DIÁLOGO GLOBAL -...

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DIÁLOGO GLOBAL NEWSLETTER > A tripla virada da Sociologia Taiwanesa > Sociologia de uma pequena nação > Questões morais no Chile > Políticas do meio ambiente no Chile > Migrantes ocupam o centro de Santiago > Internacionalizando a sociologia > A sociologia estadunidense em declínio? > Os Bálcãs além da Balcanização > Interdisciplinaridade > Sociologia e as transformações sociais > Movimentos sociais globais > Participação de jovens na ONU > Foto-ensaio: As verdadeiras Bedik Sociologia como Vocação André Béteille, Jacklyn Cock Respostas à Crise em Portugal José Soeiro, Dora Fonseca, Maria Luísa Quaresma Mustafa Attir, Sari Hana, Feras Hammami Política no Oriente Médio VOLUME 3 / EDIÇÃO 2 / FEVEREIRO 2013 www.isa-sociology.org/global-dialogue/ GD 3.2 5 edições por ano em 14 idiomas

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  • DILOGO GLOBAL NEWS

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    > A tripla virada da Sociologia Taiwanesa

    > Sociologia de uma pequena nao

    > Questes morais no Chile

    > Polticas do meio ambiente no Chile

    > Migrantes ocupam o centro de Santiago

    > Internacionalizando a sociologia

    > A sociologia estadunidense em declnio?

    > Os Blcs alm da Balcanizao

    > Interdisciplinaridade

    > Sociologia e as transformaes sociais

    > Movimentos sociais globais

    > Participao de jovens na ONU

    > Foto-ensaio: As verdadeiras Bedik

    Sociologia como Vocao Andr Bteille, Jacklyn Cock

    Respostas Crise em Portugal

    Jos Soeiro, Dora Fonseca,

    Maria Lusa Quaresma

    Mustafa Attir, Sari Hanafi ,

    Feras Hammami

    Poltica no Oriente Mdio

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    5 edies por ano em 14 idiomas

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    E iu escrevo este editorial de Ramallah, o centro administrativo da Autoridade Palestina em West Bank um lugar de exceo que abre novas perspectivas de dominao, afetando as condies de produo da sociologia, no menos do que o objeto de seu estudo. Se Gaza experimenta a rpida e terrvel violncia dos bombardeios, o West Bank experimenta a violncia lenta para seguir a formulao de Jackie Cock nesta edio da Dilogo Global de diviso geogrfi ca, multiplicao de postos de inspeo, os muros que expelem os palestinos de sua terra, sepa-rando-os dos demais, tudo conspirando para promover a expanso unilateral dos assentamentos israelenses.

    A vida em West Bank defi nida pela incerteza e insegurana, no menos na vida no campus universitrio. Mas os palestinos possuem formas de se de-fender quando o estado israelense os brutaliza. Por exemplo a Universidade de Al-Quds, sediada em Abu Dis, tem apoiado uma experincia nica chama-da Campus in Camps um projeto que traz uma nova educao crtica aos campos de refugiados. A idia de Alessandro Petti, Sandi Hilal e Munir Fasheh, alm de quinze homens e mulheres jovens de quatro campos, permitiu criar um dicionrio coletivo que problematiza os conceitos bsicos da cincia social cidadania, participao, bem-estar, sustentabilidade, conhecimento, relao, rea pblica infundindo-os com signifi cado local. Esse intenso pro-cesso de educao freireana trouxe uma transformao da concincia social em que os campos no so mais vistos como um lugar de vitimizao, mas um espao poltico que tem se constitudo de reconstitudo desde 1948.

    Como Feras Hammami descreve nesta edio da Dilogo Global, o estado de exceo afeta os dominadores tambm o estado israelense suprime os dissidentes dentro de suas prprias universidades. claro, Israel no o nico exemplo de controle ditatorial nessa regio. Mustafa Attir descreve como era conduzir a sociologia sob o regime de Kadafi e os desafi os que isso traz para a nova ordem. Indo adiante, socilogos chilenos Oriana Bernasconi, Ale-jandro Pelfi ne e Carolina Stefoni descrevem as limitaes e os paradoxos da transio democrtica quando ela afeta questes morais, meio ambiente e mi-grao. O tema da democratizao tambm compe a descrio de Michael Hsiao sobre a trajetria ascendente da sociologia taiwanesa, a comear pela importao da teoria mtodos norte-americanos, e a subsquente virada para uma crtica ao partido-estado autoritrio KMT, seguido por uma virada radical quando os socilogos ingressaram no movimento democrtico. Contrariando essa viso otimista, Su-Jen Huang coloca em dvida a sociologia produzida em pases pequenos com uma comunidade limitada de pesquisa.

    Esses impedimentos, contudo, no impedem tcnicas inovadoras de inter-veno sociolgica. Como ns aprendemos com Jos Soeiro e Dora Fonseca, os socilogos portugueses tm desenvolvido mobilizaes inovadoras con-tra medidas austeras, muitas delas transplantadas da Amrica Latina. Esses jovens socilogos esto menos preocupados com os dilemas to eloquente-mente descritos por Elosa Martn, editora da Current Sociology, os dilemas de operao em um mundo profi ssional governado por normas do Norte. Eles esto prontos para adaptar e recriar a sociologia, de qualquer lugar, para desa-fi ar a destrutividade da terceira onda de mercantilizao e seus instrumentos polticos.

    > Editorial

    > A Dilogo Global pode ser lidar em 14 idiomas no website da ISA> Submisses devem ser enviada para: [email protected]

    Enfrentando um mundo desigual

    Andr Bteille, um dos mais ilustres da ndia cientistas sociais, discute a relao emaranhada entre a sociologia e a antropo-logia, socilogos e como deve manter uma autonomia crtica quando entram poltica e domnios pblicos.

    Em uma entrevista com Sari Hanafi, socil-ogo da Lbia Mustafa Attir descreve o que era ser um socilogo sob o regime repressivo de Kadafi e os desafios enfrentados pelos socilogos da Lbia de hoje.

    Jacklyn Cock, feminista, ambientalista e pensadora crtica, mostra a onipresena da lenta e destrutiva violncia na frica do Sul hoje - um tema central e necessrio para a anlise sociolgica.

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    http://www.isa-sociology.org/mailto:[email protected]:[email protected]

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    Editor: Michael Burawoy.

    Editores Executivos: Lola Busuttil, August Bag.

    Editores Associados: Margaret Abraham, Tina Uys, Raquel Sosa, Jennifer Platt, Robert Van Krieken.

    Conselho Editorial: Izabela Barlinska, Louis Chauvel, Dilek Cindolu, Tom Dwyer, Jan Fritz, Sari Hanafi , Jaime Jimnez, Habibul Khondker, Simon Mapadimeng, Ishwar Modi, Nikita Pokrovsky, Emma Porio, Yoshimichi Sato, Vineeta Sinha, Benjamn Tejerina, Chin-Chun Yi, Elena Zdravomyslova.

    Editores Regionais

    Mundo rabe: Sari Hanafi , Mounir Saidani.

    Brasil: Gustavo Taniguti, Juliana Tonche, Pedro Mancini, Clia da Graa Arribas, Andreza Galli, Renata Barreto Preturlan, Rossana Marinho.

    Colmbia: Mara Jos lvarez Rivadulla, Sebastin Villamizar Santamara, Andrs Castro Arajo.

    ndia: Ishwar Modi, Rajiv Gupta, Rashmi Jain, Uday Singh.

    Ir: Reyhaneh Javadi, Najmeh Taheri, Hamidreza Rafatnejad, Saghar Bozorgi, Zohreh Sorooshfar, Faezeh Khajehzadeh.

    Japo: Kazuhisa Nishihara, Mari Shiba, Kousuke Himeno, Tomo-hiro Takami, Yutaka Iwadate, Kazuhiro Ikeda, Yu Fukuda, Michiko Sambe, Takako Sato, Shohei Ogawa, Tomoyuki Ide, Yuko Hotta, Yusuke Kosaka.

    Polnia: Mikoaj Mierzejewski, Karolina Mikoajewska, Jakub Rozen-baum, Krzysztof Gubaski, Emilia Hudziska, Julia Legat, Adam Mller, Tomasz Pitek, Anna Piekutowska, Anna Rzenik, Konrad Siemaszko, Justyna Witkowska, Zofi a Wodarczyk.

    Romnia: Cosima Rughinis, Ileana Cinziana Surdu.

    Rssia: Elena Zdravomyslova, Anna Kadnikova, Elena Nikiforova, Asja Voronkova, Ekaterina Moskaleva and Julia Marti-navichene

    Taiwan: Jing-Mao Ho.

    Turquia: Aytl Kasapolu, Nilay abuk Kaya, Gnnur Ertong, Yonca Odaba, Zeynep Baykal, Gizem Gner.

    Consultores de Mdia: Annie Lin, Jos Reguera.

    Consultor de Edio: Abigail Andrews.

    > Corpo Editorial > Nesta Edio

    Editorial: Enfrentando um mundo desigual

    A vocao da sociologia Uma viso pragmtica Por Andr Bteille, ndia

    A vocao da sociologia Expondo a violncia lenta Por Jacklyn Cock, frica do Sul

    > POLTICA NO ORIENTE MDIOA sociologi lbia durante e depois da ditaduraUma entrevista com Mustafa Attir, Lbia

    Crise poltica em universidades israelenses Por Feras Hammami, Sucia

    > RESPOSTAS CRISE EM PORTUGAL Teatro dos oprimidos Uma forma de sociologia pblica?Por Jos Soeiro, Portugal

    Precrios, mas infl exveis Por Dora Fonseca, Portugal

    A sociologia na areia movedia Por Maria Lusa Quaresma, Portugal

    > SOCIOLOGIA TAIWANESAA virada tripla da sociologia taiwanesaPor Hsin-Huang Michael Hsiao, Taiwan

    Os apuros da sociologia em uma nao pequenaPor Su-Jen Huang, Taiwan

    > O DESAFIO DEMOCRTICO DO CHILEQuestes morais e liberdades individuais no ChilePor Oriana Bernasconi, Chile

    Os limites das polticas ambientais no ChilePor Alejandro Pelfini, Chile

    Uma ocupao de migrantes no centro de Santiago do ChilePor Carolina Stefoni, Chile

    > O NACIONAL E O INTERNACIONALO desafi o da internacionalizao da sociologiaPor Elosa Martn, Brasil

    A sociologia estadunidense est em declnio?Por Bronwen Lichtenstein, EUA

    > CONFERNCIASOs Blcs alm da Balcanizao Por Svetla Koleva, Bulgria

    InterdisciplinaridadePor Clarence M. Batan, Filipinas

    Sociologia e transformaes sociais Por Leslie Lopez, Filipinas

    Movimentos globais, reivindicaes nacionais Por Benjamn Tejerina, Espanha

    > COLUNAS ESPECIAISParticipao jovem na Organizao das Naes UnidasPor Jovanni Rodriguez, EUA

    Foto-Ensaio As verdadeiras Bedik Por Eryn Snyder, EUA

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    > A vocao da sociologia

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    Andr Bteille, fotografado recentemente em Dli.

