Dilthey Wilhelm Psicologia Descritiva e Analitica

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    IDEIAS ACERCA DE UMAPSICOLOGIA

    DESCRITIVA E ANALTICA

    Wilhelm Dilthey

    Tradutor:Artur Moro

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    Covilh, 2008

    FICHA TCNICA

    Ttulo: Ideias acerca de uma Psicologia Descritiva e AnalticaAutor: Wilhelm DiltheyTradutor: Artur Moro

    Coleco: Textos Clssicos de FilosofiaDireco: Jos M. S. Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Jos M. S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2008

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    Apresentao

    o presente escrito um dos mais interessantes de Wilhelm Dilthey(1831-1911). No pela diversificao ou pela riqueza interna de te-mas, mas pela singular densidade com que aborda um problema fun-damental que assediou o filsofo em grande parte da sua vida: comofornecer s cincias do esprito, de recente formao e em plena ex-

    panso, um fundamento epistemolgico que estabelecesse a sua ori-ginalidade, a sua ndole genuna, a sua autonomia, o carcter autc-tone e irredutvel dos seus problemas e das suas realidades, a suaincomensurabilidade com as cincias da natureza.

    No era, pois, intento seu travar uma guerra entre os dois gru-pos de saberes desenvolvidos na cultura ocidental, nem oferecer ummodelo de cincia humana que se regulasse pela bitola ou pelos pro-cedimentos da cincia natural, mas antes tentar fornecer um princpiode unidade funcional, que os situasse na sua fonte comum a nossaimaginao criadora , para depois respeitar, sem falsas identidades e

    confuses, a especificidade, a modalidade cognitiva, as metodologiastpicas de cada complexo de saberes.A motivao nuclear de W. Dilthey era polmica: cedo deu pela

    seduo que o xito das cincias naturais exercia em muitos filsofose nos investigadores do universo humano, induzindo-os a adoptar opressuposto mecanicista, subjacente prtica e interpretao dessascincias. O alvo da sua crtica era o conjunto das cincias humanas("cincias do esprito") que se formara, se institura e se autocompre-endia luz de ideias que promanavam de Th. Hobbes, B. Espinosae D. Hume. Impugnava, portanto, uma certa tradio filosfica dematerialismo com a sua pretenso de interpretar a vida humana, nasua integralidade, com o instrumental e a convico naturalistas.

    A reflexo diltheyana, no seu processo de maturao e aprofunda-mento, recebeu influxos de trs fontes: em primeiro legar, a inspira-o kantiana, com a sua proposta do a priori enquanto estruturadorda experincia humana nos trs nveis da sensibilidade, do entendi-

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    mento e da razo. Mas, para Dilthey, o a priori kantiano era inaplic-vel ao carcter indito da realidade histrica; por um lado, ao preten-der dilucidar o estatuto da metafsica, polarizou-se excessivamenteem torno da cincia natural e da matemtica; depois, ostenta um giroabstracto e insensvel densidade e ao devir histricos no seu desdo-bramento criativo, que suscita diversas culturas e obras dspares emcada poca cultural; alm disso, enquadra-se numa concepo quefracciona, decerto involuntariamente, a experincia humana global,

    sem conseguir estabelecer um convincente elo de ligao ente a ra-zo terica, a razo prtica e a actividade esttica. O a priori surgir,pois, em Dilthey essencialmente como o elo, o vnculo, a conexo,a tessitura ou a contextura da vida psquica, que acontece, flui e seintui sempre como uma unidade, que se exterioriza e manifesta nasobras culturais de toda a espcie, mas se furta a uma apreenso total.

    Outra fonte a lio hegeliana, com o seu conceito de realidadeenquanto processo da mudana histrica. Dilthey acolhe o relevodado histria como campo de realizao das virtualidades da razodos homens, portanto o peso e as possibilidades criativas do tempo

    histrico, cujos limites ningum nem filosofia alguma (ou qualqueroutra obra cultural) consegue ultrapassar. Deixa, porm, de lado arazo absoluta de Hegel, a sua metafsica do Absoluto em devir e anecessria peregrinao do Esprito universal ao longo da histria.

    A terceira fonte Schleiermacher, com a sua descoberta e o seurealce da unicidade e da peculiaridade dos indivduos humanos e doelemento comum que eles partilham; e tambm com a sua acentuaodo jogo da vida, que se distende no contraste de receptividade e es-pontaneidade, de universal e particular, de unidade e diversidade, deinterioridade e exterioridade, de comunidade e indivduo, de forma

    social e unilateralidade pessoal [cfr. F. Schleiermacher, Texte zur P-dagogik, I, Francoforte, Suhrkamp, 2000, pp. 214-216; 292-297].Foi possivelmente com o grande telogo que Dilthey discerniu o sig-nificado fundamental da categoria da vida. O seu trabalho ulteriorconsistiu em extrair dela todas as consequncias possveis.

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    Mas que significa, neste contexto, a vida? Apenas isto: no a vida como realidade biolgica; , acima de tudo, o fluxo par-tilhado das actividades e das experincias dos homens que, no seutodo, constituem o tecido da histria, na sua diversidade social e nasua particularidade humana.

    A vida, no entrosamento de aco e compreenso, imbui, atra-

    vessa e percorre todos os nexos da humanidade; as suas expressesou manifestaes incluem signos, smbolos, o discurso oral e a es-crita, as prticas multmodas em que os humanos se espraiam e seestiram na demanda da natureza e de si prprios. Tais expressesencerram, pois, um contedo psicolgico mais rico e denso do queo alcanado pela introspeco. Irrompem e manam de profundezasque a conscincia no consegue iluminar. So fruto, no s da ex-ploso imaginria, da elaborao intelectual, do esforo conativo decriao e empenhamento, mas tambm de mltiplas formas e actosde pensamento tcito, que se furtam captao introspectiva.

    Da a convico diltheyana, aprendida de Hegel, de que s pelahistria chegamos ao conhecimento de ns mesmos. Aqui resideigualmente a base da sua hermenutica: interpretar obter a compre-enso do outro graas revivncia (Nacherlebnis) da experinciaalheia, isto , atravs de uma transposio emptica ou da captagemdo sentido das expresses corporificadas nas obras. Com que pres-supostos se d esse salto emptico? No por introspeco, como sefosse possvel adentrar-se e imergir na subjectividade de outrem. Aautocompreenso em face das realizaes culturais assenta na reve-lao das semelhanas e diferenas, das variaes e particularidades,que assomam no s na reflexo, mas tambm na interaco social, ea partir das quais se aprende a empatia e se desenvolve a imaginao.Depois, a revivncia da experincia alheia supe e depende da au-totrasladao individual para as circunstncias temporais suscitado-ras da expresso vital, que convida compreenso [cfr. Anthony C.Thiselton, New Horizons in Hermeneutics. The Theory and Practice

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    of Transforming Biblical Reading, Grand Rapids, Michigan, Zonder-van Pub. House, 1992, p. 248.]. Neste mundo cultural, construdoobjectivamente, com suas implicaes complexas, que a mente seencontra a si prpria e o Eu se redescobre no Tu. Mais uma vez, noem termos de encontro imediato de subjectividades translcidas, maspor interposio de um mundo partilhado.

    Ganhou assim plausibilidade o projecto filosfico diltheyano de

    uma crtica da razo histrica, nunca por ele totalmente levada aefeito, mas que fez despontar e florescer virtualidades fecundas elevou afirmao da essencial historicidade humana, de to ricasconsequncias no desenrolar ulterior da hermenutica. Reforou-seainda a inteno de Dilthey de fundamentar epistemologicamente ascincias humanas, no de acordo com o figurino cientfico-natural,mas para fazer jus sua verdadeira independncia cognitiva.

    Como assim? Na obra Introduo s cincias do esprito, no li-vro 1 [cfr. ed. esp. Introduccin a las Ciencias del Espritu, Madrid,Revista de Occident, 19662, pp. 45-69], aduzem-se motivos para

    semelhante autonomia. As cincias humanas nascem emancipadas,porque se centram nos processos de expresso interna, nas vivnciasque seguidamente ganham corpo cultural; a fundamentao do seulugar independente, ao lado das cincias do reino material, realiza-sepasso a passo, com a anlise da vivncia total do mundo espiritual,na sua incomensurabilidade com toda a experincia sensvel acercado cosmos. verdade que os processos espirituais e os materiais seentrosam uns nos outros, em virtude da interaco entre a unidadepsicofsica e o curso geral da natureza, ao nvel dos estmulos e dosfins. Mas os primeiros no podem derivar-se da ordem natural mec-nica.

    Incluem as cincias humanas factos naturais, sem dvida; e a vidaespiritual do ser humano uma parte, separvel s por abstraco, daunidade vital psicofsica. Em virtude de ser uma unidade vital, existeele como um complexo de factos espirituais, que so o limite supe-rior dos factos da natureza, tal como estes constituem as condies

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    inferiores da vida espiritual. real, por isso, uma relativa delimi-tao recproca das duas classes de cincias. Os conhecimentos deumas mesclam-se com os das outras.

    As cincias do homem, da sociedade e da histria tm comofundamento as da natureza, pois incluem referncias biologia, aomundo inorgnico, etc. Originaram-se na prtica da prpria vida,desenvolveram-se pelas exigncias da formao profissional e estoligadas ao exerccio das funes sociais: direito, actividade pol-tica, e assim por diante. O seu material , por conseguinte, a rea-lidade histrico-social, enquanto se conservou como notcia, dentrodo tempo humano, na conscincia da humanidade e se tornou aces-svel cincia como conhecimento social. Deparamos nelas comtrs classes de afirmaes: a) o dado na percepo real, ou seja, oelemento histrico do conhecimento; b) o comportamento uniformedos contedos parciais dessa realidade, separados por abstraco, isto, o elemento terico; e c) juzos de valor e normas, a saber, o ele-mento prtico. Estas trs tendncias confluem, no seio das cinciasdo esprito, numa determinao bsica: a compreenso do singular

    e do individual constitui nelas o fim ltimo, alm da explicao deregularidades abstractas.

    Eis porque grande a relevncia do tratado Ideias para uma psi-cologia descritiva e analtica (1894), de notvel coeso interna, deescrita concisa e precisa. O seu tema est longe de ter perdido inte-resse. Continua a ser um campo de batalha eminentemente filosfica,mas no s.

