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Dinâmicas da imprensa clandestina e radical na Inglaterra seiscentista: o caso dos Estacionários ConfederadosVERÔNICA CALSONI LIMA * Ainda que muitos estudos a respeito da imprensa clandestina na Época Moderna tenham sido conduzidos por pesquisadores como Robert Darnton e Roger Chartier, esse campo permanece com muitas lacunas devido à grande dificuldade em mapear e analisar as dinâmicas de produção e difusão de textos ilegais ou controversos (DARNTON, 1992; CHARTIER, 2004). A escassez de informações sobre os custos de produção, o número de tiragens, as formas e rotas de distribuição, e os preços de venda de obras radicais são entraves para os historiadores dedicados a essa temática. A fim de contribuir com os campos da História do Livro e da História da Época Moderna, o presente paper visa analisar as estratégias de emissão e disseminação de impressos controversos e clandestinos a partir do caso do grupo conhecido como “Confederate Stationers” (em português, “Estacionários Confederados”), cuja atuação foi bastante evidente entre os anos de 1660 e 1664 na Inglaterra. O nome foi atribuído pelo censor Roger L’Estrange, que, enquanto investigava a propagação de textos antimonarquistas no período da Restauração, descobriu uma rede de impressores, livreiros e encadernadores engajados na publicação de obras contrárias à retomada do poder pela família Stuart. Seus ataques contra Carlos II levaram o censor a considerar os membros do grupo como “as Pessoas mais Perigosas de todas (...)(L’ESTRANGE, 1663:6) 1 . Composto pelos livreiros Giles e Elizabeth Calvert, Thomas e Anna Brewster, Livewell e Hannah Chapman, e Francis e Eleanor Smith; pelos impressores Simon e Joan Dover, e Thomas Creake; e pelos encadernadores George Thresher e Nathan Brooks (que também atuava como livreiro); o grupo foi responsável pela publicação de pelo menos 18 panfletos (entre primeiras edições e reimpressões) contrários ao regime monárquico. Contudo, podemos examinar suas atividades editoriais de forma mais evidente devido à propagação de cinco textos: The Speeches and Prayers (1660), A phenix (1661), e três partes de Mirabilis annus (1661 e 1662). Esses títulos foram considerados perigosos à manutenção da ordem e do 1 “The most Dangerous People of all (…)”. Tradução livre (L’ESTRANGE, 1663:6).

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Dinâmicas da imprensa clandestina e radical na Inglaterra seiscentista: o caso dos

“Estacionários Confederados”

VERÔNICA CALSONI LIMA*

Ainda que muitos estudos a respeito da imprensa clandestina na Época Moderna

tenham sido conduzidos por pesquisadores como Robert Darnton e Roger Chartier, esse

campo permanece com muitas lacunas devido à grande dificuldade em mapear e analisar as

dinâmicas de produção e difusão de textos ilegais ou controversos (DARNTON, 1992;

CHARTIER, 2004). A escassez de informações sobre os custos de produção, o número de

tiragens, as formas e rotas de distribuição, e os preços de venda de obras radicais são entraves

para os historiadores dedicados a essa temática. A fim de contribuir com os campos da

História do Livro e da História da Época Moderna, o presente paper visa analisar as

estratégias de emissão e disseminação de impressos controversos e clandestinos a partir do

caso do grupo conhecido como “Confederate Stationers” (em português, “Estacionários

Confederados”), cuja atuação foi bastante evidente entre os anos de 1660 e 1664 na Inglaterra.

O nome foi atribuído pelo censor Roger L’Estrange, que, enquanto investigava a

propagação de textos antimonarquistas no período da Restauração, descobriu uma rede de

impressores, livreiros e encadernadores engajados na publicação de obras contrárias à

retomada do poder pela família Stuart. Seus ataques contra Carlos II levaram o censor a

considerar os membros do grupo como “as Pessoas mais Perigosas de todas (...)”

(L’ESTRANGE, 1663:6)1.

