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José Pina Delgado Liriam Tiujo Delgado
Direito Internacional Público – Uma Visão Cabo-Verdiana Notas de Aula/2009-2010
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CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO
1. Três Visões da Ordem Internacional
Existem diversas abordagens que podem ser feitas sobre o Direito
Internacional, que se amparam em diversos pressupostos teóricos ou filosóficos. Muitas
vezes conhecer tais fundamentos, explícitos ou implícitos, são tão determinantes como
conhecer as regras e processos concretos do Direito Internacional, porque sobre eles
exercem uma influência directa. Essa mesma pluralidade também se encontra presente
na nossa visão da ordem internacional, o sistema no qual se insere o Direito
Internacional. Assim sendo, ainda antes de discutir questões fundacionais do Direito
Internacional será fundamental incidir sobre algumas visões da ordem internacional
cujo conhecimento é decisivo para o bom entendimento do sub-sistema normativo que
é objecto deste curso. Evidentemente, neste quadro, temos que recorrer á ciências da
relações internacionais no sentido mais amplo para proceder a esta discussão.
Apesar de existirem diversas formas de se apresentar esta discussão, tanto por
juristas, como por cientistas sociais e políticos, destacaremos três visões, chamadas de
idealista (1.1), realista (1.2) e ecléticas (1.3), defendendo, ao final, que só esta última se
sustenta verdadeiramente enquanto modelo explicativo e normativo para o ordem
internacional. Complementarmente proceder-se-á à discussão de aspectos da política
externa da República de Cabo Verde à luz dessas visões sobre a ordem internacional
(1.4).
1.1. Visão Idealista
Trata-se de modelo que encontra as suas raízes remotas no estoicismo romano e
em certa medida na interpretação pacifista radical do cristianismo primitivo, e
seguimentos com autores como Erasmo de Roterdão1, diversos movimentos pacifistas e
federalistas internacionais, chegando a um ápice teórico com a obra do grande filósofo
Immanuel Kant, Zum Ewigen Frieden [A Paz Perpétua] de 1795, na qual o pensador
prussiano propõe a criação de uma Federação Global de Povos (Völkerbund)2 e,
alegadamente, o fim dos conflitos que assolavam a humanidade. Apesar de na nossa
1 No geral, ver Erasmo de Roterdão, A guerra e a queixa da paz, Trad. portuguesa de A. Guimarães Pinto, Lisboa, Edições 70, 1999. 2
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opinião tal interpretação pacifista radical de Kant ser um equívoco completo3, não se
pode deixar de consentir que a leitura idealista da ordem internacional está, de certa
forma, ligada ao pensamento do filósofo de Königsberg.
A base dessa concepção está aliçercada num optimismo iluminista e numa
concepção antropológica positiva transplantada para a ordem internacional. As nações
deixariam a guerra de lado e passariam a cooperar de boa fé para uma ordem
internacional pacífica, baseada no comércio e desenvolvimento para todos, submetida
ao Direito Internacional ou até Cosmopolita e a um conjunto de instituições
supranacionais. Qualquer diferendo seria resolvida por órgãos judiciários próprios e os
Estados acatariam as suas decisões sem qualquer problema.
Ora, evidentemente o grosso das relações internacionais não são reconhecíveis a
partir deste quadro traçado pelo pensamento mais idealista. Outrossim, a maior parte
das relações é marcada não pela fidúcia máxima entre os Estados, mas pela
desconfiança total, o comércio internacional teve uma expansão considerável com o
engrandecimento da comunidade internacional e a globalização, mas também os
conflitos tornaram-se mais comuns, especialmente dentro dessas unidades
denominadas Estados; finalmente, longe de se submeterem a instituições
internacionais, a maior parte dos Estados tem, com efeito, tentando guardar intacta a
sua soberania e o seu poder de decisão; isso se reflecte claramente na submissão de
controvérsias a solução judiciária internacional. Na maior parte dos casos ou os
Estados rejeitam qualquer solução pacífica, preferindo resolver litígios através do uso
da força ou, na melhor das hipóteses, tenta compor política ou diplomaticamente os
seus litígios sem recorrer a tribunais.
Claro está que sempre se pode dizer que a criação e consolidação da União
Europeia é demonstrativa de uma ordem internacional cooperativa e solidária. Trata-se
de assertiva verdadeira, mas somente em parte. Antes de mais em razão da
representatividade geográfica dessa organização regional. Ela é só europeia e não
mundial. Portanto, no máximo seria comprovado com o exemplo – e correctamente ao
nosso ver – que uma interpretação idealista pode ser feita em relação ao processo de
integração no “Velho Continente”, mas não em relação ao Mundo. Mais: pode-se
correctamente defender-se que relações similares, embora não institucionalizadas,
ocorrem com todos os Estados liberais, criando uma espécie de comunidade liberal de
Estados. Porém, tal conclusão padeceria das mesmas virtudes e defeitos da anterior.
Isto é, é aplicável a um conjunto de Estados, mas não é susceptível de qualquer
universalização do verdadeiro sentido da palavra. De outra parte, arguir-se-á que
diversos órgãos que fazem parte das Nações Unidas demonstram que uma visão
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idealista da ordem internacional é perfeitamente sustentável. Não é bem assim. Na
realidade, dependendo da matéria nota-se uma deferência maior ou menor em relação
a instituições internacionais. Determinadas questões podem contar com uma razoável e
previsível cumprimento por parte das instituições internacionais, outras são mais
difíceis de suscitar o cumprimento de decisões ou recomendações internacionais. O
exemplo mais apontado de sucesso nesse quadro, evidentemente retirando as
instituições europeias, é o Sistema de Solução de Controvérsias na Organização
Mundial do Comércio, mas este índice de eficácia justifica-se em razão do interesse dos
Estados em fazer parte dessa instituição do que propriamente de uma tendência
generalizante de cumprir qualquer decisão internacional.
1.2. Realismo Político
O realismo politico desenvolve outra visão da ordem internacional muito mais
cinzenta do que a apresentada pelos idealistas. Longe de ser um espaço de cooperação
entre os povos para o benefício mútuo, a esfera internacional traduzir-se-ia num espaço
de conflito em que cada unidade procura, na medida do possível, proteger os seus
interesses e consolidar o seu poder.
Esta tradição é muito antiga. Aplicada à esfera internacional provavelmente
antecede a anteriormente discutida, tendo tido como expoente máximo na Antiguidade
o historiador ateniense Tucídides, autor da famosa História da Guerra do Peloponeso,
maravilhosa descrição e discussão sobre o conflito com o mesmo nome. Seguiram-se
autores da lavra de Maquiavel (pelo menos o do Princípe), no renascimento, Hobbes,
na modernidade, e, mais contemporaneamente, Carl Schmitt. No entanto, quem mais
ficou associado a esta concepção da ordem internacional foi o alemão (mais tarde
americano) Hans Joachim Morgenthau (1904-19804), autor da obra Política entre as
Nações. A Luta pelo Poder e pela Paz5, autor que fez escola e cuja influência é mantida
em relação a um conjunto de especialistas em relações internacionais (designadamente
Waltz, Mearsheimer, Walt e vários outros6).
Globalmente as ideias sobre a ordem internacional permanecem constantes, ou
seja, uma visão largamente pessimista e a noção de que nessa esfera as unidades lutam
para concretizar o interesse nacional, expandir, manter ou proteger-se do poder. Não é
4 Sobre Morgenthau ver Christopher Frei, Hans J. Morgenthau. An Intellectual Biography, Baton Rouge, Louisiana State University Press, 2001, para a vida e obra, :::::. 5 Hans Joachim Morgenthau, Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace, 7. ed., New York, McGraw-Hill, 2006 [orig. 1948]. 6 Ver um conjunto de textos desses pensadores em Hans Joachim Morgenthau, Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace, Kenneth Thompson & W. David Clinton (ed.), 7. ed., New York, McGraw-Hill, 2006, pp. 569-627 (inclui textos de John Mearsheimer, J. Samuel Barkin, Richard Little, Ashley Tellis, William Crowe, Brent Scrowcroft, David Newson num anexo intitulado “Updating realism for the Twenty-First Century”).
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um espaço para diletantismos, nem para pacifismos, mas, ao invés, para uma
preparação total com o fito de atingir esses objectivos que todos Estados perseguem.
Claro está que, como em relação à corrente idealista, a verdade é que o saldo do
realismo é misto, não se podendo deixar de notar que a sua leitura da realidade
internacional provavelmente não seria aplicável a todos os diversos tipos de relações
que se concretizam, designadamente entre Estados que partilham valores comuns,
designadamente ligados ao sistema político e jurídico como o exemplo da integração
europeia demonstra parcialmente. Assim sendo, nem todas as relações são marcadas
pela busca incessante do poder, nem tão pouco estaria caracterizada pela manifestação
total do factor poder ou da menorização de regras jurídicas, muito embora deva dizer-
se que tal assertiva é uma descrição exagerada e caricaturial do realismo político. Seja
como for, é correcto dizer-se que existirá, dentro do pensamento realista, uma
tendência em menosprezar o papel da moral na justificação da acção política na esfera
internacional e alguma descrença em acções altruístas.
1.3. Visões eclécticas
Entre uma e outra visão, procurando ultrapassar as limitações teóricas e
práticas de ambas estão colocadas as visões ecléticas, que utiliza uma leitura a um
tempo influenciada por elementos realistas e idealistas. Em certa medida a sua
longevidade é equiparada à que se notou nas outras grandes visões da ordem
internacional. Um exemplo claro desta concepção pode ser notado no desenvolvimento
da teoria da guerra justa pelos teólogos cristãos medievais a partir de Santo Agostinho,
que claramente encontrou uma solução para um problema prático na intersecção entre
o pensamento realista sobre a guerra, de acordo com o qual ela é sempre aceitável
desde que o Estado dela necessidade, e o pacifismo radical dos cristãos primitivos,
concluindo que, na Cidade dos Homens, da imperfeição a violência por vezes era
necessária e legítima para que os bons pudessem fazer face aos maus. Assim sendo, por
um lado, determinados tipos de guerras (por território, glória ou recursos)
continuavam sendo ilegítimas, ao passo que outras, caso tivesse causa justa podiam ser
consideradas como sendo justificadas.
Esta mesma perspectiva, em certa medida pode ser encontrada na longa lista de
autores que contribuíram para o desenvolvimento do Direito Internacional,
designadamente Francisco de Vitória, Francisco Suárez, Alberico Gentili, Hugo Grotius,
Samuel Pufendorf e Emerich de Vattel, somente para citar alguns. No mesmo sentido, é
de apontar a influência dessa visão ecléctica em concepções mais contemporâneas ds
relações internacionais sejam elas provenientes das ciências políticas – o
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institucionalismo – ou da filosofia política – por exemplo, o Direito dos Povos de John
Rawls.
Resumidamente, pode-se dizer que enfatizam a ideia de que parcialmente as
relações internacionais desenvolveram-se em determinados espaços e em relação a
certos tipos de conexões num sentido predominantemente idealista, cosmopolita, anti-
soberanista, jurídico e pacifista, traduzindo-se num conjunto de instituições como a
prevalência do direito na esfera internacional, a solução pacífica e judiciária dos
diferendos, a mitigação da soberania, a tranferência de poderes para instituições supra-
nacionais, etc. Isso se verifica, efecticamente, nos casos da União Europeia e no
concernente às relações entre Estados Liberais e entre estes e determinados Estados
que não o sendo assumem determinadas pressupostos que permitem a sua associação
pacífica sem partilha integral de valores públicos.
No entanto, por outro lado, certos espaços são marcados ainda por um cenário
clássico de desconfiança entre os Estados, de relativização do Direito Internacional face
à política, de resistência a solução internacional de controvérsias, de recurso à força em
determinados casos, de defesa entusiástica da soberania dos Estados.
Seja como for, como não se pode conhecer o Direito Internacional sem ter
noções mais generalizantes sobre a ordem mais ampla na qual ele se insere, é
importante ter presente as diversas caracterizações dessa ordem, mesmo antes de se
dar início ao estudo de uma das suas componentes, o Direito Internacional, uma vez
que existe umbilicalmente uma conexão entre uma e outra, de tal sorte que
dependendo da forma como concebermos esta ordem teremos mais ou menos uma
forma de ver o Direito Internacional. Isso, no entanto, não influi na autonomia do
Direito Internacional face aos outros componentes dessa ordem internacional,
claramente diferenciáveis como podemos ver em seguida.
