DiRecTOR eDiTOR GeRal Nº 1 OutubrO 2007 · 2007 DiRecTOR José Pedro Paço d Arcos...
Transcript of DiRecTOR eDiTOR GeRal Nº 1 OutubrO 2007 · 2007 DiRecTOR José Pedro Paço d Arcos...
EDITORIAL
ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA! | Estudo dE opinião
SOTHEBY’S | EntrEvista a Francis outrEd
ARTISTAS PORTUGUESES NO CIRCUITO MILIONÁRIO
DOSSIER ÍNDIAGRANDE DEMAIS Por Jorge Barreto Xavier
A ÍNDIA: EM CASA NO MUNDO Por Peter Nagy
ARTE CONTEMPORÂNEA DA ÍNDIA: ESPAçOS DE vAIvéM
Por Nancy Adajania
BAIJU PARTHAN | EntrEvista dE ranjit HoskotE
PINTURAS CANTADAS | MusEu dE Etnologia
Por Alexandre Oliveira e Cláudia Pereira
DOS vELHOS CONTOS àS NOvAS ESTÓRIAS Por Luís Serpa
vARANASI: vIDA E MORTE NA CIDADE SAGRADA
(PARA O vIAJANTE AfOITO) Por Manuel Castilho
PORTUGAL NA ÍNDIA Por João Alarcão
ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA
LEILÕES INTERNACIONAIS: HIGHLIGHTS ÍNDIA
ANTIQUARIATO INDIANO
PANOS PINTADOS Por Madalena Braz Teixeira
DOSSIER PAULA REGOPAULA REGO | EntrEvista EM londrEs
MARCO LIvINGSTONE | EntrEvista
ARQ. EDUARDO SOUTO MOURA | EntrEvista
fRANçOIS DUfRÊNE | sErralvEs
Por Gisela Leal
SKULPTUR PROJEKTE | MÜnstEr
Por Nuno Crespo
EXPOSIçÕES
QUEM é QUEM | pEdro caBrita rEis
QUEM SERÁ QUEM | joão sErra
NOMES INvISÍvEIS | crónica dE jorgE BarrEto XaviEr
JUÍZO ESTéTICO OU JUÍZO POLÍTICO? |
opinião dE nuno crEspo
NOTÍCIAS
vINTE MAIS NACIONAL | vINTE MAIS INTERNACIONAL
PALADARTE | crónica dE MiguEl júdicE
Nº 1OutubrO 2007
DiRecTORJosé Pedro Paço d�[email protected]
eDiTOR GeRalJosé Sousa [email protected]
aRTe cOnTempORâneaSandra Vieira Jü[email protected]
aRTe anTiGaLuís de Andrade [email protected]
inTeRnaciOnalKevin [email protected]
pRODUTORa eDiTORialCarlota [email protected]
pROjecTO GRáficO e paGinaçãOPanó[email protected]
pRODUTOR GRáficOJoão [email protected]
ReDacçãOMaria [email protected]
SecReTáRia De ReDacçãOJanete [email protected]
ReviSãO De cOnTeúDOSRita Grañ[email protected]
pUBliciDaDeLuís Figueiredo Trindade (Director comercial)[email protected]ónica da Costa [email protected]
aDminiSTRaçãOJosé Pedro Paço d�ArcosDiogo Madre Deus
cOnSelhO cOnSUlTivOJoão Esteves de OliveiraJorge Barreto XavierLuís SerpaManuel CastilhoMiguel Júdice
pROpRieDaDeArtcetera – Cultura e Arte, Lda.
SeDeRua Carlos de Oliveira, 3 � 12º C1600-028 LisboaTel: 217 225 040 – Fax: 217 225 049
Pessoa Colectiva Nº 502 191 082
impReSSãO e acaBamenTOOffset + Artes Gráficas, S.A.Rua Latino Coelho, 6 – Venda Nova – 2700-516 AmadoraTel: 214 998 716 -- Fax: 214 998 717
DiSTRiBUiçãOLogistaRua República da Coreia, 34 � Ranholas – 2710-460 SintraTel: 219 267 800 | Fax: 219 267 810
Periodicidade Mensal
Tiragem 12.000 exemplares
Registada com o Nº ISSN 1646-8139
É expressamente proibida a reprodução da revista, Em qualquer língua, no todo ou em parte, sem a prévia autorização escrita de ARTES & LEILÕES. Todas as opiniões expressas são da inteira responsabilidade do autor.
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capa
Martelo e trincha revestidos
com notas, de Barton Lidice
Benes, para assinalar as
artes (com ênfase na arte
portuguesa, sob o olhar atento
de Camões e Pessoa) e os
leilões (divulgando também
os leilões internacionais) .
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A revista Artes & Leilões saiu a público pela primeira vez em Outubro de 1989,
quando a única revista existente dedicada às artes plásticas era a Colóquio Artes,
editada pela Fundação Calouste Gulbenkian .
Não obstante os nay-sayers, que apregoavam que uma revista de artes plásticas em
moldes comerciais e sem subsídios não vingaria, a Artes & Leilões brevemente se
impôs no mercado e se tornou a revista de referência sobre arte em Portugal. Após
sete anos de publicação regular, com uma cobertura das artes e dos leilões e
antiguidades em Portugal e no estrangeiro, além de projectos especiais como o
lançamento do Arte Guia / Guia d’Arte em 1991, a revista cessou a actividade. Na
altura, divergências ao nível da administração do projecto provocaram essa situação.
O mundo mudou e Portugal mudou com o mundo. Hoje, o panorama cultural
português é completamente diferente, para melhor. A Cultura virou Ministério.
Surgiram fundações privadas com espólios valiosos. O coleccionismo tornou-se
uma virtude. Artistas de diferentes gerações e tendências competem por públicos e
mercados. A internacionalização da arte portuguesa é mais efectiva.
É neste ambiente de maior afirmação cultural que a revista Artes & Leilões se
vai inserir e que tentará espelhar e, se possível, influenciar.
Saudamos antiquários, leiloeiros, galeristas, artistas, críticos e todos os agentes
culturais com quem colaborámos no passado. Esperamos poder acolhê-los, assim
como a novos protagonistas, num projecto que procurará ser abrangente sem ser
neutral, revelador sem ser descritivo, interveniente sem ser sectário.
Portugal mudou e a Artes & Leilões mudou também. O modelo de revista da
primeira série da Artes & Leilões foi seguido pela Arte Ibérica e, em certa medida,
pela L+Arte. Estes projectos tiveram e têm o seu mérito. Na sua segunda série,
a Artes & Leilões seguirá um novo modelo. O âmbito de intervenção editorial da
revista foi alargado ao turismo Cultural, Moda, Fotografia, Arquitectura e Design.
Vários projectos especiais estão na forja, entre eles a reedição de um Guia d’ Arte
actualizado.
Para além da cobertura mensal da actualidade artística nacional e internacional,
a revista dedicará uma atenção especial aos aspectos relacionados com o
investimento em bens culturais, avaliando a evolução das cotações no mercado
(“Vinte Mais Nacional e Internacional”), firmando a cotação dos artistas nacionais
(“Quem É Quem”) e descobrindo novos valores (“Quem Será Quem”).
Cada edição inclui um dossier alargado sobre a arte contemporânea e a cultura
de um país escolhido, sugerindo itinerários culturais e artísticos. A Índia, pela
sua importância no imaginário português e no mundo contemporâneo, foi a
nossa primeira escolha, associando-nos assim à celebração dos seus 60 anos de
independência.
A partir deste primeiro número da segunda série, esperamos ter-vos como leitores.
A crítica e as sugestões serão muito bem-vindas, para melhor podermos servir os
interessados na actividade artística em Portugal.
A Manuel de brito, pioneiro que tanto lutou pelo desenvolvimento da arte em
Portugal e que morreu no seu posto, uma última palavra de apreço e saudade. |
josé pEdro paço d’ arcos
5ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Editorial
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upa,upa!7ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Um estudo de opinião exclusivo da Eurosondagem
para a Artes & Leilões revelou a opinião dos
portugueses relativamente à arte contemporânea
nacional e internacional.
Estudo dE opinião
Damien hiRST | “LuLLAby SpRIng”, 2002 | Cortesia sotheby’s.
ARTE PORTUGUESA:
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O estudo encomendado pela Artes & Leilões à Eurosondagem revela
que em Portugal o interesse pela Arte Contemporânea é elevado.
Os resultados permitem concluir que a grande maioria dos
inquiridos, 49,3% aprecia/gosta muito; 4�,1% afirmou que a sua
opinião está dependente dos artistas em questão e apenas 6,3%
expressou uma opinião desfavorável (Não aprecia/É-lhe indiferente)
em relação à Arte Contemporânea.
relativamente a outros períodos da História da Arte, constatou-
se a sua preferência por épocas mais recentes, verificando-se um
equilíbrio de resultados entre a Arte Moderna (�9,�%) e a Arte
Contemporânea (�8,1%) a que se seguiu a Arte Antiga (14,�%),
a Arte romântica (13,8%), a Arte do renasc imento (9,1%) e,
finalmente, a Arte barroca, que registou 5,6%.
Os resultados da questão seguinte permitem concluir que é elevado
o nível de acompanhamento em relação à criação artística das novas
gerações. 8�,3% dos inquiridos revela acompanhar com bastante
interesse e regularidade a criação artística das novas gerações. |
8
3. Acompanha a criação artística das novas gerações?
SIM, COM BASTANTE INTERESSE 40,0%
ÀS VEzES / INTERMITENTEMENTE 42,3%
NEM POR ISSO / Só RARAMENTE 15,2%
NS / NR 2,5 %
TOTAL 100,0%
1. Qual a sua opinião em relação à Arte Contemporânea?
APRECIA / GOSTA MuITO 49,3%
DEPENDE DOS ARTISTAS / GOSTA POR VEzES 42,1%
NãO APRECIA / É-LhE INDIFERENTE 6,3%
NS / NR 2,3%
TOTAL 100,0%
2. Qual o período da História da Arte que mais lhe interessa? PODE ESCOLhER uMA Ou DuAS) (*)
ARTE ANTIGA 14,2%
ARTE DO RENASCIMENTO 9,1%
ARTE BARROCA 5,6%
ARTE ROMâNTICA (SÉC. XIX) 13,8%
ARTE MODERNA (SÉC. XX) 29,2%
ARTE CONTEMPORâNEA 28,1%
TOTAL 100%
(*) - NOTA: 4,8% DOS INquIRIDOS RESPONDEu “NS/NR”
Damien hiRST | “LuLLAby SpRIng”, 2002 | dETALhE | Cortesia sotheby’s.
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#41
intErEssE pEla ARTE CONTEMPORÂNEA
Estudo dE opinião artE portuguEsa: upa, upa!
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9
uM ocEano intEiro
h
Estudo dE opinião artE portuguEsa: upa, upa!
4. Conhece alguns destes artistas?
1. VELÁzquEz 95,2%
2. CLAuDE MONET 93,7%
3. GOYA 93,5%
4. REMBRANDT 91,4%
5. PAuL GAuGuIN 90,9%
6. BOTICELLI 85,3%
7. TOuLOuSE-LAuTREC 81,0%
8. FRANCIS BACON 77,0%
9. KANDINSKY 74,9%
10. MARCEL DuChAMP 68,4%
11. WARhOL 63,4%
12. JACKSON POLLOCK 54,1%
13. JEFF KOONS 28,2%
14. BASELITz 18,7%
15. DAMIEN hIRST 17,0%
9
Numa outra série de perguntas, indicadora do nível de conhecimento
sobre o panorama artístico nacional e internacional, em períodos
distintos da História da Arte, revelaram-se resultados surpreendentes.
Embora uma grande maioria dos inquiridos (49%) acompanhe a
criação artística das novas gerações, permanecem desconhecidos
alguns dos artistas contemporâneos com maior repercussão.
Confrontados com uma lista que incluía artistas de várias épocas,
registou-se um grau de desconhecimento mais elevado face aos
artistas mais contemporâneos: Damien Hirst, baselitz e Jeff Koons
posicionaram-se nos últimos lugares.
Nas preferências entre os artistas portugueses, o estudo mostra que
Paula rego e Maria Helena Vieira da Silva são as artistas portuguesas
de eleição, de entre uma lista que incluía nomes tão díspares como
Grão Vasco, Amadeo de Souza-Cardoso e Pedro Cabrita reis. |
#41
conHEciMEnto daARTE INTERNACIONAL
veláZQUeZ | ”VÉnuS AO ESpELhO”, 1651 | ÓLEO SObRE TELA | Cortesia NatioNaL GaLLery, LoNDres.
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prEFErÊncias EntrE os ARTISTAS PORTUGUESES
8. Já comprou alguma obra de arte?
Noutra questão, que pretendia determinar a percentagem dos que adquiriram obras de arte, os
resultados são igualmente inesperados: 57% dos inquiridos respondeu “sim”.
Também surge explícito que o critério que prevalece na aquisição é o gosto pela obra
(73,7%), seguindo-se o apreço pelo artista (16%). A aposta em termos de retorno do
investimento traduziu-se em 7%; mais reduzida foi ainda a percentagem - 3,3% - dos
inquiridos que revelaram fazê-lo por indicação ou opiniões manifestadas através da
comunicação social.
6. E quais são os seus artistas portugueses preferidos?
(pode indicar até 3)(*)
PAuLA REGO 17,6%
MARIA hELENA VIEIRA DA SILVA 17,4%
JÚLIO POMAR 14,7%
AMADEO DE SOuzA-CARDOSO 13,8%
ALMADA NEGREIROS 12,9%
JuLIãO SARMENTO 5,1%
JOSEFA DE óBIDOS 4,2%
hELENA ALMEIDA 3,3%
COLuMBANO 3,1%
PEDRO CABRITA REIS 3,1%
GRãO VASCO 1,9%
SILVA PORTO 1,5%
JORGE MOLDER 0,8%
hENRIquE POuSãO 0,6%
(*) - Nota: 6,9% dos inquiridos respondeu “Outro” artista português preferido.
7. Com que regularidade visita exposições de arte?
Os resultados assinalam que é elevado o número daqueles que com regularidade visitam
exposições de arte: 53% dos inquiridos afirmou visitar mostras uma vez por mês e 30%
respondeu que as visita três a quatro vezes por mês.
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#41
maRia helena vieiRa Da Silva | (1909-1992) | ”LISbOnnE bLEuE”, 1942. | Cortesia sotheby’s.
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A amostra que serviu de base a este estudo de opinião foi constituída a partir
dos visitantes de uma exposição de Arte Contemporânea que decorreu numa
instituição cultural lisboeta. Ou seja, podemos inferir que esta amostra é composta
por pessoas que frequentam com alguma assiduidade este tipo de iniciativas,
possuindo alguma familiaridade com o universo da criação artística actual.
Nesse sentido, este estudo revela alguns dados surpreendentes e outras tantas
contradições, sobre as quais tentaremos oferecer pistas que nos ajudem a
esclarecê-las.
Assim, é curioso verificar que praticamente 90% dos indivíduos consultados
adere sem reservas à Arte Contemporânea - 49,3 % de uma forma incondicional
e 4�,1% fazendo depender a sua adesão da identidade do artista -, incluindo
nesta designação, supomos, a Arte do séc. XX. Esta suposição decorre da análise
das respostas à pergunta seguinte, que indaga qual o período da Arte que mais
interessa aos indivíduos consultados. Somando as preferências pela Arte Moderna
(�9,�%) e pela Arte Contemporânea (�8,1%), constatamos que 57,3% do público
prefere as manifestações artísticas que lhe são coevas. Acrescentando a este valor
as preferências pela Arte romântica (13,8%), que de certo modo antecipa ou,
em certos casos, inaugura as tendências modernistas, concluímos que 71,1%
do público consultado é receptivo às manifestações artísticas dos últimos cem
anos. Isso mesmo se conclui da análise às respostas à terceira pergunta, que nos
informam que 8�,3% dos inquiridos diz acompanhar com bastante interesse
(40%), ou com interesse mediano (4�,3%), a criação artística das novas gerações.
Apesar de considerarmos que estes valores estão empolados, reflectindo uma
natural valorização cultural dos inquiridos, não deixa de ser relevante que a
pretensão de reconhecimento cultural que os inquiridos denotam se fundamente
no conhecimento que dizem ter da Arte mais recente, em detrimento das
manifestações artísticas de outros períodos da História da Arte. Ou seja, parece que
a Arte Moderna e Contemporânea está na moda e os nossos inquiridos, sabendo
disso, não querem abdicar de um estatuto cultural actualizado.
Curiosamente, a linha de pensamento que temos vindo a desenvolver é
radicalmente contrariada pelas respostas às perguntas sobre quais os artistas
estrangeiros e portugueses mais conhecidos. Na listagem dos quinze artistas
estrangeiros mais conhecidos, os autores contemporâneos ocupam, sem excepção,
os últimos lugares da tabela. Os únicos três artistas ainda vivos mencionados - Jeff
Koons (conhecido por �8,�% dos inquiridos), baselitz (18,7%) e Damien Hirst
(17%) - ocupam os três últimos lugares. Ou seja, se por um lado o vedetismo
cultivado por artistas como Jeff Koons contribuiu para
o fazer sobressair aos olhos do público e destacar-se de
entre muitos outros artistas seus contemporâneos, por
outro lado esse fenómeno não é suficiente para o tornar
tão incontornável quanto os artistas já consagrados
pela História da Arte, como Velázquez, Monet, Goya
ou rembrandt. Nem mesmo o mediatismo fortíssimo
de Damien Hirst, que no último leilão da Sotheby’s
de Londres, em Junho passado, se transformou no
artista vivo mais caro - uma obra sua foi vendida
por €14.478.000,00 - foi suficiente para o celebrizar
num plano de equivalência com os autores clássicos.
Comparativamente com os autores estrangeiros, os
artistas portugueses, infelizmente, são muito pouco
conhecidos, o que denota a fraquíssima promoção
de que são alvo pelas instâncias responsáveis. Senão
vejamos: o artista estrangeiro menos conhecido
- Damien Hirst (17%) - é quase tão famoso quanto
as artistas portuguesas mais conhecidas - Paula
rego (17,6%) e Vieira da Silva (17,4%). Os artistas
portugueses, independentemente da sua consagração
histórica, actual ou passada, são praticamente
desconhecidos do público português. Apenas 3,1%
dos inquiridos conhece Columbano; 1,9%, Grão Vasco
(que tem até um museu com o seu nome e sobre a sua
extensa obra quinhentista) e, pasmem, apenas 0,6%
sabe da existência do Henrique Pousão, talvez o maior
artista português do séc. XIX, precursor dos movimentos
modernistas de que Souza-Cardoso viria a ser o
expoente máximo (este último, conhecido por 13,8%,
talvez devido à grande exposição retrospectiva realizada
recentemente na Fundação Gulbenkian). |
jsM
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Estudo dE opinião artE portuguEsa: upa, upa!
Este estudo de opinião foi realizado entre 9 e 13 de Julho de 2007 numa amostra de 525 entrevistas validadas a partir do universo de frequentadores de uma exposição de arte contemporânea que decorreu num espaço institucional da capital. |
#41
COMENTÁRIO ao Estudo dE opinião
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Apenas quatro artistas portugueses têm marcado presença regular nos leilões de
arte da Christie’s e da Sotheby’s de Londres, Nova Iorque ou Paris. São eles Helena
Almeida, Julião Sarmento, Paula rego e Vieira da Silva, tendo a penúltima batido
o seu recorde pessoal de preço no leilão de arte contemporânea da Christie’s
londrina do passado mês de Junho, com a pintura The Moth (A traça) – um pastel
sobre tela, com 160 x 1�0 cm, datado de 1994 – que atingiu os € 559.654. Nesse
mesmo leilão, o pintor britânico Lucian Freud conquistou o estatuto de pintor vivo
mais caro de sempre, quando uma obra sua intitulada Bruce Bernard - um retrato
- foi arrematada por e 11.6�4.940, palmarés de curtíssima duração, pois apenas �4
dias depois, no leilão de arte contemporânea da Sotheby’s, também em Londres,
o ainda jovem artista Damien Hirst roubou-lhe a palma, com uma obra que subiu
até aos e 14.487.000, numa vertigem de zeros que deixou muitos especialistas
apreensivos devido às semelhanças que este fenómeno parece ter com a euforia de
preços do início da década de 90 (do século passado), quando inúmeras pinturas
de Van Gogh subiram aos píncaros do estrelato artístico, para depois se afundarem
no silêncio mais que suspeito da insolvência de um tal sr. bond, australiano, e nas
extravagâncias de um milionário japonês, o sr. Sato, que desejava insistentemente
levar um Van Gogh (e um renoir) consigo para o outro mundo.
No mesmo leilão da Christie’s a que fizemos referência a propósito de Paula
rego e Lucian Freud, foram quebrados vários recordes pessoais de outros artistas
conhecidos da cena artística internacional como, por exemplo, thomas Schütte,
rosemarie trockel, Piero Manzoni, r.b. Kitaj e tàpies, entre outros.
Com efeito, nas últimas duas décadas assistimos, no plano internacional,
a uma alteração no gosto dos coleccionadores ou, pelo menos, verificou-se
uma transferência significativa do investimento em arte dos leilões de obras
impressionistas e modernistas para os leilões de arte contemporânea, nos quais a
maior parte dos lotes apresentados à praça pertencem a autores ainda activos e cada
vez mais jovens. As razões que determinaram este fenómeno são de natureza muito
diversa, como a raridade de obras de autores mais antigos disponíveis para venda, a
necessidade de renovar periodicamente o mercado, a cada vez maior mediatização
da contemporaneidade artística mas, sobretudo, o aparecimento de um novo tipo
de coleccionador ou investidor em arte, para quem a intervenção nos domínios
da cultura assume não só o carácter de valorização pessoal e social, mas também
uma forma de aplicação financeira – de um negócio, em suma - cuja rentabilidade
é necessário salvaguardar e promover activamente. Foram estes coleccionadores
empresários, sem tradições firmadas na cultura, que nos últimos anos investiram
maciçamente nos artistas actuais e agora sustentam e promovem as cotações dos
17
artistas em princípio de carreira que apoiaram.
De facto, o simples facto de um artista estar
representado nos afamados leilões de arte
contemporânea das duas principais casas leiloeiras
mundiais é, só por si, um indicador seguro da
estabilidade da cotação do mesmo e a garantia de
circulação das suas obras num circuito à escala
mundial, com margens de valorização muito
promissoras. À luz estrita do mercado de arte, a
presença de um artista nos principais leilões da
Christie’s e da Sotheby’s representa, por um lado,
o reconhecimento da qualidade da obra e, por
outro lado, a homologação de um valor credível
e sustentado da mesma. Para que as portas deste
circuito se abram de par em par a um qualquer
artista, é necessário, em primeiro lugar, o seu
reconhecimento tácito no mercado de origem, a
estabilização da sua cotação no mercado local, pois
é a partir dos coleccionadores desse circuito nacional
que se alicerça a rampa para a internacionalização.
Por outro lado, não é possível definir uma estratégia
de internacionalização de um artista cujas obras não
circulem já em mercados estrangeiros. Finalmente, a
presença de um artista em iniciativas institucionais é
também fundamental.
Dos artistas portugueses, apenas os quatro que
referimos lograram, até ao momento, aceder a esse
circuito milionário. Mesmo autores com a qualidade
e visibilidade de um Júlio Pomar, Cabrita reis,
João Penalva, entre tantos outros, não reuniram
ainda os requisitos necessários para constarem nos
leilões milionários de Londres e Nova Iorque e, dos
quatro que referimos, Paula rego e Vieira da Silva
construíram toda a sua carreira no estrangeiro, em
Londres e Paris respectivamente, não se podendo
portanto falar propriamente de uma estratégia de
internacionalização sistematicamente construída. |
#41
artistas portuguEsEs NO CIRCUITO MILIONÁRIO
josé sousa MacHado
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
lEilÕEs
1.
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Filipa vicEntE
18ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
artE contEMporÂnEah
18
1. Paula Rego | “The Moth”, 1994 | Pastel s/ papel | 160 x 120 cm | Vendido na Christie’s de
Londres, em 20 de Junho de 2007, por uS$ 727.548.
Paula Rego | “Target”, 1995 | Pastel s/ papel | 160 x 120 cm | Vendido na Sotheby’s de
Londres, em 22 de Junho de 2005, por uS$ 627.737
Paula Rego | “Island of the Lights from Pinocchio”, 1996 | Tinta da índia e aguarela s/
papel colado s/ tela | 150 x 180 cm | Vendido na Sotheby’s de Londres, em 9 de Fevereiro de
2006, por uS$ 441.600.
Paula Rego | “The Sweeper”, 2002 | Pastel s/ papel | 150 x 90 cm | Vendido na Sotheby’s
de Londres, em 23 de Junho de 2004, por uS$ 213.818.
Paula Rego | “The drawing lesson”, 1985 | Acrílico s/ papel | 100 x 70 cm | Vendido na
Sotheby’s de Londres, em 10 de Fevereiro de 2005, por uS$ 211.502.
Vieira da Silva | “Souterrain”, 1948 | óleo s/ tela | 81 x 100 cm | Vendido na Sotheby’s de
Londres, em 29 de Junho de 1990, por uS$ 855.809.
Vieira da Silva | “Papillons”, 1951/2 | óleo s / tela | 60 x 120 cm | Vendido na Artcurial de
Paris, por uS$ 574.350.
2.Julião Sarmento | “Emma 4”, 1990/1 | óleo, grafite e areia s/ tela | 190 x 199,5 cm |
Vendido na Sotheby’s de Londres, em 14 de Outubro de 2006, por uS$ 95.094.
Julião Sarmento | “A Prece de Viriato”, 1985 | óleo, papel e colagem s/ tela | 188 x 279 cm |
Vendido na Christie’s de Londres, em 9 de Fevereiro de 2007, por uS$ 94.117.
Helena Almeida | “s/ título (seis trabalhos)”, 1976/7 | Gelatin silver print | 40 x 50,2 cm |
Vendido na Christie’s de Londres, em Abril de 2005, por uS$ 33.834
3.Helena Almeida | “Voar (em quatro partes)”, 2001 | Cibacrome | 124 x 180 cm | Vendido
na Sotheby’s de Londres, em 16 de Outubro de 2006, por uS$ 63.396.
lEilÕEs artistas portuguEsEs no circuito MilionÁrio
2. 3.
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GrandeRAJASTÃO | FOTOgRAFIA: MARIA JOÃO LIMA
A Índia é assim grande. Difícil de contar num livro, numa colecção,
só captável de relance em palavras de papel jornal. Um território
imenso, o sexto maior do mapa político mundial.
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demaisGrande
dossiEr Índia
�1
jorgE BarrEto XaviEr
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
A Índia é assim grande. Difícil de contar num livro,
numa colecção, só captável de relance em palavras
de papel jornal. um território imenso, o sexto maior
do mapa político mundial. uma população que
continua a crescer e já ultrapassou os mil milhões
de habitantes, tendo apenas a China pela frente. As
montanhas mais altas do mundo, desertos de calor
tórrido, praias em sete mil quilómetros de costa,
florestas luxuriantes, cidades milenares.
E depois, o choque de saber que se projecta para �050
serem a China e a Índia as economias dominantes.
Que só na Índia as universidades “produzem”,
anualmente, dois milhões de licenciados. Mas onde a
taxa de analfabetismo é a maior do mundo e a sida
um problema gravíssimo.
Muito difícil relatar de forma coerente o estado das
coisas nesta terra, com a economia a crescer 8%
ao ano. Aqui se instalam clusters de tecnologias que
criam desemprego na Europa e nos Estados unidos
nas respectivas áreas. Ao mesmo tempo, esta Europa
que morre demograficamente tem de se alimentar da
emigração qualificada e não qualificada para avançar.
Aqui está um Estado que tendo afinidades históricas
milenares no território que ocupa, se tem actualizado
e fortalecido como Nação nos últimos anos.
A identidade indiana tem sido forjada com uma
coerência maior por efeito da criação, em 1947, da
união Indiana, reunindo sob uma mesma bandeira
um território que nunca esteve integralmente
coberto pelos maiores impérios (como o mogol)
que marcaram o Industão, um território marcado
pela existência de um número incontável de
realidades políticas, etnias, situações diferenciadas de
desenvolvimento.
O efeito da presença militar, administrativa, comercial,
cultural, da Companhia Inglesa das Índias Orientais
e da Coroa britânica teve um papel importante na
afirmação identitária que se tem sedimentado nos
últimos sessenta anos. um pequeno parágrafo nas
histórias que se podem contar dos últimos quatro mil
de um espaço geográfico onde, ao lado de culturas
de subsistência se afirmaram algumas das mais
florescentes da Humanidade.
Sendo pequeno, este parágrafo não é menor, pois
trouxe o modelo de uma democracia parlamentar
para a Índia, fazendo desta, actualmente, a maior
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��
dossiEr Índia grandE dEMais
templos e espaços de oração não orienta, necessariamente, os comportamentos
por regras sábias ou por atitudes de desprendimento. O sistema de organização
social por castas, apesar de manter um papel relevante, pode, com alguma
facilidade, ser ultrapassado por uma bom dote, pela riqueza de um empresário,
pelo lucro provável decorrente de uma certa ligação profissional.