    Uma viso pragmtica Por Andr Bteille, Universidade de Dli, India

    A adoo da sociologia como vocao requer que se adquira e mantenha um senso de sociologia como uma disciplina intelectual-mente distinta. Ao mesmo tempo, se visa-mos a sociologia como uma vocao e no apenas como uma carreira, no ser sufi ciente que foquemos apenas no aparato tcnico da disciplina, embora isso tambm seja im-portante e no possa ser ignorado. A sociologia como uma disciplina intelectual desenvolveu um corpo de conceitos, mtodos e teorias grande, porm vagamente conectado, e que tem que ser tratado como um recurso valioso por todo socilogo praticante.

    A sociologia deve ser distinta do senso comum, que limitado em seu alcance e utiliza muitas presunes no verifi cadas para interpretar e explicar fenmenos cotidi-anos. A sociologia no deve lutar contra o senso comum,

    mas super-lo para alcanar uma viso mais ampla e pro-funda sobre a operao da sociedade. O conjunto de as-suntos da sociologia tal que muito mais difcil isol-lo das afi rmaes e julgamentos do senso comum do que, por exemplo, para a fsica de partculas ou a biologia mo-lecular. Ademais, enquanto assuntos atuais podem ser farinha para o moinho do socilogo, ele difere do jornal-ista em sua orientao para esses assuntos.

    Como uma disciplina intelectual, a sociologia pode ser vista em termos de trs atributos: (i) trata-se de uma cincia emprica; (ii) uma cincia sistemtica; e (iii) uma cincia comparativa. Sendo uma cincia emprica, visa manter uma clara distino entre julgamentos de valor e julgamentos de realidade, ou entre questes de dever ser e questes de ser. Para ser preciso, o estudo de uma sociedade requer o estudo de suas normas e valores, mas o socilogo estuda as

    Andr Bteille foi considerado o homem mais sbio na ndia, e por boas razes. A comear por sua monografia cannica, Casta, Classe e Poder, que aplica a sociologia weberi-ana a um estudo antropolgico de aldeias, B-teille escreveu sobre quase todas as dimenses da desigualdade, e sobre um amplo leque de temas pblicos relacionados. Conquistou mui-tos elogios e prmios, e presidiu o Conselho In-diano de Pesquisa em Cincias Sociais. Renun-ciou da Comisso de Conhecimento Nacional do Primeiro Ministro quando esta props au-mentar as reservas baseadas em castas. Ele , em grande medida, o socilogo pblico com fortes comprometimentos profissionais, tendo escrito em todos os principais jornais e falado quando a opinio pblica ou as polticas pbli-cas esto em desacordo com seu conhecimento sociolgico.

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    normas em um sentido descritivo, e no prescritivo. Alm disso, o socilogo visa examinar as interconexes entre pro-cessos sociais de modo sistemtico, sem qualquer presun-o a respeito dessas interconexes serem harmoniosas ou basicamente discordantes. Finalmente, a sociologia uma cincia comparativa que visa situar no mesmo plano de observao e investigao todas as sociedades humanas, tanto a prpria sociedade do socilogo como as demais.

    Meu comprometimento com o mtodo comparativo tor-nou-me um forte defensor da unidade da sociologia e da antropologia social. A maioria dos indianos, de fato, estuda a sociedade e cultura da ndia, mas o pas to grande e sua populao to diversa que possvel estudar toda a variedade de arranjos sociais dentro de um mesmo pas. A tendncia natural, na ndia, trabalhar a partir da presun-o da unidade entre a sociologia e a antropologia social, enquanto que no Ocidente a tendncia tem sido a de se-parar o estudo de sociedades avanadas, descrito como sociologia, do estudo de comunidades iletradas, tribais ou campesinas, que atribudo antropologia.

    O mesmo comprometimento com o mtodo comparativo tornou-me ctico quanto viso comumente defendida na ndia de que os indianos deveriam desenvolver sua prpria sociologia distintiva da ndia para se libertarem dos con-strangimentos de uma estrutura ocidental de investigao e anlise. O quadro geral da sociologia pode ter se origina-do na Europa e na Amrica e pode ainda estar enviesado por presunes decorrentes dessas sociedades, mas no h razes para acreditar que esse modelo rgido e infl exvel e no pode sofrer alteraes. De fato, ele se alterou continua-mente, e eu mesmo redigi trabalhos gerais sobre a desigual-dade pelo menos com a expectativa de que eles sero lidos tanto por estudantes na ndia como fora do pas.

    Em uma longa carreira de ensino a estudantes da ps-graduao em uma instituio acadmica preparatria, eu lutei, como a maioria de meus colegas na ndia, com a necessidade de harmonizar o ensino de teoria sociologia com a sociologia da ndia. Nos cursos sobre teoria, os es-tudantes aprendem sobre Marx, Weber, Durkheim, Parsons, Merton, e assim por diante, enquanto que naqueles sobre a ndia aprendem sobre vilarejos, castas e famlias estendi-das; ento, naturalmente, eles acham difcil estabelecer as conexes entre os dois conjuntos de aulas.

    Em minhas aulas, tenho desenvolvido uma abordagem baseada no que eu chamo de raciocnio sociolgico. De-pois de explicar as caractersticas defi nidoras da sociologia como uma disciplina intelectual, discuto uma variedade de tpicos especfi cos. Frequentemente, comeo com poltica e falo sobre a poltica como um tema para a sociologia. Afi nal, a poltica do interesse de uma grande variedade de pessoas. O que questiono se h algo especfi co que a sociologia traz para o entendimento da poltica. A mesma questo pode ser feita sobre religio. A religio atraiu uma forte ateno intelectual de telogos e fi lsofos muito an-tes de a sociologia se tornar uma disciplina intelectual: a sociologia introduziu algo novo ao entendimento sobre a religio? Podemos nos fazer a mesma questo sobre famlia, parentesco e casamento, e sobre um conjunto de outros te-mas.

    Usei a ideia de raciocnio sociolgico para levar os achados da pesquisa e investigao sociolgicas para um pblico mais amplo. Minha perspectiva de que o socilogo deve-ria escrever para sua profi sso, mas no somente para ela. Ele tambm tem a responsabilidade de alcanar o grande pblico. Consequentemente, para alm de publicar artigos em peridicos profi ssionais, tambm colaborei com artigos editoriais para alguns dos jornais lderes da ndia, como o The Times of India, The Hindu e The Telegraph. Mas, embora eu tenha feito um uso ocasional desses jornais, tentei evitar escrever como um jornalista, que deve comentar sobre os eventos de um dia para o outro, e busquei interpretar esses eventos a partir de uma perspectiva histrica e sociolgica mais ampla.

    A viso que tenho sobre mim sempre foi de que sou um so-cilogo, e no um moralista. Meu prprio interesse especial como socilogo foi o estudo comparativo da desigualdade. Como bem sabido, a desigualdade um aspecto profun-damente enraizado e difuso da sociedade indiana. Indianos educados adoram moralizar sobre os males da desigual-dade e as virtudes da igualdade. Mas a desigualdade no pode ser simplesmente varrida da existncia pela sua denncia em pblico. Despendi uma grande quantidade de tempo para compreender as diferentes formas e dimenses da desigualdade e as tendncias sociais que as altera, trans-forma, enfraquece ou refora. Sempre tentei manter uma atitude pragmtica sobre igualdade e desigualdade, assim como contra as atitudes utpicas ou fatalistas que so, no fi m, os dois lados da mesma moeda.

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    > A vocao da sociologia

    Jacklyn Cock, presidindo um painel na Universidade de Witwaters-rand, frica do Sul.

    Expondo a violncia lentaPor Jacklyn Cock, Universidade de Witwatersrand, Joanesburgo, frica do Sul

    A s estruturas e processos sociais que mol-dam nossa experincia so frequentemen-te escondidas ou obscurecidas por cren-as convencionais, interesses poderosos e explicaes oficiais. Uma das mais perigosas delas como a violncia geralmente entendida como um evento ou ao que imediata no tempo e explosiva no espao. Mas, muita destruio do potencial humano tem a forma de uma violncia lenta, que se estende no tempo. Ela insidiosa, no dramtica e relativamente invisvel. Por violncia lenta eu quero dizer o que Rob Nixon chama de longas mortes, uma violncia que ocorre gradualmente e fora de vista, uma violncia de atrasada destruio que se dispersa atravs do tempo e espao, uma violncia de atrito que normalmente no vista como violncia. Tanto a poluio ambiental, quan-to a desnutrio, so formas desta violncia lenta. Am-

    bas as situaes so relativamente invisveis e envolvem srios danos que se desenvolvem lentamente ao longo do tempo.

    Alimentao onde muitas questes convergem desigualdade, mudanas climticas, globalizao, fome, especulao de commodities, urbanizao e sade. O alimento no geralmente associado violncia, ex-ceto em relao aos movimentos e protestos sociais que, em 2008, ocorreram em cerca de 30 cidades em todo o mundo em resposta ao aumento dramtico de preos. Entretanto, a desnutrio envolve uma forma de violncia lenta porque seus efeitos nocivos sobre o corpo humano so geralmente escondidos e envolvem uma eroso das capacidades e potenciais humanos que ocorrem gradualmente ao longo do tempo. Isso mais dramaticamente evidente no um bilho de pessoas no

    Socilogos no so mais engajados que Jackie Cock. Uma pioneira da sociologia da frica do Sul, ela tem consistentemente e constantemente explorado a relao en-tre violncia e desigualdade: de seu clssico Maids and Madams, uma anlise feminista do trabalho domstico, para sua interrogao de gnero e guerra em Colonels and Cadres e suas revelaes de injustia ambiental em The War Against Ourselves. Ela tem instado a sociologia a expor as maiores injustias de nosso tempo, na frica e alm.

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    mundo que so desnutridas ou a realidade, na frica do Sul contempornea, em que uma a cada quatro cri-anas com menos de seis anos mostra sinais de atraso no crescimento (tanto fsico quanto intelectual) devido desnutrio crnica.

    O conceito muito amplo e descritivo de insegurana ali-mentar obscurece a distino entre fome e desnutrio. A mdia convencional evoca imagens de vtimas magras e esquelticas da seca na Somlia. Mas insegurana alimen-tar bem mais vago, e pode ser escondida sob camadas de roupa ou gordura corporal. Desnutrio muitas vezes obscurecida pela obesidade entre populaes urbanas po-bres que confi am na comida barata que rica em calorias, mas defi ciente em vitaminas e minerais. Isto no evidente a olho nu.

    Poluio ambiental mais obviamente no caso de emis-ses de carbono que causam mudanas climticas cres-cente e tem impactos devastadores, especialmente sobre os pobres e vulnerveis na frica meridional. Muito desta degradao toma a forma de uma violncia lenta, que se estende pelo tempo, sendo insidiosa e relativamente invi-svel. Mesmo os impactos extensos (e o reconhecimento ofi cial) das dramticas catstrofes ecolgicas de Bhopal e Chernobyl foram lentos em seu desenvolvimento.

    Perto de Joanesburgo, em uma rea conhecida como Vale do Ao, a poluio catastrfi ca por uma usina siderrgica era obscura, lenta e de longo prazo. A penetrao da vi-olncia lenta por poluio txica foi extensa, permeando a paisagem, movendo-se lentamente pelo ar e guas subter-rneas e em muitos casos foi conduzida para dentro e so-matizada na forma de defeitos genticos, cnceres e falhas renais entre animais e seres humanos.

    Muita poluio de corpos ou rios est escondida, seja de nossa percepo sensorial imediata ou do nosso entendi-mento. Ela opera de maneiras invisveis e sua exposio de-pende de um processo que Ulrich Beck chama de reconhec-imento social, que a tarefa da sociologia, especialmente quando, como foi o caso do Vale do Ao, as ameaas vida humana foram deliberadamente ocultas. O poder da gesto siderrgica, auxiliada por burocracias estatais insensveis ou incompetentes, seguiu um padro de mentiras e negao para evitar a responsabilidade pelos danos causados.

