Sistema Educacional Brasileiro histórico, entraves e perspectivas
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Dinâmicas da imprensa clandestina e radical na Inglaterra seiscentista: o caso dos
“Estacionários Confederados”
VERÔNICA CALSONI LIMA*
Ainda que muitos estudos a respeito da imprensa clandestina na Época Moderna
tenham sido conduzidos por pesquisadores como Robert Darnton e Roger Chartier, esse
campo permanece com muitas lacunas devido à grande dificuldade em mapear e analisar as
dinâmicas de produção e difusão de textos ilegais ou controversos (DARNTON, 1992;
CHARTIER, 2004). A escassez de informações sobre os custos de produção, o número de
tiragens, as formas e rotas de distribuição, e os preços de venda de obras radicais são entraves
para os historiadores dedicados a essa temática. A fim de contribuir com os campos da
História do Livro e da História da Época Moderna, o presente paper visa analisar as
estratégias de emissão e disseminação de impressos controversos e clandestinos a partir do
caso do grupo conhecido como “Confederate Stationers” (em português, “Estacionários
Confederados”), cuja atuação foi bastante evidente entre os anos de 1660 e 1664 na Inglaterra.
O nome foi atribuído pelo censor Roger L’Estrange, que, enquanto investigava a
propagação de textos antimonarquistas no período da Restauração, descobriu uma rede de
impressores, livreiros e encadernadores engajados na publicação de obras contrárias à
retomada do poder pela família Stuart. Seus ataques contra Carlos II levaram o censor a
considerar os membros do grupo como “as Pessoas mais Perigosas de todas (...)”
(L’ESTRANGE, 1663:6)1.
Composto pelos livreiros Giles e Elizabeth Calvert, Thomas e Anna Brewster,
Livewell e Hannah Chapman, e Francis e Eleanor Smith; pelos impressores Simon e Joan
Dover, e Thomas Creake; e pelos encadernadores George Thresher e Nathan Brooks (que
também atuava como livreiro); o grupo foi responsável pela publicação de pelo menos 18
panfletos (entre primeiras edições e reimpressões) contrários ao regime monárquico. Contudo,
podemos examinar suas atividades editoriais de forma mais evidente devido à propagação de
cinco textos: The Speeches and Prayers (1660), A phenix (1661), e três partes de Mirabilis
annus (1661 e 1662). Esses títulos foram considerados perigosos à manutenção da ordem e do
1 “The most Dangerous People of all (…)”. Tradução livre (L’ESTRANGE, 1663:6).
2
governo recém restaurado – após os 20 anos de conflitos e tensões conhecidos como
Revolução Inglesa (1640-1660) –, consequentemente, os Confederados foram presos,
julgados e condenados entre 1663 e 1664.
Devido ao material coletado durante as investigações e à transcrição do julgamento
(posteriormente publicado), contamos com muitas informações a respeito dos processos de
impressão, edição e circulação desses panfletos. Sendo assim, na presente comunicação, nos
centramos na análise dos textos citados nos processos contra os Confederados, visando
apresentar algumas das dinâmicas de publicação articuladas por eles, bem como suas
estratégias para evitar os sistemas de controle da imprensa.
Censura e Estratégias de Publicação
A Restauração da monarquia, com a coroação de Carlos II em 1660, representou, para
muitos, uma derrota. Uma derrota da revolução iniciada em 1642, que parecia ter virado o
“mundo de ponta-cabeça”. Depois de anos de tensões, conflitos e rápidas mudanças no
sistema de governo, o regime monárquico se reassentou, concluindo o período de
efervescência de projetos políticos. Para muitos “radicais”2, a “experiência da derrota” levou
ao silenciamento, para outros, gerou revolta e novos protestos, que foram violentamente
contidos (HILL, 1987; HILL, 2016).