Atente-se agora na relação Portugal-Índia: no mundo globalizado, onde em cada
seis seres humanos um é indiano, percebe-se a premência de melhor conhecer
um país com o qual perdemos contacto. Portugal tem, como todos sabemos,
aspectos mal resolvidos como nação, com o seu período colonial. Os 450 anos
democracia do mundo. Ironia estranha, pois o reino
unido, enquanto esteve, subjugou, explorou, mas ao
sair, deixa um modelo de liberdade.
Apesar das situações passadas de recentes guerras
com vizinhos como a China ou o Paquistão (aqui
com uma ferida aberta ainda), de alguns problemas
secessionistas (Caxemira, Assam, Punjab) a Índia
estabilizou o território e as suas populações (�8
Estados, 18 línguas, mais de 800 dialectos).
usou como cimento para a sua multiplicidade, e
para as suas divergências, as palavras e as atitudes
sábias de Mohandas K. Gandhi. Não se duvidará do
seu papel no caminho para a independência e na
afirmação do novo Estado, nas décadas de trinta e
de quarenta. Mas não se pense que Gandhi, como
outros indianos, hindus, muçulmanos, cristãos, jainas
ou sikhs notáveis de todos os tempos, representam a
maioria da população. Como em qualquer nação, os
seus referenciais unem, por vezes numa aparência
comummente aceite, o que não pode fazer esquecer a
enorme diversidade das manifestações do quotidiano
e dos seus cidadãos.
É assim que se compreende que haja religiosidade
e materialismo, democracia e corrupção, avanço
tecnológico e analfabetismo, turismo de luxo e sida.
A estes binómios, reducionistas, é certo, poderiam
acrescentar-se outras construções, para afirmar a
complexidade deste país/continente.
Os indianos, que continuam a fazer questão de
impressionar os visitantes, são muito pragmáticos.
tive a oportunidade de reparar como se avalia
e categoriza um interlocutor, seja indiano ou
estrangeiro, no início de uma conversa, para situar
o modo como se estabelece a relação de Poder
concreto. É a partir daí que se estabelece a relação
inter-pessoal.
E se se olha para a Índia como espaço de
espiritualidade, não se pode esquecer o outro lado
- o materialismo. A vontade de ascensão das classes
médias, a afirmação ostentatório das classes ricas,
a pouca preocupação destes com os mais pobres.
Esta terra onde se situam mais de dois milhões de
CARTAz dE uM FILME dE bOLLywOOd
de presença na Índia parece que se diluíram, evaporaram do nosso imaginário
colectivo. Em alguns territórios indianos, essa presença continua a ser uma
realidade e hoje, o Governo da Índia já é suficientemente forte para não ter
problemas com a salvaguarda do património histórico português.
Hoje, quantos portugueses há a estudar em universidades indianas? Contam-se
pelos dedos de uma mão, talvez duas? Quantos verdadeiros conhecedores das
realidades desse imenso espaço de oportunidades?
Estive em Goa em Março passado. Lá, o tempo parece correr depressa. As classes
altas e médias (enquanto as classes pobres muito lentamente se libertam dessa
condição) anseiam pelo futuro, entusiasmam-se e correm para esse futuro.
Dizem-me ser assim em Mumbai, em bangalore, em Delhi, em Calcuta, em
Madras.
Notei um entusiasmo, um dinamismo. uma amizade com o Presente que por cá
vai faltando. Vale a pena fazer a ponte. |
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pEtEr nagy | trADuçãO DE Maria corrEia
a prática da arte contemporânea na Índia actual
reflecte a diversidade do próprio país. tão grande
quanto a Europa inteira, o subcontinente indiano
engloba idêntica dimensão de pluralismo cultural.
Desde a ponta norte de Kashmir à província de
Kerala, a sul, a diversidade espelha as diferenças que
podemos, por exemplo, encontrar entre a Lapónia e
a Sicília. As práticas políticas e religiosas, os estilos
no vestuário e na arquitectura, a cozinha, as línguas,
os rostos e a música alteram-se drasticamente de
uma província para outra. A unificação destas massas
heterogéneas com o objectivo de fundi-las numa
nação democrática e secular é uma das maiores
histórias de sucesso do séc. XX.
Após um longo período de desconhecimento e
indiferença por parte da comunidade internacional,
a Índia tornou-se, nos tempos recentes, cada vez mais
visível. É certo que isso se deve, em larga medida,
a factores económicos. Com um mercado da classe
média em rápida expansão no que se refere ao
consumo de bens, uma mão-de-obra inesgotável
e uma aptidão especial para as ciências aplicadas, este
país e este povo estão dispostos a alcançar o poder
regional, a competir agressivamente com a China e a
ganhar o respeito crescente das potências do futuro.
Mas a cultura também desempenha aqui o seu papel.
Os anos 90 testemunharam a aparição de escritores
indianos que se exprimiam em inglês, o que lhes
A Índia: granjeou a distribuição e um vasto reconhecimento
público. Em seguida, veio a obsessão do mundo da
moda. Nas grandes capitais do mundo, as calças
de ganga e as camisolas enfeitadas com brocados
de saris, ou as sacolas de tela indiana semeadas de
lantejoulas tornaram-se objectos banais. A influência
da música chegou com a introdução de guitarras
indianas e alaúdes nas pistas de dança ocidentais
e com a surpreendente adição de instrumentos
de música tradicionais do Punjab no gangsta-rap
americano. também na comida, as especiarias
indianas e as diversas cozinhas regionais foram
redescobertas, adaptadas e contextualizadas. No
que respeita ao ioga, pode argumentar-se que
este se tornou actualmente a forma de exercício
predominante nos Estados unidos.
Os projectores parecem agora incidir sobre as artes
contemporâneas do país. talvez um pouco tarde,
dir-se-ia, mas é como se um domínio globalizado
da arte tivesse antes de digerir uma quantidade de
produtos vindos da China e do Japão, mesmo da
América do Sul e da África, até poder debruçar-se
sobre a Índia. Se tivermos em consideração o cariz
geralmente explorador e enganoso da globalização
nos seus mecanismos económicos e capitalistas,
na indústria cultural esta surge, afortunadamente,
após décadas de diálogo sobre multiculturalismo,
pós-colonialismo e análise marxista. Muitos artistas
Após um longo período de desconhecimento e indiferença por parte da comunidade internacional,
a Índia tornou--se, nos tempos recentes, cada vez mais visível.
EM CASA NO MUNDO
�4ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
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uM ocEano intEiro
h
Peter Nagy é um artista nova-iorquino que vive na Índia desde 1992. Entre 1982 e 1988 foi director da Galeria Nature Morte, na East Village de Nova Iorque. É, desde 1997, director da Nature Morte em Nova Deli. Em colaboração com a Galeria Bose Pacia, de Nova Iorque, desde 2003, a Nature Morte é a primeira galeria da Índia a participar em prestigiadas feiras de arte internacionais, tais como o Armory Show, em
Nova Iorque (2005, 2006 e 2007), a Art Basel, a FIAC, em Paris, e a Art Basel Miami (2006). Em Março de 2007 ambas galerias abriram em conjunto um novo espaço chamado Bose Pacia Kolkata, em Calcutá. Além de dirigir a Nature Morte, Nagy é convidado para comissariar exposições tanto na Índia como no exterior e os seus artigos sobre arte contemporânea estão publicados em muitos jornais e revistas. |
indianos, que se servem do vídeo e da fotografia
ou dos media recentes para abordarem temas
sócio-políticos, assumindo atitudes agressivamente
esquerdistas, expõem hoje as suas obras pelo mundo
inteiro, enquanto na própria Índia o interesse e as
oportunidades ainda lhes escasseiam (isto deve-se ao
facto de o mercado de arte indiano, hiper-activo mas
conservador, continuar fixado na pintura, quase não
existindo apoios institucionais para qualquer tipo de
arte contemporânea).
À medida que a nação indiana vai ganhando
importância na cena internacional, a sua cultura torna-
se cada vez mais relevante para o resto do mundo.
Conforme escreveu, há longos anos, o reconhecido
crítico thomas McEviley na revista Artforum, “A Índia
já era uma nação pós-moderna antes de se tornar
uma nação moderna.” Continuando a debater-se, por
diversas formas, com o “moderno”, a Índia actual surge-
nos como o exemplo par excellence da era pós-moderna,
um modelo para outras nações que queiram resolver
as suas ansiedades e dificuldades internas associadas à
hibridez, complexidade, contradição e diversidade.
Esta diversidade reflecte-se na arte contemporânea
produzida actualmente na Índia. O público encontrará
obras que reportam à mitologia clássica, tradições
populares e tribais, indústrias de informação e alta tecnologia, cultura dos povos,
iconografias religiosas, técnicas de artesanato, desigualdades sociais, diálogo
político e até às histórias da arte moderna ocidental e da filosofia europeia. uma
mistura forte e entrelaçada que provoca a um tempo prazer e consternação e
que confunde inteiramente qualquer leitura simplista daquilo que é a prática
artística contemporânea na Índia actual. Os artistas que começam a alcançar o
reconhecimento internacional parecem ter intuitivamente encontrado para as suas
obras o justo equilíbrio entre o local e o global, uma mistura que se identifica com
o facto de a melhor arte poder ser “globalizada” a partir de qualquer local. É caso
para nos questionarmos sobre quão “indiana” deve ser a arte contemporânea
na Índia. Pode também pôr-se esta questão relativamente aos “chineses”, aos
“africanos” ou até aos “americanos”. No estágio presente da arte contemporânea,
quantas referências à cultura tradicional queremos ver nela incluídas? Quantos
elementos de expressão popular, tradicional ou nacional são desejados ou descritos
como naïf pela audiência internacional? Francesco Clemente é considerado como
“visionário” ao inspirar-se na Índia; porém, os artistas indianos são vistos como
“à deriva” quando se reportam à Arte Povera. Até que ponto somos receptivos às
espirais de influência que impelem a cultura contemporânea à volta do mundo e de
que forma temos consciência dos nossos preconceitos relativamente à direcção que
essas influências devem seguir? |
FOTOgRAFIA: MARIA JOÃO LIMA
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artE contEMporÂnEa da Índia ESPAçOS DE vAIvéMA arte contemporânea da Índia tem sofrido muitas vezes um tratamento procustiano, com
os críticos a tentarem confiná-la à retórica de uma cultura nacional ou a uma construção
limitativa como a de identidade.
nancy adajania | trADuçãO DE Maria corrEia
�6ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
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A arte contemporânea da Índia tem sofrido muitas
vezes um tratamento procustiano, com os críticos
a tentarem confiná-la à retórica de uma cultura
nacional ou a uma construção limitativa como a de
identidade. Neste artigo abordarei a questão através
dos processos e actividades diversas através dos quais
os artistas contemporâneos indianos têm produzido
a sua arte, muitas vezes em condições difíceis ou até
críticas. Falarei, assim, sobre o vaivém alternativo
entre a fotografia e o filme; sobre o aproveitamento
de arquivos no intervalo entre o documentário e
a ficção e o espaço entre o registo e a realização;
sobre o futuro da representação entre morphing e
realismo; sobre o cruzamento entre as economias
de fazer e receber e a difícil recuperação do sagrado
como um dos conceitos legítimos e mais ignorados
do ser contemporâneo, muitas vezes desafiando uma
religiosidade mesquinha e politizada.
Os artistas indianos têm trabalhado nestes espaços de
vaivém: zonas intermédias entre os estilos, os media,
as audiências e as diversas economias de produção.
O seu trabalho apoia-se numa busca renovada de
autonomia num período da história caracterizado pela
força crescente das restrições e pelo controlo, ainda
que assaz imperceptível, das escolhas e movimentos
individuais; restrições de acesso e passagem; vigilância
e militarização; e também constrições políticas
frequentemente violentas, baseadas na religião, nas
origens étnicas e na identidade regional.
Muitos destes artistas procuram situar-se, e situar
�7
a sua obra, em espaços alternativos que não sejam
estatais ou privados, nem galeria nem partido político.
Coloca-se, muitas vezes, a seguinte questão: como
prosseguir uma política que não esteja comprometida
com o político? Como realizar produções culturais
que não sejam neutralizadas pelo mercado artístico?
Assim surgiram novas espécies de convergências
de interesses e alianças de vontades: entre o
activista ambiental e o documentarista, o fotógrafo
e o arquivista, o técnico de animação e o contador
de histórias. Muitos deles estão empenhados em
democratizar os recursos da época actual, os mesmos
recursos que os controladores querem utilizar para
exercer o seu domínio: as comunicações e tecnologias
de imagem, redes digitais, códigos de acesso e por aí
fora.
As fronteiras e os arquivos têm sido uma fonte
metafórica para o colectivo raqs Media Collective
(Monica Narula, Jeebesh bagchi and Shuddhabrata
Sengupta) e também para Shilpa Gupta. O mito
foi utilizado por artistas como Jitish Kallat, reena
Saini Kallat, Anant Joshi and Justin Ponmany, não
apenas como combustível fóssil da imaginação, mas
também como uma história inacabada para o ser, a
qual pode assumir as formas de um conto de fadas
contemporâneo, folclore urbano, animação alternativa
e auto-dramatização.
Estes projectos artísticos transformam a produção
estética em expressão política; eles desafiam o
poder a diversos níveis; expõem à vista geral os
à esquerDa | RaQS meDia cOllecTive | InSTALAçÃO “ThE Kd VyAS CORRESpOndEnCE: VOL. 1·, 2006 | 18 ECRÃS, 9 pAISAgEnS SOnORAS,
ARquITECTuRA METáLICA, ThEROMOCOL CASIng | FOTOgRAFIA: nORbERT ThIguLETy | eM CiMa | dETALhE dA InSTALAçÃO.
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narrativas, não é de admirar que o colectivo raqs
se tenha voltado para as narrativas épicas da Índia
antiga. Estas, em particular o Mahabharata, são
divulgadas por uma interacção constante entre as
versões originais do sânscrito, literariamente cultas,
e muitas outras versões subalternas e regionais,
improvisadas em espectáculos e em narrativas orais.
É a partir deste relacionamento que surge The K D
Vyas Correspondence: Vol. 1, no qual o grupo traduz a
estrutura hipertextual da narrativa épica sob forma de
correspondência. O público é acolhido por uma árvore
de mensagens, tanto visuais como auditivas;
e passamos com ele da “Carta descoberta num
arquivo morto”, para a “Carta do tempo amargo da
paz”, até chegarmos à “Carta incriminatória do leitor”.
Vacilando entre o surreal e o sombrio, o mágico e o
messiânico, esta é uma das obras mais conseguidas
dos raqs, cheia de ressonância, melancolia e de uma
poética metafísica da duração.
Para vários destes artistas, o tema da catástrofe
é recorrente. reena Saini Kallat desenvolve, no
seu trabalho, a ligação entre o medo do desastre
(“má estrela”, literalmente, em grego) e a magia
apotropaica. As suas pinturas e esculturas-
instalação retratam o corpo humano e o corpo
político, por extensão, colocado em estado de sítio
permanente, destroçado por demónios míticos e
vírus desconhecidos que o atacam por todos os lados.
As acções desta artista revelam uma necessidade
obsessiva de consagrar lugares contestados, de afastar
as forças de conflito e o caos. Exterioriza os seus
medos e ansiedades acerca da condição humana,
na expectativa de poder contê-los e neutralizá-los
através da criação de objectos talismânicos.
mecanismos secretos da coerção, do conformismo e
da manipulação. O conceito de autoria foi igualmente
transformado por artistas como os do colectivo raqs
ou Shilpa Gupta, aqui representados.
A natureza da obra leva-os a desenvolver situações
de colaboração com outros artistas e com especialistas
de outras disciplinas. Avançaram, assim, para uma
compreensão alargada do conceito de autor, em que
o processo de produção é distribuído por múltiplos
colaboradores ou emerge dos diálogos estabelecidos
na troca dos processos de construção. Desta forma,
os artistas vão “re-mundanizar-se”, penetrando em
espaços que talvez não tivessem ainda explorado,
usando ligações semelhantes a hipertextos para
passarem de um plano a outro, fabricando para si
novas vivências e novos contextos operacionais.
Assistimos, portanto, à emergência de práticas
comunitárias que se baseiam na partilha de interesses
livres e democráticos; por exemplo, a livre partilha de
software entre o colectivo raqs e o Sarai Media Lab,
que produziu a OPuS (Open Platform for unlimited
Signification), e cujos utilizadores podem descarregar
conteúdos de media, como textos, imagens, vídeo e
áudio, modificá-los e devolvê-los. Este projecto inspira-
se no princípio da revisão: a alteração do código-
fonte de que resultará um conjunto de novas versões,
nenhuma delas singular ou categórica e todas elas
estimulantes a diferentes níveis.
O colectivo raqs exibe as suas intervenções no
universo digital, assim como no disputado espaço
público da Índia metropolitana que se caracteriza
pelo rápido consumismo. Com a sua abertura
aos conceitos de autoria múltipla, de partilha dos
direitos de propriedade e de proliferação de versões
O colectivo Raqs exibe as suas intervenções no universo digital,
assim como no disputado espaço público da Índia metropolitana
que se caracteriza pelo rápido consumismo
�8
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Shilpa GUpTa | “SEM TíTuLO”, 2006 | pROJECçÃO VídEO InTERACTIVA (1).
reena Saini Kallat e Shilpa Gupta demonstram,
de formas distintas, empenho em envolverem-
se numa observação do sagrado num contexto
contemporâneo. Ambos trabalham nos extremos
entre a religiosidade politizada e a secularização
agressiva. Nas suas mais recentes instalações
interactivas, Gupta trabalha com um jogo de
sombras e realidades que é a um tempo espectral
e estranhamente corpóreo. Neste jogo cintilante de
fantasmas, o público é forçado a participar, pois as
suas sombras, captadas ao vivo por uma câmara
posicionada no local, interagem com as figuras
sombrias projectadas em vídeo. Poder-se-ia considerar
esta insistência na interactividade como o pretexto
para uma descarada vigilância por parte do artista,
forçando o público a uma colaboração intensa?
reduzidos às próprias sombras, os participantes
seguem o artista até à realização dos seus mais
profundos e básicos instintos. Gupta explora as
sensações do público nessa situação: “Eu faço parte
da sombra! Mas ninguém me pediu licença, teria
nascido para ela? teria nascido para este país, esta
sociedade, esta religião?... Mas posso sair dela...”
Gupta trata a noção de pertença a uma religião ou país
como uma fé que pode ser transcendida, não como
algo em que se está forçosamente encerrado.
Anant Joshi está igualmente fascinado pela
recuperação da sombra no simbolismo
contemporâneo. Nas suas instalações multimédia,
coloca brinquedos em cima de mesas ou em dioramas
e simulações de montras de lojas. Projecta, em
seguida, as sombras dos objectos nas paredes como
presenças nefastas: um meditativo horizonte urbano
ou um exército de demónios surgem das sombras.
Ou então seguimos com os olhos um rápido
tremeluzir de luzes através de uma cortina de lâminas,
para encontrarmos brinquedos rodando penosamente
no espeto do fogão de uma bruxa sádica. Joshi
conduz-nos através de um inferno de animações
ferozes, máquinas infernais, brinquedos possuídos
por espíritos diabólicos, rabiscos maníacos: estamos
no conto de Hansel e Gretel, ou recebemos um
vislumbre do sindroma da baía de Guantanamo? O
dossiEr Índia artE contEMporÂnEa na Índia: Espaços dE vaivéM
elemento lúdico na obra de Joshi associa-se ao teatro em três aspectos diferentes:
primeiro, ao teatro tradicional de sombras de fantoches, segundo, à lanterna
mágica e ao zoetrope (mecanismo que dá a impressão de figuras em movimento) e,
terceiro, à economia mundial de hoje, em que os brinquedos chineses se vendem
a baixo preço nas ruas de bombaim. Joshi alude também à histeria consumista
que conquistou a Índia urbana, dando ênfase ao lixo das mercadorias do usa-e-
deita-fora e à celebração destrutiva de um excedente ilusório que origina a um
sentimento superficial de abundância.
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Nancy Adajania É ensaísta, crítica de arte e curadora independente. Os seus ensaios sobre novos media foram publicados em edições da Documenta 11, do zentrum für Kunst und Medientechnologie (zKM) e de revistas como springerin, Metamute, art 21, art asia Pacific, e Documenta 12 Magazine. Vive e trabalha em Bombaim. |
Shilpa GUpTa | “SEM TíTuLO”, 2006 | pROJECçÃO VídEO InTERACTIVA (2).
Justin Ponmany e Jitish Kallat partilham entre si uma consciência estruturada,
no princípio dos renovados anos 90, pela televisão por cabo e pelo ciberespaço.
Ponmany começou a usar superfícies hologramáticas para mostrar paisagens
urbanas e elementos de heráldica contemporânea que podiam ser vistos em
diversas resoluções, conforme iam surgindo ao olhar a partir da superfície
preparada. Nas obras mais recentes, rebenta com o próprio conceito de panorama
fotográfico ao produzir close-ups panorâmicos de 360 graus que retratam a camada
subalterna da população indiana em grandes dimensões. Ponmany representa na
sua obra o absurdo de cartografar e vigiar quando abre a cabeça de um homem
como um globo achatado, um mapa esticado e vulnerável de pele e cabelo,
parodiando as fotografias por satélite do Google Earth, penetrantemente invasivas,
ou as repressivas investigações forenses do Identikit.
Kallat traduziu as suas superfícies pictóricas para ecrãs de computador simulados,
servindo-se de noções de distorção digital e transmissão espectral. Anteriormente,
estruturava as obras de fontes tão diversas como uma fotografia de jornal ou
um menu de conteúdos digitais, e os seus protagonistas eram muitas vezes
figuras fugitivas, vítimas de migrações forçadas, de desígnios mal concebidos
e de remedeios drásticos. Enquanto se celebrava a liberalização económica,
Kallat insistia em retratar os prisioneiros desse mesmo progresso, os habitantes
de moradas não fixas, a população flutuante da Índia urbana. No presente, as
figuras de Kallat têm-se tornado mais caricaturais, aparentemente baseadas
em exemplares manga; enquanto o ser humano se transformou numa “carroça
amolgada”, a paisagem transformou-se numa massa
fluida e gelatinosa ou numa emanação que se
dissolve. Na abstracção manga de Kallat, o mundo
parece ter ultrapassado o prazo de validade e ter
entrado em colapso através da catástrofe ecológica e
do caos da não-pertença.
Como se depreende do que ficou acima exposto,
todos estes artistas estão simultaneamente
concentrados no domínio regional e no transnacional:
querem destacar-se dos seus congéneres de outros
países e com situações similares; querem contar as
suas próprias histórias e projectar as suas imagens,
estando contudo atentos aos temas que preocupam
os artistas estrangeiros. Esta atitude fá-los avançar
um grande passo em relação ao sindroma de
desconfiança/agressividade das gerações passadas
e faz-nos antever um futuro no qual os artistas
indianos irão conquistar o seu lugar no mundo. |
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Baiju
31
Baiju Parthan (nascido em 1956) é um dos mais importantes artistas indianos da actualidade, tanto na pintura como nas artes “intermedia”. Para além de tecer através da pintura um universo íntimo e misterioso, também combina os interesses pictóricos com explorações no ciberespaço, de que resulta um conjunto de instalações provocatórias e de textura intensa. A sua obra alcançou projecção internacional, tendo sido exposta em diversos espaços culturais, entre outros, o Kunsthalle Wien, Viena; a Culturgest, Lisboa; o ‘New Moves’ Live Art Festival, Glasgow; e a Japan Foundation, Tóquio.
ranjit HoskotE CONVErSA COM
BaijU paRThan, 2007 |
“SEquEnCE - “A” & “b”” |
TInTA SOLÚVEL EM áCIdO InOXIdáVEL |
218 X 112 CM
ranjit HoskotE | trADuçãO DE Maria corrEia
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
Parthan
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ranjit Hoskote: Você nada através das correntes da sociedade de informação como
um míssil teleguiado. Acha esta imagem demasiado cortante e ambiciosa para definir a
sua actividade, ou vê-se a maior parte das vezes no modo de piloto automático em que
as sugestões se vão filtrando gradualmente?
Baiju parthan: um míssil teleguiado! Parece-me uma imagem demasiado intencional!
Vejo-me mais como um motor de busca (ou ser rastejante) de olhos bem abertos a
procurar e a organizar informação. Da mesma forma que um motor de busca, também
eu pesquiso dentro da informação padrões que tenham alguma espécie de potencial
profético. Examinando padrões no fluxo de informação pode dizer-se: “Ok, o mundo/a
humanidade está a mover-se para esta ou aquela situação”. O que eu observo agora é
um colapso ontológico e uma alarmante erosão dos significados.
rH: Exprime-se como um profeta da desgraça. Como o Hari Selden da série Foundation
do Asimov, para não ir mais fundo ainda na tradição apocalíptica...
Bp: O Hari Selden da Foundation! Isso é realmente lisonjeiro. Gostaria imenso de ser
um profeta psico-historiador que tenta salvar a humanidade da extinção. Infelizmente
não sou. Mas creio firmemente que os artistas e os poetas possuem uma certa visão
privilegiada, visto que estão sempre a tentar ver para além da realidade aparente. Por
vezes esta visão ampliada produz os seus frutos, ainda que possam ser amargos.
rH: A auto-representação é um traço recorrente no seu trabalho - diria até que para
uma personalidade aparentemente hesitante e que persiste em se apagar, você
produziu uma série inspirada de auto-retratos - e refiro-me aqui ao robô-de-olhos
fechados, ao Cristo-além-de-Dürer, ao tigre-dançarino ginasta e à figura flexível de
Hanuman de mãos-atrás-das-costas. É como se você
se imaginasse “fora das situações”, como já disse
anteriormente no meu trabalho, Passando através de
Espelhos? Reflexões sobre o Tráfico Espiritual entre a
Índia e a Europa, acerca de outros eus em trânsito entre
culturas, épocas e estilos!
Bp: Embora eu não procure conscientemente auto-
imagens, estas às vezes insinuam-se. O robô-de-olhos-
fechados, por exemplo, é definitivamente a expulsão
do eu. E como você disse, suponho que as outras são
também eus que se encontram em trânsito.
rH: Na inscrição das colunas que acompanhavam a
sua projecção em Um Diário do Robô Interior ou DRI
(na instalação “intermedia” que você produziu para a
exposição “Clicking into Place”, comissariada por mim
em bombaim, em �00�) e em A Fool’s Journey (em
�005) você vira as costas ao mundo, e aos observadores,
e apresenta em seu lugar uma lista, que é também
um biombo ou um véu, que consiste em nomes de
filósofos, gente do espectáculo e artistas que foram
muito importantes para si. Isso é uma espécie de auto-
definição através dos outros? uma válvula de escape ou
BaijU paRThan, 2000-2003 | “COdE - FuTuRz MAChInE” | InSTALAçÃO dIgITAL InTERACTIVA | hTML, I-ChIng dATA bASE
BaijU paRThan, 2001-2003 | “dIARy OF ThE InnER CybORg” | InSTALAçÃO dE VídEO dIgITAL InTERACTIVA | pAInÉIS ILuMInAdOS pOR TRáS, pROJECTOR LCd.
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uma afirmação da multiplicidade de eus que representa?
Bp: Nesse trabalho quis dizer que sou uma série de
retalhos de influências e ideias obtidas através de
múltiplos ângulos da actividade humana. Estava a
tentar contrapor esse eu-robô-substituto com o eu
da série de retalhos. Queria exprimir que a nossa
preciosa auto-imagem é na realidade uma ficção que
está ao mesmo tempo a ser escrita e apagada.
rH: Interessa-me a personagem barbeada, de olhos
fechados, de pele azul do Robô Interior que foi
exposta, ainda antes do DRI, no Objecto de Desejo
(�001) e que também aparece noutros lados. Como foi
que chegou a essa personagem?
Bp: Na verdade, a primeira versão do “robô interior”
foi terminada no ano �000. Modelei a figura do robô
a partir da figura humana genérica masculina num
software gráfico de 3D. Achei bastante apropriado
modelar a personagem virtual do DrI com base numa
figura humana gerada no computador. Este retrato
azul, de olhos virados para uma visão interior, de
uma entidade inexistente, transpira uma inocência
primordial e uma pureza que me atraíram. E tornou-se
um ícone que já copiei em diversos trabalhos.
rH: baiju, sente que é um robô? Sei, por experiência
própria, que um colapso do disco rígido é uma
experiência de quase-morte. Sentimos que perdemos
uma parte de nós, que ficamos nós próprios em risco de
extinção. E a sua experiência no âmbito das realidades
cibernéticas e digitais é muito mais intensa e vivenciada
do que a nossa.
Bp: Se eu sou um robô? De certas maneiras
suponho que sim, porque mantenho uma relação
quase simbiótica com os meus computadores.