    Mas o potencial da sociologia para a emancipao hu-mana vai alm da exposio para a explicao. Ambos os exemplos de violncia lenta citados aqui tm causas soci-ais, assim como consequncias sociais; no caso da poluio ambiental, a externalizao dos custos ambientais por uma poderosa corporao, no caso da desnutrio, a operao de um regime alimentar focado no lucro ao invs das ne-cessidades humanas.

    Violncia lenta no um conceito que desconsidera classes. So os pobres os mais vulnerveis violncia lenta da desnutrio e poluio ambiental. Eles frequentemente lutam sozinhos como indivduos atomizados. Mas, demon-strar como a experincia individual moldada por amplos processos sociais parte do rico legado de C. Wright Mill. A imaginao sociolgica implica socilogos engajados com o homem comum (sic), no mundo real (e, eu afi rmaria, com questes bsicas como acesso alimentao nutritiva e gua potvel).

    Michael Burawoy teoriza este compromisso sob duas for-mas: o mtodo de caso estendido e a sociologia pbli-ca. A primeira envolve um dilogo entre pesquisadores e pesquisados que seja respeitosa, sensvel e refl exiva. Os socilogos devem estar dispostos a estender suas ex-perincias para vida daqueles que pesquisam. Eles devem estar dispostos a gastar tempo em casas, minas e fbricas por longos perodos de tempo. a partir deste ponto de vista, desde baixo, que processos sociais podem ser expos-tos e rigorosamente analisados. Da mesma forma, socio-logia pblica orgnica torna visvel o invisvel e trabalha em estreita ligao com uma visvel, espessa, ativa e fre-quente resposta pblica. Isto envolve enfatizar o trabalho coletivo e rejeitar o chamado de C. Wright Mills ao de-fender a primazia do acadmico individual. Em vez disso, neste momento neoliberal altamente individualizado, socilogos dever estar em solidariedade com os pobres e oprimidos.

    Ao fazer isso, a sociologia pode fortalecer os movi-mentos sociais, mobilizar aes coletivas em torno de questes como a soberania alimentar e justia ambi-ental movimentos inspirados num compromisso com a justia social, que desafiam o poder corporativo e de-mandam arranjos sociais alternativos, arranjos que pro-movem a emancipao humana.

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    > A sociologia lbia durante e aps a Ditadura

    ODr. Mustafa O. Attir Professor de Sociologia na Universidade de Trpoli, Diretor do Centro para Pesquisa em Desenvolvimento Susten-tvel, e ex-Presidente da Associao Soci-

    olgica rabe. Ele o autor de numerosos livros e artigos sobre o impacto da modernizao e do petrleo sobre a sociedade lbia. Foi entrevistado por Sari Hanafi , Profes-sor de Sociologia na Universidade Americana em Beirute e membro do Comit Executivo da ISA de 2010 a 2014.

    Dr. Mustafa Attir, socilogo lbio que sobreviveu ditadura de Kadafi.

    Uma entrevista com Mustaf Attir

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    SH: Voc pode me contar sobre a sua trajetria acadmica na Lbia?

    MA: Adquiri meu bacharelado pela Escola de Artes Liberais, na Universidade da Lbia, graduando em Sociologia. Em 1962, fui enviado para os EUA por minha universidade, onde obtive meu mestrado pela Universidade de Pittsburg, e depois um PhD em Sociologia pela Universidade de Minnesota em 1971. Voltei Lbia, onde estive lecionando desde ento, alm de manter alguns postos na universidade, incluindo Decano da Escola de Artes Liberais, Diretor do Centro de Pesquisa da Universidade, e Presidente da Universidade.

    SH: Eu assisti uma oficina organizada pelo Centro para Estudos da Unio rabe. Alguns esquerdistas e nacionalistas criticaram a interveno da OTAN na Lbia, enquanto participantes libaneses apoiaram-na unanimemente? Qual a sua posio?

    MA: A Primavera rabe teve incio na Lbia, em 17 de fever-eiro de 2011. Comeou como uma manifestao pacfi ca na cidade oriental de Benghazi. O regime respondeu furi-osamente, usando todo tipo de equipamento militar. Mas o uso excessivo da violncia contra manifestantes desarma-dos no parou a manifestao em Benghazi, que se espal-

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    hou por todo o pas. Difcil que qualquer cidade ou vilarejo tenham sido poupados, e o movimento pareceu como uma revolta popular. Depois de algum tempo, o regime foi bem sucedido em assegurar seu controle sobre certas partes do pas, incluindo a capital, enquanto todo o oeste e partes do leste e do sul permaneceram nas mos dos rebeldes. Logo, o pas estava mergulhado em algo que correspondia a uma guerra civil, mesmo que o equipamento militar dos rebeldes no fosse preo, em nenhuma medida, para o poder de fogo dos batalhes de segurana de Kadafi , que utilizaram equipamento pesado incluindo blindados, recursos a-reos e de artilharia, assim como mercenrios estrangeiros. A mdia moderna tornou possvel, para o resto do mundo, conferir a brutalidade e o dano que os batalhes de segu-rana de Kadafi infl igiram sobre os civis. Em pouco tempo, o Conselho de Segurana da ONU aprovou uma resoluo autorizando os Estados membros a estabelecer e aplicar uma zona de excluso area sobre a Lbia, e utilizar todos os meios necessrios para prevenir ataques sobre os civis. Isso levou interveno da OTAN, que esteve limitada ao fogo areo e naval, enquanto a luta em terra foi deixada para mil-cias armadas rebeldes. Kadafi foi teimoso e impiedoso, e se no fosse pela interveno militar internacional, o pas e seu povo teriam sido dizimados.

    SH: Como possvel que um socilogo como voc pro-duza conhecimento sobre sua sociedade quando ela est sob o domnio de uma ditadura? E que tipo de conhecimento voc pde produzir?

    MA: Ensinar sociologia na Lbia, manter a independncia e salvar o contedo dos cursos de serem coloridos pela ide-ologia no foram tarefas fceis. Sendo educado em facul-dades americanas, estive profundamente envolvido com a pesquisa emprica e tcnicas quantitativas. Na sociologia, preocupei-me principalmente com a modernizao e a mu-dana social. Essa rea foi importante na sociedade lbia, assim como no resto do Mundo rabe. A Lbia tinha uma populao reduzida, dividida em tribos que so fortemente conectadas entre si. Considerando que o dinheiro no era escasso, e sendo eu o primeiro socilogo com PhD, no en-contrei difi culdades no acesso aos ofi ciais de alta patente e para assegurar fundos adequados para estudar qualquer tema. Queria estudar. De modo a evitar problemas, man-tive-me afastado de duas reas: religio e poltica. Contudo, manobrei para realizar pesquisas entre prisioneiros e, ao menos em duas ocasies, a amostra foi tirada daqueles que estavam na priso devido a sua afi liao com a Irmandade Islmica e aquilo que passou a ser conhecido como Afego rabe. Apesar de os recursos virem de departamentos do governo, no era necessrio expor os achados de pesquisa na prtica, uma vez que a relao entre pesquisa e tomadas de deciso era muito frgil.

    SH: Universidades da Lbia exilaram os intelectuais que eram prximos da classe autoritria dominante de Kadafi?

    MA: Professores universitrios, na Lbia, podiam ser clas-sifi cados em duas categoriais principais: o primeiro grupo era composto por aqueles que obtiveram sua educao universitria graas ao golpe militar de Kadafi em 1969, e que receberam bolsas de estudo no exterior por serem estudantes notveis. Quase todos frequentaram universi-dades ocidentais (americanas, britnicas, alems, e franc-esas). Membros desse grupo so dedicados sua profi sso e deram seu melhor para servir s suas especialidades e aos seus estudantes. O Segundo grupo formado pelos que se tornaram estudantes quando Kadafi comeou a falar sobre sua ideologia privada, posteriormente consagrada em seu Livro Verde. Durante aqueles dias, a Lbia no tinha partidos polticos, mas alguns estudantes universitrios se afi liaram a diferentes tendncias polticas na regio. Kadafi , porm, decidiu que todos, especialmente estudantes universitrios, deveriam seguir sua nova ideologia, e muitos o fi zeram. Em 1976, ele ordenou que os estudantes que acreditavam em sua ideologia limpassem o campus universitrio de estudantes que ele classifi cou como reacionrios. Confl i-tos tiveram incio logo a seguir, e muitos foram feridos ou presos, enquanto outros foram forados a deixar a univer-sidade. No ano seguinte, ele comeou a organizar seus se-guidores em comits revolucionrios. Os membros tiveram que memorizar os ditados de Kadafi , seguir seus passos, e cumprir qualquer tarefa que ele lhes ordenasse, incluindo o enforcamento pblico de estudantes nos campos univer-sitrios.

    De acordo com as regras universitrias, apenas estudantes com mrito deveriam ser enviados ao exterior para cursos de graduao. Desde o fi nal da dcada de 1970, porm, os es-tudantes que se tornaram lderes de comits revolucionrios foram recompensados com bolsas de estudo internacionais. A maioria no tinha uma orientao acadmica e, portanto, no era qualifi cada para ingressar em boas instituies e terminaram com diplomas de universidades de terceira ou quarta categorias na Europa Oriental ou em pases rabes. Ao retornar, eles ocuparam posies docentes para dissemi-nar a ideologia de Kafadi entre estudantes e o pblico em geral. Assim, quando as universidades lbias foram reaber-tas, aps a guerra, alguns desses professores concordaram espontaneamente em deix-las, outros foram convidados a se retirar, mas alguns conseguiram manter seus postos de ensino devido a seus laos sociais com indivduos de alto es-calo no novo regime. Relaes familiares e tribais podem, frequentemente, ter premncia sobre leis e regulaes. Isso sempre foi o caso, ainda , e continuar a ser por um longo tempo. SH: Os intelectuais exerceram um papel na revoluo lbia?

    MA: O que ocorreu na Lbia, assim como em outros pases rabes, foi uma insurreio que poderia ou no resultar em uma revoluo. Os intelectuais foram pegos de surpresa.

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    No incio, foi um movimento tocado por jovens utilizando modernas tecnologias de informao. O dia de 17 de fe-vereiro, contudo, foi planejado antes da revolta tunisiana. Estava relacionado a um massacre que ocorrera em Beng-hazi no mesmo dia, em 2006. Antes de 2011, indivduos se manifestaram, mas seu nmero no era grande e eles eram dispersados facilmente pelas foras de segurana. No plane-jamento dos protestos de 2011, indivduos jovens trocaram e discutiram ideias e estratgias pelo Facebook. O regime estava bastante ciente dessas atividades e estava preparado para qualquer revolta. O que ocorreu na Tunsia e, ento, no Egito encorajou mais pessoas a participarem da revolta lbia. Apesar de ela ter se iniciado em Benghazi, indivduos em Trpoli e outras cidades tambm estavam se preparando para aderir. A brutalidade excessiva com a qual o regime lidou com uma marcha pacfi ca acionou uma cadeia de reaes em todo o pas. Conforme a revolta prosseguia, pessoas mais velhas de todos os estratos da sociedade, in-cluindo intelectuais, juntaram-se a ela. J que o regime so-breviveu a tantas tentativas frustradas de golpes militares, assim como a todo tipo de presso internacional, muitos in-telectuais lbios comearam a aceitar a ideia de que o nico desenvolvimento poltico possvel deveria surgir de dentro do prprio regime.

