Difíceis Ganhos Fáceis - Vera Malaguiti

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I' XEROY  V A L e R 0 2 " J . , . f ? t 2 , PASTA  I -- , PROF". , MATÉRIA  29W411~ ORIGINA!. Coleção Pensamento Criminológico VeraMalaguti Batis ta I DIFÍCEIS GANHOS FÁCEIS Droga s e Juventude Pobre no Rio de Janeiro 2' edição g  In st it ut o ' Carioca de Criminologia Ed itora Re van 2003 , . . (

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I'

XEROY   V A L e R 0 2 " J . , . f ? t 2, PASTA   I

--, PROF". ,MATÉRIA   29W411~

ORIGINA!.

Coleção Pensamento Criminológico

VeraMalaguti BatistaI

DIFÍCEIS GANHOS FÁCEISDrogas e Juventude Pobre

no Rio de Janeiro

2' edição

g  Instituto '

Carioca deCriminologia

Editora Revan

2003

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 m1£Pensamento

Criminológico

Direção

Prof. Dr. Nilo Batista

@2003 Instituto Carioca de Criminologia

Rua Aprazível, 85 - Santa, Tereza

Rio de Janeiro/RJ CEP: 20241-270

Tel: (21 )2221 1663 fax (21)2224 3265

[email protected] 

Edição

Editora Revan

 Av. Paulo de Frontin, 163

20260-010 Rio de Janeiro   R Jtel: (21) 2502 7495 fax: (21) 2273 6873

editora@ revan .com.b r /   www.revan.com.br 

Projeto gráfico

Luiz Fernando Gerhardt

Revisão

Sylvia Moretzsohn

Diagramação

lido Nascimento

Batista, Vera M alaguti .

Difíceis ganhos fáceis - drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro I

Vera M alaguti Bat i s ta . - R i o de J anei ro: R evan, 2003

t52p.

ISBN 85-7106-291-9

1. D ire i to penal .

Para Nilo, com todo   o   amOHJW! houver nessa vida

Para Lucas e Paulo, os meus meninos

Para Carlos Bruce, Maria Clara e João Paulo

os meninos do Nilo '  

Para todos os meninos do Rio

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Sumário

 Nota introdutória   à segunda edição ..... 11

Prefácio ..... 15

CapítuloI

Introdução ..... 35

CapítuloTI

Criminologia e História ..... 43

A função oculta do sistema penal ..... 43

As ilegalidades populares ..... 48

Criminologia crítica ..... 51

Cidadania negativa ..... 57

Aventura metodológica ..... 61

Capítuloill

Criminalização da juventude pobre no Rio de ~jin~iro:

aspectos do processo histórico republicano ..... 65

 Novos excluídos na ordem republicana ..... 65

Orientação correcional- os tempos do SAM ..... 71 .

1964 - Funabem, menoristas e Segurança Nacional ..... 78

Capítulo IVDrogas e criminalização da juventude pobre

no Rio de Janeiro ..... 81

O mito da droga ..... 81

1968 - 1988: o recrutamento da juventude pobre ..... 85

8

Atitude suspeita   101

O olhar seletivo 116

Capítulo V

Conclusões ..... 133

Anexos ..... 136

QuadrosIA - Adolescentes envolvidos com drogas (I) 136

IB - Adolescentes envolvidos com drogas (2) 137

II - Adolescentes envolvidos em atos infracionais ..... 138,

GráficosAdolescentes envolvidos em atos infracionais

Tráfico e consumo de drogas ..... 139

Tipos de infração ..... 140

Etnia (1) 141

Etnia (2) 142

Faixa etária 143 ~

Escolaridade 144

Trabalho ..... 145

Sexo ..... 146

Fontes ..... 147

Bibliografia ..... 147

9

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-1'TOtaintrodutória à segunda edição

Uma reflexão para a segunda edição deste livro deveria trazer 

elementos novos   à   discussão do tema   drogas.   O mais assustador, tra-

tando-se de assunto tão letal, é que não   há nada de novo no jront l.   A

inesquecível Rosa deI Olmo dizia que havia uma mistura de informa-

ção, desinformação e até contra-informação produzindo uma saturação

funcional   à   ocultação de seus problemas.

Tenho afirmado com Loi"cWacquant que, na periferia do neoli- beralismo a destruição das precárias estruturas previdenciárias têm

dado lugar a um incremento gigantesco de um Estado penal2

•   As pri-

sões superlotadas e o aumento exponencial das populações carcerárias

só atestam o poder infinito do mercado e o papel que a política crimi-

nal de drogas, capitaneada pelos Estados Unidos, desempenha no pro-

cesso de criminalização global dos pobres.A mediação psicofarmacológica, bem como as drogas ilegais, é

que confortam esse novo sujeito pós-moderno. A necessidade dissemi-

nada, paralela à criminalização, inscreve a produção e distribuição das

drogas no circuito do comércio e das finanças internacionais. "Enfim,

as drogas se deslocaram do campo regulado pela economia dos signos

 para o campo da economia política"3.A uma economia política das drogas corresponde uma geopolí-

tica das drogas. Para Rosa del Olmo, tratar desse tema tão mitificado

significa também analisar as relações de poder no sistema mundial. O

 processo de globalização repercute também no circuito ilegal das iner-

cadorias; a condição de ilegalidade de algumas drogas tem implicações

econômicas, políticas, sociais e mor.ai.L0s Estados Unidos têm sido o

eixo céntral da atual política de drogas no continente e suas marcas de

fracasso: multiplicação das áreas de cultivo, organização do tráfico,

comlpção de autoridades, crescimento da adição e incremento da cri-

minalidade. Por outro lado, a América Latina tem sido fonte produto-

ra de maconha, cocaína e até de heroína para forte consumo nos Esta-

dos Unidos e na Europa. A crise econômica é uma constante geopolíti-

I Título de artigo escrito   com   Alexandre Moura Dumans para n revista   Ci2ncia Hoje.   Soei .

. edade Brasileira   pa~  o Progresso da Ciência, Rio de Janeiro.   vo l .  31, n" 18/abril de 2002,   p.

36.2   Lo"ic Wacquant.   Punir os pobres: a nova gestão da mishia nos Estados Unidos.   R i o d e

l imeira. Freitas Bastos/Inst ituto Carioca de  Criminologia/200l.3'Jael Birman.   Mal-estar na atualidade.   Rio de Janeiro. Civi l ização Brasi leira. 1999.

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ca nesse quadro, com queda de preços de matérias-primas, e com as

multidões de camponeses empobrecidos e desempregados urbanos4 As

novas políticas de ajuste econõmico favorecem a expansão dessa

 produção voltada para o comércio globalizado. Podemos observar: a

cada novo "ajuste" corresponde uma nova onda de criminalização e

encarceramento.

Paralelamente a este processo econômico, os governos dos Esta-

dos Unidos, a partir dos anos 80, utilizam o   combate às drogas  comoeixo central da política americana no continente. Passam a difundir 

termos como "narcoguerrilha" e "narcoterrorismo", numa clara simbi-

ose dos seus "inimigos externos". As drogas passam a ser o eixo das

 políticas de segurança nacional nos países atrelados a Washington, ao

mesmo tempo em que o capital financeiro e a nova divisão internacio-

nal do trabalho os obriga a serem os produtores da valiosa mercadoria.

Os países andinos se transformam em campo de batalha e nossas cida-

des se transformam em mercados brutalizados para o varejo residual

das drogas ilícitas.

 Nilo Batista define esta política criminal de drogas no Brasil

como "política criminal com derramamento de sangue"5. Ele descreve

a transição do modelo sanitário desde   1914   até o modelo bélico implan-tado em   1964,   na conjuntura da guerra fria, da doutrina de segurança

nacional, com a exploração da figura do inimigo interno, e com a droga

como metáfora diabólica contra a civilização cristã. A guerra contra as

drogas introduz um elemento religioso e moral. Não há nada mais

 parecido com a inquisição medieval do que a atual "'guerra santa"

contra as drogas, com a figura do "traficante-herege que pretende

apossar-se da alma de nossas crianças"6. Essa   cruzada   exige uma

ação sem limites, sem restrições, sem padrões regulativos. A droga se

converte no grande eixo (moral, religioso, político e ~tnico) da recons-

trução do inimigo interno, ao mesmo tempo em que produz verbas para

o capitalismo industrial de guerra. Este modelo bélico produ~ marcas no

 poder jurídico, produz a banalização da morte. Os mortos desta guerratêm uma extração social comum: são jovens, negro1/índios e são po'

,

4   Cf. Rosa dei Olmo, "Geopolítica de las drogas", in revista   Análisis,   Medellín, Colômbia,

 junho, 1998.

5   Nilo Batista. "Política criminal com derramamento de   san~ue",  in   Revista Brasileira de

Ciências Criminais,   n°  20,   São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

6   Nilo Batista.   Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro.   Coleção Pensamento Crimi-

nológico, n° 5. Freitas Bastos/Instituto Carioca de! Criminologia. Rio de Janeiro, 2000.