1.4. Definição e condução da política externa cabo-verdiana à luz das visões
sobre a ordem mundial
Para finalizar esta discussão mais afeitas às relações internacionais do que,
efectivamente, ao Direito Internacional no sentido mais estrito, mas, em todo o caso,
fundamental para qualquer interpretação minimamente adequada dessa realidade, faz-
se necessário discutir o problema da visão sobre a ordem internacional que foi recebida
em Cabo Verde ou que, alternativamente, guiou ou resulta da política externa cabo-
verdiana. Fá-lo-emos a dois tempos. Primeiro, analisando genericamente as
disposições constitucionais relativamente às relações internacionais, principalmente as
directrizes estabelecidas pelo artigo 11 da Constituição, e, em seguida, por via de
comentários a respeito da condução da política externa nacional.
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Antes de mais, é preciso que fique claro que a definição da política externa,
apesar de tudo, raramente é completamente livre. Mesmo os Estados mais poderosos
têm que contar com determinadas condicionantes, designadamente de direito interno
ou de cariz constitucional. Se assim é, forçosamente o micro-Estado, expressão que
serve também para caracterizar o nosso, terá ainda maiores restrições nesse quadro,
designadamente as que resultam da sua pequenez e reduzida extensão territorial e,
sobretudo, da deficiente presença de poder palpável, particularmente do poder militar e
económico na esfera internacional. Evidentemente, isso sempre constrange a política
externa de um Estado e dirige-a, pelo menos simbolicamente, a utilizar categorias
idealistas para, paradoxalmente, proteger os seus interesses, aproximando-se das
instituições internacionais, advogando o respeito escrupuloso pelo Direito
Internacional e apelando à justiça e paz internacionais. Para mais, a dependência,
particularmente económica, resulta em limitações extensas na política externa que ele
pode delinear em relação aos Estados que apoiam o seu desenvolvimento ou lhe
prestam auxílio militar, nos últimos tempos particularmente consubstanciado nos
acordos de patrulhamento das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição de Cabo
Verde.
A diasporidade da nação também pode exercer uma influência considerável
sobre a formulação da nossa política externa, considerando que há que se manter
relações amigáveis e de verdadeira proximidade com os Estados que acolhem os nossos
imigrantes, ponderar sobre determinadas medidas internas com reflexo sobre essa
comunidade emigrante, entre um conjunto de preocupações que deve dirigir a
formulação e condução da nossa política externa.
Finalmente, é preciso considerar que é o próprio Estado de Direito
Democrático, modalidade em que a comunidade política escolheu se organizar, que
impõe determinadas condicionantes de política externa que não devem ser olvidadas
ou descuidadas. Neste sentido, qualquer Estado de Direito Democrático, cuidando de
entender o carácter das relações internacionais, deve fazer, nos limites do possível, o
que estiver ao seu alcance para manter a coerência entre o modelo político interno e a
política externa que conduz. Por exemplo, não seria adequado um Estado de Direito
Democrático propugnar na esfera internacional por valores distintos daqueles que
ostenta domesticamente, designadamente ligados à defesa da democracia, dos direitos
humanos e da justiça entre os povos, nem emprestar o seu nome à defesa de
personalidades ou regime duvidosos como por vezes acaba por acontecer.
Feitas estas considerações urge dizer que do ponto de vista constitucional, Cabo
Verde é dos países que consagra na sua Constituição um conjunto de princípios e
directrizes em matéria de política externa, limitando a partir de um prisma
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genuinamente interno. A tentativa, na nossa opinião, nem sempre é coerente, mas, em
todo o caso, o importante a ressaltar pelo menos nesta fase é que tal preocupação
acabou por reflectir na Lei Magna da República, mais precisamente no artigo 11,
denominado sugestivamente de “Relações Internacionais”.
Se se analisar cuidadosamente o dispositivo, ver-se-á com naturalidade que,
efectivamente, ele reflecte um viés nitidamente idealista, estando presentes todas as
grandes linhas dessa visão: a) ideal de aplicação da paz e justiça nas relações
internacionais; b) auxílio às instituições internacionais; c) deferência em relação ao
Direito Internacional. Para além disto, existem um conjunto de soluções específicas
dentro da estrutura constitucional que reforça e operacionaliza, para além da evocação
de princípios gerais, esses valores norteadores. São claros exemplos o efeito directo
garantido aos actos normativos das organizações supra-nacionais de que Cabo Verde
faça parte (12 (3)), a cláusula de abertura a direitos consagrados em convenções
internacionais, ou, ainda, a domesticação de tribunais internacionais criados por
tratados que Cabo Verde faz parte. Num plano mais limitado também não deixa de ser
parcialmente representativo, o regime de recepção facilitado reservado para as normas
internacionais, a hierarquia digna dessas normas no ordenamento jurídico interno,
entre outras soluções que, com razão, alguns dizem manifestar uma amizade com o
Direito Internacional por parte da Constituição da República.
Agora, disso não se pode depreender que esta seja contenha no seu bojo uma
concepção diletante da esfera internacional, como se esta fosse plenamente pacífica,
cooperativa e guiada pelas instituições internacionais e pelo Direito Internacional e
jamais por interesses mesquinhos e particulares das entidades que dela fazem parte.
Longe disso! Primeiro, porque o fenómeno bélico é pressuposto pela
Constituição da República. Não é sem sentido que se prevê a declaração de guerra ou de
estado de sítio em situação de agressão externa ou ainda o serviço militar obrigatório;
segundo, no concernente ao Direito Internacional é facto que ocupa uma posição digna,
mas, ainda assim, inferior à Constituição da República, portanto à lei maior da
comunidade política; terceiro, as relações internacionais da República são igualmente
condicionadas pela necessidade de garantir a reciprocidade de vantagens, o que
significa que elementos realistas não deixaram de fazer parte do pensamento do
legislador constituinte no momento em que este elaborou ou reviu a Lei Fundamental
da República.
Aliás, acaso se entenda necessário concluir o ponto, cremos que a conclusão
mais óbvia seria de que a Constituição da República, como a maioria delas, reflecte uma
concepção ecléctica das relações internacionais com um viés predominantemente
idealista, mas com elementos fortes de realismo. Em certa medida, trata-se de uma
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necessidade óbvia e incontornável de se mesclar critérios fundacionais e estratégico-
pragmáticos na definição da política externa de qualquer Estado de Direito
Democrático.
Por sua vez, do ponto de vista da condução da política externa as coisas não têm
sido tão claras. A percepção geral é que esta sempre teve altos e baixos, mas que se
traduz numa das principais debilidades nacionais à medida em que as relações
internacionais se tornam cada vez mais complexas e é necessário ponderar um
conjunto de elementos conflituantes. A partir de uma perspectiva interna, o que se
observa, muitas vezes, são iniciativas e execuções muito pouco abonatórias e
auspiciosas, particularmente quando se trata de negociar determinados acordos e
parcerias mais exigentes que se afastam do quadro das relações verticais de auxílio com
organizações internacionais e Estados soberanos. Não raras vezes, a República e os seus
representante aparecem em relevantes actos internacionais de negociação sem
directrizes, sem linhas vermelhas ou fixação de âmbitos de concessão, a crença na boa
fé das contra-partes em cuidar tanto do interesse deles como do nosso, algo que, por
motivos óbvios, tem um potencial de causação de prejuízos que não nos pode deixar
indiferentes. É sinal para dizer que, por vezes, a nossa ingenuidade, por outras, o nosso
“excesso de morabeza” são manifestações claras, ainda que trágicas, de um certo
idealismo na condução da política externa.
2. O Conceito de Direito Internacional Público
Antes de se dar início ao estudo de qualquer ramo das ciências jurídicas é
necessário determinar o seu objecto de estudo. Ora, essa necessidade coloca o estudioso
perante um dilema. É que se, por um lado, a determinação do conceito de uma
realidade que se quer apreender é fundamental, por outro, não se pode esquecer que se
trata de empreitada demasiado complicada para quem está a começar um percurso.
Normalmente, o acto de estabelecimento de um conceito é acessível somente àqueles
que conhecem vertical e horizontalmente toda a realidade que se pretende estudar. A
determinação do conceito implica sempre numa acção de demarcação de fronteiras – e
fixar o que está dentro e o que está fora –, e, de outra parte, na sintetização em uma
única frase de uma realidade complexa, composta por diversas normas, sujeitos, fontes,
institutos, etc. Por conseguinte, trata-se de um percurso cujos contornos somente se
tornam acessíveis àqueles que o caminham e que repetem, vezes sem conta, o mesmo
trajecto. Só depois disso é que, eventualmente, ele pode vir a ser devidamente
conhecido.
De outra parte, é preciso ter pelo menos um sentido do percurso, pois, caso
contrário, ficaríamos parados, sem rumo. Sendo certo que é um difícil dilema escolher
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entre caminhar no sentido incorrecto e não caminhar, de outra parte, é sempre
importante seguir na direcção certa. Por isso, mesmo sendo impossível determinar o
conceito de algo a priori, é fundamental que se tenha um norte mínimo, uma imagem,
por mais turva e nebulosa que seja, do caminho e da meta que se pretende atingir.
Ora, é neste contexto que se pode incluir a discussão a respeito do conceito de
direito internacional público7. Não se trata de um conceito de fácil determinação, mas é
necessário fixá-lo de alguma forma, quanto mais não seja para nos dar um norte para o
qual seguir. Será o que nos predispomos a fazer nesta apresentação inicial do tema.
Elaborar uma noção precária de direito internacional público que, abandonando a
pretensão de determinar um conceito, almeja apenas dar um sentido para se dar início
a um percurso com consciência da posição do destino.
Fá-lo-emos através da decomposição dos seus termos: “Direito”, “Internacional”
e “Público”.
2.1. “Direito”: conceito que tem recebido ao longo da história diversos significados e
gerado diversos entendimentos e a sensação de insatisfação. Séculos depois da sua
existência, ainda não se tem qualquer conceito sobre o que seja o direito8. Será que o
direito tem que ser obrigatoriamente justo? Será que ele se consegue justificar auto-
poieticamente ou será que o seu fundamento de validade é sempre externo? Devemos
adoptar uma base jusnaturalista ou positivista para o direito? Bem, respostas não são o
mais importante neste momento, mas, fundamentalmente, enunciar o problema das
divergências doutrinárias sobre o conceito do direito.
Relativamente ao conceito de direito internacional público os problemas são
ainda mais complexos9. Como determinar o conceito de uma ordem jurídica que, pela
sua própria natureza descentralizada, tem relações tão próximas com outras ordens
normativas como a política e a moral? Será que ele é apenas a verticalização de
princípios morais, a expressão da política internacional ou autónoma em relação a estes
sistemas? Deveremos utilizar o justo como critério do jurídico nessa esfera ou não? A
7 Complementarmente, veja-se ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, 8 Em geral, vide os textos representativos desta discussão compilados em Dennis Patterson (ed.), An Anthology of Philosophy of Law and Legal Theory, Malden, Mass/Oxford, Blackwell Publishing, 2003, com textos clássicos de, entre outros, Oliver Wendell Holmes, Karl Llewellyn, Ronald Dworkin, H.L.A. Hart, Lon Fuller, Jules Coleman, John Finnis, Richard Posner, Duncan Kennedy, Wesley Hohfeld, e em Clarende Morris (org.), Os grandes filosófos do direito, Tradução de Reinaldo Guarany, São Paulo, Martins Fontes, 2002, com trechos representativos de autores como, inter alia, Aristóteles, Cícero, Tomás de Aquino, Hobbes, Kant, Bentham, John Austin e Benjamim Cardozo; a aplicação dessas teorias ao raciocínio jurídico concreto foi alvo de duas obras fictícias de Lon Fuller, as quais também se recomenda a leitura, O caso dos exploradores de cavernas, Tradução de Ivo de Paula, São Paulo, LEUD, 2003, e em Lon Fuller; Dimitri Dimoulis, O caso dos denunciantes invejosos. Introdução prática às relações entre direito, moral e justiça, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006 (com argumentação e votos criados por Fuller e por Dimoulis). 9 Trata-se de questão que tem preocupado diversos internacionalistas, designadamente os principais manuais do mundo anglófono, francófono e lusófono (v., por todos,
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doutrina, naturalmente, é tão díspare quanto é relativamente ao próprio conceito de
direito. Jusnaturalismo, positivismo jurídico, realismo político, teorias críticas,
degladiam-se para explicar o conceito de direito na ordem internacional. E das
premissas fundacionais que adoptarmos, seguem-se as soluções para determinar o
direito aplicável ao caso concreto em muitas das situações que surgem na ordem
internacional. Um exemplo, e mais próximo a um dos autores, é o das intervenções
humanitárias unilaterais. Poderá ser considerada juridicamente correcto o uso da força
por um Estado contra outro, mesmo na ausência de autorização do Conselho de
Segurança para proteger direitos humanos? Será que a justiça dos fins é incorporada ao
próprio direito, de tal sorte a reconfigurar o seu sentido ou dele mantém-se à margem,
existindo apenas no plano moral, pelo menos até ser admitida na esfera jurídica por
decisão desta e de acordo com os seus pressupostos de admissão? Outro poderia ser da
obrigação de auxílio. Deve um Estado abastado auxiliar congéneres empobrecidos em
períodos de catástrofe? Será este um dever jurídico ou meramente moral?