    Ajuda a perceber o modo como Dilthey perspectiva a vida an-mica: o perfil central desta ltima o fluxo permanente, a unidadeda sua torrente com os seus momentos qualitativos, as vivncias; una e nica, dotada de uma tessitura indestrutvel, no obstante todoo seu contrastado devir, que podemos percepcionar na conscincia,sem contudo o vislumbrarmos no seu todo.

    Em contraste com a experincia interna, que um contnuo demuitos matizes, mas ligado, a experincia externa quase pontilhista,

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    descontnua, e s ganha coeso precisamente graas ao contnuo an-mico, em cujo marco ela se vem incrustar. Por isso, enquanto ascincias do esprito radicam na contextura da vida anmica, e tentamcompreend-la nas suas objectivaes culturais, entretecendo o in-terior com o exterior, e vice-versa, as cincias da natureza no tmoutro recurso excepto hipotetizar, construir nuvens de hipteses.

    Quer isto dizer que, enquanto prticas humanas e invenes te-ricas, enquanto dilogo com o cosmos, s ganham sentido no enqua-

    dramento total de uma civilizao, no jogo dos seus interesses, noenleamento e na luta contra as suas possveis iluses e erros. . .

    Mas o melhor ler e ouvir o prprio Dilthey. A sua distino en-tre explicao e compreenso levanta, decerto, alguns problemase suscita mltiplas questes e reservas, sobretudo na sua aplicaodualista, exclusiva e alternativa, aos vrios ramos do saber. Mas, auma outra luz, verdade que explicar e compreender no so amesma coisa, e que ambos actuam em todo o exerccio da cognio,seja qual for o campo da sua aplicao.

    * * *

    Para a verso presente, que se ajusta o mais possvel ao discursode Dilthey, evitando parfrases ou fugas extraliterais, utilizou-se otexto das Obras completas, Gesammelte Schriften, volume V, 1968,editadas pela editora Vandenhoeck & Ruprecht de Gotinga.

    Artur Moro

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    Ideias acerca de umaPsicologia Descritiva e Analtica

    (1894)

    Wilhelm Dilthey

    Contents

    Captulo I: A tarefa de uma fundamentao psicolgica... 10Captulo II: A distino entre a psicologia explicativa e... 27Captulo III: A distino entre a psicologia explicativa e... 32Captulo IV: A psicologia explicativa e a descritiva 44

    Captulo V: Relao entre a psicologia explicativa e... 71Captulo VI: Possibilidade e condies da soluo... 78Captulo VII: A estrutura da vida psquica 83Captulo VIII: O desenvolvimento da vida psquica 99Captulo IX: O estudo das diversidades da vida psquica 115

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    Captulo I

    A tarefa de uma fundamentao psicolgicadas cincias do esprito

    A psicologia "explicativa", que hoje tantos trabalhos e tanto inte-resse suscita, estabelece um vnculo causal que pretende tornar con-cebveis todos os fenmenos da vida psquica. Quer explicar a cons-tituio do mundo anmico segundo as suas componentes, foras eleis, tal como a fsica e a qumica explicam a constituio do mundodos corpos. Representantes desta psicologia explicativa so os psi-clogos associacionistas, Herbart, Spencer, Taine, as diversas for-mas de materialismo. A distino entre cincias explicativas e des-critivas, que aqui tomamos como base, corresponde ao uso lingus-tico. Entender-se- por cincia explicativa toda a subordinao de umcampo de fenmenos a um nexo causal por meio de um nmero limi-tado de elementos (isto , partes integrantes do nexo) univocamentedeterminados. Este conceito indica o ideal de semelhante cincia, tal

    como ele se formou sobretudo graas ao desenvolvimento da fisicaatmica. A psicologia explicativa quer, pois, subordinar os fen-menos da vida psquica a um vnculo causal mediante um nmerolimitado de elementos univocamente determinados. uma ideia deextraordinria ousadia, que conteria em si a possibilidade de umaimensurvel evoluo das cincias do esprito para um sistema rigo-roso de conhecimento causal, que corresponderia ao das cincias danatureza. Se toda a teoria psquica procura trazer conscincia asrelaes causais da vida anmica, ento a caracterstica diferencial dapsicologia explicativa consiste na sua convico de poder alcanar

    um conhecimento pleno e transparente dos fenmenos psquicos, apartir de um nmero limitado de elementos univocamente determina-dos. O nome de psicologia construtiva caracteriz-la-ia com maiorpreciso e, ao mesmo tempo, realaria o amplo contexto histrico emque ela se encontra.

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    A psicologia explicativa s pode conseguir o seu fito atravs deuma combinao de hipteses.

    O conceito de hiptese pode conceber-se de modos diferentes.Todo o raciocnio que, mediante a induo, procura completar umconjunto de experincias deve designar-se, em princpio, como hi-ptese. A concluso nele contida encerra uma expectativa que, paral do dado, se estende a algo no dado. Semelhantes raciocniosintegradores existem, naturalmente, em todo o gnero de exposio

    psicolgica. Sem tal inferncia, nem sequer posso reduzir uma re-cordao a uma impresso anterior. Seria insensato pretender excluirda psicologia os elementos hipotticos. Seria tambm injusto censu-rar psicologia explicativa o emprego de tais componentes, j que apsicologia descritiva tambm deles no poderia prescindir.

    Mas, nas cincias da natureza, elaborou-se o conceito de hip-tese num sentido mais determinado, na base das condies que sedo no conhecimento natural. Como nos sentidos somente dada acoexistncia e a sucesso, sem o nexo causal daquilo que se apre-senta simultnea ou sucessivamente, o vnculo causal surge na nossa

    apreenso da natureza s graas a uma aco que a completa. A hi-ptese assim o recurso necessrio do conhecimento progressivo danatureza. Em geral, so vrias as hipteses que se apresentam comoigualmente possveis; a tarefa , ento, comprovar uma delas e ex-cluir as outras, desenvolvendo as suas consequncias e comparando-as com os factos. A fora da cincias naturais radica em que, graas matemtica e ao experimento, podem conferir a este processo o graumximo de exactido e de segurana. O exemplo mximo e maisinstrutivo de como uma hiptese se converte em patrimnio seguroda cincia temo-lo na hiptese copernicana de que a Terra gira em

    volta do seu eixo em vinte e quatro horas menos quatro minutos epossui, ao mesmo tempo, um movimento progressivo volta do soldurante cerca de trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto; foi eladesenvolvida e fundada sucessivamente por Kepler, Galileu, Newton,Foucault, etc., at se transformar numa teoria subtrada a toda a d-

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    vida. Outro exemplo famoso de como uma hiptese aumenta a suaprobabilidade, at ao ponto de j no ser necessrio ter em conta ou-tras possibilidades, a explicao da luz pela hiptese ondulatria,em contraste com a hiptese da emanao. Saber em que ponto ahiptese subjacente a uma teoria cientfico-natural obtm semelhantegrau de probabilidade, graas travao com todo o conhecimentonatural e comprovao das consequncias nos factos, de maneiraque se possa prescindir do nome de hiptese, decerto uma questo

    ociosa e, ao mesmo tempo, insolvel. H uma caracterstica muitosimples, graas qual distingo as hipteses dentro do vasto domniode proposies baseadas em inferncias. Quando uma ilao podeestabelecer um fenmeno ou um grupo de fenmenos numa conexosuficiente que se harmoniza com todos os factos conhecidos e comas teorias vlidas, mas no consegue excluir outras possibilidades deexplicao, estamos perante uma hiptese. Nunca deparamos comesta caracterstica, sem que semelhante proposio possua o carcterde hiptese. Mas tambm onde ela falta, quando no se formaram,ou no se corroboraram, hipteses contrrias, permanece em aberto a

    questo de se uma proposio fundada em concluses indutivas nopossuir, todavia, o carcter de hiptese. No dispomos de nenhumacaracterstica absoluta pela qual possamos, em todas as circunstn-cias, distinguir as proposies cientfico-naturais, que encontrarampara sempre a sua formulao definitiva, daquelas que expressamadequadamente a conexo dos fenmenos s para a situao actual donosso conhecimento acerca de tais fenmenos. Persiste sempre umhiato intransponvel entre o grau mximo de probabilidade alcanadopor uma teoria indutivamente fundada e a apodicticidade que corres-ponde s relaes matemticas fundamentais. No so s as rela-

    es numricas que possuem este carcter apodctico; seja qual fora forma como se constituiu a nossa imagem do espao, tal processositua-se para l da nossa memria: ei-la justamente diante de ns;em qualquer lugar seu podemos apreender as mesmas relaes funda-mentais, com absoluta independncia do lugar em que se apresentam.

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    A geometria a anlise desta imagem espacial, de todo independenteda existncia dos objectos singulares. Aqui radica o carcter da suaapodicticidade, no condicionado pela origem desta representaoespacial. Neste sentido, as hipteses no tm s uma significaodecisiva como etapas determinadas na origem das teorias cientfico-naturais; no pode tambm deixar-se de observar que, inclusive como incremento mximo da probabilidade da nossa explicao da na-tureza, jamais desaparecer o seu carcter hipottico. Nem por isso

    ficam abaladas as nossas convices cientfico-naturais. Quando La-place introduziu o clculo de probabilidades no tratamento das infe-rncias indutivas, alargou-se tambm a mensurabilidade ao grau desegurana do nosso conhecimento natural. Subtraimos assim o cho utilizao do carcter hipottico da nossa explicao da naturezaem prol de um cepticismo rido ou de um misticismo ao servio dateologia.

    Mas quando a psicologia explicativa transfere o mtodo cientfico-natural da formao de hipteses, graas qual se acrescenta umaconexo causal complementar, surge a questo de se tal transferncia

    ser justificada. Importa mostrar que semelhante transferncia temlugar, de facto, na psicologia explicativa, e necessrio aduzir ospontos de vista que suscitam escrpulos em face desta transferncia.Faremos ambas as coisas, por agora, provisoriamente, j que na ex-posio ulterior se encerram a este respeito outros desenvolvimentosdirectos ou indirectos.