Composto pelos livreiros Giles e Elizabeth Calvert, Thomas e Anna Brewster,

Livewell e Hannah Chapman, e Francis e Eleanor Smith; pelos impressores Simon e Joan

Dover, e Thomas Creake; e pelos encadernadores George Thresher e Nathan Brooks (que

também atuava como livreiro); o grupo foi responsável pela publicação de pelo menos 18

panfletos (entre primeiras edições e reimpressões) contrários ao regime monárquico. Contudo,

podemos examinar suas atividades editoriais de forma mais evidente devido à propagação de

cinco textos: The Speeches and Prayers (1660), A phenix (1661), e três partes de Mirabilis

annus (1661 e 1662). Esses títulos foram considerados perigosos à manutenção da ordem e do

1 “The most Dangerous People of all (…)”. Tradução livre (L’ESTRANGE, 1663:6).

2

governo recém restaurado – após os 20 anos de conflitos e tensões conhecidos como

Revolução Inglesa (1640-1660) –, consequentemente, os Confederados foram presos,

julgados e condenados entre 1663 e 1664.

Devido ao material coletado durante as investigações e à transcrição do julgamento

(posteriormente publicado), contamos com muitas informações a respeito dos processos de

impressão, edição e circulação desses panfletos. Sendo assim, na presente comunicação, nos

centramos na análise dos textos citados nos processos contra os Confederados, visando

apresentar algumas das dinâmicas de publicação articuladas por eles, bem como suas

estratégias para evitar os sistemas de controle da imprensa.

Censura e Estratégias de Publicação

A Restauração da monarquia, com a coroação de Carlos II em 1660, representou, para

muitos, uma derrota. Uma derrota da revolução iniciada em 1642, que parecia ter virado o

“mundo de ponta-cabeça”. Depois de anos de tensões, conflitos e rápidas mudanças no

sistema de governo, o regime monárquico se reassentou, concluindo o período de

efervescência de projetos políticos. Para muitos “radicais”2, a “experiência da derrota” levou

ao silenciamento, para outros, gerou revolta e novos protestos, que foram violentamente

contidos (HILL, 1987; HILL, 2016).

O caso dos Confederates demonstra-nos algumas das tentativas de retomar os projetos

vencidos. Suas críticas à Restauração pautavam-se num saudosismo a respeito do breve

período republicano, e no profetismo e apocalipticismo. A escatologia era o tom

frequentemente empregado nas críticas e nos projetos políticos difundidos por esses e outros

personagens. A chamada “good old cause” [boa e velha causa] era recorrentemente evocada

2 “Radical” era um termo comumente empregados pelos opositores aos movimentos contestatórios. Esses

personagens eram pejorativamente chamados de fanáticos, rebeldes, rebeliosos, entre outras expressões que

buscavam desacreditá-los perante a sociedade. Ainda que “radical” não seja, em uma perspectiva nominalista, a

melhor forma de nomear os grupos e sujeitos que atacavam as autoridades, visando desestabilizá-las e propor

outras formas de exercício político; recorremos ao termo, utilizando-o como uma categoria de análise para

caracterizar e compreender as ações desses personagens. Como apontado por Ariel Hessayon e David Finnegan,

“radical”, nesse sentido, pode ser mobilizado como uma ferramenta para a reflexão acerca dos movimentos

críticos à monarquia e às estruturas sociais seiscentistas (HESSAYON; FINNEGAN, 2011).

3

por partidários de um republicanismo devoto3, inspirado, especialmente, nos escritos de

Henry Vane (MAYERS, 2004). Os textos dos Confederates, assim, defendiam a necessidade

de restabelecer a Commonwealth não apenas por seus interesses políticos, mas por suas

expectativas da concretização dos desígnios divinos. Dessa maneira, os Estacionários

Confederados admitiam um “(...) estilo de propaganda anti-Restauração que se baseava em

sinais e presságios que foram interpretados como a desaprovação de Deus com o rei e o

governo (...)4” (BELL, 1992:12).

