digitalsource - Portal Conservador · Tradução de Emanuel Lourenço Godinho Revisão de Edições...

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MMaarrcc BBlloocchh

AA SSOOCCIIEEDDAADDEE FFEEUUDDAALL

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Fabricador

de instrumentos de trabalho,

de habitaes,

de culturas e sociedades,

o homem tambm

agente transformador

da histria.

Mas qual ser o lugar

do homem na histria

e o da histria na vida do homem?

Ttulo original : La societ Fodal

Editions Albin Michel, Paris

Traduo de Emanuel Loureno Godinho

Reviso de Edies 70

Capa de Alceu Saldanha Coutinho

Reservados os direitos para todos os pases de Lngua Portuguesa

Av. Duque de Avila, 69 r/c Esq. - 1000 - LISBOA

Telefs. 55 68 98 - 57 20 01

Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES

Rua Conselheiro Ramalho, 330-340 - So Paulo

Digitalizado e Formatado Por:

Uther Pendragon & Dayse Duarte

MMMAAARRRCCC BBBLLLOOOCCCHHH

AA SSOOCCIIEEDDAADDEE

FFEEUUDDAALL

NDICE*

Apresentao .......................................................................................... 11

Introduo - orientao geral da investigao ....................................... 13

.

PRIMEIRO TOMO

A FORMAO DOS LAOS DE DEPENDNCIA

Primeira parte O MEIO

Primeiro livro AS LTIMAS INVASES

CAP. I - Muulmanos e Hngaros

1. A Europa invadida e cercada ..................................................... 20

2. Os Muulmanos ......................................................................... 21

3. A ofensiva hngara .................................................................... 25

4. Fim das invases hngaras ......................................................... 29

.

CAP. II - 4 Os Normandos

1. Caractersticas gerais das invases escandinavas ...................... 34

2. Da incurso possesso ........................................... .................. 39

3. As possesses escandinavas: a Inglaterra ................. ................. 42

4. As possesses escandinavas: a Frana ........................ ............... 47

5. A cristianizao do Norte .................................... ....................... 52

6. Em busca das causas ................................... ............................... 57

.

CAP. III - Algumas consequncias e alguns ensinamentos das invases

1. A desordem ....................................................................... ......... 62

2. O contributo humano: o testemunho da lngua e dos nomes ..... 66

3. O contributo humano: o testemunho do Direito e da Estrutura

Social .............................................................................................. 72

4. O contributo humano: problemas de provenincia .................... 75

5. Os ensinamentos ........................................................................ 77

.

Segundo livro AS CONDIES DE VIDA

E A ATMOSFERA MENTAL

CAP. I -Condies materiais e tonalidades econmicas

1. As duas idades feudais ............................................................... 83

2. A primeira idade feudal: o povoamento ..................................... 84

3. A primeira idade feudal: a vida de relao ................................ 86

4. A primeira idade feudal: as trocas ............................................. 91

5. A revoluo econmica da segunda Idade feudal ...................... 94

.

CAP. II -Maneiras de sentir e de pensar

1. O Homem perante a Natureza e a durao ................................. 99

2. A expresso .............................................................................. 102

* Este ndice informa a paginao da edio digitalizada. No decorrer do texto foram inseridas, entre

colchetes, as marcas de paginao referente edio original para maior fidelidade de consulta

acadmica.

3. Cultura e classes sociais ........................................................... 107

4. A mentalidade religiosa ........................................................... 110

.

CAP. III - A memria colectiva

1. A historiografia ........................................................................ 117

2. A Epopia ................................................................................. 122

.

CAP. IV - O Renascimento Intelectual na Segunda Idade Feudal

1. Algumas caractersticas da nova cultura .................................. 134

2. A tomada de conscincia ......................................................... 138

.

CAP. V - Os fundamentos do Direito

1. O imprio do costume .............................................................. 141

2. As caractersticas do direito consuetudinrio .......................... 145

3. As renovaes dos direitos escritos ......................................... 149

.

Segunda Parte - OS LAOS DE HOMEM PARA HOMEM

Primeiro livro - OS LAOS DE SANGUE

CAP. I - A slidariedade da linhagem

1. Os Amigos Carnais .............................................. ................ 154

2. A vendetta 157

3. A solidariedade econmica ..................................................... 163

.

CAP. II - Caractersticas e vicissitudes do lao de parentesco

1. As realidades da vida familiar .................................................. 167

2. A estrutura da linhagem ........................................................... 170

3. Laos de sangue e feudalismo .................................................. 175

.

Segundo livro - A VASSALIDADE E O FEUDO

CAP. I - A homenagem vasslica

1. O homem de outro homem ...................................................... 178

2. A homenagem na era feudal .................................................... 179

3. A gnese das relaes de dependncia pessoal ........................ 181

4. Os guerreiros domsticos ......................................................... 185

5. A vassalidade carolngia .......................................................... 191

6. A elaborao de vassalidade clssica ....................................... 195

.

CAP. II - O feudo

1. Benefcio e feudo: a tenure salrio ....................................... 198

2. O chasement dos vassalos ........................................................ 204

.

CAP. III - Perspectiva europeia

1. A diversidade francesa: Sudoeste e Normandia ....................... 213

2. A Itlia ..................................................................................... 214

3. A Alemanha ............................................................................. 217

4. Fora da influncia carolngia: a Inglaterra anglo -saxnica e a

Espanha dos reinos asturo-leoneses ............................................. 218

5. Os feudalismos de importao ....................................... .......... 226

.

CAP. IV - Como o feudo passou ao patrimnio do vassalo

1. O problema da hereditariedade: honras e simples feudos .... 229

2. A evoluo: o caso francs ...................................................... 233

3. A evoluo: no Imprio ........................................................... 237

4. As transformaes do feudo, vistas atravs do seu direito

sucessrio ..................................................................................... 239

5. A fidelidade no comrcio ......................................................... 249

.

CAP. V - O homem de vrios senhores

1. A pluralidade das homenagens ................................................ 252

2. Grandeza e decadncia da homenagem lgia ........................... 256

.

CAP. VI - Vassalo e senhor

1. O auxlio e a proteco ............................................................ 261

2. A vassalidade em lugar da linhagem ....................................... 267

3. Reciprocidade e rupturas .......................................................... 271

.

CAP. VII - O paradoxo da vassalagem

1. As contradies dos testemunhos ............................................ 274

2. Os vnculos de direito e o contacto humano ............................ 279

.

Terceiro livro - OS VNCULOS DE DEPENDNCIA

NAS CLASSES INFERIORES

CAP. I - O senhorio

1. A terra senhorial ....................................................................... 283

2. As conquistas do sistema senhorial .......................................... 285

3. Senhor e foreiros (tenanciers) .................................................. 292

.

CAP. II - Servido e liberdade

1. O ponto de partida: as condies pessoais na poca franca ..... 299

2. A servido francesa .................................................................. 305

3. O caso alemo .......................................................................... 312

4. Na Inglaterra: as viciss itudes da vilanagem ............................. 316

.

CAP. III - Rumo s novas formas do regime senhorial

1. A estabilizao dos encargos ................................................... 322

2. A Transformao das relaes humanas .................................. 326

.

SEGUNDO TOMO

AS CLASSES E O GOVERNO DOS HOMENS

Primeiro livro - AS CLASSES

CAP. I - Os nobres como classe de facto

1. O desaparecimento das antigas aristocracias de sangue .......... 330

2. Dos diversos sentidos da palavra nobre, na primeira idade

feudal ........................................................................... ................. 333

3. A classe dos nobres como classe senhorial .............................. 336

4. A vocao guerreira ................................................................. 337

.

CAP. II - A vida nobre

1. A guerra ................................................................................... 341

2. O nobre em sua casa ................................................................ 347

3. Ocupaes e distraces .......................................................... 351

4. As regras de conduta ................................................................ 355

.

CAP. III - A cavalaria

l. A investidura ............................................................................. 363

2. O Cdigo de Cavalaria ............................................................. 368

.

CAP. IV - A transformao da nobreza de facto em nobreza de direito

1. A hereditariedade da investidura e o enobrecimento ............... 372

2. Constituio dos descendentes de cavaleiros em classe

privilegiada .................................................................................. 378

3. O direito dos nobres ................................................................. 380

4. A excepo inglesa .................................................................. 383

.

CAP. V - As distines de classe no interior da nobreza

1. A hierarquia do poder e da categoria ....................................... 386

2. Minesteriales e cavaleiros-servos ............................................ 391

.

CAP VI - O clero e as classes profissionais

1. A sociedade eclesistica no feudalismo ................................... 401

2. Vilos e burgueses .................................................................. 409

.

Segundo livro - O GOVERNO DOS HOMENS

CAP. I - As justias

1. Caractersticas gerais do regime judicirio .............................. 414

2. A diviso das justias ............................................................... 417

3. Julgamento pelos pares, ou julgamento pelos senhores? ......... 425

4. A margem do desmembramento: sobrevivncia e factores novos

....................................................................................................... 427

.

CAP. II - Os poderes tradicionais: realezas e Imprio

1. Geografia das realezas ............................................................. 432

2. Tradies e natureza do poder real .......................................... 437

3. A transmisso do poder real: problemas dinsticos ................. 441

4. O Imprio ................................................................................. 448

.

CAP. III - Dos principados territoriais s castelanias

1. Os principados territoriais ........................................................ 453

2. Condados e castelanias ............................................................ 459

3. As dominaes eclesisticas .................................................... 461

.

CAP. IV - A desordem e a luta contra a desordem

1. Os limites dos poderes ............................................................. 469

2. A violncia e a aspirao paz ................................................ 472

3. Paz e trguas de Deus .............................................................. 474

.

CAP. V - Rumo reconstituio dos estados: as evolues nacionais

1. Razes do reagrupamento das foras ....................................... 484

2. Uma monarquia nova: os Capetos ........................................... 486

3. Uma monarquia arcaizante: a Alemanha ................................. 490

4. A monarquia anglo-normanda: feitos de conquistas e

sobrevivncias germnicas ........................................................... 493

5. As nacionalidades .................................................................... 496

.

Terceiro livro - A FEUDALIDADE

COMO TIPO SOCIAL E A SUA ACO

CAP. I - A feudalidade como tipo social

1. Feudalidade ou feudalidades: singular ou plural? .................... 503

2. As caractersticas fundamentais da feudalidade europeia ........ 505

3. Um corte atravs da histria comparada ................................. 509

.