12

 bres. Saio de Carvalho criticou historicamente a legislação penal de

drogas no Brasil com se~s dispositivos va~~s e indeterminados e o u.so

abusivo de normas penaIs em branco, que acabaram por legJl1mar SIS-

temas de total violação das garantias individuais"?O fato é que esta política criminal bélica, pródiga em fracassos,

se aprofunda na proporção inversa ao insucesso. Numa espé~ie de ~ela-

ção sado-masoquista, quanto mais apanhamos da nossa pohtlca cnml-

nal, mais nos apegamos a ela. As nOVIdades que s~rgem aponta,!, para

os redutos eleitorais de classe média e alta. Os projetos de descnmma-

lização dos usuários, que prevêem penas maiores .par~ os !raficantes,deixam ainda mais expostos   à   demonização e cnnunahzaçao as pnncI-

 pais vítimas dos efeitos perversos do controle social globalizado: a ju-

ventude pobre de nossas cidades.Uma das  novidades   é o projeto dos Tribunais de Drogas "sob o

 patrocínio do Consulado America@", como consta no o_fíciode II de

 junho de 2001 da Associação NaCIOnal de Jus.tIça Terap:utlca. O f~tor 

crucial é que o programa atua no âmbIto do ~nmm~1 ~ nao_descnmma-

lizando. Enfim, como tenho dito, a nossa pohtlca cnnunal e um tIgre de

 papel: sua fraqueza provém de sua força. S~a forma e seu discurso de

cruzada   moral e bélico, tem realizado mUltas baIxas, mas nada temfeito co~tra o demônio que  finge combater:   a dependência química.

Esta só pode ser tratada com um olhar radicalmente diferente e que

rompe com a esquizofrenia de uma sociedade que p:eclsa se ~r.ogar 

intensamente, mas que precisa demonizar e vulnerabIhzar as VItImaS

desse modelo perverso: dependentes químicos de substâncias ilegais,

 jovens e negros pobres das favelas do Brasil, camponeses colombianos

ou imigrantes indesejáveis no hemi~ norte. . No mais, o que sinto são muitas saudades de Rosa deI Olmo e

Alessandro Baratta.

Vera Malaguti Batista

Rio de Janeiro, 19 de maio de 2003

7   Saio de Carvalho. A   política criminal de drogCl$no Brasil.   Rio de Janeiro, Luam, 1996.   p.  10

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I

Prefácio

o   livro que tenho a honra de apresentar analisa o funciona-

mento do sistema da justiça criminal através do método histórico-sociológico.   É uma coincidência que simultaneamente seja publica-do na Alemanha um livro que faz a mesma coisa. Os dois livros são.

muito semelhantes e muito diversos. O contexto e o objeto daanálise são diferentes: o microscópio de Vera Malaguti apontou

 para um fragmento da "periferia" latino-americana,   e  seu livro rela-ta vinte anos de eriminalização - de 1968 a 1988 - sofrida por ado'

,

lescentes moradores de favelas e bairros pobres do Rio de Janeiro.O contexto histórico de sua narração - os poucos mais de cem anos

de história republicana no Brasil - é mais breve do que o da autoraalemã. Como resultado, temos ressaltada uma imagem extraordina-

riamente complexa de um objeto tão elementar. De maneira oposta,a autora alemã narra um acontecimento que começa com o início daépoca moderna e se estende a toda a comunidade dos países "cen-

trais", da Europa aos Estados Unidos; a clientela do sistema são os

adulto~ pobres, o seu campo de abstração teórico é macroscópico.O resultado foi botar no foco uma imagem extraordinariamente ele-

mentar daquela complexidade.Sob perspectivas diversas, as duas autoras ilustram, de modo

convincente', a mesma tese: ao contrário de sua função declarada,

isto é, diferentemente de sua ideologia oficiál, o sistema de justiça

criminal da sociedade capitalista serve para disciplinar despossuí-dos, para constrangê-los a aceitar ~oral do trabalho" que lhes éimposta pela posição subalterna na divisão de trabalho e na distri-

 buição da riqueza socialmente produzida. Por isso, o sistema crimi-nal se direciona constantemente às camadas mais frágeis e vulnerá-veis da população: para mantê-Ia - o mais dócil possível - nos gue-

tos da marginalidade social ou para contribuir para a sua destruiçãoffsica. Assirri fazendo, o sistema sinaliza uma advertência para to-

,

dos os que estão nos confins da exclusão social.Ambas as autoras demonstram que, passados dois séculos da

 proclamação do direito penal do fato - isto é, de um direito iguali-tário para todos os infratores -, o sistema de justiça criminal conti-

nua a funcionar como um direito penal do tipo de autor; e que o

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estereótipo do criminoso - que guia a ação da polícia, dos promoto-res, dos juízes e domina a opinião pública e os meios de informa-ção de massa - corresponde às características dos grupos sociais

entre os quais o sistema seleciona e recruta seus clientes reais entretodos os potenciais, isto é, entre os vários infratores distribuídos

 por todas as camadas da população. Isto, segundo as autoras, signi-ficaria dizer que o problema que move a ação do sistema não é pro-

 priamente a realização do delito descrito pelas leis ou a defesa dos bens jurídicos, mas o contr ole ou a destruição dos grupos mais po- bres da população, aqueles percebidos e definidos como "classes perigosas". Gerlinda Smauss demonstra que não são punidos aque-les que roubam somente porque roubam, mas porque roubam quan-do deveriam trabalhar, porque deveriam aceitar viver com um salá-rio mínimo e precário (enquanto não são punidos aqueles que rou-

 bam mas não estão em posição subalterna no sistema produtivo). EVera Malaguti conclui sua análise sobre o processo de criminaliza-ção por drogas dos adolescentes pobres no Rio de Janeiro obser-vando que "o problema do sistema não é a droga em si, mas o con-trole específico daquela parte da juventude considerada perigosa".

Esta observação nos permite entender melhor um aspecto re-corrente no livro de Vera: a relatividade das distâncias entre os in-

tervalos temporais que a autora percorre e a homogeneidade dofe-nômeno estudado (a criminalização de adolescentes pobres do Rio,do início da república até nossos dias) apesar das mudanças que sederam em sua evolução. Isto vale tanto para o que diz respeito àdiferenciação dentro da fase mais específica da pesquisa (a crimina-lização por drogas entre 1968 e 1988), quanto para o que diz res-

 peito à relação entre esta fase e as que a precederam. Em ambos os

casos, a autora, pelas diferenças, mostra a unidade, ou melhor, pode-se afirmar que Vera Malaguti se serve das diferenças paramostrar a unidade: "meu objeto de pesquisa era o processo de cri-

minalização dos adolescentes como um todo".Através dos quatro períodos em que se articula a amostragem

dos processos ligados à droga na  2'  Vara de Menores da cidade doRio, pode-se perceber muito claramente a transformação qualitativado fenômeno do consumo e do tráfico de drogas proibidas: Ocres.,cimento percentual das infrações por droga, do consumo de cbcaínaem relação a outras substâncias, da estruturação' e da "profissiona-

16

lização" do comércio, as mudanças na legislação e o aumento da

violência interna ao mercado, e da violência policial. No entanto, o

 ponto lIIais interessante de seu estudo é a percepção de que exis.te~duas características constantes neste processo específico de cnml-nalização: a designação do papel de consumidor para o jovem daclasse média e de traficante para o jovem das favelas e bairros po-

 bres do Rio; a seletividade da justiça juvenil. "Nos processos escO-lhidos ao acaso, entre1968 e 1988, só jovens pobres e não-brancosforam indiciados por porte de pequena quantidade de droga paraconsumo próprio". E não é certamente por acaso que adolescentes

da classe média apareçam em apenas 11%   dos processos.A análise das sentenças revela, com impressionante clareza,

os mecanismos ideológicos que integram a seleção dos casos queentram no sistema. Entre as variáveis examinadas, o estado deabandono, a etnia ou a classe social são, junto à reincidência,determinantes pari! a internação dos jovens que portavam pequenasquantidades de droga. Ainda nesta análise, a liberdade assistida e

os serviços psicoterapêuticos paralelos à internação parecem des-tinados, sobretudo, à recuperação dos jovens negros, mulatos e

 pobres. Para os jovens da classe média, evitam-se estas medidas,substituindo-as pelo reenvio à família e pelo acompanhamento mé-dico ou em clínicas particulares.