Principalmente porque eles são uma extensão do
próprio ser e são invisíveis, são para nós coisas
garantidas e invisíveis como a electricidade. É o
caso da ferramenta inventada que reformula a nossa
percepção do mundo. tal como a invenção da roda
reformulou a noção de distância e de mobilidade. |
BaijU paRThan, 2004 | “A FOOL’S JOuRnEy” | TInTA SObRE ALuMínIO | 193 X 76 X 5 CM
Ranjit Hoskote É poeta, crítico de arte, ensaísta e curador independente. Foi colaborador do the times of india e publicou inúmeros ensaios sobre artistas indianos. Vive e trabalha em Bombaim. |
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Pinturascantadas
alEXandrE olivEira | clÁudia pErEira
35ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
EXPOSIçãO MUSEU NACIONAL DE ETNOLOGIA
ARTE E PERfORMANCE DAS MULHERES DE NAYA
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36
Muito antes de os baladistas e os contadores de lendas medievais percorrerem os
trilhos da Europa, já havia ao sul dos Himalaias quem se dedicasse não só a cantar
como a mostrar as lendas e histórias do seu povo. Ao longo dos últimos �000 anos,
os patua (pintores de narrativas) foram pintando e cantando as histórias dos livros
sagrados hindus mesmo depois de, por volta do séc. XVII, se terem convertido ao
Islão. A troco de alimentos e abrigo, estes artistas percorriam as aldeias de bengala
Ocidental relatando amores e paixões de deuses e demónios, pregando valores
hindus e muçulmanos e apelando à tolerância religiosa, para o que recorriam a
canções e a longos rolos de papel ilustrados com cores vivas para acompanhar a
canção. Este meio audiovisual milenar subsiste ainda adaptando-se às mudanças
sociais que vão surgindo até nas mais recônditas aldeias da Índia, como na aldeia
de Naya, a três horas de Calcutá, onde um grupo de mulheres de casta patua se
associou para melhor vender e dar a conhecer o seu trabalho.
A exposição do Museu Nacional de Etnologia, “Pinturas Cantadas - Arte e
performance das mulheres de Naya” é consequência de um trabalho de mais de
cinco anos levado a cabo pelo casal de investigadores Lina Fruzzetti e Ákos Östör,
que quiseram passar para filme as vidas destas mulheres. Foi durante a exibição
de Singing Pictures em Lisboa que surgiu o interesse por parte de Joaquim Pais
de brito do Museu Nacional de Etnologia e rosa Maria Perez do Departamento
de Antropologia do ISCtE em transpor este filme e os desenhos para a sala de
exposições. Há então na exposição uma preocupação em apresentar não só os
desenhos como as artistas, as mulheres de Naya, contando as histórias das suas
vidas e a sua relação com a arte que abraçaram. Para tal são expostos painéis com
os testemunhos das autoras, o filme e uma selecção de 58 rolos ilustrados. também
o sítio na Internet, criado por Ákos Östör na Wesleyan university do Connecticut,
complementa a exposição, contextualiza o trabalho de campo e convida-nos a
viajar em maior profundidade na vida social e ritual das mulheres de Naya: http://
learningobjects.wesleyan.edu/naya
Entrar na exposição é sentir a harmonia cultural que o filme dos antropólogos
também revela. A própria disposição original da exposição provoca a mesma
sensação. Predominam as narrativas religiosas hindus e muçulmanas: sucedem-se
os relatos das seduções de Krishna e o rapto da princesa Sita, contos do milenar
livro hindu Ramayana, e conta-se ainda a história de Shoto Pir, homem santo
muçulmano mas também venerado pelos hindus pois a todos ajudava em troca
de respeito, caso contrário a pessoa seria devorada simultaneamente por tigres e
crocodilo, tal como sugerem alguns desenhos.3. Rani chiTRakaR | ”dISCRIMInAçÃO dAS MuLhERES“ pORMEnOR | 274 X 56 CM
2. haZRa chiTRakaR | “ChAndI MAngAL” | pORMEnOR | 408 X 56 CM
1. mayna chiTRakaR | “MAnASA MAngAL” | pORMEnOR | 339 X 56 CM
A interessante exposição
“Pinturas Cantadas” mostra-
-nos a arte, a cultura, a história
e a vida social de um grupo
de mulheres da aldeia de Naya,
no estado de Bengala,
a três horas de Calcutá.
No Museu de Etnologia,
aqui tão perto, até ao final
do ano.
1. 2.
PáGiNa aNterior | VISTA gERAL dA EXpOSIçÃO
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Paralelamente à tradição oral, onde predominam as narrativas religiosas hindus
e muçulmanas, juntam-se inesperadas temáticas contemporâneas que apelam
à consciência social: a violência doméstica, particularmente o assassínio de
mulheres (para os maridos poderem casar novamente e receberem outro dote
no casamento); o controlo da natalidade; o infanticídio feminino; a sida. É a
passagem dos patuas para o século XXI, agora solicitados pelos serviços sociais e
por ONG para campanhas de informação e aconselhamento nas aldeias. Outros
temas contemporâneos surgem também pintados: o 11 de Setembro e o tsunami
no Oceano Índico são transformados em metáforas visuais por vezes mais cruas
que as imagens vistas e revistas nos nossos televisores. Os conflitos entre hindus
e muçulmanos são reprovados com apelos à fraternidade universal espelhada na
fraternidade das mulheres de Naya, hindus e muçulmanas: “Os shantal dizem
Marang Gurang; os cristãos usam o nome Deus; os muçulmanos dizem Allah,
enquanto os hindus utilizam o nome bhagaban. Nós somos a raça humana,
filhos da mesma mãe”. Na verdade, se ao nível político nacional existem conflitos
religiosos entre hindus e muçulmanos, estas pinturas são o exemplo de como as
religiões dialogam ao nível local da aldeia, quando mulheres hindus e muçulmanas
pintam tanto temas muçulmanos como hindus. Desta forma, é possível
observarmos como a tradição é recriada na contemporaneidade para novos fins
sociais.
Quando olhamos para uma destas pinturas no museu, a nossa imaginação
dificilmente consegue alcançar os locais por onde as suas pintoras cantaram
as histórias: o que os habitantes de várias aldeias aprenderam ao ouvi-las; o
deleite que as pintoras sentiram na sua elaboração; os laços que criaram entre as
mulheres;
a forma como as pinturas lhes permitiram uma melhor condição económica, bem
como a possibilidade de se sentirem melhor consigo próprias. Na verdade, é este
um dos poderes da arte visual: o de transformação da própria forma de representar
e de sentir a Arte. Aos olhos de um ocidental é, sem dúvida, curioso notar, por
exemplo, a forma como os americanos são representados no 11 de Setembro: com
características orientais. Ou seja, um dos muitos modos de olhar o mundo.
Sem terem tido a oportunidade de frequentar a escola e até de se deslocar para
além da própria aldeia, é surpreendente o grau de detalhe do trabalho das pintoras,
que nos permite intuir a mensagem principal sem sabermos a história concreta
que se encontra por detrás de cada peça. As pinturas são sedutoras não só pela
sequência que contam, mas também pelos desenhos isolados, havendo linguagens
diferentes de expressão, consoante as pintoras. O processo de pintura revela-se
bastante artesanal, desde os pincéis que são feitos a partir do pêlo de esquilo e de
cabra, até às tintas de materiais orgânicos como grãos de arroz queimados para o
preto, açafrão para o amarelo e folhas de diferentes
plantas para as outras cores.
As mulheres hindus e muçulmanas, normalmente
confinadas ao espaço da casa e da aldeia,
dependentes economicamente do marido, transpõem
assim o espaço da sua aldeia, abarcando novos
universos e dando a conhecer outras concepções
do mundo. As próprias tradições familiares foram
transformadas, passando a ser, em alguns casos, a
mulher a garantir a subsistência económica. Cantar
e vender as pinturas deu-lhes a oportunidade de
obterem mais comida para casa e de os filhos
poderem andar na escola.
Visitar esta exposição convida-nos também a
reflectir sobre o conceito de arte visual, enquanto
estética e comunicação, simultaneamente. As
“pinturas cantadas” são criadas, por um lado, com
o intuito de serem esteticamente agradáveis, sem
terem de ser pragmaticamente funcionais, embora
também o possam ser (como nas situações em que
divulgam mensagens sociais, a pedido de ONG);
e, por outro, tentam comunicar, potenciando a
percepção do visitante sobre o mundo, através das
imagens, levando à percepção intuitiva do que é
semelhante no que é, a um primeiro olhar, diferente.
Por outras palavras, são pinturas que apresentam
um estilo e um processo que não são familiares,
abordando temas com os quais todos nos podemos
identificar; no fundo, tentando criar harmonia em
universos de tensão. São um objecto de arte tanto
no espaço local, das aldeias indianas, como no de
outras culturas exteriores, proporcionando uma
fonte de rendimento, o que parece determinar a
forma de uma pintura ser bem sucedida. É também
a contemplação de um objecto tido como exótico
(literalmente, vindo “de fora”) para um ocidental,
o que nos proporciona o contacto com o Outro,
através das emoções que nos provoca através das
suas imagens. |
3.
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Dos velhos contosàs novas estórias
luÍs sErpa
GOMuKA’S ESCAPADE:
«In the country of the Vatsas, on the river Kalindi, lies the city
of Kausambi, which is the heart of the world. There reigned King Udayana.
If one tried to enumerate, however briefly, the virtues
of this land, this city, and this king, the story would never begin.
If a traveller sets out on a journey to the seven oceans and continents of this world
and begins his voyage by counting the jewels of Mount Meru,
when will he ever have time to see the world?».1
“O [rio] Ganges passa também pela rua dos Douradores” [F. Pessoa]�
38ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
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suas perspectivas orientais no mundo medieval e na
renascença.
Nacque al mondo un sole
Como fa questo talvolta di Gange
DANtE, Paradis, XV/51.
Esses testemunhos estimularam a imaginação e
as cartografias pessoais baseadas nas experiências
dos passeantes puderam ser elaboradas a partir de
diversos itinerários que concorreram para maravilhar
os mais eruditos escritores e poetas europeus
(Petrarca_De Dita Solitaria).
Ligadas ao ciclo do Sol, as águas escaldantes do
Ganges chegaram-nos carregadas de simbologia.
As narrativas extraídas do livro religioso Rig-Veda
provam-nos como, dos hinos às lendas, das tradições
orais históricas aos comentários práticos bramânicos,
dos monólogos aos argumentos com militares e
heróis, demónios e crimes, melodramas e sátiras,
“a literatura indiana é uma galeria onde figuram todas
as escolas e tendências”. transcende as audiências
aglutinadas pelos ancestrais crentes e pelas práticas
de transmissão de valores baseadas na embriaguês
do misticismo, nos dóceis e resignados cânticos,
leituras ou representações dramáticas. Desde as
velhas epopeias sânscritas, os templos também
albergam reuniões políticas, filosóficas e didácticas e
relatam a história das aventuras fantásticas passadas
[1.] os velhos contos de mercadores, artistas e
escritores não se têm cansado de transmitir descrições
de viagens maravilhosas através de “um discurso
histórico, descritivo, oratório, dramático, poético,
litúrgico ou epistolar (...). Predomina, todavia, o
carácter narrativo e a faceta autobiográfica, o que
confere à obra um tom de verosimilhança (...) ora com
elementos verídicos ora imaginários” (A. J. Saraiva).
As descrições dos viajantes e a literatura em que
a viagem se confronta com regiões e populações
distintas da origem do narrador “permite relatos mais
ou menos objectivos, mas também serve de pretexto
para reflexões sobre variados aspectos, numa escrita
de características artísticas ou ensaísticas”3.
Da Verdadeira Informação das Terras do Preste João
das Índias, do padre Francisco Álvares (1540), ao
Itinerário em Que Se Contém como da Índia Veio
por Terra a Portugal, de António tenreiro (1560)
e à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (1614)
revelaram-se os misteriosos príncipes e impérios
que intrigaram a imaginação europeia. O contexto
geopolítico, económico e social revelou-se através de
fontes pertencentes às potências comerciais graças
à exploração da “novas terras” (Paesi Nuovamente
Ritrovati) 4 em que as descrições da Índia aparecem já
como fazendo parte do património cultural da Europa.
Cruzados, missionários e “viageiros” deram-nos as
GRaça peReiRa cOUTinhO | ”índIA”, 2004 | dípTICO | FOTOgRAFIA
PáGiNa aNterior | GRaça peReiRa cOUTinhO | ”CRIAnçAS dE bEnARES”, 2004 | FOTOgRAFIA
40
dossiEr Índia dos vElHos contos Às novas Estórias
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com sacerdotes que sobem ao sétimo céu a consultar
a sabedoria dos deuses que nem sempre podem
elucidar as perguntas transcendentes dos sadhus (holy
men | homens santos).
Os percursos percorridos pelos sarmayasins
(renouncers | os que renunciam) foram
metodicamente elaborados e incansavelmente
planeados, tal como as tradicionais “jornadas de
fé” medievais europeias. Esta atitude compulsiva
da procura do sublime, construída sob o impulso
“religioso”, constitui-se como um fundamental desejo
humano de alcançar e coleccionar experiências de
modo a mobilizar energias adormecidas e, assim,
contribuir para a conquista dos espaços-de-esperança
próprios da atitude do peregrino. tal como em Sto.
Agostinho (De ciuitate Dei 15.1), as pessoas são
divididas entre aquelas que vivem sob o modelo
humano e as que se pautam pelo modelo de Deus ou,
alegoricamente, entre a babilónia e Jerusalém,
às quais podemos acrescentar Gomorra e Sodoma.
A dicotomia (entre o mal e o bem), encontra-se
também referenciada nos preceitos que regem a
apropriação do(s) acto(s) purificador(es), tal como
na confrontação entre Abel e Caim onde viveram,
um com Deus, outro com o Diabo5. A procura do
conhecimento de nós próprios conduz-nos ao ponto
que sustém a vida (ou a sua impossibilidade) e a
cada passo percorremos o caminho para a meta
(inalcançável?). Se a encontrarmos, deparamo-nos
com o ponto absoluto (M. Zambrano).6 “We Indians
use outer reality to preserve the continuity of the
self” (Nós, os indianos, usamos a realidade exterior
para preservarmos a continuidade do eu). Mas na
metafísica hindu, as coisas são substanciais (dáthu),
embora algumas sejam subtis (sukshma) e outras
grosseiras (sthula). O Absoluto não tem atributos.
O “real” é uma construção teórica, deve sobreviver ao
efémero transcendendo o transitório. Se a metáfora da
cidade nos Contos da Velha Índia é expressa por tudo
o que é irreal, não-existente, ela representa também
o mal, pois os “demónios são os arqui-inimigos dos
deuses. (...) e o céu torna-se uma cidade real - a
materialização, na terra, da cidade sagrada”. todas as
cidades são construções ilusórias, simultaneamente
sagradas e profanas mas, (...) “por definição, uma
cidade não pode ser boa, e não pode durar; se parecer
boa, terá de ser corrompida; se parecer imortal, terá
de ser destruída” (W. D. O’Flaherty).
O nómada e o peregrino ocidental confrontam-se,
por um lado, com o “cosmopolita rural Mahatma
Gandhi” e, por outro, com “o cosmopolita urbano
Jawaharlal Nerhu”. A diferença entre o nómada e o
peregrino reside no facto de que ao primeiro não é
concedido o direito de cidadania e, por conseguinte,
GRaça SaRSfielD | dA SÉRIE ”RAhASyA”, 2001 | TRípTICO | FOTOgRAFIA | 70 X 53 CM
dossiEr Índia dos vElHos contos Às novas Estórias
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não lhe é permitido evocar o estatuto de território por
ele percorrido ou habitado; ao contrário, o segundo
“pratica” a paisagem e reconhece o local de partida
e chegada, razão por que pode habitar os lugares
e reconhecer-se neles. Esta aptidão para utilizar o
espaço e o tempo permite-lhe cartografar as zonas
em que se pode inserir e manter o estatuto que viaja
com ele. A noção de espacialidade que confere aos
locais de referência facilita a sua hierarquização,
podendo harmonizá-los de modo a constituírem-
se como referências na cartografia que elabora a
partir dos itinerários que percorre. Hierarquizado o
espaço social, a cidade surge como zona espacial de
eleição para se confrontar com aquilo que a define: a
multidão. Esta confronta-se com o solitário passeante
e assegura a criação de uma geografia urbana baseada
no cosmopolitismo em justaposição com o errático
“cidadão do mundo”.
Contudo, a cidade organizada em redor da
estratificação socio-económica continua, tal como
referencia o mundano balzac (La Recherhe de l’Asbolu),
a ser o local unitário “do arquétipo geopolítico do
cosmopolitismo”7 (V. Dharwadker) e a ocupar o eixo
das dúvidas que se colocam face ao redundante
processo da globalização. “Will cosmopolitanism
survive globalization’s omnivorous compression of
cultural space-time and erasure of differences?”8
(V. Dharwadker).
“O sistema de identidade oscila, assim, entre a
noção de território (ou a perda dela) e a consciência
do habitante (ou a falta dela). A tensão entre ambos
reflecte a estratégia cultural contemporânea, embora
a confrontação das diferenças e as contradições no
discurso estético oscile, também, entre contemplação e
simples documentação”9 (L. Serpa).
[2.] as novas Estórias constituem-se como narrativas
fragmentadas retiradas de mitos e experiências
dos recém-chegados das distantes terras. Permitem
elaborar genealogias culturais baseadas na
transmissão operada pelas novas comunidades de
viajantes que representam identidades herdadas
mas que questionam os estereótipos dos tradicionais
contos.
O conceito de “herança” surge da prática multicultural
que solidificou as relações entre essas comunidades
e nas quais a questão de identidade provoca agora
uma produtiva discussão sobre a nação e a sua
hierarquizada construção. Este desempenho das
novas classes (i)emigrantes, internacionalmente
aclamadas como o modelo do pós-colonialismo,
sintetizam a interacção entre diversas culturas que
não mais podem disputar a liderança da sua imperial
inter-relação mas que consolidam uma constelar
organização na qual não predomina nenhuma
ascendência civilizacional mas uma solidariedade
baseada numa responsabilidade individual dos
novos operadores sociais. transformada a secular
classificação hierárquica, esta democratiza-se numa
categorização cujo acesso passa a ser assegurado pela
maRia jOSé palla | ”pAREdES dE pAnJIM, VELhA gOA”, 1996 | FOTOgRAFIA cRiSTina aTaíDe | ”duRAnTE O RIO # F22”, 2005 | FOTOgRAFIA,
IMpRESSÃO LAMbdA | 81 X 120 CM
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transdisciplinar partilha de saberes e conhecimentos
cujo novo modelo se baseia numa universal comunhão
de valores agregados aleatoriamente mas capaz de
incentivar processos inovadores de transmissão das
estórias contidas nos velhos contos anónimos.
Esta estratégia universalista deriva também da
confrontação com a cultura da diáspora, que se
confronta com as novas geografias cosmopolitas e
é surgida da transferência dos antigos espaços de
representação. As novas convicções são baseadas
na instabilidade da identidade nacional (u.
Chaudhuri) que reavalia sistematicamente o seu
desempenho através da recolocação dos valores que
definem o espaço de experimentação percorrido
pelo(s) viajante(s) e que encontra na flexibilização
da história o argumento para a reconstrução do
modelo de expansão e apagamento das fronteiras.
A interacção entre o modelo étnico e racial utilizado
pelas complexas relações institucionais encontra,
na dinâmica paisagem urbana, uma bem sucedida
cartografia dos múltiplos interesses individuais.
O colapso da distância ultrapassou as históricas
fronteiras geográficas e permite a fruição de
exemplares experiências, unindo o passado ao
presente. A repetição dos ancestrais contos não é
mais possível pelo facto de que as novas gerações não
encontram relação entre as autobiografias históricas
e as contemporâneas narrativas dos novos locais
emergentes. “The very organicity of the family and the
community, displaced by travel and dislocation, must
be renegotiated and redefined. The two generations
have different starting points and different givens”10
(r. radhakrishanan).
A paisagem cosmopolita, múltipla e discrepante face à
regulada, manipulada e normalizada paisagem urbana
modernista e à ilusionista cidade dos Gandharvas,
confere aos seus protagonistas uma participação
convergente mas não unificada nas acções de
construção de um modelo aberto e tolerante, graças à
capacidade de inscrição no espaço-tempo das novas
tendências de aproximação de centro e da periferia,
cujo léxico inclui palavras como “variedade, narrativa,
fragmentação, contexto urbano, expressionismo,
mobilidade, autonomia, emancipação, tecnologia mas
também poética...”11 (L. Serpa).
A descoberta de um espaço para a afirmação cultural
na era da globalização transgride as ideologias
baseadas no tradicional conceito de deslocação pois
acelera e potencia energias capazes de ultrapassar os
significados de “nação e identidade e as consequentes
questões de interculturalismo e indigenismo” 1�
(L. Serpa). “uma nova Índia emergiu nos últimos
cinquenta anos. Não renega o seu passado nem
é imune à sua influência. É mais um produto dos
desafios do presente e das oportunidades do futuro”13
(P. Varma). |
1tales of ancient india, tradução de J.A.B. Van Buitenen, Srishti-Publishers & Distributors, New Delhi, 2000, p. 151. Tradução para o português - A escapadela de Gomuka: “No país dos Vatsas, junto do rio Kalindi, situa-se a cidade de Kausambi, que é o coração do mundo. Ali reinava o Rei udayana. Se tentássemos descrever, ainda que sucintamente, as virtudes desta terra, desta cidade e deste rei, jamais começaríamos a história. Se um viajante se dispuser a fazer uma jornada aos sete oceanos e continentes deste mundo e começar por enumerar as jóias do Monte Meru, como encontrará tempo para ver o mundo?”
2Pessoa, Fernando, o Livro do Desassossego, 420. Marcha Fúnebre, Parque Expo ‘98 SA e Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p. 375.
3Saraiva, António José, excertos do Prefácio à “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, Edição Sá da Costa, 1961.
4Edwards, Robert R., the Metropol and the Mayester-toun, in Cosmoplitan Geographies-New Locations in Literature and Culture, The English Institute, Routledge, London, 2001, p. 35.
5Montalboddo, Fracazano di, Paesi Nuovamente ritrovati et Novo Mondo da aberico Vespucio florentino intitulato, Vicenza, 1507.
6M. zambrano, Clareiras do bosque, Relógio d’Água, Lisboa, 1995, p. 131.
7Dharwadker, Vinay, Cosmoplitan Geographies - New Locations in Literature and Culture, The English Institute, Routledge, London, 2001, p. 9-10.
8 idem. Tradução para português: “Sobreviverá o cosmopolitismo à compressão omnívora do espaço-tempo cultural e ao rasuramento das diferenças?”
9Serpa, Luís, Fragmentos Globais/tendências Locais - arte na Índia Contemporânea, Catálogo exposição Culturgest, Lisboa, 2004, p.14.
10R. Radhakrishanan, Diasporic Meditations: between home and Locations, Minneapolis, university of Minnesota Press, 1996, p. 206. Tradução para português: “A própria organicidade da família e da comunidade, desviadas pela viagem e pela deslocação, devem ser renegociadas e redefinidas.”
11Serpa, Luís, Fragmentos Globais/tendências Locais - Arte na Índia Contemporânea, Catálogo exposição, Culturgest, Lisboa, 2004, p.17.
12 idem, p.19.
13Varma, Parvan K., a Índia no séc. XXi, Editorial Presença, Lisboa, 2006, p.175.
lUíS SeRpa | ”O COMISSáRIO COMO pEREgRInO”, 2000 | ObEROI hOTEL, bOMbAIM | FOTOgRAFIA A CORES
Luís Serpa Dirige a Galeria Luís Serpa Projectos e foi co-curador da exposição zoom! Arte na Índia Contemporânea (Lisboa, Culturgest, 2004). |
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vIDA OU MORTE NA CIDADE SAGRADA(PArA O VIAJANtE AFOItO)
ManuEl castilHo
44ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
Acredito que quem nunca foi à Índia perdeu uma experiência fundamental,
não conhece o Mundo. Visitar a Índia é a oportunidade de viver no presente o
passado da humanidade, é uma janela sobre milénios de História. Visitar a Índia
é percorrer, em algumas semanas, um presente diferente, o passado próximo,
o passado distante e o passado muito longínquo. É reviver memórias com que
nunca sequer sonhámos, é um salto no abismo em mais do que um sentido. Quem
conseguir superar o choque da miséria, do caos, da sujidade, do mau cheiro, do
calor, da humidade, dos mosquitos, dos “chateadores” profissionais e muito mais é
recompensado com o êxtase intemporal desta cultura milenar sublime. Os outros
apressam-se a antecipar a data da partida e a rogar pragas a quem como eu os
encorajou a empreendimento tão temerário.
A Índia é um país vasto, um subcontinente. Quem procure férias de praia e
testemunhos de cultura portuguesa fará bem em visitar Goa; quem procure cidades
e castelos medievais exóticos no deserto com mulheres misteriosas envoltas
em saris de cores vibrantes, homens de turbantes e hotéis de luxo digno de
marajás e marahanis não deverá perder as cidades do rajastão. Glamour urbano
(sim!), opulento, deveras chocante e entremeado de miséria citadina encontrará
em bombaim, a bollywood, a chamada Nova Iorque da Índia (não bem!), onde
rolls royces, Mercedes e bMWs disputam, barulhentamente, palmo a palmo, as
ruas com táxis Fiat e Ambassador dos anos 50 e carros de mão de duas rodas
empilhados com mercadoria, movidos a tracção humana. Para amantes de
templos e de pedra esculpida recomenda-se Khajuraho, Ajanta e Ellora, Sanchi e
Amaravati e os deliciosos templos na praia em Mahabalipuram. Varanasi (benares
para os ingleses) é o coração da espiritualidade e cultura hindus, cidade de grande
antiguidade cujas origens se perdem na bruma das dinastias que nela deixaram
a sua marca. Documenta pelo menos �500 anos de história ininterrupta, e foi
contemporânea de tebas, babilónia e Ninive.
tenho de confessar que só depois de várias viagens à Índia me decidi a ir
desvendar a “cidade
Acredito que quem nunca foi à Índia perdeu uma experiência fundamental, não
conhece o Mundo. Visitar a Índia é a oportunidade de viver no presente o passado
da humanidade, é uma janela sobre milénios de
História. Visitar a Índia é percorrer, em algumas
semanas, um presente diferente, o passado próximo,
o passado distante e o passado muito longínquo.
É reviver memórias com que nunca sequer sonhámos,
é um salto no abismo em mais do que um sentido.
Quem conseguir superar o choque da miséria,
do caos, da sujidade, do mau cheiro, do calor,
da humidade, dos mosquitos, dos “chateadores”
profissionais e muito mais é recompensado com o
êxtase intemporal desta cultura milenar sublime.
Os outros apressam-se a antecipar a data da partida
e a rogar pragas a quem como eu os encorajou a
empreendimento tão temerário.
A Índia é um país vasto, um subcontinente. Quem
procure férias de praia e testemunhos de cultura
portuguesa fará bem em visitar Goa; quem procure
cidades e castelos medievais exóticos no deserto
com mulheres misteriosas envoltas em saris de cores
vibrantes, homens de turbantes e hotéis de luxo
digno de marajás e marahanis não deverá perder as
cidades do rajastão. Glamour urbano (sim!), opulento,
deveras chocante e entremeado de miséria citadina
encontrará em bombaim, a bollywood, a chamada
Nova Iorque da Índia (não bem!), onde rolls royces,
Mercedes e bMWs disputam, barulhentamente, palmo
a palmo, as ruas com táxis Fiat e Ambassador dos
anos 50 e carros de mão de duas rodas empilhados
com mercadoria, movidos a tracção humana. Para
amantes de templos e de pedra esculpida recomenda-
se Khajuraho, Ajanta e Ellora, Sanchi e Amaravati e
Varanasi
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eM CiMa à esquerDa | A gRAndE STupA dE SARnATh (dhAMEKh STupA) E RuínAS dO SAnTuáRIO pRInCIpAL
eM CiMa à Direita | uM MOMEnTO dA CERIMÓnIA dE VEnERAçÃO dE gAngES ( dEuSA gAngA) AO pÔR dO SOL
eM baiXo à esquerDa | “SAdhu” (ASCETA) nuMA dAS VIELAS dA CIdAdE AnTIgA dE VARAnASI
eM baiXo à Direita | “SAdhuS” (ASCETAS) nuMA dAS VIELAS dA CIdAdE AnTIgA
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os deliciosos templos na praia em Mahabalipuram.
Varanasi (benares para os ingleses) é o coração da
espiritualidade e cultura hindus, cidade de grande
antiguidade cujas origens se perdem na bruma das
dinastias que nela deixaram a sua marca. Documenta
pelo menos �500 anos de história ininterrupta, e foi
contemporânea de tebas, babilónia e Ninive.
tenho de confessar que só depois de várias
viagens à Índia me decidi a ir desvendar a “cidade
sagrada”,Varanasi. temor sem fundamento. Varanasi
é uma cidade acessível, uma “experiência forte” mas
não agressiva. Sai-se de Varanasi com um sorriso
búdico e maior compaixão pela condição humana.
Varanasi, no Estado de uttar Pradesh, Nordeste da
Índia, situada na margem esquerda do Ganges, o
rio sagrado, é um dos mais importantes centros de
peregrinação hindus. banhar-se no Ganges purifica
os pecados acumulados na vida terrestre. Morrer na
cidade eterna coloca o devoto hindu em posição mais
favorável para a próxima incarnação, poderá até
libertá-lo do ciclo contínuo da morte e reincarnação.