O monarca, por sua vez, respondia aos ataques por meio do enrijecimento das leis, dos

aprisionamentos e das execuções exemplares. Ao mesmo tempo, para lidar com as críticas

impressas, as políticas de censura da imprensa se tornaram cada vez mais rígidas na década de

1660. O rei tinha à sua disposição espiões e investigadores que rastreavam a produção

oposicionista e buscavam refreá-la com apreensão de materiais, multas e prisões. A

publicação de textos hostis ao regime ficou mais arriscada, o que passou a demandar o uso de

estratégias para evitar os sistemas de censura (ZOOK, 2013; GREAVES, 1986; MARSHALL,

1994; KEEBLE, 1987; KEEBLE, 2002). O anonimato, os imprints5 falsos, o uso de prensas

clandestinas, por exemplo, foram os meios aos quais os impressores e livreiros radicais, tais

como os Confederates, mais recorreram para se manterem ativos.

Utilizando esses recursos, em outubro de 1660, os Confederados publicaram The

Speeches and Prayers, reagindo à política persecutória do monarca. Durante o processo de

Restauração, nos acordos de Breda e nas proclamações subsequentes, o Stuart havia garantido

3 Ruth Mayers chama de “republicanos devotos” (em inglês, godly republicans) os autores que combinavam o

republicanismo às crenças religiosas, produzindo uma teoria que relacionava as Escrituras às “(...) fontes

autorizadas de ideias e retórica. O que distinguia suas visões sobre o governo futuro não era fé nos mecanismos

constitucionais precisos mas a preocupação com a retidão tanto no sistema como nos seus operadores”. Além

disso, “esperanças milenaristas do iminente reino de Cristo caracterizavam todos os republicanos teocráticos,

cujo otimismo era alimentado por uma aplicação poderosa da profecia bíblica à história recente”. “(…)

authoritative source of ideas and rhetoric. What distinguished their visions of the future government was not

Faith in precise constitutional mechanisms but a preoccupation with righteousness in both the system and its

operators”. “Millenarian hopes of Christ’s immediate reign characterized all theocratic republicans, whose

optimism was fed by a powerful application of biblical prophecy to recent history”. Tradução livre. (MAYERS,

2004:220-221). 4 “(...) anti-Restoration propaganda which relied on sings and portents which were interpreted as God’s

disapproval of king and government (…)”. Tradução livre (BELL, 1992:12). 5 Os imprints eram as inscrições dispostas no frontispícios dos impressos, normalmente na parte inferior da

página, que indicavam informações sobre sua produção. Seguindo a fórmula “printed by (nome do impressor),

for (nome do publisher), to be sold by (nome do livreiro) at his/her shop at (signo e endereço da livraria)”, o

imprint identificava os responsáveis materiais pela confecção do texto. (SHAABER,1944).

4

anistia com o Ato de Indenização e Esquecimento, que previa o perdão aos crimes cometidos

durante as Guerras Civis e o Interregno, inclusive para os responsáveis pela execução de

Carlos I em 1649. Pouco tempo depois, o rei descumpriu sua promessa, perseguindo e

punindo diversas pessoas, entre elas os regicidas, que acabaram condenados e executados

publicamente (NENNER, 2004).

O ato dividiu opiniões. Enquanto alguns argumentavam que a postura do rei fora justa,

outros denunciavam sua ilegalidade. Os Confederates criticaram o monarca por meio de The

Speeches and Prayers, no qual relatavam que a publicação do panfleto visava divulgar os

verdadeiros discursos e escritos finais dos regicidas. Em suas palavras,

Houve algumas razões especiais que nos moveram a empreender esta matéria:

primeiro, para evitar o erro que pode ser cometido para com os falecidos, e mais

especialmente ao nome de Deus, por cópias falsas e imperfeitas. Em segundo lugar,

para satisfazer os muitos na Cidade e no País que muito têm desejado isso [a

publicação do texto]. Em terceiro lugar, para deixar que todos vejam as riquezas da

graça louvada naqueles servos de Cristo. Em quarto lugar, que os homens possam

ver o que é ter um interesse em Cristo, na hora da morte, e ser fiel à sua causa. E por

fim, que todos os homens podem considerar e saber, que todo julgamento dos

homens será do Senhor (The speeches and prayers, 1660:s.n.p.)6.