O caso dos Confederates demonstra-nos algumas das tentativas de retomar os projetos
vencidos. Suas críticas à Restauração pautavam-se num saudosismo a respeito do breve
período republicano, e no profetismo e apocalipticismo. A escatologia era o tom
frequentemente empregado nas críticas e nos projetos políticos difundidos por esses e outros
personagens. A chamada “good old cause” [boa e velha causa] era recorrentemente evocada
2 “Radical” era um termo comumente empregados pelos opositores aos movimentos contestatórios. Esses
personagens eram pejorativamente chamados de fanáticos, rebeldes, rebeliosos, entre outras expressões que
buscavam desacreditá-los perante a sociedade. Ainda que “radical” não seja, em uma perspectiva nominalista, a
melhor forma de nomear os grupos e sujeitos que atacavam as autoridades, visando desestabilizá-las e propor
outras formas de exercício político; recorremos ao termo, utilizando-o como uma categoria de análise para
caracterizar e compreender as ações desses personagens. Como apontado por Ariel Hessayon e David Finnegan,
“radical”, nesse sentido, pode ser mobilizado como uma ferramenta para a reflexão acerca dos movimentos
críticos à monarquia e às estruturas sociais seiscentistas (HESSAYON; FINNEGAN, 2011).
3
por partidários de um republicanismo devoto3, inspirado, especialmente, nos escritos de
Henry Vane (MAYERS, 2004). Os textos dos Confederates, assim, defendiam a necessidade
de restabelecer a Commonwealth não apenas por seus interesses políticos, mas por suas
expectativas da concretização dos desígnios divinos. Dessa maneira, os Estacionários
Confederados admitiam um “(...) estilo de propaganda anti-Restauração que se baseava em
sinais e presságios que foram interpretados como a desaprovação de Deus com o rei e o
governo (...)4” (BELL, 1992:12).
O monarca, por sua vez, respondia aos ataques por meio do enrijecimento das leis, dos
aprisionamentos e das execuções exemplares. Ao mesmo tempo, para lidar com as críticas
impressas, as políticas de censura da imprensa se tornaram cada vez mais rígidas na década de
1660. O rei tinha à sua disposição espiões e investigadores que rastreavam a produção
oposicionista e buscavam refreá-la com apreensão de materiais, multas e prisões. A
publicação de textos hostis ao regime ficou mais arriscada, o que passou a demandar o uso de
estratégias para evitar os sistemas de censura (ZOOK, 2013; GREAVES, 1986; MARSHALL,
1994; KEEBLE, 1987; KEEBLE, 2002). O anonimato, os imprints5 falsos, o uso de prensas
clandestinas, por exemplo, foram os meios aos quais os impressores e livreiros radicais, tais
como os Confederates, mais recorreram para se manterem ativos.
Utilizando esses recursos, em outubro de 1660, os Confederados publicaram The
Speeches and Prayers, reagindo à política persecutória do monarca. Durante o processo de
Restauração, nos acordos de Breda e nas proclamações subsequentes, o Stuart havia garantido
3 Ruth Mayers chama de “republicanos devotos” (em inglês, godly republicans) os autores que combinavam o
republicanismo às crenças religiosas, produzindo uma teoria que relacionava as Escrituras às “(...) fontes
autorizadas de ideias e retórica. O que distinguia suas visões sobre o governo futuro não era fé nos mecanismos
constitucionais precisos mas a preocupação com a retidão tanto no sistema como nos seus operadores”. Além
disso, “esperanças milenaristas do iminente reino de Cristo caracterizavam todos os republicanos teocráticos,
cujo otimismo era alimentado por uma aplicação poderosa da profecia bíblica à história recente”. “(…)
authoritative source of ideas and rhetoric. What distinguished their visions of the future government was not
Faith in precise constitutional mechanisms but a preoccupation with righteousness in both the system and its
operators”. “Millenarian hopes of Christ’s immediate reign characterized all theocratic republicans, whose
optimism was fed by a powerful application of biblical prophecy to recent history”. Tradução livre. (MAYERS,
2004:220-221). 4 “(...) anti-Restoration propaganda which relied on sings and portents which were interpreted as God’s
disapproval of king and government (…)”. Tradução livre (BELL, 1992:12). 5 Os imprints eram as inscrições dispostas no frontispícios dos impressos, normalmente na parte inferior da
página, que indicavam informações sobre sua produção. Seguindo a fórmula “printed by (nome do impressor),
for (nome do publisher), to be sold by (nome do livreiro) at his/her shop at (signo e endereço da livraria)”, o
imprint identificava os responsáveis materiais pela confecção do texto. (SHAABER,1944).
4
anistia com o Ato de Indenização e Esquecimento, que previa o perdão aos crimes cometidos
durante as Guerras Civis e o Interregno, inclusive para os responsáveis pela execução de
Carlos I em 1649. Pouco tempo depois, o rei descumpriu sua promessa, perseguindo e
punindo diversas pessoas, entre elas os regicidas, que acabaram condenados e executados
publicamente (NENNER, 2004).