CAP. II - Os prolongamentos da feudalidade europeia

1. Sobrevivncias e revivescncias .............................................. 512

2. A ideia guerreira e a ideia de contrato ..................................... 515

. BIBLIOGRAFIA ................................................................................ 518

.

AA FFEERRDDIINNAANNDD LLOOTT

Homenagem de respeitoso e reconhecido afecto.

J foi dito, e com muita justia, que a obra de Marc Bloch, professor da Sorbonne,

renovou a viso histrica tradicional da Idade Mdia. No presente volume, o leitor

encontrar o essencial do pensamento deste historiador que se situa entre os maiores,

apesar de a sua carreira ter sido tragicamente abreviada pela sua morte herica na

Resistncia, em 1944.

Ele o historiador exemplar que estudou o passado em todos os aspectos ao

mesmo tempo e utilizando todos os meios que podem servir a histria. A vastido da

sua documentao impressionante. No se contenta com as fontes propriamente ditas,

que emprega com toda a prudncia... e com os trabalhos chamados de segunda mo, que

examinou cuidadosamente. Recorre lingustica: a etimologia das palavras, as suas

mudanas de formas e de sentido, a toponmia e a onomstica fornecem-lhe

informaes preciosas... Utiliza as canes de gesta... Arqueologia, geografia social,

costumes agrrios: nada h que lhe escape. Em suma, a partir dos fenmenos

particulares e localizados, eleva-se o mais possvel at explicao geral que sempre,

terminantemente, de ordem psicolgica. (H. Berr).

Europa de Oeste e do Centro... perodo dos meados do sculo IX at aos

primeiros decnios do sculo XIII: eis, no espao e no tempo, os limites do presente

volume... Dentro destes limites, o tema de Marc Bloch a sociedade chamada feudal.

Pode discutir-se a validez de tal rtulo, mas isso no tem importncia: existe uma

realidade a que se aplicou esta designao e existe uma estrutura social que caracteriza

esta realidade; esta estrutura que o autor se prope analisar da forma mais completa

possvel.

Esta anlise pretexto de pginas absolutamente notveis, porque mergulham na

intimidade do passado, porque provocam a reflexo sobre a atitude do homem dessa

poca perante a natureza [Pg 009] e a durao e, de um modo geral, sobre os dados

psicolgicos que so a prpria essncia da histria (H. Berr).

Depois de recapitular o meio e de definir a mentalidade, o autor analisa os

vnculos de homem para homem que caracterizam o sistema feudal, numa espcie de

participao que esses vnculos criaram: todo um complexo de relaes pessoais, de

dependncia e de proteco, resulta na vassalagem. Existe uma subordinao, do cimo

ao fundo da escala social, dos indivduos uns aos outros, com tudo o que ela implica,

tanto no plano moral como no plano econmico. Acima dos que trabalham e at acima

daqueles que rezam, esto os que batalham e para os quais a guerra a razo de

viver.(M. Bloch).

Avaliar-se- quais foram os diversos papis desempenhados pela Igreja; depois,

qual foi a aco da realeza, por um lado, e por outro, a da fora burguesa, causas de

declnio e de desagregao do feudalismo. A cidade, a comuna, o juramento dos

iguais: foi esse, diz Marc Bloch, ... o fermento propriamente revolucionrio,

violentamente adverso a um mundo hierrquico. Uma nova fora nascia, pouco a

pouco, em frente aos castelos que haviam sido durante vrios sculos os nicos pontos

de cristalizao do poder.

Este livro, que se tornou um clssico, est na base de toda a documentao sria

sobre a Idade Mdia. Alm do mais, a aco de um sbio como Marc Bloch, que no

abordou nenhum assunto que no tenha enriquecido, nunca acaba, pois, sublinha Henri

Berr, incessantemente imprime aos historiadores impulso para ir mais longe. O

objectivo que lhe era mais caro era o da L'volution de l'Humanit (A Evoluo da

Humanidade): nunca permitir que o leitor se esquea de que a histria conserva todo

o encanto de uma pesquisa inacabada.

PAUL CHALUS

Secretrio-Geral

do Centro Internacional de Sntese

Nota: Este trabalho rene os tomos XXXIV e XXXIV bis da Bibliothque de

Synthse Historique Lvolution de l'Humanit, fundada por Henri Berr e dirigida,

depois da sua morte, pelo Centre International de Synthse, do qual foi tambm o

criador.

[Pg 010]

IINNTTRROODDUUOO

ORIENTAO GERAL DA INVESTIGAO

No h mais de dois sculos que, sob o ttulo La Socit Fodale, um livro pode

ter a esperana de dar antecipadamente uma ideia do seu contedo. No que o objectivo

em si seja muito antigo. Sob a sua forma latina - feodalis - data da Idade Mdia. Mais

recente, o substantivo feudalismo remonta, no mnimo, ao sculo XVII. Porm, um e

outro termo conservaram ao longo do tempo um valor estritamente jurdico. Sendo o

feudo, como veremos, um modo de posse dos bens reais, considerava-se feudal aquilo

que se relacionava com o feudo - assim se exprimia a Academia - e feudalidade no s

a qualidade de feudo como os encargos prprios desse tipo de posse. Tratava-se, disse

em 1630 o lexicgrafo Richelet, de termos palacianos, no de histria. Quando se

largou o sentido desses vocbulos at ao ponto de serem usados para designar um estado

de civilizao? Governo Feudal e feudalismo figuram, nesta acepo, nas Lettres

Historiques sur les Parlements, publicadas em 1727, cinco anos depois da morte do seu

autor, o conde de Boulainvilliers.1 Este o exemplo mais remoto que uma investigao

bastante cuidadosa me permitiu descobrir. Talvez que outro investigador venha a ser um

dia mais feliz. Este curioso homem, Boulainevilliers, que era ao mesmo tempo amigo de

Fnelon e tradutor de Espinosa, e acima de tudo virulento apologia da nobreza, a qual

considerava oriunda dos chefes germnicos, com menos inspirao e mais cincia, uma

espcie de Gobineau* antecipado - somos tentados facilmente pela ideia de fazer dele,

at mais completa informao, o inventor de uma nova classificao histrica. Pois, em

verdade, disso mesmo que se trata e os nossos estudos [Pg 011] conheceram poucas

fases to decisivas como aquele momento em que os Imprios, dinastias, grandes

sculos, cada um colocado sob a invocao de um heri epnimo, em suma, todos esses

velhos moldes oriundos de uma tradio monrquica e oratria, comearam a ceder o

lugar a um outro tipo de divises, baseadas na observao dos fenmenos sociais.

1 Histoire de l'ancien gouvernameni de la France avec XIV Lettres Historiques sur les Parlements ou

tats-Gnraux. Haia, 1727. A quarta carta tem por ttulo Dtail du gouvernement fodal et de l'tablissement des Fiefs (t. I, p. 286) onde se l: Alarguei-me no extracto desta ordem, por a julgar

adequada a dar uma ideia exacta do antigo feudalismo. * Gobineau - diplomata e escritor francs, autor do Essai sur l'ingalit des races humaines, cujas teses

influenciaram os adeptos do racismo germnico, e de algumas obras de fico. (N. do T.)

No entanto, estava reservado a um escritor mais ilustre dar o direito de cidadania a

esta noo e ao seu rtulo. Montesquieu tinha lido Boulainvilliers. O vocabulrio dos

juristas, alis, no o assustava; e a linguagem literria, apenas por ter passado pelas suas

mos, no iria sair mais enriquecida com os despojos da gria forense? Se, ao que

parece, ele evitou a palavra feudalismo, demasiado abstracta, sem dvida, na sua

opinio, foi ele, incontestavelmente, quem imps ao pblico culto do seu tempo a

convico de que as leis feudais caracterizaram um momento da histria. Do nosso

pas, as palavras, com o seu contedo, passaram s outras lnguas da Europa, ou

simplesmente copiadas ou, como em alemo, traduzidas (Lehnwesen). Finalmente a

Revoluo, erguendo-se contra o que subsistia ainda das instituies baptizadas outrora

por Boulainvilliers, acabou por popularizar o nome que, com intenes totalmente

opostas, ele lhe havia dado. A Assembleia Nacional, diz o famoso decreto de 11 de

Agosto de 1789, destruiu completamente o regime feudal. Daqui em diante, como pr

em dvida a realidade de um sistema social cuja runa custara tantos sacrifcios?2

No entanto, esta palavra, votada a uma sorte to favorvel, preciso confessar que

era mal escolhida. evidente que as razes que, na origem, decidiram a sua escolha

parecem bastante claras. Contemporneos da monarquia absoluta, Boulainvilliers e

Montesquieu consideravam que a fragmentao da soberania entre uma multido de

pequenos prncipes ou at de senhores de aldeia, era a singularidade mais

impressionante da Idade Mdia. Era esta caracterstica que eles julgavam exprimir ao

pronunciarem a palavra feudalismo, pois quando falavam de feudos, referiam-se umas

vezes a principados territoriais, outras a senhorios. Mas, na realidade, nem todos os

senhorios eram feudos, nem todos os feudos eram principados ou senhorios. Podemos,

sobretudo, duvidar de que um tipo de organizao social to complexo possa ser

rigorosamente qualificado, seja por causa do seu aspecto exclusivamente poltico, seja,

se tomarmos feudo em todo o rigor da sua acepo jurdica, por uma forma de direito

real, entre muitas outras. As palavras, todavia, so como moedas muito usadas, fora

de circularem de mo em mo perdem o seu relevo etimolgico. Na sua utilizao

actual, feudalismo e sociedade feudal abrangem um conjunto intrincado de

imagens em que o feudo propriamente dito deixou de figurar em primeiro plano. Com a

[Pg 012] condio de tratar estas expresses apenas como rtulos, daqui para o futuro

2 Entre os Franceses cuja botoeira ostenta hoje uma fita ou uma roseta vermelhas, quantos sabem que um

dos deveres impostos sua ordem pela sua primeira constituio de 19 de Maio de 1802 era

combater... qualquer empreendimento tendente ao restabelecimento do regime feudal?

consagrados, de um contedo que ainda no foi definido, o historiador pode servir-se

deles sem mais remorsos do que aqueles que sente o fsico quando, desprezando a

lngua grega, se obstina em chamar tomo a uma realidade que ele passa o seu tempo

a fragmentar.