    Constatamos, em primeiro lugar, o facto de que a toda a psico-logia explicativa est subjacente uma combinao de hipteses, quese revelam como tais em virtude da caracterstica mencionada, poisno podem excluir outras possibilidades. A cada complexo de hi-

    pteses contrapem-se nela muitas outras. Ruge no seu mbito umaluta de todos contra todos, no menos violenta do que a que imperano campo da metafsica. Nem na lonjura do horizonte se vislum-bra algo que consiga arbitrar esta peleja. Consola-se, sem dvida,a psicologia pensando nos tempos em que tambm no era melhor

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    a situao da fsica e da qumica; mas, que imensas vantagens tmestas na firmeza dos seus objectos, no uso livre do experimento, namensurabilidade do mundo espacial! Alm disso, a insolubilidade doproblema metafsico da relao entre o mundo espiritual e o corporalimpede, neste domnio, o desenvolvimento puro de um conhecimentocausal seguro. Ningum, pois, pode dizer se algum dia acabar estaluta das hipteses no seio da psicologia explicativa, nem quando talacontecer.

    Quando pretendemos estabelecer um conhecimento causal pleno,somos impedidos por uma nuvem de hipteses, sem nenhuma pers-pectiva de as comprovar com os factos psquicos. Correntes muito in-fluentes da psicologia mostram-nos isto com grande claridade. Umahiptese deste tipo a teoria do paralelismo entre os processos nervo-sos e os processos anmicos, segundo a qual os factos espirituais maispoderosos tambm nada mais so do que fenmenos concomitantesda nossa vida corporal. Semelhante hiptese a reduo de todos osfenmenos de conscincia a elementos de tipo atmico, que actuamentre si segundo relaes nomolgicas. Outra hiptese anloga a

    construo, com o intento de explicao causal, de todos os fenme-nos psquicos por meio das duas classes de "sensaes" e "sentimen-tos"; a vontade, que na nossa conscincia e na nossa conduta vital seapresenta to impetuosa, no passaria ento de uma aparncia secun-daria. Mediante puras hipteses deriva-se a autoconscincia a partirdos elementos psquicos e dos processos entre eles. Dispomos so-mente de hipteses sobre os processos causais, graas aos quais onexo psquico adquirido influi constantemente, de modo to pode-roso e misterioso, nos nossos processos conscientes de raciocnio evolio. Hipteses, em toda a parte s hipteses! E no como com-

    ponentes subordinadas, que se ajustam singularmente marcha dopensamento cientfico. Tais hipteses so, como vimos, inevitveis.Mais ainda, hipteses que, como elementos da explicao causal psi-colgica, possibilitam a derivao de todos os fenmenos psquicose devem neles comprovar-se.

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    Os representantes da psicologia explicativa costumam apoiar-senas cincias da natureza para justificar um to amplo emprego dehipteses. Mas j no incio das nossas investigaes queremos pro-clamar a pretenso das cincias do esprito de determinar autonoma-mente os seus mtodos, de harmonia com o seu objecto. As cinciasdo esprito, partindo dos conceitos mais gerais da metodologia geral,devem chegar, graas comprovao nos seus objectos peculiares, amtodos e a princpios mais genunos dentro do seu mbito, tal como

    fizeram as cincias da natureza. No nos revelaremos genunos dis-cpulos dos grandes pensadores cientfico-naturais pelo facto de tras-ladar para o nosso campo os mtodos por eles encontrados mas, aoinvs, conformando o nosso conhecimento natureza dos nossos ob-jectos e comportando-nos em relao a estes tal como eles com osseus. Natura parendo vincitur. As cincias do esprito distinguem-sedas cincias da natureza, em primeiro lugar, porque estas tm comoobjecto seu factos que se apresentam na conscincia dispersos, vin-dos de fora, como fenmenos, ao passo que naquelas se apresentama partir de dentro, como realidade e, originaliter, como uma conexo

    viva. Por isso, nas cincias da natureza -nos oferecido um nexo na-tural s atravs de ilaes suplementares, mediante um complexo dehipteses. Pelo contrrio, nas cincias do esprito, a base a conexoda vida anmica como algo originariamente dado. "Explicamos" anatureza, "compreendemos" a vida anmica. Na experincia internaso tambm dados os processos de causao, dos laos das funes,como membros singulares da vida psquica, num todo. Primordial, aqui, a conexo vivida, secundria a distino dos seus diversosmembros. Isto condiciona uma diferena muito grande dos mtodoscom que estudamos a vida psquica, a histria e a sociedade, relati-

    vamente aos outros mtodos pelos quais se obtm o conhecimento danatureza. Para a questo que aqui nos interessa infere-se da diferenaaduzida que as hipteses, no seio da psicologia, no desempenhamde modo algum o mesmo papel que no interior do conhecimento na-tural. Neste toda a conexo se estabelece mediante uma formao

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    de hipteses; na psicologia, a conexo dada de um modo origin-rio e constante na vivncia: a vida est presente em toda a parte scomo nexo. Portanto, a psicologia no necessita de conceitos sub-jacentes obtidos por inferncias para estabelecer uma conexo queenglobe os grandes grupos dos factos anmicos. Quando uma classede efeitos surge condicionada interiormente e, todavia, se apresentasem conscincia alguma das causas que interiormente actuam, comoacontece na "reproduo" ou no influxo que sobre processos consci-

    entes exerce a conexo psquica adquirida, subtrada nossa consci-ncia, tambm possvel que a descrio e a anlise do decurso detais processos os submeta grande articulao causal do todo, quepode ser estabelecida a partir das experincias internas. E, por isso,quando constri uma hiptese sobre as causas de tais processos, nose sente impelida a p-la, em seguida, nos alicerces da psicologia. Oseu mtodo inteiramente diferente do da fsica ou da qumica. Ahiptese no o seu fundamento imprescindvel. Portanto, quandoa psicologia explicativa subordina os fenmenos da vida psquica aum nmero limitado de elementos explicativos univocamente deter-

    minados, de absoluto carcter hipottico, no podemos admitir quetal possa ser fundamentado pelos seus representantes como o des-tino inevitvel de toda a psicologia, a partir da analogia do papel dashipteses no conhecimento natural. Alm disso, no mbito psicol-gico, as hipteses tambm no possuem a capacidade de realizaode que deram provas no conhecimento cientfico-natural. No pos-svel elevar os factos da vida psquica determinidade estrita que seexige para a comprovao de uma teoria, mediante a comparao dassuas consequncias com tais factos. Por isso, em nenhum ponto de-cisivo se conseguiu a excluso de outras hipteses e a averiguao da

    hiptese alternativa. Na fronteira da natureza e da vida anmica, oexperimento e a determinao quantitativa revelaram-se igualmenteprestveis formao de hipteses, como acontece no conhecimentonatural. Mas nada disso se adverte nos campos centrais da psicolo-gia. Sobretudo, a questo, to decisiva para a psicologia construtiva,

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    quanto s relaes causais que condicionam a influenciao dos pro-cessos conscientes pela conexo psquica adquirida ou a "reprodu-o", no avanou sequer um passo, apesar de todos os esforos atagora empreendidos. Quo diversamente se podem combinar as hi-pteses e com que igual facilidade se podem delas derivar os grandesfactos psquicos decisivos, a autoconscincia, o processo lgico e asua evidncia, ou a conscincia moral! Os defensores de semelhanteconexo hipottica possuem o olhar mais acutilante para aquilo que

    lhe pode servir de corroborao, e so de todo cegos para aquilo quea contradiz. Neste caso, sim, podemos dizer da hiptese o que Scho-penhauer afirmava, erroneamente, de todas em geral: semelhante hi-ptese leva na cabea onde se instalou, ou onde nasceu, uma vida quese pode comparar de um organismo: recebe do mundo exterior ape-nas o que lhe homogneo e a faz prosperar; pelo contrrio, aquiloque lhe heterogneo ou prejudicial, ou no o deixa aproximar-seou, se inopinadamente o recebe, expulsa-o sem qualquer assimila-o. Por isso, as conexes hipotticas da psicologia explicativa notm em vista elevar-se alguma vez categoria que corresponde s

    teorias cientfico-naturais. Levantamos, por isso, a questo de se ou-tro mtodo da psicologia a que chamaremos descritivo e analtico -poder evitar a fundamentao da nossa compreenso de toda a vidapsquica sobre um conjunto de hipteses.

    O predomnio da psicologia explicativa ou construtiva, que fun-ciona com hipteses segundo a analogia do conhecimento natural,implica consequncias extraordinariamente danosas para o desenvol-vimento das cincias do esprito. Aparentemente, os investigadorespositivos vem-se, neste campo, obrigados a renunciar a toda a fun-damentao psicolgica ou, ento, a aceitar todos os inconvenientes

    da psicologia explicativa. Por isso, a cincia actual desembocou nodilema seguinte, que contribuiu de modo extraordinrio para o incre-mento do esprito cptico e da empiria superficial, estril e, portanto,para a separao crescente da vida em relao ao saber. Ou as cin-cias do esprito se servem dos fundamentos que a psicologia lhes ofe-

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    rece, e adquirem assim um carcter hipottico, ou procuram resolveros seus problemas, sem o fundamento de qualquer sinopse cientifi-camente ordenada dos factos psquicos, apoiadas apenas na equvocae subjectiva psicologia da vida. No primeiro caso, a psicologia ex-plicativa comunica teoria do conhecimento e s cincias do espritotodo o seu carcter hipottico.

    Podemos pr num mesmo plano a teoria do conhecimento e ascincias do esprito, no tocante necessidade de uma fundamenta-

    o psicolgica, embora exista uma diferena considervel quanto amplitude e profundidade de tal fundamentao. A teoria do co-nhecimento ocupa, decerto, na conexo da cincias, um lugar muitodiferente do das cincias do esprito. impossvel faz-la preceder deuma psicologia. Todavia, embora de forma diferente, existe tambmpara ela o mesmo dilema. Poder ela configurar-se sem pressupostospsicolgicos? E se tal no possvel, quais seriam as consequn-cias, no caso de se fundar numa psicologia explicativa? A teoria doconhecimento nasceu da necessidade de se garantir, no oceano dasflutuaes metafsicas, um pedao de terra firme, um conhecimento

    universalmente vlido de alguma amplitude. Se ela se tornasse in-segura e hipottica, acabaria com a sua prpria finalidade. Vemos,pois, que o mesmo fatal dilema se pe teoria do conhecimento e scincias do esprito.