Através das sentenças apresentadas, torna-se evidente queos juízes e os operadores do sistema (psicólogos, psiquiatras, assis-tentes sociais) interiorizaram a convicção de que aquelas medidassão normais e necessárias para o pri,meiro grupo de jovens, mas im-

 próprias para o segundo. Conscientemente ou não, polícia, juízes eoperadores agem, no campo das drogas proibidas, de modo total-

mente coerente com a função não declarada que, na reconstruçãohistórica de Vera Malaguti, parece dominante na justiça juvenil, doinício do século até 1988: criminalizar crianças e adolescentes po-

 bres, definir o apartheid de uma população jovem já excluída soci-almente, pô-Ia em guetos ou destruí-Ia, impor aos sobreviventes a

resignação a um emprego subalterno e precário, com um salário desubsistência. Um dos importantes resultados deste livro, está na

demonstração da continuidade da teoria e dos estereótipos com osquais o sistema (e também a mídia e a opinião pública - que são oambiente deste sistema), durante todo o tempo, exercitou o verda-

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deiro "olhar seletivo", dirigido exclusivamente às crianças não-

 brancas e pobres.Este resultado se apóia na análise de documentos efetuada

nos arquivos do Departamento de Ordem P?lítica e Social,. no Ar-quivo Público do Estado do Rio de Janeiro e nos arquIvos da

Funabem, durante um período que começa em 1907 e cobre os .ca-sos da 2' Vara de Menores da cidade do Rio. 9ue a.droga seja. a

ocasião de intervenção do sistema, que a ocaSlaO seja fo:mda, asvezes, como nas décadas anteriores, por outras lllfr.açoes, t.alscomo, principalmente, pequenos furtos, ou pela pura .e simples SitU-ação de abandono que leva o jovem ao sistema, nao obstante astransformações legislativas e institucionais que se s~gU1ram~o SIS-tema permanece substancialmente o mesmo: cnmllla!Jzaçao dascrianças e adolescentes pobres pela única razão de serem pobres e

de se encontrarem em "situação irregular". • . .É a estes jovens, e não aos jovens da classe media e das.e1J:

tes, que se dirigem as leis, os tribunais e as instituições me~ons; ea estes jovens que se aplica a expressão "menor': ..A de!pelto dasdefinições institucionais do que seriam casos de ' s!tuaçoes megu-

lares", de risco ou de abandono, os comportamentos lllfrato~es ou problemáticos não são, de maneira ~lguma, a variável determlllante

 para que a justiça do menor seja aClOn~~a.Fazend~ um balanço d~ jurisprudência do Juizado de Menores ja nos pn~el:os ano~ de suafundação - que se deu em 1923 -, Vera observa: é ImpressIOnante

como a grande maioria dos casos se r.efer.ea.cria.nças PO?reS; ~selites resolvem seus casos em outras lllstanclas, lllformals e nao

segregadoras". . .É impressionante, durante os oitenta anos de hlstóna percor-

ridos pela autora, a continuidade de todos os principais componen-tes ideológicos do "olhar seletivo" da justiça do menor. Se umaevolução parece existir, esta consiste, por um lado, na progresslya

confirmação e consolidação destes componentes, e por outro, nainstitucionalização dos efeitos desumanizantes, repressivos e se.gre-gadores do sistema, independentemente das transformações legisla-tivas e das mudanças gerais das condições políticas. Cada fase per-corrida pela história do sistema de justiça menoril parece voltada ao

 passado mais que ao futuro, isto é, voltada para a gestão de um pr.?- blema de controle herdado da fase precedente, e para a conservaç\,o

18

d,alógica do controle, adaptando instrumentos às mudanças gover-námentais. A mudança nas dialéticas sociais serve para consolidar esta lógica em vez de propiciar a ocasião para um projeto de trans- •formação na ótica do sistema. Essa mesma ótica é constantemente

 projetada na fase sucessiva e se torna cada vez mais consistente.

•• •

 No livro de Vera, os sinais desta continuidade são freqüentese sugestivos. Podemos, portanto, constatar, assim como ela, que os

componentes ideológicos, a teoria e os estereótipos - que condicio-nam a seletividade do sistema e que, com o estudo da jurisprudên-cia da 2"Vara de Menores da cidade do Rio de Janeiro, podem ser verificados - aparecem da mesma maneira, desde as primeiras déca-das do século, seja naquela cidade ou em qualquer outra do país.Vejamos algun,s exemplos: na linguagem policial, a expressão "ati-tude suspeita", registrada nos autos de dezenove processos, não foinunca usada para indicar que o jovem estivesse fazendo algo sus-

 peito, mas para indicar que ele foi considerado automaticamentesuspeito pelos sinais de sua identificação com um determinado gru-.

 po social. A autora vincula este artifício à "estratégia de suspeição

generalizada", assim chamada por Sidney Chalhoub para indicar aforma utilizada para o controle da população negra há pouco tempoliberta, no fim do século XIX.

 Não menos longínquas se situam as origens do "olhar morale periculosista", que os técnicos do sistema (psicólogos, psiquia-tras, assistentes sociais) introduze~noções de família, trabalhoe lugar de habitação. Na carga ideológica negativa presente na vi-sã,?da família pobre e não-branca, que se afasta do modelo de inte-

gração próprio da família burguesa, e que tanto pesa nas senten-ças, continuam vivos a incompreensão e o desprezo dirigidos à fa-mília afro-brasileira sobrevivente à escravidão. O que nesta é o prin-cipal fator de integração, a mãe, é  considerado como inexistente: se o

 pai não está presente, a farm1iaé vista como desagregada. Se, então,nos referimos à noção de trabalho, podemos observar que, nos pro-cessos dos anos 1968-1988, os serviços psicológicos e psiquiátricosdo Rio continuam a definir Ojovem pobre com as mesmas catego-rias com que era definido pela polícia nos anos trinta.

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Como "pergunta emblemática", permanece a encontrada no

questionário utilizado pelo Serviço de Fiscaliz,~çãO e Repressão da

Polícia Civil do Distrito Federal, nos anos tnnta: tem vendido Jornais,

 bilhetes de loteria, doces, engraxado sapatos ou desempenhado alguma

ocupação na via pública?". O desempenho de qualquer dessas funções

indica o status que faz destes jovens a clientela natur~l do sistema d~

 justiça para menores. Estes são perigosos sobretudo porque, assim

como a dos mendigos e dos vadios, a atividade que exercem denota

insubordinação à disciplina que o sistema deles exige.Sendo assim, em 1988, C.O. (17 anos) é perigoso, porque "está

trabalhando em biscates, pois não tem paciência para aturar patrão".

W.S.L. (17 anos, negro) e F.A.S. (mulato, morador da favela Barros

Filho, internado aos   16 anos) também são perigosos: p primeiro porque

"jamais demonstrou submissão e, de fato, não é submisso"; o segundo

 porque, de acordo com a perícia psicológica, mesmo depois de dois

anos de "readaptação social" no Instituto Muniz Sodré, "ainda se sente

atraído por uma vida de ganhos fáceis". E a psicóloga comenta: "esta

vida é ainda sentida como uma coisa boa, fazendo com que os olhos

 brilhem ao referir-se ao que fazia com o dinheiro conseguido. A fanta-sia de poder manter um status, um grande guarda roupa em plena

moda, de se cercar de guloseimas e garotas bonitas, não coadunam com

a vida que é possível se levar com um salário mínimo".A disciplina da obediência e da resignação a um trabalho subal-

terno e a um salário mínimo constitui o centro da readaptação social e

da formação profissional que vem sendo imposta aos adolescentes po-

 bres. O conteúdo desta formação reproduz fielmente a imagem domi-

nante no Brasil - do início da República aos dias de hoje - dos papéis

reservados a homens e mulheres jovens provenientes dos estratos mais

 pobres da população, não existindo muita diferença entre os papéis in-

certos exercidos por adolescentes na economia informal - que é o que

 justifica sua internação - e os papéis que exercem na economia formal _ para os quais devem ser "readaptados". Vera se atém   à  ambigüidade

desta noção de trabalho, que tanto pode ser vista como um 1I!-0tivode

criminalização quanto como um critério de ressocialização. As vezes,

esta ambigüidade se torna um verdadeiro paradoxo: A.M.N.T.   (14

anos, morador da favela dos Caídos), em seu ingresso no Instituto Pa-

dre Severino, é diagnosticado como um adolescente que necessita de

tratamento, porque "não teve vida produtiva declarada, mas alega ter se

20

ocupado co~ subempregos diversos como engraxate ou outros bisca-

tes". Mas, depois da "cura", a psicóloga do Serviço de Liberdade As-

sistida declara, com satisfação, que "atualmente o jovem está trabalhan-

do ~om,o engraxate e perfeitamente integrado   à   sociedade". Igualmente

anaga e a representação do serviço militar, para os jovens pobres, e do

casament~, para as jovens, como uma alternativa de vida, isto é, como

mpa terapia extramuros.

. Enfim, encontramos, um século depois, a continuidade dos pro-cedimentos dos operadores dos serviços psicológicos e psiquiátricos.