Trata-se de uma grave questo saber se outras sociedades, em outros tempos ou

sob outros cus, no tero apresentado uma estrutura assaz semelhante, nos seus traos

fundamentais, do nosso feudalismo ocidental, a ponto de merecerem, por seu lado, ser

denominadas feudais. Voltaremos a encontrar esta questo no fim deste livro, mas ele

no lhe dedicado. O feudalismo cuja anlise vamos tentar fazer aquele que, em

primeiro lugar, recebeu esta designao. Como quadro cronolgico, a investigao, sob

reserva de alguns problemas de origem ou de prolongamento, limitar -se-, portanto, a

esse perodo da nossa histria que se estendeu, mais ou menos, dos meados do sculo

IX at aos primeiros decnios do sculo XIII; como quadro geogrfico, situar-se- na

Europa de Oeste e Central. Ora, se as datas no merecem outra justificao alm do

prprio estudo, os limites de espao, pelo contrrio, parecem exigir um breve

comentrio.

A civilizao antiga centrava-se em redor do Mediterrneo. Escrevia Plato que

da Terra habitamos apenas esta parte que se estende desde o Faso at s Colunas de

Hrcules, espalhados em volta do mar como formigas ou rs em redor de um charco.3

Apesar das conquistas, estas mesmas guas, decorridos muitos sculos, permaneciam o

eixo da Romania. Um senador da Aquitnia podia fazer a sua carreira junto do Bsforo

e possuir vastos domnios na Macednia. As grandes oscilaes dos preos agitavam a

economia desde o Eufrates at Glia. Sem os trigos da frica, a existncia da Roma

imperial no poderia conceber-se, tal como, sem o africano Agostinho, a teologia

catlica no existiria. Em contrapartida, transposto o Reno, comeava o imenso pa s dos

Brbaros, estranho e hostil.

Ora, no limiar do perodo a que chamamos Idade Mdia, dois profundos

movimentos nas massas humanas tinham vindo destruir este equilbrio - no nos

compete aqui averiguar em que medida ele j estava abalado por dentro - para o

substituir por uma constelao de desenho bem diferente. Primeiro foram as invases

3 Fdon, 109 b.

dos Germanos, depois as conquistas muulmanas. Na maior parte das regies

compreendidas outrora na fraco ocidental do Imprio, por vezes uma mesma

dominao, a comunidade dos hbitos mentais e sociais, em todo o caso, unem [Pg 013]

futuramente as terras de ocupao germnica. Pouco a pouco veremos juntarem-se a

elas os pequenos grupos celtas das ilhas, mais ou menos assimilados. Pelo contrrio, a

frica do Norte prepara-se para seguir outros destinos. O regresso ofensivo dos

Berberes tinha preparado a ruptura, o Islo consuma-a. Alis, nas margens do Levante,

as vitrias rabes, ao fixarem nos Balcs e na Anatlia o Antigo Imprio do Oriente,

tinham feito deste o Imprio Grego. As comunicaes difceis, a estrutura social e

poltica muito especial, a mentalidade religiosa e a ossatura eclesistica muito diferentes

das da cristandade isolam-na, cada vez mais, das cristandades do Oeste. De facto, se, a

Leste do continente, o Ocidente se expande largamente sobre os povos eslavos e

propaga em alguns deles, juntamente com a sua forma religiosa prpria, que o

catolicismo, os seus modos de pensar e at algumas das suas instituies, as

colectividades que pertencem a este ramo lingustico no deixam de prosseguir, na sua

maioria, uma evoluo plenamente original.

Limitado por estes trs blocos - o maometano, o bizantino e o eslavo-

incessantemente ocupado, alm disso, desde o sculo X com o alargamento das suas

fronteiras instveis, o feixe romano-germnico estava seguramente longe de apresentar

em si mesmo uma homogeneidade perfeita. Sobre os elementos que o compunham

pesavam os contrastes do seu passado, demasiado vivos para no prolongarem os seus

efeitos at ao presente. Mesmo a, onde o ponto de partida foi quase idntico, com a

continuao, certas evolues bifurcaram. No entanto, por muito acentuadas que tenham

sido essas diversificaes, como poderamos deixar de reconhecer, acima delas, uma

tonalidade de civilizao comum: a do Ocidente? No apenas com vista a poupar ao

leitor o aborrecimento de pesados adjectivos que, nas pginas que vo seguir-se, onde

poderia esperar-se ler Europa Ocidental e Central, ler-se- muito simplesmente

Europa. Na verdade, que importa a acepo do termo e os seus limites, na velha

geografia fictcia das cinco partes do mundo? O que conta o seu valor humano. Ora,

onde germinou e se desenvolveu, para depois se espalhar pelo globo, a civilizao

europeia, seno entre os homens que viviam entre o Tirreno, o Adritico, o Elba e o

Oceano? Isso mesmo sentiram j, mais ou menos obscuramente, o cronista espanhol

que, no sculo VIII se comprazia em qualificar de europeus os Francos de Carlos

Martel, vitorioso contra o Islo, ou, cerca de duzentos anos mais tarde, o monge saxo

Widukind, glorificando Oto o Grande, que tinha repelido os Hngaros, como o

libertador da Europa.4 Neste sentido, que o mais rico de contedo histrico, a

Europa foi uma criao da alta Idade Mdia. J existia quando se iniciaram para ela os

tempos feudais propriamente ditos. [Pg 014]

Aplicada a uma fase da histria europeia, nos limites fixados deste modo, a

palavra feudalismo tem sido largamente objecto de interpretaes por vezes quase

contraditrias, como veremos; a sua prpria existncia atesta a originalidade

instintivamente reconhecida ao perodo que ela qualifica. De tal modo que um livro

sobre a sociedade feudal pode definir-se como um esforo para responder a uma

pergunta posta pelo seu prprio ttulo: quais foram as singularidades que mereceram a

este fragmento do passado ter sido destacado dos seus vizinhos? Por outras palavras, o

que nos propomos tentar aqui a anlise e a explicao de uma estrutura social, com as

suas conexes. Tal mtodo, a afirmar-se fecundo pela experincia, poder ser

empregado noutros campos de estudos, limitados por fronteiras diferentes e espero que

a novidade deste empreendimento far perdoar os seus erros de execuo.

A prpria amplitude da investigao, concebida deste modo, tornou necessrio

dividir a apresentao dos resultados. O primeiro tomo descrever as condies gerais

do meio social, depois a constituio dos laos de dependncia de homem para homem,

os quais, acima de tudo, conferiram estrutura feudal a sua cor prpria. O segundo

dedicar-se- ao desenvolvimento das classes e organizao dos governos. sempre

difcil talhar na matria viva. Pelo menos, como o momento que viu simultaneamente as

classes antigas definirem os seus contornos, uma classe nova, a burguesia, afirmar a sua

originalidade e os poderes pblicos sarem do seu longo enfraquecimento, foi tambm

aquele em que comearam a diluir-se, na civilizao ocidental, os traos mais

especificamente feudais, dos dois estudos sucessivamente oferecidos ao leitor - sem que

tenha sido possvel fazer entre eles uma separao estritamente cronolgica - o primeiro

ser, sobretudo, o da gnese e o segundo o da evoluo final e seus prolongamentos.

Mas o historiador no tem nada de homem livre, pois do passado apenas conhece

aquilo que esse passado quer mostrar-lhe. Por outro lado, quando a matria que tenta

abarcar demasiado vasta para lhe permitir despojar-se pessoalmente de todos os

4 Auctores Antiquissimi (Mon. Germ.), t. XI, p. 362; WIDUKIND, I, 19.

testemunhos, ele sente-se sem cessar limitado, na sua investigao, pelo estado das

pesquisas. Evidentemente, no encontraro aqui a descrio de nenhuma dessas guerras

rendilhadas de que a erudio, mais do que uma vez, ofereceu o espectculo. Como

suportar que a histria possa ceder o lugar aos historiadores? Pelo contrrio, procurei

nunca dissimular, fossem quais fossem as suas origens, as lacunas ou imprecises dos

nossos conhecimentos. No temi, com isso, correr o perigo de repelir o leitor. Ao invs,

seria por apresentar sob um aspecto falsamente esclerosado uma cincia [Pg 015] que

toda movimento que se correria o risco de atrair sobre ela o tdio e a frieza. Um dos

homens que mais avanou na compreenso das sociedades medievais, o grande jurista

ingls Maitland, dizia que um livro de histria deve fazer fome. Fome de aprender e,

sobretudo, de investigar, compreenda-se. Este livro no tem desejo mais forte do que

abrir o apetite a alguns estudiosos.5

[Pg 016] Ttulo

[Pg 017] Pgina em branco

[Pg 018] Pgina em branco

5 Qualquer trabalho de histria, por pouco que se destine a um pblico relativamente vasto, levanta um

problema prtico dos mais perturbantes ao seu autor: o das referncias. A equidade exigiria, talvez, que

fossem multiplicados, nas notas, os nomes dos doutos trabalhos sem os quais esse livro no existiria. Porm, com o risco de incorrer na desagradvel reprovao por ingratido, julguei que poderia deixar

bibliografia, que se encontra no fim do volume, o cuidado de guiar o leitor nos caminhos da literatura erudita. Pelo contrrio, tomei como norma nunca citar um documento sem proporcionar aos

trabalhadores um pouco experientes o meio de encontrar a passagem visada e de verificar a interpretao. Se a referncia no estiver expressa porque as informaes fornecidas pela prpria

exposio, e na publicao donde extrado o testemunho, a presena de ndices bem feitos bastam para tornar fcil a busca. No caso contrrio, uma nota serve de flecha indicativa. Num tribunal, a final, o

estado civil das testemunhas muito mais importante do que o dos advogados.

PPRRIIMMEEIIRROO TTOOMMOO

A FORMAO DOS LAOS DE DEPENDNCIA

PRIMEIRA PARTE

OO MMEEIIOO

PRIMEIRO LIVRO

AASS LLTTIIMMAASS IINNVVAASSEESS

CAPITULO I

MMUUUULLMMAANNOOSS EE HHNNGGAARROOSS

I. A Europa invadida e cercada

Vedes desabar sobre vs a clera do Senhor... S h cidades despovoadas,

mosteiros em runas ou incendiados, campos reduzidos ao abandono... Por toda a parte o

poderoso oprime o fraco e os homens so semelhantes aos peixes do mar que

indistintamente se devoram uns aos outros. Assim falavam, em 909, os bispos da

provncia de Reims, reunidos em Trosly. A literatura dos sculos IX e X, as cartas, as

deliberaes dos conclios, esto cheios destas lamentaes.Tenhamos em considerao,

na medida em que o desejarmos, a nfase e o pessimismo natural dos oradores sagrados.