O texto, assim, objetivava uma absolvição dos regicidas, descritos como mártires que

pereceram em nome da “boa e velha causa”. Não eram criminosos como outros tantos

panfletos apontavam, mas homens honrados que se preocupavam com o povo inglês e que

agora eram executados por um novo rei tirano. Rei esse que pecava ao assumir a postura de

juiz, exclusivamente pertencente a Deus, e condenar os heróis da Commonwealth

(JENKINSON, 2010:38; LIMA, 2016).

Aproveitando-se do intenso debate gerado pela execução, os Confederates apostaram

no sucesso do panfleto, tendo produzido uma tiragem alta para os padrões da época: 3.000

impressos (An exact narrative,1664). A Stationers’ Company delimitava um número máximo

6 “There hath some speciall reasons moved us to undertake this matter: as first, to prevent that wrong which

might be done to the deceased, and more especially to the name of God, by false and imperfect coppies.

Secondly, to satisfie those many in City and Country who have much desired it. Thirdly, to let all see the riches

of grace magnified in those servants of Christ. Fourthly, that men may see what it is to have an interest in Christ,

in a dying houre, and to be faithfull to his cause. And lastly, that all men may consider and know, that every

mans judgement shall be from the Lord”. Tradução livre. (The speeches and prayers, 1660, s.n.p.).

5

de 1.500 a 2.000 cópias, a fim de estimular a redistribuição de tipos e evitar a manutenção dos

mesmos moldes. Dessa maneira, a oferta de trabalho e de textos era assegurada. Para publicar

tiragens superiores, impressores e livreiros precisavam da autorização da Corporação

(RAYMOND, 2004:80). Certamente, o grupo não requisitou tal licença, uma vez que o texto

era completamente ilegal. A obra foi, então, publicada sem imprints, registros ou outros

documentos oficiais.

Além disso, a produção e a distribuição do panfleto foram organizadas de modo a

evitar a possibilidade de o grupo ser descoberto pelas autoridades. Os livreiros envolvidos na

produção de The Speeches and Prayers encomendaram o panfleto com tipógrafos diferentes,

que trabalhavam simultaneamente (provavelmente Simon Dover e Thomas Creake). Não era

incomum que livreiros-editores utilizassem mais de uma oficina de impressão para a

composição de alguma obra que necessitava ficar pronta com muita rapidez. Em geral, isso

ocorria com livros extensos, como Oceana de James Harrigton, nos quais os tipógrafos

dividiram diferentes partes do texto para que serem unidas posteriormente (HARRINGTON,

1656; FEATHER, 1977; POCOCK, 1977; LIMA, 2016). O caso da produção de The

Speeches and Prayers, no entanto, parece sugerir uma estratégia diferente, que privilegia a

dispersão do texto em mais de uma oficina, buscando evitar os censores, ou tentando garantir

que, numa eventual prisão, o investimento não fosse desperdiçado, pois outros tipógrafos

teriam cópias para serem comercializadas.

As diferentes composições podem ser evidenciadas se comparamos duas das edições

encontradas:

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Figura 1: Frontispício de The Speeches and Prayers.

Os frontispícios são diferentes textual e materialmente. Os títulos têm variações. Na

edição da esquerda, lemos The Speeches and Prayers of Some of the late King’s Judges e

depois os nomes dos condenados, enquanto na versão à direita, os nomes seguem-se

imediatamente depois de “The Speeches and Prayers”, não contendo a expressão “Juízes do

antigo Rei” para se referir aos regicidas. Além disso, os tipos e ornamentos empregados não

são os mesmos.

As disparidades sem mantém no restante da composição da obra, como podemos ver

na Figura 2. Enquanto a edição à esquerda é mais simples, sem adornos no cabeçalho, a

versão à direita conta com ornamentos e com uma capitular mais robusta. Os indícios

materiais ainda não são suficientes para distinguirmos os impressores responsáveis por elas,

mas nos servem para demonstrar a evidência de fragmentação do processo produtivo do

panfleto radical.

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Figura 2: Primeira folha de The Speeches and Prayers.