As relações com a esfera do político não são menos complexas. Poderá uma
nação hegemónica alterar por si só o Direito Internacional através de um fiat político?10
Poderá, por outro lado, esta mesma nação evitar a criação de uma norma a ela
aplicável, por via de uma recusa contínua da sua existência?11 Será que esta
manifestações de poder poderão ser consideradas jurídicas ou meros actos arbitrários,
cujo único fundamento de legitimidade – espúrio, neste caso – se encontrará na força?
Não existem respostas consensuais a estas questões.
De toda a maneira, cremos ser possível, de toda a polémica relativa ao conceito
de Direito Internacional Público, concluir que a maioria das correntes concordaria que
o direito é um sistema de regras12. Se são, ou devem ser, conformes ao justo; se se
legitimam a si próprias; se se dobram perante o fenómeno poder, são contas de outro
rosário. O facto é que é possível de todas essas posições racionais, razoáveis e
igualmente fundamentadas conceituação do direito inferir uma sentido minimalista de
que é um “Sistema de Normas”.
2.2. Por “internacional” literalmente dever-se-á entender “entre nações”. Porém, a
nomenclatura poderá nos induzir em erro apesar de ter sido adoptada quase
unanimemente em todos os idiomas: Droit International13, International Law14, Law
10 11 12 13 Aproveita-se a oportunidade para referenciar os principais manuais em idioma francês que utilizam a expressão no título. Cf. Pierre-Marie Dupuy, Droit International Public, 4. ed., Paris, 1998; Nguyen Quoc Dihn, Droit International Public, 7. ed., L.G.D.J., 2002; 14 Ver David Harris, Cases and Materials on International Law, 6. ed., London, Sweet & Maxwell, 2004; ....
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12
of Nations15, Diritto Internazionale16, Derecho Internacional17, pois as nações
enquanto tais sequer possuem personalidade jurídica internacional18. Não são elas que
podem concluir tratados ou estão sujeitas a responsabilidade por actos ilícitos. Quando
se faz referência contemporânea ao Direito Internacional pretender-se-á entender
“entre Estados”, muito embora provavelmente tal referência seja um tanto redutora nos
dias que correm, haja em vista a propalada personalidade jurídica de organizações
internacionais, de indivíduos e de outras entidades na esfera internacional19. Claro está
que, do ponto de vista histórico, a assertiva é francamente problemática; na nossa
opinião já existiram outros ordenamentos jurídicos internacionais anteriores ao nosso
que não tinham o Estado no centro do sistema e, como tais, seriam condenadas a um
estado pré-jurídico internacional, algo que cremos não corresponder à verdade20. Por
conseguinte, é fundamental que se consiga, ainda dentro dos limites preconizados, se
estabelecer um conceito precário de direito internacional público, um significado para o
internacional. E a que nos parece mais aproximada da realidade é “entre comunidades
políticas”21.
2.3. Por sua vez, o termo “público” poderá ser enganador, pois não acrescenta qualquer
elemento semântico ou científico à expressão22. Na realidade todo o direito entre
nações, Estados ou comunidades políticas é necessariamente público. Provavelmente a
ideia terá surgido como uma qualificação e um elemento diferenciador em relação ao
direito internacional privado23. Mas, o problema é que o direito internacional privado
não é direito internacional, mas direito interno com elementos internacionais, devendo
com maior correcção ser chamado de direito privado internacional do que direito
internacional público. Mesmo que se diga existirem tratados que regulam questões
jurídico-privadas, como leis uniformes e outras, na verdade estam fazem parte do
direito internacional e são obviamente direito público apesar de tratarem de questões
privadas (comerciais, família ou sucessões), tanto quanto uma norma constitucional
que trata, por exemplo, da questão da propriedade ou da família continua a ser direito
público.
15 16 17 Por exemplo, Oriol Casanovas y La Rosa, Casos y Materiales de Derecho Internacional Publico, 4. ed., Madrid, Tecnos, 1990; Santiago Benavada, Derecho Internacional Publico, 8. ed., Santiago, LexisNexis, 2004. 18 Para aprofundamentos, ver Cap. III. 19 20 Cf. neste capítulo ponto 3. 21 Esta consideração é partilhada por diversos internacionalistas, especialmente os que têm uma preocupação com a história da disciplina. 22 Com a mesma perspectiva, François Rigaux, Droit International Privé I: Théorie Génerale, Bruxelles, Larcier, 1977, p. 91. 23 Aprofundar em ..............................
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13
2.4. Seja como for, a partir desta sucinta análise das partes que compõem a expressão
“Direito Internacional Público” é possível inferir o tal conceito provisório: “O sistema
positivo de normas que tem por objecto regular as relações entre comunidades políticas
e outras entidades às quais elas reconhecem personalidade jurídica”. Tal conceito é ao
mesmo tempo aberto e fechado. Por um lado, por motivos ligados de inclusão temporal
o conceito de comunidades políticas substitui o mais restrictivo Estado, por outro,
garante-se-lhe centralidade no sistema internacional ao subordinar a existência de
outras entidades ao crivo de admissibilidade aos critérios que ele próprio estabelece.
Veremos se tal conceito se confirma pela análise dos conteúdos típicos da parte geral do
direito internacional.
2.3. Enquanto processo de estabelecimento de fronteiras, uma empreitada de
conceituação não se esgota numa dimensão positiva de dizer o que algo é, mas também
demarcar claramente aquilo que ele não é. Por isso, urge distinguir o direito
internacional de outros domínios jurídicos e extra-jurídicos que lhe são próximos.
Começaremos por estes:
2.3.1. Com domínios não-jurídicos, ressalta-se, principalmente, a necessidade de se
distinguir o direito internacional da política internacional, da moral internacional e da
cortesia internacional (comitas gentium).
a) Distinção entre Direito e Política Internacional. A política internacional24, como a
política interna, cuida, não obstante as diversas naturezas que já lhe atribuíram, do
fenómeno poder. Ora, de um ponto de vista internacional, este fenómeno é visto pelos
actores internacionais como um factor essencial, para o qual é necessário
estratégicamente sopesar vantagens e desvantagens de determinados actos e posições.
Neste sentido, como abalizados estudos notaram classicamente, a política, ao seu
modo, e de forma muito sui generis, assume características normativas. São as
chamadas leis da política ou normas de prudência25, que implicam na necessidade de
serem seguidas determinadas directrizes e boas práticas a fim de concretizar os
objectivos políticos de uma determinadas entidades nas suas relações com as outras.
Normalmente, qualquer actor internacional tentará maximizar o ser poder na
ordem internacional, seja hard ou soft, e fa-lo-á promovendo os seus interesses a partir
24 Recomenda-se a leitura do clássico da matéria, Hans Joachim Morgenthau, Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace, passim,e Carl Schmitt, ;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;; 25 Conforme o mais influente realista internacionalista acentuou, “o realismo político acredita que a política, tal como a sociedade em geral, é governada por leis objectivas que tem as suas raízes na natureza humana (Hans Joachim Morgenthau, Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace, p. 4).
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de uma estratégia bem delineada de cooperação e conflito. Assim sendo, o
unilateralismo marca a política, não sendo esta submetida a outras regras para além
das que ele próprio se coloca motivados por propósitos estratégicos. Neste sentido,
diferencia-se do Direito Internacional, à medida em que este é um conjunto de normas
que resultando do factor poder, tenta condicioná-lo e controlá-lo de alguma forma,
circunscrevendo a liberdade política de acção dos actores internacionais a partir de
normas que produzem em conjunto.
Com isto não se quer dizer, obviamente, que o Direito Internacional pretenda
neutralizar ou neutralize efectivamente o factor poder. Longe disso, ele é agasalhado
em vários institutos do direito internacional26; somente que dele se distingue à medida
que reduz a ordem internacional a normas jurídicas, garantindo, neste sentido,
controlo e fiscalização do fenómeno poder.
b) Distinção entre Direito Internacional e Moral Internacional. A moral, numa
definição rasa, é a arte do justo e do correcto. Por conseguinte, a moral internacional
seria a arte do justo e do correcto na esfera internacional27. Está claro que existem
claras dúvidas sobre o que é o justo e o correcto. Quanto a nós seguimos a moral de
matriz deontológica kantiana, de acordo com a qual a conduta correcta é a que pode ser
universalizável28. É dar ou esperar do outro o que nós próprios lhe dá-mos ou
concedemos. Evidentemente, tal orientação moral poderá ser acusada de inviável por
não levar em consideração as divergências de fundamentação entre as várias ordens
civilizacionais que levaria à universalização de normas distintas. Não conseguiremos
resolver em absoluto este problema, apenas reiterar a concepção kantiano-universalista
da moral internacional, por mais que sobre ela pesem críticas de eurocentrismo,
subjectivismo e absolutismo moral29. A partir dela podemos inferir alguns princípios de
justiça na ordem internacional. Quando é que podemos fazer a guerra contra outro
Estado ou comunidade política? Quais são critérios que farão dela uma guerra justa?30
Quando é que um Estado ou organização internacional têm um dever de auxílio a
calamidades naturais ou humanas em outros ou de cooperar num fundo de combate à
pobreza, a doenças infecto-contagiosas ou ao desemprego31. Seja como for, a moral
26 Um exemplo claro desta realidade é a influência do factor poder no próprio processo de formação de normas na esfera internacional, designadamente de normas costumeiras internacionais (v. infra Cap. II, e Michael Byers, Custom, Power and the Power of Rules. International Relations and Customary International Law, Cambridge, Cambridge University Press, 1999). 27 A respeito da aplicação da moral nas relações internacionais, veja-se, por todos, Charles Beitz, Political Theory and International Relations with a new afterword by the author, Princeton, Princeton University Press, 1999 [orig. 1979] (geral, mas com forte ênfase em questões económicas); 28 Citar primeira fórmula do imperativo categórico,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, 29 Algumas dessas críticas resultam de dentro do pensamento de matriz kantiana, designadamente por um dos mais famosos pensadores da actualidade, Jürgen Habermas, ......................... 30 Cf.;;;;; 31 Pogge
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internacional distingue-se do Direito Internacional, à medida em que não se configura
como um sistema de normas positivas, mas apenas princípios que reflectem a justiça e
a correcção. Neste sentido, não só não são iguais, como também podem ocasionalmente
entrar em conflito, particularmente porque os comandos normativos poderão ser
contrários e incompatíveis entre si32.
c) Distinção entre a Cortesia Internacional e o Direito Internacional Público. As
normas de cortesia internacional ou igualmente chamadas de Comitas Gentium33,
correspondem a um conjunto de práticas nas relações internacionais que,
curiosamente, são repetidas, mas que não têm qualquer reconhecimento jurídico.
Similares às normas de trato social34, são resultado da cortesia de um sujeito de direito
internacional em relação a outro, mas não podem ser invocadas em tribunal ou sujeitá-
lo a responsabilidade internacional. Cumpre-as se quiser ou quando quiser, estando, no
entanto, sujeito à reciprocidade de tratamento por parte dos seus congéneres. Sendo
assim, a distinção com o direito internacional é evidente, já que este não só recomenda,
mas obriga a acção ou omissão, sob pena de configuração de acto ilícito e adveniência
de responsabilidade. A prática não só é reiterada neste último caso, como existe
convicção de que é juridicamante obrigatória. Na verdade, essas distinções não são
absolutas. Por ora, no entanto, bastaria reter esta concepção.
2.3.1. Com domínios jurídicos, é essencial distinguir o direito internacional do direito
comparado, do direito público externo, do direito comunitário e do do direito
internacional privado,
a) Distinção entre Direito Internacional e Direito Comunitário35. O Direito
Comunitário36 já teve maiores conexões com o Direito Internacional. Na realidade,
pode ser dito que durante muito tempo fez parte do Direito Internacional37, ainda que
com reconhecidas especificidades, mas com a evolução deste ramo do Direito,
especialmente no âmbito do processo de integração europeia, algumas das
características estruturais de ambas são claramente distintas. Actualmente, com tal
32 Dar algum exemplo, ;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;; int. Hum. 33 Sobre esta questão ver :::::::::::::::::::::::: 34 Ver, por exemplo, :::::::::::::::: 35 Acompanhar esta discussão igualmente em Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público: Introdução, Fontes, Relevância, Sujeitos, Domínio, Garantia , pp. 56-58 (entendendo no geral que o Direito comunitário é o ramo do direito com o qual o Direito Internacional tem mais afinidades). 36 Genericamente, ver Miguel Gorjão- Henriques, Direito Comunitário, 2.ed., Coimbra, Almedina, 2003. 37 Ver Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público: Introdução, Fontes, Relevância, Sujeitos, Domínio, Garantia, p. 57.