Mesmo assim, neste tema continuamente orquestrado e, alis, confirmado por tantos

factos, somos forados a reconhecer algo mais do que um lugar comum. Evidentemente,

naquele tempo, as pessoas que sabiam ver e comparar, nomeadamente os clrigos,

tinham a sensao de viver numa odiosa atmosfera de desordens e de violncias. O

feudalismo medieval nasceu no seio de uma poca infinitamente perturbada. Em certa

medida, ele nasceu dessas mesmas perturbaes. Ora, entre as causas que contriburam

para criar ou manter um ambiente to tumultuoso, algumas existiam completamente

estranhas evoluo interior das sociedades europeias. Formada alguns sculos antes,

no escaldante cadinho das invases germnicas, a nova civilizao ocidental, por seu

lado, aparecia como uma cidadela sitiada ou, melhor, mais do que semi-invadida. E por

trs lados ao mesmo [Pg 019] tempo: ao sul, pelos fiis do Islo, rabes ou Arabizados;

a este, pelos Hngaros, ao norte, pelos Escandinavos.

II. Os Muulmanos

Dos inimigos que acabamos de enumerar, o Islo era decerto o menos perigoso.

No que devamos apressar-nos a falar em decadncia, a seu respeito. Durante largo

tempo, nem a Glia nem a Itlia tiveram algo a oferecer, entre as suas pobres cidades,

que se aproximasse do esplendor de Bagd ou de Crdova. O mundo muulmano, com

o mundo bizantino, exerceu sobre o Ocidente, at ao sculo XII, uma verdadeira

hegemonia econmica: as nicas moedas de ouro que circulavam ainda nas nossas

regies saam das oficinas gregas ou rabes, ou ento-tal como muitas outras moedas de

prata imitavam-lhes as cunhagens. E se os sculos VIII e IX viram quebrar-se, para

sempre, a unidade do grande califado, os diversos Estados erguidos dos seus destroos

mantinham-se ainda potncias temveis. Mas da em diante, tratava-se menos de

invases propriamente ditas do que de guerras de fronteiras. Deixemos o Oriente, onde

os Basileis das dinastias amoriana e macednica (828-1056) penosa e valentemente

procederam reconquista da sia Menor. As sociedades ocidentais apenas se chocavam

com os Estados islmicos em duas frentes.

Em primeiro lugar, a Itlia Meridional, que era como que o terreno de caa dos

soberanos que reinavam sobre a antiga provncia romana de frica: emires aglabitas de

Cairuo, depois, a partir do incio do sculo X, califas fatimidas. A Siclia havia sido

pouco a pouco conquistada pelos Aglabitas aos Gregos, que a dominavam desde

Justiniano e cuja ltima praa forte, Taormina, caiu em 902. Ao mesmo tempo, os

rabes tinham-se instalado na pennsula. Atravs das provncias bizantinas do Sul eles

ameaavam as cidades, semi-independentes, do litoral tirreno e os pequenos principados

lombardos de Campnia e do Beneventino, mais ou menos submetidos ao protectorado

de Constantinopla. Ainda no princpio do sculo XI eles estenderam as suas incurses

at s montanhas da Sabina. Um bando que estabelecera o seu reduto nas alturas

arborizadas do Monte Argento, prximo de Gaeta, s foi aniquilado em 915, depois de

vinte anos de pilhagens. Em 982, o jovem imperador dos Romanos, Oto II, o qual,

de origem saxnica, nem por isso deixava de considerar-se, no s em Itlia como fora

dela, o herdeiro dos Csares, partiu conquista do Sul. Caiu na espantosa loucura,

tantas vezes repetida na Idade Mdia, de escolher o Vero, para arrastar para essas terras

escaldantes um exrcito habituado a climas diferentes e, enfrentando, em 25 de Julho,

na costa oriental da Calbria, as [Pg 020] tropas maometanas, sofreu diante delas a

derrota mais humilhante. O perigo muulmano continuou a pairar sobre essas regies

at ao momento em que, durante o sculo XI, um punhado de aventureiros, vindos da

Normandia francesa, guerreou indistintamente Bizantinos e rabes. Ao unirem a Siclia

com o sul da pennsula, criaram finalmente um Estado forte que iria, no s fechar para

sempre o caminho aos invasores, mas tambm desempenhar, entre as civilizaes

latinas e o Islo, o papel de um brilhante intermedirio. Assim, em territrio italiano, a

luta contra os Sarracenos, iniciada no sculo IX, prolongara-se durante largo tempo.

Mas com oscilaes de pouca importncia, no que respeita conquista de territrio, de

uma e de outra partes. Especialmente para o catolicismo ela interessava apenas como a

terra extrema que era.

A outra linha de choque situava-se em Espanha. A, para o Islo, j no se tratava

de correrias ou de efmeras anexaes; ali viviam em grande nmero populaes de f

maometana e os Estados fundados pelos rabes tinham os seus centros nessa mesma

regio. Nos comeos do sculo X, os bandos sarracenos no haviam esquecido ainda

completamente o caminho dos Pirinus. Mas tais incurses distantes eram cada vez

mais raras. A reconquista crist, iniciada no extremo norte, apesar de muitos reveses e

humilhaes, progredia lentamente. Na Galiza e nos planaltos do nordeste que os emires

ou califas de Crdova, localizados demasiado longe, no sul, nunca tinham chegado a

dominar com mo muito firme, os pequenos reinos cristos, ora desmembrados, ora

reunidos sob o domnio de um nico prncipe, estendiam-se desde os meados do sculo

XI at regio do Douro; o Tejo foi alcanado em 1085. Junto dos Pirinus, ao invs, o

curso do Ebro, apesar de to prximo, continuou muulmano durante bastante tempo;

Saragoa apenas foi conquistada em 1118. Os combates, que alis no excluam de

modo algum relaes mais pacficas, no seu conjunto, somente conheciam curtas

trguas. Esses combates imprimiram nas sociedades espanholas uma marca original. No

que respeita Europa de alm desfiladeiros; apenas influram nela na medida em que-

especialmente a partir da segunda metade do sculo XI - forneceram sua cavalaria

ocasies brilhantes, frutuosas e piedosas aventuras, ao mesmo tempo que aos

camponeses deram a possibilidade de se estabelecerem em terras despovoadas aonde

eram atrados pelos reis ou pelos senhores espanhis. Mas, paralelamente s guerras

propriamente ditas, convm no esquecer as pilhagens e assaltos. Foi sobretudo desse

modo que os Sarracenos contriburam para a desordem geral do Ocidente.

Desde longa data que os rabes foram marinheiros. Dos seus redutos de frica,

de Espanha e sobretudo das Baleares, os seus [Pg 021] corsrios percorriam o

Mediterrneo Ocidental. No entanto, nessas guas que poucos navios demandavam, o

ofcio de pirata propriamente dito era pouco rendoso. No domnio do mar, os

Sarracenos, como os Escandinavos na mesma poca, viam sobretudo o meio de atingir o

litoral para a praticarem frutuosas incurses. Desde 842 que subiam o Rdano at perto

de Arles, e pilhavam as duas margens na sua passagem. A Camargue servia-lhes ento

de base normal. Mas em breve um acaso iria proporcionar-lhes, com um ponto de

partida mais seguro, a possibilidade de alargarem consideravelmente as suas pilhagens.

Em data que no podemos precisar, provavelmente cerca de 890, uma pequena

nau sarracena, vinda de Espanha, foi lanada pelos ventos contra a costa provenal,

prximo da povoao actual de Saint-Tropez. Os seus ocupantes ocultaram-se durante o

dia e, depois, quando caiu a noite, massacraram os habitantes de uma aldeia vizinha.

Montanhosa e arborizada - chamava-se ento terra dos freixos ou Freixedo (Freinet) 6

- esta parcela de terreno era favorvel defesa. Tal como o haviam feito, pela mesma

poca, na Campnia, os seus compatriotas do Monte Argento, os nossos homens

fortificaram-se num monte, no meio de espinhosos macios e chamaram a si outros

companheiros. Assim nasceu o mais perigoso dos covis de salteadores. Com excepo

de Frjus, que foi saqueada, no parece que as cidades, defendidas pelas suas muralhas,

tenham sofrido directamente dessa proximidade, mas no litoral, nas cercanias, os

campos foram abominavelmente devastados. Os salteadores de Freinet, alm do mais,

aprisionavam numerosos cativos que vendiam nos mercados espanhis.

Em breve estenderam as suas incurses para alm da costa. Pouco numerosos,

decerto, no parece que se tenham aventurado facilmente pelo vale do Rdano,

relativamente povoado e interceptado por cidadelas ou castelos. O macio dos Alpes,

pelo contrrio, permitia que pequenos grupos avanassem, de serra em serra ou de

silvado em silvado: com a condio, j se v, de serem bons trepadores. Ora, oriundos

da Espanha das Sierras ou do montanhoso Magreb, estes Sarracenos, no dizer de um'

monge de Saint-Gall, eram verdadeiras cabras. Por outro lado, os Alpes, apesar da

sua aparncia, no ofereciam um terreno para desprezar, no que respeita a incurses. Ali

se abrigavam frteis vales, sobre os quais era fcil cair de imprevisto, de cima dos

montes circundantes. Tal como Graisivaudan. Aqui e alm, elevavam-se algumas

abadias, presas apetecidas entre todas. Acima de Suse, o mosteiro de Novalaise, cuja

maioria dos religiosos fugira, foi pilhado e incendiado a partir de 906. Pelos vales

circulavam especialmente pequenos grupos de viajantes, mercadores ou romeiros que

6 o nome cuja lembrana conservada no nome actual da aldeia de La Garde-Freinet. Mas, situada

beira-mar, a cidadela dos Sarracenos no se situava em La Garde, que fica no interior.

iam rezar junto dos tmulos dos apstolos. Nada havia de [Pg 022] mais tentador do que

esper-los na passagem. Cerca de 920 ou 921, peregrinos anglo-saxes foram mortos

pedrada num desfiladeiro. Estes atentados repetiram-se da em diante. Os djichs rabes

no temiam aventurar-se espantosamente longe, para o Norte. Em 940, so assinalados

nas imediaes do alto vale do Reno e no Valais, onde incendiaram o ilustre mosteiro de

Saint-Maurice d'Agaune. Pela mesma poca, um dos seus bandos crivou de flechas os

monges de Saint-Gall, que faziam uma procisso pacificamente em redor da sua igreja.

Este bando, pelo menos, foi disperso pelo pequeno grupo que o abade reuniu

apressadamente; alguns prisioneiros, levados para o mosteiro, deixaram-se

heroicamente morrer de fome.