"Recuperaçã?",. "ressocialização", "reeducação" são eufemismos que

escondem obJetiVOs e mstrumentos de contenção social claros e explí-

~ltOSem sua selelivldade. Desta maneira, a conclusão a que Vera chega

e que, apesar das mudanças da problemática do crime devido ao lugar 

central ocupado pelo mercado de drogas ilícitas, encontramos ainda no

sistema de justiça para menores ao final dos anos   80,   o mesmo I~m-

 broslanismo social que existia no início da República: "psicólogos,

 pSiqUiatras, pedagogos, médicos e assistentes sociais trabalham em seus

 pareceres, estudos de caso e diagnósticos, da maneira mais acrítica,

com as mesmas categorias utilizadas na introdução das idéias de Lom-

 broso no Brasil".

Os vinte anos de criminalização de jovens pobres no Rio por trá-

fico de drogas no varejo são ao mesmo tempo uma história recente e

uma his~ória antiga. Como história antiga começa com a abolição da

escravldao e com o processo de urbanização, quando as cidades ganha-

ram ~m ~ovo perfil, com a remoção dos bairros' pobres do centro para

a penfena. As grandes obras de modernização assumiram o significado

de operações de higiene social, exprimHido bem o ':medo branco" e o

 projeto de exclusão e de marginalização dos libertos, a representação

 burguesa do que seria a cidadania negativa das classes subalternas. A

escplha do Rio para ilustrar esta história antiga é uma escolha feliz

 porque o Rio é um espelhd fiel que reflete, de maneira aumentada, ~

que aconteceu no resto do Brasil.

E é também uma escolha feliz para ilustrar a história recente

deste país, já que no Rio se pode seguir, melhor que em qualquer outra

Cidade brasileira, a passagem da ideologia da segurança nacional da

época da ditadura militar à ideologia da segurança urbana dos nossos

diaS. E, de fato, a tese principal do livro é que, de 1978 a 1988, com a

"transição democrática", deu-se no sistema de repressão "o desloca-

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mento do inimigo interno para o criminoso comum, com o auxílio lu-xuoso da mídia". Explica-se, de tal maneira, o paradoxo aparente:

que a visão seletiva e repressora da seguran~a urbana e as campa-nhas de pânico moral e alarme social que a alimentaram permltuam

a sobrevivência, até os dias de hoje, da lógica e da estrutura do con-trole social próprio do período do governo militar, uma interioriza-ção do autoritarismo e uma introjeção da ideologia de extermíniomaior e mais maciça que nos anos posteriores ao fim da ditadura.

Se o Rio é a representação concentrada da história do capita-lismo brasileiro, o Brasil é, por sua vez, a representação da históriado capitalismo ocidental. Duas são as "anomalias" da sociedade

 brasileira que a disti nguem de todos os outros países capitalistar asociedade brasileira foi a última a acabar com a escravidão e éaquela em que a desigualdade é maior. De algum modo, estas dUascaracterísticas contribuem para que a sociedade brasileira exprima,de maneira direta e elementar, as contradições da sociedade capita-lista em geral. A dependência recíproca entre desigualdade e vio-

lência, entre exclusão social e seletividad~ do sistema repressivo seapresenta no Brasil, digamos assim, em estado puro. Por este moti-

vo, as funções latentes do sistema de justiça criminal são mais visí-veis, as relações complexas entre direito penal e diferenciação   s O r l -ai são mais simples do que no contexto histórico dos países "cen-trais", no qual se ihscreve o livro da autora alemã. Os d6is livrossão tão complementares quanto os seus objetivos: não se pode en-

tender o centro sem olhar a sua periferia, mas não se pode tambémentender a periferia sem se considerar o centro. A reflexão críticasobre o capitalismo central e o sistema punitivo encontra no Rio a

 ponta de diamante que põe em foco muitas questões de que trata olivro alemão, e as toma ainda mais claras. Não vi histórias melhoresdo que as contadas por Vera para ilustrar a ligação entre proprie-

dade e violência punitiva, de que trata Gerlinda. E esta ligação éque permite colocar o Rio, com precisão, na história e na estrutura

atual da sociedade capitalista.Se colocarmos, lado a lado, o que os dois livros nos ensinam,

 poderemos entender melhor tanto o caráter geral quanto o caráter 

específico da ação da   2'   Vara de Menores no Rio: o problema dadroga não é a questão relevante para se entender o funCionamento

do sistema punitivo em relação aos jovens pobres no Rio, mas a

22

sua criminalização po~tráfico de substâncias proibidas é relevante

 par~ a compreensão do problema da droga na sociedade capitalista a partir dos anos set enta.

"':droga não é mais que a última ocasião com a qual o siste-ma pumtlvo da ~ocledade moderna reali~a a sua história, que é amesma no BrasIl e no resto do mundo. E a história das relaçõesentre duas nações que, como escrevia Disraeli, compõem os povos:

os ncos e os pobres. Mas como, dentro da história da sociedademoderna ocidental, o Brasil tem suas anomalias - que tornam maistransparentes do que em qualquer outro lugar os mecanismos e fun-ções do sistema punitivo -, também o sistema droga funciona noBrasIl com uma anomalia, que confere a este país uma diferença

t~nto em re~ação ~o "centro" como em relação à "periferia" da so-Ciedade capitalista. No que diz respeito ao sistema droga, o Brasil é

ao mesmo ~empo um país central e um país periférico, ou talvez,nem um paiS central nem periférico. .

,. Se nos referimos às drogas pesadas, o Brasil é um país peri-fenco. que, na economia da droga ilegal, tem o papel dos paísescentrais: o consumo. Mas não tem o papel dos países periféricos: o

cultivo_da substância base por parte dos camponeses pobres e a produçao e a exportação operada pelas máfias locais. Por esta ra-zão, a guerra contra a droga no Brasil não é uma guerra internacio-n~l c,omandada pelos Estados Unidos e por outros países centrais;

~~o e uma guerra contra um inimigo externo; ~ uma guerra contra omlmlgo mterno; um assunto, como se viu acima, de segurança naci-onal e urbana.

A inexistência de ações estrangeIras, de uma guerra contra adroga conduzida em seu território, e a inexistência de uma guerracontra as drogas conduzidas pelo Brasil no território de outras na-ções faz com que, no Brasil, o problema da droga, simplesmente,assuma a forma da relação entre as duas nações em que está dividi-

da a SOCiedadebrasileira: os ricos e os pobres. Assim, aos jovensconsumidores das classes média e alta se aplica o paradigma médi-co, en~uanto que aos jovens moradores de fav.elas e bairros pobresse aplica o paradigma criminal.

. .Co~stituin~o-se, já em 1995, o motivo número um para a cri-mmalizaç~o dos Jovens 'p0.bresno Rio e um problema de segurançacom relaçao ao novo Inimigo mterno, a droga é hoje o cerne da di-

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ferenciação do controle (médico ou penal), da distribuição de segu-

rança baseada no censo (certeza dos direitos dos ricos, incerteza

dos direitos dos pobres), do privilégio e da exclusão social através

da aplicáção dos estereótipos positivos e dos negativos, criminais e

 periculosistas.A particularidade da economia da droga proibida é que, para

esta, o principal elemento dinamizador do círculo de oferta e procura é

a sua própria proibição. Os lucros da proibição devem, porém, ser pa-

gos com os custos sociais da mesma, que são tão altos quanto os altís-

simos lucros. Fazem parte dos custos sociais os processos de crimina-

lização, que atingem quase que exclusivamepte os traficantes de pouca

importância provenientes dos estratos mais frágeis da sociedade. E

devemos colocar entre os custos sociais da econolnia da droga ilegal

também os que são pagos pela justiça criminal em decorrência da so-

 brecarga imposta pela ação repressiva que surte os efeitos opostos dos

declarados no discurso oficial do sistema, e em decorrência da crise de

legitimidade que, consequentemente, o ameaea.Para enfrentar os custos sociais da proibição e da criminalização,

o sistema droga os "externaliza", fazendo a sociedade e seus gruposmais vulneráveis - aqueles que fornecem mão-de-obra a preço baixo e

com alto risco - pagar pelos mesmos, imunizando dos efeitos secundá-

rios, e portanto da criminalização, os consumidores e tráficantes que

 provêm dos grupos mais fortes. Desta forma, explica-se também por 

que no Rio o sistema de justiça criminal aparece exClusivamente dire-

cionado à repressão dos jovens traficantes que retiram do mercado

meios de subsistência, ao combate do crime "desorganizado" das fave-

las, mais do que ao combate da criminalidade organizada. A seletivida-

de da justiça criminal neste e nos demais campos é tão grande quanto a

desigualdade social e a eficácia segregadora da cidadania negativa, sen-

do ambas emblemáticas para o Rio e para a sociedade brasileira.

Para compensar os custos materiais e simbólicos enfrentados pela justiça criminal, o sistema droga se vale de meios de comunicação

internos e externos. Neste ponto, acontece uma troca de serviços entre

o sistema droga e o sistema da justiça criminal, vantajosa para ambos.