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evolução o Direito Comunitário, pelo menos o europeu38, rumo à supra-nacionalidade
deixou em larga medida de ser um direito internacional, ainda que constitucionalmente
continue a usar instrumentos deste ramo do direito39, para se aproximar de um direito
interno supra-nacional, acabando por manifestar características híbridas40,
concomitantemente de direito internacional, mas igualmente, e, acima de tudo, de um
direito público europeu, particularmente no que toca ao chamado Direito Comunitário
derivado41. Pode-se dizer, assim, que o grau de separação entre o Direito Comunitário e
o Direito Internacional depende no nível de integração regional que dá origem ao
primeiro. Quanto maior a verticalização, maior a distância.
b) Distinção entre o Direito Internacional e Direito Público Externo. Muitas vezes
confunde-se o Direito Público Externo (ou com abrangência menor o chamado Direito
Constitucional Internacional42, o mais discutido) e o Direito Internacional. Todavia, as
distinções entre ambos são muito claras e relevam em última instância, a diferença
entre o internacional e o interno. O Direito Público Externo faz parte do direito interno
não obstante as suas conexões internacionais. Na realidade, é a área do direito interno
que regula as relações internacionais e a política externa de um determinado Estado
(designadamente da República de Cabo Verde43) pronunciando-se, constitucional ou
infra-constitucionalmente, sobre uma série de questões: como deve decorrer o processo
de vinculação a tratados, quais são as autoridades competentes para tal; quais são os
princípios que devem orientar a política externa do Estado; qual é posição do tratado
ou do direito internacional geral face às outras fontes do direito interno; quem pode e
em que circunstâncias se pode declarar guerra a outro Estado; quando o Estado estará
impedido de prestar cooperação judiciária em matéria criminal a outro (limites
relativos à nacionalidade, à pena aplicável; às garantias processuais); em que
circunstâncias e através de que procedimentos o estatuto de refugiado poderá ser
concedido e a expulsão de estrangeiros realizada; quais são os crimes contra a ordem
internacional, como está organizada administrativamente a política externa do Estado,
38 Sobre este ponto em específico, Odete Maria de Oliveira, União Europeia. Processos de integração e mutação, Curitiba, Juruá, 1999 (uma leitura externa, com as particularidades positivas e negativas que enseja), Louis le Hardÿ de Beaulieu, L’ Union Européene. Introduction à l’ étude de l’ ordre juridique et des institutions communautaires, Namur, Presses Universitaires de Namur, 1998 (representando um momento mais atrasado do projecto de integração) e Miguel Gorjão-Henriques, Direito Comunitário, passim. 39 Designadamente porque o regime jurídico primário, foi e continua a ser processado através de actos jurídicos internacionais, essencialmente tratados, seja ao nível da criação, como no da revisão (por exemplo, v. Miguel Gorjão- Henriques, Direito Comunitário, pp. 221-234). 40 Neste sentido, Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público: Introdução, Fontes, Relevância, Sujeitos, Domínio, Garantia, p. 58 41 Seguir igualmente Miguel Gorjão- Henriques, Direito Comunitário, pp. 234-252. 42 Em especial, vide na doutrina lusófona, Celso de Albuquerque Mello, Direito Constitucional Internacional – Uma Introdução, 2. ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2000. 43 Em geral para o caso de Cabo Verde, remetemos ao nosso José Pina Delgado, ..................
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etc. Daí ter, respectivamente, uma dimensão constitucional44 (Direito Constitucional
Internacional), administrativa (Direito Administrativo Internacional45) e penal (Direito
Penal Internacional46).
Por conseguinte, todas elas são matérias que regulam a relação entre os Estados,
porém, fazem-no a partir de uma perspectiva interna, do ponto de vista dos Estados
unilateralmente e só a ele vinculando. Neste sentido, no que toca às partes do sistema
jurídico que cada um ocupa, as distinções são claras. Já não é assim no concernente à
disciplina do Direito Internacional, que regra geral, inclui aspectos do Direito Público
Externo, principalmente de Direito Constitucional Internacional: a recepção das fontes
do direito internacional nos ordenamentos jurídicos nacionais, posição hierárquica da
norma jurídica internacional no direito doméstico, processo de vinculação
internacional do Estado (neste caso, do cabo-verdiano, por motivos evidentes)47.
c) Distinção entre o Direito Comparado e Direito Internacional. O Direito Comparado,
por vezes leccionado como sistemas jurídicos comparados, não é um ramo do direito
com princípios, regras e institutos próprios. Na realidade, trata-se de uma disciplina
académica destinada à análise paralela de ordenamentos jurídicos distintos48 e um
método de estudo49. Daí a sua dimensão internacional. No entanto, fá-lo comparando
os seus ramos do direito interno sejam eles do direito público (Direito Público
Comparado; Direito Constitucional Comparado; Direito Administrativo Comparado,
etc.) ou do direito privado (Direito Civil Comparado; Direito Comercial Comparado;
Direito Comparado do Trabalho, etc.), ou o que é mais frequente, a famílias distintas do
direito (Direito Romano-Germânico, Direito Comum – Common Law –, Direito
Islâmico, Direito Hindu, Direitos Africanos, etc.), o que, por vezes, se pode revelar
ainda mais problemático.
d) Distinção entre o Direito Internacional Privado e Direito Internacional Público50.
Como já tivémos a ocasião de adiantar, as similitudes e potencial de causação de
44 São neste contexto representativos os exemplos dos artigos 11 (.....) e 12 (.....), da Constituição da República de Cabo Verde 45 46 Paradigmaticamente, ver, art. 4 CP/Cap. Crimes ...., Lei do Estrangeiro ........... 47 Ver infra Cap. III. 48 Todos os estudos reflectem esta perspectiva óbvia, como comprova a leitura de diversos comparatistas (v. por todos, Eric Agostini, Direito Comparado, Trad. port. de Fernando Couto, Porto, Rés, s.d., p. 22, chamando-a de “disciplina”; ::::::::::::::::::::) e internacionalistas (cf. JBG, ..... 49 Ver o mesmo Eric Agostini, Direito Comparado, pp. 24-26. 50 Seguir igualmente a discussão feita em François Rigaux, Droit International Privé I: Thérie Génerale, François Rigaux, Droit International Privé I: Théorie générale, pp. 90-93; Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado I: Introdução e Direito dos Conflitos; Parte Geral, Coimbra, Almedina, 2001, pp. 254-269, bem como em Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público: Introdução, Fontes, Relevância, Sujeitos, Domínio, Garantia, 2. ed., Coimbra, Almedina, 2004, pp. 53-54;
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confusão entre Direito Internacional Público e o Direito Internacional Privado51 são
claramente sobredimensionados, muito embora compreensíveis haja em vista que este
tem igualmente fortes conexões internacionais como a sua própria denominação
explicita52. Não são diferenças que se configuram no plano científico, pois como se
sabe, o Direito Internacional Privado enquando disciplina jurídica possui fontes
provenientes do Direito Internacional53, como do Direito Interno, mas essencialmente
quando se analisa as fronteiras entre uma e outra como ramos diferentes do próprio
direito e já não mais das ciências jurídicas. É que, apesar das relações próximas que se
desemvolvem entre ambas54, ao nível acima destacado, a rigor, o Direito Internacional
Privado não é Direito Internacional, antes direito interno, conforme reconhecem quase
unanimemente publicistas55 e privatistas56. Consubstancia-se, de facto, e
tradicionalmente num conjunto de regras destinado a solucionar conflitos de leis entre
ordenamento jurídicos distintos que entram em contacto entre si em situação privada57,
para evitar resultados conflitantes. Mais recentemente tem-se caracterizado igualmente
51 A respeito deste ramo do direito, ver, por todos, Manuel Almeida Ribeiro, Introdução ao Direito Internacional Privado, Coimbra, Almedina, 2000; Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado I: Introdução e Direito dos Conflitos; Parte Geral, passim; 52 Cf., e.g., Manuel Almeida Ribeiro, Introdução ao Direito Internacional Privado, p. 8: “Quando uma determinada situação jurídica contacta com mais que uma ordem jurídica, por interessar a mais de um Estado, estamos perante uma situação jurídica internacional”. 53 Conforme assevera Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado I: Introdução e Direito dos Conflitos; Parte Geral, p. 254, “Já sabemos que não se pode distinguir Direito Internacional Público de Direito Internacional Privado no plano das fontes. As fontes do Direito Internacional Público podem também ser fontes do Direito Internacional Privado”. 54 Recomenda-se, para maiores aprofundamentos, Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado I: Introdução e Direito dos Conflitos; Parte Geral, pp. 254-269. 55 Veja-se, por exemplo, Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público: Introdução, Fontes, Relevância, Sujeitos, Domínio, Garantia, p. 54 (destacando a unilateralidade e internalidade do Direito Internacional Privado). 56 Isto está patente no grosso das definições de Direito Internacional Privado, que após destacar o carácter jurídico internacional da matéria – por exemplo, a definição Manuel Almeida Ribeiro, Introdução ao Direito Internacional Privado, p. 8, supra-citada –, reconhecem que, ao fim e ao cabo, o Direito Internacional Privado é um sistema que regula os conflitos de leis internas de ordenamentos jurídicos (“Quando estamos perante um problema de determinação da lei aplicável de entre várias leis que coexistem no tempo, mas que pertencem a ordens jurídicas distintas, dizemos que estamos perante um conflito de leis no espaço. Os conflitos de leis no espaço resolvem-se através de regras de Direito Internacional Privado”); com maior elaboração teórica, ver, por último, François Rigaux, Droit International Privé I: Théorie Génerale, p. 92 (chamando-o de ramo do “direito interno”), e Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado I: Introdução e Direito dos Conflitos; Parte Geral, passim, p. 23, identificando o carácter nacional do “Direito Internacional Privado, concretamente de um “Direito Internacional Privado português”, e clarifincando, de forma muito precisa, qual é o entendimento que o “internacional” deve suscitar nesse contextos (“Por „internacional‟ quer-se significar a existência de contactos relavantes com mais de um Estado soberano, com mais de uma sociedade politicamente organizada em Estado soberano. Este conceito de „internacional‟ não se confunde com o conceito de relação internacional para o Direito Internacional Público (...)”, daí ele próprio propor alterações conceptuais neste quadro, ainda que sejam em certa medida discutíveis (“O recurso ao adjectivo „transnacional‟ permite evitar esta ambiguidade da palavra „internacional‟) (p. 24) e concluir que “as situações transnacionais carecidas de regulação jurídica são em regra apreciadas segundo o Direito Internacional Privado de uma ordem jurídica estadual” (p. 25). 57 Já não estamos seguros do afastamento do carácter privado desse ramo do direito, como defende o publicta da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público: Introdução, Fontes, Relevância, Sujeitos, Domínio, Garantia, p. 54 (dizendo que o “Direito Internacional não é (...) privado, porque procede à escolha de uma legislação aplicável, convocando diversos sistemas normativos estaduais, através de uma determinação imposta por fontes do Direito Público, a começar pela Constituição, não propriamente por vontade das partes envolvidas no plano internacional”).
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por uma tentativa de harmonização e, por vezes, de unificação de regras aplicáveis a
questões privadas. Seja como for, de modo algum poderá ser considerado diferente do
Direito Internacional, pois, mesmo os tratados que corporificam essa tentativa de
harmonização e unificação fazem parte das normas secundárias do direito
internacional público e são, portanto, direito público.
O verdadeiro Direito Internacional Privado corresponderia ao conjunto de
normas de Direito Internacional que têm por objecto a regulação de matéria privada,
mas isto, como foi dito, não deixa de ser Direito Internacional, como não deixa de ser
Direito Internacional, o Direito Internacional Penal, o Direito Internacional
Administrativo ou o Direito Internacional do Trabalho, entre várias partes que o
compõem.
Não nos parece ser decisivo igualmente que se traga à colação uma eventual
personalidade internacional do indivíduo, designadamente o seu acesso a jurisdições
internacionais como sugerindo o carácter verdadeiramente internacional do Direito
Internacional Privado58. É que singelamente dito, o indivíduos nestas condições
encontra-se ficcionalmente corporizando ente público, está numa relação caracterizada
pelo jus imperii de um Estado ou organização internacional – o mais comum – e,
ademais, possui-a de forma muito reflexiva e indirecta, no quadro de uma permissão do
Estado.
