas.
Em contrapartida, para a esquerda o homem nunca é, por si só,
suficiente. Ele é uma criatura indefesa, que carece de proteção. Seja pela via
hobbesiana, que alguma direita ideologicamente mais conservadora também
aceita, do perigo da conflitualidade social extremada, seja pela via mais
esquerdista da dominância de exploradores – detentores do capital – dos
pobres explorados – apenas detentores da força “bruta” do trabalho – a
esquerda considera que o homem só será objeto de direitos se esses direitos
forem reconhecidos e protegidos pelo estado (mais do que pelo governo). Por
isso, para a esquerda, antes do homem está o cidadão. Melhor dizendo, o
homem só o será em pleno se existir uma estrutura política que o proteja e lhe
confira os direitos fundamentais à liberdade e à igualdade. Também na
esquerda existem óbvias tonalidades de cores diferentes deste princípio, que
vão dos que pretendem a conciliação entre um estado interventor e um
mercado devidamente regulado, aos que pretendem que o mercado é sempre
uma fonte de desigualdade e discriminação, pelo que só subsidiariamente, face
ao poder público, poderá funcionar.
A segunda distinção tem a ver com a forma como a direita e a esquerda
vêem a sociedade.
A direita considera a sociedade o resultado de forças que extravasam o
político, podendo essas forças oscilar do indivíduo isolado no universo ao
indivíduo como parte integrante de uma ordem transcendental. A esquerda
entende que o “mundo” pode ser transformado por golpes de vontade e é o
resultado de forças inteligentes e direcionadas. Enquanto que a direita olha
para a sociedade como o resultado da ação individual, e/ou da aprendizagem
com tradição cumulativa, da eficácia das instituições comunitárias, ou mesmo
da vontade superior de Deus, ela será sempre, de todo o modo, algo que não é
transformável por atos direcionado da simples vontade humana, a esquerda
olha para a sociedade como uma ideia moldável pelas convicções ideológicas
de quem a dirige, isto é, do governo regulamentador e intervencionista, atuante
sobre os indivíduos e a sociedade, ou mesmo de vanguardas ditas
esclarecidas.
Esta última distinção estabelece uma diferença subtil, mas substantiva,
quanto à forma como a esquerda e a direita olham para a razão humana.
Diferenciam, assim, o racionalismo político de uma e de outra, isto para os
ramos das duas famílias que adoptam o racionalismo como critério
fundamental da natureza humana. Enquanto que para a direita a razão é
sempre atributo do indivíduo, com o qual ele pode aprender, descobrir e tomar
decisões para a sua vida, para a esquerda existe uma razão coletiva das
coisas e dos movimentos da História que pode ser conhecida e manipulada por
quem governa a sociedade e os homens.
Como corolários destas duas essenciais diferenças, a esquerda e a
direita abraçam valores políticos e filosóficos bem diferenciados.
O primado do coletivo e do coletivismo, para as posições mais
extremadas, é apanágio da esquerda. O primado do indivíduo, ou do indivíduo
enquanto filho de Deus e centro do plano divino, para a direita mais próxima
das religiões tradicionais, é apanágio da direita.
A propriedade privada, enquanto direito a dispor de si mesmo ou
enquanto direito fundamental a dispor do que é seu por legítima aquisição,
versus a sujeição da propriedade privada a critérios de utilidade e finalidade
pública, distinguem também a direita da esquerda.
Os direitos naturais do indivíduo à liberdade e à propriedade, isto é, os
direitos negativos sobre os quais o estado não poderá nunca dispor,
reconhecidos por via da Constituição ou de outros instrumentos normativos que
o protejam perante o poder público, é marca da direita. O estabelecimento, ou
a criação, dos direitos dos indivíduos, não enquanto tal, mas como cidadãos,
isto é, os direitos que o estado atribui às pessoas na sua relação com o poder
político é marca da esquerda.
O respeito pela tradição, enquanto experiência acumulada pelas
sucessivas gerações, é próprio da direita. A possibilidade de rupturas sociais,
mais ou menos violentas, com pendor revolucionário ou simplesmente dirigista,
é próprio da esquerda.
E, last but not least, a função da política e do governo. Seja por acreditar
numa ordem social espontânea, seja por duvidar da bondade do poder, seja
por um certo cepticismo antropológico, seja, ainda, por crer que existem
valores de ordem superior que não estão à disposição da simples vontade
humana, a direita oscila entre as posições liberais do ideal do não-governo e do
reconhecimento objetivo de um aparelho de poder público, que importa reduzir
ao mínimo expoente possível, e as posições mais conservadoras, segundo as
quais se aceita a necessidade de um governo concentrado nas funções
tradicionais da soberania (justiça, segurança, negócios estrangeiros) e
distanciado daquelas que pertencem ao domínio privado (economia, educação,
ambiente, etc.). Em qualquer dos casos, a direita defende sempre um governo
mínimo ou um governo com funções bem determinadas. Em contrapartida, o
voluntarismo idealista da esquerda atira-a para um governo de amplas
dimensões. Se o homem é um ser indefeso, se a sociedade é aquilo que nós
quisermos que ela seja e se o destino está nas nossas mãos, então faz todo o
sentido que o político, este consubstanciado nos seus aparelhos de poder, o
estado e o governo, tenha poderes suficientes para proteger o homem e
transformar a sociedade. Num caso e no outro, significa isto que a função
principal do político, segundo a esquerda, é promover a igualdade entre os
homens, de modo, primeiro, a protegê-los reciprocamente e a formar a
sociedade justa, depois. Para isso, impõe-lhes direitos e deveres que os
tornam cidadãos, isto é, iguais para e perante o estado, e promove as leis
necessárias à igualdade material, distribuindo recursos e desenvolvendo
políticas de promoção econômica e de igualdade social.
Este conjunto de diferenças não esgotará a distinção entre esquerda e
direita. Certamente que mais haverá a acrescentar e que certamente
encontraremos algumas exceções a estas regras. Todavia, parecem-me
suficientes para estabelecer critérios de diferenciação e para manter a utilidade
da dicotomia. E para dizer, também, que o liberalismo, por esta casa, o
entendemos, é de direita, apesar de haver quem, noutros lugares, se diga
liberal e de esquerda.