A criminalização, já vimos, é a essência específica do mercado das dro-

gas; os processos de comunicação de massa e de estigmatização social

que a acompanham garantem, então, que a sua concentração e a dos

outros custos sociais nos grupos mais vulneráveis obtenha um vasto

24

consenso na opinião pública. Por outro lado, a centralidade da droga na

formação do estereótipo da criminalidade faz desta um alimento formi-

dável p~a o alarme social e para as campanhas de lei e ordem; e o alar-

me soc.lal e as campanhas de lei e ordem são, por sua vez, um instru-

mento mdlspensável de legitimação do sistema de justiça criminal. São

também um instrumento para a tecnocracia do poder e para o sucesso

dos gove~os e dos políticos conservadores. O "mito da droga" aumen-

ta o.~umhao eleitoral da ilusão de segurança que estes governos e estes pohtlcos vendem com a ajuda maciça dos meios de comunicação. De

tal ~odo, a e.co~oml~ da droga, além de ser elemento de legitimação

do sls~ema cnnunal, e também, através deste sistema (mas não somente

atraves dele ),um elemento da economia política do poder.

***

Por ~ue um aco.ntecimento que tem a ver com a justiça para

menores é tao emblematlco para o sistema punitivo geral? Pode-se dar 

a esta, a.ntes de. qualquer outra pergunta, uma resposta de caráter 

quantitativo. Se e verdade que o sistema punitivo em geral é dirigido aos

P?bres e que a justiça menoril dele faz parte (a despeito de sua ideolo-gia_tutelar e d: seus eu~emismos), então os jovens pobres são a popu-

laça0 de refe~encla mais representativa do sistema punitivo em geral.

De fato, a maiOr parte dos pobres é jovem e a maior parte dos jovens é

 pobre, no Brasil e no mundo inteiro.

. Se pr?curamos uma resposta de caráte.r qualitativo, devemos

 partir de ~als longe. A justiça para menores, desde sua fundação, no

final do seculo XIX, fOisempre a paJ1e mais sensível de todo o sistema

 puniti.vo, a m~s pro.bl~mática e qualificante, o lug~ onde a mistificação

doutrmária e Ide?loglca do sistema e, ao mesmo tempo, o seu caráter 

seletivo e destru~vo a1c.ançaram seu ponto mais alto. Todavia, a justiça

 p~a men~res fOi tambe~ o lugar onde nos últimos tempos melhor se

 pode medu suas contradições e onde prosperaram sinais de crítica e projetos de reforma.

Se é verdade que, "no período das turbulentas lutas sindicais" na

 passagem.do século XIX para o século XX, no Brasil (assim como em

toda a SOCiedadecapitalista), "a burguesia tinha necessidade de alimen-

tar o sistema jurídico penal com medidas que punissem além do crime"

como lembra Vera utilizando as palavras de Nilo Batista, então a intro:

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dução de medidas de segurança junto à pena na justiça penal dos adultos

foi um modo parcial e imperfeito de realizar o programa para o qual o pe-

riculosismo positivista e o biologismo lombrosiano forneceram as ferrarnerl-

tas teóricas. A perfeição havia sido alcançada, por sua vez, no final do

sé~ul~ XIX, co~ a invenção do,s códigos e dos tribunais de menores (o

 pnmerro, o de ml~OIS,fOi mstltUldo em 1889). De fato, com a justiça para

menores que nasCia, os pobres, se jovens, podiam ser criminalizados atra-

vés,de medidas "tutelares" que não se aproximavam da pena, mas a subs-

titulam conceItualmente, e, portanto, poderiam ser completamente subtra-ídas dos limites e das garantias processuais e substanciais com que, mesmo

durante? auge da escola positivista, a dogmática penal sempre circundou

o conceito de pena. Aquilo que, no direito dos adultos, devia se realizar 

apenas pela metade, com a doutrina do "valor sintomático" do delito e

com a introdução das medidas de segurança, era plenamente

alcançado com a doutrina da "situação irregular" e com a introdução

da justiça menoril.

Até os anos 80, em toda a área ocidental, a justiça menoril era pior 

do que a dos adultos. Isto se toma ainda mais evidente quando nos damos

conta não só da realidade efetiva do sistema, mas também da relação entre

as normas.e a realidade. O funcionamento seletivo, segregador, desumani-

zante do sIstema era ainda mais pronunciado na justiça para menores que

na dos adultos, e sua legislação não indicava um modelo melhor de reali-

d~de, sendo, ~igamos ass~m, uma má fotografia. A arbitrariedade da poli-

~Ia,.o paternalismo dos JUIZes,a ausência de defesa, de meios recursais, de

hnutes preestablecidos da responsabilidade e das medidas penais, eram

abertamente programados na legislação menoril. Na justiça dos adultos, ao

contráno, exceção feita às medidas de segurança, nas quais o adulto se

encont;ava em c?ndição comparável à do menor, poderíamos di~er que,

no penodo conSIderado, a reahdade se afastava à revelia da legislação.

Mesmo com t~ntas contradições, esta, de fato, continuou a prover garan-

tIas substancuus e processuaIs que encontraram, então, uma aplicação limi-

tada nos fatos. Ou então, os fatos se emanciparam totalmente da legislação

c?mo acont~c~u, no Brasil e em outros lugares, todas aJivezes em que ~

slstemapurntlvo paralelo ou extrajudicial prevaleceu sobre o legal ou o

SUb~tltulU- o que aconteceu regularmente durante os governos rrtilitares e

as ditaduras fascista,s.,A justiça ~enal dos adultos, na teoria, é menos per-

v~rsa do que na pratica. A Justiça dos menores, na teoria - até os anos

Oitenta - era tão perversa quanto na prática.

26

 Nas últimas duas décadas do século XX, a relação começou a se

inverter. Um processo de transformação a nível mundial se exprimiu

em importantes documentos das Nações Unidas, sendo o último destes,

e o mais decisivo, a Convenção de 1989. As garantias fundamentais

 presentes nos princípios do direito penal liberal foram estendidas aos

adolescentes. Em todo o mundo ocidental capitalista a Convenção foi

 precedida e seguida por importantes reformas no direito das crianças e

dos adolescentes e na justiça juvenil, sendo que a doutrina da "situaçãoirregular" foi substituída pela doutrina da "proteção integral". O

movimento se estendeu à América Latina, encontrando seu ponto mais

alto de desenvolvimento no Brasil, onde se afirmou através do trabalho

firme e corajoso de especialistas e com o apoio considerável da

sociedade civil. O artigo 227 da Constituição de 1988 antecipou a

Convenção das Nações Unidas: o Estatuto da Criança e do Adolescen-

te, de 1990, resumia magistralmente'as idéias da Convenção, tendo sido

um grande e inovador exemplo da política participativa de direito. Os

 princípios presentes na nova legislação, no que dizia respeito à justiça

 juvenil, se tomaram critérios e campos de experimentação potencial

das reformas da justiça dos adultos. Como exemplos, a mediação e o

ressarcimento da vítima como alternativa ao processo e à pena, a dife-renciação das sanções, a excepcionalidade e a brevidade das medidas

de internação, a cessação antecipada das sanções.

A justiça para menores representou, em sua - relativamente bre-

ve - história, o que há de melhor e o que há de pior da justiça dos adul-

tos. Mas a relação entre norma e realidade, nos 'dois setores, se modifi-

cou profundamente nas últimas duas décadas: as normas do direito

J,Jenaldos adultos pioraram cada vez-mais, enquanto que as da justiça

 juvenil, e d~ todo o sistema que engloba o direito da criança e do adoles~

cente, melhoraram cada vez mais. Em todo o mundo ocidental, a

realidade do que conceme à área infanto-juvenil deu sinais de algumas

melhoras. Todavia, quanto mais se aumentou o nível qualitativo das

normas, maior o atraso da realidade em relação ao mesmo, dada a len-tidão e os obstáculos materiais e ideológicos com os quais se realiza, no

Brasil e em qualquer outro lugar, a sua adequação ao programa consti-

tucional e legislativo. Eis, então, uma outra anomalia desse extraordiná-

rio país: assim como a desigualdade social, a diferença entre as refor-

mas e suas atuações, no campo da infância e da adolescência, está entre

as' maiores do munôo; mas, isto 'não depende somente do atraso nas

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relações sociais e políticas, depende também, devemos ressaltar, do

nível altíssimo que as reformas alcançaram no plano normativo.

 Não se trata de dois primados diferentes, mas da mesma coisa.