    SH: Como um socilogo, como voc enxerga o futuro da Lbia?

    MA: Os lemas que se espalharam durante a revolta focaram na remoo de Kadafi , na mudana do regime e no estabel-ecimento de um sistema politico democrtico. No se deve esquecer que toda, exceto 12% da populao lbia atual nasceu e cresceu durante o regime de Kadafi . Isso signifi ca que quase todos os lbios ativos aprenderam que seu siste-ma poltico era o melhor do mundo, e que sua democracia, que no tinha partidos polticos, no tinha eleies e nem representantes, era a nica democracia verdadeira. Todas as

    instalaes miditicas foram estatizadas e direcionadas para propagar as ideias de Kadafi . O objetivo era fazer com que todos os lbios permanecessem sob controle atrs de uma corrente de pensamento. Os rebeldes lbios foram bem su-cedidos em mudar o sistema e se livrar de Kadafi , mas eu no acho que eles estejam qualifi cados para estabelecer a democracia. O governo interino, com centenas de jornais, dezenas de estaes de televiso, e incontveis partidos polticos assegurou eleies justas, mas os rebeldes no baixaram suas armas. Assim, h mais de mil grupos arma-dos, cada um deles operando independentemente dos de-mais. Eles se envolvem em qualquer ao decidida por seus lderes: desde o policiamento de seu distrito e a operao de pontos de inspeo para efetuar uma priso, at inter-rogar e enviar pessoas para prises privadas. Alm disso, o pas conta com grupos extremamente religiosos que in-sistem em impor sobre outros sua interpretao particular sobre a religio. Uma vez que esse tipo de grupo opera fora da lei, estabelecer uma democracia ser um auto-engano.

    SH: Qual a misso da sociologia na Lbia ps-rev-olucionria?

    MA: Hoje passou a ser possvel conduzir pesquisas sobre te-mas que se tornaram tabu sob o regime de Kadafi . Existem pilhas de dados empricos que poderiam ser reanalisados para se desenvolver novos modelos tericos, envolvendo var-iveis relacionadas natureza do sistema politico que durou 42 anos. Ao mesmo tempo, a Revolta rabe introduziu novas reas e direes para pesquisa, chamando a ateno para as foras que iro moldar o futuro da sociedade lbia: instalaes de mdia sofi sticadas, novos personagens polticos, poderes internacionais, grupos islmicos, e expatriados. A tarefa da sociologia a de descrever como todos esses componentes diferentes e confl ituosos moldaro o cenrio lbio. No tenho dvidas que os socilogos lbios tero suas mos ocupadas por algum tempo.

  • Funcionrios de diversas universidades israe-lenses recentemente assinaram uma petio protestando contra uma proposta feita pela Subcomisso de Avaliao de Qualidade do Conselho de Israel para o Ensino Superior (CHE) para im-pedir o Departamento de Poltica e Governo da Universidade Ben-Gurion (BGU) de admitir estudantes para o ano letivo de 2013-2014. O professor Gilad Haran, do Instituto Weizmann de Cincia, iniciou esta petio afi r-mando que a liberdade acadmica no sistema de ensino superior em Israel est em grande perigo. Em-bora a petio tenha sido assinada em setembro, o estado de Israel tem censurado a liberdade de expresso em suas universidades desde o esta-belecimento de Israel como um es-tado judeu em 1948. Essa data tam-bm marca o Nakba (Catstofre) para os palestinos, a perda da Palestina histrica, a limpeza tnica, os desloca-mentos, morte de famlias e amigos,

    perda de propriedades e massacres perpetrados por militantes sionistas (mais tarde o estado de Israel) antes e depois de 1948. Mais de 27 univer-sidades israelenses tm consistente-mente apoiado a poltica de apart-heid de Israel atravs da participao direta tanto em atividades polticas quanto militares (Hever, 2009).

    > Represso de dissidentes polticos em Universidades is-raelenses

    A ala de direita do governo de Ben-jamin Netanyahu sancionou uma srie de medidas repressivas para deter crticas internas de grupos de direitos humanos, mdia e judicirio (Cook, 2012: 22). Estudantes judeus e docentes policiam o ambiente acadmico, agindo como fi scaliza-dores de cursos de professores dissi-dentes. Para evitar a calnia pblica, perda de emprego, priso, ou mesmo morte, os funcionrios delimitam informaes que podem provocar

    as autoridades. A professora Ariella Azoulay, da Universidade Bar-Ilan, teve sua posse negada por causa de suas associaes polticas. Quando o professor Neve Gordon da BGU anun-ciou seu apoio ao boicote de univer-sidades israelenses em 2009, o grupo extra-parlamentar Im Tirtzu pediu universidade para demitir o professor e por fi m inclinao anti-sionista (Haaretz, 30/09/2012). O ministro da educao Gideon Saar tambm criti-cou o departamento de Poltica e Governo do BGU por seu vis ps-sionista. O professor Ilan Pappe, que apoia o boicote acadmico de Israel, foi ele mesmo boicotado na Universi-dade de Haifa. Depois de ter recebido vrias ameaas de morte e ter sido condenado pelo Knesset (parlamento de Israel), ele mudou seu trabalho para a Universidade de Exeter em 2008. Nizar Hassan, diretor de vrios fi lmes premiados, foi condenado pelo Com-it de Educao do Knesset por criti-car um estudante judeu que chegou para a aula na Faculdade Sapir, em Negev, vestindo um uniforme mili-tar (Cook, 2008). No houve tal con-denao a um palestrante judeu na mesma faculdade que pediu a uma beduna que tirasse seu vu quando

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    > Crise poltica em universidades israelenses

    O estado israelense vigia o ensino e progra-mas de estudo em suas prprias universi-dades.

    Por Feras Hammami, Instituto de Tecnologia Real (KTH), Estocolmo, Sucia

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    ela chegou sala. Desde a instau-rao da segunda Intifada, em 2000, a polcia israelense e o servio se-creto intensifi caram a deteno e o interrogatrio de estudantes israe-lenses- palestinos em universidades israelenses. Yusef, um estudante da Universidade Ben-Gurion, perdeu a vida devido a sua associao poltica com um comit estudantil rabe no campus (Gordon, 2006: 194-5).

    > Auxiliando a ocupao mili-tar

    Universidades israelenses apoi-am pesquisa e treinamento militar atravs de uma estreita cooperao com as empresas de fabricao de armas Elbit e RAFAEL. Essas empre-sas so mais conhecidas por fornecer o sistema de monitoramento para o Muro do Apartheid israelense, uma longa barreira de concreto de 760 quilmetros que se projeta para a Cis-jordnia ocupada, permitindo a Israel anexar mais terras palestinas. A Uni-versidade Technion fi nanciada pela Elbit para desenvolver sistemas de ar-mas robticas como o drone1 e a tec-nologia de veculos de combate no-tripulados que ajudaram no ataque israelense em Gaza em 2008-2009. Ela tambm forneceu uma assistncia especial aos estudantes que servi-ram no ataque. De acordo com Hever (2009), Haim Russo, gerente da El-Op, fi lial da Elbit, foi nomeado para a dire-toria da Technion, e ao president da Elbit Systems foi concedido um dou-torado honorrio.

    Muitas universidades israelenses foram construdas sobre as runas de povoados e cidades palestinas que foram destrudas em 1948 e 1967. A Universidade de Tel-Aviv nunca admitiu o fato de que foi construda sobre as runas do destrudo povoa-do palestino Sheikh Muwanis, cujos moradores foram deslocados e ex-ilados. Outras universidades, como a Universidade Ariel Centro de Samaria, foram construdas em assentamentos ilegais sob o direito internacional na Cisjordnia. Ainda que a faculdade de Ariel e seus funcionrios tenham

    sido boicotados em Israel e no exte-rior, o Ministro da Educao louvou a deciso de conceder instituio o status universitrio completo.

    Esses exemplos mostram que o fechamento do departamento de Governo e Poltica da BGU no sem motivao poltica. Como declarou a presidente da BGU, professora Rivka Carmi, em sua carta aos presidentes de universidades de pesquisa de Israel, existem muitas ameaas in-ternas e externas contra instituies acadmicas israelenses [] Esta no uma batalha particular da Univer-sidade Ben-Gurion, mas uma luta de todas as instituies acadmicas is-raelenses [] A ratifi cao da atual deciso pela CHE como hastear uma bandeira preta sobre a independncia de acadmicos israelenses. A profes-sora Tanya Reinhart, da Universidade de Tel-Aviv, diz que: nunca em sua histria o Conselho de qualquer uni-versidade israelense deliberou uma resoluo protestando o fechamento frequente de universidades pales-tinas. [] em situaes extremas de violaes dos direitos humanos e princpios morais, a academia se recusa a criticar e [] colabora com o sistema opressor (Reinhart, 2004). O mesmo verdadeiro sobre os apoia-dores de Israel no exterior; nenhum dos 450 presidentes de faculdades americanas, que denunciaram o boic-ote, protestou contra a destruio da Universidade Islmica em Gaza (Gor-don and Halper, 2008).

    Em resposta violao de direitos humanos dentro e fora de universi-dades israelenses, acadmicos enga-jados de todo mundo exigiram que suas universidades implementassem a poltica tica consagrada em suas constituies. Entre outros, o Com-it Britnico para Universidades da Palestina, o sueco Grupo de Ao da KTH para o Boicote de Israel, membros associados da Universi-dade McGill e a Unio Estudantil de Berkeley demandaram que suas uni-versidades cortassem relaes com universidades que so coniventes com a poltica de apartheid de Israel.

    A Universidade de Joanesburgo foi a primeira universidade a terminar sua cooperao com a Universidade Ben-Gurion. Em relao Europa, 260 acadmicos de vinte pases diferentes exortaram Comisso Europeia que exclusse da Unio Europeia progra-mas de empresas israelenses envolvi-das no abuso de direitos humanos palestinos.

    A campanha de boicote vista muitas vezes como transgressora do dilogo livre e da obteno de liber-dade acadmica. No entanto, os lti-mos 70 anos de dilogo com autori-dades israelenses nem promoveram o processo de paz e nem obrigaram Israel a cumprir as resolues da ONU ou do direito internacional. Exemplos da frica do Sul durante o regime de apartheid mostram que os chama-dos internacionais pela liberdade acadmica podem ser efi cazes. Tais chamados podem revelar a poltica de apartheid do governo israelense, desafi ar o sistema de vigilncia que controla a liberdade de expresso em universidades e resgatar univer-sidades israelenses de sua atual crise poltica e, de fato, tica.

    1 Veculo areo no-tripulado.

    Referncias

    Cook, J. (2012) The full story behind the war against free speech in Israels universities. The Electronic Intifada. Accessed on 10/27/2012 from http://electronicintifada.net/content/full-story-behind-war-against-free-speech-israels-universities/11783

    Cook, J. (2008) Academic Freedom? Not for Arabs in Israel. CounterPunch. Accessed on 8/11//2012 fromhttp://www.counterpunch.org/.../academic-freedom-not-for-arabs-in-israel/

    Eqeiq, A. (2012) Epilogue. Omrim Yeshna Eretz Hekayat Balad (Once upon a Land) / A Tour Guide. Sedek. Zochrot: Tel-Aviv.