    As cincias do esprito buscam um fundamento firme, universal-mente vlido para os conceitos e as proposies com que se vmforadas a operar. Sentem uma desconfiana, demasiado justificada,contra as construes filosficas submetidas a discusso e que intro-duzem esta discusso nas anlises e nas comparaes empricas. Porisso, em amplos crculos da jurisprudncia, da economia poltica e

    da teologia, existe a tendncia a renunciar de todo s fundamenta-es psicolgicas. Cada uma delas procura estabelecer uma conexoa partir do lao emprico dos factos e das regras ou normas prpriasdo seu mbito, cuja anlise teria como resultado certos conceitos eproposies elementares gerais como subjacentes respectiva cin-

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    cia do esprito. Dada a situao da psicologia explicativa, no podemfazer outra coisa, se querem escapar aos mltiplos escolhos e vrti-ces da psicologia explicativa. Mas, ao fugir do vrtice filosfico deCaribdis, enredam-se nos escolhos de Cila, isto , de uma empiriaanmica.

    No se requer nenhuma prova de que a psicologia explicativa,porquanto s se pode fundar em hipteses incapazes de se alar categoria de uma teoria convincente, que exclui as outras hipteses,

    deveria comunicar a sua incerteza s cincias empricas do esprito,que nela se apoiassem. E mostrar que toda a psicologia explicativanecessita de tais hipteses para se fundamentar ser um objectivonuclear da nossa exposio. Mas deve, j aqui, comprovar-se quenenhuma tentativa de estabelecer uma cincia emprica do espritosem psicologia pode levar a um resultado til.

    Uma empiria que renuncie fundamentao do que acontece noesprito, ao nexo compreendido da vida espiritual, forosamenteestril. Tal pode comprovar-se em cada uma das cincias do esp-rito. Cada uma delas carece de conhecimentos psicolgicos. Assim,

    toda a anlise do facto religio recorre a conceitos como sentimento,vontade, dependncia, liberdade, motivo, que s podem ser clarifi-cados num contexto psicolgico. Lida com nexos da vida psquica,j que nesta que brota e ganha fora a conscincia de Deus. Masestes nexos so condicionados pela textura psquica geral, regular, es a partir dela so compreensveis. A jurisprudncia ocupa-se deconceitos como norma, lei, imputabilidade, de nexos psquicos queexigem uma anlise psicolgica. Sem uma compreenso clara daconexo regular de cada vida anmica, -lhe impossvel expor a ur-didura em que surge o sentimento jurdico ou aquela em que os fins

    se tornam efectivos no direito e as vontades so submetidas lei.As cincias polticas, que lidam com a organizao exterior da soci-edade, encontram em toda a relao associativa os factos psquicosde comunidade, domnio e independncia. Estes exigem uma anlisepsicolgica. A histria e a teoria da literatura e da arte vem-se em

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    toda a parte remetidas para os sentimentos estticos, compostos, dobelo, do sublime, do humorstico ou do ridculo. Estes, sem anlisepsquica, permanecem como simples representaes obscuras e mor-tas para o historiador da literatura, que no compreender a vida denenhum poeta, se no conhecer os processos da imaginao. as-sim, e nenhuma delimitao de especialidades o pode impedir: assimcomo os sistemas culturais, a economia, o direito, a religio, arte e acincia, a organizao externa da sociedade nas associaes da fam-

    lia, do comum, da Igreja, do Estado, dimanaram da textura viva daalma humana, assim tambm s a partir dela se podem explicar. Osfactos psquicos constituem a sua componente mais importante; nopodem ser estudados sem a anlise psicolgica. Encerram em si umnexo, porque a vida psquica uma trama. Por isso, a compreensodesta conexo interna que em ns existe condiciona em toda a parteo seu conhecimento. Conseguiram surgir como um poder que se fe-cha sobre os indivduos, porque existe uniformidade e regularidadena vida psquica, e tal possibilita uma ordem anlogapara muitas uni-dades de vida1 .

    Assim como o desenvolvimento de cada uma das cincias do es-prito est ligado constituio da psicologia, tambm no possvelconseguir a articulao das mesmas num todo sem compreender aurdidura psquica em que se encontram entrosadas. Sem refernciaalguma conexo psquica em que se fundam as suas relaes, ascincias do esprito so um agregado, um feixe disperso, e no umsistema. Qualquer ideia, por muito bronca que seja, assenta em al-guma ideia grosseira acerca do nexo dos fenmenos psquicos. S a

    1 Smoller, no seu ensaio sobre economia nacional, teoria econmico-nacionale seus mtodos - no novo Dicionrio de cincias polticas - mostrou de modo

    convincente, a propsito da economia poltica, a dependncia em que se encontrauma cincia particular do esprito, se pretende fixar objectivos vida prtica, deum contexto mais amplo. Leva tambm ao reconhecimento de que s um nexoteleolgico pode solucionar esta tarefa. O presente ensaio pretende mostrar comoa psicologia descritiva contm os meios para um conhecimento universalmentevlido de semelhante contextura, subjacente s cincias do esprito.

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    partir da tessitura psquica ampla, uniforme, se podem tornar com-preensveis as relaes em que se encontram a economia, o direito,a religio, a arte e o saber entre si e com a organizao externa dasociedade humana, pois deste marco foram elas brotando lado a ladoe, graas a ela, coexistem em cada unidade psquica de vida, semmutuamente se confundir ou destruir.

    A mesma dificuldade pesa sobre a teoria do conhecimento. Umaescola que sobressai pela sagacidade dos seus representantes exige

    a total autonomia da teoria do conhecimento relativamente psico-logia. Afirma ela que na "crtica da razo" de Kant se levou a cabo,em princpio, a emancipao da teoria do conhecimento mediante ummtodo especial. Quer desenvolver este mtodo; aqui parece residir,segundo ela, o futuro da teoria do conhecimento.

    Mas, claro est, os factos espirituais que constituem o materialda teoria do conhecimento no podem ser entrelaados sem o panode fundo de alguma representao do nexo psquico. Nenhuma artemgica do mtodo transcendental torna possvel o que em si im-possvel. Nenhum sortilgio da escola kantiana pode aqui ajudar. A

    aparncia de tal conseguir deve-se a que o terico do conhecimentopossui, na sua prpria conscincia viva, esta textura e a transfere paraa sua teoria. Pressupe-na. Serve-se dela. Mas no a controla. Porisso, agregam-se-lhe inevitavelmente, a partir das esferas lingusticae de ideias da poca, interpretaes desta textura em conceitos psico-lgicos. Aconteceu assim que os conceitos fundamentais da crticakantiana da razo pertencem a uma determinada escola psicolgica.A teoria classificadora das faculdades, da poca de Kant, teve comoconsequncia as separaes taxativas, a tcnica dissecadora da suacrtica da razo. Posso ver isto nas suas separaes de intuio e

    pensamento, de matria e forma do conhecimento. Ambas as distin-es, to taxativas em Kant, dilaceram uma conexo viva.A nenhuma das suas descobertas atribuia Kant tanta importncia

    como sua separao ntida da natureza e dos princpios da intui-o e do pensamento. [Mina, sem dvida, esta separao rigorosa,

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    pois foi o primeiro a oferecer uma prova clara da aco do entendi-mento no seio da sensibilidade.] Mas naquilo que ele chama intuiocooperam sempre processos mentais ou actos que lhe so equivalen-tes. Assim, o diferenciar, a avaliao de graus, o igualar, a unio ea separao. Lidamos, pois, aqui unicamente com etapas diferentesna aco dos mesmos processos. Os mesmos processos elementa-res de associao, de reproduo, de comparao, de diferenciao,de apreciao de graus, de separao e de unio, do prescindir e do

    destacar em que depois assenta a abstraco - actuam na formaodas nossas percepes, das nossas imagens reproduzidas, das figurasgeomtricas, das representaes da fantasia, que, em seguida, impe-ram tambm no pensamento discursivo. Esses processos constituemo segundo e imensamente fecundo campo do pensamento tcito. Ascategorias formais foram abstradas de tais funes lgicas prim-rias. Kant no tinha, pois, necessidade de deduzir do pensamentodiscursivo estas categorias. E todo o pensamento discursivo se poderepresentar como uma etapa superior dos processos mentais tcitos.

    Hoje, j no se pode tambm defender a separao entre matria

    e forma do conhecimento desenvolvida pelo sistema kantiano. Muitomais importantes do que esta separao so as relaes internas queexistem entre a multiplicidade das sensaes, enquanto matria donosso conhecimento, e a forma de conceber esta matria. Possu-mos ao mesmo tempo sons diferentes e unimo-los na conscincia,sem captarmos a sua divergncia recproca numa coexistncia. Pelocontrrio, s numa coexistncia podemos lograr uma pluralidade desensaes tcteis ou pticas. Nem sequer podemos representar juntae simultaneamente duas cores excepto numa coexistncia. No estclaramente em jogo nesta necessidade de as possuir em coexistncia

    a natureza das impresses pticas e das sensaes tcteis? No ,pois, muito provvel que aqui a forma da sua conjuno dependa danatureza da matria sensvel? A seguinte considerao mostra-nostambm como necessrio completar a doutrina de Kant acerca damatria e da forma do conhecimento. Uma multiplicidade de sen-

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    saes como simples matria implica em cada ponto diferenas, porexemplo, relaes e gradaes entre as cores. Mas estas diferenase estes graus s existem para uma conscincia abarcadora; portanto,a forma tem de estar presente para que a matria possa existir, comotambm deve estar presente a matria a fim de a forma se apresentar.De outro modo seria de todo incompreensvel como que elementospsquicos materiais poderiam ser articulados a partir de for a, graasao vnculo de uma conscincia unificadora2 .

    Por isso, na teoria do conhecimento, no ser possvel subtrair-se introduo arbitrria e fragmentria de pontos de vista psicolgi-cos, se no estabelecermos como base, com conscincia cientfica,uma apreenso clara da tessitura anmica. Poderemos eludir as in-fluncias casuais de psicologias errneas na teoria no conhecimento,se conseguirmos pr sua disposio proposies vlidas acerca datextura da vida psquica. Seria, decerto, improcedente exigir comobase antecipada da teoria do conhecimento uma psicologia descritivadesenvolvida. Mas, por outro lado, a teoria do conhecimento sempressupostos uma iluso.