Os Ghats (escadarias de pedra sobre o Ganjes) são
cinco quilómetros de cenário “bíblico” onde, a par
de templos shivitas, albergues para os moribundos,
centros espirituais, palácios construídos em
épocas diversas pelos Marajás de vários estados da
Índia, edifícios díspares com pequenos hotéis e
restaurantes para viajantes, bordejam sumptuosas escadarias sobre o rio. Mas
quase me esquecia de mencionar o principal: os Ghats são essencialmente o local
onde os corpos são incinerados em grandes ou pequenas piras funerárias, dia e
noite, 365 dias por ano. Nestes “burning Ghats” o cenário é dantesco. Deparamos
com enormes pilhas de madeira, com pequenos grupos de familiares que
aguardam pacientemente a vez de ver os seus familiares reduzidos a cinza e com
corpos envoltos em panos, chamas e muito fumo. Alguns turistas
(é proibido tirar fotos) contemplam e pasmam, mas a morte aqui é encarada
como parte do ciclo da vida e adquire total naturalidade.
Nesta cidade tudo parece confluir para o rio, onde o espectáculo é colorido,
variado e cativante. Peregrinos banham-se nas águas sagradas e fazem as
suas pujas (rituais e devoções); Brahmins estudam textos sagrados e fazem
prelecções a quem queira ouvir; yogis praticam; pedintes e crianças pedem
esmolas; vendedores ambulantes expõem as suas bugigangas; vacas passeiam
displicentemente, barbeiros rapam cabeças e grupos sentados nas escadarias
conversam, escutando os cânticos e música transmitidos por altifalantes,
enquanto desfrutam do ambiente e da paisagem banhada por uma luz que a
certas horas torna o cenário irreal.
Ao visitante recomenda-se passeios de barco pelo rio, a melhor forma de observar
o cenário dos Ghats em relativa calma. Logo que se chega à margem do rio é-se
abordado por barqueiros expeditos e insistentes. Como em qualquer outro local
da Índia, temos de pôr à prova os nossos talentos negociais e mesmo assim
acabaremos certamente por pagar mais do que o devido, o que faz parte da
experiência. Vale bem a pena um dia levantarmo-nos muito cedo para percorrer
os Ghats de barco, ao nascer do sol, quando a cidade desperta. É uma experiência
inesquecível e a luz, maravilhosa, é ideal para fotografia. Convém marcar de
véspera no local, ou através do hotel.
Em termos de Índia, Varanasi é uma cidade de tamanho médio, com pouco mais
de um milhão de habitantes. tem uma zona relativamente nova com algumas
avenidas e largos do tempo dos ingleses. A parte antiga, adjacente ao Ganges, é
um labirinto de vielas estreitas e irregulares onde é difícil discernir qualquer plano
ou orientação. Deambular por estas ruelas contornando vacas, lixo, vendedores
ambulantes e evitando chocar com cortejos funerários é uma experiência
fundamental para ter uma percepção da vida desta fascinante cidade. Pequenas
lojas vendem sedas e outros panos, uma das especialidades de benares, assim
como todo o género de produtos locais, como os associados ao culto, especiarias,
perfumes, grande sortido de CDs de música indiana, etc. Numa destas vielas
deparamos subitamente com o templo Dourado dedicado a Vishveswara (Shiva
na sua forma de senhor do universo), construído em 1776. O original, bastante
mais antigo, foi arrasado pelo Imperador Mogol Aurangazeb (bisneto do grande
Akbar) no seu fervor islamizante. Não é permitida a entrada a não-hindus, embora
estes possam contemplar o templo de uma casa em frente. Não muito longe
ergue-se a Grande Mesquita de Aurangazeb, onde foram incorporadas algumas bAIXO RELEVO dO pERíOdO gupTA (SEC.V, dC) nA gRAndE STupA dE SARnATh
46
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passar uma tarde. Não deverá perder o Museu Arqueológico adjacente, construído no
tempo dos ingleses e que contém alguns dos mais importantes tesouros arqueológicos
da Índia. O capitel do pilar de Ashoka, descoberto na campanha de escavações de
1904/5, encontra-se no museu. Foi adoptado como o símbolo nacional da Índia e
está reproduzido em moedas e notas. representa quatro leões (símbolo budista e de
Ashoka) bradando às quatro direcções do mundo a doutrina do budismo. Durante a
Dinastia Gupta (sécs. IV-VI), Sarnath atingiu a sua maturidade artística, produzindo
escultura budista em pedra calcária que é considerada o apogeu da escultura indiana de
todos os tempos. Alguns dos exemplos mais notáveis desta escola foram encontrados
em escavações no local e estão expostos neste museu.
Na recente exposição de arte Gupta no Grand Palais em Paris foi possível admirar várias
destas obras-primas do museu de Sarnath.
Questões práticas: Há em Varanasi várias possibilidades de alojamento. Os hotéis de
cinco e quatro estrelas estão todos localizados fora da cidade antiga. O tradicional
Clarks Varanasi, do tempo dos ingleses, está um pouco decadente.
O taj Ganges, da prestigiada cadeia indiana do mesmo nome, é moderno e confortável
mas sem o “brilho” da maioria dos estabelecimentos deste grupo. Dois novos hotéis,
o ramada Plaza e o radisson, oferecem as habituais comodidades impessoais de
standard internacional. A opção de alojamento mais fascinante para os mais afoitos
será ficar nos Ghats. Evitarão o trauma diário de transitar vários séculos e civilizações
entre hotel e cidade. Para esta hipótese recomendaria o Ganges View Hotel, no Assi
Ghat, um dos (relativamente) mais sossegados. É um pequeno estabelecimento com
doze quartos simples, mobilados com gosto, com o conforto básico assegurado (casa
de banho privativa, ar condicionado, etc.), uma gerência personalizada e frequentado
por artistas escritores e “habituées” da Índia. Não é luxuoso, nem por sombras, mas
estamos em Varanasi! tem um terraço com vista sobre o Assi Ghat e toda a excitação já
descrita, ao sair da porta do hotel. Convém marcar com bastante antecedência. |
das colunas do templo hindu então destruído, uma
situação potencialmente explosiva no contexto das
tensões religiosas da Índia. A segurança da mesquita é
assegurada por guardas armados.
Afastando-nos um pouco do centro, sugerimos uma
visita ao templo de Durga, mais conhecido por templo
dos macacos devido à profusão destes primatas, nem
sempre muito amigáveis e que não hesitarão em
saltar sobre o visitante para arrebatar qualquer comida
que este inadvertidamente traga à vista. A poucos
quilómetros deste templo poderá visitar o Museu da
universidade Hindu de benares (bharat Kala bhavan),
cujas instalações algo rudimentares contêm, no entanto,
uma importante colecção de escultura clássica indiana,
miniaturas sobre papel (incluindo uma interessante e
pouco conhecida representação de Nossa Senhora com
um manto azul diante uma paisagem de fundo europeia,
por um artista da corte mogol não identificado, cerca
de 1600) assim como um núcleo interessante de jóias e
objectos preciosos, sobretudo mogóis.
A apenas dez quilómetros de Varanasi fica um dos locais
mais sagrados do budismo: Sarnath. Varanasi era já
uma cidade florescente quando há cerca de �500 anos
buda por lá passou a caminho de Sarnath, depois de
ter atingido o estado de iluminado em bodh-Gaya, para
se juntar aos seus companheiros e futuros discípulos.
Aí, em Sarnath, proferiu, debaixo de uma árvore no
parque dos veados, o seu primeiro sermão e pôs em
marcha a “roda sagrada” da lei (doutrina budista).
Supostamente no local exacto onde se deu este evento
fulcral na construção do budismo foi erguida uma stupa
(monte sagrado de origem funerária albergando relíquias
budistas). O Dhamekh Stupa, magnífico monumento
com 34 metros de altura, provavelmente construído
cerca de �00 a.C., cerca de 300 anos depois da morte
do mestre e reconstruído parcialmente na época
Gupta (cerca de 500 d.C.), encontra-se em razoável
estado de conservação e pode ser visitado facilmente.
Neste parque, que foi sistematicamente escavado em
várias épocas, vêem-se também ruínas de outra stupa
desaparecida, e de edificações adjacentes, assim como o
arranque do famoso pilar do Imperador Ashoka (dinastia
Mauria, cerca de �00 a. C.). É um local aprazível para VARAndA SObRE O ASSI ghAT dO gAngES VIEw hOTEL
dossiEr Índia varanasi: vida ou MortE na cidadE sagrada (para o viajantE aFoito)
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PortugalARMAS dE pORTugAL dA FORTALEzA dO MORRO EM ChAuL
joão alarcão
48ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
Para além da componente lúdica, da necessária fuga
do stress, do salutar desejo de conhecer realidades
mais afastadas, viajar pode trazer-nos, também, no
reavivar de memórias históricas, um enriquecimento
da nossa cultura portuguesa. um duradouro conforto
para a nossa consciência colectiva descaracterizada
pelas padronizações massificadoras que destroem a
arte de viver, a aventura e o prazer de nela encontrar a
diferença e a qualidade.
Viajar pela Índia, e descobrir na sua variada riqueza
cultural a brancura de torres de catedrais a emergirem
dos verdes palmares tropicais, é um deleite para os
olhos e uma reconfortante emoção para o espírito.
Aqui o mito torna-se realidade. A sombra de muralhas
quinhentistas, a brisa que agita os coqueirais que as
escondem, ou os areais das costas em que repousam
de vigílias seculares, decantam-nos a alma e fazem
com que o nosso pensamento navegue livre nos
mares da memória.
Comecemos por descobrir na dureza da grande
metrópole (17 milhões) que agora é Mumbai, os sinais
da bombaim de outrora. A bombaim portuguesa,
que D. João IV incluiu no enorme dote de casamento
de sua filha D. Catarina de bragança com Carlos II
de Inglaterra, numa frustrada tentativa de recordar à
Grã-bretanha as obrigações da aliança de séculos que
nunca cumpriu.
O táxi que o levará do Aeroporto de Santa Cruz (não é
Holly Cross, é mesmo Santa Cruz) para o bulício das
ruas da Colaba e para o conforto do taj Mahal, a jóia
na Índia
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49
da melhor cadeia de hotéis da Índia, possibilitar-lhe-á parar em bandra, a nossa
antiga bandorá, para ver a Igreja seiscentista de Santo André e o pequeno forte do
Nome de Deus, que desmentem as omissões dos guias turísticos quanto aos sinais
da herança arquitectónica portuguesa.
Chegado ao taj, goze da janela do seu quarto a vista para a enormíssima baía que
deu o nome a bombaim. E não se deixe impressionar pelo apregoadíssimo Gateway
of India que se encontra do lado de lá da praça. É o moderno pastiche inglês, ainda
que grande, do secular Arco dos Vice-reis pelo qual, desde o séc. XVI, os Vice-reis
portugueses da Índia entravam em Goa. Os britânicos levantaram este apenas em 1911
para homenagearem a visita de Jorge V.
É do cais que lhe está junto que saem os barcos para a Ilha da Elefanta, onde se situam
as grutas do séc. VI esculpidas na rocha, com enormes estátuas de Shiva. De lá partem
também os catamarans que nos levam ao sul, a Mandwá, de onde podemos atingir as
imponentes fortalezas portuguesas do Morro, ou de Chaul, hoje sentinelas mudas dos
bandos de flamingos que pousam nos seus areais.
Se se demorar em bombaim e gostar de antiguidades ou velharias, dê uma saltada ao
Shor bazar, uma feira da ladra imensa, ou encontre-as nos antiquários das ruas que
circundam o taj, com destaque para o Philips, o mais antigo e famoso da cidade.
No dia seguinte lance-se à estrada, a caminho de Damão, com uma inevitável
paragem em Vassai, a nossa antiga cidade amuralhada de baçaím. As suas igrejas
e conventos quinhentistas, apesar de estarem hoje a céu aberto, alguns mesmo
invadidos pela vegetação tropical, conservam a imponência que deu à capital da
Província do Norte o epíteto de Don baçaím. Pelas inscrições das sepulturas que
cobrem os claustros desses templos, principalmente o de St.º António, é possível
adivinhar a vitalidade duma cidade que foi portuguesa de 1535 a 1739.
Passadas as Praganás de Dadrá e Nagar Aveli, cuja capital, Silvassa, se chamou no
séc. XIX Paço de Arcos, em honra do Governador de então, chegamos a Damão.
Há pouco para escolher quanto a alojamentos, para além do Miramar Hotel, na praia
de Devka, e do Marina, em Damão Pequeno. Aqui impõe-se uma visita à Fortaleza
de S. Jerónimo, de cuja praça de armas ressalta a Igreja de Nª Srª do Mar. Nela
e na Sé, do outro lado do rio Daman Ganga, grande parte das missas são ainda
celebradas em português, língua em que está inscrita na fachada do edifício da
Câmara a antiguidade do senado municipal: “Por Nobre e Leal Provisão de 1581”.
Entre o muito que há para ver destacam-se as Portas do Mar e da terra, as ruínas
de S. Domingos, a pequena Casa em que viveu o poeta bocage e, sobretudo, a
riquíssima Capela-Mor da Igreja da Madre Deus.
Há que regressar a bombaim para voar até Diu, a Pérola do Gujarate, e respirar as
gloriosas muralhas da fortaleza que o heroísmo português tornou famosa com a
resistência aos cercos otomanos do séc. XVI, em tempos de Nuno da Cunha e D.
João de Castro. Dos dois melhores hotéis da Ilha, o Kohinoor e o radinka, ambos
com simpáticas piscinas, eleja o primeiro, que o manterá mais próximo do centro.
Aí visite o Museu da Igreja de S. tomé e a imponente Igreja de S. Paulo. um passeio
através das estreitas ruas do bairro hindu permitir-lhe-á apreciar as tradicionais
portas e janelas que enriquecem a arquitectura das
grandes casas baneanes, das quais se destaca a
Nagarset Haveli. Se quiser almoçar ou jantar fora do
hotel, vá ao Ápana, frente ao braço de mar que liga a
Gongolá, e de onde poderá observar o histórico Fortim
do Mar.
regressado a bombaim, voe para o extremo sul da
Índia, para Cochim, aquela que foi a mais antiga
possessão portuguesa. Aí nos mantivemos até
1664, sendo que as nossas marcas permanecem
para além das posteriores presenças holandesa e
inglesa. Situa-se em Kerala, na Costa do Malabar, cuja
luxuriante vegetação contrasta com a secura da Índia
arábica, do rajasthan, ou do Gujarate que deixámos
para trás. A magnífica paisagem dos canais que se
estendem para sul, designados por back Waters, é de
uma beleza indescritível, justificando-se um passeio
com pernoita nos antigos barcos de transporte do
arroz, hoje divididos em pequenos e rudimentares
camarotes. Nem os mais citadinos, menos dados às
incomodidades dos trópicos, deixarão de se deliciar
com a beleza que os circunda e que trouxe a esta
região a designação de God’s Own Country.
SÉ bAçAIM
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um outro agradável passeio de barco é entre as ilhas do estuário que junta a
cidade velha de Fort Cochin e a moderna de Ernakulam. Os dois melhores hotéis,
taj Malabar e branton boat Yard, têm ancoradouros próprios onde os barcos
podem amarrar. Se não os quiser alugar, apanhe-os nos jettys das carreiras
normais. Não deixe é de ver as Ilhas de Vaipin, com a sua quinhentista Igreja de
Nª Srª da Esperança, as redes Chinesas, ex-libris da região, ou o mais escondido
dos hotéis, o bolghaty Palace, na ilha do mesmo nome. Por terra vá até á basílica
de Stª Cruz, ao Museu de Arte Sacra e, sobretudo, à Igreja de S. Francisco, onde
em 15�0 foi sepultado Vasco da Gama. Depois de almoçar no branton boat Yard,
venha até à Jewish Street, em Mattanchéry, para visitar, porta sim, porta não, os
inúmeros antiquários que enchem as ruas entre a Sinagoga e o abusivamente
designado Dutsh Palace. O palácio nada tem de holandês. Foram os portugueses
que o erigiram e ofereceram ao rajá de Cochim para o autonomizarem da
suserania do Samorim de Calecute. Depois, se tiver tido a sorte de conseguir
quarto no taj Malabar, goze da sua belíssima piscina, faça uma massagem de
Ayurveda no seu Spa e prepare-se para voar para Goa.
Dos hotéis bons, os mais centrais são o Cidade de Goa, com praia privativa, mais
próximo de Pangim, e o Forte da Aguada, na praia de Sinquerim, mais perto de
Anjuna, onde à quarta-feira se realiza a mais exótica feira da Índia. Lá tudo pode
ser encontrado, desde pratas e jóias dos tibetanos aos sacos, mantas, e roupas de
Karnataka.
Mas a principal e inevitável visita terá de ser a Velha Goa, cujo coração é a basílica
do bom Jesus, onde o corpo de São Francisco Xavier repousa no rico túmulo
oferecido por Cosme de Médicis. A Sé e o Convento de S. Francisco, com a Galeria
dos Vice-reis e a Capela de Stª Catarina, compõem este núcleo central. Para oeste
ficam as ruínas de Stº Agostinho, o Convento de Stª
Mónica, onde hoje está o Museu de Arte Sacra que
veio de rachol, e o Priorado do rosário, no monte
sacro donde Afonso de Albuquerque comandou a
tomada de Goa em 1510. A Igreja de S. Caetano
e o já citado Arco dos Vice-reis ficam para o lado
inverso, por onde se pode seguir para Pondá para ver
os templos hindus. De volta, não deixe de parar em
Margão ou Loutulim, onde se situam os solares de
algumas das mais tradicionais famílias bramânicas
goesas como as dos Sant’anas da Silva, dos Mirandas,
ou dos Figueiredos de Albuquerque, este agora em
turismo de habitação.
Quanto a praias, todos os guias lhe falarão das do sul,
sobretudo da de Palaolem, mas a beleza de outrora
sucumbiu ao peso do turismo massificado. Hoje, Colvá,
baga ou Calangute são verdadeiras Algés e Dafundo. As
melhores praias situam-se, ao contrário, mais a norte:
Arambol, Morjem ou Querim, já próximas do belíssimo
mas pequeno hotel (sete quartos) de Forte tiracol. Para
quem goste dos mais completos lugares do mundo,
impõe-se uma estadia ou visita à melhor realização
de Cláudia e Hari Adjwani, o fechadíssimo Nilaya
Hermitage, em Arporá, sem dúvida o mais exótico e
sofisticado de Goa e um dos melhores de toda a Índia. |
50
dossiEr Índia portugal na Índia
CÚpuLAS SObRE pALMARES EM nOVA gOA
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Índia
luÍs dE andradE pEiXoto
outside
5�ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
ESPLENDORES DA ÍNDIA
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Arrebatadora, deslumbrante, mágica, complexa, sedutora, hipnotizante... tantos
e infindáveis adjectivos nunca poderão, totalizando, cobrir as características da
efervescente arte indiana.
Estamos a falar de manifestações plásticas e de testemunhos que englobam
um enorme panorama cronológico que abrange, desde os primeiros achados
arqueológicos de c. �500 a.C - c. 1750 a.C. (com as primeiras culturas em
desenvolvimento no vale do Hindukush), passando pelos determinantes sécs.
IV-III a.C., em que a individualização de estilos e de influências regionais e
de cultos começa a ser evidente (sendo nesta altura assinalado o “início” da
produção artística indiana) até, em contemporânea consideração, aos dias de hoje.
Acrescente-se a este vasto quadro temporal a complexidade religiosa - hinduísmo,
budismo, jainismo, islamismo e cristianismo - que em conclusão suscitou inúmeras
mestiçagens entre filosofias, estilos, técnicas, materiais e visões. Por outro lado, a
enorme movimentação de diversos povos em interacção pelo poder e soberania e a
consequente profusão de estados regionais, dinastias, reinos e impérios caracterizam
uma viva geo-política em constante mutação. Notável aspecto nesta heterogeneidade
é sempre a atracção e o incentivo para a abordagem artística da vida.
Para realçar esta profusão de culturas veja-se a esfera geográfica que dá palco à
influência da Índia, sobretudo a partir da forte expansão do budismo (sécs. IV-
VII) conferindo-lhe imediatamente: Paquistão, Afeganistão, Nepal, tibete, butão,
bangladesh, Xinjiang (China), Sri Lanka, o Sudeste Asiático: Myanmar (burma),
Laos, Vietname, tailândia, Cambodja e a Indonésia. Isto faz-nos compreender por
que grande parte das galerias de exposições de arte asiática que visitamos estão
divididas em três momentos: rota da Seda, Subcontinente Indiano e Sudeste
Asiático. Estas divisões geográficas ajudam-nos a vislumbrar as individualidades
estilísticas e as identidades de cada concreta localização, para além da óbvia e forte
influência comum dentro deste quadro geográfico.
No início da era de Cristo (sécs. I-V) florescem e afirmam-se três importantes escolas
artísticas regionais (Ghandara, Mathura e Amavarati) enquanto que os sécs. IV-VII
testemunham o esplendor da arte búdica da Índia, com o decisivo impulso cultural e
artístico da dinastia Gupta (sécs. IV-V) e o estender da influência indiana budista.
A decadência da dinastia Gupta, que se deu a partir do séc. V devido a invasões
exteriores, e a expansão da crença hindu (que germinara desde o período védico,
1500 a.C. - 600 a.C., e se movia ao sabor do trânsito dos seus crentes) dão lugar
durante os sécs VII-XIII ao denominado período hinduísta. Através de uma forte
consolidação das características estilísticas regionais, com as suas escolas que
testemunham um vital particularismo, sincretismo de influências e respeito pelas
três grandes religiões em movimento (hinduísmo, budismo e islamismo), a arte
indiana floresce de modo imparável em todas as suas manifestações.
53
Com a chegada dos portugueses em 1498, a afirmação
do seu poderio comercial e in situ no séc. XVI, e com
a ascensão decisiva do império Mogol (sécs. XVI-XVII),
mais elementos, trocas e inspirações estéticas foram
inseridas a este riquíssimo quadro artístico.
Mais do que o impossível fito de traçar, neste
momento, um trajecto da história da arte indiana em
detalhe, sugerimos um percurso de deslumbramentos
desta maravilhosa cultura entre museus e colecções
da Europa e Estados unidos da América. De facto,
vários são os museus de referência que desde o final
do séc. XIX, inícios do XX, beneficiaram de diversos
factores que alimentaram as suas fabulosas colecções
de arte indiana.
Veja-se como o incremento de expedições, algumas
das quais mais ou menos científicas, canalizaram
centenas de objectos rumo à Europa. Conjugando
à Direita |”budA ERguIdO”, pRIMEIRA METAdE dO SÉC. V | gRÉS ROSA, ÉpOCA gupTA | índIA (MAThuRA) | 142 X 54 CM | © arChiVes
PhotoGraPhiques Du Musée GuiMet
à esquerDa | ”ShIVA nATARAJA”, C. 1050 | bROnzE, ESTILO IMpERIAL ChOLA | índIA (TAMIL nAdu) | C. 83 CM (ALT.) | © MuseuM rietberG
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Arqueologia, Etnologia, Antropologia, História,
História da Arte e um desejo exacerbado pelo
exótico e asiático de mãos dadas com gostos,
modas e correntes artísticas, formaram-se colecções
significativas que hoje nos possibilitam ver “algum
do melhor” da Índia fora da Índia. Isto sem falar das
colecções anteriores que foram sendo constituídas
ao longo dos períodos de expansão e da presença
europeia por terras a Oriente a partir dos finais do
séc. XV ou, mais recentemente já no séc. XX, com
as desanexações mais ou menos violentas e com os
conflitos militares que infelizmente dão rumos vários
aos testemunhos.
No panorama contemporâneo, é de realçar a forma
como belíssimas peças chegam de modo espontâneo
e altruísta a diversos museus pela via de doações
particulares, revelando um crescente e consciente
reconhecimento das artes ancestrais extra-europeias
que, cada vez mais, formam atractivos imaginários de
sonho e de exotismo.
Aliados à dinamização dos estudos asiáticos, à sua
crescente divulgação e a uma enorme afirmação
de estatuto de rara obra de arte, os seus valores
de mercado atingem cotações e disputas sem
precedentes em relação às masterpieces de origem
indiana e asiática no geral.
Não é apenas no mundo ocidental que esta
dinamização de mercado é cada vez mais relevante,
com os conhecidos exemplos das semanas anuais
de Arte Asiática de Londres (Novembro) ou de Nova
Iorque (Abril), a boa saúde do antiquariato, os leilões
e as feiras internacionais dedicadas exclusivamente
a este ramo. também na Ásia uma efervescente e
emergente transacção toma lugar com os destaques
para os leilões incontornáveis da Christie’s e Sotheby’s
em Hong-Kong, assinalando como que um novo
despertar da cultura asiática para si mesma.
Em crescente envolvimento com este mecanismo, os
museus especializados começam a debater-se pela
contínua construção das suas colecções asiáticas,
desejadas sempre em consonância com as pretensões
enraizadas na civilização do Ocidente, como as mais
completas, significativas e belas do mundo.
54
”MAhARIShI” (“O gRAndE SábIO”), SÉC. XII | AgASTyA: pEdRA (ChLORITOId phyLLITE) | índIA (bIhAR-LAKhI SARAI) |
© 2007 MuseuM assoCiates / Los aNGeLes CouNty MuseuM oF art
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dossiEr Índia EsplEndorEs da Índia outsidE Índia
Mas não nos afastemos do nosso cerne, salientando que as lógicas das colecções
indianas estão directamente e naturalmente inseridas na dinâmica das colecções
extra-europeias, e mais concretamente nas asiáticas, sob duas perspectivas
predominantes: a artística e a etnológica. Os testemunhos da cultura indiana
encontram-se estudados, recolhidos, conservados e apresentados numa
considerável teia museológica na Europa e nos E.u.A. Contudo, e curiosamente,
Portugal ainda não se encontra na lista (nós que em 1498 fomos os primeiros a lá
chegar!!). Porém, dizemos um “ainda” esperançado com esperança na abertura, em
�008, do Museu do Oriente (Fundação Oriente) que com certeza irá potencializar,
além da abordagem típica da Índia portuguesa (na qual representamos um claro
destaque), um descortinar da complexa cultura com a qual nos deparámos em
tempos certamente mais aventureiros.
Provando a vitalidade desta crescente rede, encontramos o mote de partida para
o nosso percurso de “Esplendores da Índia outside Índia”, com a reabertura do
Museum rietberg de Zurique, em Março deste ano.
As mais belas e requintadas artes são indissociáveis das opções expográficas
despojadas e subtis no aspecto dramático. Luz, texturas, composições e colocações
estratégicas dão ênfase a diversas tipologias indianas das quais os bronzes do
período hinduísta se evidenciam.
Shiva Nataraja, o eterno Senhor da Dança Cósmica Anandatandava, aparece-nos
em todo o seu esplendor nas revitalizadas galerias de exposição permanente. A luz
cuidada e o lugar de destaque conferem-lhe uma soberba e auspiciosa presença.
De facto, Anandatavanda constitui o simbólico e poderoso momento de criação e
de destruição, de eterno retorno da vivência e de suprema força cósmica. Shiva
constrói o mundo através do som ritmado do tambor que toca (com a mão direita
posterior); preserva a criação em sinal de protecção (mão direita frontal); destrói
com a potente chama na mão esquerda (posterior); bane o pecado e a ignorância
do inconsciente pisando o demónio Apasmara-Purusha (pé direito) e concede a
libertação espiritual demonstrando a sua irradiação cósmica através da sua última
mão (esquerda frontal). toda esta magnífica e simbólica composição concebe ainda
a complexidade dos opostos (através da iconografia complementar masculina
vs feminina patente em cada uma das formas das orelhas) e a harmonização e
equilíbrio universal através da leveza, postura proporcional e estabilidade do deus
neste movimento incandescente. É, sem dúvida, um bom e deslumbrante ponto de
partida!
As colecções do Museum rietberg cruzam-se e complementam-se, obviamente,
com as tipologias de outros museus. Assinalável é a grande qualidade da colecção
de escultura e de pintura (retratando inúmeras escolas estilísticas regionais e as
interessantes composições das miniaturas mogóis).
Por falar em escultura, destaque para o Los Angeles County Museum of Art (pela
preciosa escolha desta tipologia e, no fundo, por toda a colecção indiana, que
é completíssima) e o Musée Guimet de Paris, renovado em �001. No Guimet, a
escultura em pedra budista, jainista e hindu (cruzando geograficamente o amplo
quadro que traçámos de início) constrói um dos
momentos mais apreciados deste museu. Sem o
dramatismo interessante do Museum für Asiatische
Kunst-Dahlem de berlim, esta secção acentua o
carácter escultural aliado à arquitectura, à qual muitas
das peças estavam aliadas. A opção cromática das
paredes e dos plintos faz compreender o núcleo como
parte integrante de uma estrutura maior e o sóbrio
ambiente expográfico o permite, ao mesmo tempo,
uma apreciação estilística descomprometida e pessoal.
O Museum für Asiatische Kunst-Dahlem de berlim,
remodelado em �000, tomou um caminho diferente,
mais dramático, obscuro e fascinante. Cuidadoso
efeito luminotécnico, em que os jogos entre sombras
e diálogo claro/escuro tomam lugar, dá espaço para
uma aproximação mais mística e misteriosa junto
das esculturas (e das outras colecções, das quais
destacamos a pintura indiana, sobre papel, têxteis
e vidros, e as importantes pinturas de interiores de
templos budistas). A combinação regular em espaço
expositivo entre arte antiga e contemporânea,
em que estilos, inspirações, técnicas e temáticas
dialogam, fecunda este espaço de um modo especial.
real desafio museológico e encantamento para os
públicos é a construção dentro do museu de uma
estrutura arquitectónica que encerra no seu interior
pinturas originais, de stupas (templos budistas), nas
paredes e na cúpula perfeita. Sem falar na dificuldade
da conservação preventiva, em todo o processo de
incorporação, deslocação e apresentação destes
testemunhos, a necessária iluminação reduzida
provoca uma desconcentração visual que pouco a
pouco, em adaptação ao baixo nível, faz da apreciação
destas pinturas o momento alto.