Para bem do rigor, aliás, haveria que se pensar em altera o nome de Direito
Internacional Privado para Direito Privado Internacional, como, aliás, já se utilizou ao
longo da história da disciplina por parte da doutrina59 e tem sido por vezes indicado por
estudiosos da matéria60.
2. Evolução do Direito Internacional
Evidentemente um curso introdutório à parte geral do Direito Internacional não
é o local mais adequado para serem feitas longas considerações sobre a evolução desse
58 Ver Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado I: Introdução e Direito dos Conflitos; Parte Geral, p. 71, que apesar de dizer que “é indiscutível que as situações transnacionais relevam na ordem jurídica internacional quando os particulares sujeitos dessas relações têm acesso a jurisdicções internacionais”, não deixa de lhe resevar um espaço no seio do Direito Internacional e não no dito “Direito Internacional Privado”. 59 Aliás, aparentemente, a expressão foi utilizada pela primeira vez no Século XIX pelo jurista norte-americano Joseph Story em 1834 (v. Manuel Almeida Ribeiro, Introdução ao Direito Internacional Privado, p. 10), mas terá ocorrido um problema de tradução com a sua transposição para as línguas latinas, pois traduzida por Direito Internacional Privado ao invés de Direito Privado Internacional, o mais adequado para International Private Law. Aliás, dentro da tradição lusófona, conta Manuel Almeida Ribeiro, Introdução ao Direito Internacional Privado, p. 10, que A.L. Magalhães Pedroza utilizou a expressão Direito Privado Internacional nas suas licões de 1878. 60 Ver também François Rigaux, Droit International Privé I: Théorie Génerale, p. 93, salientando, sem a criticar integralmente e nem se pronunciar como nós em relação à ordem dos termos da expressão, que não há nenhuma parte que acentua o carácter eminentemente estadual e interno do Direito Internacional Privado.
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ramo do direito internacional61. Não obstante, de outra parte, não seria muito judicioso
deixar-se de fazer referência aos aspectos históricos desta matéria, sob pena de se
retirar um elemento crucial para o seu bom entendimento. Sendo coerentes com a ideia
de que para existir internacional não é necessário existir Estado na acepção mais estrita
da palavra, mas comunidades políticas independentes, com qualquer configuração
(tribo, clã, império ou uma cidade-Estado)62, a sua inserção num sistema internacional
(isto é, num conjunto de congéneres que com ele têm relações, por vezes de cooperação,
por vezes de conflito) e que essas interacções estejam submetidas a regulação jurídica63,
começaremos a nossa narrativa pelas épocas mais remotas da antiguidade.
É que, na nossa opinião o Direito Internacional existe desde as mais priscas
eras, pois praticamente desde os estágios iniciais de existência da humanidade
comunidades políticas independentes têm relações entre si, submetendo-as a regulação
jurídica. Ora, sobre esta matéria pode-se destacar algumas fases mais marcantes e que
assim podem ser divididas: a) fase pré-estatal; b) fase estatal; e c) fase pós-estatal.
1. 1. Fase Pré-Estatal
61 Estudos de excelente qualidade integralmente dedicados à história do direito internacional têm vindo a lume. Por todos, cf. Arthur Nussbaum, A Concise History of the Law of Nations, New York, MacMillan, 1950; Georg Stadmüller, História del Derecho Internacional Público. Hasta el Congreso de Viena [Geschichte des Völkerrechts. Bis zum Wiener Kongress], trad. castelhana de A. Truyol y Serra, Madrid, Aguillar, 1971; Karl Heinz Ziegler, Völkerechtsgeschichte:Ein Studienbuch, München, Beck, 1994; Antonio Truyol y Serra, Histoire du droit international public, Paris, Economica, 1995; Wilhem Grewe, The Epochs of International Law, Tradução de Michael Byers, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 2000; Dominique Gaurier, Histoire du Droit International: auteurs, doctrine et developments de l´antiquité à l´aube du periode contemporaine, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2005; Marie-Hélène Renaut, Histoire du droit international public, Paris, Ellipses, 2007. 62 Neste mesmo sentido, cf. Barão Korff, “Introduction a l‟Histoire du Droit International Public”, Recueil des Cours de L’Académie de Droit International, t. 1, 1923. p. 6, conhecido historiador do direito internacional do início do século XX: “ao mesmo tempo que se desenvolve um centro de cultura de um certo nível de civilização, um Estado de qualquer importância, aparecem simultaneamente relações com o mundo exterior, que tomam a forma de todo um sistema de instituições” 63 No essencial, esta ideia já vem sendo esposada consistente por vários historiadores e teóricos do Direito Internacional Público, designadamente Wilhelm Grewe, The Epochs of International Law, p. 7 (“Não existe qualquer razão compeling para se inferir uma ideia da ordem jurídica internacional a partir de uma das suas manifestações temporalmente limitadas. A questão de saber se um Direito das Nações existiu na Antiguidade e na Idade Média só pode ser razoavelmente respondida afastando-se do arrazoamento convencional e das categorias do Direito Internacional Moderno e considerando as características estruturais de uma ordem jurídica internacional como sendo um critério essencial de examinação. Em suma, somente se pode considerar que existe uma ordem jurídica internacional se existe uma pluralidade de corpos políticos relativamente independentes (embora não necessariamente iguais) que estão ligados entre si por relações políticas, econômicas e culturais e que não estão submetidos a qualquer autoridade com poderes legislativos e executivos abrangentes. Nas suas relações, esses corpos políticos devem observar normas que são consideradas vinculativas com base numa consciência jurídica fundada em valores comuns religiosos, culturais e outros”), e Randall Lesaffer, “International Law and Its History: The Story of an Unrequited Love” In: Matthew Craven; Malgosia Fitzmaurice & Maria Vogiatzi (eds.), Time, History, and International Law, Leiden/Boston, Martinus Nijhoff, 2007, pp. 27-41 (“O debate sobre as origens do moderno Direito Europeu das Nações não é o debate adequado sobre a História do Direito Internacional e o seu resultado não pode determinar o objecto do tópico. „Direito Internacional‟ como conceito histórico deve ser definido como o direito que regula as relações entre comunidades políticas que não reconhecem uma autoridade maior. (...). Enquanto tal o Direito Internacional é de todos os tempos e lugares e merece ser alvo de inquiry histórico, independentemente das suas relações com o moderno Direito das Nações e com o Direito Internacional Contemporâneo”) (p. 32).
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Pode-se considerar que a fase pré-estatal do Direito Internacional é a mais
antiga de um ponto de vista histórico. Na realidade ela existe somente para efeitos
didácticos e para marcar negativamente neste caso, a fase anterior ao surgimento do
actor internacional que marcou de forma mais efectiva o sistema internacional e a sua
regulação jurídica: o Estado. Assim sendo, na verdade, o que une essa fase pré-estatal é
precisamente o facto de ter surgido antes do sistema internacional baseado em Estados
criado na Europa na aurora da modernidade. O resto dos aspectos marcam-se por uma
grande diversidade que quase torna dispiciênda, salvo o ponto já recortado, a própria
existência dessa fase anterior ao sistema de Estados. Daí podermos dividi-la em vários
momentos e mesmo assim somente os aspectos mais relevantes e conhecidos.
1.1.1. O Direito Internacional nos estágios originários de existência da
humanidade
A maioria dos internacionalistas provavelmente acharia estranha a ideia de um
direito internacional nos estágios originários da humanidade, particularmente entre
sujeitos tão improváveis quanto tribos e outras organizações socialmente tão pouco
complexas. Mas, o facto é que se aplicarmos os critérios acima apontados, sistemas
jurídicos internacionais tiveram existência nesse período. Primeiro, tais organizações
sociais constituíam verdadeiras comunidades políticas, com um modelo próprio de
organização do poder, instituições próprias e com níveis de solidariedade suficientes
para garantir a coesão interna do grupo; segundo, por contingências geográficas e
económicas a formação de sistemas internacionais seriam inevitáveis, pois a
necessidade impeliria agrupamentos congéneres a conviver no mesmo espaço
geográfico à cooperação. E foi o que realmente aconteceu com grupos humanos em
diversas regiões do globo, resultanto daí uma regulação ainda limitada e pouco
rebuscada, mas ainda assim representativa das principais áreas objecto das relações
entre os povos nos períodos originários de existência da humanidade: o comércio, cujo
exemplo mais relevante, era o comércio mudo de que se tem notícia em diversas partes
do Mundo64 e a regulação da guerra, particularmente dos motivos que lhe podiam dar
64 Veja-se a este respeito o relato de John Gilissen, Uma introdução histórica ao direito, p. 44: “No comércio mudo, o grupo depõe num dado lugar, em que sabe que outro grupo passará, os bens que deseja trocar, e depois abandona o lugar; o outro grupo examina o que lhe é oferecido, põe outras mercadorias ao lado, e depois retira-se; o primeiro grupo volta, examina a mercadoria oferecida em contrapartida e, ou a leva – e a operação de troca está terminada – ou a deixa como estava; neste caso, o outro grupo volta e, ou leva o que tinha oferecido – e todo o processo está terminado – ou então oferece ou coisa, e assim sucessivamente. O potlach, conhecido sobretudo dos Índios da América, mas também dos Berberes, e sob o nome de Kula entre os Polinésios, é a dádiva pública e ostentatória de bens, de riquezas, ou até de escravos, por um grupo a outro. É uma espécie de desafio, porque o outro não pode recusar; ele deve reagir aceitando, e entregando ao primeiro grupo bens de valor pelo menos igual. A operação está assim impregnada de um certo misticismo, ligando as coisas aos homens e, ao mesmo tempo, de uma certa ostentação de poder sem obrigar ao combate. O potlach, uma vez dessacralizado, parece estar na origem de relações económicas mais vastas”
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origem e garantir causa justa e protecção divina. Como todo o direito desse período
caracteriza-se pela indeferenciação entre a moral (de índole religiosa) e o direito, pela
reduzida abrangência material e pela predominância do costume como fonte do direito,
neste caso internacional65. Neste sentido, poderá até ser considerado um sistema
jurídico pouco complexo se o compararmos ao actual, mas disso não decorrerá
necessariamente óbices à sua existência, como, aliás, o próprio Tribunal Internacional
de Justiça já se pronunciou66.
1.1.2. O Direito Internacional entre as Grandes Civilizações do Oriente
Médio
Desenvolvimentos assinaláveis ocorreram no Médio Oriente, região do mundo,
berço da humanidade e que através da descoberta da escrita e a promoção da
urbanização deu origem a um novo estágio de desenvolvimento da humanidade com
reflexos claros sobre as instituições e o direito. Não foi diferente com o Direito
Internacional do período. Apesar dos desafios, em se tratando de uma etapa das
relações internacionais tão marcada por guerras, impérios e conquistas, o facto é que os
requisitos essenciais para a existência de um sistema jurídico internacional também
estiveram presentes nessa região do Globo: a) existência de comunidades políticas
independentes, muito embora fosse comum o estabelecimento de relações tuteladas
pelo direito entre “Estados suseranos” e “Estados vassalos”; b) indubitavelmente
existiram diversos sistemas internacionais67, desde logo inicialmente entre as cidades-
Estado da Suméria; entre os impérios do período – Babilónia, Egipto, Assíria e Pérsia,
Hitita – entre si e com outros Estados vizinhos, designadamente com os Estados judeus
(Israel e Judá) e inclusivamente com Estados europeus, de origem grega ou da Grécia;
65 No essencial, veja-se igualmente este trecho de David Bederman, “Religion and the Sources of International Law in Antiquity” In: Mark Janis & Carolyn Evans (eds.), Religion and International Law, Leiden/Boston, Martinus Nijhoff, 1999, p. 1: “Um número de características foi atribuído aos sistemas jurídicos primitivos. Algumas delas descrevem o conteúdo da doutrina jurídica primitiva, nomeadamente a ausência de certeza e segurança de expectativas, a abrangência limitada das normas, e o uso da retaliação (ao invés de sanções sociais) como elemento decisivo da execução. Outros caracterizam o que se pode chamar elementos processuais do direito primitivo. Ficções jurídicas, que transformavam doutrinas através da alteração subtil dos seus pressupostos conforme as exigências sociais, competed com o formalismo que exaltava a forma (a integridade do ritual) sobre a substância (a adaptabilidade das regras). Além disso, as próprias fontes da obrigação jurídica podem ser chamadas primitivas. Dois fenómenos foram observados neste particular. Primeiro, existe a importância do costume em determinar o conteúdo das normas (…); [segundo], a influência pervasive da religião sobre o direito”. 66 “Case Concerning the Right of Passage over Indian Territory”, Portugal v. India, Merits, Judgment of 12 April 1960 In: I.C.J Reports – International Court of Justice Reports of Judgments, Advisory Opinions and Orders, The Hague, International Court of Justice, 1960, pp. 6-46, esp. p. 37 “It is sufficient to state that the validity of a treaty concluded as long ago as the last quarter of the eighteenth century, in the conditions then prevailing in the Indian Peninsula, should not be judged upon the basis of practices and procedures which have since developed only gradually”, que, para além disto, é um exemplo marcante da importância do conhecimento da história pelo internacionalista, mesmo aquele que tenha um vies mais prático. 67 No geral, cf. com a mesma tese, Antonio Truyol y Serra, Histoire du droit international public, p. 6.