É a grande distância social entre ricos e pobres que faz COnjque, no

Brasil, seja tão grande a distância entre as normas e a realidade. De

fato, como foi dito de maneira tão eficaz por Antônio Carlos Gomes da

Costa, uma vez tendo se tomado lei, os projetos constitucionais e legis-

lativos relativos   à   infância e a adolescência se transformaram em um projeto de sociedade. Sem que se realize o projeto de uma sociedade

mais igualitária e mais justa, a aplicação do novo direito da infância e da

adolescência é impossível. Mas, para realizar este projeto, o caminho

hoje no Brasil e em todo o mundo do capitalismo real é o das lutas

 pacíficas e tenazes, para se assegurar e impor que a Constituição e a lei

sejam aplicadas em todas as áreas. Revolução social significa sinergia

de todas as lutas pela defesa e plena realização dos direitos sancionados

 pelas leis, pelas constituições, pelas convenções internacionais, e para

mudá-las quando for necessário. Hoje, utopia cpncreta é a legalidade

constitucional, e a .realidade material, a defesa com todos os meios do

status quo   das relações sociais, é a subversão, caso esta palavra ainda

 possua sentido.

***

O que é tocante ao terminar a leitura do livro de Vera Malaguti é

que não se vê indícios desta utopia concreta contida no novo direito da

infância e da adolescência no Brasil, no projeto de sociedade traçado

no Estatuto e na nova Constituição. Uma historiadora poderia então

.descrever somente a sociedade de ontem e ver a atual.como sua conti-

nuação natural? Para que se entenda a década da transição democrática,

conta mais a continuidade com 64 do que com outubro de 88? Nada

mudou de 1990 a 1998 na realidade das crianças ~ dos adolescentes

 pobres do Rio? E, se algo mudou, que influência tem em relação ao

sentido total da história que o livro narra? '

Se é verdade que um prefácio não deveria propor perguntas que

não são formuladas no livro, gostaria, pelo mçnos, de reconhecer que

nele estão alguns bons argumentos para explicar como a mudança legis-

lativa, e também a mudança da praxis judicial e administrativa, ainda

não modificaram o sentido desta história e não fizeram entrever ainda

28

uma mudança substancial de direção da realidade que Vera estudou,

nos últimos dez anos. Em primeiro lugar, as duas grandes engrenagens

da emoção coletiva - droga e insegurança urbana - continuaram, nos

anos que sucederam a reforma, a criar uma espécie de cordão em tomo

dos jovens distribuidores de drogas das favelas e dos bairros pobres do

Rio. A força destas engrenagens fez com que, aos olhos da opinião

 pública manipulada pela Rede Globo, aquela marcada pelo binômio

"droga e insegurança" continuasse sendo uma espécie de zona francaem meio   à  reforma. Foi depois da reforma que o percentual de incrimi-

nações por droga no Juizado de Menores do Rio cresceu, até mesmo

triplicou, em relação a 1988. Tráfico de droga e jovens marginais per-

maneceram no cerne do estereótipo da criminalidade e do alarme soci-

al, no Rio e no resto do Brasil, mesmo depois de ter entrado em vigor 

a nova Constituição, a Convenção e o Estatuto.

Em segundo lugar, a involução eficientista, periculosista e emer-

gencialista da justiça penal dos adultos em toda a sociedade ocidental

teve, também no Brasil, um efeito devastador sobre a imagem e sobre

o modelo da justiça juvenil, impedindo, até o momento, que se desse o

condicionamento potencial da primeira pela segunda. A separação do

setor de proteção do setor da resposta à conduta infratora constituiu umgrande progresso, mas, em um primeiro momento, talvez tenha forneci-

do um álibi moral   à   consciência coletiva, em favor da repressão aos

meninos pobres: se na emergência risco-abandono respondemos com

as medidas de proteção, respondemos então com repressão   à emergên-

cia-crime. O álibi, que assim se criou, não percebe nem o espírito nem

a letra do Estatuto, nem o fato de que, muitas vezes, os adolescentes

infratores moradores de favelas e baitmJ; pobres são meninos em situ-

ação de risco-abandono, isto é, privados de muitos dos seus direitos

fundamentais.Se a maneira indicada fosse verdadeiramente a maneira na qual

a separação dos dois setores atingiu a opinião pública, esta se prestaria

- além de reproduzir o modelo assistencialista como contraposição ao

modelo repressivo - a reproduzir o modelo criminalizante. Em relação

aos adolescentes pobres, o modelo criminalizante agiria então de ma-

neira negativa: os adolescentes pobres são reprimidos exatamente pelo

fato de serem pobres, mas os adolescentes infratores, ou assim conside-

rados, são privados de seus direitos de proteção exatamente pelo fato

de serem infratores.

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Em terceiro lugar, quando falamos de justiça penal de adultos e

de justiça menoril, não devemos nos esquecer de que são somente dois

subsistemas de um vasto sistema punitivo geral, que compreende não

só o setor formal-institucional, mas também um vasto setor informal-

social. Olhando o conjunto do sistema punitivo no sentido mais amplo,

 podemos observar que, no Brasil, assim como nos outros países, o sub-

sistema formal juvenil melhorou no plano normativo, mas que o dos

adultos piorou tanto no plano normativo quanto no empírico, e que o

setor informal, em seu conjunto, não sofreu ainda, de maneira relevan-

te, as conseqüências das reformas. A ideologia autoritária do apartheid,

da limpeza étnica e do extermínio continuam a dominar o sistema in-

formal. A situação das crianças e adolescentes pobres, no Rio e no res-

to do país, ainda paga o preço das involuções e do atraso dos demais

componentes do sistema punitivo em geral.

O mais importante, enfim, para se entender a continuidade da,

situação real, não obstante a ruptura normativa, é refletir sobre o modo

 parcial e emergencial com que a reforma foi até o momento conduzida

 pelas instituições e pela opinião pública. O sistema dos direitos das

crianças e dos adolescentes foi, até o momento, esmagado por duas

emergências: a emergência risco-abandono e a emergência criminal.Por conseguinte, e contrariamente ao proposto pela Constituição e pelo

Estatuto, na ótica institucional e na opinião pública, prevaleceram as

 políticas públicas de resposta contingencial a essas urgências, e não as

 políticas públicas básicas, que deveriam representar a forma estrutural

e preventiva de intervenção nas condições sociais e nos serviços funda-

mentais (escola, saúde, ambiente, trabalho, relações de propriedade),

das quais dependem as emergências.

Então não é verdade que a resposta protetiva à emergência risco-

abandono é o álibi para a resposta repressiva à emergência criminal; é

sobretudo verdade que ambas as respostas emergenciais são o álibi das

instituições e da opinião pública para as graves deficiências das políti-

cas públicas de base e da política de proteção dos direitos fundamentaisdas crianças e dos demais cidadãos (direitos de liberdade, direitos eco-

nômicos, sociais, culturais, direitos de participação política), que deve-

riam favorecer o progresso na direção de uma maior igualdade social.

É principalmente neste ponto que se mede o atraso nas atuações da re-

forma, visto que são as políticas públicas de base, e não as emergenci-

ais, a espinha dorsal da reforma no projeto constitucional e legislativo.

30

O ponto em torno do qual gira o problema da continuidade da

repressão aos jovens pobres no Rio reside, então, na estratégia imutá-

vel da defesa material e simbólica da desigualdade por parte dos grupos

no poder, que encontram o consenso interessado das classes médias.

Criminaliza~ os pobres é um instrumento indispensável porque garante

materialmente a sua posição subalterna no mercado de trabalho e a sua

crescente exclusão, disciplinando-os, pondo-os em guetos e, quando

necessário, destruindo-os.   É também um instrumento indispensável

 para encobrir, com a imagem da criminalidade perseguida, isto é, a dos pobres, o grande edifício de ilegalidade e de violên:ia, que reúne ~~

nossa sociedade as classes detentoras do poder economlco. Este edlfI-

cio é tanto' maior quanto maior for a desigualdade social.

Ao fazer esta afirmação, devemos evitar cair no sociologismo

ingênuo de uma teoria criminológica da violência, que gostaria de cha-

mar de "criminologia salomônica", Para ser cientificamente imparcial

e politicamente neutra, eSta distrib~i de modo igu~litári? e simétric? o

custo social da desigualdade. A deSigualdade cna Ilegalidade e vlOlen-

cia criminal tanto no escalão social mais baixo como no mais alto, diz

a criminolegia salomônica, e segue em frente, como se a desigualdade

fosse um dado natural ou como se a desigualdade devesse ser conSide-

rada, em um discurso metodologicamente correto, só como variávelindependente, e não também como variável dependente da violência,

Contb esta representação naturalística e simétrica, uma análise

mais atenta da história da nossa sociedade mostra, ao contrário, que as

duas formas de ilegalidade e de violência são muito heterogêneas, de-

vido às posições diversas que ocupam na din'âmica social e no tempo

histórico, A insubordinação e, em certos casos, a violência dos pobres

é determinada pelas condições de desigualdade social. Mas a violência

dos ricos não é determinada por estas condições, é ela que as determina

e as mantém. Foi preciso muita violência, inicialmente, para que fossem

impostas condições estruturais de desigualdade, que. co?ti~ua~iam a

existir através das gerações; e precisa-se de mUlto maiS vlOlencIa para

que subsistam, quanto mais próximas estiverem daquelas impostas pelaacumulação originária.