Policiar os Alpes ou os campos provenais ultrapassava as foras do Estado

daquele tempo. No havia outra soluo seno a de destruir o reduto, no Freinet. Mas a,

um novo obstculo se levantava: era quase impossvel cercar essa praa forte sem a

isolar do mar, por onde vinham os reforos. Mas nem os reis da regio - a oeste os reis

de Provena e de Borgonha, a leste, o de Itlia- nem os condes, dispunham de frotas. Os

nicos marinheiros experimentados, de entre os cristos, eram os Gregos, os quais,

alis, tal como os Sarracenos se aproveitavam disso para se fazerem corsrios. No fora

Marselha, em 848, pilhada por piratas da sua nacionalidade? De facto, por duas vezes,

em 931 e 942, a frota bizantina apareceu diante da costa de Freinet, chamada, pelo

menos em 942 e provavelmente j onze anos antes, pelo rei de Itlia, Hugo d'Arles, que

tinha grandes interesses na Provena. As duas tentativas no resultaram. De tal maneira

que, em 942, Hugo, virando a casaca ainda no decorrer da luta, planeou aliar-se aos

Sarracenos com vista, com a ajuda destes, a fechar a passagem dos Alpes aos reforos

pedidos por um dos seus competidores perante a coroa lombarda. Depois o rei da Frana

Oriental - hoje, diramos da Alemanha - Oto o Grande, em 951, fez-se rei dos

Lombardos. Trabalhava deste modo para edificar na Europa Central e at em Itlia, uma

potncia que ele desejava fosse, como a dos Carolngios, crist e geradora de paz.

Considerando-se o herdeiro de Carlos Magno, cuja coroa imperial viria a cingir em 962,

julgou ser sua misso fazer cessar o escndalo das pilhagens sarracenas. Tentou

primeiro a via diplomtica, procurando obter do califa de Crdova a ordem de mandar

evacuar Freinet. Depois, pensou em empreender ele prprio uma expedio, mas no

chegou a faz-lo.

Entretanto, em 972, os salteadores fizeram uma captura importante. No regresso

de Itlia, Maeul, abade de Cluny, na rota do Grand Saint-Bernard, no vale do Dranse,

caiu numa emboscada e foi levado para um desses esconderijos da montanha que os

Sarracenos utilizavam frequentemente, na impossibilidade de alcanarem [Pg 023] a sua

base de operaes em cada surtida. S foi libertado mediante a entrega de um pesado

resgate pago pelos monges. Ora Maeul, que havia reformado tantos mosteiros, era o

venerado amigo, o director espiritual e, se tal se pode dizer, o santo familiar de muitos

reis e bares. Nomeadamente do Duque de Provena, Guilherme. Este alcanou no

caminho de regresso o bando que havia cometido o sacrlego atentado e infligiu-lhe uma

dura derrota; depois, agrupando sob o seu comando vrios senhores do vale do Rdano,

pelos quais mais tarde seriam distribudas as terras recuperadas para o cultivo,

organizou um ataque contra a fortaleza do Freinet. A cidadela, desta vez, sucumbiu.

Para os Sarracenos, foi o fim das piratarias terrestres de grande envergadura.

Naturalmente, o litoral da Provena, como o da Itlia, continuava exposto aos seus

ataques. Ainda no sculo XI, vemos os monges de Lrins preocuparem-se activamente

com o resgate dos cristos que piratas rabes tinham raptado e levado para Espanha; em

1178, uma investida fez numerosos prisioneiros, perto de Marselha. Mas o cultivo dos

campos, na Provena costeira e subalpina, pde recomear e os caminhos dos Alpes

tornaram-se to seguros como o eram o das montanhas europeias. Tambm, no prprio

Mediterrneo, as cidades comerciais da Itlia, Pisa, Gnova e Amalfi, haviam passado

ofensiva, desde o comeo do sculo XI. Pela expulso dos Muulmanos da Sardenha,

perseguindo-os at aos portos do Magreb (a partir de 1015) e da Espanha (em 1092),

comearam a limpeza destas guas, cuja segurana, pelo menos relativa - o

Mediterrneo no conhecer de novo at ao sculo XIX- era to importante para o seu

comrcio.

III. A ofensiva hngara

Como pouco antes haviam feito os Hunos, os Hngaros ou Magiares tinham

surgido na Europa quase subitamente e j os escritores da Idade Mdia, que os

conheciam at demais, se admiravam ingenuamente de que os autores romanos no os

tivessem mencionado. A sua histria primitiva, alis, para ns mais obscura do que a

dos Hunos. De facto, as fontes chinesas que, muito antes da tradio ocidental, nos

permitem acompanhar a pista dos Hiung-Nou, so omissas a tal respeito. Certamente

que estes novos invasores pertenciam tambm ao mundo, to bem caracterizado, dos

nmadas da estepe asitica: povos muitas vezes de linguagens diferentes, mas

espantosamente semelhantes pelo gnero de vida que lhes era imposto por condies

comuns de habitat; pastores de cavalos e guerreiros, alimentados pelo leite das suas

montadas ou pelos produtos da caa e da pesca que exerciam; acima de tudo, inimigos

figadais dos lavradores das redondezas. [Pg 024]

Pelos seus traos fundamentais, o magiar entronca no tipo lingustico chamado

ugro-finlands ; os idiomas de que hoje mais se aproxima so os de alguns povoados da

Sibria. Mas, no decurso das suas deambulaes, o contedo tnico primitivo havia-se

fundido com numerosos elementos da lngua turca e sofrido a forte influncia das

civilizaes deste grupo7.

A partir de 833, vemos os Hngaros, cujo nome aparece ento pela primeira vez,

atormentar as populaes sedentrias - khanat khazar e colnias bizantinas - nas

cercanias do mar de Azov. Bem depressa ameaam constantemente cortar o caminho do

Dnieper, naquele tempo via comercial extremamente activa, por onde, de porto em

porto, de mercado em mercado, as peles do Norte, o mel e a cera das florestas russas, os

escravos comprados em vrios lugares, iam sendo trocados pelas mercadorias ou ouro

fornecidos por Constantinopla ou pela sia. Porm, novas hordas, sadas depois deles

detrs dos Urais, os Petchenegos, perseguem-nos sem trgua. O caminho do sul est-

lhes vedado, vitoriosamente, pelo Imprio Blgaro. Assim acossados e enquanto uma

das suas fraces preferiu embrenhar-se na estepe, mais longe, para leste, a maior parte

deles passaram os Crpatos, cerca de 896, para se espalharem pelas plancies do Tisza e

do Danbio Mdio. Estas vastas extenses, tantas vezes devastadas pelas invases,

desde o sculo IV, constituiam no mapa humano da Europa desse tempo uma enorme

mancha branca. Solides, escreveu o cronista Regino de Prm. No deve tomar-se a

expresso demasiado letra. As variadas populaes que outrora tinham tido ali

importantes centros, ou que apenas haviam passado por l, tinham provavelmente

deixado atrs de si alguns grupos retardatrios. Especialmente tribos eslavas bastante

numerosas tinham-se infiltrado naquelas paragens pouco a pouco. Mas o habitat

permanecia, sem dvida, muito escasso, do que prova a modificao quase completa

da nomenclatura geogrfica, incluindo a dos cursos de gua, depois da chegada dos

Magiares. Por outro lado, depois de Carlos Magno ter aniquilado o poderio Avaro,

nenhum Estado solidamente organizado fora capaz de oferecer uma resistncia sria aos

Grupo lingustico da Europa, de lngua no indo-europeia, ao qual pertencem os Hngaros, Finlandeses,

Lapes e Samoiedas. (N. da T.) 7 O prprio nome de Hngaro (Hongrois) , provavelmente turco. Tal como, talvez, pelo menos num dos

seus elementos, o de Magiar, que, alis, parece no se ter aplicado primitivamente seno a uma tribo.

invasores. S os chefes pertencentes ao povo dos Morvios tinham conseguido

recentemente constituir, no ngulo noroeste, um principado com certo poder e j

oficialmente cristo: a primeira tentativa, em suma, de um verdadeiro Estado puramente

eslavo. Os ataques hngaros destruiram-no, definitivamente, em 906.

A partir desse momento, a histria dos Hngaros toma um aspecto novo. J no

possvel chamar-lhes nmadas, no verdadeiro [Pg 025] sentido da palavra, pois

encontram-se estabelecidos nas plancies que hoje tm o seu nome. Dali, porm,

lanam-se em bandos sobre os pases vizinhos. No pretendem conquistar terras, o seu

nico fito a pilhagem, para regressarem em seguida, carregados com o produto do

saque, ao seu lugar permanente. A decadncia do imprio blgaro, aps a morte do czar

Simeo (927), abre-lhes o caminho da Trcia bizantina, que saqueiam por vrias vezes.

O Ocidente, especialmente, menos defendido, atraa-os.

Cedo haviam entrado em contacto com ele. Desde 862, antes mesmo de

transporem os Crpatos, uma das expedies tinha-os levado at aos limites da

Germnia. Mais tarde, alguns deles tinham sido contratados, como auxiliares, pelo rei

desse pas, Arnulfo, durante uma das suas lutas contra os Morvios. Em 899, as suas

hordas caem sobre a plancie do P; no ano seguinte, sobre a Baviera. Da em diante,

no se passa ano nenhum em que os anais dos mosteiros da Itlia, da Germnia e em

seguida tambm da Glia, no registem, ora numa provncia ora noutra, pilhagens dos

Hngaros. A Itlia do Norte, a Baviera e a Subia foram as que mais sofreram; toda a

regio na margem direita do Enns, onde os Carolngios tinham estabelecido postos de

fronteira e distribudo terras pelas suas abadias, teve que ser abandonada. Mas as

investidas depressa atingiram terras situadas para alm desses limites. A amplitude do

caminho percorrido poderia confundir a nossa imaginao se no tomssemos em linha

de conta que as longas caminhadas pastoris, a que os Hngaros outrora se haviam

sujeitado percorrendo espaos imensos e que continuavam a praticar no crculo mais

restrito da inculta plancie do Danbio, tinham sido para eles uma escola maravilhosa; o

nomadismo do pastor, j naquele tempo tambm pirata da estepe, tinha forjado o

nomadismo do bandido. Para noroeste, o Saxe, ou seja, o vasto territrio que se estendia

desde o Elba at ao Reno Mdio, foi atingido a partir de 906 e desde ento, saqueado

por vrias vezes. Na Itlia, so assinalados at Otranto. Em 917, pela floresta dos

Vosges e pelo desfiladeiro de Saales, insinuaram-se at s ricas abadias que se

agrupavam em redor do Meurthe. Da em diante a Lorena e a Glia do norte tornam-se

um dos seus terrenos familiares. Dali se aventuram at Borgonha e at mesmo ao sul

do Loire. Homens das plancies, no receiam por isso atravessar os Alpes sempre que

preciso. Foi pelos atalhos desses montes que, no regresso de Itlia, em 924 caram

sobre a regio de Nimes.