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c) Essas relações, em múltiplas dimensões, estavam submetidas ao Direito
Internacional.
Efectivamente, a crescente sedentarização e urbanização no Médio Oriente, deu
origem à formação de civilizações humanas cada vez mais desenvolvidas e complexas.
Apesar das guerras endémicas e das tentativas expansionistas da maioria das
comunidades políticas, não só as relações de cooperação, nomeadamente comerciais 68-
69, encontravam-se reguladas, como também mesmo a guerra, paradoxalmente, estava
limitada pelo direito criado por esses povos e garantido pelos Deuses70.
Ocorre igualmente um alargamento material e formal do direito. Neste último
caso, as fontes do direito internacional são expandidas para incluir tratados ao invés de
se limitarem ao costume. Surgem os primeiros tratados desde o período mais antigo da
Suméria e a sua complexidade e densidade vai aumentando com o tempo e atingem o
seu auge com os tratados concluídos por potências iguais, como o famoso tratado entre
Ramsés II do Egipto e Hattusil I, rei dos Hititas71. Por outro lado, dá-se igualmente a
expansão material do Direito Internacional na antiguidade, designadamente passando
68 Vide, por exemplo, para o caso do Egípto, ainda assim durante muito tempo, o mais isolado dos Estados, Francis Rey, “Relations internationales de L‟ Egypte Ancienne du 15me au 13eme Síecle Avant Jésus-Christ”, Revue Générale de Droit International Public, (referências indisponíveis no texto, encontrar na BFDL), pp. 35-52, destacando que “por terra ou pelo mar, o Egípto estava em contactos constantes com a Mesopotamia, a Síria, a Fenícia, o Chipre, Creta e a Grécia continental e insular. Disso resultava uma grande corrente comercial (…)” (pp. 36-37); a região da Mesopotâmia, por maioria de razão, não era diferente, conforme atestam vários especialistas do período, como Russ VerSteeg, “Early Mesopotamiam Comercial Law”, University of Toledo Law Review, v. 30, n…., 1998-1999, pp. 183-214, especialmente pp. 188-193, mostrando que os parceiros comerciais das nações da Mesopotâmia estendiam-se do Mediterrâneo à Índia (ocasionalmente), e as transações envolviam uma pluralidade de produtos, e a região de Israel também não, conforme comprova e.g., Prosper Weil, “Le judaïsme et ... développement du droit international”, Recueil des Cours de l’Académie de Droit International, t. 151, n. 3, 1976, pp. 280-281 (discutindo as relações comerciais reguladas por acordos internacioanais entre Israel e o Rei de Tiro, cujo objecto era o envio de produtos agrícolas por aquele e de madeira por este). 69 Para além do comércio, essas relações internacionais de cooperação eram marcadas pela prestação de assistência técnica. O exemplo de Prosper Weil, “Le judaïsme et développement du droit international”, Recueil des Cours de l’Académie de Droit International, t. 151, n. 3, 1976, pp. 280-281, de alguns tratados, que implicavam no envio de técnicos de construção civil especializados e que foram utilizados por Salomão na edificação do Templo de Jerusálem, é ilustrativo. Dali ser muito justamente considerado “um excelente exemplo de assistência técnica internacional” (v. Ibid., p. 281) 70 Por todos, cf. David Bederman, International Law in Antiquity, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2001, pp. 21-31, sustentando a tese de que “existiram Estados conscientes do seu próprio estatuto e da sua soberania, conduzindo as suas relações internacionais de modo previsível que enfatizavam a necessidade de relações diplomáticas, a santidade dos acordos, e controlos ao início e conduta da guerra” (p. 21), e Olga Boutkevitch, O Direito Internacional do Mundo Antigo (em ucraniano), 2005, 864 p. (com recensão feita por Anatoli Kovler, Journal of the History of International Law, v. 7, 2005, pp. 107-112; o artigo “History of Ancient International Law: Challenges and Prospects”, pp...., é provalmente uma versão condensada de algumas questões trabalhadas no livro), Péter Kóvacs, “Relativities in Unilateralism and Bilateralism of the International Law of Antiquity”, Journal of the History of International Law, v. 6, 2004, pp. 173-186, especialmente p. 174 (“O Direito Internacional existiu por milhares de anos”); Dominique Garnier, Histoire du Droit International: auteurs, doctrine et developments de l´antiquité à l´aube du periode contemporaine, pp. 39-49. Foram encontrados, aliás, vários desses tratados, nomeadamente os que os Hititas concluíram (v. Gary Beckman, Hitite Diplomatic Texts, passim), bem como, por exemplo, aqueles que os Egípcios (….. ) e os assírios (…..) tomaram parte. 71 Para maiores desenvolvimentos, vejam-se as contribuições de Donald Magnetti, “The Function of the Oath in the Ancient Near Eastern International Treaty”, American Journal of International Law, v. 82, 1978, pp. 815-829; Karl-Heinz Ziegler, “Conclusion and Publication of International Treaties in Antiquity”, Israel Law Review, v. 29, 1995, pp. 233-249; David Bederman, International Law in Antiquity, pp. 61-65; Amnon Altman, “The Role of the „Historical Prologue‟ in the Hittite Vassal Treaties: An Early Experiment in Securing Treaty Compliance”, Journal of the History of International Law, v. 6, 2004, pp. 43-64.
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a incluir, além dos já existentes comércio e guerra, a cooperação judiciária em matéria
penal como a extradição (essencialmente por delitos políticos) ou o asilo. Algumas das
características desse ordenamento jurídico-internacional são: influência da religião,
expansão material do direito e dos actores internacionais e consequentemente dos
sujeitos do direito internacional.
1.1.3. O Direito Internacional entre as Cidades da Grécia Antiga
Seria, à primeira vista, despiciendo discutir a existência de comunidades
políticas independentes e de um sistema internacional na Antiga Grécia. Não o será, no
entanto. É que a configuração interna das comunidades políticas da Antiga Grécia, em
cidades-Estado independentes poderá colocar dúvidas sobre a sua real independência,
pressuposto básico para a existência de um Direito Internacional. No entanto, qualquer
análise minimamente séria das experiências institucionais, levaria a considerar a
independência pelo menos formal das cidades gregas, não só das cidades hegemónicas,
Esparta e Atenas, mas igualmente das outras72. As pequenas cidades da Antiga Grécia
não eram menos dependentes da maior parte dos Estados soberanos de hoje em relação
a potências globais ou regionais. Consequentemente, não seria difícil estender essas
considerações para a existência de um sistema internacional entre as cidades gregas e,
por maioria de razão, suas relações com comunidades políticas não-gregas.
Curiosamente, mesmo nestes casos existiria um pequeno obstáculo: o princípio grego,
mas também adoptado por outros povos, designadamente pelos próprios persas, da sua
superioridade sobre os demais, algo quase incompatível com a existência do Direito
Internacional. Sinteticamente deve-se dizer que, não obstante esses pontos de partida,
as relações juridicamente reguladas pelo direito existiram nesses casos73. Esse
pressuposto teve, evidentemente as suas implicações, o Direito Internacional pan-
helénico era muito mais desenvolvido do que aquele que regulava as relações com
outros povos “bárbaros”.
Relativamente a esta questão, deve-se dizer que, por motivos óbvios, dá-se a
expansão material desse ramo do direito. Surgem novas instituições jurídico-
internacionais ligadas ao direito diplomático, ao direito de guerra e do comércio
72 David Bederman, International Law in Antiquity, p. 32, denomina-o de “paradoxo singular das relações gregas. Fortes sentimentos de lealdade face à própria polis conflituavam com uma identificação relativa à superioridade da cultura grega e a inferioridade de outros povos”. 73 Na realidade, sustentam alguns, talvez com algum exagero, que o particularismo grego cingia-se aos escritos de filósofos políticos como Aristóteles e Platão, ou a uma ideologia específica da cidade de Atenas que pretendia evitar alianças entre as suas inimigas tradicionais de Esparta e Tebas com o Império Persa como veio efectivamente a acontecer, não reflectindo, portanto, um sentimento helénico generalizado (v. David Bederman, International Law in Antiquity, p. 37. “Era imperioso para Atenas prevenir a construção de alianças dentro da comunidade helénica, e a retórica particularista foi criada precipuamente como um instrumento de propaganda contra a inevitável aliança que seria forma por Esparta, as suas aliadas, e a Pérsia contra Atenas, e que levou ao início da Guerra do Peloponeso em 431 A.C”).
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internacional, direito internacional privado, tratados, mecanismos de solução de
controvérsias, etc74, muito embora, como dito, o seu desenvolvimento tenha sido
prejudicado pelo facto de qualquer dessas civilizações tomarem como ponto de partida
a sua superioridade intrínseca sobre as outras, inviabilizando a expansão horizontal e
vertical do sistema jurídico-internacional e limitando a determinadas questões básicas
necessárias a operacionalizar as relações inevitáveis entre os povos.
1.1.4. O Direito Internacional no Período Romano
A contribuição romana, curiosamente dá-se essencialmente no direito público
externo, ao invés da área do Direito Internacional stricto senso. Não que os romanos
não constituíssem comunidades políticas ou não estivessem inseridos em sistemas
internacionais, mas porque o seu senso de auto-restrição por via do direito, implicava
claramente na limitação jurídica doméstica da sua conduta internacional e das suas
relações com o comunidades políticas e indivíduos estrangeiros.
Os mecanismos internos para a declaração de guerra, o sistema de tratados
desenvolvidos para a sua união com Estados aliados ou dependentes e o direito do
estrangeiro (jus gentium) foram os maiores reflexos disso. Assim, a concepção da
guerra justa encontra a sua base no direito fecial romano. Antes da declaração de
guerra o colégio de sacerdotes com esse nome cuidava de comprovar a existência de
justiça na causa romano, permitindo, ademais, que, antes da guerra, o povo que havia
causado qualquer dano ou injuriado Roma, tivesse a oportunidade de se redimir,
pagando uma indemnização ou entregando um suspeito para ser julgado em Roma75.
1.1.5. O Direito Internacional no Período Medieval
Como se sabe, o Império Romano entrou em decadência e gradualmente em
colapso com invasões permanentes de povos germânicos do Norte. O curioso é que
durante algum tempo, estes formalmente se encontravam submetidos ao Império
(como povos aliados) e, mais importantemente, foram aculturados com base nas
instituições e valores romanos. Daí não ter sido estranho que o ideal do Império
Romano sempre tenha permanecido presente no ideário medieval. Além do mais, trata-
se de período marcado essencialmente pelo cristianismo, particularmente quando este
passou a ter expressão institucional interna e internacional. Tanto no período
merovíngio, como no carolíngio, embora de modos completamente distintos, dá-se a
união entre o cristianismo e poder franco, culminando, em 800, com o reconhecimento
74 Em geral, vide George Ténédikes, “Droit International et Communautés Fédérales dans la Grèce des Cités (V-III Siècles avant J.C)”, passim, e David Bederman, International Law in Antiquity, passim, para um interpretação mais recente. 75 A respeito do processo de declaração de guerra, além das fontes clássicas, recomenda-se o resumo feito por David Bederman, International Law in Antiquity, pp. 231-233.
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do Papa como factor de legitimação do poder. Desde aquela altura ele passa a ter um
papel importante, na restrição dos efeitos da guerra, designadamente como árbitro76 e
(quase) legislador universal77. Neste sentido, vai ser importante a criação da Respublica
Christiana, onde ele vai partilhar o poder com o Imperador da Cristandade. Existem
dúvidas a respeito da eficácia desse sistema em razão da independência de facto de
várias comunidades políticas face ao Sacro Império Romano Germânico, ao facto do
Papa ter passado a ser respeitado somente na qualidade de governante secular com
domínio sobre um território próprio e da resistência de respeitar algumas das suas
decisões. Seja como for, este direito internacional formalmente hierárquico, mas
composto por comunidades
políticas independentes de facto, era a característica principal do Direito Internacional
Medieval e funcionavam, pelo menos simbolicamente, até ao período de decadência, a
partir do Século XIII, de forma adequada. Foi esta a principal característica do sistema
jurídico-internacional medieval: uma estrutura piramidal, com o Papa e o imperador à
cabeça, mas paradoxalmente constituída por várias comunidades políticas
independentes.