    Gordon, N. and Halper, J. (2008) Wheres the aca-demic outrage over the bombing of a university in Gaza? CounterPunch from http://www.counterpunch.org/2008/12/31/where-s-the-academic-outrage-over-the-bombing-of-a-university-in-gaza/

    Hever, S. (2009) The Economy of the Occupation A Socioeconomic Bulletin. Jerusalem: The Alternative Information Center. Accessed on 05/02/2010 from http://usacbi.files.wordpress.com/2009/11/econo-my_of_the_occupation_23-24.pdf

    Reinhart, T. (2004) Academic Boycott: In Support of Paris VI. The Electronic Intifada.

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    > O Teatro do Oprimido

    O projeto Estudantes por Emprstimo (Students for Loan) ocupa o teatro de um frum, maio de 2010,na Sala do Senado do Parlamento Portugus. Cerca de 200 estudantes vieram de todo o pas para atuar solues - legislativos e outros - para os seus problemas, realizado sob o olhar circunspecto do Rei D. Lus de Portugal. Foto de Carla Lus.

    >>

    L estvamos ns no meio do Congresso da Asso-ciao Portuguesa de Sociologia, realizado na

    cidade do Porto, em junho de 2012, encenando um teatro-frum, cham-ado Estudantes por Emprstimo, em oposio a Emprstimos para Es-tudantes, http://estudantesporem-prestimo.wordpress.com/). Ele narra uma histria concreta um estudante que, no tendo nenhuma bolsa de es-tudos, foi forado a realizar um em-prstimo bancrio a fi m de prosseguir com seus estudos. A pea um pro-jeto do Teatro do Oprimido que vem funcionando por mais de dois anos, apresentado em dezenas de escolas e faculdades em Portugal, de norte a sul, com a participao de milha-res de estudantes. Projetos de lei e

    Uma forma de sociologia pblica?Por Jos Soeiro, da Universidade de Coimbra, Portugal

    peties foram feitas a partir dele; debates e aes diretas foram inspira-dos por ele. Retratando os custos da educao, a pea dramatiza o acesso desigual ao ensino superior, os cortes no fi nanciamento pblico e a dissem-inao de emprstimos bancrios a estudantes, submetendo o seu futuro ao sistema fi nanceiro.

    Depois de assistir, reconhecer, iden-tifi car e rir, o pblico solicitado a discutir o que aconteceu na repre-sentao teatral, o que a histria ex-pressa, e qual a raiz do problema. O pblico convidado e estimulado pelo facilitador, conhecido como o coringa, a subir no palco e ensaiar as possveis solues para o problema apresentado na pea: eles poderiam ter feito algo diferente naquela situ-

    ao? Algumas pessoas aceitam o de-safi o e o frum se desdobra.

    > O Teatro do Oprimido en-contra a Sociologia

    O Teatro-Frum a forma mais co-mum do Teatro do Oprimido (TO), um mtodo poltico-teatral inven-tado pelo brasileiro Augusto Boal, e utilizado em muitos pases como parte do trabalho social, poltico e educacional. Em Portugal, vrios gru-pos comunitrios adotaram-no para pensar sobre suas difi culdades e en-saiar as mudanas que gostariam de implementar. Seu ponto de partida uma hiptese democrtica radical: o teatro a capacidade que os seres humanos possuem no os animais de se observarem em ao e por isso que todo mundo pode fazer tea-tro, at mesmo os atores!1 . Com o teatro ns representamos a realidade em outro espao o esttico e as-sim nos tornamos agentes, decidindo a realidade que criamos. Simultanea-mente, obtemos o privilgio de ser espectadores.

    No TO, os espect-atores um termo criado por Boal para nomear um par-ticipante tanto ator quanto espec-tador so convidados a quebrar o muro que separa palco e plateia, aqueles que observam (espectado-res) e aqueles que tm o monoplio da ao (atores). Essa diviso do tra-balho convencional que confere a alguns o monoplio do pensamento, da ao ou da fala legtima posta em questo, no teatro e alm dele. Ningum se limita ao seu papel so-

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    cial: a capacidade de representar out-ros papis prova da possibilidade de emancipao.

    Foi por acidente que este Teatro-Frum tenha sido parte de um con-gresso sociolgico? Ou, ao contrrio, , na verdade, uma forma de inter-veno e debate sociolgico? Qual a relao entre o TO e a sociologia pblica? O que cada um pode apren-der com o outro, e quais as difi cul-dades que esse dilogo enfrenta?

    Os ofcios da sociologia e do teatro so, de certo modo, uma produo simblica da realidade e a produo de categorias de representao e compreenso. Em ambos os casos, eles fazem isso em contradio com outros atores outras disciplinas, polticos, outras mdias que ofer-ecem formas concorrentes de repre-sentao do mundo social. Uma pea do Teatro-Frum uma narrativa so-bre a realidade, um ponto de vista so-bre ela. O Teatro-Frum geralmente mostra as diferentes cenas da histria como quadro referencial de interao. Um de seus desafi os dramatrgicos como tornar evidentes os elementos estruturais que esto presentes no que Erving Goff man chamou de or-dem da interao. A Sociologia pode ajudar aqui.

    A Sociologia desenvolveu um apara-to signifi cativo para representar, por meio de conceitos, elementos que no so imediatamente identifi cveis em cada situao concreta, porque existem para alm dela. Estes, com certeza, so teis no trabalho de tor-nar visveis, nas cenas teatrais, as pro-priedades sistmicas que existem nas situaes sociais, as estruturas que so frequentemente invisveis. Em outro nvel, a Sociologia tem estudado pro-fundamente como as relaes sociais so somatizadas atravs de prticas e disposies e como os papis so um dos meios atravs dos quais o mundo social incorporado. A Sociologia po-deria desafi ar o teatro a considerar como papis, identidades, formas de ao, hexis corporais so estrutura-das por relaes sociais de poder. Por

    ltimo, mas no menos importante, a sociologia usada para observar histrias e narrativas individuais no em sua singularidade irredutvel, mas nas relaes que elas expressam. O que no TO chamado de ascese o processo pelo qual pluralizam-se nar-rativas individuais e vai-se do fen-meno lei uma operao bsica de raciocnio sociolgico.

    > Um instrumento ou um de-safi o para a Sociologia Pbli-ca?

    Igualmente, o TO tambm pode ser um poderoso instrumento para a sociologia pblica. Sendo uma lin-guagem humana mais completa, o teatro pode trazer a cada debate a complexidade do contexto, os mecanismos de interao, como o social est incorporado no corpo e no espao. De forma imediata, vincula a discusso experincia, o que Pierre Bourdieu chamou de senso prtico, evitando um cdigo abstrato que frequentemente experimentado (e usado) como um meio de despos-sesso, especialmente para aqueles que no pertencem ao campo da so-ciologia. Porque o Teatro-Frum est localizado no espao intersticial entre o que existe e o que ainda no existe (e pode ser realizado por espect-atores), ele nos convida a pensar so-bre a realidade social de forma crtica, como uma possibilidade dentre out-ras. No TO, o oprimido abriga em si tanto a submisso quanto a rebelio; cada corpo ao mesmo tempo o lo-cus de dominao e de libertao; cada repetio , ao mesmo tempo, um ato de reproduo e a possibili-dade de um desvio.

    Por ltimo, o TO interativo. Ele pode ser tanto instrutivo e divertido, para usar uma expresso de Brecht, e permitir que a sociologia pblica atinja um pblico muito mais amplo. Para um pblico que no imediata-mente atrado para uma discusso so-ciolgica ou um debate poltico, um convite para assistir a uma pea po-deria ser mais emocionante do que ir a um debate formal ou uma aula. Esta,

    pelo menos, foi a experincia que tivemos com o projeto de Estudantes por Emprstimo: sempre havia muito mais pessoas envolvidas do que em tentativas anteriores para promover as habituais sesses informativas so-bre bolsas de estudo ou sobre a situ-ao do ensino superior. O Teatro no era ornamental ou ilustrativo, mas era sedutor para os jovens que no esta-vam to motivados por outras formas de debate.

    claro, nem tudo fcil quando pensamos sobre o Teatro do Oprimi-do como meio possvel de uma socio-logia pblica. A des-especializao a prpria raiz do TO. Isso compatvel com a sociologia, ainda se pensarmos nisso como conhecimento comu-nicativo trocado entre socilogos e seus pblicos, como descreve Burawoy? Se a sociologia pblica se pretende mais do que uma forma de divulgao, no espao pblico, dos resultados relevantes da sociologia profi ssional e das difceis questes da sociologia crtica, como deve-ria lidar com o que Jacques Rancire chama de escndalo permanente da democracia, que tomar a igualdade no como um objetivo, mas como um pressuposto? Em outras pala-vras, como pode a sociologia pblica reivindicar a diferena de status entre o pensamento do socilogo e do sen-so comum e, ao mesmo tempo, acei-tar a premissa democrtica (muito presente na TO) que todos ns temos o mesmo direito e legitimidade para falar sobre o mundo social? A socio-logia pblica pode rejeitar a ideia do socilogo que ilumina os dominados com a cincia e preferir fazer uma jog-ada arriscada para uma construo coletiva negociada do conhecimento no espao pblico, com o objetivo de tornar-se um novo senso comum, como Boaventura de Sousa Santos prope? E isso pode ser feito sem se abdicar dos protocolos cientfi cos e exigncias da disciplina sociolgica? Deveramos, ao menos, tentar.

    1 Boal, A. (2002) Games for Actors and Non-Actors. London: Routledge.

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    > Precrios, mas infl exveis

    Por Dora Fonseca, Universidade de Coimbra, Portugal

    Protestos do Proletariado inflexvel.O banner diz: S a luta derrotar precarie-dade, a austeridade no soluo.

    Acrescente crise na zona do Euro tem favorecido inmeras reaes, tanto dos governos quanto

    da sociedade civil. Por seu lado, a so-ciedade civil tem demonstrado uma capacidade surpreendente de gerar novos atores coletivos, cujas aes so dirigidas s consequncias nega-tivas da globalizao e das polticas neoliberais. Os ltimos anos tm as-sistido a um ciclo de disputa em que a democracia, como tal, questionada, chamando a ateno para questes intimamente relacionadas, em espe-cial, a precariedade do trabalho. O desmantelamento do Estado de Bem-Estar e a reconstituio de suas metas tornaram-se preocupaes comuns que esto favorecendo o surgimento

    >>

    A ascenso de um novo mo-vimento social em Portugal

    de novos atores coletivos e a transfor-mao dos j existentes.

    > Os precrios infl exveis

    Os Precrios Infl exveis (PI) um des-ses atores. O movimento apare-ceu pela primeira vez na capital, Lisboa, em 2007, com o objetivo de continuar o trabalho de mobilizao iniciado no desfi le bem sucedido do Primeiro de Maio. Criar o movimento Precrios Infl exveis foi uma forma de preencher o vazio que existia em movimentos sociais, ou seja, a dis-cusso focada no trabalho precrio e seus efeitos sociais. O PI surgiu de um pequeno coletivo chamado Ferve, que mobilizou contra o uso indevido do status de trabalho independente.