George Thresher, em seu depoimento, disse ter recebido 500 cópias para costurar antes

de sua prisão em setembro. Talvez as demais impressões tenham sido vendidas sem costuras,

ou tenham sido entregues a outro encadernador não identificado. A distribuição contou com

os Calverts, os Brewster, os Chapmans e também com Nathan Brooks, que enviou algumas

cópias para serem vendidas em outras localidades, como Leicester (An exact narrative, 1664).

Ainda que o conteúdo de The Speeches and Prayers tenha sido controverso, o governo

não procedera imediatamente contra ele, pois muitas pessoas comentavam o ocorrido, já que

as execuções foram públicas e um vasto número de súditos havia assistido aos discursos. Se

as autoridades se preocupassem em lançar uma versão “oficial” dos textos para desmentir

aquelas que honravam ou demonizavam os regicidas, estariam colaborando para a

publicização de um episódio que perturbava a autoridade real (JENKINSON, 2010).

Sem sofrer constrangimentos, o grupo continuou atuante. Em maio de 1661, eles

publicaram A Phenix, um panfleto que reagia ao decreto da Lei de Sedição. Sua promulgação

tornava ilegal todas as manifestações contra o governo, entre elas a aliança conhecida como

Solemn League and Covenant. A Liga fora fundada em 1643 por escoceses e ingleses unidos

contra a dinastia Stuart. A partir de 1661, qualquer menção à Liga passou a ser vista como ato

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de rebeldia, passível de punição. E para extinguir os resquícios da luta antirrealista, Carlos II

determinou a proibição da circulação do manifesto de 1643, ordenando a queima pública de

suas cópias (PARLIAMENT, 1661).

A reação dos Confederates foi retomar os preceitos da Solemn League and Covenant,

publicando-os novamente, juntamente com um prefácio que alertava para a necessidade de

relembrar os designíos de Deus. Ao mesmo tempo, os estacionários anexaram ao panfleto os

decretos que encerraram a Liga, destacando as trágicas consequências disso. Segundo os

Confederados, o firmamento da aliança não fora apenas entre homens, mas também teve a

participação divina. Nesse sentido, rompê-la era também romper com Deus, favorecendo,

portanto, as forças demoníacas. O Senhor, por sua vez, não permitiria que Carlos II

condenasse os ingleses dessa forma, Ele reagiria, fazendo com que a Liga ressurgisse com

ainda mais força para extirpar a tirania. O título “Fênix” fazia plena referência a isso. A ave

mitológica que renascia das próprias cinzas era comparada ao manifesto da Liga que, depois

de queimado, faria com que a aliança também renascesse (A phenix, 1661).

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Figura 3: Frontispício de A Phenix.

A lembrança da Solemn League and Covenant era evocada, ainda, em outras partes do

panfleto. Além do título, o frontispício da obra indicava a data de publicação como “o ano do

rompimento da Liga”. O imprint também informava que o texto teria sido impresso em

Edimburgo na Escócia, fazendo evidente referência ao outro povo que se uniu aos ingleses

(ver Figura 3). O texto, entretanto, foi produzido em Londres, pelas prensas de Thomas

Creake, Simon Dover e, possivelmente, Nathan Brooks (An exact narrative, 1664).

Estima-se que tenham sido feitas cerca de 2.000 cópias, das quais 660 foram impressas

por Creake, e o restante provavelmente foi dividido entre os demais tipógrafos (An exact

narrative, 1664). Depois de impressas, as folhas foram encaminhadas para George Thresher,

que as costurou por 13 pennies cada (GREEN, 1861:23). Posteriormente, os panfletos

retornaram para as mãos dos livreiros-editores que o encomendaram: Giles e Elizabeth

Calvert, Livewell Chapman e Thomas Brewster. Além disso, ao menos seis cópias foram

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encaminhadas para Bristol, por meio da interlocução entre os Calverts e seu antigo aprendiz,

Richard Moone (BELL, 1992).