O ato dividiu opiniões. Enquanto alguns argumentavam que a postura do rei fora justa,
outros denunciavam sua ilegalidade. Os Confederates criticaram o monarca por meio de The
Speeches and Prayers, no qual relatavam que a publicação do panfleto visava divulgar os
verdadeiros discursos e escritos finais dos regicidas. Em suas palavras,
Houve algumas razões especiais que nos moveram a empreender esta matéria:
primeiro, para evitar o erro que pode ser cometido para com os falecidos, e mais
especialmente ao nome de Deus, por cópias falsas e imperfeitas. Em segundo lugar,
para satisfazer os muitos na Cidade e no País que muito têm desejado isso [a
publicação do texto]. Em terceiro lugar, para deixar que todos vejam as riquezas da
graça louvada naqueles servos de Cristo. Em quarto lugar, que os homens possam
ver o que é ter um interesse em Cristo, na hora da morte, e ser fiel à sua causa. E por
fim, que todos os homens podem considerar e saber, que todo julgamento dos
homens será do Senhor (The speeches and prayers, 1660:s.n.p.)6.
O texto, assim, objetivava uma absolvição dos regicidas, descritos como mártires que
pereceram em nome da “boa e velha causa”. Não eram criminosos como outros tantos
panfletos apontavam, mas homens honrados que se preocupavam com o povo inglês e que
agora eram executados por um novo rei tirano. Rei esse que pecava ao assumir a postura de
juiz, exclusivamente pertencente a Deus, e condenar os heróis da Commonwealth
(JENKINSON, 2010:38; LIMA, 2016).
Aproveitando-se do intenso debate gerado pela execução, os Confederates apostaram
no sucesso do panfleto, tendo produzido uma tiragem alta para os padrões da época: 3.000
impressos (An exact narrative,1664). A Stationers’ Company delimitava um número máximo
6 “There hath some speciall reasons moved us to undertake this matter: as first, to prevent that wrong which
might be done to the deceased, and more especially to the name of God, by false and imperfect coppies.
Secondly, to satisfie those many in City and Country who have much desired it. Thirdly, to let all see the riches
of grace magnified in those servants of Christ. Fourthly, that men may see what it is to have an interest in Christ,
in a dying houre, and to be faithfull to his cause. And lastly, that all men may consider and know, that every
mans judgement shall be from the Lord”. Tradução livre. (The speeches and prayers, 1660, s.n.p.).
5
de 1.500 a 2.000 cópias, a fim de estimular a redistribuição de tipos e evitar a manutenção dos
mesmos moldes. Dessa maneira, a oferta de trabalho e de textos era assegurada. Para publicar
tiragens superiores, impressores e livreiros precisavam da autorização da Corporação
(RAYMOND, 2004:80). Certamente, o grupo não requisitou tal licença, uma vez que o texto
era completamente ilegal. A obra foi, então, publicada sem imprints, registros ou outros
documentos oficiais.
Além disso, a produção e a distribuição do panfleto foram organizadas de modo a
evitar a possibilidade de o grupo ser descoberto pelas autoridades. Os livreiros envolvidos na
produção de The Speeches and Prayers encomendaram o panfleto com tipógrafos diferentes,
que trabalhavam simultaneamente (provavelmente Simon Dover e Thomas Creake). Não era
incomum que livreiros-editores utilizassem mais de uma oficina de impressão para a
composição de alguma obra que necessitava ficar pronta com muita rapidez. Em geral, isso
ocorria com livros extensos, como Oceana de James Harrigton, nos quais os tipógrafos
dividiram diferentes partes do texto para que serem unidas posteriormente (HARRINGTON,
1656; FEATHER, 1977; POCOCK, 1977; LIMA, 2016). O caso da produção de The
Speeches and Prayers, no entanto, parece sugerir uma estratégia diferente, que privilegia a
dispersão do texto em mais de uma oficina, buscando evitar os censores, ou tentando garantir
que, numa eventual prisão, o investimento não fosse desperdiçado, pois outros tipógrafos
teriam cópias para serem comercializadas.
As diferentes composições podem ser evidenciadas se comparamos duas das edições
encontradas:
6
Figura 1: Frontispício de The Speeches and Prayers.