    Ferve signifi ca Fartos Destes Recibos Verdes. Ele pode ser traduzido como fartos destes recibos verdes, em que recibos verdes refere-se ao tra-balho independente, status aplicado aos trabalhadores que no tm uma relao formal de subordinao ao empregador. Legalmente, esses tra-balhadores so seus prprios patres e, assim, assumem a responsabilidade por sua prpria seguridade social e outros benefcios, mas, na verdade, eles so assalariados subordinados a seu empregador, sem acesso aos benefcios sociais aos quais deveriam ter direito. O PI foi construdo a partir do Ferve, focando no apenas nos re-cibos verdes, mas em uma variedade de formas de trabalho precrio.

    A criao e o desenvolvimento do PI seguem o que Sidney Tarrow defi n-iu como os principais processos de movimentos sociais: primeiro, a cri-ao de desafi os coletivos; segundo, utilizao de redes sociais, propsitos comuns e contextos culturais; e, em terceiro, a construo de solidarie-dade, atravs de estruturas associati-vas e identidades coletivas para sus-tentar a ao coletiva. A criao de uma reivindicao comum tem sido particularmente visvel neste caso: concretizado por condenar o trabal-ho precrio a despeito dos esforos vigentes para apresentar as frgeis

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    relaes contratuais como sendo mais livres, menos rgidas, e, portan-to, mais coerentes com projetos de vida individualistas e carreiras profi s-sionais. O PI segue as tendncias das organizaes autnomas, que difer-em bastante dos partidos polticos convencionais e dos sindicatos. O PI apresenta as mesmas caracte-rsticas geralmente atribudas aos novos movimentos sociais: forte de-mocracia interna; lideranas difusas; fl exibilidade; alto grau de informali-dade; heterogeneidade de interesses; forte confi ana nas ferramentas de ciberativismo, criatividade e inovao nas aes pblicas, estrutura reticu-lar, segmentada e multifacetada; in-teresse limitado em negociar com antagonistas; a solidariedade como um objetivo; e a busca pela partici-pao e ao direta. No caso do PI, uma caracterstica desempenhou um papel central, desde o incio, a saber, a forte dependncia das ferramentas do ciberativismo. O blog http://www.precariosinfl exiveis.org/ foi a primeira manifestao pblica da existncia do PI. Ele foi disponibilizado online logo aps a sua criao e o primeiro post publicado foi o Manifesto dos Precrios, em que os ativistas se de-fi nem como seres precrios em seus trabalhos e na vida. Eles denunciar-am a sua precariedade, que permeia vrios setores da economia (espe-cialmente o setor pblico adminis-trado pelo Estado), bem como a sua invisibilidade no discurso poltico. Declararam sua inteno de reinven-tar a luta, sugerindo que os mtodos tradicionais utilizados pelos sindica-tos no so mais adequados a uma sociedade ps-moderna. Eles afi r-mam ser precrios, mas infl exveis, anunciando sua determinao em se opor s fortes tendncias de precari-zao do trabalho e proletarizao.

    As aes iniciais foram dirigidas principalmente a divulgar e condenar situaes injustas e ilegais envolven-do trabalhadores precrios que, por defi nio, desfrutam de formas mais frgeis de proteo social devido aos seus contratos de trabalho mais

    fl exveis. Eles tm difi culdade em participar de organizaes coletivas tradicionais de trabalhadores, tais como os sindicatos. Esta no ap-enas uma questo de incapacidade do movimento sindical em lidar com novas formas de processo de trabal-ho, mas com o crescente preconceito e desconfi ana do movimento contra as organizaes formais e polticas in-stitucionais.

    Um dos objetivos principais a con-struo de uma nova identidade: a do trabalhador precrio. Esta uma con-dio necessria para a mobilizao efi caz contra a desregulamentao das relaes de trabalho. Portanto, ao longo da existncia do PI, o objetivo central tem sido o de promover a conscienti-zao e aumentar a conscincia entre os que trabalham em empregos com menos direitos ou at mesmo nenhum direito. Mediante a mobilizao de novos signifi cados relacionados com os efeitos destrutivos da precariedade do trabalho, o PI (em aliana com outros similares atores coletivos, nacionais e in-ternacionais) criou um novo campo de disputa e confl ito. Eles inicialmente lan-aram uma srie de medidas de carter expressivo, mas que j evoluram para nveis mais altos de instrumentalizao e formalizao, de modo que o PI agora uma associao formal.

    > A Lei de Ferro da Oligar-quia?

    Atualmente, os precrios infl exveis esto experimentando uma nova fase em seu ciclo de vida. Como uma as-sociao de mbito nacional, o PI agora est passando formalizao e legalizao. Essa mudana de uma organizao informal para uma mais formal considerada um passo lgico e uma condio sine qua non para o reconhecimento de sua legitimidade como uma organizao com poderes representativos. Munidos de um es-tatuto jurdico, movendo-se para a arena eleitoral, com a esperana de falar em nome de seu eleitorado em um dilogo institucionalizado com outras organizaes e poderes for-mais.

    Apesar das novas possibilidades cri-adas por uma associao formal, h a preocupao de que a lei de ferro da oligarquia1 produza efeitos e coloque em risco o seu carter revolucionrio, de forma que o PI se concentre mais em manter sua estrutura intacta do que perseguir seus objetivos primri-os. A passagem de protesto espon-tneo para uma organizao tem le-vado ao surgimento de uma estrutura burocrtica, que transforma os obje-tivos do PI e enfraquece o seu mpeto antagnico inicial. Mas, de acordo com alguns autores, tais como Alber-to Melucci, a burocratizao no um resultado inevitvel e irreversvel e, acima de tudo, no necessariamente acompanha a modifi cao radical dos objetivos da organizao. Essas possi-bilidades alternativas sero avaliadas nos prximos meses, com a reabertu-ra da temporada poltica. Novos pla-nos de austeridade para os pases da Zona do Euro so esperados, assim como reaes correspondentes de movimentos polticos radicais que rejeitam o status quo. S ento ver-emos os efeitos reais da formalizao crescente desta extraordinria orga-nizao.

    Por enquanto, os precrios in-fl exveis foram bem sucedidos em conter as tendncias oligrquicas, conforme atestado no papel desem-penhado nas mobilizaes de 15 de setembro de 2012 (quando cente-nas de milhares de pessoas se aven-turaram nas ruas, convocadas pelas redes informais, protestando contra a austeridade), ou nos protestos con-tra a aprovao do oramento estatal de 2013 (em 31 de outubro de 2012, organizado em conjunto com a CGTP a maior federao sindical em Por-tugal), ou at mesmo pelo esforo apresentado na mobilizao para a greve geral convocada pelos sindica-tos, ocorrida em 14 de novembro de 2012.

    1 Nota do tradutor: termo criado pelo socilogo alemo Robert Michels.

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    > A sociologia em areia movedia

    Por Maria Lusa Quaresma, Universidade do Porto, Portugal

    OVII Congresso Portu-gus de Sociologia ocorreu na Faculdade de Letras da Universi-

    dade do Porto, entre os dias 19 e 22 de junho de 2012. Ele foi organizado pela Associao Portuguesa de Socio-logia (APS). Fundada em 1985, essa

    associao defende o desenvolvi-mento, o reconhecimento e a divul-gao da sociologia portuguesa, que a ditadura havia considerado uma cincia inconveniente.. A queda da ditadura, em 1974, e a nova era da de-mocracia trouxe vitalidade recm-criada APS. Desde o fi nal da dcada

    >>

    Relatrio do VII Congresso Portugus de Sociologia

    Membros entusiastas da nova gerao, presentes no Congresso da Associao Sociolgica Portuguesa em Porto, 19 a 22 de junho, 2012.

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    de 1980, temos organizado um con-gresso nacional a cada quatro anos reunindo a comunidade portuguesa de sociologia, como tambm abrindo as portas para o conhecimento cient-fi co internacional dos pesquisadores estrangeiros.

    O tema do congresso Sociedade, Crises e Reconfi guraes era mais do que apropriado para um perodo em que as perturbaes econmi-cas e sociais fi zeram com que a pre-visibilidade desse lugar incerteza, a segurana desse lugar ao risco e a esperana desse lugar ao medo. Um programa com diversos formatos e temas atraiu mais de mil socilogos, incluindo 669 expositores, de difer-entes instituies. Apesar de 72% das instituies serem portuguesas, devemos mencionar que esse con-gresso reuniu uma alta porcentagem (19%) de socilogos estrangeiros, es-pecialmente do Brasil.

    Em 19 de junho, ocorreu um en-contro pr-congresso, ressaltando uma iniciativa inovadora voltada para jovens socilogos. A ideia era or-ganizar a discusso de questes que dizem respeito queles que agora es-to comeando um percurso profi s-sional dentro da sociologia a sua in-cluso no mercado de trabalho ou as possibilidades de uma carreira fazen-do pesquisa sociolgica. Esse primei-ro item do programa foi organizado

    em torno da presena do Presidente da ISA, Michael Burawoy, e foi assisti-do por 180 jovens socilogos. Na con-tramo do modelo convencional de conferncias comumente hierrqui-co e distante a sesso Conversa com Michael Burawoy, comeou me-ses antes, quando jovens socilogos propuseram problemas e questes que eles gostariam que fossem abor-dados. Respondendo a eles, o profes-sor Burawoy refl etiu sobre a democ-ratizao do conhecimento cientfi co, o monoplio da legitimidade cient-fi ca dos grandes centros de produo acadmica, as possibilidades de inter-veno sociolgica na esfera pblica em um contexto de crise econmica e social, e vrios outros temas.

    Durante os trs dias restantes de congresso, uma programao acadmica ecltica orientada pelas sesses plenrias sobre Sociedade e Poltica, Sociedade, Democracia e Valores e Crises e perspectivas polticas, envolveram proeminentes fi guras pblicas, bem como socil-ogos portugueses conhecidos e res-peitados em uma interao criativa com oss espectadores. Esses painis debateram temas que transcendem as fronteiras disciplinares, preparan-do o terreno para pontes entre a produo cientfi ca e a ao poltica e social. Especialistas estrangeiros e portugueses discutiram as conse-quncias das polticas em reas como

    economia, trabalho e precariedade, educao e sade, envelhecimento e segurana social, territrio e meio ambiente para a Europa Meridional. Por ltimo, houve muitas sesses temticas, as mais populares foram Organizaes e Profi sses, Sociologia da Educao, Arte, Cultura e Comuni-cao, Cidades, Campos e Territrios, e, fi nalmente, Globalizao, Poltica e Cidadania

    O programa cientfi co foi comple-mentado por um vasto programa cultural e de entretenimento que in-cluiu a exibio de curta-metragens, um frum de teatro estudantil, con-certos (de bandas conhecidas, mas tambm da Orquestra de Sem Tetos, um projeto do servio educativo da Casa da Msica), e feiras de livros. Os trs dias culminaram em um jantar do Congresso, um momento espe-cial de reencontros, afi nidades soci-olgicas e afetividades. Assim, um grande frum de debate e discusso cientfi ca foi concludo, deixando sua marca na sociedade portuguesa con-tempornea, em que, cada vez mais, a sociologia um campo vital de in-terveno. A marca mais indelvel, no entanto, esteve em nossas biografi as individuais, atualizando e revitalizan-do a nossa paixo pela sociologia.

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    sociedade democrtica e livre em Taiwan. O movimento de liberalizao tinha em vista tornar a sociologia til no avano da democratizao poltica de Taiwan. Em resumo, desde 1980, a sociologia de Taiwan testemunhou uma ex-perincia dual de indigenizao com liberalizao que no somente reformulou diretamente o carter da sociolo-gia taiwanesa, como tambm transformou indiretamente o curso do desenvolvimento da poltica e da sociedade do pas.