Parec~-me que a validade deste último conceito se confmnou na

mudança de paradigma entrevisto na teoria da criminalidade a partir dos

anos quarenta. Utilizando-o, agora, no contexto histórico do   labeling

approach  e da criminologia crítica, podemos entender ainda melhor certas

31

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.,

teses surpreendentes de Marx sobre a relação entre violência e justiça

 punitiva, e perceber que durante as grandes transformações sociais,

como aquelas que aconteceram no início da história da sociedade capi-

talista, não foram os "criminosos" que produziram a violência, mas,

sobretudo, os poderosos que "criaram" a criminalidade. Tendo imposto

condições de desigualdade e de aproveitamento, tendo despojado vio-

lentamente populações inteiras de seus bens (como aconteceu com a

expulsão dos camponeses na Europa) e da propriedade sobre seus cor-

 pos (como aconteceu com a escravidão dos negros na América), os

grupos dominantes, então, impuseram, com as leis e com o poder ins-

titucional, a manutenção daquelas condições e definiram como "crimi-

nosos" os despossuídos errantes, os escravos desobedientes ou ociosos

os subalternos indisciplinados ou rebeldes. O ponto de partida do direi:

to penal moderno foi o  crimen lesae maiestat/s,   o delito de lesa majes-

tade contra o poder político e patrimonial das monarquias.

Distante algumas gerações da acumulação originária e como

conseqüência do pacto social da modernidade na Europa e da sua im-

 portação na colônia latino-americana, a legislação penal dos Estados

modernos foi se transformando e ampliando até que incluiu, no catálo-

go dos delitos, condutas freqüentemente realizadas por indivíduos per-

tencentes às classes poderosas. O fortalecimento, social e político, das

classes inferiores impôs lentamente códigos penais que se destinavam

 potencialmente a todos os autores de fatos tipificados como delitos,

independentemente da sua extração de classe. Mas, como mostra a his-

tória e a sociologia dos sistemas punitivos, os seus reais destinatários

 permaneceram sendo os mesmos; os destinatários nunca foram verda-

deiramente os autores dos fatos típicos, mas os tipos de autor, isto é, os

tipos de autor pertencentes aos grupos sociais estigmatizados como

criminosos potenciais, suspeitos de sê-lo e, por isso, perigosos.

A criminalização dos grupos subalternos no Brasil - que, entre os

 países latino-americanos, é o mais desigual e o que está mais próximo

ao passado escravista - permaneceu como um tipo de compensação à perda de propriedade sobre os escravos e como uma forma de manu-

tenção da autoridade dos proprietários sobre os libertos e seus filhos.

Se antes a propriedade sobre os escravos autorizava a puni-los, 'torturá-

los ou destruí-los, agora continua-se a punir, torturar e destruir seus

descendentes para afirmar simbolicamente um tipo de propriedade so..

 bre eles, para enfatizar sua diversidade, para combater sua tendência

32

natural à insubordinação. A história da criminalização dos jovens po-

 bres do Rio começa no amanhecer da abolição da escravidão e termina

com o inicio do grande processo de emancipação marcado pela Cons-

tituição e pelo Estatuto. No meio, está um século de desigualdade e

discriminação, de autoritarismo e de manipulações urbanísticas, legis-

lativas e policiais direcionadas ao controle repressivo e à guetização das

sucessivas gerações de ex-escravos. Uma história que, através dos me-

canismos sociais, políticos e culturais reconstruídos por Vera, e devido

às razões acima expostas, ainda subsiste.

 Não é tarefa do historiador dar receitas para mudar a sociedade,

assim como não é tarefa do poeta melhorar o mundo. Mas, como o

 poeta, ao fazer da realidade uma metáfora, nos ajuda a reconhecer o

sentido e ~ manter a distância e a liberdade necessárias na luta para

melhorá-la, também o historiador e o sociólogo, pelo fato de revelarem

como andavam e como andam realmente as coisas na sociedade, já

começaram a mudá-la. O presente livro é um bom exemplo do quão

atual é esta tese: não nos diz o que podemos e o que devemos fazer 

 para modificar a realidade que descreve, mas nos obriga a questioná-la,

o que já é o início da mudança.

Em todo caso, algo já mudou: temos boas leis. Isto não é ainda

uma condição suficiente, mas é uma condição necessária que reforça

enormemente, em relação ao passado, a luta por uma sociedade mais

igualitária e mais jJsta e que lhe confere a força moral e a dignidade de

ser uma luta pela legalidade. Sabemos onde estamos e como chega-

mos: este é o mérito dos bons livros de histórià e de sociologia como

este. Sabemos aonde queremos chegar: este é o mérito de todas as

mulheres, homens e jovens que levarà!ITacliante, no Brasil e em tantos

outros países do mundo, a recente reforma do direito da criança e do

adolescente. Mas sabemos também por que queremos chegar até lá e

 por que temos o direito e o dever de querê-lo: e este é o desafio que

advém de um novo pacto social que começa a ser construído, no Brasile em outros países do ocidente, com as novas constituições atualmente

em vigor.

Alessandro Baratta

33

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 No dia 12 de abril de 1997, num episódio do programa da Rede

Globo intitulado "Você decide", em que os telespectadores decidem o

final da história, 79.493 pessoas optaram pela morte, por vingança, de

um jovem infrator que havia participado de um assalto violento. No

caso, a justiceira do rapaz seria a vítima, uma socióloga que lidava com

meninos de rua. As outras opções apresentadas seduziram menos es-

 pectadores: 44.000 preferiram que ele fosse preso e apenas 20.000 op-'

taram por deixá-lo fugir. A vitória do extermínio foi avassaladora. A

 produtora do programa recebeu vários telefonemas reclamando da le-

veza fia cena de assassinato. Os telespectadores queriam execução

sumárial.

Esta opção pelo extermínio foi noticiada com falso espanto pelo

 jornal da Rede, junto com estatísticas sobre a situação dos adolescentes

infratores no Estado do Rio de Janeiro. Essas estatísticas apontaram

hoje a droga como principal fator de criminalização da juventude. Cer-

ca de 49% dos adolescentes que entram no sistema estão envolvidos

com drogas (38% por tráfico, 11% por consumo). A maioria desses

meninos vêm dos morros, favelas e bairros pobres cariocas e 38% são

analfabetos2.

É a partir deste quadro que a mídia se encarrega de esculpir o

novo inimigo público número um, o traficante armado, que reproduzi-

ria táticas de guerrilha, já que se difundiu que em algum momento da

história ele se cruzou na prisão com'a-militãncia de esquerda. O pro-

cesso de demonização das drogas, a disseminação do medo e da sensa-

ção de insegurança diante de um Estado corrupto e ineficaz, vai despo-

litizando as massas urbanas brasileiras, transforrnando-as em multidões

desesperançadas, turbas linchadoras a esperar e desejar demonstrações

de força. Neste cont~xto, mecanismos psico-sociais de autoproteção, per-

versamente, dão lugar   à   lógica da exclusão. As campanhas por pena de

morte e as de justiça pelas próprias mãos vão tomando dimensão naci-

IJornal O  Globo.  19 de   a b r i l   de 1997. p .14 e O D ia . 24 de abr il de 1997 e 29 de maio de 1997.

1 Estatísticas da 2" Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro.

35

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onal. Os objetos do processo de demonização são desumanizados: a

eles não se aplicam os direitos à vida, à justiça, muito menos à cultura,

à educação. E o pior é que o imaginário os vê por tod~ parte, organiza-

dos em poderosos comandos, inexpugnáveis e indestrutíveis se não fo-

rem combatidos ao estilo de uma verdadeira guerra, digamos, uma cru-

zada.   I

Do ponto de vista das elites brasileiras, as massas urbanas dê tra-

 balhadores, em sua maioria negros, vivendo nos morros, quilombados3

,

constituem contingentes perigosos. Reivindicam-se mais e mais inves-

timentos nos mecanismos de controle social, penas mais duras.

O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um

 jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de dro-

gas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgu-

lho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário

de miséria e fome que o circunda. A núdia, a opinião pública destacam

o seu cinismo, a sua afronta. São camelôs, flanelinhas, pivetes e estãb

 por toda parte, até em supostos arrastões na praia. Não merecem respei-

to ou trégua, são os sinais vivos, os instrumentos do medo e da vulne-

rabilidade, podem ser espancados, linchados, exterminados ou tortura-

dos. Quem ousar incluí-los na categoria cidadã estará formando fileiras

com o caos e a desordem, e será também temido e execrado. Existe

alguma coisa de novo nesta configuração simbólica da crise urbana

 brasileira? Ou historicamente se reproduz todo o processo de formação

de nossas cidades: concentração de descendentes de ex-escravos nas

tarefas informais que um mercado de trabalho excludente e aviltador 

vem criando através dos tempos? Na cidade do Rio de Janeiro, hoje, a luta pela cidadania tem o

seu principalfront no nível simbólico e ideológico, num contexto de dis-

seminação do autoritarismo, onde o medo e a desqualificação do outro

se somam às campanhas de descrédito do Estado e das classes políti-

cas. Está instaurado o terreno para o autoritarismo sem ditadura.