    Poderamos, pois, imaginar do seguinte modo a relao entre psi-cologia e teoria do conhecimento. Assim como esta vai buscar aoutras cincias proposies seguras e universalmente vlidas, pode-ria tambm receber da psicologia descritiva e analtica um complexode proposies de que tem necessidade e no submetido a dvida al-guma. Uma rede lgica artificiosa, tecida a partir de dentro e, semcho, agitando-se no ar vazio algum acredita que semelhante teiade aranha ser mais segura e slida do que uma teoria do conheci-mento que se serve de proposies universalmente vlidas e slidas,j extradas e comprovadas nas intuies, nas cincias particulares?

    Poder, porventura, assinalar-se uma teoria do conhecimento que notenha feito de um modo tcito ou expresso semelhantes emprstimos?

    2 Para completar esta breve exposio, remeto para as subtis investigaes deStumpf sobre psicologia e teoria do conhecimento nas publicaes da Academiabvara das Cincias.

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    O que importa se as proposies que se foram buscar de emprstimoresistiram prova da validade universal, da evidncia mais rigorosa,cujo conceito encontrar ento o seu sentido e a justificao do seuemprego nos fundamentos da teoria do conhecimento, os quais re-sidem unicamente na experincia interna. Disto se poderia tambmtratar na aceitao de proposies psicolgicas. Haveria apenas umaquesto: seria possvel facultar tais proposies sem uma psicolo-gia hipottica? J isto nos leva ao problema de uma psicologia em

    que as hipteses no desempenham o mesmo papel que na psicologiaexplicativa agora dominante.

    Mas a relao da psicologia com a teoria do conhecimento dife-rente da que conserva qualquer outra cincia, mesmo as pressupostaspor Kant, a matemtica, a cincia matemtica da natureza e a lgica.A conexo psquica constitui o fundo do processo cognoscitivo e,portanto, este processo s nesta conexo psquica pode ser estudadoe determinado no seu alcance. J vimos que a vantagem metodol-dica da psicologia consiste em que a textura anmica lhe dada de ummodo imediato, vivo, como realidade vivida. A vivncia da mesma

    est subjacente a toda a apreenso dos factos espirituais, histricos esociais. Mais ou menos esclarecida, analisada, investigada. A hist-ria das cincias do esprito tem como seu fundamento esta conexovivida e eleva-a, pouco a pouco, a uma mais clara conscincia. A par-tir daqui pode tambm resolver-se o problema da relao entre teoriado conhecimento e psicologia. Na conscincia viva e na descriouniversalmente vlida desta conexo psquica est contido o funda-mento da teoria do conhecimento. Esta no precisa de uma psicologiacompleta, desenvolvida; pelo contrrio, toda a psicologia desenvol-vida apenas o apuramento cientfico daquilo que constitui tambm

    o fundo da teoria do conhecimento. Teoria do conhecimento psi-cologia em movimento, e que se dirige para uma meta determinada.Tem o seu fundamento na autognose, que abarca toda a realidade in-tacta da vida anmica: a validade universal, a verdade, a realidade,so determinadas no seu sentido unicamente a partir desta realidade.

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    Resumamos. O que importaria exigir da psicologia e o que cons-titui o ncleo do seu mtodo peculiar impelem-nos na mesma direc-o. S uma cincia que denominarei psicologia descritiva e ana-ltica, em oposio explicativa ou construtiva, nos pode livrar detodas as dificuldades expostas. Entendo por psicologia descritiva aexposio das componentes e dos nexos que se apresentam unifor-memente em toda a vida psquica humana desenvolvida, entrelaadosnuma nica textura, que no inferida ou interpolada pelo pensa-

    mento, mas simplesmente vivida. Esta psicologia , portanto, a des-crio e a anlise de uma conexo que, de modo originrio e sempre,nos dada como a prpria vida. Da se depreende uma consequnciaimportante. Tem por objecto as regularidades no contexto da vidapsquica desenvolvida. Expe esta tessitura da vida interna num ho-mem tpico. Observa, analisa, experimenta e compara. Serve-se dequalquer ajuda para a soluo da sua tarefa. Mas o seu significado naarticulao das cincias assenta em que todo o nexo por ela utilizadopode ser univocamente verificado mediante a percepo interna, e emque toda a conexo anloga se pode mostrar como membro da textura

    mais ampla, total, no inferida, mas originalmente dada.O que entendo por psicologia descritiva e analtica tem, ademais,

    de satisfazer outra exigncia, implicada nas necessidades das cinciasdo esprito e na direco da vida por elas.

    As uniformidades que constituem o objecto principal da psico-logia do nosso sculo referem-se s formas do acontecer interno. Ocontedo poderoso da realidade da vida anmica excede esta psicolo-gia. Nas obras dos poetas, nas reflexes sobre a vida expressas porgrandes escritores como Sneca, Marco Aurlio, S. Agostinho, Ma-quiavel, Montaigne, Pascal, encerra-se uma compreenso do homem

    em toda a sua realidade, longe e aqum da qual se encontra qual-quer psicologia explicativa. Mas em toda a literatura reflexiva, quequisesse abarcar a realidade integral do homem, sente-se, ao lado dasua superioridade de contedo, a incapacidade de uma exposio sis-temtica. Sentimo-nos afectados at ao mais ntimo por reflexes

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    isoladas. Aparentemente, patenteia-se nelas a prpria fundura davida. Mas, logo que tentamos estabelecer uma conexo clara, elasno nos servem. Totalmente diferente de tais reflexes a sabedo-ria dos poetas sobre o homem e sobre a vida que nos fala s atravsdas figuras e das disposies dos destinos, aqui e alm iluminados,quando muito, de modo fulgurante pela reflexo. Mas tambm estasabedoria no contm nenhuma urdidura geral apreensvel da vidapsquica. Ouvimos at nusea que o rei Lear, Hamlet e Macbeth

    encerram mais psicologia do que todos os manuais juntos. Oxal es-ses fanticos da arte nos desvendassem a psicologia desenvolvida emtais obras! Se por psicologia entendemos uma exposio da conexoregular da vida psquica, ento as obras dos poetas no contm psi-cologia alguma; no h nelas nenhuma psicologia velada, e nenhumaarte mgica poder delas extrair uma teoria anloga acerca da unifor-midade dos processos psquicos. Mas certo que o modo como asgrandes escritores e poetas abordam a vida humana constitui tarefa ematria para a psicologia. Depara-se aqui com a compreenso intui-tiva da conexo integral de que a psicologia, sua maneira, procura

    aproximar-se, generalizando e servindo-se da abstraco. Deseja-seuma psicologia que seja capaz de apreender na rede das suas descri-es o que estes poetas e escritores contm, e que hoje tambm nose encontra na teoria psicolgica; uma psicologia que torne teis parao saber humano, numa textura de validade universal, os pensamentosque em S. Agostinho, Pascal ou Lichtenberg sobressaem tanto pelasua rude iluminao unilateral; e s uma psicologia descritiva e ana-ltica se pode acercar da resoluo desta tarefa; s no seu mbito possvel tal soluo. Pois parte da conexo vivida, que nos dadade um modo originrio e com uma fora imediata; e expe tambm

    aquilo que ainda inacessvel anlise, sem o silenciar.Se consideramos em conjunto as caractersticas de uma psico-logia descritiva e analtica por ns expostas, veremos tambm comclaridade a importncia que a soluo desta tarefa ter para a prpriapsicologia explicativa. Esta obteria um firme vigamento descritivo,

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    uma terminologia definida, anlises exactas e um instrumento impor-tante para o controlo das suas explicaes hipotticas.

    Captulo II

    A distino entre a psicologia explicativa

    e a descritiva

    No nova a distino entre uma psicologia descritiva e outraexplicativa. Vrias vezes na histria da psicologia moderna se repe-tiu a tentativa de levar a cabo duas abordagens complementares damesma. Christian Wolff via na distino entre psicologia racional eemprica um especial timbre de glria da sua filosofia3 . Segundo ele,a psicologia emprica a cincia emprica que nos faculta o conhe-cimento daquilo que existe na alma humana. Pode comparar-se coma fsica experimental (Deutsche Log., 152 Nach. V. s. Schriften,p. 232). No pressupe a psicologia racional, no pressupe em ge-ral nenhuma outra cincia. Serve antes para examinar e confirmar odesenvolvido a priori pela psicologia racional (Psych. emp. 1, 4,5). Esta por ele designada tambm como explicativa (Ps. rat., 4). Encontra a sua base emprica na psicologia emprica. Por meiodela desenvolve a priori, partindo da ontologia e da cosmologia, oque possvel na alma humana. E como possui a sua base empricana psicologia emprica acha tambm nela o seu controlo (Ps. emp., 5). Mas Kant demonstrou a impossibilidade de uma psicologia raci-onal e, todavia, ficou-nos destas proposies de Wolff, como ncleoprecioso, a distino entre um mtodo descritivo e outro explicativo,

    e a noo de que a psicologia descritiva constitui a base emprica e ocontrolo da explicativa.

    3 Wolff apresentou a distino, primeiro, em Discursus praeliminaris logices, 12 e, em seguida, quando Thming se lhe antecipou no desenvolvimento, apareceua sua psicologia emprica em 1732 e a racional em 1734.