Os frontispícios são diferentes textual e materialmente. Os títulos têm variações. Na
edição da esquerda, lemos The Speeches and Prayers of Some of the late King’s Judges e
depois os nomes dos condenados, enquanto na versão à direita, os nomes seguem-se
imediatamente depois de “The Speeches and Prayers”, não contendo a expressão “Juízes do
antigo Rei” para se referir aos regicidas. Além disso, os tipos e ornamentos empregados não
são os mesmos.
As disparidades sem mantém no restante da composição da obra, como podemos ver
na Figura 2. Enquanto a edição à esquerda é mais simples, sem adornos no cabeçalho, a
versão à direita conta com ornamentos e com uma capitular mais robusta. Os indícios
materiais ainda não são suficientes para distinguirmos os impressores responsáveis por elas,
mas nos servem para demonstrar a evidência de fragmentação do processo produtivo do
panfleto radical.
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Figura 2: Primeira folha de The Speeches and Prayers.
George Thresher, em seu depoimento, disse ter recebido 500 cópias para costurar antes
de sua prisão em setembro. Talvez as demais impressões tenham sido vendidas sem costuras,
ou tenham sido entregues a outro encadernador não identificado. A distribuição contou com
os Calverts, os Brewster, os Chapmans e também com Nathan Brooks, que enviou algumas
cópias para serem vendidas em outras localidades, como Leicester (An exact narrative, 1664).
Ainda que o conteúdo de The Speeches and Prayers tenha sido controverso, o governo
não procedera imediatamente contra ele, pois muitas pessoas comentavam o ocorrido, já que
as execuções foram públicas e um vasto número de súditos havia assistido aos discursos. Se
as autoridades se preocupassem em lançar uma versão “oficial” dos textos para desmentir
aquelas que honravam ou demonizavam os regicidas, estariam colaborando para a
publicização de um episódio que perturbava a autoridade real (JENKINSON, 2010).
Sem sofrer constrangimentos, o grupo continuou atuante. Em maio de 1661, eles
publicaram A Phenix, um panfleto que reagia ao decreto da Lei de Sedição. Sua promulgação
tornava ilegal todas as manifestações contra o governo, entre elas a aliança conhecida como
Solemn League and Covenant. A Liga fora fundada em 1643 por escoceses e ingleses unidos
contra a dinastia Stuart. A partir de 1661, qualquer menção à Liga passou a ser vista como ato
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de rebeldia, passível de punição. E para extinguir os resquícios da luta antirrealista, Carlos II
determinou a proibição da circulação do manifesto de 1643, ordenando a queima pública de
suas cópias (PARLIAMENT, 1661).
A reação dos Confederates foi retomar os preceitos da Solemn League and Covenant,
publicando-os novamente, juntamente com um prefácio que alertava para a necessidade de
relembrar os designíos de Deus. Ao mesmo tempo, os estacionários anexaram ao panfleto os
decretos que encerraram a Liga, destacando as trágicas consequências disso. Segundo os
Confederados, o firmamento da aliança não fora apenas entre homens, mas também teve a
participação divina. Nesse sentido, rompê-la era também romper com Deus, favorecendo,
portanto, as forças demoníacas. O Senhor, por sua vez, não permitiria que Carlos II
condenasse os ingleses dessa forma, Ele reagiria, fazendo com que a Liga ressurgisse com
ainda mais força para extirpar a tirania. O título “Fênix” fazia plena referência a isso. A ave
mitológica que renascia das próprias cinzas era comparada ao manifesto da Liga que, depois
de queimado, faria com que a aliança também renascesse (A phenix, 1661).
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Figura 3: Frontispício de A Phenix.
A lembrança da Solemn League and Covenant era evocada, ainda, em outras partes do
panfleto. Além do título, o frontispício da obra indicava a data de publicação como “o ano do
rompimento da Liga”. O imprint também informava que o texto teria sido impresso em
Edimburgo na Escócia, fazendo evidente referência ao outro povo que se uniu aos ingleses
(ver Figura 3). O texto, entretanto, foi produzido em Londres, pelas prensas de Thomas
Creake, Simon Dover e, possivelmente, Nathan Brooks (An exact narrative, 1664).
Estima-se que tenham sido feitas cerca de 2.000 cópias, das quais 660 foram impressas
por Creake, e o restante provavelmente foi dividido entre os demais tipógrafos (An exact
narrative, 1664). Depois de impressas, as folhas foram encaminhadas para George Thresher,
que as costurou por 13 pennies cada (GREEN, 1861:23). Posteriormente, os panfletos
retornaram para as mãos dos livreiros-editores que o encomendaram: Giles e Elizabeth
Calvert, Livewell Chapman e Thomas Brewster. Além disso, ao menos seis cópias foram
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encaminhadas para Bristol, por meio da interlocução entre os Calverts e seu antigo aprendiz,
Richard Moone (BELL, 1992).