Nem sempre evitaram os combates contra foras organizadas; travaram alguns,

com resultados variveis. No entanto, geralmente, preferiam avanar furtivamente

atravs das terras: verdadeiros selvagens, que os chefes conduziam s batalhas

chicotada, mas soldados temveis e hbeis, quando era preciso combater, nos [Pg 026]

ataques de flanco, encarniados na perseguio e engenhosos para sarem de situaes

difceis. Se era preciso atravessar um rio ou um canal veneziano, apressadamente

fabricavam barcas de peles ou de madeira. Para descansarem, erguiam as suas tendas de

habitantes da estepe, ou entricheiravam-se dentro de alguma abadia abandonada pelos

monges, para, a partir dali, baterem as redondezas. Astuciosos como primitivos,

informados conforme as necessidades pelos embaixadores que enviavam frente,

menos para negociar do que para espiar, depressa tinham apreendido os meandros, assaz

pesados, da poltica ocidental. Mantinham-se ao corrente dos interregnos,

particularmente favorveis s suas incurses, e sabiam aproveitar-se das desavenas

entre os prncipes cristos para se porem ao servio de um ou de outro dos rivais.

Algumas vezes, segundo o uso comum aos bandidos de todos os tempos, faziam-

se pagar uma soma em dinheiro pelas populaes que prometiam poupar; por vezes

exigiam mesmo um tributo regular: a Baviera e o Saxe durante alguns anos tiveram que

sujeitar-se a esta humilhao. Mas estes processos de explorao apenas eram

praticveis nas provncias limtrofes da prpria Hungria. Mais longe, contentavam-se

com matar e pilhar, abominavelmente. Tal como os Sarracenos, no atacavam as

cidades fortificadas; quando se arriscavam a isso, geralmente fracassavam, como

acontecera a quando das suas primeiras incurses cerca do Dnieper, junto s muralhas

de Kiev. A nica cidade importante que tomaram foi Pavia. Eram temidos sobretudo nas

aldeias e nos mosteiros, frequentemente isolados nos campos ou situados nas

imediaes das cidades, fora das muralhas. Acima de tudo, parece, preferiam fazer

prisioneiros, escolhendo cuidadosamente os melhores, no reservando, por vezes, entre

uma populao passada a fio de espada, seno as mulheres novas e os rapazinhos: sem

dvida para as suas necessidades e prazeres e, principalmente, para vender. Quando

calhava, nem se importavam de colocar este gado humano nos prprios mercados do

Ocidente, onde os' compradores nem sempre eram escrupulosos; em 954, uma rapariga

nobre, capturada nas cercanias de Worms, fo i posta venda nesta cidade 8. Na maior

parte das vezes, arrastavam os infelizes at s regies do Danbio para os oferecerem

aos traficantes gregos.

IV. Fim das invases hngaras

Todavia, em 10 de Agosto de 955, o rei da Frana Oriental, Oto o Grande,

advertido de uma incurso sobre a Alemanha do Sul, combateu, nas margens do Lech,

um bando hngaro que ia de regresso. Venceu-os, depois de um sangrento combate e

tirou partido da perseguio. A expedio de pilhagem, castigada desse [Pg 027] modo,

seria a ltima. Da em diante, tudo se confinou, nos limites da Baviera, a uma guerra

fronteiria. De acordo com a tradio carolngia, Oto depressa reorganizou os

comandos da fronteira. Foram criadas duas zonas de proteco, uma nos Alpes, sobre o

rio Mur e outra, mais ao norte, sobre o Enns; esta ltima, depressa conhecida pelo nome

de comando de leste - Ostarrichi, que ns transformmos em ustria (Autriche) -,

atingiu desde o final do sculo, a floresta de Viena, e em meados do sculo XI, a Leitha

e a Morvia.

Por muito brilhante que tenha sido uma faanha isolada, como a batalha do Lech,

e apesar de toda a sua repercusso, no teria bastado evidentemente para acabar

definitivamente com as incurses. Os Hngaros, cujo territrio prprio no fora

atingido, estavam longe de ter sofrido a mesma derrota que outrora haviam suportado os

Avaros, s mos de Carlos Magno. A derrota de um dos seus bandos, dos quais vrios j

tinham sido vencidos, teria sido insuficiente para modificar o seu modo de vida. A

verdade que, aproximadamente desde 926, as suas incurses, mais impetuosas do que

nunca, iam-se espaando. Na Itlia, sem batalha, terminaram tambm depois de 954.

Para sudeste, a partir de 960, as incurses na Trcia reduzem-se a medocres assaltos de

bandoleiros. Decerto que um conjunto de causas profundas havia lentamente feito sentir

a sua aco.

Prolongamento de antigos hbitos, as longas caminhadas atravs do Ocidente

seriam ainda frutuosas e coroadas de xito? Pensando bem, podemos duvidar que o

fossem. As hordas cometiam terrveis barbaridades na sua passagem. Mas no lhes era

possvel carregar com todos os despojos. Os escravos, que certamente se deslocavam a

8 LANTBERTUS, Vita Herriberti, c. I. em SS, t. IV, p. 741.

p, afrouxavam os seus movimentos, alm disso, eram difceis de guardar. As fontes

mencionam muitas vezes fugitivos: tal como um cura da regio de Reims que, arrastado

at ao Berry; numa noite escapou aos seus raptores, escondeu-se num pntano durante

vrios dias e, finalmente, conseguiu chegar sua terra, cheio de aventuras para contar 9.

Os carros, nas deplorveis estradas daquele tempo e no meio de terras hostis, ofereciam

apenas, para o transporte dos objectos preciosos, um recurso mais incmodo e muito

menos seguro do que o eram para os Normandos as suas barcas, nos belos rios da

Europa. Os cavalos, nos campos devastados, nem sempre encontravam alimento; os

generais bizantinos sabiam bem que o grande obstculo contra o qual lutam os

Hngaros nas suas guerras o da falta de pastagens 10

. Durante o percurso tinham que

travar mais do que um combate; mesmo vitoriosos, os bandos regressavam dizimados

por tais guerrilhas. E tambm pelas doenas: ao terminar nos seus anais, redigidos

diariamente, a narrao do ano de 924, o clrigo Flodoardo, em Reims, inscrevia neles

jubilosamente a noticia h pouco recebida [Pg 028] de uma peste desintrica qual

haviam sucumbido na maioria, segundo se dizia, os saqueadores de Nmes. Alm do

mais, medida que os anos passavam, multiplicavam-se as cidades fortificadas e os

castelos, restringindo os espaos abertos, os nicos verdadeiramente propcios s

incurses. Finalmente, desde o ano 930, aproximadamente, o continente estava quase

liberto do pesadelo normando; reis e bares tinham da em diante as mos mais livres

para se voltarem contra os Hngaros e para organizarem mais metodicamente a

resistncia. Sob este ngulo, a obra decisiva de Oto foi a constituio de zonas de

proteco junto das fronteiras e no a proeza do Lechfeld. Muitos motivos, portanto,

deviam influir para desviar o povo magiar de um gnero de empresa que, sem dvida,

cada vez proporcionava menos riquezas e custava cada vez mais homens. Mas a sua

influncia apenas se exerceu to fortemente porque a prpria sociedade magiar sofria,

ao mesmo tempo, poderosas transformaes. Neste ponto, infelizmente, faltam-nos

quase por completo as fontes: Como tantas outras naes, os Hngaros s comearam a

ter anais depois da sua converso ao cristianismo e latinidade. Todavia, vislumbra-se

que a pouco e pouco a agricultura tomava o seu lugar a par da criao de gado:

metamorfose muito lenta, alis, e que durante muito tempo comportou formas de

habitat intermdias entre o verdadeiro nomadismo dos povos pastoris e o

sedentarismo absoluto das comunidades de puros lavradores. Em 1147, o bispo bvaro

9 FLODOARD, Annales, 937. 10 LON, Tactica, XVIII, 62.

Oto de Freising, que sendo cruzado descia o Danbio, pde observar os Hngaros. As

suas cabanas de canios, mais raramente de madeira, apenas serviam de abrigo durante

a estao fria; no Vero e no Outono eles vivem nas tendas. Trata-se da mesma

alternncia que um pouco mais cedo um gegrafo rabe notava nos Blgaros do Baixo-

Volga. Os aglomerados, pequenos eram mveis. Muito depois da cristianizao, entre

1012 e 1015, um snodo proibiu que as aldeias se afastassem da sua igreja. J haviam

partido para longe? Deviam pagar uma multa e regressar 11

. Apesar de tudo, perdia-se

o hbito das longas cavalgadas. Sem dvida, especialmente porque as preocupaes

com as colheitas se opunham dali em diante s grandes migraes de pilhagem, durante

o Vero. Estas modificaes no gnero de vida harmonizavam-se com profundas

mudanas polticas, favorecidas aquelas talvez pela absoro, na massa magiar, de

elementos estrangeiros - tribos eslavas de h muito quase sedentrias; cativos oriundos

das velhas civilizaes rurais do Ocidente.

Adivinhamos vagamente, entre os antigos Hngaros, acima das pequenas

sociedades consanguneas ou funcionando como tal, a existncia de grupos mais vastos,

alis sem grande fixidez: uma vez terminado o combate, escrevia o imperador Leo o

Sbio, vmo-los dispersarem-se para os seus cls () e para as suas [Pg 029] tribos

(). Era uma organizao assaz anloga, em suma, quela que ainda hoje nos

apresenta a Monglia. No entanto, desde a estadia do povo ao norte do Mar Negro, tinha

sido tentado um esforo, imagem do Estado khazar, para elevar acima de todos os

chefes das hordas um Grande Senhor ( esta a designao que usam, de comum

acordo, as fontes gregas e latinas). O eleito foi um certo Arpad. Desde ento, sem que

seja de modo algum possvel falar de um Estado unificado, a dinastia arpadiana julgou-

se evidentemente destinada hegemonia. Na segunda metade do sculo X, conseguiu,

no sem lutas, estabelecer o seu poderio sobre a nao inteira. Populaes estabilizadas

ou que, pelo menos, no migravam, a no ser no interior de um territrio de pequena

extenso, eram mais fceis de submeter do que nmadas votados a uma eterna

disperso. A obra consumou-se quando, em 1001 o prncipe descendente de Arpad,

Vaik, tomou o ttulo de rei 12

. Um agrupamento pouco coeso de hordas de salteadores e

vagabundos tinha-se transformado num Estado solidamente implantado sobre o seu

pedao de terra, maneira dos reinos ou dos principados do Ocidente. sua imagem,

11 K. SCHNEMANN, Die Entstehung des Stdtewe.sens in Sdost-europa, Breslau, s. d., p. 18-19. 12 Sobre as condies, bastante obscuras, da elevao da Hungria a reino, cf. P. E. SCHRAMM, Kaiser,

Rom und Renovatio, t. 1, 1929, p. 153 e s.

tambm, numa larga medida. Como se, por vezes, as lutas mais atrozes no tivessem

impedido um contacto de civilizaes, das quais a mais avanada tivesse exercido a sua

atraco sobre a mais primitiva.