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    Dentro da escola de Herbart, Theodor Waitz desenvolve esta dis-tino em sentido moderno. Na sua Psicologia como cincia natural,1849, fixou o mtodo desta obra, afirmando que explicava os fenme-nos psquicos dados na experincia mediante hipteses adequadas;fundou deste modo, na Alemanha, a Psicologia explicativa segundoo modelo cientfico-natural moderno. Em 1852 exps no Monatss-chriftde Kiel o plano de uma psicologia descritiva que acompanha-ria esta psicologia explicativa. Baseava esta distino na separao

    que existe no conhecimento da natureza entre as cincias descriti-vas e as tericas. A psicologia descritiva, em paralelo com as cin-cias da vida orgnica, dispe dos seus recursos metdicos: descrio,anlise, classificao, comparao e teoria evolutiva; deve sobretudoconstituir-se como psicologia comparada e como teoria da evoluopsquica. A psicologia explicativa ou cientfico-natural trabalha como material que a descritiva lhe subministra, investiga nele as leis ge-rais que regem o desenvolvimento e o curso da vida psquica e expeas relaes de dependncia em que se encontra a via da psquica rela-tivamente ao seu organismo e ao mundo exterior. Compe-se, assim,

    de uma cincia explicativa da vida anmica e de uma cincia da inte-raco entre ela, o organismo e o mundo exterior: diramos, hoje, quese trata de uma psicofsica. E, finalmente, declara: "A claridade e otrabalho cientfico dependem apenas do rigor e da pureza com que serealizar e preservar esta diviso de tarefas." A sua grande obra acercada antropologia dos povos primitivos era uma parte dos trabalhos depsicologia descritiva por ele planeados. No seio da escola herbarti-ana, tambm Drobisch utilizou, em seguida, esta distino e exps,alm da sua psicologia matemtica, a magistral psicologia emprica,cujas descries so ainda hoje valiosas.

    Waitz no conservou somente as ideias de Wolff; ao excluir ometafsico da psicologia explicativa, realizou vrios progressos im-portantes na determinao das relaes entre ambas as psicologias.Reconhecia que os elementos da explicao, de que parte a psicologiacientfico-natural, possuem o carcter de hipteses; afirmou mesmo

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    que a psicologia explicativa unicamente podia mostrar "a possibili-dade de, graas cooperao dos elementos aduzidos de acordo comuma legalidade geral, se constituirem fenmenos psquicos to com-plicados como os que em ns encontramos mediante a observao"(Psychol., p. 26). Deu-se tambm conta da extraordinria amplitudedos recursos de uma psicologia descritiva: estudo comparado, queutiliza a vida psquica dos animais, dos povos primitivos, as altera-es psquicas no progresso da cultura: histria evolutiva dos indi-

    vduos e da sociedade. E sem dirigir um olhar para os manuais daescola herbartiana, navegou no mar alto da antropologia dos povosprimitivos e da incomensurvel histria das religies: um ousado eobstinado descobridor, ao qual unicamente se fixou demasiado cedoo seu objectivo; de outro modo teria conseguido, juntamente comLotze e Fechner, na histria da psicologia moderna, uma influnciamuito diferente da que, efectivamente, lhe correspondeu.

    Dois pontos de vista me parecem exigir uma ulterior transforma-o das relaes entre a psicologia descritiva e a explicativa, que valm de Waitz.

    A psicologia explicativa nasceu da anlise da percepo e da me-mria. O seu cerne foi, desde o incio, constituido por sensaes,representaes, sentimentos de prazer e de dor na qualidade de ele-mentos, e tambm pelos processos entre estes elementos, sobretudoo de associao, aos quais se juntaram, como processos explicativos,a apercepo e a fuso. No tem, pois, por objecto a natureza hu-mana integral e o seu entrecho concreto. Por isso, numa poca emque estes limites da psicologia explicativa sobressaam com maior ri-gor ainda do que hoje, contrapus-lhe o conceito de uma psicologiareal (v. o meu estudo sobre Novalis), cujas descries visavam apre-

    ender a integridade da vida psquica, as conexes que nela existem e,alm das suas formas, tambm o seu contedo. Inscrevem-se nestecontedo factos cuja dureza nenhuma anlise convincente, at agora,conseguiu fender. Deparamos assim, no seio da nossa vida afectivae impulsiva, com o af de conservao e de expanso do nosso Si

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    mesmo; dentro do nosso conhecimento, com o carcter de necessi-dade em certas proposies e, na esfera das nossas aces volitivas,com o dever-ser ou com as normas que se apresentam conscin-cia com carcter absoluto. necessria uma sistemtica psicolgicaem que encontre espao todo o contedo da vida da alma. Assim,tambm a poderosa realidade da vida, que os grandes escritores e po-etas tentavam e tentam apreender, vai alm das fronteiras da nossapsicologia escolar. O que a se expressa de um modo intuitivo, com

    smbolos poticos, com vislumbres geniais, ter de ser estabelecidopor uma psicologia que descreva todo o contedo da vida anmica,saiba atribuir-lhe o seu lugar e seja capaz de o analisar.

    Para quem se ocupa da conexo das cincias do esprito sobressaineste momento outro ponto de vista. As cincias do esprito necessi-tam de uma psicologia que, antes de mais, seja firme e segura, coisade que no se pode ufanar nenhuma das psicologias explicativas hojeexistentes, e que ao mesmo tempo submeta toda a poderosa reali-dade da vida psquica descrio e, na medida do possvel, anlise.Pois a anlise da realidade social e histrica, to complexa, s poder

    ser levada a cabo se esta realidade for, primeiro, desmembrada nosdiversos sistemas de fins que a integram; cada um dos sistemas teleo-lgicos, como a vida econmica, o direito, a arte e a religio, permiteem seguida, graas sua homogeneidade, uma anlise da sua textura.Mas a trama de tal sistema apenas a conexo psquica prpria doshomens que nele cooperam. portanto, em ltimo termo, somenteuma conexo psicolgica. Poder assim ser entendida por uma psi-cologia que encerre em si a anlise destas conexes, e o resultado desemelhante psicologia s ser relevante para os telogos, os juristas,os economistas ou os historiadores da literatura contanto que a partir

    dela no se introduza nas cincias empricas do esprito um elementode incerteza, de unilateralidade, de partidismo cientfico.Os dois pontos de vista expostos encontram-se, claro est, numa

    relao intrnseca recproca. A considerao da prpria vida exigeque se exponha toda a realidade intacta e poderosa da alma, desde

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    as suas possibilidades nfimas at s supremas. uma das exign-cias que a si mesma a psicologia deve impor, se no quiser ficar atrsda experincia da vida e da intuio potica. O mesmo exigem jus-tamente as cincias do esprito. Na sua fundamentao psicolgica,devero expor-se e, por assim dizer, encontrar o seu lugar todas asforas anmicas, todas as formas psquicas, desde as infimas s supre-mas, ao gnio religioso, ao fundador de religio, ao heri histricoe ao criador artstico, como aqueles que fazem avanar a histria e a

    sociedade. E ao fixar assim a tarefa, abre-se psicologia um caminhoque promete um grau muito maior de segurana do que aquele que apsicologia explicativa pode alcanar quanto aos seus mtodos. Parte-se do homem civilizado desenvolvido. Descreve-se a trama da suavida psquica, fazem ver-se com toda a clareza possvel as manifes-taes principais da mesma, servindo-se de todos os recursos da ac-tualizao artstica, analisam-se do melhor modo possvel as diversasconexes singulares contidas nesta textura abrangente. Nesta anlisevai-se at onde possvel; o que lhe resiste deixa-se tal como ; da-quilo cuja conexo podemos mais profundamente perscrutar oferece

    a explicao da sua gnese, indicando, todavia, o grau de certeza quelhe corresponde; apela-se em todo o lado psicologia comparada, histria evolutiva, ao experimento, anlise dos produtos histricos:a psicologia transformar-se- ento no instrumento do historiador,do economista, do poltico e do telogo; poder assim dirigir e guiartambm o observador dos homens e o homem prtico.

    A partir destes pontos de vista, o conceito da psicologia explica-tiva e o da descritiva e a relao entre as duas ganham uma configu-rao que se determina com maior pormenor nos captulos seguintes.

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    Captulo III

    A psicologia explicativa

    Entendemos doravante por psicologia explicativa a derivao dosfactos que ocorrem na experincia interna, no esforo, no estudo dosoutros homens e na realidade histrica, a partir de um nmero limi-tado de elementos encontrados por meio da anlise. Por "elemento"entender-se-, em seguida, cada componente da fundamentao psi-colgica que se utiliza para explicar os fenmenos psquicos. Por-tanto, para a construo da psicologia explicativa, um elementotanto a conexo causal dos fenmenos psquicos segundo o princpiocausa aequat effectum, ou a lei de associao, como o pressuposto derepresentaes inconscientes ou a sua aplicao.

    Por isso, a primeira caracterstica da psicologia explicativa, comoj tinham pressuposto Wolf e Waitz, a sua marcha sinttica ou cons-trutiva. Ela deriva todos os factos que se encontram na experincia

    interna e nas suas expanses de um nmero limitado de elementosunivocamente determinados. As origens desta corrente construtivada psicologia religam-se historicamente ao esprito construtivo dagrande cincia da natureza do sculo XVII. Descartes e a sua es-cola, tal como Espinosa e Leibniz, construram a partir de hipteses,sob o pressuposto da plena transparncia desta situao, as relaesentre os processos corporais e as operaes psquicas. Leibniz foio primeiro que, fixando-se por assim dizer atrs da vida psquicadada, tentou "construir" o influxo que no decurso consciente do pen-samento exercem a conexo adquirida da vida psquica e a repro-

    duo das representaes, mediante conceitos auxiliares que ideoupara completar o dado: assim o princpio da continuidade e, por con-seguinte, o da gradao contnua dos estados de conscincia desdeos graus de conscincia infinitamente pequenos, e facilmente se ad-verte a ligao que mantm com as suas descobertas matemticas e

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    metafsicas. Tambm o materialismo foi inspirado pela mesma cor-rente construtiva do esprito, que postulava a possibilidade de elevar conceptualizao transparente o dado na vida psquica, apelandopara tal a conceitos auxiliares complementares. A atitude de consci-ncia do esprito construtivo explica alguns rasgos decisivos da psi-cologia construtiva do sculo XVII e dos comeos do XVIII, queainda persistem. Concepes muito influentes na actualidade so de-rivadas desta posio construtiva da conscincia. Ao rastrear estas

    circunstncias, capta-se a condicionalidade histrica da psicologiaconstrutiva: expressa-se nela o poder dos mtodos e dos conceitosfundamentais da cincia da natureza manifesto em todos os ramos dosaber: pode, portanto, submeter-se a uma crtica histrica.