Momentos obrigatórios neste percurso são os museus
top de carácter universalista - british Museum (que
neste momento celebra a Índia e os sessenta anos
da sua independência com a exposição de pintura
indiana: “Fé, Narrativa e Desejo”), V&A - Victoria and
Albert Museum (a jóia da coroa dos museus do reino
unido) e o LACMA - Los Angeles County Museum of
Art. Para além das completas colecções de escultura
em pedra e metais, artefactos arqueológicos, pinturas
55
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PáGiNa Do LaDo à Direita | “IMpERAdOR JAhAngIR TRIunFAndO SObRE A pObREzA”
(REInOu EnTRE 1605-1627) | C. 1620-1625 | TInTA guAChE E OuRO SObRE pApEL | ATRIbuIdO A
Abu’L hASAn | índIA MOgOL, dA COLECçÃO nASLI E ALICE hEERAMAnECK E AdquIRIdA pELA
ASSOCIAçÃO dOS MEMbROS dO MuSEu | IMAgEM: 23,81 X 15,24 CM
FOLhA: 36,83 X 24,61 CM | © 2007 MuseuM assoCiates/Los aNGeLes CouNty MuseuM
oF art
sobre diversos suportes, gravuras, têxteis raros, relevos, bronzes hindus, jades e
jóias (lembremos as requintadas cortes mogóis), pinturas em miniatura ou diversos
testemunhos de carácter mais etnológico, algo muito raro e belo os une: esculturas
do buda Sakyamuni. Enquanto que o LACMA beneficiou de uma muito generosa
doação, por parte da Fundação Michael J. Connell, o V&A e o british Museum uniram
esforços e meios para adquirir a rara peça. Para se ter uma ideia foi preciso combinar
o Fundo das Colecções de Arte Nacionais, o Permanente Fundo broke Sewell do british
Museum e doações dos Amigos do Museu V&A, bem como de privados. E o resultado é
que o “buda radiante”, como lhe chamam no V&A, atinge uma enorme popularidade
nas Galerias dedicadas à Índia.
Estas preciosas esculturas (apenas um número muito reduzido sobreviveu até
hoje) testemunham um período fulcral na formação estilística das representações
clássicas de buda. Sob a alçada da florescente dinastia Gupta (os quais, embora
hindus, eram patronos do budismo) os centros artísticos de Mathura e Sarnath
originaram esta génese de representação plástica que iria influenciar a figuração e
materialização do conceito de buda pelos diversos países que receberam a corrente
à esquerDa | ”budA SAKyAMunI”, FIM dO SÉC. VI - IníCIO SÉC. VII | TERRACOTA REVESTIdA A
CObRE ESTE dA índIA (pROVAVELMEnTE bIhAR) | 35,5 CM | © V&a MuseuM
56
PáGiNa Do LaDo à esquerDa | “KRIShnA E RAdhA” | ATRIbuídO A ARTISTA dA gERAçÃO
dOS MESTRES nAInSuKh E MAnAKu dE guLER | guAChE SObRE pApEL | 17, 7 X 14, 8 CM | C.
1775-1780 | índIA (pAhARI-gEbIET, guLER)
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budista. A sua mão erguida em sinal de benevolência (abhaya-mudra) afirma a
sua protecção perante os seus crentes, facto que liga de forma inteligente esta
representação religiosa ao domínio político. Sakyamuni dá corpo aos ideais budistas
de yogi e de perfeito regente: fisicamente ágil, elegante, proporcional, com expressão
serena, contemplativa e delicada e, tal como um soberano deve ser, jovem, com
fortes ombros, corpo firme e pés e mãos bem torneados e seguros. Sem dúvida uma
escultura de destaque e excepção!
Musée Guimet, Asian Art Museum of San Francisco, the Cleveland Museum
of Art, Los Angeles County Museum of Art, Museum rietberg ou Museum
für Asiatische Kunst-Dahlem de berlim podem ainda ser destacados
pelas completas galerias de exposição dedicadas à pintura indiana, cujas
influências, estilos particulares ou temáticas e enredos são tão diversos
quantas as cores vibrantes e garridas que fazem desta tipologia um mágico
momento de sensações visuais. Pintura de interiores, sobre rolos de
tecidos, sobre folhas de palmeira e sobre papel (a partir do séc. XIV) são
as masterpieces. De facto, a pintura detém um papel lato na História da
57
dossiEr Índia EsplEndorEs da Índia outsidE Índia
Arte da Índia. Directamente ligada à intrincada
religiosidade e aos templos, a sua produção é
enorme em pontos de peregrinação e de adoração
do divino e estas peças são facilmente vendidas
às centenas em mercados onde os pintores
habilmente reproduzem cânones estilísticos
estáveis e constantes durante gerações. Aliadas aos
textos poéticos e religiosos, inúmeras ilustrações
foram encomendadas tanto por classes religiosas
como civis. As classes reinantes rapidamente
chamam a si os melhores profissionais desta arte,
imortalizando refinados e luxuosos momentos
da vivência do quotidiano da corte, retratos,
acontecimentos históricos e estratégicos ideais
associados ao soberano, afirmando o seu poderio
e excelência.
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tecidos, papagaios), tudo de origem indiana e abarcando peças desde o séc. XVIII
até aos dias de hoje, detém um potencial enorme de nível internacional.
O futuro Museu do Oriente poderá equiparar-se, com as suas colecções, às
referências etnológicas europeias, nomeadamente o Musée du Quai branly
(inaugurado em �006 e com uma vitalidade expositiva e de programação cultural
de excepção), Linden-Museum Stuttgart - Staatliches Museum für Völkerkunde;
MEG - Musée d’Ethnographie de Genève e MEN - Musée d’Ethnographie de
Neuchâtel.
Estes quatro museus detêm o poder fascinante de nos fazer mergulhar, sentir e
até cheirar a fascinante Índia. recorrendo a grandes reconstituições, artifícios
expográficos de última geração, cenografias arrojadas e jogos sensoriais,
apresentam-nos os esplendores do quotidiano indiano. Grande destaque deve ser
Os estilos da pintura rapidamente adquirem o cunho
identitário das cortes a que pertencem ou da região
de origem, potencializando particulares características
e abordagens estéticas que advêm do cruzamento
do hinduísmo, budismo, jainismo, islamismo (com
as diversas influências persas e mogóis) até às
representações cristãs ou gravuras europeias do
renascimento tardio.
Os portugueses Museus Nacionais de Arte Antiga,
Soares dos reis, do traje e da Moda, Museu da
Fundação ricardo Espírito Santo Silva e o futuro
Museu do Oriente, bem como colecções particulares
de destaque (Senhor Almirante Alpoim Calvão, Dr.
Pires Marques, rainer Daehnhardt e José Lico),
cobrem a conhecida influência portuguesa na Índia,
dando origem ao agora muito discutido conceito de
“indo-português” (patente em inúmero mobiliário,
objectos e esculturas, tanto de carácter civil como
religioso). De cunho mogol podemos deliciar-nos
com os contadores das colecções dos Museus
Nacionais de Arte Antiga, Soares dos reis, Museu
da Fundação ricardo Espírito Santo Silva e com os
geometricamente perfeitos tapetes do Museu da
Fundação Calouste Gulbenkian (que, entre outras
peças, foram destaque da impressionante exposição
“Goa e o Grão-Mogol”, em �004).
De facto, embora Portugal não desfrute por enquanto
da posição de merecido destaque na rota dos Museus
de Artes Asiáticas, podemos ainda realçar algumas
peças de interesse no Museu da Marioneta de Lisboa
(com a recente aquisição de marionetas indianas)
ou o profusamente decorado elefante-brinquedo do
Museu da Cidade de Lisboa, que é um exemplar lúdico
deveras interessante e característico.
Melhor colocados estamos em relação a uma
abordagem etnológica, na qual o Museu Nacional de
Etnologia é exemplo (veja-se a presente exposição
“Pinturas Cantadas” até Janeiro próximo). A fabulosa
colecção Kwok-on, da Fundação Oriente, com
marionetas (varas, baguetes, luvas, fios, sombras),
máscaras, estátuas, instrumentos musicais, jogos,
brinquedos, traje, objectos rituais e festivos e
iconografia diversa (gravura, poster, papel recortado,
“bRInquEdO IndIAnO COM ROdAS REpRESEnTAndO uM ELEFAnTE, COM pALAnquE”, SÉC. XIX | MAdEIRA pInTAdA pOLICROMAdA, índIA |
COMp. 52 CM X LARg. 31 CM | © Museu Da CiDaDe De Lisboa
58
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“MAnASA “A dEuSA CObRA”, MEAdOS dO SÉC. XX | MAdEIRA, FIOS TêXTEIS, pApEL, RESInA | índIA (ASSAM, gOALpARA) | dOAçÃO dE gAbRIELE
bERTRAnd | 60 X 89 CM | © Musée Du quai braNLy, FotoGraFia De PatriCk Gries/bruNo DesCoiNGs
59
dossiEr Índia EsplEndorEs da Índia outsidE Índia
feito aos MEG e MEN. O primeiro com a exposição “Les feux de la Déesse”, em
�005, que celebrou os homens e os deuses do Kerala através de uma das mais
fascinantes exposições dedicadas à Índia. A mais alta qualidade da exposição é
resultado de dois factores basilares: contextualizações e interpretações etnológicas
e antropológicas sob uma abordagem expositiva moderna e o deslumbramento
excepcional face aos testemunhos da colecção, com o apoio das mais cuidadas
opções expográficas (sem palavras!!). O MEN é para nós, a par com o MEG, o
momento expositivo de eleição. A “museografia de ruptura” defendida pela
instituição propõe metáforas e conceitos que dão tema a exposições complexas e
desafiantes. Cruzamentos temporais e geográficos de testemunhos e mentalidades
atingem-nos no âmago e fazem-nos questionar o mundo presente, passado e
futuro. Nunca será de admirar ver em interacção, no MEN, Shiva Nataraja com
Asian Art Museum of San Franciscohttp://www.asianart.org/
British Museumhttp://www.thebritishmuseum.ac.uk/
Linden-Museum Stuttgart - Staatliches Museum für Völkerkundehttp://www.lindenmuseum.de
Los Angeles County Museum of Arthttp://www.lacma.org/
Metropolitan Museum of Art New Yorkhttp://www.metmuseum.org/
Musée d’Ethnographie de Genève http://www.ville-ge.ch
Musée d’Ethnographie de Neuchâtelhttp://www.men.ch/
Musée du Quai Branlyhttp://www.quaibranly.fr/
Musée Guimethttp://www.museeguimet.fr/
Museum für Asiatische Kunst-Dahlem de Berlimhttp://www.smb.spk-berlin.de
The Cleveland Museum of Arthttp://www.clevelandart.org/
Victoria&Albert Museumhttp://www.vam.ac.uk/
Fundação Oriente - Colecção Kwok on / Museu do Orientehttp://www.foriente.pt/entrada.asp
Museu da Marioneta http://www.museudamarioneta.egeac.pt
Museu Nacional de Arte Antigahttp://www.mnarteantiga-ipmuseus.pt/
Museu Nacional do Traje e da Modahttp://www.museudotraje-ipmuseus.pt/
Museu Nacional de Etnologiahttp://www.mnetnologia-ipmuseus.pt/
Museu Nacional Soares dos Reishttp://www.mnsr-ipmuseus.pt/
projecções de tremores de terra, verdadeiras chamas
ou reconstituições do cosmos em movimento ou
Shiva, Parvati e Ganesha (pai, mãe e filho) em bronze
do período hinduísta com um presépio cristão feito de
plástico na China para o Natal deste ano.
Independentemente de visões mais clássicas
ou controversas, sob perspectivas estilísticas ou
etnológicas, em Portugal ou no mundo, a riqueza
artística e cultural indiana far-nos-á sonhar e
aproveitar os esplendores da Índia outside Índia
até à arrebatadora viagem ao local de origem.
Esplendores não faltam... deixe-se deslumbrar! |
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Filipa vicEntE
6�ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
artE contEMporÂnEah
SOTHEBY’S:
luÍs dE andradE pEiXoto
6�
dossiEr Índia
Comprovando a vitalidade e interesse do mercado internacional
quanto à Arte Antiga, Moderna, Contemporânea e de outro tipo
de itens provenientes da Índia, aqui pomos em evidência diversos
momentos, passados e futuros.
Grande destaque para o artista contemporâneo tyeb Metha e para o
exótico leilão da colecção Gordon reece, pela bonhams, em Outubro. |
1.Nova Iorque - 21 de Setembro de 2005
Lote 275 | Tyeb Mehta | “Mahisasura”,
1997 | Est.: E 438.305 - E 584.407 |
Vendido por: E 1.309.000
Recorde internacional para pintura
indiana contemporânea
Recorde pessoal do artista em leilão
© Christie’s images Ltd. 2007
2.Nova Iorque - 30 de Março de 2006
Lote 42 | Vasudeo S. Gaitonde (1924-
2001), | “untitled”, 1975 |
Est: E 438.305 - E 584.407 | Vendido por:
E 1.226.666
Recorde pessoal do artista em leilão
© Christie’s images Ltd. 2007
3.Nova Iorque - 30 de Setembro de 2006
Lote 23 | Francis Newton Souza, |
“Man and Woman” | óleo sobre madeira|
Est. : E 219.152 - E 365.254 | Vendido
por: E 1.070.866
© Christie’s images Ltd. 2007
CHRISTIE’S:
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
LEILÕES INTERNACIONAIS
Highlights Índia
4.Londres - 21 de Maio de 2007
Lote 7 | Syed Haider Raza (1924-2002)
| “La Terre”, 1985 | Est.: E 591.488 -
- E 887.233 | Vendido por: E 1.049.760
© Christie’s images Ltd. 2007
5. Nova Iorque - 20 de Setembro de 2006
Lote 63 | Tyeb Mehta | “untitled (Figures
with Bull head)” | Est.: E 584.407 -
- E 730.508 | Vendido por: E 894.488
© Christie’s images Ltd. 2007
6.Nova Iorque - 29 de Março de 2006
Lote 25 | Syed Haider Raza (1924-2002) |
”Tapovan” | Acrílico sobre tela |
Est.: E 584.407 - E 730.508 | Vendido
por: E 1.075.308
Recorde pessoal do artista em leilão
7.Londres - 23 de Maio de 2006
Lote 135 | Francis Newton Souza |
“Amsterdam Landscape” | Est. : E 88.723 -
- E 118.298 | Vendido por: E 922.722
8.Nova Iorque - 29 de Março de 2006
Lote 81 | Tyeb Mehta | “Falling Figure
with Bird” | Est.: E 584.407 - E 730.508 |
Vendido por: E 911.674
9.Nova Iorque - 22 de Março de 2007
Lote 114 | Tyeb Mehta | “untitled” |
Est.:E 584.407 - E 730.508 | Vendido por:
E 847.390
10.Nova Iorque - 29 de Março de 2006
Lote 80 | Jagdish Swaminathan |
“untitled” | Est.: E 219.152 - E 219.152 |
Vendido por: E 587.206
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Filipa vicEntE
6�ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
artE contEMporÂnEah
63
uM ocEano intEiro
h
63
1. 4. 7.
2. 5. 8. 9.
3. 6. 10.
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Filipa vicEntE
64ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
artE contEMporÂnEah
64
BONHAMS:
A � de Outubro terá lugar, na bonhams de Knightsbridge - Londres, o
leilão da colecção de Gordon reece, dono da Galeria West End.
Estão representados cerca de 600 lotes de artes variadas,
antiguidades, arte tribal, escultura religiosa e ritual, cerâmicas,
templos em miniatura, colunas e outros elementos de arquitectura,
mobiliário, joalharia e tantos exóticos testemunhos não europeus,
sobretudo de África e do subcontinente asiático, assim como
muitos outros luxuosos objectos com que este consultor de design
3.“Coluna”
Madeira teca esculpida
Séc. XIX
Rajastão - Índia do Norte
Proveniência: estrutura arquitectónica de
uma residência aristocrática ou haveli,
região de Bikaner
Leilão 15651:
Colecção Gordon Reece
2 de Outubro
Knightsbridge - Londres:
dossiEr Índia lEilÕEs intErnacionais HigHligHts india
de interiores sempre trabalhou nos seus projectos. Apaixonado
coleccionador e eternamente fascinado pelo exótico, Gordon reece
põe, deste modo, fim à sua carreira de �6 anos no mundo da
decoração e dos objectos de rara excepção e beleza.
Grande interesse recai nas peças de origem indiana directamente
provenientes de palácios de marajás e de cortes reais do rajastão.
requintada qualidade e elevados preços são esperados! |
1.“Rara e requintada carruagem de
casamento real”
Madeira teca trabalhada e metais vários
Comprimento total: 428 cm (carruagem:
comp. 147 cm x alt. 105 cm / diâmetro das
rodas 74 cm)
Sécs. XVIII-XIX
Rajastão - Índia do Norte
Proveniência: Colecção real do Rajastão,
previamente usada em casamento de uma
princesa do Gujarati com um aristocrata
reinante de Jodhpur.
Valor anterior de referência: E 21.441
2.“Elegante templo ou santuário”
Madeira teca trabalhada,
Alt.160 x larg. 112 x comp. 102 cm
Sécs. XVIII-XIX
Rajastão - Índia do Norte
Valor anterior de referência: E 17.744
1.
2. 3.
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luÍs dE andradE pEiXoto
Indiano
“dEuS SuRyA”, C. SÉC. V-VII | gRÉS | índIA
CEnTRAL | 51 CM
66ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
ANTIQUARIATO
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Embora sem a diversidade e a efervescência do antiquariato europeu e de outros
hot spots internacionais especializados em artes da Índia, em Portugal é possível
destacar a oferta de espécimes que, embora limitada, é de elevada qualidade e que
cobre um panorama contextual rico e interessante.
Manuel Castilho, fiel à sua tradição de requinte nas propostas de arte indiana e
asiática, continua a ser a referência por excelência. Pela sua loja e stand de vendas,
em feiras nacionais e internacionais, continuam a passar dos mais belos exemplares
testemunhos da Índia, com especial relevo para a arte escultórica. Entre escultura
búdica, hindu e peças de influência mogol e portuguesa, destacamos presentemente
duas distintas esculturas e um baldaquino cerimonial inédito.
Escultura de vulto do deus sol védico Surya, representado segundo uma iconografia
estabelecida a partir dos primeiros anos d.C. Posteriormente absorvido pelo
Hinduísmo (no qual esta escultura se inseriria, integrando um altar subsidiário de
um templo hindu) é, na sua origem, deus dos invasores arianos (c. 1700 a.C.).
O deus em afirmada posição erguida e frontal enverga túnica longa diáfana. Do
característico pano pendente em u de um braço ao outro, apenas resta a tira que
passa em frente aos joelhos. usa uma coroa alta (karandamukuta), grandes brincos
“FRAgMEnTO ARquITECTÓnICO”, SÉCS. X-XII | pEdRA CALCáRIA | índIA (RAJASTÃO) “bALdAquInO”, SÉC. XIX | MAdEIRA pOLICROMAdA | índIA
67
com disco perfurado, que assentam sobre os ombros,
colar longo de várias fiadas e um cordão ritual simples
(avayanga) à volta da cintura (toda a indumentária,
sobretudo o calçado, evoca a sua origem em
mitologias das estepes da Ásia Central).
Por detrás da cabeça vê-se parte de um resplendor
circular. Seria originalmente ladeado por Pingala, o
seu escriba que tomava nota das acções dos homens,
e por Dandí, o seu guardião. A pequena figura que se
vê a seus pés é pouco habitual e poderá representar a
deusa terra.
Surya, com os dois braços erguidos e as mãos à altura
dos ombros, ostenta duas esplendorosas flores de
lótus abertas, em símbolo de regeneração, do ciclo da
vida, da vida e da morte.
Conjunto escultórico no qual se destaca uma figura
masculina com um enxota--moscas (chawri) em
Paginacao1.1.indd 67 07/09/04 22:21:05
postura sensualmente arqueada (tribangha). A figura, irradiando elegância e
juventude, encontra-se coroada e ricamente adornada com jóias. Poderá ser um
yaksha, divindade acessória frequentemente representada ladeando divindades
hindu principais ou associada a um Tirthankara jainista. Vê-se ainda uma coluna
indicando um templo ou palácio e um leão rampante (simba-vyala) subjugando um
elefante, o que evoca o poder da divindade central, representada neste friso.
Invulgar baldaquino com corpo cónico oitavado assente em base quadrada.
O corpo apresenta em quatro registos pinturas provavelmente alusivas ao
Ramayana, o mais importante épico hindu. Entre as cenas pintadas sobre fundo
verde vibrante vêem-se divindades como Ganesh, cabeça de elefante e corpo de
homem, invocado para remover obstáculos e determinante para o sucesso de
qualquer iniciativa, assim como vários rishies, homens santos de barbas e cabelos
compridos. Este baldaquino seria um acessório para as inúmeras actividades
religiosas deambulatórias hindu e serviria de cobertura para uma imagem portátil
de uma qualquer divindade, retirada do templo para esse efeito.
teresa Lacerda, há muito apaixonada pela Índia, sugere-nos, na sua eclética e
fascinante loja De Natura, uma selecção preciosa de peças. tendo recolhido desde
cedo testemunhos do quotidiano sagrado e profano de países extra-europeus
(sobretudo Ásia e África), bem como peças de arte produzidas com o intuito
“nAgA E ShIVA LIngA” | bROnzE E pEdRA dE RIO SAgRAdO índIA | C. 50 CM dE ALTuRA | FotoGraFia: LuÍs GoNçaLVes
68
do belo e da estética, conjuga também produções
artísticas próprias.
Estas obras complementam um imaginário que se
relaciona directamente com os países de origem,
revitalizando conceitos, inspirações e tecendo
diálogos entre técnicas, materiais, estilos, temáticas
e tempos. De realçar as composições em estilo de
gabinetes de curiosidades, nas quais naturalia e
artificialia vivem em plena harmonia, testemunhando
a acção da natureza e do homem e a sua inevitável
interacção. Dentro destes microcosmos de recolha e
de acumulação, em aceso deleite e vivência da cultura
do objecto, da afirmação da curiosidade e fascínio
pelo exótico, sublinhe-se ainda a série de trabalhos
inspirados a partir da cultura nipónica e atente-se
nos mais clássicos e sublimes elementos da cultura
samurai (kimonos, armaduras e capacetes). Visita
obrigatória!
Fará em Novembro dez anos que, em conjunto com
Ana Marchand e Fernando Cardoso, teresa Lacerda
assinalou os cinquenta anos da independência da
Índia com a iniciativa Jornadas da Índia em Montemor-
o-Novo, na qual se celebraram a vasta cultura indiana
e as suas belas manifestações. Num percurso
destacado pelas inúmeras viagens a Oriente e perante
tantos e tão fascinantes objectos e testemunhos,
serão sempre de destaque as dezenas de brinquedos
trazidos de uma loja de banares ou os deslumbrantes
pichhavai (pinturas de “pano de fundo” de altar, de
uma imagem de um deus, neste caso do culto a
Krishna) do rajastão.
Na De Natura, entre várias peças indianas, como
um interessante Ganesh montado no seu rato (em
madeira policromada, séc. XIX), sublinhamos a
impressionante Naga das cinco cabeças em bronze.
Esta escultura, em evidente sinal de protecção e
escudo de um conteúdo também sagrado à sua
guarda, foi adquirida há mais de quinze anos num
antiquário londrino. Em composição hindu, um Shiva
Linga, pedra lisa de um rio sagrado que simboliza o
falo de Shiva, está protegido pela cobra.
Segundo alguns autores, este tipo de Naga poderá
também ser usado como suporte de incenso,
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IMAgEM dE AnTEpASSAdO (TAMIL nAdu), à ESquERdA, E duAS dEVAdASI (KERALA), CEnTRO
E dIREITA | MAdEIRA COM VESTígIOS dE pOLICROMIA | índIA | FotoGraFia: LuÍs GoNçaLVes.
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dossiEr Índia antiQuariato: Índia
certamente recorrendo aos estratégicos orifícios na extremidade da boca de cada
uma das cinco cabeças de cobra. Em associação budista, relembremos o papel da
Naga durante a meditação de buda, protegendo-o da tempestade chuvosa.
um conjunto de dezasseis peças e esculturas do Kerala e de tamil Nadu compõem
uma interessante e rara oferta. Entre peças utilitárias, carimbos tantra, fragmentos
arquitectónicos, caixas de pós de consagração, esculturas de deuses hinduístas
e outras imagens de difícil identificação, damos evidência a uma escultura de
antepassado e duas Devadasi ou Yaksa.
Originária de um altar familiar de tamil Nadu, a imagem de um antepassado,
em austera, simétrica e firme posição de asceta jainista, com braços afastados do
corpo, palmas da mão para dentro e pontas dos dedos projectando a energia para o
solo, assinala a rectidão física e espiritual do ente perdido e aqui homenageado.
Duas Yaksa ou Devadasi mostram o requinte da representação destas deusas-
mãe, originárias do Kerala. As suas formas voluptuosas, complexos penteados,
trajes marcantes e acessórios variados revelam a riqueza estilística desta
divindade associada aos conceitos do primordial, de mãe sagrada e mãe natureza,
relacionando-a em metáfora e comparação com a árvore (também Yaksa). Delas
brotam a fertilidade e criação, são fecundas e férteis, são elas que finalmente
promovem a dádiva da vida.
Do Nordeste da Índia chegam-nos três têxteis (xailes) de grande simbolismo e
importância para as tribos Naga. As Naga são tribos
das montanhas que se estruturaram à parte da grande
dinâmica geopolítica e cultural da Índia. Mesmo dentro
da grande comunidade Naga, dividida em centenas de
pequenos aglomerados populacionais, as diferenças
de vivência, organização e até língua e, no fundo, de
culturas é assinalável. Práticas como o cortar de cabeças,
sacrifícios de animais, as comuns celebrações variadas
que assinalam diversos momentos da vida, religiosidade
e crenças e as interessantes festividades dadas por
quem se destaca social e estatutariamente dentro das
comunidades, são momentos-chave e identitários destas
tribos.
teresa Lacerda apresenta-nos três xailes directamente
relacionados com ritualismo, representação estatutária e
simbolismo variado dentro das lógicas de comemoração
das crenças do sobrenatural (quer sejam espíritos ou
divindades) ou de momentos cruciais do aspecto cíclico
da vida natural e humana (fertilidade, prosperidade, vida
e morte).
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Manuel Castilho - AntiguidadesRua D. Pedro V, nº 851250-093 Lisboawww.manuelcastilho.com
Teresa Lacerda - De NaturaRua da Rosa, nº 162 A1200-389 Lisboawww.denatura.org
Jandrade - AntiguidadesRua da Escola Politécnica, nº39 A1250-099 Lisboae-mail: [email protected]
Jorge WelshPorcelana Oriental e Obras de Arte, Lda.Rua de S. Bento, nº 4401250-221 Lisboawww.jorgewelsh.com
Pedro Bourbon de Aguiar Branco - V.O.C. Antiguidades, Lda.R. honório de Lima, nº72 4200-321 Portowww.apa.pt/pab
Galeria da Arcada - Antiguidades, Lda.Rua D. Pedro V, nº49 1250-092 Lisboa
Casa D’ArteLargo de S. Martinho, nº8 (à Sé) 1100-537 Lisboawww.casa-darte.com
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XAILE COM CíRCuLOS E REpRESEnTAçÃO AnTROpOMÓRFICA ELAbORAdOS COM pEquEnOS bÚzIOS. OS pEquEnOS quAdRAdOS SÃO, nA SuA ORIgEM E MuITO pROVAVELMEnTE nESTE EXEMpLAR
TAMbÉM, TRAbALhAdOS COM pêLO dE CÃO TIngIdO A VERMELhO, ASSInALAndO uMA dAS MAIS EMbLEMáTICAS TÉCnICAS dAS nAgA quE É O EFICAz E COMpLEXO TIngIMEnTO, quER dE FIbRAS
TêXTEIS E dE OuTROS MATERIAIS. ESTE ESTILO É COMuM àS COMunIdAdES nAgA: SEMA, ChAng, KALyO-KEngyu E SAngTAM | FotoGraFia: LuÍs GoNçaLVes.
dossiEr Índia antiQuariato: Índia
Dentro da imensidão de testemunhos Naga
(cestaria, joalharia, ornamentos, armas, peças
em metais, esculturas e tanta cultura material
do quotidiano) os têxteis e traje compõem
simbolicamente peças de extrema elegância
e significado. De Natura apresenta-nos três
belíssimos e cada vez mais raros exemplos destes
xailes cerimoniais (a não perder!!).
Finalmente, muito comum e apreciado no
mercado do antiquariato português, o mobiliário,
escultura, pintura, ourivesaria, têxteis, outras
artes decorativas e marfins indo-portugueses, séc.
XVI-XVII, podem encontrar-se sem dificuldade.