1. 2. Fase Estatal (1648-1919)
É neste ponto que as principais mudanças vão ocorrer. A estrutura formalmente
hierárquica, mas já paritária de facto, na maior parte das relações, vai sendo
paulatinamente alterada pelo o reconhecimento da independência e igualdade dos
Estados. A emergência da fase estatal do direito internacional está intimamente
relacionada à desintegração da unidade da cristandade pelo advento da reforma
protestante. Com efeito, desde que Martinho Lutero promoveu o cisma em relação à
Igreja de Roma e vários príncipes germânicos converteram-se ao protestantismo, a
Europa vai dividir-se em dois campos opostos, e com o avançar dos tempos em vários
outros, com o surgimento de diversas correntes protestantes. Serão essas guerras
76 Cf: MULLER, J. L‟Ouevre de Toutes le Confessions Chréttienes (Églises) pour la Paix Internationale. Recueil des Cours de L’Académie de Droit International, t. 31, n. 1, 1930. p. 335-350; complementarmente Georg Stadtmüller, História del Derecho Internacional Público, p. 79-80, mostrando que a arbitragem, principalmente a papal, teve um papel central na solução internacional de conflitos, tendo sido utilizada com grande intensidade e com índices de eficácia notáveis. O curioso é que não se tratava de mero mecanismo à disposição das partes. Era verdadeiramente imposta aos querelantes pela autoridade do Sumo Pontífice. 77 Em especial sobre esta questão, vide Ludwig Quidde, “Histoire de la paix publique en Allemagne au Moyen Age”, Recueil des Cours de L’Académie de Droit International, t...., n. 3, 1929, pp. 475-482, que, com base na experiência francesa, a sua expansão pela Europa, especialmente na Alemanha, e a sua adopção oficial pela Igreja, foi práctica aceite por duzentos anos a interdição de combate em dias sob pena de excomungão : entre a noite de mercredi e o nascer do Sól de Segunda, justificando-se pelo facto de Cristo ter ascendido o Céu na jeudi, pela sua Paixão na Sexta, pelo seu sepultamento no Sábado e por o Domingo ser um dia especialmente dedicado a Deus (p. 476).
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religiosas78, particularmente as que ocorreram na Alemanha que vão paulatinamente
dar origem ao chamado Jus Publicum Europaeum, o moderno sistema de Estados. Os
seus antecedentes são a Paz de Augsburgo de 1555 e a Paz de Vervins de 159879, mas o
momento simbólico de ruptura acontece, embora discutivelmente, com a chamada Paz
de Vestfália de 164880.
1.2.1. Período do Direito Público Europeu
Seja como for, o ano de 1648 é considerado, pelo menos simbolicamente, como
um marco para o direito internacional que dá origem ao seu período mais marcante e
representativo: o sistema europeu de Estados. Composto por diversas unidades
políticas independentes, que se subordinam ao direito internacional de modo
voluntário81. Não tendo qualquer entidade acima deles dependem de si próprios para
produzir as normas do sistema, através da prática ou de contratos, bilaterais ou
multilaterais, para julgar e para garantir as normas, se necessário pela guerra. O Estado
passa, então, a ser uma entidade soberana, com controlo efectivo sobre um
78 A respeito desta tese, isto é de que eram, acima de tudo, guerras religiosas, por todos, Gaston Zeller, “Les Temps Modernes: de Christophe Colombe à Cromwell” In: Pierre Renouvin (org.) Histoire des Relations Internationales. Paris: Hachette, 1953. t. II, p. 122 (“as rivalidades de potência que continuavam a opor os grandes Estados se complicam com um antagonismo agudo, irredutível, entre catolicismo e reforma. Os apetites territoriais perdem a sua importância, as paixões religiosas passam ao primeiro plano.”), Mark Konnert, Early Modern Europe. The Age of Religious War, 1559-1715, Petersborough, Ontario, Broadview Press, 2006, pp. 97-98 (“No passado, muitos historiadores desconsideraram o elemento religioso dessas guerras. O meu enfoque é que, apesar de outras questões estarem em jogo – políticas, econômicas, diplomáticas ou sociais – a religião era o factor mais importante nesses conflitos. Ou seja, apesar de ser certo que existiram outras causas para a guerra, sem o elemento religioso não se consegue explicar a brutalidade, duração ou desenvolvimento dessas guerras. Sem a paixão engendrada pela divisão religiosa, a história européia dos séculos XVI e XVII teria sido realmente diferente”), e Aline Goosens, “ Wars of Religion: The Examples of France, Spain and the Low Countries in the sixteenth century” In: Anja V. Hartmann & Beatrice Heuser (eds.), War, Peace and World Orders in European History, London/New York, Routledge, 2001 (“(...) dois factores fundamentais que estiveram, muitas vezes, ligados devem ser levados em consideração para todos os conflitos armados do Século Dezasseis; dinastias e, acima de tudo, religião”). 79 Nunca é demais destacar que, mais do que um momento de ruptura, a Paz de Vestfália, é um símbolo, pois, como é sabido, muitos dos seus traços não são mais do que o desfecho de desenvolvimento pretéritos (ver também Leo Gross, “The Peace of Westphalia, 1648-1948”, passim, p. 33: “Como a posição dominante do imperador romano vinha declinando decisivamente nos séculos que precederam a Paz de Vestfália, é provavelmente correcto afirmar que a Paz meramente sacramentou (sealed) uma realidade”). Assim, efectivamente, determidos princípios do moderno sistema europeu de Estados já haviam surgido em outros instrumentos jurídico-internacionais ligados à solução das guerras religiosas na Europa, como, por exemplo, na Paz de Augsburgo de 1555 (.....) e na Paz de Vervins de 1598 (cf. Randall Lesaffer, “La paix des Vervins (1598): souveiranité, territorialité, et dévelopment du droit public européen”, In: J.-M. Cauchies & S. Dauchy (eds.), Personnalité, territorialité et droit: actes des journées internationales de la Société d'Histoire du Droit tenues à Bruxelles du 28 au 31 mai 1998, Bruxelles, Facultés Universitaires Saint-Louis, 1999, pp. 131-152). 80 Sobre a Paz de Vestfália, vide em específico Leo Gross, “The Peace of Westphalia, 1648-1948”, American Journal of International Law, v. 42, 1948, pp. 20-41 (predominantemente ligado ao levantamento do acontecimento no desenvolvimento do direito internacional); Randall Lesaffer, “The Westphalian Peace Treaties and the Development of Great European Peace Settlements prior to 1648” Grotiana, v. 18, 1997, pp. 71-95 (com análise de diversas cláusulas dos tratados); Randall Lesaffer, “The International Dimension of the Westphalian Peace Treaties: a Juridical Approach” In: F. Villaverde (ed.), 350 años de la Paz de Westfalia: Del antagonismo a la integración en Europa, Madrid, Biblioteca Nacional/Fundación Carlos de Amberes, 1999, pp. 291-310;... 81 Na síntese feliz de Leo Gross, “The Peace of Westphalia, 1648-1948”, p. 29, “o novo sistema ampara-se no Direito Internacional e no balanceamento do poder, um direito operando entre os Estado e não acima dos Estados e um poder operando entre e não acima dos Estados”.
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determinado território, à volta do qual é erigido todo o sistema internacional. Este
sistema evidentemente vai, do ponto de vista formal e material, sendo adensado, mas
os princípios foram os criados nesse período e serão esses que vão influenciar de modo
indelével todo o direito internacional.
O período é, para mais, marcado por desenvolvimentos doutrinários palpáveis,
com o surgimento de diversas obras importantes da lavra de Grócio, Selden, Pufendorf,
Vattel, entre vários outros. Materialmente, além da guerra e da solução pacífica de
controvérsias já referidas foram importantes os desenvolvimentos ocorridos no direito
do mar, com o desenvolvimento do princípio do mare liberum defendido por Hugo
Grotius.
1.2.2. Interregno: a ideologização do direito internacional pela República
Revolucionária Francesa.
O sistema de Estados inaugurado com a Paz de Vestfália, teve, de certo modo, um
interregno com o surgimento da República Francesa a partir da revolução de 1789. A
grande marca da República Francesa tinha a ver com o regime político adoptado, a
República. A isso naturalmente juntava-se o anti-monarquismo dos jacobinos e o
próprio carácter revolucionário do regime, propenso à propagação das conquistas a
outros povos82. Por conseguinte, começou a seguir-se o princípio de que se poderia
intervir em qualquer outro país para apoiar a ascensão do povo ao poder. Deste modo,
a modulação interna dos Estados voltou a ser defendida por importantes actores
internacionais, relativizando o princípio da não-intervenção.
1.2.3. O Período do Concerto Europeu e a expansão do direito internacional
Como se sabe a aventura francesa acabou por se descaracterizar com Napoleão e
culminou com a sua derrota em Waterloo. Surge, a partir da vitória aliada contra a
França, o Concerto Europeu, cria-se a Santa Aliança a partir da Pentarquia composta
por Grã-Bretanha, Prússia, Rússia, Império Austro-Húngaro, à qual a França
monárquica também se associou. Curiosamente a primeira medida das potências
vencedoras foi dar seguimento à política intervencionista do Estado revolucionário
francês, embora em sentido contrário, invocando um direito de intervenção em relação
a qualquer desvio contra-monárquico na Europa e colônias. Todavia, ela não chegou a
cristalizar-se, em razão da oposição firme da Grã-Bretanha na Europa e
82 Veja-se igualmente as considerações de Marc Belissa & Patrice Leclerq, “The Revolutionary Period, 1789-1802”, p. 203 (“As guerras da França Revolucionária não eram somente guerras nacionais, mas também guerras de conquista – pelo menos entre Setembro de 1792 e Março de 1793, e depois durante o Directório”), e principalmente de René-Jean Dupuy, “La Révolution Française et le Droit International Actuel” p. 26, para quem a ideologia e as práticas do Estado revolucionário pressupunham “uma intervenção sistemática nos assuntos dos outros Estados”, arrematando que “para a Revolução Francesa é legítimo o combate libertador de um povo e os povos livres devem vir ao seu socorro” (p. 27).
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particularmente dos Estados Unidos na América, designadamente expressa na
Proclamação Monroe de 1825, quando os desejos intervencionistas europeus favoráveis
à Espanha nos seus intentos de recuperação das suas colónias do Novo Mundo foram
rechaçados pelos Estados Unidos.
Este período que vai de 1815 a 1919, é marcado por vários acontecimentos
relevantes que se vão agregar à estrutura jurídica-internacional. Primeiro, é um período
de expansão relativa do sistema. As nações da América do Norte e do Sul que se
emanciparam da Grã-Bretanha, Espanha e Portugal juntam-se, gradualmente, à
medida que são reconhecidas, ao sistema jurídico-internacional. No entanto, em
simultâneo, o instituto do reconhecimento, que os países europeus, faziam depender do
nível civilizatório de cada comunidade política, era um obstáculo claro à expansão do
direito internacional para espaços não-cristãos e não-ocidentais. Destes, somente, e
com algum custo, o Império Otomano, em 1856, foi reconhecido como sujeito de direito
internacional. As outras foram reduzidas, por vezes com os mesmo propósitos
civilizatórios à colonização (o caso de África83) ou a relações diversas de dependência e
desigualdades com as nações européias, nomeadamente através da criação de
protectorados ou da aplicação de regimes de capitulações, etc84.
Do ponto de vista material, existem alguns desenvolvimentos relevantes.
Surgem diversos tratados destinados a acabar com o tráfico negreiro e, acima de tudo,
iniciativas destinadas a mitigar os efeitos negativos da guerra sobre pessoas que dela
não participavam (civis e militares imobilizados), que vão culminar nas Convenções de
Haia sobre Direito de Guerra, bem como regulá-la no geral. O sistema puramente
estatal tem o seu fim de modo trágico com a I Guerra Mundial, permitindo, no entanto,
o surgimento de uma nova era para o direito internacional.