    O capital que a psicologia explicativa gere consiste num nmerolimitado de elementos univocamente determinados, a partir dos quaisse podem construir todas as manifestaes da vida psquica. Mas aprocedncia deste capital muito diversa. Neste ponto, as velhasescolas de psicologia distinguem-se das que predominam na actuali-dade. A psicologia anterior a Herbart, Drobisch e Lotze deduzia da

    metafsica uma parte destes elementos; a psicologia moderna - estateoria da alma sem alma - vai buscar os elementos para a sua sn-tese anlise dos fenmenos psquicos na sua unio com os factosfisiolgicos. Portanto, o desenvolvimento rigoroso de um modernosistema de psicologia explicativa compe-se de anlise, que encontraos elementos nos fenmenos psquicos, e de sntese ou construo,que, a partir deles, estabelece os fenmenos da vida psquica e com-prova assim a sua adequao. O conjunto e a relao destes elemen-tos constituem as hipteses com que se explicam estes fenmenospsquicos.

    Portanto, o processo dos psiclogos explicadores o mesmo deque se serve, no seu campo, o investigador da natureza. A seme-lhana no mtodo torna-se ainda maior em virtude de o experimento,graas a um progresso notvel, se ter transformado num recurso nor-mal da psicologia em muitos dos seus campos. E a semelhana au-

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    mentaria ainda se tivesse xito qualquer dos intentos de aplicaode determinaes quantitativas, no s nos arrabaldes da psicologia,mas no seu prprio seio. Para a insero de um sistema na psicologiaexplicativa naturalmente indiferente a ordem em que se apresentemestes elementos. Importa, sim, que a psicologia explicativa trabalhecom o capital de um nmero limitado.

    Mediante esta caracterstica ser-nos- possvel demonstrar que al-gumas das obras psicolgicas mais influentes da actualidade perten-

    cem a esta corrente explicativa da psicologia; e, a partir desta carac-terstica, at poderemos entender as correntes principais da modernapsicologia explicativa.

    Como se sabe, a psicologia inglesa encontrou a sua exposiomais ampla, depois do antecedente de Hume (1739-1740) e de Har-tley (1746), na grande obra de James Mill, Anlise dos fenmenosdo esprito humano. Esta obra estabelece como base a hiptese deque toda a vida anmica, nas suas manifestaes mais altas, se desdo-bra com necessidade causal, a partir de elementos simples, sensveis,numa vida interna em que operam as leis da associao. O mtodo

    demonstrativo desta psicologia explicativa consiste na anlise e nacomposio, revelando que os elementos assinalados explicam comsuficincia os processos superiores da vida anmica. O filho de Jamese herdeiro do seu pensamento, John Stuart, descreve na sua Lgicao mtodo da psicologia como uma cooperao da descoberta indu-tiva dos elementos e a comprovao sinttica dos mesmos, em totalacordo com o procedimento do seu pai.

    Mas desenvolve j com a maior nfase o valor lgico de umrecurso mental, que se revela necessrio nesta psicologia dos doisMill. Supe uma qumica psquica; quando se conjugam ideias ou

    sentimentos simples, podem gerar um estado que, para a percepointerna, simples e, ao mesmo tempo, qualitativamente diferentedos factores que o geraram. As leis da vida psquica podem, pois,comparar-se, umas vezes, s leis mecnicas e, outras, s qumicas.Quando no esprito cooperam muitas impresses ou representaes,

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    tem lugar um processo que se assemelha a uma combinao qu-mica. Quando se experimentaram impresses combinadas com tantafrequncia que cada uma delas pode evocar facilmente e de um modoinstantneo todo o grupo, essas ideias fundem-se entre si e j noaparecem como vrias, mas como uma s; tal como as sete cores doprisma suscitam a impresso da cor branca quando so apresentadasao olho em rpida sucesso. claro que a suposio de semelhanteprincpio to geral e indeterminado, que contrasta de modo to pal-

    mar com a exactido das leis da natureza, deve facilitar enormementea sua tarefa ao psiclogo explicativo. Pois encobre a deficincia daderivao. Permite apoiar-se em certos antecedentes regulares e col-matar as lacunas entre eles e o estado seguinte, mediante a qumicapsquica. Mas, ao mesmo tempo, o grau nfimo de fora convincenteque corresponde a esta construo e aos seus resultados deve baixarpara zero.

    Sobre esta escola psicolgica edificou-se, na Inglaterra, a de Her-bert Spencer. No ano de 1855 apareceram, pela primeira vez, os doisvolumes da sua Psicologia e tiveram uma grande influncia sobre a

    investigao psicolgica europeia. O mtodo desta obra era muitodiferente do empregue pelos Mill. No se servia apenas do mtodocientfico-natural, como eles fizeram, mas, de harmonia com Comte,lanou-se a subordinar os fenmenos psquicos conexo real dosfenmenos fsicos e, portanto, a psicologia cincia natural. Alicer-ou a psicologia na biologia geral. Mas aprontou nesta os conceitosde adaptao do ser vivo ao seu meio, evoluo de todo o mundoorgnico e paralelismo dos processos que tm lugar no sistema ner-voso com os processos internos ou psquicos. Interpretou, portanto,os estados internos e a sua conexo mediante o estudo do sistema

    nervoso, da considerao comparada dos organismos do mundo ani-mal e da pesquisa da adaptao ao mundo exterior. Ingressam assimnovamente na psicologia explicativa elementos explicatrios dedu-tivamente determinados, como j acontecera com Wolff, Herbart eLotze. S que agora no provinham da metafsica mas, de acordo

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    com a mudana dos tempos, da cincia geral da natureza. Sob estasnovas condies, a obra de Spencer no passa de uma psicologia ex-plicativa. A sua prpria ordenao externa divide-a em duas partes:a primeira extrai um n de hipteses do estudo do sistema nervoso,do estudo comparado do mundo animal e da experincia interna, pormeio de ilaes convergentes; a segunda pe estas hipteses comobase do mtodo explicativo. S que Spencer limitou este procedi-mento investigao da inteligncia humana. A explicao dos es-

    tados emotivos afigurou-se-lhe, na altura, irrealizvel. "Quando sepretende explicar algo, separando as suas diversas partes e investi-gando o modo e o jeito como entre si se enlaam, deve tratar-se dealgo que possua realmente partes diferenciveis e unidas de um mododeterminado. Se lidarmos com um objecto, decerto composto, mascujos diversos elementos se encontram to confusamente misturadose fundidos que no possvel conhec-los isoladamente com sufici-ente rigor, deve supor-se de antemo que a tentativa de uma anlise,no caso de no ser de todo estril, s levar a consequncias duvido-sas e insuficientes. Este contraste existe, de facto, entre as formas da

    conscincia que distinguimos como intelectuais e emotivas."Neste contexto surgem para Spencer os seguintes recursos men-

    tais da psicologia explicativa. Transfere da evoluo exterior do mun-do animal para a interna um princpio de diferenciao crescente daspartes, funes e integrao, isto , do estabelecimento de uniessuperiores e mais finas entre estas funes diferenciadas, e para aexplicao de problemas que a psicologia individual no conseguiuresolver de um modo convincente, sobretudo o problema da origemdo a priori, serve-se deste princpio de evoluo, que actua dentrode todo o reino animal. Em seguida, explica, a partir da estrutura

    do sistema nervoso, das suas clulas nervosas e das fibras nervosasconectoras, a articulao da vida psquica, dos seus elementos e dasrelaes que entre eles existem. Por fim, sobre a base da hiptesedo paralelismo psicofsico, pode interpolar-se a conexo fisiolgicaonde a tessitura psquica apresenta lacunas.

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    Sem dvida, a psicologia explicativa de Spencer, em vrios pon-tos, aproxima-se mais da vida da conexo psquica do que foi poss-vel escola dos Mill. Tambm a insero na cincia da natureza for-nece ao n de hipteses um apoio mais firme e uma maior autoridade.Mas esta insero mediante a teoria do paralelismo psicofsico trans-forma a psicologia explicativa assim condicionada em assunto de umpartido cientfico. Imprime-lhe o selo de um materialismo refinado.Esta psicologia no representa para os juristas ou os historiadores da

    literatura uma base segura, mas um perigo. Todo o desenvolvimentoulterior mostrou como na economia poltica, no direito penal e nateoria do Estado, o materialismo dissimulado da psicologia explica-tiva, tal como Spencer a configurou, actuou de um modo destrutivo.E o prprio clculo psicolgico, na medida em que opera com per-cepes internas, torna-se ainda mais inseguro, graas introduode uma nova hiptese.

    A corrente spenceriana da psicologia explicativa difundiu-se demodo incontido na Frana e na Alemanha. Aliou-se de mltiplasformas ao materialismo. Este, em todos os seus matizes, sem-

    pre psicologia explicativa. Toda a teoria que estabelece como basea contextura dos processos fsicos e a estes subordina os factos ps-quicos uma teoria materialista. Influenciada pelo materialismo econdicionada em alto grau por Spencer se nos apresenta a psicolo-gia dos maiores autores cientficos franceses da ltima gerao. Oprimeiro fragmento da sua psicologia publicado por Spencer apare-cera em 1853, antes da publicao da obra completa (1855) e tinhacomo objecto a indagao das bases da nossa inteligncia. Em 1864surge a obra filosfica de Hippolyte Taine sobre a inteligncia hu-mana. Baseia-se sobretudo em Spencer, utilizando tambm os dois

    Mill. O prprio Spencer escreve acerca da difuso das suas ideiaspsicolgicas: "Na Frana, o senhor Taine aproveitou a ocasio da suaobra sobre inteligncia para dar a conhecer algumas dessas ideias."Mas tambm Taine acrescentou algo aos mtodos da psicologia ex-plicativa. Na altura, privilegiava-se na Frana o estudo dos factos

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    psquicos anormais e tendia-se a utilizar na pesquisa das leis da vidapsquica os fenmenos agrupados e interpretados pelo alienista, pelopsiquiatra, pelo hipnotizador e pelo criminalista. A teoria da afini-dade entre o gnio e a loucura uma descoberta genuinamente fran-cesa; encontrou eco na Itlia, como em geral as invenes francesas.Taine foi o primeiro psiclogo "explicador" que empreendeu a ampli-ao dos mtodos psicolgicos introduzindo o estudo dos factos ps-quicos anormais na psicologia propriamente dita. No necessrio

    expor a hiptese singular que, a este propsito, acrescentou aos pres-supostos da psicologia explicativa, j que no obteve uma influnciaconsidervel. "A natureza, com a ajuda de percepes e de gruposde imagens, produz em ns, segundo leis, fantasmas que considera-mos como objectos exteriores e quase sempre sem nos equivocarmos,porque existem de facto objectos exteriores que lhes correspondem.As percepes exteriores so verdadeiras alucinaes." Mas tem uminteresse geral observar a fatal influncia que esta teoria exerceu nahistoriografia de Taine. Assim como a unilateral psicologia expli-cativa dos Mill influiu com muita desvantagem nos grandes talentos

    histricos como Grote e Buckle, assim tambm o filsofo Taine, quede todos ns faz alucinados perptuos, forneceu ao historiador Tainea sua interpretao de Shakespeare e a sua concepo da Revoluofrancesa como uma espcie de alucinao das massas. Ribot juntou-se em seguida a Taine.