Além dos nomes acima citados, os Casa D’Arte,
Galeria da Arcada - Antiguidades, Lda., Jandrade
- Antiguidades, Jorge Welsh ou Pedro bourbon
de Aguiar branco - V.O.C. Antiguidades, Lda.
são importantes e reconhecidos antiquários que
regularmente presenteiam o mercado português
com peças de excepção, indo-portuguesas e de
influência mogol.
Destaque para Jandrade - Antiguidades que, no
presente momento, dá a conhecer um cativante
e requintado contador mogol (teca, ébano e
marfim; 310 x 435 x �95mm, final do séc. XVI,
Índia Mogol) com motivos vegetalistas e de caça.
Além dos raros e refinados pelicanos, grande
surpresa paira na representação de um português
empunhando uma espingarda, em traje de época
no qual são evidentes as enormes, arejadas e
tufadas calças bombachas (ao estilo namban
jin, epíteto criado pelos japoneses para nós, os
bárbaros do sul), que pode ser apreciado através
dos namban byobu/biombo, nos Museus Nacionais
de Arte Antiga, Soares dos reis ou no Museu da
Fundação ricardo Espírito Santo Silva. |
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MadalEna BraZ tEiXEira
Panos7�ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr Índia
PintadosPaginacao1.1.indd 72 07/09/04 22:21:09
AS CHITASOs estampados de algodão constituem, porventura, os mais emblemáticos
exemplos de arte têxtil que se classificam atendendo não só à utilização de um
mesmo material e a uma técnica específica, mas ainda devido à sua característica
composição. Conhece-se pouco sobre as suas origens, mas a tradição é
imperativa, tendo sido possível estabelecer analogias formais e encontrar alguma
documentação esparsa que possibilita criar o historial do que é comum tratar por
Chitas de Alcobaça.
“A chita não é um tecido, mas um pano de algodão pintado”, e a sua designação
deriva do hindu, chint. Assim aparece explicitado no Dicionário de bluteau,
publicado em 171�, que se lhe refere como “panos pintados que são da Índia”.
Essa pintura realiza-se por um processo de estamparia manual. É lugar-comum
dizer-se que o termo “chita” é anterior ao vocábulo inglês, chintz. Na verdade, sabe-
se que os primeiros pintados vieram da Índia com Vasco da Gama e que os ingleses
só tiveram conhecimento deste material muito posteriormente, através das trocas
comerciais portuguesas e da sua pirataria. Chintz, segundo o The Oxford Dictionary,
deriva do hindu chint, tendo sido utilizado desde o início do século XVII, e é,
consequentemente, posterior à chita, ou pintados ou ainda calicô, palavras tornadas
sinónimas desde 1498. Calicô é o aportuguesamento de Calecut, de onde estas
mercadorias seguiam para Lisboa.
Na língua francesa, não existe vocábulo próprio e este tipo de tecidos eram designados
indiennes e, mais tarde, toiles de Jouy, por derivarem da manufactura dos estampados
executados naquele local, perto da corte de Versailles. todavia, seria em Mulhouse que
se viriam a concentrar e a desenvolver as fábricas de estamparia industrial francesa.
tanto em Inglaterra como entre os franceses, os tecidos estampados foram, talvez por
razões climáticas, essencialmente destinados à decoração de interiores. No entanto, a
moda de Verão expande-se na Europa desde os finais do séc. XVIII, e restam algumas
peças de vestuário confeccionadas nesse material.
No nosso país, desde 1700 até cerca de 18�0, só os verdadeiros tecidos indianos
foram utilizados no traje, dado o atraso da nossa indústria face à revolução
Industrial dos países atrás citados, mas também
devido à facilidade de acesso
dos portugueses aos produtos importados da Índia.
Não é despiciendo referir que as muitas fábricas
e fabriquetas de chitas existentes no nosso país,
documentadas na listagem apresentada por Jorge
Custódio, se destinavam à estamparia manual dos
mais diversos adereços, desde os lenços (de mãos,
de cabeça e de peito), às blusas e camisas destinadas
à classe média e a gente de poucas posses, pois
data de 1804 uma edição publicada em português
sobre a técnica de tingir os algodões, o que indicia a
democratização da estamparia a nível nacional.
O uso dos algodões indianos na indumentária, que
não de chitas, começa por ser divulgado na corte,
inclusive por pessoas régias como D. Carlota Joaquina,
substituindo e alternando a utilização das sedas e do
linho, como até aí era de regra. A partir de 1816, com
o regresso de D. João VI e após as Invasões Francesas,
o país atravessa uma séria crise política e económica.
Dificuldades de vária ordem, agravadas pela guerra
civil em 183�-35, conduziram à preferência por
produtos nacionais. Os algodões estampados no
país conhecem então um enorme sucesso, dado o
seu preço muito acessível. Será preciso esperar por
1870 para que a indústria fabril ganhe expressão,
o que ocorre com o período regenerador de Fontes
Pereira de Melo. É então que as chitas, totalmente
executadas no país, passam a ser adquiridas por todas
as camadas da população, sendo usadas tanto no traje
como no bragal.
eM CiMa | O TAbAquEIRO, SÉC. XIX
Duas ÚLtiMas eM baiXo LEnçOS dE ALCObAçA, SÉC. XIX
73
PriMeira eM baiXo | ChITAS dE ALCObAçA, SÉC. XIX
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O gosto vacilava entre um barroco tardio e a voga do Neoclassicismo, de que as
colchas constituem paradigmática manifestação, juntamente com o advento de um
primeiro romantismo pouco afirmativo.
A produção nacional foi posteriormente atendendo a um gosto Neoclássico tardio,
na medida em que, tanto as composições padronadas como as que são organizadas
em bandas contêm o léxico gramatical daquele estilo. É perceptível a sua evolução
para ramagens de sabor romântico, não perdendo todavia a estrutura inicial que
só é desconstruída no final de novecentos. Através da leitura formal das colchas,
é possível indicar-se a respectiva datação, muito embora se tenham vindo a
manufacturar alguns dos padrões que se mantiveram estáveis até aos anos
30 do séc. XX.
“Alcobaça” corresponde a uma tipologia de tecidos de algodão estampados,
essencialmente destinados à decoração de interiores, nomeadamente, à
confecção de colchas. Caracteriza-se por três elementos fundamentais: o
material, sempre manufacturado em tafetá de algodão, pela sua rica e variada
policromia e pela composição, em que predominam os motivos florais mas
onde também aparecem albarradas, folhagens, animais, ânforas e motivos
geométricos numa organização padronada que lhe é própria.
A técnica, que constitui ainda um processo identificador das colchas de Alcobaça,
é executada através da gravura sobre tecido de algodão. A gravação era executada
por meio de cunhos de madeira e de ferro. O facto de a composição ser gravada
no algodão por meio de cunhos faz que os desenhos obedeçam a uma estrutura
seriada com marcações repetidas provenientes de diferentes carimbos, quer na
manufactura das colchas, quer na dos lenços ou outros acessórios. A decoração
era distribuída por módulos para cada uma e para as diferentes partes da peça que
se pretendia estampar, compondo-se uma série de cunhos que, juntos, cobriam
a totalidade do algodão cru, podendo deixar parte do suporte à vista quando a
organização do desenho assim o definia.
A composição pode classificar-se em dois grandes grupos: as alcobaças de
padrão, que correspondem à integral cobertura do fundo com um mesmo
desenho de tipo tapete; e as alcobaças de bandas, cuja organização obedecia à
listragem (bandas em listras) dos motivos de modo a que os ornatos corressem
OS LENçOSEstes acessórios do traje tinham várias funções: desde
guardanapos para serem usados à mesa, na limpeza de
partes do corpo, como o nariz, até garrotes, sempre à
mão, para qualquer eventualidade. É no séc. XVIII que se
generaliza o seu uso entre as classes mais abastadas e os
clérigos. Eram de grande necessidade para os fumadores
de rapé que, com estes acessórios de algodão,
executavam o ritual da sua inalação. Este tipo de tabaco
esteve muito em voga em setecentos, sabendo-se, por
exemplo, que o Marquês de Pombal era um inveterado
fumador.
O aparecimento dos algodões da Índia faz crer que os
lenços de algodão importado, de mais fácil lavagem e de
mais suave textura para o uso, tanto junto do pescoço,
como nas narinas, passassem a ser adquiridos para esta
finalidade. O lenço tabaqueiro é uma especialização do
dito lenço comum de duas funções usado pelas classes
menos favorecidas e é um fenómeno oitocentista, na
medida em que o nobre e mesmo o burguês sempre
usaram lenço branco até praticamente aos anos 60 do
séc. XX.
A decoração destes lenços era subsidiária dos desenhos
e ornamentos usados nas colchas, embora mais
simplificados e geometrizados. A policromia também
segue de perto o colorido das colchas, tendendo
a escurecerem à medida que o séc. XIX avança,
mantendo-se os tons vermelho e azul-escuro como os de
maior preferência a nível nacional.
AS COLCHASrelativamente às colchas, estas também foram
usadas no nosso país em setecentos, sendo difícil
precisar quando se trata de colchas vindas da Índia,
as célebres palampor, e quando passam a ser produto
nacional. Portugal vivia um acentuado ecletismo,
motivado pela ausência de árbitros de elegância e
de encomendas públicas e privadas, pois tanto a
família real como a corte se encontravam no brasil.
pALAMpORE Ou pAnO dA índIA, SÉC. XVIII
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Portugal sobre tecidos importados. também é possível que os primeiros cunhos
fossem indianos, aos quais se tivesse sucedido a manufactura de carimbos
portugueses. Esta hipótese, não documentada, permitiria estabelecer uma série de
fases de manufactura até que o produto nacional tivesse atingido a sua autonomia
e se pudesse estabelecer uma evolução no desenvolvimento desta indústria e do
próprio gosto que lhe subjaz.
Existe, no entanto, uma realidade mítica relativa ao local da génese desta tipologia
de arte têxtil que os portugueses se habituaram a considerar como sua, revendo-
se nela como um elemento da identidade nacional, a que não são alheias as
eloquentes palavras de Gil Vicente:
E logo dahi a um ano
Para ajudar de casar
Huma orfam mandaste dar
Meio covado pano
De Alcobaça por tosar...
Penso que é neste contexto que as colchas e chitas de Alcobaça devem ser
perspectivadas, referenciáveis a uma subjectividade pátria, religada a emoções de
ordem afectiva e cultural, fazendo parte de uma história e de um modo de ser com
características peculiares. É o carácter emblemático das peças que está em causa
e não tanto a valia histórica, plástica ou etnográfica. O gosto pelo exótico que se
vem mantendo ao longo dos tempos e que foi esfriado com a Inquisição, que abolia
não só os distintos credos como as suas manifestações sensíveis, explica também o
sucesso desta arte têxtil. Corresponde a uma miscigenação de motivos decorativos
europeus, islâmicos e indianos, mas também ao apelo pelo diferente que calou bem
fundo no cariz voluptuoso do português, que continua a eleger peças de acentuado
valor étnico no interior das suas casas como uma moda cultural que permanece. |
Madalena Braz Teixeira Directora do Museu Nacional do Traje, Lisboa. |
COLChA dE ALgOdÃO ESTAMpAdO, SÉC. XIX LEnçO COM InFLuênCIA ORIEnTAL, SÉC. XIX
dossiEr Índia panos pintados
75
no sentido do comprimento do algodão. Estas
classificações ainda podem ser subdivididas, o
que implicaria a descrição de uma extensa lista de
subgrupos de padronagem destas colchas.
O GOSTOreconhecendo-se hoje que a variedade tipológica
dos lenços e das colchas de Alcobaça constitui uma
realidade incontornável e que estes trabalhos foram
e têm sido considerados, pelo menos a partir de
finais do séc. XIX, genuinamente portugueses, torna-
se necessário equacionar esta arte têxtil. Como foi
referido anteriormente,
as suas origens documentais são pouco precisas e
insuficientes para se poder concluir como e quando se
iniciou este tipo de fabrico, parecendo, todavia, que a
indicação de Maria Augusta trindade Ferreira sobre a
existência no mosteiro de uma fábrica de lençaria nos
finais do séc. XVIII nos conduz mais directamente à
probabilidade de ter existido no entorno do mosteiro
uma manufactura de algodão e/ou de estamparia, tão
importante ou inovadora que teve o privilégio de ter
sido visitada pela rainha.
A tecelagem de linho e de lã constituía uma
obrigatória actividade monacal, destinada à execução
dos têxteis necessários para uso da indumentária e
das alfaias religiosas. Deste modo, uma lençaria não
representava uma excentricidade.
É plausível que os algodões fossem gravados em
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A NossaSenhora é a minhaneta
josé sousa MacHado | josé caBrita saraiva [Jornal Sol]
76ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr paula rEgo
A propósito da exposição retrospectiva que acaba de ser inaugurada no
museu Reina Sofia, de Madrid, visitámos Paula rego no seu atelier londrino
e conversámos sobre pintura e sobre a vida, sobre tudo e sobre nada.
artes & leilões – como está organizada a sua
exposição no reina sofia e porque é que a realiza
em Espanha agora? a paula é conhecidíssima em
londres, em portugal, mas, em Espanha, ainda não
alcançou uma projecção equivalente.
paula rego – Não, eu em Espanha só expus…na
Marlborough; expus os meus quadros sobre o aborto,
mas isso não foi uma coisa pública.
a&l – é, então, a primeira vez que tem uma
exposição com esta envergadura em Madrid…
paula rego – É uma retrospectiva.
a&l – cobre toda a sua carreira artística?
paula rego – Desde 195�, para já…
ENtrEVIStA COM PAULA REGO
a&l – seleccionou as obras que estão expostas em
conjunto com Marco livingstone?
paula rego – Sim.
a&l – Expõe algumas peças relevantes ou
emblemáticas do seu percurso que queira destacar?
paula rego – Foi feita uma selecção brutal, porque ao
longo de todos estes anos eu fiz muitas coisas, não é
verdade?
a&l – pode destacar algumas das obras?
paula rego – Por exemplo, vão construir uma capela
com as minhas avestruzes dançarinas, que são da
Saatchi; também lá estarão Os cães de barcelona, entre
outros.
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a&l – E as vivian girls?
paula rego – Só lá estarão dois quadros dessa série.
a&l – Mas também expõe as colagens anteriores?
paula rego – De colagens, tem os Cães de barcelona,
tem um outro quadro que pertence à tate, que é Os
bombeiros de Alijó e, ainda, O regicida… E mais alguns
outros.
a&l – Expõe obras inéditas?
paula rego – Sim, de toda a minha última exposição
de Londres, por exemplo, estão bastantes obras. Acho
que pouca gente conhece esta exposição…Para além
disso exponho bastantes desenhos, a série sobre a
Misericórdia, que são desenhos que eu fiz sobre a idade,
e gravuras, as Nursery rhymes…tem um pouco de tudo.
a&l – é uma exposição grande, em termos de
dimensão?
paula rego – Pois é. Espero que caiba tudo lá.
a&l – Há pouco disse que teve de fazer uma selecção
imensa. tem uma estimativa de quantas obras já fez
até hoje? Quanto a desenhos, acho que é incontável
mas, por exemplo, telas?
paula rego – Eu tenho fotografados dois mil e tal
desenhos. Quanto a quadros não sei quantos são, nunca
os contei…
a&l – E quanto tempo demorou a organizar esta
exposição?
paula rego – bastante tempo. Isto foi combinado há
cerca de dois anos. Desde então temos tido um trabalho
incrível.
a&l – Quantas peças vão estar expostas na exposição?
paula rego – Quadros… não sei bem, mas serão entre
oitenta e noventa. Mas ainda há que juntar as gravuras
e desenhos, que são muitos. Eles lá no museu têm listas
detalhadas. São muito simpáticos… há um arquitecto, o
Marco Corrales, que é fantástico, desenhou o espaço da
exposição…
a&l – desenhou a arquitectura de espaço?
paula rego – Sim, redesenhou o espaço todo, porque a
sala é gigantesca e tivemos que a dividir para organizar
as coisas. A exposição realiza-se numa extensão do
Museu reina Sofia, que é um recinto maior.
a&l – será com certeza uma importante exposição
e um cartão de visita invejável para a sua estreia em
Madrid…
paula rego – Pois, em Espanha o reina Sofia é um museu importante, não é? E o
Prado é, do meu ponto de vista, o melhor museu do mundo. Do que eu mais gosto na
vida é visitar o Prado. também por isso tenho tanto respeito por Espanha e gosto tanto
de visitar Madrid. É fantástico aquele museu…vou lá sempre com gosto, ver aqueles
santos e o Zurbaran. também gosto muito da colecção que tem de pintura italiana, os
botticelli… extraordinário! têm um bosch, têm tudo.
a&l – é o museu do mundo que tem mais obras de Bosch, mas também de
velásquez.
paula rego – Desse nem se fala. têm sempre uma selecção muito rigorosa e, depois,
salas e salas de El Greco. Mas gosto sobretudo de ir lá ver pintura espanhola, do ribera,
por exemplo, que tanto aprecio. Até parece que nasci lá.
a&l – sente grande empatia ou afinidade com Espanha?
paula rego – Não sei se é afinidade ou empatia, mas gosto muito, porque fui criada
com aquilo, desde pequena. Cresci acompanhada por dois artistas que eram o Goya e
o Gustave Dorê, que era ilustrador. O meu pai tinha livros com gravuras destes artistas
e metia-me medo com o Inferno de Dante. Do Goya, tinha os Desastres da Guerra e
os Disparates, e o Dorê ilustrou tudo o que havia para ilustrar…os contos do Perrault,
o Capuchinho Vermelho, por exemplo. Mas o que eu mais gostava era o Inferno de
Dante ilustrado pelo Dorê. Em dias especiais eu sentava-me ao pé do meu pai e ele
abria o livro e eu sentia muito medo; ver os homens todos gelados, pendurados em
mastros… era uma festa, eu gostava muito e tinha muito medo ao mesmo tempo. Eu
pintei um quadro sobre isso, chamado Fisherman, com o meu pai a mostrar-me esse
livro e a pescar no Cabo da roca. É o meu último tríptico, que esteve na exposição da
Marborough e vai estar também na exposição do reina Sofia.
a&l – a sua obra tem vindo a conquistar muita notoriedade nos leilões da
christie’s e da sotheby’s. Estava à espera deste súbito interesse pela sua obra?
paula rego – Esse interesse que refere não foi assim tão repentino. Eu já tenho 7�
anos de idade. Já trabalho há muitos anos. Esta exposição abarca 5� anos de trabalho…
existem até épocas da minha vida nas quais já nem me lembro o que fiz. E nem sei
onde estão, pelo menos, metade dos meus trabalhos. Andam dispersos por Portugal.
Vou ter de encontrá-los. Há coisas que fiz e nunca mais vi. Foram vendidas pelo Pereira
Coutinho, que não me disse onde elas estavam e não deixou registo nenhum delas.
tenho-me visto grega à procura de coisas antigas minhas. Encontrei o regicida, por
exemplo, através de pessoas amigas. Se alguém souber do paradeiro de quadros meus,
por favor informe-me.
a&l – a equipa do reina sofia que preparou esta exposição não conseguiu
descobrir quadros seus?
paula rego – Como é que eles podiam fazê-lo se não conhecem Portugal? Esse trabalho
tem de ser feito por mim, com os meus contactos. Nem sequer o Marco tem contactos
em Portugal para executar essa tarefa.
a&l – Foi sobretudo em portugal que a paula perdeu o rasto das obras mais antigas?
paula rego – Sim. Mas há também pessoas que não querem dizer que têm quadros
78
dossiEr paula rEgo a nossa sEnHora é a MinHa nEta
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79
meus. É esquisito, não acha? Esse é um assunto a que terei de voltar quando organizar
o catalogue raisonée das minhas pinturas. Eu tenho um das minhas gravuras que
entretanto já está desactualizado porque fiz muitas mais desde então.
a&l – Qual é o papel da mulher na sua obra? a condição feminina é um elemento
preponderante e cada vez mais central na sua obra.
paula rego – Sempre foi.
a&l – é uma atitude um pouco feminista, não?
paula rego – Até bastante. Pois é. As histórias que eu conto, o assunto, são histórias
contadas a partir da experiência de uma mulher. Só sei contar coisas do meu ponto de
vista. Acho muito difícil pôr-me na pele de um homem ou de um bicho. É claro que uso
uma linguagem metafórica; os bichos personificam pessoas, são sempre pessoas.
a&l – nas suas obras há uma extrema identificação entre as pessoas e os bichos,
ao ponto de podermos fazer aquele jogo em que cada pessoa se representa como
sendo um bicho, o animal com que mais se identifica.
paula rego – Nesse caso, com que bicho se identifica você?
a&l – com um cágado, mas preferia ser um macaco.
paula rego – Ai sim, isso é muito engraçado. Havia um actor português, o ribeirinho,
suponho, que também se parecia com um cágado.
a&l – E a paula, com que animal se identifica?
paula rego – Eu gosto do cão, mas o bicho com que mais me identifico é o porco.
Mas, está claro, não é um bicho muito simpático. refiro-me aqueles porcos do Alentejo,
pretos, que têm pêlos bicudos. Eu gosto de todos os porcos.
a&l – não é propriamente um animal para se ter em casa…
Paula rego. – Seria uma grande balbúrdia
a&l – a exposição do reina sofia vai ter itinerância? paris, Moscovo…
paula rego – Não, deve haver aí um engano. A minha exposição de gravuras que
agora anda a viajar pelo mundo é que vai a São Petersburgo. Esteve recentemente em
birmingham. Mas esse é outro projecto. Esta exposição vai viajar até Washington, ao
the National Museum for Women in the Arts.
a&l – a paula conhece são petersburgo?
paula rego – Não, ainda não. E você já lá foi?
a&l – sim, já.
paula rego – O museu deve ser extraordinário. Deve
ser muito diferente dos museus ocidentais, que deixam
imenso espaço vazio à volta dos quadros.
a&l – Quando visitei o Museu tetreakov, há já uns
anos, estava lá uma exposição de obras desde os
primeiros construtivistas até aos anos 60, mostrando o
gesto a ser moldado para propaganda do regime, num
realismo panfletário…
paula rego – Que coisa extraordinária. É uma pena não
termos a possibilidade de ver com mais frequência essas
coisas, nem a arte nazi.
a&l – até parece que estamos perante obras num
estilo realista e fantástico, ao mesmo tempo, só que
com uma carga muito ideológica…
paula rego – Mas o realismo é sempre um pouco assim,
não é? Esse tipo de arte política, de propaganda dos
regimes totalitários, embora não seja aceitável no que
representa, deve ser vista. toda a arte é assim. Em certas
alturas, certas coisas tornam-se impopulares e escondem-
nas nos armazéns. É uma pena… Lá em Portugal
também há muitas coisas do séc. XIX que não estão à
mostra.
a&l – se calhar nós, portugueses, também não
valorizamos a nossa própria cultura, não é?
paula rego – Isso é uma pena, é uma parte da memória
que se perde, mas também uma maneira de fazer arte.
Por exemplo, há poucas coisas do Columbano expostas
e poucos desenhos - que eu adoro - do irmão, do rafael.
Agrada-me aquela vitalidade e sentido de humor que é
tão nosso.
a&l – a paula envolve as pessoas que lhe são
próximas na elaboração dos seus quadros. de certa
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forma, as suas pinturas são teatrinhos, são quadros vivos, à maneira daqueles jogos
de salão do final do século XiX…
paula rego – Sim, toda a gente que conheço, as minhas netas, etc., têm de posar para
mim. A Nossa Senhora, por exemplo, é a minha neta.
a&l – é como se estivesse a criar histórias dentro de histórias.
paula rego – Sim, claro, mas elas têm de estar quietinhas. Mas eu pago-lhes. Já todas
elas experimentaram posar para mim, menos a que tem quatro anos, que ainda é muito
irrequieta. Às vezes, aos domingos, almoçamos todos juntos e depois do almoço as
pessoas mascaram-se como quiserem. Eu tenho caixas com máscaras, fantasias, fatos
espanhóis, de flamengo. As minhas netas dançam, recitam e fazem coisas para nós
vermos. Só que aí eu não dirijo as brincadeiras. É mais ou menos a mesma coisa que se
passa com as minhas pinturas. O meu atelier é um quarto de brinquedos que nem sempre
é divertido. também tem coisas que fazem doer. Aquele lado da injecção que faz doer.
a&l – Quando fala de injecção que faz doer, refere-se ao tempo de gestação dos
quadros, quando as coisas ainda não estão claras?
paula rego – refiro-me à necessidade de disciplina, de desenvolver hábitos regulares de
trabalho. O hábito e a disciplina são muito importantes para quem faz bonecos. Se não
se pinta durante muito tempo, perde-se a mão para o desenho.
a&l – continua a manter uma regularidade de trabalho diária?
paula rego –Sim, trabalho todos os dias da semana, de segunda a domingo. Gosto
muito de desenhar, de pegar num lápis, num crayon, ou num pastel e desenhar uma
figura, sobretudo gosto de desenhar à vista, uma coisa que tenho à minha frente, e
sentir a surpresa de conseguir fazer uma coisa. Sabe que conseguir fazer uma coisa que
está ali à nossa frente é muito difícil, mas também é muito interessante.
a&l – Quando se olha para estes seus desenhos
percebe-se que a paula rego é uma desenhadora
compulsiva.
paula rego – Não desenho fora do atelier. É muito raro
isso acontecer. Certa vez em que precisava de fazer
uma série de pinheiros todos torcidos, tive de ir para o
Guincho desenhar as árvores. Ou seja, se para contar
uma história necessito de qualquer coisa que não
conheço, vou ao lugar onde ela se encontra e copio-a.
Mas não sou uma pessoa que esteja sempre com livros
de esboços a desenhar.
a&l – Quando há pouco falámos do pinóquio, da
Branca de neve, dos contos do perrot, etc, associando-
os às suas histórias, vem-me sempre à ideia um livro
intitulado psicanálise dos contos de Fadas, do Bruno
Bethleim.
paula rego –É um livro importante, que eu já li há
muitos, muitos anos.
a&l – a paula fez psicanálise?
paula rego – Fiz psicoterapia jungiana. É um pouco
diferente.
a&l – E isso foi de algum modo decisivo na sua
pintura?
paula rego – Eu acho que desenvolveu ou reforçou o
TRípTICO | “LER O InFERnO dE dAnTE” | “TRIndAdE” | “pESCAdOR” | pApEL S/ CARTÃO | 180 CM X 120 CM
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Nota final: quando convidei a Paula Rego para vir a Lisboa no dia de relançamento da revista Artes & Leilões, disse-me que não podia pois estaria em Madrid a montar a exposição do Reina Sofia, mas que se sentia bem representada pelo seu embaixador plenipotenciário. Perguntei-lhe quem era ele. É o macaco, ou um qualquer macaco imaginário que por lá circule.
meu interesse nas histórias “ditas” de fadas que são, finalmente, contos tradicionais
bastante duros. Leram, por acaso, os nossos (portugueses) contos tradicionais, reunidos
pelo Leite de Vasconcelos? Contam coisas duríssimas e terríveis. Portanto, a psicoterapia
desenvolveu a minha curiosidade em reler esses contos, porque de facto eu sempre
gostei de ouvir essas histórias. Mas, depois, começamos a fazer arte – e fazer arte é a
pior coisa que há, não é verdade? – e foi por essa via que consegui recuperar o meu
interesse inicial por esse universo fantástico. Comecei pelos portugueses, que são de
uma violência e crueldade espantosas. Gostava de ilustrar os mais terríveis contos…
talvez ainda tenha tempo para isso, para desenhar a partir dos mais terríveis contos
tradicionais portugueses.
todos os contos se parecem, embora variem de país para país. Nós, por exemplo, temos
muitas histórias onde aparecem santos. Os contos portugueses são mais estranhos do
que os dos outros países.
a&l – Estranhos, como?
paula rego – Por exemplo, uma mulher vivia num bosque com o marido que era
lenhador e muito pobre… um dia em que não tinha nada para lhe dar para comer,
cortou um seio e cozinhou-o para o marido que lhe disse ; “Ah, está tão bom!” Os filhos,
claro está, não comeram nada. No dia seguinte não havia outra vez nada para o jantar
e a mulher cortou o outro seio e a história repetiu-se. Guisou-o e deu-o ao marido que
ficou todo contente. No terceiro dia continuavam sem ter nada para o jantar e o marido
pôs-se, como de costume, a refilar. Disse-lhe ela, então: “Olha, já não tenho mais nada
para te dar.” Foi só então que ele reparou que ela estava cheia de sangue e perguntou-
lhe: “Mas o que é que tu tens?” “Cortei os seios, para tu teres o que comer”, retorquiu
a mulher. “Mas então o que é que hoje havemos de comer?”, indagou o marido,
prosseguindo assim: “temos de começar a comer as crianças.” É nesse momento que a
história realmente começa…uma história tipicamente portuguesa.
a&l – nos seus quadros, a mulher é apresentada como heroína e os homens ou são
insignificantes ou fazem os outros sofrer…
paula rego – Não, de todo. Não fazem as pessoas sofrer. Eles às vezes até se mascaram
de mulher.
a&l – Mas há, pelo menos, uma desproporção na escala com que são
representados. as mulheres enormes, às vezes até acumulando os papéis
geralmente atribuídos às mulheres e aqueles que são específicos dos homens, e
os indivíduos do sexo masculino retratados numa dimensão muito menor, quase
inexpressivos e sem nenhuma função de destaque…
paula rego – Sim, claro, embora agora faça menos isso. Eu não mostro o homem como
sendo mau. Até gostava, mas não sou capaz. A maldade no homem é a coisa mais
vulgar do mundo.
a&l – os assuntos que escolhe para as suas pinturas são quase sempre problemas
muito actuais; a violência sobre as mulheres, os miúdos maltratados, violados, etc.
interessa-lhe reflectir e dar a ver a realidade e a violência do mundo actual?
paula rego – No fundo é isso que me interessa. Os meninos da Casa Pia, ou os dos
Salesianos que, apesar de tudo, tinham a vantagem de ser de boas famílias, porque os
pais não lhes batiam. Não tem nada de extraordinário…
é a raça humana, raça humana, raça humana… as
mulheres também fazem muitas maldades.
a&l – de que é que mais gosta em portugal?
paula rego – Quando chego a Portugal demoro sempre
muito tempo a reconhecer o cheiro das coisas. É sempre
um choque. É-me muito difícil fazer seja o que for em
Portugal. É-me mais fácil trazer as coisas de lá para cá e
fazê-las aqui Até pensei em fazer um pequeno atelier na
minha casa do Estoril. E nunca consegui, nunca consegui.
a&l – Mudando de assunto, o que pretende expor no
seu futuro museu que vai ser construído em cascais?
paula rego – Vou doar ao museu todas as minhas
gravuras, um exemplar de cada uma delas. E também
alguns desenhos seleccionados. Para além disso tenho
quadros e coisas minhas que ficarão lá guardadas, em
regime de depósito, e também vamos ter uma sala de
exposições temporárias, onde gostaria de mostrar essas
coisas que não se mostram, coisas oriundas desses
sítios impopulares, de que falávamos há pouco. Gostava
de fazer coisas que normalmente não se vêem, como
ilustração, bonecos, desenho, arte dos prisioneiros, arte
das pessoas que estão internadas… mas que agora já é
difícil encontrar porque estão muito drogadas.
a&l – considera que há muito embuste na arte
contemporânea?
paula rego – Não, acho que não, não há mentira. É
difícil saber uma coisa dessas, porque na arte há sempre
uma transformação e as coisas deixam de ser o que
eram e passam sempre a ser outra coisa... Pessoalmente
interessa-me mais a arte feita à mão. Claro que adoro
cinema, adoro o Almodôvar, o Del toro; gosto mais de
ver filmes do que ver vídeos de arte. É uma chatice, tanto
tempo às escuras. Não é uma coisa que eu gostasse de
fazer. tenho amigos, como o João Penalva, que admiro
muito, e que gostam de fazer essas coisas. Eu não sei
fazê-las. É como o bill Viola, que dizem que é muito
religioso e tudo o mais, mas eu prefiro a Anunciação do
botticelli. |
dossiEr paula rEgo a nossa sEnHora é a MinHa nEta
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sandra viEira jÜrgEns
83
dossiEr paula rEgo
ENTREvISTA
Crítico e historiador de arte, Marco Livingstone é o comissário da retrospectiva de Paula Rego no Reina Sofia que decorre até 31 de Dezembro.
paUla ReGO |“CÃES VAdIOS (OS CÃES dE bARCELOnA)”, 1965 | COLAgEM E ÓLEO SObRE TELA | 160 X 185 CM | COLECçÃO JOÃO REndEIRO
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Mar
co
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a&l: Em que contexto tomou contacto com a obra de paula rego?