A influncia das instituies polticas ocidentais tinha sido, alis, acompanhada de

uma penetrao mais profunda, que envolvia toda a mentalidade; quando Vaik se

proclamou rei, havia j recebido o baptismo, tomando o nome de Estevo, que a Igreja

lhe conservou, colocando-o no rol dos santos. Como todo o vasto no man's land

religioso da Europa Oriental, desde a Morvia at Bulgria e Rss ia, a Hungria pag

havia sido de incio disputada entre duas equipas de caadores de almas, cada uma das

quais representava um dos dois sistemas, desde ento distintos com bastante nitidez, que

partilhavam entre si a cristandade: o de Bizncio, o de Roma. Chefes hngaros tinham-

se baptizado em Constantinopla; mosteiros de rito grego subsistiram na Hungria at

bastante dentro do sculo XI. Mas as misses bizantinas, que partiam de muito longe,

tiveram que deixar lugar s suas rivais.

Preparada j nas casas reais, por casamentos que evidenciavam j um desejo de

aproximao, a obra de converso era activamente conduzida pelo clero bvaro. O bispo

Pilgrim, especialmente, que ocupou a s de Passau, de 971 a 991, fez o que pde.

Aspirava para a sua igreja, em relao aos Hngaros, o mesmo papel de metrpole das

misses, que em relao aos Eslavos pertencia a Magdeburgo, para alm do Elba e que

Bremen reivindicava sobre os povos escandinavos. Por infelicidade, comparada com

Magdeburgo e com Bremen, Passau no era mais do que um simples bispado,

sufragneo de Salzburgo. Que importa isso? Os bispos de Passau, [Pg 030] cuja diocese,

na realidade, tinha sido fundada no sculo VIII, consideravam-se sucessores daqueles

que, no tempo dos Romanos, tinham tido a sua sede na praa forte de Lorch, no

Danbio. Cedendo tentao a que sucumbiam, sua volta, tantos homens da sua

condio, Pilgrim mandou elaborar uma srie de falsas bulas, segundo as quais Lorch

era reconhecida como metrpole da Pannia. Faltava apenas reconstituir esta antiga

provncia; em redor de Passau que, quebrados todos os laos com Salzburgo, retomaria

a sua qualidade pretensamente antiga, viriam agrupar-se, como satlites, os novos

bispados de uma Pannia hngara. No entanto, nem os papas nem os imperadores se

deixaram persuadir.

Quanto aos prncipes magiares, se por um lado se sentiam prontos para o

baptismo, faziam questo de no dependerem de prelados alemes. Como missionrios,

mais tarde como bispos, chamavam de preferncia padres checos ou at venezianos; e,

quando, pelo ano mil, Estvo organizou a hierarquia eclesistica do seu Estado, de

acordo com o papa, f-lo sob a autoridade de um metropolita prprio. Depois da sua

morte, se as lutas pela sua sucesso deram, por algum tempo, algum prestgio a certos

chefes que se mantinham pagos, afinal no atingiram seriamente a sua obra. Cada vez

mais conquistado pelo cristianismo, possuindo um rei coroado e um arcebispo, o ltimo

povo oriundo da Ctia - como diz Oto de Freising - havia renunciado definitivamente

s gigantescas pilhagens de outrora para se confinar no horizonte doravante imutvel

dos seus campos e das suas pastagens. As guerras, com os soberanos da vizinha

Alemanha continuavam frequentes, mas dali para o futuro, eram os reis de duas naes

sedentrias que se defrontavam 13

. [Pg 031]

[Pg 032] Notas

13 A histria do mapa tnico na Europa extra-feudal no nos interessa aqui, directamente. Note-se, no

entanto, que o estabelecimento hngaro nas planicies do Danbio teve como consequncia o corte, em

dois, do bloco eslavo.

CAPITULO II

OOSS NNOORRMMAANNDDOOSS

I. Caractersticas gerais das invases escandinavas

Depois de Carlos Magno, todas as populaes de lngua germnica que habitavam

ao sul da Jutlndia, tornadas crists e incorporadas nos reinos francos, se encontravam

sob a influncia da civilizao ocidental. Mais longe, pelo contrrio, para o Norte,

viviam outros Germanos, os quais, com a sua independncia, tinham conservado as suas

tradies particulares. As suas linguagens, diferentes entre si, mas ainda mais diferentes

dos idiomas da Germnia propriamente dita, pertenciam a outro ramo daqueles que h

pouco se haviam destacado do tronco lingustico comum; damos-lhe hoje a designao

de escandinavo. A originalidade da sua cultura, em relao com a dos vizinhos mais

meridionais, manifestara-se definitivamente na sequncia das grandes migraes que,

nos sculos II e III da nossa era, tinham feito desaparecer muitos elementos de contacto

e de transio, quase esvaziando as terras germnicas de homens, ao longo do Bltico e

nas margens do esturio do Elba.

Estes habitantes do extremo Setentrio nem formavam um simples amontoado de

tribos nem uma nao nica. Distinguiam-se os Dinamarqueses, na Escnia, nas ilhas e,

um pouco mais tarde, na pennsula da Jutlndia; os Gtar, cuja memria hoje

conservada nas provncias suecas de Oester e de Vestergtland 14

; os Suecos, em redor

do lago Malar; finalmente vrios povos que, separados por vastas extenses de florestas,

de plancies semi-cobertas de neve e de gelo, mas ligados pelo mar familiar, ocupavam

os vales e as costas do pas que em breve se chamaria Noruega. Todavia, havia entre

estes grupos um ar de famlia muito acentuado e, sem dvida, de misturas demasiado

frequentes que aos vizinhos no podia deixar de sugerir a ideia de lhes aplicar um rtulo

comum. Como nada parecia mais caracterstico do estrangeiro, ser misterioso por

natureza, do que o ponto do horizonte donde ele parecia surgir, os Germanos [Pg 033]

14 As relaes destes Gtar escandinavos com os Godos, cujo papel foi to importante na histria das

invases germnicas, levantam um problema delicado e a respeito do qual est longe de fazer-se um

acordo entre os especialistas.

de aqum-Elba ganharam o hbito de lhes chamar simplesmente: homens do Norte,

Nordman. Coisa curiosa: esta palavra, apesar da sua forma extica, foi adoptada tal e

qual pelas populaes romanas da Glia: ou porque antes de aprenderem a conhecer

directamente a selvagem nao dos Normandos, a sua existncia lhes tenha sido

revelada por narraes vindas das provncias limtrofes; ou, mais provavelmente, porque

os homens comuns a tenham ouvido nomear aos seus chefes, funcionrios reais cuja

maioria, no princpio do sculo IX, sendo oriunda de famlias austrasianas, falava

geralmente o franco. De tal modo que o termo permaneceu estritamente continental. Os

Ingleses, ou faziam um esforo por distingui-los o melhor que podiam, entre os

diferentes povos, ou ento designavam-nos, colectivamente, pelo nome de um deles, o

de Dinamarqueses, com os quais se encontravam mais em contacto 15

.

Estes eram os pagos do Norte, cujas incurses, desencadeadas bruscamente

cerca do ano 800, durante perto de um sculo e meio, fariam gemer o Ocidente. Melhor

do que os vigias que, ento, no litoral, ao prescrutarem com os olhos o alto mar,

estremeciam ideia de descobrirem as proas dos barcos inimigos, ou do que os monges,

ocupados nos seus scriptoria com a anotao das pilhagens, podemos hoje restituir s

investidas normandas o seu pano de fundo histrico. Encarados numa justa

perspectiva, eles aparecem-nos apenas como um episdio de uma grame aventura

humana, particularmente sangrento, diga-se em boa verdade: estas amplas migraes

escandinavas que, pela mesma poca, da Ucrnia Gronelndia, estabeleceram tantos

novos laos comerciais e culturais. Mas a preocupao de mostrar de que modo, por

estas epopeias de camponeses e de mercadores, bem como de guerreiros, o horizonte da

civilizao europeia foi dilatado, ser objecto de um outro trabalho, dedicado s origens

da economia europeia. As pilhagens e as conquistas no Ocidente - cujos primeiros

passos sero alis descritos num outro volume desta coleco - interessam-nos aqui

apenas na sua qualidade de um dos fermentos da sociedade feudal.

Graas aos ritos funerrios, podemos reconstituir com exactido uma frota

normanda. Um navio, oculto sob um montculo de terra amontoada, era esse, de facto, o

tmulo preferido dos chefes. No nosso tempo, as pesquisas, sobretudo na Noruega,

trouxeram luz do dia vrios desses tmulos marinhos: embarcaes solenes, na

verdade, destinadas s calmas deslocaes, de fiord em fiord, mais do que s viagens

15 Os Normandos que as fontes de provenincia anglo-saxnica pem por vezes em cena so -

conforme o prprio uso dos textos escandinavos - os Noruegueses, em oposio aos Dinamarqueses

stricto sensu.

para terras distantes, capazes, no entanto, quando era preciso, de efectuarem longos

percursos, visto que um navio, exactamente copiado por um deles - o de Gokstad - pde,

no sculo XX, atravessar o Atlntico de lado a lado. As longas naves que espalharam

o terror no Ocidente eram de tipo sensivelmente diferente. No a tal ponto, todavia, que

a sua imagem no possa ser reconstituda com bastante facilidade por meio do

testemunho [Pg 034] das sepulturas, devidamente completado e corrigido pelos textos.