O panfleto oposicionista chamou a atenção das autoridades, que logo começaram a
investigar as atividades dos estacionários. Censores e espiões rastrearam as publicações,
aproveitando-se dos vestígios materiais deixados nas cópias. Ao final de junho de 1661,
tinham informações sobre a participação de Chapman na produção de A Phenix, bem como
listaram 15 pessoas suspeitas, entre elas Francis Smith e Thomas Brewster. As investigações
desembocaram na prisão e nos depoimentos de Giles Calvert e Thomas Creake (GREEN,
1861:23, 87; PRO SP 29/38/121, 123; 29/41/110).
Em seu testemunho, Calvert atribuía a responsabilidade da publicação sediciosa
apenas a Chapman e Brewster. Enquanto isso, Creake dera detalhes sobre a impressão dos
textos e afirmava que a encomenda havia sido feita pelos três livreiros. Além disso, os dois
depoentes deram informações sobre uma obra ainda em processo de produção: Mirabilis
annus. A impressão, encadernação e publicação não foi interrompida enquanto esses
estacionários estavam detidos. Elizabeth Calvert, Hannah Chapman, Anne Brewster –
Livewell Chapman e Thomas Brewster fugiram de Londres após as acusações –, os Smiths, os
Dovers e George Thresher continuaram trabalhando na emissão e dispersão das 2.000 cópias
da obra em Londres, Bristol – por meio de Richard Moone – e Leicester – através de Nathan
Brooks (GREEN, 1861:23, 87; PRO SP 29/38/121, 123; 29/41/110).
O novo libelo apelava novamente para a autoridade das Escrituras para demandar o
fim do reinado do Stuart. Apoiando-se na tradição dos presságios de anos maravilhosos e
auspiciosos, o panfleto demonstrava por meio de fenômenos e acontecimentos naturais e
sociais que o Fim dos Tempos estava por vir. Ainda que o texto não fizesse menções diretas a
Carlos II, o prefácio guiava essa leitura. Nele, eram narrados exemplos de soberanos do
passado que pereceram logo após o aparecimento desses mesmos presságios, sendo assim,
esperava-se que a história se repetisse e que o governante coetâneo também fosse removido
do poder. Essa era a vontade de Deus, Ele agia e prometia que a monarquia não resistiria
(Mirabilis annus, 1661).
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Figura 4: Gravuras em Mirabilis annus.
Tais sinais proféticos foram, também, representados imageticamente por meio de
gravuras encontradas no início de uma das edições do texto (Figura 4). As figuras
representavam algumas das previsões, tais como o aparecimento de cometas e estrelas
cadentes, mortes, incêndios, entre outros. Não foi possível, ainda, identificar a autoria e a
proveniência das gravuras. Também não podemos afirmar se sua composição foi, de fato,
contemporânea à produção do texto, podendo ter sido anexada posteriormente.
É interessante notar que outra edição simultânea a essa, não contém as imagens.
Novamente, isso nos leva a considerar a prática da distribuição das atividades entre mais de
um estacionário. Creake confirma ter recebido parte da encomenda para imprimir, enquanto o
restante fora fabricado por Dover (An exact narrative, 1664). O uso das duas prensas
simultâneas pode ser evidenciado tanto na ausência e na presença das gravuras, como no uso
de diferentes tipos:
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Figura 5: Primeira página de Mirabilis annus.
A edição que contém as gravuras, à esquerda, é mais longa (98 páginas), pois o
aproveitamento do espaço das folhas foi menor. Os tipos são maiores e mais dispersos do que
na outra cópia (à direita), que contém 70 páginas. As capitulares e os adornos aplicados
também divergem. Ainda que a versão ilustrada pareça ter sido impressa mais
cuidadosamente, vale ressaltar que todos os textos dos Confederates possuem erros de
paginação e/ou de composição. Isso pode ser uma consequência da produção acelerada, mais
preocupada com a rapidez da dispersão das críticas ao governo do que com a qualidade dos
panfletos, inclusive porque esses eram preparados para um mercado efêmero.