Marco livingstone: Fiquei a conhecer as pinturas de Paula rego, e a própria
artista, quando esta começou a expor na Edward totah Gallery, em Londres,
em 198�. Anteriormente tinha realizado apenas uma exposição individual em
Inglaterra, embora já fosse muito conhecida e admirada em Portugal.
a&l: o que representa comissariar uma exposição retrospectiva de paula rego?
Marco livingstone: Antes de me tornar curador independente, em 1986, já tinha
trabalhado durante dez anos em museus. Embora trabalhar como freelancer se
possa reflectir numa existência precária, possui a grande vantagem de me dar
liberdade para poder trabalhar em contextos e situações diversos, e com artistas
que admiro. A Paula já tinha iniciado contactos com o Museu reina Sofia sobre a
realização de uma grande retrospectiva da sua obra, quando me convidou para
comissariá-la como independente. Senti-me muito honrado pela confiança que
depositou em mim e obviamente agarrei esta oportunidade, sobretudo porque
admiro a sua obra há muito tempo. Comissariar esta exposição é um trabalho de
grande responsabilidade, pois sei o quanto é importante para a Paula mostrar o
seu trabalho com tanta profundidade em Espanha, por razões culturais e também
pela grande importância que a arte espanhola, especialmente de Goya, teve no
desenrolar do seu trabalho.
a&l: nesta exposição retrospectiva irá experimentar uma nova abordagem à
obra de paula rego?
Marco livingstone: Esta será de longe a maior e a mais exaustiva exposição
jamais consagrada à obra da Paula, com cerca de �00 pinturas, desenhos,
gravuras e litografias, abrangendo um período superior a 50 anos. realçaremos
todas as principais séries de obras que produziu desde que era estudante na
Slade School of Fine Art em Londres no princípio dos anos 50, e mostrá-las-emos
numa ordem mais ou menos cronológica. É uma maneira simples de dar sentido
às múltiplas mudanças ocorridas na sua produção artística ao longo dos anos, e
de revelar conexões e continuidades inesperadas no
âmbito daquilo que superficialmente podem parecer
grandes alterações de rumo na sua abordagem.
a&l: como estará organizada a mostra no reina
sofia?
Marco livingstone: Estamos a trabalhar nesta
exposição desde Novembro de �005. Pode parecer
muito tempo, mas é um período efectivamente curto
para um projecto desta dimensão, principalmente
pelas dificuldades que surgem quando se trata
de encontrar algumas das obras e de garantir um
tão grande número de empréstimos. A Paula e
eu trabalhámos juntos na selecção das obras, em
colaboração permanente com Lucia Ybarra, do
departamento de exposições do museu, que tem sido
a responsável por toda a coordenação.
a&l: Qual foi o critério que presidiu à sua
concepção? o critério é cronológico, abarcando
diferentes períodos da obra de paula rego? ou
existe uma ideia em torno da qual se estrutura a
exposição?
Marco livingstone: A exposição desenvolver-se-
á mais ou menos cronologicamente nas galerias
(salas), e também no catálogo, permitindo ao
público compreender o modo como as ideias, os
temas e as técnicas evoluíram na obra da Paula ao
longo dos anos. Existem tantos níveis na sua arte
que nos pareceu preferível não impor uma direcção
paUla ReGO | “O MACACO VERMELhO bATE nA MuLhER”, 1981 | ACRíLICO SObRE pApEL |
COLECçÃO dA ARTISTA
paUla ReGO | “A pEquEnA ASSASSInA”,
1987 | ACRíLICO SObRE pApEL MOnTAdO EM
TELA | 150 X 150 CM |
COLECçÃO pARTICuLAR, LOndRES
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curatorial mas deixar que a obra fale por si.
a&l: por que motivo surge esta exposição neste
momento?
Marco livingstone: Já deveria ter sido feita há
muito tempo! Ainda não houve uma exposição desta
dimensão no reino unido, onde a Paula produziu
a maior parte da sua pintura. A última exposição
deste género realizada na Inglaterra ocorreu na
tate Liverpool há exactamente dez anos, e a Paula
produziu entretanto um número extraordinário de
pinturas, incluindo algumas das suas melhores obras.
a&l: Qual será a importância desta mostra de
paula rego em Madrid? sendo o seu trabalho já
muito conhecido em portugal e inglaterra, será esta
uma oportunidade de reforçar a sua visibilidade
noutros países europeus? Qual espera ser a reacção
do público espanhol?
Marco livingstone: uma exposição tão ambiciosa
e exaustiva como esta dará certamente impacto ao
reconhecimento internacional da obra da Paula, e
isso conseguir-se-á também através do catálogo, que
chegará a um grande número de pessoas que não
poderão ver a exposição pessoalmente. Mas, acima
de tudo, é uma oportunidade para a obra da Paula
ser muito mais apreciada em Espanha. Porque, no
fundo, as suas memórias de infância sob a ditadura
fascista em Portugal, e a sua vasta experiência
enquanto mulher numa sociedade latina, devem tocar
profundamente a sensibilidade de muitos espanhóis, tanto dos homens como das
mulheres. Para muita gente, o confronto com esta arte tão pessoal, tão intensa e
profundamente vivida ocasionou um encontro que mudou a sua própria vida. Estou
certo de que isso ocorrerá também com os espanhóis.
a&l: seria pertinente trazer esta exposição a portugal?
Marco livingstone: têm havido óptimas exposições da obra de Paula rego
em Portugal, particularmente a extraordinária mostra no Museu Serralves, no
Porto, em �004, que integrou a sua produção artística desde 1997. A sua última
grande retrospectiva, que foi inicialmente mostrada na tate Liverpool em 1997,
transitou imediatamente para o Centro Cultural de belém, em Lisboa, onde foi
magnificamente recebida. A Fundação Calouste Gulbenkian, que tem dado um
grande apoio à Paula ao longo dos anos, possui quadros dela na sua colecção
permanente e já realizou diversas exposições da sua obra. Por isso achámos que
não era necessário trazer esta exposição a Portugal, e também porque os seus fãs
portugueses poderão facilmente deslocar-se ao reina Sofia - um bom pretexto para
ir a Madrid!
a&l: tem seguido o percurso de outros artistas portugueses?
Marco livingstone: Nos últimos cem anos existiram alguns artistas portugueses de
grande mérito, incluindo alguns contemporâneos que são amigos e conhecidos da
Paula rego. Mas, sem querer diminuir a sua relevância, penso que a Paula rego se
situa num plano singular, sendo uma das artistas mais imaginativas, talentosas e
influentes a trabalhar hoje no mundo. |
Marco Livingstone Autor de referência no estudo da Pop Art, organizou várias retrospectivas itinerantes e assinou uma das obras mais destacadas sobre o movimento - a Pop art: a continuing history. Ao longo da sua carreira escreveu sobre o trabalho de numerosos artistas, entre os quais David hockney, R.B. Kitaj, Allen Jones, Peter Phillips, Jim Dine, Tom Wesselmann, George Segal and Duane Michals. |
paUla ReGO | “A FAMíLIA”, 1988 | ACRíLICO SObRE pApEL MOnTAdO EM TELA | 213,4 X 213,4
CM | ThE SAATChI gALLERy, LOndRES
paUla ReGO | “guERRA”, 2003 | pASTEL
SObRE pApEL MOnTAdO EM ALuMínIO | 160
X 120 CM | TATE, IngLATERRA
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arte & leilões – como entende a relação entre a arquitectura e as artes plásticas,
nomeadamente no que se refere à concepção de espaços expositivos?
E.souto Moura – Como uma consequência do tipo de afinidades entre as duas
disciplinas, cujas fronteiras são cada vez mais ténues. Dizer que isto é pintura, ou que
isto é escultura, que o Cabrita reis é escultor ou é pintor, ou que o Ângelo é escultor ou
é pintor faz cada vez menos sentido. E isto não acontece apenas no domínio das artes,
mas também no da ciência, quando parte da investigação da biologia é desenvolvida
pela física, a da física pela química, etc.
A arquitectura é cada vez mais pictórica e os pintores cada vez se sentem mais
próximos da arquitectura. Quando conheci o Donald Judd, ele disse-me que ia deixar
de ser artista plástico e queria ser arquitecto porque precisava do programa do cliente;
já não aguentava mais a angústia da posição tradicional do artista que só é confrontado
consigo, sem feedback, nem julgamento do exterior.
Portanto, o museu é, hoje em dia, cada vez mais uma obra de arte autónoma, na
mesma medida em que as obras de arte que se colocam nos museus estão cada vez
mais perto da arquitectura, como as instalações que, muitas vezes, são fragmentos de
arquitecturas. Muitas vezes os campos confundem-se e, também por isso, os artistas
não querem que os arquitectos assumam um grande protagonismo, porque isso pode
abalá-los. repare como cada vez mais, na construção dos museus e galerias, são
escolhidas estruturas industriais, porque estas construções não têm intencionalidade.
Quem as concebe pensa unicamente que têm de ter quatro paredes e um tecto.
josé sousa MacHado
86ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
dossiEr paula rEgo
ENtrEVIStA COM EDUARDO SOUTO MOURA
Claríssimo no discurso, poético na forma,
desconcertante nas ideias, o arquitecto
Eduardo Souto Moura conversou connosco
acerca do projecto da Casa das Histórias
e dos Desenhos Paula Rego, que será construído
em Cascais, na antiga Parada.
NãO HÁ ARTE SEM DELITO
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de altura, onde vão decorrer as exposições temporárias. Pode-se subir e descer o tecto
e construir os cenários que se quiser. Se, à partida, não tivermos como base de trabalho
uma colecção definida, é muito difícil decidir sobre a forma que o museu vai assumir.
Neste caso, considerei necessário adaptar os espaços à escala das obras de arte que
estarão expostas, porque há obras que precisam de um pé direito de quatro metros,
outras de seis metros, etc. tentei responder ao leque mais plural possível.
Acho que a Paula rego foi inteligente, a começar pela escolha do nome do museu
– Casa das Histórias e dos Desenhos Paula rego -, não só porque ela é uma artista
que está pujante, está em plena actividade, mas também porque pretende que este
museu seja um laboratório, uma oficina de experimentação artística, com crianças
ou seja lá quem for.
Hoje em dia os museus não são apenas locais onde se visitam exposições, mas
também lugares de convívio e ponto de encontro entre pessoas, com livrarias, sítios de
lazer diversos, restaurantes, esplanadas… Procurei desenvolver esta faceta menos usual
- há uns anos atrás isto teria sido considerado um pecado de “lesa majestade”.
a&l – Este seu projecto estrutura-se a partir do diálogo com a obra da paula rego,
por um lado, e com o meio ambiente, por outro, integrando o museu no meio
ambiente envolvente e fazendo os módulos estruturantes do edifício funcionarem
como negativo do mundo natural…
E.souto Moura– Eu acho que a arquitectura – e não só ela – é uma disciplina que
não tem nada a ver com a natureza, antes pelo contrário. Enquanto que para os
clássicos, a perfeição consistia em os artistas imitarem a natureza, a modernidade,
de que um Almada ou um rimbaud são exemplos, nasceu em ruptura com tudo
isto. Neste caso, a natureza é que tem de copiar a arte. Eu gosto mais das coisas
feitas pelo homem do que das coisas feitas por Deus… se Deus fez as uvas, o
a&l – deduzo do que afirma que o museu que
desenhou para a paula rego tem uma forte marca
autoral…
E.souto Moura – Claro que sim, porque sou
arquitecto e a Paula rego escolheu-me a mim - e não
outro arquitecto – para projectar este museu, e eu
não me posso limitar a fazer um barracão cinzento.
tentei ser comedido nas minhas opções, pois sei
que há obras que exigem maior intervenção autoral
e outras menos, há certas obras mais densas do que
outras. um museu pode e deve ter impacto exterior
e beleza, mas deve também definir a sua identidade
- as salas, os espaços – em termos não concorrenciais
com o que lá se expõe. Deixei o espaço ter alguma
neutralidade, usando a luz natural - abri janelas.
a&l – Foi por considerar que este museu pretende
ser também um espaço cultural dinâmico e
lúdico, ao invés da ideia tradicional que temos dos
museus, que optou por organizá-lo em módulos que
lhe conferem uma enorme polivalência?
E.souto Moura – Eu tentei que as formas e
volumes da arquitectura pudessem corresponder ao
dimensionamento do que julgo serem as obras da
Paula rego e do seu marido. Fundamentalmente, há
uma sala laboratório, que é uma sala com 10 metros
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a&l – Este seu projecto de museu cita
implicitamente o raul lino…
E.souto Moura – Eu achei que o museu devia ser
fragmentado, devia ter escalas diferentes. Quando vi
ali perto uma casa do raul Lino, gostei da articulação
de volumes, com hexágonos e torreões de diferentes
alturas. Ele resolvia-me a questão que tinha em mente
e, então, pus-me a estudar a sua obra, fazendo, como
de costume, exercícios de cópia, como fazíamos na
primeira classe. Faço sempre assim: ponho o livro à
frente e desenho até interiorizar o que ali está, até
que um dia me sai qualquer coisa do género, sem eu
sequer pensar no assunto.
recentemente, comecei a fazer uma arquitectura
mais desarticulada talvez porque neste momento
não existe nenhuma teoria que me satisfaça.
talvez por causa da idade, ou por nunca ter
experimentado, comecei a interessar-me por
arquitectos mais complexos, mais barrocos. Vivemos
numa época sem ideologia. Hoje tudo é possível.
Por exemplo, um bom arquitecto barroco sabia
o que era a contra-reforma e um arquitecto neo-
clássico provavelmente seria panteísta, mas hoje,
neste mundo plural, podemos ser tudo, sem nos
comprometermos com nada. |
homem fez o vinho, que é muito melhor, Deus fez as pedras, mas o homem fez
a Acrópole. Ser arquitecto é, justamente, entender que a natureza é defeituosa.
Aceitei fazer aquele projecto porque acho que aquele sítio ficará melhor com uma
intervenção de arquitectura. Se ficar pior, o projecto falhou.
também me parece que braga ficou muito melhor com aquele estádio instalado na
pedreira do que com a pedreira ao ar livre, parada. Quando o colectivo se apropria
dos projectos é porque estes fazem sentido e então, nesse caso, o arquitecto fica
satisfeito com o que fez.
a&l – Mas, em sua opinião, a própria topografia do terreno determinou a
sua intervenção arquitectónica. certos elementos naturais sugeriram-lhe
apontamentos à maneira dos jardins japoneses.
E.souto Moura – É que as coisas boas têm de ter vazios. Disse, com muita razão, o
Herberto Helder que: “É com o silêncio que se fazem as vozes”. E é com os vazios que
se faz a poesia. Se tudo estivesse perfeitamente encadeado não seria poesia; faltaria
o ritmo, os espaços, a música. Os intervalos dos sons são tão ou mais importantes do
que os próprios sons. Mas há uma coisa muito perigosa na arquitectura e, se calhar,
também na arte, que é o “bonito”… está muito próximo da elegância e da amabilidade.
E isso conduz facilmente ao facilitismo. A arte, por natureza, tem de ser contra-natura.
Não há arte sem delito.
a&l – a sua própria linguagem é muito poética. preocupa-se com este tipo de
questões quando projecta?
E.souto Moura – Não é consciente. A arquitectura, em minha opinião, não deve ser
narrativa; quem quiser ter esse tipo de postura que vá para o cinema ou para a literatura.
A arquitectura é abstracta, rege-se por regras próprias que devem corresponder a uma
determinada intenção programática colectiva. A arquitectura é uma arte social.
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dossiEr paula rEgo não HÁ artE sEM dElito
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gisEla lEal
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crÍtica
A �7 de Outubro de 1960, por proposta do crítico de arte Pierre restany, oito
artistas assinam a “Declaração Constitutiva do Nouveau Réalisme” em casa de Yves
Klein. um desses nomes (a par dos próprios Yves Kleins e Pierre restany, Arman,
raymond Hains, Martial raysse, Daniel Spoerri, Jean tinguely e Jacques Villeglé)
é o de François Dufrêne, que podemos actualmente visitar no Museu de Arte
Contemporânea de Serralves. trata-se da primeira exposição retrospectiva realizada
fora de França de um artista cuja obra está sobretudo marcada pela superação dos
limites entre géneros artísticos.
A irreverência e o inconformismo foram o motor de um percurso que procurou
incessantemente desmontar a realidade e mostrar o seu verso. E se bem que o seu
nome não seja dos mais referenciados quando se fala do “Novo realismo”, certo
parece ser que Dufrêne terá sido dos mais originais artistas franceses do pós-guerra
a dedicar o seu trabalho à crítica da linguagem e à crítica sociológica. Numa França
pré-Maio de 68, um Dufrêne ainda adolescente aproxima-se de Isidore Isou e do
seu movimento letrista, onde desde logo inicia um convívio com nomes como Guy
Debord, dando os primeiros passos para a construção de um corpo de trabalho
singular.
Mais tarde, o manifesto dos “novos realistas” propõe um regresso ao real, por
oposição às correntes institucionalizadas à época. E são precisamente as “novas
abordagens perceptivas do real” (definidas no manifesto) e o cruzamento das
gramáticas particulares de práticas artísticas diversas que trarão a Dufrêne a
sua singularidade artística. “Músico da linguagem”, serão os jogos de subversão
- da palavra e da imagem - a servi-lo na exploração de “novas possibilidades de
construção de significantes que resistem à convencionalidade dos seus possíveis
significados”, como refere João Fernandes, comissário da exposição juntamente
com Guy Schraenen.
François Dufrêne aproxima-se e simultaneamente afasta-se de cada um dos
movimentos a que se foi associando: ao mesmo tempo que recolhia cartazes das
ruas de Paris com raimond Hains ou Jacques Villeglé numa prática de “respigação”
e re-apropriação do real, Dufrêne ia mais longe e mostrava os avessos dos mesmos
(os seus “dessous d’affiches”); ao mesmo tempo que procurava no contexto da
poesia sonora a subversão e re-utilização da palavra, Dufrêne experimentava os
limites físicos da poesia, criando o Crirythme [Gritoritmo]; até no filme Dufrêne
procurou o verso da imagem - em Trois Minutes en Vitesse pour Mettre à Jour
Quelques Dessous de Visions, Dufrêne mostra uma Paris reflectida.
Em Serralves é agora apresentado um vasto conjunto de telas, dois filmes e algumas
das suas gravações sonoras - muito do trabalho de
Dufrêne ficou assente na performance e no registo
sonoro -, bem como variado material editado pelo
artista (revistas, livros, cassetes). A presente exposição
parece-nos, assim, querer fazer justiça a um nome
fundamental da arte contemporânea francesa no pós II
Guerra Mundial, mais comummente associado à poesia
sonora do que às artes visuais. |
fRançOiS DUfRÊne | ”EnCORE”, 1965 | AVESSO dE CARTAz MOnTAdO SObRE TELA | 130 X
195 CM | COLECçÃO FRAC bRETAgnE FOTOgRAFIA: guy JAuMOTTE | © aDaGP, Paris, 2007.
fRançOiS DUfRÊne | “bObInO”, 1973 | AVESSO dE CARTAz MOnTAdO SObRE TELA | 55 X 81
CM | COLECçÃO pRIVAdA | FotoGraFia: MarC DoMaGe
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
#41
François duFrÊnE EM sErralvEs O vERSO E O vERSO
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nuno crEspo
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Os trinta anos que decorreram desde a primeira edição do Münster Projectos
de Escultura fazem prova de que o escultórico é um campo mutante que conhece
múltiplas transformações e desenvolvimentos. O campo expandido que rosalind
Krauss identificou parece dar agora lugar ao reconhecimento topográfico das
diferentes zonas que o compõem. Os 34 projectos apresentados em Münster
não se destinam a fazer qualquer tipo de balanço ou a realizar o levantamento
das tendências da escultura contemporânea; o seu âmbito é o da detecção dos
diferentes modos de compreender o gesto escultórico. Em qualquer dos casos, o
eixo não é localizado em nenhum tipo de linguagem, nem numa revisão histórica
dos diferentes estilos. O denominador comum é a utilização do espaço público
que em nenhum dos casos conhece constrangimentos formais, materiais ou
conceptuais.
As esculturas espalhadas pelo tecido urbano revestem-se de um ímpeto
sismográfico de descoberta das diferentes capacidades que cada uma delas
possui de interagir e moldar o espaço que ocupa e que é sua condição. trata-se
da exploração das qualidades do espaço público enquanto espaço expositivo e
deste enquanto reflexo da vida pública e suas interacções. O pressuposto é que a
utilização da esfera pública é sintomática das diferentes dinâmicas que apresenta.
maRk WallinGeR | “zOnE” | FotoGraFia: roMaN ostojiC/sP 07.
O conceito de “escultura social”, cunhado por beuys,
não é estranho a este modo de pensar, sobretudo por
dizer respeito não ao ponto de vista sobre a escultura
que a vê como um processo acabado ou um objecto,
mas antes como o colmatar de um processo dinâmico
e expansivo. trata-se de uma relação que conhece
fundamentalmente três eixos: as obras, a cidade
e o público. Por isso, a própria história da cidade
e dos seus agentes não é um elemento estranho
aos processos que a cada dez anos são postos em
movimento. Se se trata, por um lado, de descobrir
novas linguagens escultóricas, também se trata, por
outro, de as colocar em confronto com o passado
dessa mesma cidade e com a própria história da
escultura.
Nesta edição, um dos projectos mais emblemáticos
é de Mark Wallinger (n. reino unido, 1959). um
cordão praticamente invisível delimita uma zona da
cidade de Münster: as questões que o seu projecto
levanta prendem-se, naturalmente, com o impulso
primordial de delimitar uma área no interior da qual
acontece a escultura e uma zona exterior a esse
gesto de delimitação. A invisibilidade da fronteira
que estabelece mostra a ineficácia das tentativas
de rigidamente determinar zonas de exclusão, de
contacto e permanência. A ocupação total que faz do
espaço é simultaneamente invisível e, assim, consegue
erigir um discurso estético-político sobre as fronteiras
entre os diferentes tempos, espaços e linguagens.
Mas se a questão da relação da escultura com o
espaço público é central, também o é a relação com
a história da cidade e a própria história da escultura.
Guillaume bijl (n. bélgica, 1946) criou uma instalação
que recupera a tradição das igrejas cristãs da cidade.
No interior do que parece ser uma escavação
arqueológica, o artista cria um trompe l’oeil que num
crÍtica
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
ZONAS DE ESCULTURA
#41
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crÍtica Zonas dE Escultura
9�
registo quase surrealista faz surgir a igreja envolta numa espécie de chamas. Já Martha
rosler (n. EuA, 1944) permutou certos símbolos (históricos e religiosos) da cidade,
integrando-os noutros contextos e testando a sua validade iconográfica no interior
do discurso histórico local, o qual passa, inevitavelmente, pelas guerras mundiais,
pela religião e pela própria história da Escultura. Mas o pendor histórico em Münster
tem o seu auge com a construção da pirâmide invertida de bruce Nauman (n. EuA,
1941), projectada em 1976 para aquele mesmo lugar. Além de ser uma intervenção
emblemática, as suas consequências estão relacionadas com a própria validade de um
projecto que é construído trinta anos depois. Os constrangimentos sociais, históricos,
artísticos e arquitectónicos não são os mesmos. Da sua rejeição ou integração
depende a pertinência e actualidade de um pensamento que se vem afirmando quer
BRUce naUman | “SquARE dEpRESSIOn“ | FotoGraFia: areNDt MeNsiNG/sP 07.
GUillaUme Bijl | “ARChAEOLOgICAL SITE (A SORRy-InSTALLATIOn)” | FotoGraFia: roMaN
MeNsiGN/sP 07.
na cidade, quer na própria convivência pública com o
deslocamento de perspectiva que Nauman opera numa
praça pública.
É sem dúvida o grande acontecimento mundial da
escultura. Não só porque resiste ao tempo, mas também
porque permite colocar em confronto o que se fazia e
o que se faz, o que se pensava e o que se pensa. um
confronto destinado, não a validar determinados artistas,
circuitos ou tendências, mas a aprofundar o olhar sobre
o sítio em que se desenvolve a Escultura e que as
esculturas desenvolvem. |
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94
EXposiçÕEs
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
”Um aTlaS De acOnTecimenTOS /plaTafORma 3/ O eSTaDO DO mUnDO” | FundAçÃO
CALOuSTE guLbEnKIAn LISbOA | 6 OuT - 30 dEz 07 | SERgIO VEgA | “CROCOdILIAn
FAnTASIES”, 2006 | VISTA dA InSTALAçÃO | Cortesia: PaLais De tokyo/kLeiNeFeNN, Paris.
jean-lUc mOUlÈne | CuLTuRgEST | LISbOA | 22 SET - 25 nOV 07 | “dOCuMEnTS/ChEF pARIS,
11 AVRIL 1998”
paUlO menDeS | gALERIA REFLEXuS ARTE COnTEMpORânEA |
pORTO | 21 SET - 3 nOV 07 | “S dE SAudAdE, RETRATOS dA VIdA pORTuguESA”
aUGUSTO alveS Da Silva | gALERIA FOnSECA MACEdO | pOnTA dELgAdA | AçORES | 11 OuT - 27 nOV 07 |
“VEAdO”, 2001 | C-pRInT | 60 X 90 CM
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Quem é Quem na Arte Portuguesa? Todos sabemos ou julgamos saber. Quem Será Quem?
não sabemos ainda, mas apostamos. Quer apostar connosco? A escolha é sua. O risco é seu.
Nós limitamo-nos a sugerir nomes: uns óbvios, outros menos.
95ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
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96
quEMéquEM
FOTOgRAFIA: JOÃO FERRO MARTInS / pCR STudIO
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
pEdRO caBRiTa ReiS Lisboa, 1956
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quEMSeRáquEM
FOTOgRAFIA: JEd gRAçA.
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
JOÃO SeRRa Lisboa, 1976
João Serra concluiu o Curso Avançado de Fotografia do Ar.Co
em 2006 e é actualmente finalista do curso de Filosofia da
Faculdade de Letras da universidade de Lisboa.