    Entretanto, Herbart desenvolveu na Alemanha uma psicologia ex-plicativa que conquistou as ctedras, sobretudo na ustria e na Sax-nia. A sua importncia extraordinria para o progresso da psicologiaexplicativa deveu-se a ela ter agido com um grande rigor cientficonas exigncias metdicas implicadas pela tarefa de buscar uma ex-

    plicao, segundo o modelo das cincias da natureza. Se a psicologiaexplicativa tem de apreender conceptualmente sem excepo algumaos processos psquicos, dever estabelecer como base o pressupostodo determinismo. Mas, ao partir desta suposio, no pode esperarvencer as dificuldades da instabilidade dos processos psquicos, das

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    suas diferenas individuais e dos limites estreitos da observao, seno for capaz de introduzir determinaes quantitativas nas suas ex-plicaes, como fazem as cincias fsicas. Conseguir ento dar ssuas leis uma forma mais rigorosa: pode igualmente surgir uma me-cnica da vida psquica. Herbart no conseguiu este propsito de ummodo efectivo nos seus trabalhos, mas a direco foi seguida por Fe-chner; ao valorizar os ensaios de Ernst Heinrich Weber, estabeleceuuma relao quantitativa entre o incremento da fora do estmulo e o

    aumento da intensidade da sensao. E foi tambm importante paraa introduo da medida e do nmero no campo psicofsico e psquicoo facto de nestas investigaes ter desenvolvido os mtodos das mu-danas mnimas, dos graus mdios, do erro mdio, dos casos verda-deiros e falsos. De um outro ponto de vista abriu tambm o caminhopara a observao quantitativa dos processos psquicos. O astrnomoalemo Bessel, ao comparar as determinaes temporais de diversosastrnomos acerca do mesmo fenmeno, embateu na descoberta dadiferena pessoal entre os astrnomos. O momento em que uma es-trela passa pelo meridiano diversamente determinado por diferentes

    observadores. Isto condicionado pela diferena na durao tempo-ral requerida para se produzir a percepo sensvel e o seu registo.Os astrnomos e os bilogos deram-se conta do alcance psicolgicodeste facto. Surgiram assim tentativas para medir o tempo exigidopelo decurso dos diversos fenmenos psquicos.

    Estes trabalhos, ao apresentarem-se ao mesmo tempo como ex-perimentos psicolgicos e psicofsicos, apontaram na direco deuma psicologia experimental, juntamente com as grandes anlisesdas nossas percepes pticas e sonoras, graas s quais sobretudoHelmholtz abriu outro caminho experimentao na vida psquica.

    Aconteceu assim que na Alemanha se alargaram extraordinariamenteos recursos intelectuais da psicologia descritiva, em virtude da elabo-rao do experimento psicofsico e psicolgico. Foi este um procedi-mento que proporcionou Alemanha, a partir da dcada de setenta,a primazia indiscutvel na cincia psicolgica. Com a introduo do

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    experimento, cresceu de modo extraordinrio o poder da psicologiaexplicativa. Abriu-se uma perspectiva sem limites. Com a intro-duo do experimento e da determinao quantitativa, a psicologiaexplicativa, seguindo o modelo da cincia natural, podia obter umfundamento firme por meio de relaes "legais" experimentalmentecontroladas e quantitativamente determinadas. Mas, nesta situaodecisiva, surgiu o contrrio do que haviam esperado os entusiastasdo mtodo experimental.

    No mbito pscofsico, o experimento levou a uma anlise muitovaliosa da percepo sensvel. Revelou-se como o instrumento im-prescindvel dos psiclogos para o estabelecimento de uma descrioexacta de processos psquicos internos, tais como o estreitamento daconscincia, a velocidade dos processos anmicos, os factores da me-mria, o sentido do tempo; a habilidade e a pacincia dos experi-mentadores conseguiro, decerto, obter pontos de apoio para abordarexperimentalmente outras situaes intrapsquicas. Mas de nenhummodo levou ao conhecimento de leis no campo psquico interno. Foi,pois, til para a descrio e a anlise. Mas, at agora, defraudou as

    esperanas que a psicologia explicativa nele depusera.Nestas circunstncias, a actual psicologia alem oferece duas ma-

    nifestaes notveis no tocante utilizao do mtodo explicativo.Uma escola influente avana, com passo decidido, no caminho

    da subordinao da psicologia ao conhecimento natural, mediante ahiptese do paralelismo entre processos fisiolgicos e fsicos4 . Ofundamento da psicologia explicativa o postulado de que no existenenhum fenmeno psquico que no seja acompanhado por um fe-nmeno fsico. Assim, no decurso da vida, h uma correspondn-cia mtua entre a srie dos processos fisiolgicos e a dos fenme-

    nos psquicos concomitantes. A srie fisiolgica constitui uma tex-tura fechada, sem lacunas e necessria. Pelo contrrio, as alteraes

    4 Podemos ver com a mxima simplicidade o mtodo desta escola na obra deMnsterberg sobre objectivos e mtodos da psicologia (1891). Esta obra tem omrito de ser uma exposio clara e precisa desse ponto de vista.

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    psquicas, tal como acontecem na percepo interna, no se podemjuntar numa conexo semelhante. Que atitude se segue daqui parao psiclogo explicativo? Deve transferir a conexo necessria, queencontra na srie fsica, para a srie psquica. A sua tarefa descreve-se com maior pormenor: "Decompor a totalidade dos contedos deconscincia nos seus elementos, estabelecer as leis de combinao eas combinaes singulares destes elementos, buscar empiricamentepara cada contedo psquico elementar o estmulo fisiolgico conco-

    mitante, a fim de assim poder explicar de um modo indirecto, a partirda coexistncia e da sucesso causalmente inteligveis daquelas ex-citaes fisiolgicas, as leis de combinao e as combinaes dos di-versos contedos psquicos que no se podem explicar de um modopuramente psicolgico." Com isto anuncia-se apenas a bancarrota deuma psicologia explicativa autnoma. Os seus assuntos passam paraas mos da fisiologia. Ao investigador natural que se ocupa da fisio-logia oferecem-se recursos muito maleveis para a interpretao dosfactos psquicos. Onde na experincia interna no h um membro deenlace entre as condies e o efeito, basta inserir elos fisiolgicos,

    que no possuem nenhum equivalente psquico. Poder assim expli-car facilmente, por exemplo, na aco volitiva, o que no possvelexplicar a partir dos elementos explicativos psquicos pressupostos.

    Se atendermos ao conjunto dos recursos da psicologia explicativaassim elaborados, veremos que o objecto de semelhante psicologiaexplicativa constituido s por possibilidades, e a sua finalidade unicamente uma qualquer probabilidade.

    Mas a marcha da investigao experimental desencadeou, ao mes-mo tempo, outra viragem muito notvel. Wilhelm Wundt, que foi oprimeiro entre os psiclogos a delimitar todo o campo da psicologia

    experimental como um ramo especial do saber, que criou um institutode grande estilo de que partiu o impulso mais forte para a elaboraosistemtica da psicologia experimental, e que no seu manual resu-miu, pela primeira vez, os resultados dessa psicologia, viu-se obri-gado, pelo andamento dos seus amplos ensaios experimentais, a en-

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    trar numa concepo do psiquismo que abandona o ponto de vista,at ento predominante. "Quando eu conta ele abordei pela pri-meira vez os problemas psicolgicos, partilhava o preconceito co-mum aos fisilogos de que a formao das percepes sensveis eraapenas obra das propriedades fisiolgicas dos nossos rgos do senti-dos. Mas, ao estudar as actividades do sentido da vista, dei-me contadaquele acto de sntese criadora que, pouco a pouco, foi o meu guiana conquista de uma compreenso psicolgica do desenvolvimento

    das funes superiores da fantasia e da inteligncia, para o qual avelha psicologia no me oferecia meio algum." Fixou o princpio doparalelismo nos termos seguintes: "o paralelismo psicofsico s sepode aplicar aos processos psquicos elementares, que apenas soacompanhados paralelamente por fenmenos dinmicos muito bemlimitados, mas no se pode aplicar a nenhum dos produtos compli-cados da vida espiritual, suscitados por uma elaborao espiritual domaterial sensvel, nem tambm s foras gerais, intelectuais, de quedimanam esses produtos" (Menschen und Tiereseele, p. 487, cf. acausalidade psquica e o princpio do paralelismo psquico, sobre-

    tudo nas pp. 38 ss.). Alm disso, renunciou validade do causa ae-quat effectum no mundo espiritual; reconheceu o facto da sntese cri-adora; "entendo por ela o facto de que os elementos psquicos geram,mediante as suas interaces causais e os seus efeitos consequentes,unies que podem, decerto, explicar-se psicologicamente a partir dassuas componentes, mas que, todavia, possuem propriedades qualita-tivas que no estavam contidas nos elementos; por isso, entrosam-se tambm com estas novas propriedades determinaes axiolgicaspeculiares no prefiguradas nos ditos elementos. Na medida em quea sntese psquica produz em tais casos algo novo, dou-lhe o nome

    de criadora"; em oposio lei da conservao da energia fsica, no"encadeamento da sntese criadora numa srie evolutiva progressiva"encerra-se um "princpio de incremento da energia espiritual" (op.cit., p.116). Com mais fora ainda do que Wundt acentuam James,na sua Psicologia, e Sigwart, no novo captulo da sua Lgica sobre

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    os mtodos da psicologia, em que recomenda tambm que se cultivea psicologia descritiva, o elemento livre e criador dentro da vida