Mesmo se valendo da fragmentação do trabalho editorial, os Confederates não
puderam evitar os censores por muito tempo. Em setembro de 1661, devido às contínuas
investigações, declarações e prisões, George Thresher e Francis Smith também acabaram
encarcerados. Thresher contou mais detalhes sobre a produção das obras, bem como
confirmou a participação de Francis Smith nas publicações (PRO SP 29/41/110).
Roger L’Estrange, que participava ativamente das investigações, publicou panfletos
denunciando as atividades sediciosas dos estacionários. Em seu A modest plea, ele apresentou
as informações que havia coletado até o momento e denunciava a existência de um complô de
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estacionários sediciosos que se dedicavam a atacar o rei. A Phenix e Mirabilis annus eram
citados, assim como Giles Calvert, Thomas Brewster e Livewell Chapman (L’ESTRANGE,
1661).
Logo em seguida, Elizabeth Calvert também foi presa em outubro de 1661. E em
1662, a perseguição ao grupo se intensificou (BELL, 1992). L’Estrange voltou a atacá-los em
seu Truth and loyalty vindicated (L’ESTRANGE, 1662). E a monarquia de Carlos II agiu
promulgando dois novos decretos: o de Uniformidade, determinando a obrigatoriedade do uso
do Livro de Orações Comuns e o respeito aos preceitos da Igreja Anglicana (aqueles que
desviassem das doutrinas seriam considerados “não-conformistas”); e o de Licenciamento da
Imprensa, que reforçava todas as leis anteriores sobre o registro prévio das obras, bem como
instituía medidas mais rigorosas sobre a fiscalização da imprensa (KEEBLE, 2002).
Com as diversas prisões e fugas dos estacionários radicais, a impressão e a distribuição
desses libelos foi encabeçada pelas esposas dos estacionários: Elizabeth Calvert (que deixara
a prisão em dezembro de 1661), Hannah Chapman, Anna Brewster, Joan Dover e Eleanor
Smith (BELL, 1992; LIMA, 2016). Ao mesmo tempo, os processos de produção foram
prejudicados pelas investidas das autoridades. A continuidade de Mirabilis annus foi impressa
com diversos erros, pelos quais as Confederadas se desculparam:
Tendo finalmente, através da assistência da Providência, superado as muitas
interrupções que acometeram à Imprensa, nós conseguimos (apesar de muito mais
tarde do que nós prometemos, e de fato do que pretendemos) pelo menos trazer ao
Mundo a Segunda Parte dos Prodígios deste ano (Mirabilis annus secundus, 1662).
Embora tenham conseguido manter suas prensas e livrarias operando clandestinamente
ao longo de 1662 e 1663, os Confederados (e as Confederadas) não conseguiram evitar os
constrangimentos dos censores por muito tempo, pois reformas nos sistemas de controle da
imprensa foram implantadas, forçando a desarticulação do grupo.
Articulações e Desarticulações
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As autoridades empenharam-se em conter a propagação de obras sediciosas e
L’Estrange continuou suas exclamações contra a imprensa radical, apontando os
Confederados como uns dos principais expoentes da sedição na Inglaterra. Em seu
Considerations and proposals in order to the regulation of the press (1663), L’Estrange
insistia na necessidade de serem criados instrumentos de controle mais efetivos, pois o
licenciamento feito pela Stationers’ Company não era o suficiente para refrear a emissão e
circulação de textos ilegais. A Corporação servia muito mais para regular os interesses e as
dinâmicas do mercado livreiro, do que censurar conteúdos moral, política e religiosamente
dissidentes (L’ESTRANGE, 1663).
Carlos II parece ter concordado com as sugestões apresentadas por L’Estrange e, no
mesmo ano, reforçou a severidade dos sistemas de controle e instituiu o autor como Surveyor
of the Press, concedendo-lhe autoridade o suficiente para proceder contra os infratores das
leis de censura. A partir de então, a empreitada de L’Estrange contra os Confederados tornou-
se mais intensa. Ele conseguiu mais depoimentos, bem como emitiu mandatos de prisão para
os impressores e livreiros do grupo. Suas ações levaram a um julgamento em 1664, no qual as
atividades dos estacionários foram examinadas em detalhe (KEEBLE, 2002).