Eram barcas sem ponte, obras-primas de um povo de lenhadores, pela construo do seu

madeiramento e criaes de um grande povo de marinheiros pela correcta proporo das

suas linhas. Compridas, em geral com pouco mais de vinte metros, podiam mover-se a

remos ou vela e cada uma transportava, em mdia, de quarenta a sessenta homens,

sem dvida um pouco apertados. A sua velocidade, se a avaliarmos pelo modelo feito a

partir da descoberta da nave de Gokstad, atingia facilmente uma dezena de ns. Pouco

do casco entrava na gua: cerca de um metro, o que constitua uma grande vantagem

quando era preciso deixar o mar alto para se aventurarem nos esturios, por vezes

mesmo ao longo dos rios.

E isto porque, para os Normandos como para os Sarracenos, as guas no eram

mais do que uma via para as presas terrestres. Ainda que no desdenhassem, uma vez

por outra, os ensinamentos de cristos desertores, possuam uma espcie de cincia inata

dos rios, familiarizando-se to rapidamente com a complexidade das suas vias que, em

830, alguns deles haviam podido servir de guias ao arceb ispo Ebbon, a partir de Reims,

na fuga daquele ao seu imperador. Diante das proas dos seus barcos, a rede ramificada

dos afluentes abria a multiplicidade dos seus desvios, propcios s surpresas. No

Escalda, so assinalados at Cambrai; no Yonne, at Sens; no Eure, at Chartres; no

Loire, at Fleury, muito a montante de Orlans. Na prpria Gr-Bretanha, onde os

cursos de gua, alm da linha das mars, so muito menos propcios navegao, o

Ouse levou-os, apesar disso, at York, o Tamisa e um dos seus afluentes, at Reading.

Se as velas ou os remos no eram suficientes, recorriam sirga. Muitas vezes, para no

carregarem demasiado as naves, um destacamento seguia por via terrestre. Era preciso

alcanar as margens, em fundos muito baixos? Ou, para proceder a uma pilhagem,

utilizar um ribeiro de guas pouco profundas? As canoas saam dos barcos. Pelo

contrrio, era necessrio contornar o obstculo de fortificaes que obstruam a corrente

da gua? Improvisavam um transporte por terra, para o barco; assim fizeram em 888 e

em 890, para evitarem a passagem por Paris. L longe, no leste, nas plancies russas, os

mercadores escandinavos no tinham adquirido uma longa prtica destas alternncias

entre a navegao e o transporte dos navios, de um rio para outro, ou ao longo das

quedas de gua?

Do mesmo modo, estes marinheiros admirveis no receavam a terra, os seus

caminhos e os seus combates. No hesitavam em deixar os rios para se lanarem caa

de presas, quando era preciso: tal como aqueles que, em 870, atravs da floresta de

Orlans, seguiram a pista dos monges de Fleury, fugidos da sua abadia beira do Loire,

seguindo os trilhos deixados pelos carros. Cada vez mais se foram habituando a utilizar

cavalos, mais para as deslocaes do que para os combates, a maio r parte dos quais,

naturalmente, roubados [Pg 035] na prpria regio, ao sabor das pilhagens que faziam.

Foi assim que, em 866, fizeram um grande roubo de cavalos em Anglia de leste. Por

vezes transportavam os cavalos de um terreno pilhado para outro onde iam actuar; em

885, por exemplo, de Frana para Inglaterra16

. Deste modo, podiam afastar-se cada vez

mais dos rios; no foram os Normandos assinalados, em 864, abandonando os navios no

rio Charente e aventurando-se at Clermont d'Auvergne, que tomaram? Por outro lado,

deslocando-se mais depressa, surpreendiam mais facilmente os seus adversrios. Eram

extremamente hbeis em levantar entrincheiramentos e em defenderem-se neles. Sabiam

tambm atacar praas fortes, sendo nisso superiores aos cavaleiros hngaros. Em 888, j

era longa a lista das cidades que, apesar das suas muralhas, haviam sucumbido ao

assalto dos Normandos: tais como Colnia, Ruo, Nantes, Orlees, Bordus, Londres,

York, para citar apenas as mais ilustres. Em boa verdade, alm do factor surpresa ter por

vezes desempenhado o seu papel, como aconteceu com Nantes, assaltada num dia de

festa, as velhas muralhas romanas estavam longe de se manterem bem conservadas e

mais longe ainda de serem sempre defendidas com muita coragem. Quando em 888, em

Paris, um punhado de homens enrgicos soube reparar as fortificaes da Cit e

revestir-se de ardor para o combate, a cidade, que em 845, quase abandonada pelos

habitantes, havia sido saqueada e provavelmente, por mais duas vezes, tinha depois

sofrido o mesmo ultraje, dessa vez resistiu vitoriosamente.

As pilhagens eram frutuosas. O terror que antecipadamente elas inspiravam no o

era menos. Colectividades que viam os poderes pblicos incapazes de as defenderem -

tais como, desde 810, certos grupos frsios - e mosteiros isolados tinham sido os

primeiros a pagar um tributo. Depois, os prprios soberanos se habituaram a tal prtica:

por dinheiro, obtinham dos bandos a promessa de susterem as suas pilhagens, pelo

16 ASSER, Life of King Alfred, ed. W. H. Stevenson, 1904, c. 66.

menos provisoriamente, ou de se voltarem para outras vtimas. Na Frana Ocidental,

Carlos o Calvo dera esse exemplo, desde 845. 0 rei da Lorena, Lotrio II, imitou-o em

864. Na Frana Oriental, foi a vez de Carlos o Gordo, em 882. Entre os Anglo-Saxes, o

rei de Mrcia fez o mesmo, talvez desde 862; o rei d e Wessex, temos a certeza de o ter

feito em 872. Pela sua prpria natureza, tais resgates serviam de isca sempre renovada,

e, deste modo, repetiam-se indefinidamente. Como era aos seus sbditos e, antes do

mais, s suas igrejas que os prncipes deviam exigir as somas necessrias, estabeleceu-

se finalmente um escoamento das economias ocidentais para as economias

escandinavas. Ainda hoje, entre tantas memrias dessas pocas hericas, os museus do

Norte conservam nos seus expositores surpreendentes quantidades de ouro e de prata:

contributos do comrcio, decerto, em larga medida, mas tambm e em grande escala,

como dizia o padre alemo Adam de Bremen, frutos das pilhagens. Alis curioso

que, roubados ou [Pg 036] recebidos como resgate, sob a forma de moedas ou de jias

ao gosto do Ocidente, esses metais preciosos tenham sido geralmente refundidos para

fazer novas jias de acordo com as preferncias dos seus detentores: o que constitui uma

prova de que estamos em presena de uma civilizao especialmente segura das suas

tradies.

Os prisioneiros eram tambm roubados e, a menos que fossem resgatados, levados

para alm-mar. Pouco depois de 860, so assim vendidos, na Irlanda, prisioneiros

negros que haviam sido trazidos de Marrocos 17

. Acrescentemos finalmente ao retrato

destes guerreiros do Norte os fortes e brutais apetites sensuais, o prazer do sangue e da

destruio e, por vezes, mpetos terrveis, um pouco loucos, em que a violncia no

tinha limites: tal como a famosa orgia durante a qual, em 1012, o arcebispo de

Canterbury, at ali cuidadosamente poupado para ser por ele obtido um resgate, foi

lapidado com os ossos dos animais consumidos no banquete. Diz-nos uma saga que um

Islands, que tinha feito campanhas no Ocidente, tinha a alcunha de homem das

crianas porque se recusava a empal-las na ponta das lanas como era hbito entre

os seus companheiros 18

. Isto suficiente para fazer compreender o terror que estes

invasores espalhavam sua volta.

17 SHETELIG, Les origines des invasions des Normands (Bergens Museums Arbog, Historisk-antik

varisk rekke, nr. 1), p. 10. 18 Landnamabk, c. 303, 334, 344, 379.

II. Da incurso possesso

No entanto, desde o tempo em que os Normandos saquearam o primeiro mosteiro,

em 793, na costa de Nortmbria e, durante o ano de 800, foraram Carlos Magno a

organizar pressa, na Mancha, a defesa do litoral franco, as suas empresas, pouco a

pouco, haviam mudado de caractersticas, bem como de envergadura. Ao princpio,

tinham sido assaltos espaados, quando fazia bom tempo, ao longo das margens

setentrionais - Ilhas Britnicas, terras baixas marginais da grande plancie do Norte,

falsias da Nustria - organizados por pequenos grupos de Vikings. A etimologia da

palavra contestada 19

, mas designa sem dvida um aventureiro em busca de lucros e de

guerras; nem to pouco se duvida de que os grupos assim formados, fora dos laos da

famlia ou do povoado, se tenham geralmente constituido com vista prpria aventura,

Apenas os reis da Dinamarca, colocados frente de um Estado pelo menor

rudimentarmente organizado, tentavam j, nas fronteiras do sul, fazer verdadeiras

conquistas, sem multo sucesso, alis.

Depois, muito rapidamente, o raio de aco alastrou, As naves aventuraram-se at

ao Atlntico e mais longe ainda, em direco ao Sul. Desde 844, alguns portos da

Espanha Ocidental tinham recebido a visita dos piratas. Em 839 e 860, foi a vez do

Mediterrneo. As Baleares, Pisa, o Banco-Rdano, foram atingidos. O vale do Arno,

subido at Fiesole, Esta incurso mediterrnica, alis, estava [Pg 037] destinada a

permanecer isolada, no porque a distncia fosse de amedrontar aqueles que haviam

descoberto a Islndia e a Gronelndia. No iria ass istir-se, por um movimento inverso,

no sculo XVII, ao aparecimento dos Brbaros ao largo de Saintonge, e mesmo at nos

bancos da Terra-Nova? Mas sem dvida que as frotas rabes eram excelentes guardas

dos mares.

Inversamente, as invases incidiram cada vez mais longe no interior do continente

e da Gr-Bretanha. No existe grfico mais eloquente do que a transcrio, num mapa,

das peregrinaes dos monges de Saint-Philibert, com as suas relquias. A abadia tinha

sido fundada no sculo VII, na ilha de Noirmo utier: estncia adequada para cenobitas,

19 Foram propostas, principalmente, duas interpretaes. Alguns estudiosos dizem que a palavra provm

do escandinavo vik, baa; outros, vem nela um derivado do germnico comum wik, que designa uma

povoao ou um mercado. (Cf. o baixo-alemo Weichbild, direito urbano, e um grande nmero de nomes de lugares, tais como Norwich, na Inglaterra, ou Brunswick Braunschweig na Alemanha). No

primeiro caso, o Viking teria recebido o nome das baas onde se emboscava; no segundo, dos burgos que umas vezes frequentava, como pacfico comerciante, outras pilhava. Nenhum argumento

absolutamente decisivo pde, at data, ser fornecido,