O panfleto oposicionista chamou a atenção das autoridades, que logo começaram a

investigar as atividades dos estacionários. Censores e espiões rastrearam as publicações,

aproveitando-se dos vestígios materiais deixados nas cópias. Ao final de junho de 1661,

tinham informações sobre a participação de Chapman na produção de A Phenix, bem como

listaram 15 pessoas suspeitas, entre elas Francis Smith e Thomas Brewster. As investigações

desembocaram na prisão e nos depoimentos de Giles Calvert e Thomas Creake (GREEN,

1861:23, 87; PRO SP 29/38/121, 123; 29/41/110).

Em seu testemunho, Calvert atribuía a responsabilidade da publicação sediciosa

apenas a Chapman e Brewster. Enquanto isso, Creake dera detalhes sobre a impressão dos

textos e afirmava que a encomenda havia sido feita pelos três livreiros. Além disso, os dois

depoentes deram informações sobre uma obra ainda em processo de produção: Mirabilis

annus. A impressão, encadernação e publicação não foi interrompida enquanto esses

estacionários estavam detidos. Elizabeth Calvert, Hannah Chapman, Anne Brewster –

Livewell Chapman e Thomas Brewster fugiram de Londres após as acusações –, os Smiths, os

Dovers e George Thresher continuaram trabalhando na emissão e dispersão das 2.000 cópias

da obra em Londres, Bristol – por meio de Richard Moone – e Leicester – através de Nathan

Brooks (GREEN, 1861:23, 87; PRO SP 29/38/121, 123; 29/41/110).

O novo libelo apelava novamente para a autoridade das Escrituras para demandar o

fim do reinado do Stuart. Apoiando-se na tradição dos presságios de anos maravilhosos e

auspiciosos, o panfleto demonstrava por meio de fenômenos e acontecimentos naturais e

sociais que o Fim dos Tempos estava por vir. Ainda que o texto não fizesse menções diretas a

Carlos II, o prefácio guiava essa leitura. Nele, eram narrados exemplos de soberanos do

passado que pereceram logo após o aparecimento desses mesmos presságios, sendo assim,

esperava-se que a história se repetisse e que o governante coetâneo também fosse removido

do poder. Essa era a vontade de Deus, Ele agia e prometia que a monarquia não resistiria

(Mirabilis annus, 1661).

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Figura 4: Gravuras em Mirabilis annus.

Tais sinais proféticos foram, também, representados imageticamente por meio de

gravuras encontradas no início de uma das edições do texto (Figura 4). As figuras

representavam algumas das previsões, tais como o aparecimento de cometas e estrelas

cadentes, mortes, incêndios, entre outros. Não foi possível, ainda, identificar a autoria e a

proveniência das gravuras. Também não podemos afirmar se sua composição foi, de fato,

contemporânea à produção do texto, podendo ter sido anexada posteriormente.

É interessante notar que outra edição simultânea a essa, não contém as imagens.

Novamente, isso nos leva a considerar a prática da distribuição das atividades entre mais de

um estacionário. Creake confirma ter recebido parte da encomenda para imprimir, enquanto o

restante fora fabricado por Dover (An exact narrative, 1664). O uso das duas prensas

simultâneas pode ser evidenciado tanto na ausência e na presença das gravuras, como no uso

de diferentes tipos:

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Figura 5: Primeira página de Mirabilis annus.

A edição que contém as gravuras, à esquerda, é mais longa (98 páginas), pois o

aproveitamento do espaço das folhas foi menor. Os tipos são maiores e mais dispersos do que

na outra cópia (à direita), que contém 70 páginas. As capitulares e os adornos aplicados

também divergem. Ainda que a versão ilustrada pareça ter sido impressa mais

cuidadosamente, vale ressaltar que todos os textos dos Confederates possuem erros de

paginação e/ou de composição. Isso pode ser uma consequência da produção acelerada, mais

preocupada com a rapidez da dispersão das críticas ao governo do que com a qualidade dos

panfletos, inclusive porque esses eram preparados para um mercado efêmero.

Mesmo se valendo da fragmentação do trabalho editorial, os Confederates não

puderam evitar os censores por muito tempo. Em setembro de 1661, devido às contínuas

investigações, declarações e prisões, George Thresher e Francis Smith também acabaram

encarcerados. Thresher contou mais detalhes sobre a produção das obras, bem como

confirmou a participação de Francis Smith nas publicações (PRO SP 29/41/110).