    Para ser mais especfi co, existiram trs mudanas asso-ciadas ao movimento da indigenizao com liberalizao na sociologia de Taiwan nas ltimas trs dcadas. A primei-ra foi a mudana moderada cujo objetivo era captar a realidade social e a transformao social. Uma mudana signifi cativa foi o incio e a consolidao da Pesquisa da Mudana Social em Taiwan a partir de 1984, que forneceu dados empricos de alta qualidade para documentar os principais traos da sociedade taiwanesa. A outra foi publi-car uma srie de livros editados descrevendo e analisando problemas sociais signifi cativos, encarando Taiwan como

    > A virada tripla da sociologia taiwanesa

    Por Hsin-Huang Michael Hsiao, Diretor do Instituto de Sociologia, Academia Snica e ex-Presidente da Associao Sociolgica Taiwanesa

    Retrospectivamente, a histria da socio-logia em Taiwan tem seu prprio carter nico. Ainda que Taiwan esteve sob o governo colonial japons entre 1895 e 1945, no h, no sculo XX, um legado

    evidente ou uma herana da tradio japonesa de socio-logia em Taiwan. Tambm no houve um claro transplan-te ou continuao da sociologia da Repblica da China (1911-1945) para Taiwan, quando o Partido Nacionalista Chins (KMT) tomou o controle de Taiwan dos japoneses depois da II Guerra Mundial. O nascimento da sociologia em Taiwan comeou no incio dos anos de 1960 quando ela foi profundamente infl uenciada pela sociologia ameri-cana, levando a uma relao de dependncia entre 1960 e 1980. Em seguida, no incio dos anos 1980, o movimento de indigenizao na sociologia, junto com a psicologia e a antropologia, foi organizado como uma reao cole-tiva superdependncia do paradigma da cincia social dos EUA. O panorama intelectual da sociologia taiwanesa comeou a mudar.

    No incio, um consenso de autocrtica foi forjado entre a segunda gerao de socilogos taiwaneses cuja maio-ria foi de fato treinada na Amrica de que a sociologia carecia de pesquisa emprica slida sobre Taiwan e que ela possua pouca relevncia para a realidade de Taiwan, apesar das tentativas de teorizao da experincia taiwan-esa. Essa segunda gerao foi convocada a desenvolver uma sociologia de raiz com uma identidade taiwanesa embebida na cultura e na histria. Logo, os socilogos embarcariam num movimento de liberalizao, ao per-ceberem que o regime autoritrio do KMT era prejudicial para o desenvolvimento de uma sociologia saudvel e independente. Eles exigiam que fosse estabelecida uma

    o desenvolvimento mais dinmico e vi-brante da sociologia ocorreu quando Tai-wan viveu as mais

    profundas transfor-maes

    >>

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    uma sociedade em transio. At agora, seis volumes foram produzidos em 1979, 1984, 1991, 2002, 2005 e 2010. Eles serviram como confi veis livros de referncia para os acadmicos e para o pblico afi m.

    O segundo movimento da sociologia foi a virada crtica que se empenhou em temas pblicos importantes. Um movimento crucial foi desafi ar os tabus polticos sancio-nados pelo regime autoritrio do KMT por meio do en-gajamento de trs reas de pesquisa proibidas anterior-mente, nomeadamente, etnicidade e relaes tnicas, classes sociais e clivagens de classes, gnero e desigual-dade de gnero. Portanto, no surpreendente que entre os 1.133 captulos dos 160 volumes publicados de socio-logia entre 1980 e 2011, classe social, mobilidade social, mudana estrutural e tpicos relacionados lideram (num total de 214 captulos), seguidos por temas associados com etnicidade (131 captulos) e em seguida temas foca-dos em gnero (78 captulos). Outro projeto de pesquisa dos maiores foi dedicado documentao da ascenso e prtica dos movimentos sociais emergentes e do ativismo social na sociedade civil. At o momento, cinco livros im-portantes editados sobre movimentos sociais foram pro-duzidos e amplamente empregados no campus bem so familiares nos crculos dos movimentos sociais. Eles foram publicados em 1989, 2000, 2006, 2010 e 2011.

    A terceira mudana foi a virada radical que deu so-ciologia um papel dentro da democratizao poltica de Taiwan. Muitos socilogos profi ssionais escreveram ati-vamente artigos em jornais e revistas populares, organi-zando ou comparecendo a seminrios pblicos e a confer-ncias da imprensa para defender e promover a causa da democracia. Em suma, os socilogos de Taiwan exerceram uma sociologia pblica ou uma sociologia engajada nos movimentos pr-democracia desde os anos de 1980. Um grande nmero de socilogos taiwaneses teve um papel ativo como intelectuais pblicos e ativistas, diretamente envolvidos em iniciar, mobilizar e liderar vrias frentes dentro dos movimentos pr-democracia.

    A dialtica da sociologia e da transformao social desde os anos 1980 mostra que o desenvolvimento mais dinmi-co e vibrante da sociologia ocorreu quando Taiwan viveu as mais profundas transformaes. As mudanas sociais e polticas levaram os socilogos locais a desenvolverem uma afi nidade orgnica com a realidade taiwanesa, es-timulando-os a desafi ar o governo autoritrio atravs do engajamento em pesquisa sociolgica crtica, e mesmo encorajando-os a participar nos movimentos pr-democ-racia. Ao fazer isso, a sociologia taiwanesa no somente tem sido um empreendimento liberalizador, mas tambm, por sua vez, ajudou a sociedade taiwanesa a se tornar mais democrtica.

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    Como muitos aspectos da sociedade taiwanesa per-manecem intocados pesquisa sociolgica, nossa com-preenso sociolgica de Taiwan contm grandes e nu-merosos campos vazios. Esse dfi cit de conhecimento, por sua vez, impede gravemente nossas pesquisas. Sem o fornecimento adequado de estudos nativos para consul-tar e citar, nossa pesquisa e o nosso ensino esto sendo forados a se basear mais no material de fora do que no material nativo. A situao local fi ca muitas vezes sujeita especulao. Como consequncia, uma frao signifi cativa do nosso conhecimento da sociedade taiwanesa est,na verdade,baseada em suposies e no em slidas pesqui-sas, e os leitores de relatrios acadmicos o mais das vezes levam um bom tempo para distinguir entre trabalho sug-erido e um conhecimento slido.

    Mesmo em subcampos que recebem ateno por parte de especialistas, o nmero de pesquisadores ativos possui geralmente um simples dgito. As publicaes aparecem

    > Os apuros da

    Por Su-Jen Huang, Universidade Nacional de Taipei, Taiwan.

    Iniciada h menos de 60 anos com um punhado de socilogos com quase nenhum treinamento de PhD, a sociologia em Taiwan vem se tornando nos ltimos anos uma disciplina com cerca de 300 estudiosos de nvel PhD. Ela atingiu um pro-

    gresso signifi cativo em pesquisa e vem frequentemente contribuindo nas deliberaes da poltica pblica. Ela tem feito grandes progressos que condizem com um pas que rapidamente se transformou de uma sociedade agrria em uma potncia industrial.

    H ainda um limite para a sociologia de Taiwan em seu empenho por uma slida compreenso terica e me-todolgica de sua prpria sociedade, um limite imposto pelo reduzido tamanho de sua comunidade acadmica que, por sua vez, determinada pelo tamanho da popu-lao e pelo seu investimento acadmico. Essa limitao se impe frequentemente sobre outros pequenos pases bem como sobre outras disciplinas da cincia social.

    A sociologia de hoje, como qualquer outra disciplina acadmica, est altamente especializada e comumente dividida em certos nmeros de subcampos, cada qual con-tendo, por sua vez, mais do que uma dzia de temas de pesquisa. Uma disciplina assim especializada requer anos de treino terico-metodolgico e prtica para realizar um estudo signifi cativo sobre qualquer questo importante. Uma comunidade de uns meros trezentos socilogos sig-nifi ca que muitos dos subcampos da sociologia em Taiwan so capazes de recrutar um bom punhado de pesquisa-dores e muitos fenmenos sociais importantes so sim-plesmente deixados de lado.

    a sociologia em Tai-wan obrigada a ser em grande parte uma indstria de substitu-

    io de importao que produz estudos copia-

    dos

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    O caso de Taiwan

    sociologia emuma nao pequena:

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    esparsas e vagarosamente, muitas vezes com anos entre elas, quando no dcadas. Mesmo em subcampos relati-vamente populares, demora anos para se ver um trabalho sendo citado ou comentado. Os dilogos produtivos en-tre colegas no passam de sonhos. A solido acadmica um fato para muitos pesquisadores. Mesmo os mais expe-rientes pesquisadores sentem-se frustrados pela falta de retorno e apreciao.

    O que pior a escassez de colegas e de dilogo tambm signifi ca falta de testes e correes na pesquisa. Em casos extremos, uma publicao ruim pode permanecer como o nico material nacional sobre aquele tpico por uma d-cada, fornecendo o status de conhecimento convencional pela ausncia de outro, iludindo todas as pessoas sobre o caminho a seguir.

    Quando muitos tpicos permanecem pouco estudados ou inclusive completamente mal compreendidos, at mes-mo os temas mais amplamente estudados podem sofrer equvocos. A razo simples. Ao fazer pesquisa, ns no construmos um quadro completo a partir de um rabisco. Ao invs disso, ns nos apoiamos normalmente em uma base de conhecimento que coletivamente construda pela comunidade acadmica e pelo senso comum da nos-sa sociedade. contra esse background de um estoque co-mum de conhecimento que ns interpretamos nossos da-dos e chegamos s concluses de nossa pesquisa. Quando o estoque comum de conhecimento sobre a nossa prpria sociedade muito incompleto e frequentemente duvi-doso, mesmo o pesquisador mais cuidadoso corre o risco de interpretar erroneamente seus resultados. Em outras palavras, no importa quo bom seja o desenho de nossa pesquisa, a coleta de dados e a anlise, um grave dfi cit de conhecimento bsico sobre a nossa sociedade pode facil-mente levar a uma interpretao falsa dos nossos achados de pesquisa.

    Alm do mais, a escassez de pesquisa local tambm re-tarda a emergncia de conceitos originais e de teorias que so necessrias para analisar os aspectos mais distintos da nossa prpria sociedade. Cada sociedade possui certos singularidades que no podem ser adequadamente com-preendidas com conceitos ou teorias importadas de fora. Nesse tipo de situao no to rara, alm dos dados locais, um conceito ou teoria nativa necessrio para o entendi-mento completo de uma sociedade. No entanto, no h especialistas em nmero sufi ciente para desenvolver esses conceitos. Mesmo nos casos extremamente afortunados e raros nos quais um estudioso capaz de vir com um bom conceito ou uma teoria original, haver poucos colegas que podem apreci-lo ou cit-lo. Em face da competio de conceitos importados e de teorias que so admiradas por centenas, quando no milhares de citaes em publi-caes internacionais, as chances que um conceito origi-nal ou teoria podem carrear novos seguidores locais so muito pequenas. A despeito da chamada para conceitos ou teorias autctones, o fato que no h um nmero sufi ciente de colegas, nem nmero sufi ciente de citao mtua, portanto, no h credibilidade sufi ciente no mer-cado acadmico para tais conceitos ou teorias. Como con-sequncia, a sociologia em Taiwan obrigada a ser em grande parte uma indstria de substituio de importao que produz estudos copiados, colocando dados locais em modelos importados.