3. Período Pós-Estatal
Embora isso seja discutível, a verdade é que a partir do fim da I Guerra Mundial
projecta-se um novo sistema internacional, de maior cooperação e pretensamente mais
83 Cf. Dakas C.J. Dakas, “The Role of International Law in the Colonization of Africa: A Review in Light of Recent Calls to Re-Colonization”, African Yearbook of International Law, v. 7, 1999, pp. 85-118 (interessante estudo tendo por base, na parte aqui relevante, a reacção académica à colonização africana, designadamente do reputado internacionalista britânico, John Westlake); Antony Anghie, “Finding the Peripheries: Sovereignty and Colonialism in Nineteenth-Century International Law”, Harvard International Law Journal, v. 40, n. 1, 2000, p. 1-80; Martti Koskenniemi, The Gentle Civilizer of Nations. The Rise and Fall of International Law 1870-1960, pp. 98-178 (Cap. “Sovereignity: a Gift of Civilization: international lawyers and imperialism 1970-1914”, mais ligado à história do pensamento jusinternacionalista do Século XIX); James Thuo Gathii, “Imperialism, Colonialism, and International Law”, Buffalo Law Review, v. 54, n. 4, 2007, pp.... 84 O caso japonês, descrito por R.P. Anand, “Family of „Civilized‟ Nations‟ and Japan: A History of Humiliation, Assimilation, Defiance, and Controntation”, Journal of the History of International Law, v. 5, 2003, pp. 1-75, é deveras revelador.
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pacífico. A sua base era composta por uma organização internacional pretensamente
universal
3. 1. Período da Liga das Nações
A criação da Liga das Nações em 1919 tinha precisamente o objectivo de
estabelecer uma nova ordem internacional de maior cooperação, aproximação e em que
a guerra fizesse parte do passado85. Foi o que ocorreu com o seu Pacto, que estabelece
uma organização internacional complexa, com vários órgãos próprios e outros
associados.
Já se sabe que a sua eficácia foi reduzida, começando pelo seu sistema de
segurança colectiva que não funcionou a contento quando testada. Não conseguiu
articular qualquer resposta consistente às invasões da Itália à Etiópia86, do Japão à
China87 ou da Alemanha à Checoslováquia.
3.2. Período das Nações Unidas
O fracasso da Liga das Nações e o fim da II Guerra acabaram por permitir a
reconfiguração do projecto internacionalista e a criação da ordem onusiana, assente
num instrumento constitutivo, de carácter fundacional, a Carta das Nações Unidas (de
1945). Trata-se arguivelmente da fase na qual ainda estamos, muito embora muitas
vozes se levantem no sentido de que o direito internacional terá mudado de paradigma
depois do 11 de Setembro e da guerra contra o terrorismo. Seja como for, mesmo no
período onusiano, existem diversos momentos identificáveis.
3.2.1.Fase da Esperança (1945-1948)
Durante algum tempo, pensou-se que se entraria numa nova fase de cooperação
internacional expandida a novos espaços e novos sujeitos. Afinal, a nova ordem
internacional assentava precisamente sobre as potências que haviam se associado para
derrotar o Eixo. Além da Carta das Nações Unidas, uma série de outros documentos de
alguma forma ligados ao desfecho da II Guerra Mundial foi produzida: os tratados que
criaram os tribunais de Nuremberg e de Tóquio, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos ou a Convenção para a Repressão do Genocídio. Tentativas paralelas de
reorganização do sistema financeiro e económico internacional foram sucedidas em
85 “As altas partes contratantes, a fim de promover a cooperação internacional e atingir a paz e segurança internacionais através da aceitação de obrigações de não recorrer à guerra” (Pacto da Liga das Nações [The Covenant of the League of Nations] (Including Amendments adopted to December, 1924), Preâmbulo). 86 Recomenda-se Jean Allain, “Slavery and the League of Nations: Ethiopia as a Civilised Nations”, pp. 213-244. 87 Para aprofundamentos, cf. R.P. Anand, “Family of „Civilized‟ Nations‟ and Japan: A History of Humiliation, Assimilation, Defiance, and Controntation”, pp.....
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parte com a criação do sistema de Breton Woods (BIRD; FMI), com o senão que foi a
não criação de uma organização do comércio internacional. Depois disso, o
afastamento entre Estados Unidos e URSS dão origem a um novo momento do direito
internacional, marcado pela Guerra Fria, acima de tudo, e num plano quase de igual
relevância, com a descolonização massiva das antigas possessões europeias.
3.2.2. Guerra Fria e descolonização (1948-1989)
A Guerra Fria e a descolonização vão marcar o período mais longo da actual fase
do Direito Internacional. Primeiro, o afastamento entre as superpotências era natural,
se atentarmos ao carácter revolucionário e expansionista sobre os quais cada uma delas
se amparava. O problema ligado a Berlim e a divisão final da Alemanha puseram termo
a qualquer veleidade de entendimento positivo entre elas. Segundo, a descolonização
marca uma expansão inédita do sistema internacional em várias vagas, começando
principalmente pela Ásia e culminando na emancipação das últimas colónias africanas
nos anos setenta. O mapa do direito internacional altera-se substancialmente, como
também muitas das suas normas.
Do ponto de vista do funcionamento do sistema, surge uma tendência para
alguma paralisação, particularmente em instituições, como o Conselho de Segurança
das Nações Unidas, que requeressem consenso entre as superpotências. Outras
sofreram algum desenvolvimento, não obstante as divergências: direitos humanos;
direito dos tratados, direito diplomático, direito internacional humanitário, direito do
mar, intimamente ligados à ideia de codificação do Direito Internacional.
Por outro lado, o surgimento de países não ocidentais, promove o
desenvolvimento de sistemas internacionais regionais (europeu e africano) e a
consolidação dos já existentes (americano), ocorrendo a proliferação de organizações
regionais e sub-regionais, órgãos de solução de controvérsias, etc.
3.2.3. Fim da Guerra Fria (1989-2001)
Como se sabe, em 1989, dá-se a queda do império soviético e assiste-se a uma
reconfiguração do sistema internacional. Países como a URSS dissolvem-se, novos
membros são admitidos, alguns se unificam (significativamente a Alemanha). Mais do
que isso, o espírito que norteou as relações da Guerra Fria e que, de certa forma,
apresentaram-se como obstáculos para uma maior integração internacional e um maior
desenvolvimento, principalmente ao nível da eficácia do direito internacional, deixaram
de existir. Prova disso foi a quase inédita, até aquele período, resolução do Conselho de
Segurança autorizando o uso da força contra o Iraque na seqüência da invasão ao
Kuwait. Em outros tempos, tal proposta de resolução teria um único destino: o veto. O
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mesmo órgão pés em cheque o conceito de domínio reservado dos Estados,
designadamente, como dito, dele excluindo matérias como os direitos humanos.
Efectivamente, através de várias resoluções, o Conselho de Segurança autorizou o uso
da força para restaurar a democracia (Haiti), proteger a distribuição de auxílio
humanitário (Somália) e para várias actividades de peacebuilding; no mesmo sentido
foi o Conselho de Segurança a revitalizar a justiça internacional quando naquele
período criou duas instituições judiciárias: o Tribunal Internacional Penal para a
Antiga Jugoslávia e o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda.
Observou-se, além disso, ao fortalecimento do direito internacional do
comércio, com a criação da Organização Mundial do Comércio em 1995, surge uma
proliferação de organizações multilaterais, regionais e sub-regionais, dezenas de órgãos
de solução de controvérsias, convenções sobre as mais variadas questões, desde
terrorismo à protecção do meio ambiente; reconhece-se em alguns casos personalidade
jurídica a indivíduos, que passam a poder tutelar directamente os seus direitos na
ordem internacional. Enfim, um admirável mundo novo, correspondendo à ideia
esposada pelo Presidente George Bush no início da década de noventa uma nova ordem
mundial ou de vacticínios optimistas de académicos sobre o fim da história e a vitória
da ordem liberal por todo o universo. Forte, coesa, a comunidade internacional
apresentava-se no seu melhor: direitos humanos, democracia, livre mercado,
prosperidade geral. De fora, meia dúzia de rogue states (Irão, Coréia do Norte, Iraque,
Cuba, etc.) inofensivos (!).
3.2.4. Guerra contra o Terrorismo (2001-2008) e Nova Guerra Fria
Tudo muda em pouco tempo. Os atentados terroristas de 11 de Setembro de
2001, que atingem os Estados Unidos, dão forma a um novo momento da ordem
internacional: a guerra contra o terrorismo. A hiperpotência que até pensava repousar é
obrigada a combater os seus inimigos. A luta contra o terrorismo marca de modo
incontornável o cenário internacional desde 2001. Não que o desenvolvimento de
outras áreas do direito internacional tivessem sido interrompidas em razão do
terrorismo, mas, principalmente, que o seu impacto potencial no direito internacional
contemporâneo foi tão significativo que se aventou inclusivamente a possibilidade de
ter ocorrido uma alteração paradigmática no mesmo88. Não se deve chegar a tanto, sem
embargo da guerra contra o terrorismo ter chegado a promover algumas alterações ao
direito que regula o uso da força e arguivelmente nos ramos do direito que cuidam da
protecção da pessoa humana. Talvez o mais impactante factor tenha sido gerado pelo
88 E.g., José Pina Delgado, “O inimigo terrorista como paradigma do direito internacional” In: AAVV, Terrorismo e Direitos Humanos. Actas da Conferência de Outono do Jus Gentium Conimbrigae de 2005, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, No Prelo.
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surgimento de actores não estaduais com força suficiente para atacar de forma eficaz
Estados poderosos do sistema.
Seja como for, à ameaça não estadual, desafios convencionais se colocam ao
sistema internacional, designadamente com base diplomática no intuito de re-
estruturar o sistema político internacional de modo mais justo (reforma das Nações
Unidas), econômica (ascensão da China e da Índia) ou até pela força (Rússia). Poder-
se-á estar a desenhar uma nova ordem internacional, tendencialmente multipolar. Se
ela se desenhar, com efeito, restará saber que tipo de direito internacional teremos.
3. Fundamento do Direito Internacional
A última linha de reflexões seguida, alerta-nos para algo que conceitualmente se
justifica, a autonomia da ordem jurídica internacional, e a sua presença simultânea no
sistema internacional com a política e com a moral. Face a essa proximidade e em razão
de outros fundamentos, o próprio estatuto do Direito Internacional tem sido colocado
em dúvida desde a Antiguidade. Assim, autores como Tucídides, Maquiavel, Hobbes,
Austin, Hegel e, de certo modo, Hart, negaram a própria existência do direito
internacional, considerando-o como mero apêndice da moral internacional ou da
política internacional consoante o caso. Em razão disso, é necessário tentar encontrar o
seu fundamento.
Regra geral, a doutrina divide-se em duas grandes correntes: a voluntarista e a
não-voluntarista, dependendo do grau de participação do Estado. Não nos interessa
discutir esta questão neste momento. Em todo o caso sempre adiantaríamos que
qualquer fundamento do Direito Internacional à margem dos seus principais actores
não só é ineficaz, mas igualmente de duvidosa validade. São ainda os Estados que
fazem o Direito Internacional e é a sua adesão, por motivos de auto-interesse, que
sustentam a sua existência e é onde se encontra a sua vinculatividade. Estados possuem
uma dimensão cooperativa que lhes é ditada pelo seu interesse, tal como têm uma
dimensão conflitiva que surge da mesma fonte. Ora, a primeira dimensão responde
pela sua adesão às normas internacionais, seja individualmente, seja através de um
pacote de normas. Seja como for, o seu interesse a longo prazo, especialmente num
cenário de completa interdependência, impele-o em geral não só a aderir positivamente
ao processo legislativo internacional, como também a respeitar essas normas,
tornando-as não só válidas como eficazes. Assim, os Estados respeitam o direito
internacional porque lhes interessa viver numa ordem internacional submetida a
regras, na qual o fenômeno poder seja contido e, a menos que estejam em causa
questões vitais é mais provável que ele se submeta ao Direito Internacional. Aliás, de
facto, é raríssimo observar-se de forma ostensiva a negação do Direito Internacional
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por qualquer Estado. Antes, exploram indeterminações relativas em relação ao
significado das normas em seu benefício próprio. Porém, não será o que se faz em
qualquer sistema jurídico?
Uma outra questão poderá ser discutida. Muitos criticam a própria
possibilidade de existir um direito internacional sustentando que lhe faltam muitas dos
pressupostos básicos de qualquer sistema jurídico, designadamente normas
secundárias ou a ausência de coercibilidade. Trata-se de uma falsa questão.
Evidentemente o Direito Internacional possui normas secundárias e mecanismos
consensualizados de produção normativa; evidentemente ele é coercivo. Poderá ser um
sistema parcialmente descentralizado de produção normativa e a sua garantia ser, em
certos casos, descentralizada, porém, daí não se pode decorrer que nem uma nem a
outra estão presentes.
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