Roger L’Estrange, que participava ativamente das investigações, publicou panfletos

denunciando as atividades sediciosas dos estacionários. Em seu A modest plea, ele apresentou

as informações que havia coletado até o momento e denunciava a existência de um complô de

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estacionários sediciosos que se dedicavam a atacar o rei. A Phenix e Mirabilis annus eram

citados, assim como Giles Calvert, Thomas Brewster e Livewell Chapman (L’ESTRANGE,

1661).

Logo em seguida, Elizabeth Calvert também foi presa em outubro de 1661. E em

1662, a perseguição ao grupo se intensificou (BELL, 1992). L’Estrange voltou a atacá-los em

seu Truth and loyalty vindicated (L’ESTRANGE, 1662). E a monarquia de Carlos II agiu

promulgando dois novos decretos: o de Uniformidade, determinando a obrigatoriedade do uso

do Livro de Orações Comuns e o respeito aos preceitos da Igreja Anglicana (aqueles que

desviassem das doutrinas seriam considerados “não-conformistas”); e o de Licenciamento da

Imprensa, que reforçava todas as leis anteriores sobre o registro prévio das obras, bem como

instituía medidas mais rigorosas sobre a fiscalização da imprensa (KEEBLE, 2002).

Com as diversas prisões e fugas dos estacionários radicais, a impressão e a distribuição

desses libelos foi encabeçada pelas esposas dos estacionários: Elizabeth Calvert (que deixara

a prisão em dezembro de 1661), Hannah Chapman, Anna Brewster, Joan Dover e Eleanor

Smith (BELL, 1992; LIMA, 2016). Ao mesmo tempo, os processos de produção foram

prejudicados pelas investidas das autoridades. A continuidade de Mirabilis annus foi impressa

com diversos erros, pelos quais as Confederadas se desculparam:

Tendo finalmente, através da assistência da Providência, superado as muitas

interrupções que acometeram à Imprensa, nós conseguimos (apesar de muito mais

tarde do que nós prometemos, e de fato do que pretendemos) pelo menos trazer ao

Mundo a Segunda Parte dos Prodígios deste ano (Mirabilis annus secundus, 1662).

Embora tenham conseguido manter suas prensas e livrarias operando clandestinamente

ao longo de 1662 e 1663, os Confederados (e as Confederadas) não conseguiram evitar os

constrangimentos dos censores por muito tempo, pois reformas nos sistemas de controle da

imprensa foram implantadas, forçando a desarticulação do grupo.

Articulações e Desarticulações

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As autoridades empenharam-se em conter a propagação de obras sediciosas e

L’Estrange continuou suas exclamações contra a imprensa radical, apontando os

Confederados como uns dos principais expoentes da sedição na Inglaterra. Em seu

Considerations and proposals in order to the regulation of the press (1663), L’Estrange

insistia na necessidade de serem criados instrumentos de controle mais efetivos, pois o

licenciamento feito pela Stationers’ Company não era o suficiente para refrear a emissão e

circulação de textos ilegais. A Corporação servia muito mais para regular os interesses e as

dinâmicas do mercado livreiro, do que censurar conteúdos moral, política e religiosamente

dissidentes (L’ESTRANGE, 1663).

Carlos II parece ter concordado com as sugestões apresentadas por L’Estrange e, no

mesmo ano, reforçou a severidade dos sistemas de controle e instituiu o autor como Surveyor

of the Press, concedendo-lhe autoridade o suficiente para proceder contra os infratores das

leis de censura. A partir de então, a empreitada de L’Estrange contra os Confederados tornou-

se mais intensa. Ele conseguiu mais depoimentos, bem como emitiu mandatos de prisão para

os impressores e livreiros do grupo. Suas ações levaram a um julgamento em 1664, no qual as

atividades dos estacionários foram examinadas em detalhe (KEEBLE, 2002).