Brewster, Creake, Dover, Brooks e Thresher foram processados em fevereiro. Calvert
já havia falecido depois de ficar com a saúde debilitada com tantas prisões. Chapman estava
na cadeia, mas não foi levado à julgamento, provavelmente por sua delicada situação de saúde
(o livreiro morreu no ano seguinte). Creake e Thresher colaboraram ativamente com as
investigações de L’Estrange, fornecendo detalhes importantes sobre a produção dos libelos
sediciosos, por essa razão não receberam duras penas. Brewster, Dover e Brooks – embora
tenham argumentado acerca da mecanicidade de suas atividades, buscando se isentar da
responsabilidade sobre os conteúdos difundidos – acabaram sendo considerados culpados por
sedição. Foram condenados à prisão e ao pagamento de multas, que dificultaram a
manutenção de seus trabalhos (An exact narrative, 1664; BELL, 1992; GREAVES, 1986,
LIMA, 2016).
Até meados dos anos 1660, a rede estabelecida pelos Confederados já havia sido
desfeita pela pressão dos censores. Brewster logo faleceu. Hannah e Livewell Chapman
também morreram pouco depois, provavelmente vítimas da peste que assolava a Inglaterra.
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Elizabeth Calvert, Anna Brewster, Joan Dover e os Smiths, entretanto, continuaram ativos
quase até o final do século XVII (BELL, 1992).
Considerações Finais
Analisando as ações dos Confederate Stationers nos anos 1660, conseguimos
identificar algumas movimentações e dinâmicas dos processos de impressão, distribuição e
recepção dos panfletos do grupo. Expressamos as articulações dessa rede de produção e
circulação de impressos radicais no diagrama a seguir:
Figura 6: Modelo de articulação de estacionários radicais.
Consideramos três tipos de conexão, de acordo com a frequência de suas ocorrências: as que
acontecem em todos os casos; as que nem sempre são presentes (ou evidentes); e as
interferências externas à própria rede, desempenhadas pela censura. Autores e livreiros
sempre dialogam para a composição do texto, que segue para, no mínimo, dois impressores
(que dependem de fornecedores de tintas, papéis e outros materiais) e, eventualmente,
encadernadores. A distribuição é encabeçada pelos mesmos livreiros, que centralizam todo
processo de produção e dispersão dos textos, representando uns dos personagens mais
importantes das redes, uma vez que estabelecem a mediação entre as demais etapas. Em
alguns casos, os textos podem ser publicizados por meio de propagandas, anúncios em
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periódicos, ou mesmo comentários em outros impressos. Por exemplo, ao criticar as obras dos
Confederates em seus textos, L’Estrange as denunciava ao mesmo tempo em que aumentava a
exposição de seus conteúdos, estimulando o interesse do público nas polêmicas em voga. O
texto chega ao público, por diferentes meios. Eles podem ser comprados, lidos, ouvidos em
voz alta ou mesmo conhecidos indiretamente (através de outras obras e/ou debates). As
respostas dos leitores podem chegar aos autores e livreiros, que as tomarão como termômetro
para suas próximas produções. Por fim, cabe falar dos censores. Em nossa interpretação, eles
são mediadores tão importantes quanto os livreiros, pois interferem em todas as fases de
produção, distribuição e recepção das obras. As investigações, prisões, multas e apreensão de
materiais podem interromper, atrasar ou mesmo adiantar a edição e impressão de um panfleto,
bem como podem afetar as formas de venda, distribuição, compra e leitura.
Nosso modelo, contudo, ainda é incompleto. Necessitamos de mais informações para
refinar nossa leitura sobre os processos de escrita, edição, confecção, distribuição e recepção
dos textos radicais. Ao mesmo tempo, faz-se necessário identificar e incluir várias formas de
conexão estabelecidas no mercado livreiro, que não se pautam apenas nas trocas ou nos
processos produtivos, tais como as relações familiares, pessoais, políticas, de competição, de
colaboração, entre outras. Pretendemos refiná-lo nos próximos anos de nossa pesquisa de
doutorado de modo a problematizar e examinar algumas das formas pelas quais o mercado
livreiro de obras radicais podia se organizar na Época Moderna.
Referências Documentais e Bibliográficas
Fontes
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Eniaytos terastios Mirabilis annus, or, The year of prodigies and wonders… [LONDON:]
Printed in the year 1661.
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Charles II, 1661-1662, preserved in Her Majesty’s Public Record Office. London:
Longman, Green, Longman & Roberts, 1861.
17
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Mirabilis annus secundus; or, The second year of prodigies... [London:], Printed in the year,
1662.
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