O artista desenvolve os seus projectos artísticos no domínio
da fotografia, com a apresentação de obras que exploram
a subtil fronteira existente entre as imagens e as coisas.
A fotografia que reproduzimos assinala esse seu interesse
e marca a sua distinção com os prémios bES Revelação e
Anteciparte, ambos em 2006. |
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jOãO SeRRa | “SEM TíTuLO”, 2006 | FOTOgRAFIA A COR | IMpRESSÃO LAMbdA | 120 X 156 CM.
Interessava-me deixar emergir o potencial estético,
pictórico e escultórico do assunto, substituindo o olhar
quotidiano por um olhar que reconhecesse outro tipo de
valores. Ou seja, dando a ver o que toda a gente já viu,
a banalidade dos objectos, mas investindo-a de novas
possibilidades.
A fotografia tem sido o médium que permite dar conta
da posição dos objectos no aí do mundo, salvando-os do
seu carácter efémero. Mas mais do que isso, permite que
os objectos venham a ser de outro modo, pelo menos aos
olhos do espectador.
A minha proposta é um convite a uma reflexão acerca da ténue distância que há entre as imagens e as coisas.
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INTERNACIONALIZAçãO DA CULTURA PORTUGUESA
1. Em Genève, Newark, Joanesburgo, Frankfurt ou
Caracas, Portugal está mais presente através dos
portugueses ditos “comuns”. Para certos portugueses
“cultos”, os portugueses “comuns” são uma espécie
de clube da terceira divisão: esforçados mas sem
relevância ou qualidade assinalável. Desprezíveis, até.
Apesar de haver, aproximadamente, cinco milhões de
portugueses espalhados pelo mundo, no fundo, onde
é que eles estão? Onde é que eles estão no nosso
quotidiano, no nosso imaginário? Numa pequena
gaveta colectiva onde se guarda a recordação dos
parentes de que não queremos falar aos amigos.
Muitos desses portugueses já se afirmam na “divisão
de honra” e na “primeira divisão”. Vai ser bonito de
ver, daqui uma geração ou duas, políticos, artistas,
empresários, a disputar espaço numa qualquer
fotografia, ao seu lado, em Paris, Sidney,
ou Luxemburgo. Nessa altura, haverá razão para eles
nos quererem na fotografia?
As solidariedades demoram gerações a construir
e a verdade é que uma linha prioritária de
internacionalização está nesse grupo assinalável
de portugueses. Ao tratamento envergonhado ou
mesmo agressivo do período do Estado Novo, seguiu-
se uma política pública de enquadramento, nesta III
Os nomes podem ser invisíveis pelas mais diversas razões. Nem sempre é o melhor, revelar certos nomes. Melhor que permaneçam na sombra. Por outras vezes, vale a pena o ritual de os chamar. Falo, claro, de pessoas, coisas, situações, relevantes para o domínio onde esta revista exerce o seu papel: a Cultura, as Artes. Este espaço mensal pretende propor comentários sobre alguns temas/nomes, sendo que, por vezes, há nomes que escondem nomes.
101
jorgE BarrEto XaviEr
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
crónica
#41
leOnOR anTUeS | ”unCERTAInTy And dELIghT In ThE unKnOwn (1)”, 2007 | VISTA dA InSTALAçÃO | LOndRES
NOMES INvISÍvEIS
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Se se perguntar à Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, ao Instituto
Camões, ao Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, ao ICEP, ou a outras
estruturas públicas, qual o grau de articulação entre elas junto dos emigrantes, antevejo
que a Secretaria de Estado apoia a “baixa cultura”, o Camões a “alta cultura”, o IPAD
dirá que o seu caminho é o apoio ao Desenvolvimento, e o ICEP que o seu negócio é
números.
Claro que isto é uma caricatura. O que quero dizer é que é habitual não operar
articulações e potenciar intervenções. Ainda mais evidente será essa ausência de
articulação se se perceber que há dezenas de municípios que promovem geminações e
intercâmbios internacionais e que as regiões Autónomas da Madeira e Açores também
desenvolvem uma série de programas de interacção. Não defendo uma intervenção
unitária nem uma via única. É saudável e desejável uma intervenção plural, mesmo a
nível público. Mas é difícil de perceber uma articulação muito deficiente ou nula em
objectivos que são (ou deveriam ser) comuns: a melhoria da percepção da cultura
portuguesa pelos emigrantes e seus descendentes; a aprendizagem do Português; o
suporte a projectos de portugueses nos países de residência.
república. As chamadas “remessas dos imigrantes” já
tiveram um papel significativo na economia portuguesa
mas, nem essa ajuda ao desenvolvimento de quem saiu
por aqui não conseguir viver, comoveu.
Falando ainda dos emigrantes da “3ª divisão”,
como é que podem esquecer décadas de indiferença,
ou mesmo políticas de desinvestimento, que têm
levado, recentemente, ao fecho de consulados, à
limitação de apoio aos leitorados/leitores de português,
à criação de escolas portuguesas, à falta de apoio ao
funcionamento de aulas de português, à falta de apoio às
suas actividades comunitárias, etc.? Como é que podem
esquecer a ausência de organizações portuguesas da
área da cultura e da educação junto deles? Claro que há
outros que marcam presença: instituições ligadas à Igreja
Católica, instituições bancárias, o jornal A Bola.
10�
leOnOR anTUneS | ”ThE SpACE OF ThE wIndOw”, 2007 | VISTA dA InSTALAçÃO | pARIS
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103
crónica noMEs invisÍvEis
Falo do espaço estrangeiro ocupado por emigrantes como território primeiro da
internacionalização da cultura portuguesa. tanto as artes contemporâneas como os
projectos de promoção do livro e da leitura, do património, da língua, podem ter
junto destes destinatários uma porta de entrada privilegiada.
Porque não terão eles direito ou poderão achar estranho receber Pedro Cabrita
reis, Julião Sarmento, Ângela Ferreira? Claro que se tem de fazer um trabalho
de preparação. Mas os portugueses de �ª geração, de 3ª geração, os que agora
têm vinte anos e nasceram “lá”, não têm nostalgia de Amália ou do chouriço, da
sardinha assada ou de Quim barreiros. As suas referências culturais estão “aí”.
O Portugal contemporâneo tem muito de modernidade, pode gerar símbolos fortes,
também no sistema das artes. Será preciso trabalhar a sua recepção, certamente
mais difícil que a do futebol e dos seus ídolos, mas necessária para a construção de
uma identidade portuguesa contemporânea na diáspora.
Ao lado destes portugueses “indiferenciados” tivemos sempre os outros: os filhos
de boas famílias enviados a estudar nas universidades estrangeiras, os artistas
à procura do banho de cultura, os bolseiros da Gulbenkian, etc. Mas esses não
contam para o filme da mala de cartão. Nem os que, no fim dos anos 80 e nos anos
90, beneficiaram do Programa Erasmus ou outros, do alargamento de circulação
de pessoas como consequência da nossa adesão à então Comunidade Económica
Europeia, hoje união Europeia.
2. berlim e os artistas jovens portugueses que lá residem é o exemplo das
dificuldades que Lisboa e Porto oferecem em muitos campos.
A internacionalização não tem de se fazer “lá fora”, pode ser feita “cá dentro”.
Mas nenhuma cidade portuguesa se internacionalizou, ainda, o suficiente para ser
referência no domínio artístico: pense-se em Avignon, Kassel, bilbao, só para referir
cidades que no circuito internacional são conhecidas pelas artes.
Lisboa e Porto perdem na comparação com Madrid ou barcelona. Se pensarmos
bem, porque é que o turismo vem a Lisboa e Porto? A colecção berardo,
o Museu de Arte Antiga e o Museu do Chiado, versus Prado/reina Sofia/thyssen? A
Fundação de Serralves e a Casa da Música versus MACbA/Museu Picasso/Fundação
Miró/ La Caja/Gaudi/tapiés ? E se formos até Valência e bilbao...
Alugar casa e atelier em berlim compensa mais do que fazê-lo em Lisboa. E a
comunidade artística internacional que aí se encontra permite uma circulação de
pessoas e ideias incomparavelmente superior.
Em Lisboa, exterminam-se eventos de grande dimensão como mosquitos e
pululam festivais pequeninos. De facto, não estamos no calendário internacional a
não ser marginalmente. E, ao longo de décadas, não soubemos criar espaço para
programas de referência, apesar de algumas iniciativas terem tido potencial para o
efeito. Fica-se a aguardar.
3. De Junho a Setembro, na Smithsonian Institution,
em Washington, decorreu uma grande exposição
sobre o papel de Portugal no mundo nos séculos XVI
e XVII, referida com orgulho em Portugal e
inaugurada pelo Presidente da república, Aníbal
Cavaco Silva. Na primeira página do site do
Smithsonian, o relevo era dado a cinco outras
exposições, sendo necessário procurar em “more”
para lá chegar...
Ocorreu-me a patética e repetida situação: cada
vez que, por exemplo, o Financial Times, o El País,
o Herald Tribune, o Le Figaro dedicam duas linhas
a Portugal, logo vêm as televisões debitar a nossa
“presença”. Veja-se a revoada de citações dos
media nacionais do que dizia a comunicação social
estrangeira sobre a situação do desaparecimento
de Maddie. Mais do que à situação da criança
desaparecida, dava-se relevo ao facto de se ser falado
no “estrangeiro”. É preciso ir mais longe para perceber
o quanto se tem de percorrer em internacionalização?
Quem realmente é cosmopolita, não tem de andar
sempre a falar dos outros. um cosmopolita pertence,
por natureza, ao mundo. É essa capacidade de
estatuto próprio que falta conquistar como país
contemporâneo. Não queremos ser um “Allgarve”
qualquer (ou queremos?).
Por isso, a afirmação de identidades é importante.
Não se trata de um lusitanismo ou nacionalismo
passadista. trata-se de salvaguardar o património
e suportar a liberdade criativa contemporânea como
acto de construção de nós relevantes da(s) rede(s)
global(ais).
Sem uma clara definição de objectivos de
internacionalização, de articulação de esforços
públicos e privados, será difícil. Há oportunidades,
todos os dias, que raramente se repetirão. Outras
virão, mas, entretanto, aqueles com quem queremos
estar já terão avançado. O mundo não ficará à nossa
espera. |
#41
#41
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sensíveis em que possamos inscrever quer as obras,
quer a própria experiência estética.
As vanguardas artísticas, com as suas múltiplas
transformações, operaram uma espécie de abismo
entre as obras produzidas pelos artistas e a
percepção humana mais comum. Isto é, se até um
determinado momento para a experiência estética
bastava estar-se equipado com o aparelho perceptivo,
passou-se a um paradigma em que à percepção tem
de estar aliado um certo conhecimento histórico e
nuno crEspo
104
opinião
A modernidade trouxe consigo a prova de que as
categorias estéticas são insuficientes para dar conta
da totalidade da produção artística. A proliferação de
linguagens, meios e estilos criou uma enormidade de
géneros e subgéneros artísticos que muitas das vezes
resistem ao mais tradicional pensamento estético.
A estética, tal como a conhecemos, mostrou-se
inoperante quando confrontada com criações que
mais dizem respeito a uma leitura e interpretação do
presente e da história do que à descoberta de lugares
Nas mais importantes exposições do mundo inteiro - e este Verão é uma altura propícia a esta
reflexão - verifica-se que muitas das obras adquirem a sua validade e legitimidade não por
razões estéticas. Antes, a sua pertinência é conquistada na esfera política e são instrumentos
de intervenção social.
SimOn WachSmUTh | “whERE wE wERE ThEn, whERE wE ARE nOw”, 2007 | pLAnO dO
FILME | © siMoN WaChsMuth
DOcUmenTa 12 | MuSEu FRIdERICIAnuM, KASSEL | © FotoGraFia: juLia ZiMMerMaNN / DoCuMeNta GMbh
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
#41
JUÍZO ESTéTICO OU JUÍZO POLÍTICO?
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artístico. Os artistas passaram a ser testemunhos de um mundo decadente, cruel
e terrífico e transformaram-se em actores políticos obrigados a tomar partido,
a assumir posições, a denunciar os factos do mundo e a registar esta mesma
realidade.
Nas mais importantes exposições do mundo inteiro - e este Verão é uma altura
propícia a esta reflexão - verifica-se que muitas das obras adquirem a sua validade
e legitimidade não por razões estéticas. Antes, a sua pertinência é conquistada na
esfera política e são instrumentos de intervenção social.
O mundo, aparentemente liberto dos regimes políticos totalitários, mas também
das utopias libertadoras, vê-se a braços com uma realidade que não consegue
105
SimOn WachSmUTh | “whERE wE wERE ThEn, whERE wE ARE nOw”, 2007 | VISTA dA EXpOSIçÃO | © siMoN WaChsMuth, FotoGraFia De
roMaN MärZ /DoCuMeNta GMbh
SimOn WachSmUTh |“whERE wE wERE ThEn, whERE wE ARE nOw”, 2007 | VISTA dA InSTALAçÃO | © siMoN WaChsMuth, FotoGraFia De
roMaN MärZ /DoCuMeNta GMbh
digerir e mal consegue compreender. Que a
realidade parece estar para lá da nossa capacidade
em compreendê-la é o novo dado com que a arte do
nosso tempo tem de lidar e a expectativa é que as
obras de arte interfiram na realidade e sejam agentes
da sua transformação: uma ambição tão antiga como
o gesto artístico.
A presente edição da Documenta XII estabelece
um confronto interessante entre não só diferentes
culturas, mas entre diferentes tempos: a distância e
a proximidade regem-se não só pelo distanciamento
geográfico (Ocidente/Oriente), como pelo
distanciamento temporal (antigo/contemporâneo).
É assim que a arte antiga (muitas vezes documentos
etnográficos) convive com a arte contemporânea
das diferentes zonas do globo. Fundamentalmente,
trata-se de colocar o problema de saber até que
ponto o nosso olhar sobre a arte se pode desenvolver
livre de um contexto político, social e artístico que é
radicalmente diferente do nosso. O olhar, que é outra
forma de dizer o nosso juízo ou pensamento, rege-
se por diferentes constrangimentos que é preciso
avaliar e determinar.
Não se trata de fazer um genealogia do olhar, mas
de saber se o olhar livre e desinteressado, que
tão bem pode caracterizar a contemplação de
obras de arte, ainda é uma instância válida ou se
deve ser substituído pela avaliação política, social,
antropológica. talvez se trate de uma falsa questão,
porque a metáfora do político pode servir para
descrever a quase totalidade dos gestos humanos.
Mas o que aqui está em causa é um determinado
tipo de arte que assume o político como o seu centro
- na sua forma de combate e propaganda. um bom
exemplo é o da instalação de Simon Wachsmuth (n.
Alemanha, 1964), que tenta recuperar uma certa
ideia do Irão através do olhar ocidental e detectar
o local em que as suas imagens são formadas.
A linha de contacto que o artista tenta desenhar
transforma-se em zona de contacto e de negociação.
uma posição que o espectador é obrigado a tomar,
assumindo-se, em conjunto com o artista, numa
espécie de inusitado etnógrafo. |
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fRIEZE ART fAIRlondrEs: 11-14 outuBro
A 5º edição da Frieze Art Fair realiza-se no regent’s Park, em
Londres, entre 11 e 14 de Outubro próximos. Promovida pela revista
homónima, esta importante feira de arte permitirá a todos aqueles
que apreciam arte contemporânea a oportunidade de visitar as 150
galerias de arte mais importantes do momento. Pela quarta vez
consecutiva, a Frieze tem o Deutsche bank como principal sponsor.
Chris Evans, Lara Favaretto, Elin Hansdóttir, Janice Kerbel, renata
Lucas, Kris Martin, Gianni Motti e richard Prince foram os artistas
seleccionados para integrarem a Frieze Art Projects, este ano
comissariada por Neville Wakefield. O programa prevê ainda os
projectos Frieze Commissions, Frieze Talks e a atribuição do prémio
Cartier. Consultando o site www.friezeartfair.com, poderá encontrar
informações sobre como visitar a feira, sobre o calendário e
programa das conferências, bem como sobre a forma de fazer
encomendas. Os bilhetes de acesso à feira estão disponíveis ao
público desde o passado dia 1 de Julho. |
fIAC 2007paris: 18 - 22 outuBro
A 34ª edição da FIAC decorre entre os dias 18 e �� de Outubro,
em Paris, repartida entre o Grand Palais e o Louvre. No dia �0 será
conhecido o vencedor do 7º Prix Marcel Duchamp, no valor de
e 35,000€, atribuído pela Association pour la diffusion
internationale de L’Art Français. Os candidatos anunciados são:
tatiana trouvé (1968), nascida em Itália, mas residente em
França; Adão Adach (196�), Pierre Ardouvin (1955) e richard
Fauguet (1963). Para mais informações consulte o site:
www.fiacparis.com |
SHOPPING DE ARTE
O Centro Comercial Visconde da Luz, em Cascais, vai inaugurar uma
cadeia de lojas relacionadas com as diversas áreas de intervenção
artística, como antiguidades, velharias, galeria de arte com
exposições temporárias, um instituto de formação em conservação
e restauro e, finalmente, um espaço para a realização de leilões de
arte quinzenais no primeiro e terceiro sábados de cada mês, pelas
�0h. Os responsáveis pela realização dos leilões aceitam a inscrição
gratuita de todo o tipo de objectos artísticos, sem nenhuns encargos.
(Art Shopping - piso -1, Centro Comercial Visconde da Luz (em frente
à PSP), �750-�8� CASCAIS). |
ARTE GAY
Acha que a arte exprime necessariamente a opção sexual de quem
a faz? Ou seja, faz algum sentido aquela velha polémica, estafada,
mastigada e inútil (?) sobre a existência de uma relação de causalidade
entre a sexualidade a expressão artística correspondente? Se acha que
GaBRiele piccO | “nuVOLA”, 2006. | gALERIA FRAnCESCA MInInI | Cortesia FraNCesCa MiNiNi, MiLão.
106ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
notÍcias
FRIEzE ART FAIR 2006. FOTOgRAFIA: LIndA nyLInd
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fAITH, NARRATIvE AND DESIRE: obras-primas da pintura indiana no british museum
Nas comemorações dos 60 anos da independência indiana, o
british Museum exibirá, entre 9 de Agosto e 11 de Novembro,
uma excelente colecção de pinturas representando, ao longo dos
séculos, os vários panoramas da pintura na Índia. A exposição
exprime as tradições dramáticas do povo indiano através de
imagens dinâmicas, de cariz intimista e com a riqueza e elegância
próprias da cultura indiana. Em grande destaque estarão as
pinturas datadas de 18�0 da Companhia da Índia Oriental,
recentemente adquiridas, onde se ilustram deuses e deusas hindus
do Sul da Índia. Para mais informações, consulte o site www.
thebritishmuseum.ac.uk |
O TAPETE ORIENTAL EM PORTUGAL: tapete e pintura - sécs. XVi a XViii MusEu nacional dE artE antiga - até 18 nov 07
Esta exposição aborda, pela primeira vez, a história dos tapetes
orientais em Portugal, partindo da significativa colecção do MNAA,
com a colaboração de instituições públicas e privadas, nacionais
e estrangeiras. Estrutura-se em quatro núcleos - Península Ibérica,
turquia, Pérsia e Índia -, associando os tapetes à sua imagem em
pinturas dos sécs. XVI a XVIII.
O tapete oriental é um objecto artístico, uma superfície composta
por fios de teia, trama e nós, um produto de trocas comerciais, um
relevante elemento decorativo da pintura e, também, um objecto que
encerra valores simbólicos e define hierarquias. |
GReGóRiO lOpeS (ATRIb.) | AnunCIAçÃO
(pORMEnOR) | C. 1540 | MnAA |
FotoGraFia: josé Pessoa, DDF, iMC
A ARTE E A DEvOçãOBarcElona: até 18 nov 07
Em parceria com a obra social “La Caixa”, o Victoria & Albert Museum
e o british Museum de Londres organizaram uma exposição na Caixa
Forum de barcelona intitulada La escultura en los templos índios. El
arte de la devoción, a qual está em exibição desde �7 de Julho e que
terminará a 18 de Novembro de �007. resultado de um trabalho
de investigação em que participaram museus e coleccionadores
privados, esta exposição é a mais importante das iniciativas dedicadas
à escultura figurativa indiana a partir de colecções europeias. Nela se
destacam, além das obras do Victoria & Albert Museum e do british
sim, que a arte e o sexo caminham de mãos dadas, que existe uma
expressão feminina e uma expressão tipicamente masculina, então,
a partir de agora, em Lisboa, no bairro de Santa Catarina, Eduardo
Henriques - Didi, para os amigos - está empenhado em mostrar que
também existe uma forma de expressão artística especificamente gay.
E porque assim é, inaugurou a primeira galeria gay portuguesa com o
sugestivo nome de bico, um bar-galeria cujas obras expostas reflectem
exclusivamente sobre esta temática. O bico funciona entre as 17h e
as ��h e a exposição inaugural intitula-se, muito apropriadamente,
“Ho(t)mens”. |
107
Museum, contribuições de diversos museus como o Ashmolean
Museum, de Oxford, o Museum für Indische Kunst, de berlim, o
Musée Guimet, de Paris e o rijksmuseum, de Amsterdão. |
Paginacao1.1.indd 107 07/09/04 22:21:33
2. € E 220.000 |
paUla ReGO | “A MAdASTRA” |
pALáCIO dO CORREIO VELhO | 28 dE
nOVEMbRO, 2006.
4. € E 210.000 |
jOSé malhOa | AdELAIdE
– pERSOnAgEM dE “O FAdO” |
pALáCIO dO CORREIO VELhO | 4 dE
dEzEMbRO, 2000.
1. E 310.000 |
cOlUmBanO BORDalO pinheiRO
| “O SERÃO” | pALáCIO dO CORREIO
VELhO | 16 dE MAIO, 2001.
2.E 220.000 |
SOUZa pinTO | “O AMuAdO” |
pALáCIO dO CORREIO VELhO | 18 dE
FEVEREIRO, 1998.
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CORREIO VELhO | 9 dE dEzEMbRO,
2002.
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6 dE nOVEMbRO, 2006.
#41
108ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
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8 dE nOVEMbRO, 2006
7. 8. 20.
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A arte e os paladares sempre estiveram de mãos
dadas. Dos primitivos italianos aos pintores da escola
holandesa, dos impressionistas aos surrealistas, não
há seguramente nenhuma corrente artística (quase
nenhum artista) que tenha deixado de fora do seu
espectro de temas inspiradores a arte da mesa e a
gastronomia. A explicação é, a meu ver, simples,
e tem a ver com o facto de a alimentação ser algo
permanente nas nossas vidas desde que nascemos
até que morremos. Poucas necessidades há que
nos acompanhem tanto. Para além do seu carácter
fisiológico essencial à vida, a alimentação tem outras
MiguEl júdicE
11�
paladartE
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
componentes que a tornam uma forma de cultura,
de arte mesmo. É também à mesa que o Homem
demonstra que possui “razão”, que consegue discernir,
criar, que valoriza a estética.
A gastronomia é um dos mais importantes traços
culturais dos povos, da sua identidade, do seu ADN. É
influenciada pelas tradições, pela religião, pelo clima,
pela morfologia do terreno, pela presença ou ausência
de certos elementos naturais (mar, rios, florestas). A
gastronomia espelha a essência de cada povo e a sua
história. A gastronomia portuguesa é um bom exemplo
disso, tendo sido muito influenciada pelos povos que
visitámos ou que nos visitaram ao longo dos séculos,
desde os árabes aos povos de África e Ásia.
Mudam-se os tempos, muda-se a alimentação. As
artes plásticas foram desde sempre uma preciosa
ajuda para perceber as mutações que foram sendo
introduzidas pelos novos padrões de vida. A arte
conta a História da Humanidade, também no que
diz respeito ao que comemos e a como comemos.
Alguns dos mais famosos quadros de sempre tratam
este tema. Veja-se a Última Ceia de Da Vinci, que
tanta tinta fez correr nas páginas do Código de Dan
brown. Da Vinci, como muitos outros artistas, era um
apaixonado pela gastronomia, tendo criado receitas
que hoje estão compiladas em livro.
A lista de quadros famosos onde a comida assume o
protagonismo é riquíssima. O Peru Depenado de Goya,
os Comedores de Batatas de Van Gogh, o Banquete de
Casamento de bruegel, entre muitos outros quadros
de artistas como rembrandt, Manet, renoir, Matisse,
Chagal, Picasso, Dali. A lista é verdadeiramente
infindável.
Os pintores da Escola Holandesa foram dos primeiros
a pegar na cozinha como tema, tendo criado
naturezas mortas de enorme beleza e sensibilidade,
e em Portugal esse tipo de obras encontrou dois
grandes mestres: Josefa de Óbidos e José António
benedito Soares da Gama de Faria de barros, Morgado
de Setúbal. O pintor maneirista Giuseppe Arcimboldo
trouxe inovação e humor às naturezas mortas,
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Receita de joachim koerper Joachim Koerper nasceu no dia 25 de dezembro de 1952, na cidade alemã de Saarbrücken. Começou a estudar administração de empresas, mas muito cedo, levado pelo amor à cozinha, vai trabalhar como aprendiz nos hotéis Falken (Konstanz) e Kempiski (berlin). desde 1971 até 1990 trabalhou em grandes hotéis de luxo de toda Europa, cozinhando para figuras célebres do mundo da política, da arte e do espectáculo, como Carolina do Mónaco, gunter Sachs, Maximilian Schell, Cristina Onassis e niarchos von Opel.nos anos 70, Joachim Koerper começa a viajar frequentemente a terras mais quentes como a grécia, a Sardenha ou a Costa Francesa. Rapidamente,
Joachim enamora-se decisivamente pelo sul da Europa, aprende o espanhol e deixa-se seduzir pelos produtos mediterrânicos, com os seus sabores, cores e aromas, graças aos quais se converte num mestre da alta “cozinha mediterrânica”.Joachim Koerper trabalhou quase sempre em restaurantes com duas ou três estrelas Michelin, tais como L’ Ambroise de paris, Moulin de Mougins na Costa Francesa, guy Savoy paris, hosteleria du Cerf em Marlenheim, e Au Chapon Fin em Thoissey.Joachim Koerper trabalha sempre com produtos “naturais e frescos”, como ele mesmo costuma dizer, “por isso, utilizo sempre os produtos próprios da zona onde trabalho”. Joachim é
utilizando os alimentos como “ingredientes” para criar
quadros extraordinários em que estes compunham
rostos humanos. Se algum surrealista existiu antes dos
surrealistas, terá sido Archimboldo.
Alguns séculos depois, outros grandes artistas
dedicaram metros quadrados de tela à alimentação.
um dos melhores exemplos foi Paul Cézanne, que
um dia disse: “Irei surpreender Paris com uma
maçã”. O pós-impressionista pintou centenas de
maçãs ao longo da sua vida, olhando-as de formas
diferentes, compondo cenários para elas, desde
toalhas de mesa a arranjos de flores. A maçã era a
sua musa inspiradora, o seu alimento fetiche. um
contemporâneo de Cézanne, Pierre-Auguste renoir,
era tão apaixonado por gastronomia que lhe foi
feita uma homenagem no livro Renoir, à mesa de um
impressionista, prefaciado por Pierre troigros, um dos
maiores chefes de cozinha do mundo.
Já no século XX, outros pintores provaram
que a alimentação pode ter tratamentos mais
contemporâneos e conceptuais. um desses casos
foi o americano Edward Hopper, que focou não
exactamente a comida mas sim os seus locais de
consumo, nomeadamente os diners, usando-os como
imagem da solidão que tanto gostava de retratar.
Mais recentemente, Andy Warhol, um dos maiores
expoentes do movimento Pop Art, usou latas de
sopa Campbell’s como inspiração recorrente ao
longo da sua vida. Para Warhol, que dizia que tinha
bebido sopa Campbell’s todos os dias durante vinte
anos, a lata Campbell’s era usada como um ícone da
sociedade moderna, um objecto inspirador como as
maçãs tinham sido para Cézanne.
As razões atrás expostas legitimam os jantares
“Paladarte” que irão ser organizados com o
lançamento de cada número da revista Artes &
Leilões. É que para além do longo casamento entre
arte e alimentação, evidente em séculos de quadros
e outras peças, os cozinheiros são também artistas,
que criam no prato, a sua tela, obras que tocam os
sentidos. |
um profissional tão disciplinado como imaginativo, capaz de integrar na sua cozinha ingredientes autóctones. O principal passo dado por Joachim Koerper no sentido da sua afirmação enquanto grande chefe de cozinha deu-se quando decidiu criar o restaurante girasol, en Moraira (Alicante). nove meses depois, o guia Michelin concedeu-lhe a primeira estrela Michelin, e três anos mais tarde a segunda estrela. no Eleven obteve uma estrela Michelin ao fim de um ano de abertura.para além do restaurante Eleven, Joachim Koerper trabalha actualmente em regime de chefe consultor de cozinha com o hotel quinta das Lágrimas Relais&Châteaux (Coimbra). |
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JANtArES PALADARTE EM �007:
�1 de Setembro | ElEvEn, lisboa
�4 de Outubro | sErralvEs, porto
�8 de Novembro | HotEl tivoli, lisboa
�8 de Dezembro | Fundação antonio pratEs, ponte de sôr
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