Brewster, Creake, Dover, Brooks e Thresher foram processados em fevereiro. Calvert

já havia falecido depois de ficar com a saúde debilitada com tantas prisões. Chapman estava

na cadeia, mas não foi levado à julgamento, provavelmente por sua delicada situação de saúde

(o livreiro morreu no ano seguinte). Creake e Thresher colaboraram ativamente com as

investigações de L’Estrange, fornecendo detalhes importantes sobre a produção dos libelos

sediciosos, por essa razão não receberam duras penas. Brewster, Dover e Brooks – embora

tenham argumentado acerca da mecanicidade de suas atividades, buscando se isentar da

responsabilidade sobre os conteúdos difundidos – acabaram sendo considerados culpados por

sedição. Foram condenados à prisão e ao pagamento de multas, que dificultaram a

manutenção de seus trabalhos (An exact narrative, 1664; BELL, 1992; GREAVES, 1986,

LIMA, 2016).

Até meados dos anos 1660, a rede estabelecida pelos Confederados já havia sido

desfeita pela pressão dos censores. Brewster logo faleceu. Hannah e Livewell Chapman

também morreram pouco depois, provavelmente vítimas da peste que assolava a Inglaterra.

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Elizabeth Calvert, Anna Brewster, Joan Dover e os Smiths, entretanto, continuaram ativos

quase até o final do século XVII (BELL, 1992).

Considerações Finais

Analisando as ações dos Confederate Stationers nos anos 1660, conseguimos

identificar algumas movimentações e dinâmicas dos processos de impressão, distribuição e

recepção dos panfletos do grupo. Expressamos as articulações dessa rede de produção e

circulação de impressos radicais no diagrama a seguir:

Figura 6: Modelo de articulação de estacionários radicais.

Consideramos três tipos de conexão, de acordo com a frequência de suas ocorrências: as que

acontecem em todos os casos; as que nem sempre são presentes (ou evidentes); e as

interferências externas à própria rede, desempenhadas pela censura. Autores e livreiros

sempre dialogam para a composição do texto, que segue para, no mínimo, dois impressores

(que dependem de fornecedores de tintas, papéis e outros materiais) e, eventualmente,

encadernadores. A distribuição é encabeçada pelos mesmos livreiros, que centralizam todo

processo de produção e dispersão dos textos, representando uns dos personagens mais

importantes das redes, uma vez que estabelecem a mediação entre as demais etapas. Em

alguns casos, os textos podem ser publicizados por meio de propagandas, anúncios em

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periódicos, ou mesmo comentários em outros impressos. Por exemplo, ao criticar as obras dos

Confederates em seus textos, L’Estrange as denunciava ao mesmo tempo em que aumentava a

exposição de seus conteúdos, estimulando o interesse do público nas polêmicas em voga. O

texto chega ao público, por diferentes meios. Eles podem ser comprados, lidos, ouvidos em

voz alta ou mesmo conhecidos indiretamente (através de outras obras e/ou debates). As

respostas dos leitores podem chegar aos autores e livreiros, que as tomarão como termômetro

para suas próximas produções. Por fim, cabe falar dos censores. Em nossa interpretação, eles

são mediadores tão importantes quanto os livreiros, pois interferem em todas as fases de

produção, distribuição e recepção das obras. As investigações, prisões, multas e apreensão de

materiais podem interromper, atrasar ou mesmo adiantar a edição e impressão de um panfleto,

bem como podem afetar as formas de venda, distribuição, compra e leitura.

Nosso modelo, contudo, ainda é incompleto. Necessitamos de mais informações para

refinar nossa leitura sobre os processos de escrita, edição, confecção, distribuição e recepção

dos textos radicais. Ao mesmo tempo, faz-se necessário identificar e incluir várias formas de

conexão estabelecidas no mercado livreiro, que não se pautam apenas nas trocas ou nos

processos produtivos, tais como as relações familiares, pessoais, políticas, de competição, de

colaboração, entre outras. Pretendemos refiná-lo nos próximos anos de nossa pesquisa de

doutorado de modo a problematizar e examinar algumas das formas pelas quais o mercado

livreiro de obras radicais podia se organizar na Época Moderna.

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