    Ento, o que podemos fazer, alm de ser pessimistas? Considerando a relevncia e o valor das cincias sociais em tantas polticas pblicas e o tremendo custo social da poltica pblica equivocada devido ignorncia, nossa responsabilidade pressionar por investimentos em cin-cias sociais. Por outro lado, devemos reconhecer de for-ma honesta os limites da compreenso da nossa prpria sociedade, sendo mais cuidadosos na construo de um conhecimento social mais amploe sendo mais refl exivos na interpretao das pesquisas.

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    > Questes morais e liberdades individuais no Chile

    Por Oriana Bernasconi, Universidade Alberto Hurtado, Santiago, Chile

    N as ltimas dcadas, o Chile assistiu a refor-mas sociais nas reas da sade, educao, de penses e no mercado de trabalho. Indubitavelmente, essas reformas con-

    triburam para o desenvolvimento de uma sociedade mais inclusiva e igualitria. Porm, muito ainda necessita ser feito. Enormes desafi os esto pendentes no que tange a temas como autonomia pessoal, equidade econmica, participao poltica e proteo contra discriminao. Uma democracia madura requer avanos em todas essas reas, e as cincias sociais tm um papel a desempenhar atravs da produo de conhecimento capaz de ajudar a desembaraar as disputas sociais ao, por exemplo, reduzir indiferenas, mal entendidos ou desconfi anas.

    No Chile as disputas sociais em que o elemento moral central so chamadas disputas de valor (disputas valricas). Debates pblicos sobre o direito eutansia, lei do divrcio, a legalizao do aborto, ou os direitos de minorias sexuais pertencem a essa categoria. Na sociedade chilena, a maioria dessas controvrsias pblicas surgiu em torno da legislao. Uma vez que a discusso desses projetos de lei requer um debate sobre os direitos e deveres de membros de uma co-munidade sobre alguma outra, o seu estudo pode nos dizer muito sobre a cultura moral de uma sociedade. Ele pode revelar, por exemplo, as ideias prevalecentes sobre o bom e o justo e sua distribuio social, as fontes das normas mo-rais, e os procedimentos utilizados na deliberao moral.

    Com a retomada da democracia, a sociedade chilena tam-bm comeou a propor e discutir diferentes reformas ori-entadas para a ampliao de liberdades individuais e a reduo da interferncia pblica sobre as vidas e decises das pessoas. Se na maioria das sociedades europeias oci-dentais o aborto inaugurou muitos desses debates morais e o tema da eutansia apareceu em um momento subse-quente, no Chile as reivindicaes por reformas constitu-cionais desse tipo comearam no incio da dcada de 1990, com a questo da educao sexual, seguida por um debate de nove anos sobre a lei de divrcios (aprovada somente em 2004) e, ento, por seis diferentes iniciativas legais para regular a morte com dignidade e estabelecer o direito eutansia uma discusso que atravessou os anos de 2000 a 2012. Os debates prosseguem atualmente em torno dos

    direitos de minorias sexuais e da plula contraceptiva do dia seguinte. Uma sociedade se envolve com esse tipo de disputa quando a abrangncia de direitos individuais e a luta contra a discriminao tornam-se projetos polticos. Enquanto alguns chilenos celebram essas demandas como um sinal de maturidade moral, outros as deploram como sinal de uma permissividade perturbadora, ou decadncia moral, e at mesmo de crise.

    Eu reconstru e analisei os regimes de justifi cao e crtica desenvolvidos na controvrsia desperta por iniciativas le-gais para regular a eutansia e a morte com dignidade no Chile1. Tratou-se de um debate legal e moral. Desenvolvi-mentos recentes na pesquisa biolgica e biomdica cri-aram novas possibilidades de interveno, manipulao, melhoria e trmino da vida humana, redefi nindo seu prp-rio signifi cado. Os casos de eutansia, juntamente com a fertilizao in vitro, clonagem ou barrigas de aluguel, nos mostra que continuam a existir controvrsias scio-tcni-cas de estrutura e contedo similares, representando de-safi os morais.

    A anlise dessa controvrsia revelou uma diviso entre dois princpios morais: a autonomia do paciente e a na-tureza inviolvel da vida. Aqueles que defendem o direito eutansia a vem como um ato voluntrio e positivo, de-mandado de um mdico por um paciente com dores insu-portveis e irreversveis. Aqueles que se opem proposta ampliam o escopo da ao para alm do contexto mdico, e incluem a eutansia passiva ou o ato de deixar morrer pela omisso do tratamento necessrio. Mas a discusso extrapolou o levantamento desses princpios para incluir o prprio relato das situaes a serem reguladas pela lei: a natureza da morte e as noes de suicdio assistido, trata-mento ordinrio ou extraordinrio, pacientes terminais ou cuidados paliativos estiveram todos sob debate. Assim, a controvrsia envolveu no apenas os valores que os ci-dados querem defender, mas tambm a construo s-cio-poltica e o uso de fatos tcnicos alegadamente discre-tos, e o entrelaamento da moralidade e da cincia nesses tempos de modernidade tardia.

    1 Entrevistei membros do parlamento e bioeticistas envolvidos na controvrsia, es-tudei as propostas legais e sua discusso no parlamento e examinei a cobertura em artigos acadmicos e jornais.

    O que se considera uma moralidade comum no apenas impreciso, como varivel

    (Seyla Benhabib, 2004)

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    > Os limites das polticas ambien- tais no Chile

    Por Alejandro Pelfi ni, Universidade Alberto Hurtado, Santiago, Chile, e FLACSO-Ar-gentina

    Em 2011, o Chile con-quistou repentina-mente um lugar im-portante no noticirio

    mundial. A propagao de protestos estudantis contra um dos mais caros e desiguais sistemas de educao superior do planeta recebeu uma at-eno inesperada. Mais abrangente-mente, aquele ano marcou a difuso de movimentos sociais e a politizao horizontal de cidados que haviam aceitado passivamente a consoli-dao do neoliberalismo, apesar dos vinte anos de recuperao democrti-ca. As novas questes polticas foram

    Protesto contra uma barragem de grande escala hidreltrica na Patagnia, no Chile

    expressas no apenas em meio aos protestos estudantis, mas tambm em outros campos, para alm das clivagens distributivas tradicionais. Os direitos e a autonomia de popu-laes indgenas e a conservao de algumas terras comuns, considera-das uma herana ambiental, atraram apoio e solidariedade de pessoas que no eram diretamente afetadas por tais questes.

    Numerosos protestos se espalharam de comunidades locais para manifes-taes massivas na capital, Santiago, contra a represa de uma hidroeltrica

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    de grande porte (Hidro Aysn) em um dos mais antigos pontos da Pa-tagnia Chilena, contra a instalao de centrais termeltricas, e contra a minerao de larga escala em geral. Um enorme movimento de cidados comeou a questionar no apenas o rumo da poltica ambiental no pas, mas tambm, mais amplamente, as polticas energticas e suas ligaes com um modelo de acumulao ex-trativista e profundamente insusten-tvel. Nesse sentido, o Chile, visto como um dos primeiros e relativa-mente bem sucedidos experimentos neoliberais no mundo, revela-se re-pentinamente como um laboratrio de modernizao ecolgica para so-ciedades semiperifricas.

    A elaborao de polticas ambien-tais no Chile no tem mais de dez anos, sendo possvel afi rmar que tiveram incio aps a crise do cultivo de salmo no Pacfi co Meridional. essencialmente reativa em sua na-tureza, agindo prioritariamente aps o fato ocorrido: no contribui para a formao de uma agenda pblica, mas avalia, atenua ou at justifi ca agendas pr-estabelecidas em tor-no de investimentos produtivos ou extrativistas. As polticas pblicas servem para reproduzir e legitimar a extrao de matria prima, que a atual base da riqueza relativa do

    Chile. O salmo, a madeira e os min-erais so os principais produtos ex-portados pelo Chile. Eles so o objeto da regulao ambiental, tendo esta trs objetivos essenciais: a proteo do recurso (mas no do ecossistema circundante); o controle de confl i-tos socioambientais; e a salvaguarda dos interesses dos investidores e a segurana jurdica. Polticas ambien-tais focadas nesses recursos extrados envolvem trs atores fundamentais: o investidor (normalmente, uma corpo-rao transnacional); o Estado, como um viabilizador que tambm autoriza um projeto de investimento; e espe-cialistas (think tanks ou agncias de avaliao de impacto ambiental), que proveem legitimidade cientfi ca para um dado projeto. Esses atores esto conectados por meio de fortes redes de relao: uma aliana entre elites dominando o campo das polticas ambientais, enquanto a sociedade civil e cidados ordinrios so relega-dos ao papel de observadores.

    Meu projeto visa analisar como essa rede se consolida em um dis-curso dominante (em grande parte, o discurso da Responsabilidade So-cial Corporativa), organizado em torno de um arranjo institucional privilegiado (Tratados Voluntrios), e utilizando Avaliaes de Impactos Ambientais para legitimar e repro-

    duzir sua dominao no campo das polticas ambientais. Nesse contexto, ideais progressistas e democrticos como responsabilidade, transparn-cia e participao foram reduzidos a um instrumento para a separao entre Estado, mercado e a sociedade civil, promovendo parcerias fl exveis e autorregulao. Um processo de aprendizado coletivo certamente comeou, e alguma medida de de-mocratizao tambm ocorreu, mas na forma de um processo vigiado de aprendizado, sob a tutela de um fra-co processo democrtico. A questo que emerge se as limitaes se de-vem apenas mera instrumentali-zao por uma coalizo coorporativa de grupos da elite ou se so relacio-nadas aos ideais (responsabilidade, transparncia e participao) em si mesmos que, em ltima anlise, so menos progressistas e democrticos do que normalmente pressupomos. Uma cidadania mais sensvel e ativa est trazendo, pelo menos, questes inovadoras para a esfera pblica, con-duzindo as polticas para alm das in-stituies estabelecidas, em direo s ruas e aos meios de comunicao em massa.

    1 Este projeto parte de um projeto mais amplo, chamado Instituies formais e redes informais nas polticas pblicas no Chile (FONDECYT No. 1110428), coordenado por Patricio Miranda.

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    DG VOL. 3 / # 2 / FEVEREIRO 2013

    > Uma ocupao de migrantes

    Por Carolina Stefoni, Universidade Alberto Hurtado, Santiago, Chile

    No corao do centro cvico e histrico de Santiago do Chile, localiza-se o maior en-

    clave de migrantes da cidade. A rea reune um nmero signifi cativo de im-igrantes de vrios pases latino-amer-icanos, embora uma clara maioria seja de origem peruana. Esses imigrantes peruanos desenvolveram uma inten-sa atividade comercial, com foco em produtos para a populao estrangei-ra, tais como utenslios de cozinha, comida pr-fabricada vendida como lanche de rua, locutrios, envio de encomendas e servios de remessas..

    Alguns dos fatores que esto por trs do desenvolvimento desse en-clave so: a disponibilidade de ca-sas antigas e lojas comerciais como resultado do contnuo processo de despovoamento do centro da cidade durante as dcadas anteriores; uma concentrao de imigrantes, precisa-mente por causa da disponibilidade de casas, que esto subdivididas em pequenos quartos alugados in-formalmente; o estabelecimento de companhias de importao que

    no centro de Santiago do Chile

    Uma mercearia servindo migrantes colom-bianos e peruanos no centro de Santiago, Ch