 N a raiz da constituição desta ideologia exterminadora está omedo. Esse medo é administrado cotidianamente pelos meios de comu-

nicação. Mas, olhando para trás, vemos que a história do medo e da ex-

clusão já andaram jnntas desde antes do início do período dito "moder-

no" da história da Europa Ocidental. Em 1321, pela primeira vez acon-

tece um programa maciço de reclusão, dirigido aos leprosos na França.

3  Cf. Gizlene Neder.   Violência e cidadania.   Porto Alegre. Fabris, 1994.

36

Recorrentemente, processos semelhantes de segregação e perseguição

se estendera!n aos judeus, muçulmanos, bruxos e também loucos, po-

 bres e criminosos. Autoridades e multidões faziam sua parte encarce-

rando, torturando, apedrejando, exterminando todos os que ameaçavam,

os que estavam além dos limites da cristandade. O inimigo externo ti-

Ijha como cúmplice e emanação o inimigo interno, ao alcance da mã04•

Através da inquisição os perseguidos vão se adaptando (via tortura e

terror) aos estereótipos dos inquisidores, cristalizando o imaginário

social do medo e da exclusão. Na América, o encontro da civilização européia com o "outro"

exterior se dá no momento em que a Espanha repudia seu "outro" inte-

rior, na vitória sobre os mouros e na expulsão dos judeus5•   A relação

conquistadores-conquistados no Mundo Novo é permeada pela pouca

 percepção que os primeiros têm dos segundos, pelo sentimento de su~

 perioridade, e pela preferência pela terra e suas riquezas antes que pelos

homens. O genocídio da população americana e a liberação total da

crueldade obedecem a um duplo movimento de desqualificação do

"outro" e de subordinação de todos os valores ao desejo de enriquecer,

símbolo da modernidade, o fetiche do ouro. Se, na Europa Ocidental, o

alvo das campanhas e políticas de exclusão e controle são os grupos

minoritários, na América o processo de exclusão é generalizado à popu-lação nativa.

 Na Europa, a consolidação do capital mercantil, o fortalecimen-

to das cidades, o empobrecimento dos camponeses e artesãos, cria-

ram, por um lado, as condições para a Revolução Industrial e, por 

outro, os motins e as rebeliões das novas multidões urbanas. O período

de transição à modernidade inundou aEuropa urbana de gente do cam-

 po. Inicia-se uma fase de sucessivos'matins, rebeliões, greves, mo-

vimentos detonados pela fome, pela revolta contra as máquinas, pelos

 preços, pela jornada de trabalho. Na medida em que se consolida o ca-

 piüllismo, consolida-se também uma classe despossuída, vista como

turba ou ralé, ameaçadora e perigosa para a burguesia comercial e ma-

nufatureira.

O Grande Medo de 1790 se repete e se estende em todas as mar-

chas e contra-marchas da Revolução Francesa, até a consolidação da

 burguesia e a derrota dos setores populares, antigo aliado nas lutas con-

4 Carla   Ginhurg.   A   história noturna.   São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

5 Tzvetan   TodoroV. A   conquista da América.   São Paulo, Martins Fontes, 1991.

37   I .I

' i ,

I

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tra a aristocracia. Na reação das elites e das autoridades aos movimen-

tos de massa da Europa moderna, diante do pânico   e   'dã impotência

frente à multidão, as autoridades se destacam pela violência contra a

vida. As políticas de controle social se aprimoram e se fortalecem para

responder ao pânico das elites. A Revolução Francesa põe em pânico

toda a Europa. Organiza-se um sistema jurídico institucional e uma po-

lícia para conter as massas ante as rigorosas condições que o capitalis-

mo vai impondo. A configuração urbana vai expressando e cristalizando

os processos econômico-sociais em curso. Não é à toa que as refor-

mas urbanas de Paris, efetuadas por Haussmann, interferem, desarticu-

litm, desmontam os cenários das lutas çlos sans-culottes   e da Comuna

de Paris. Isola-se o centro histórico, criam-se anéis viários para melhor 

circulação das forças da lei e da ordem, rasgam-se avenidas, apagam-

se os vestígios das barricadas. Tem-se comQ estratégia a neutralização

do proletariado revolucionário de Paris e a destruição da estrutura ma-

terial urbana dos motins populares.

Mas, bem ou mal, a "questão social" é incorpobda na Revolu-

ção Francesa, onde cada homem é um cidadão.

 No Brasil, o projeto de construção da ordem burguesa é bastan-

te diferente. O fenômeno da escravidão desenvolve uma realidade soci-

al absolutamente violenta. Ou melhor, a violência é um elemento cons-

titutivo da realidade social brasileira. Ao trabalho compulsório do ne-

gro soma-se a despersonalização legal do escravo; o ~cravo era mercíl-

doria, não era sujeito. Temos aqui o que Roberto Schwarz chama de

"sentido histórico da crueldade"6.

Como a transição para o capitalismo no Brasil não destitui a elite

agrária, a modernização se dá "pelo alto", pela via conservadora. So-

 brevivem intactos até hoje a despersonalização legal das massas negras

e pobres urbanas e o desprezo pelo trabalho manual no coração das

nossas elites. O projeto autoritário das elites brasileiras se afrouxa em

momentos de crise para rearticular-se imediatamente após a superação

dessas crises de mudança. No Brasil, autoritarismo e liberalismo são

duas faces da mesma moeda  7

 No período da dissolução das relàções escravistas (segunda me-

tade do século XIX), vão-se criando nas cidades brasileiras grandes

6   Schwarz. Roberto. "O sentido histórico da crueldade em Maçhado de Assis", in  Novos

 Estudos Cebrap.   São Paulo. n° 17. maio 1987,   pp .   38-44.

7   Gizlene Neder.   Discursojurldico ~ ordem burguesa no Brasil.   Porto   Alegre,   Fabris, 1995.

38

contingentes de homens negros, escravos e libertos. Políticas de imi-

gração são favorecidas. A constituição do mercado de trabalho a partir 

do fim da escravidão é razão de duplo medo: das massas negras e do

movimento operário internacional. A concepção do mercado de trabalho

no Brasil é excludente, desqualificadora e racista até hoje.

Esta realidade social violenta e excludente traz uma agitação

constante nas ruas da Corte; no fim do século   XIX,   há um temor dessa

mobilidade contínua chamado de "medo branco de almas negras" por Sidney Chalhoub8.   Esta população de escravos e libertos, entre 1830 e

1870, institui o processo de formação da cidade-negra. No censo de

1849 o Rio de Janeiro tem a maior população escrava negra das Amé-

ricas: A preocupação com a segurança se traduz em todos os níveis. O

medo branco faz com que o temor à insurreição seja mais sólido que a

 própria perspectiva de insurreição. .Mas a população é incansável em transformar a Cidade-negra em'

esconderijo; a cidade que esconde é a cidade que liberta. Deixa de exis-

tir a cidade escravista' disciplinada e se confundem os escravos, os h-'

vres e os libertos. As elites contrapõem às redes de solidariedade teci-

das na cidade negra as estratégias de suspeição generalizada (cidade-ar-.

madilha)9 As políticas urbanas republicanas, em conjunto com as po-líticas diretas de controle social, atacam a memória histórica dessa ci-

dade-esconderijo, desmontando cenários de significados tão penosa-

mente construídos.

 No Rio de Janeiro as intervenções urbanas têm uma concepção

higienista. Pereira Rego propõe uma cirurgia ria cidade com ~sv~zia-

mento do centro e remoção dos bairros pobres para áreas penféncas.

Rodrigues Alves desenvolve a primeíi'ãtnfervençãà sistemática do Es-

tado sobre espaço urbano no Rio de Janeiro, demolindo milhares de

cortiços para grandes obras urbanísticas.

O final do século   XIX   e o começo do século   XX   transformam o

Rio de Janeiro em palco de várias manifestações populares. Nós não

deixamos de criar o nosso "Haussmann tropical"lo Pereira Passos, ins- pirando-se no modelo de Paris como metrópole ind~s~al, empreende

um conjunto de mudanças urbanas, baseadas nas eXlgencIas da.ordem

sanitária e da circulação urbana.   Éuma luta que se dá entre dOIScam-

S Sidney   Chalhoub.   Visões da liberdade.   São   Paulo, Companhia das Letras, 1990.

9  i dem .

10  Jaime Benchimol.   Pereira Passos: um Haussmann tropical.   Rio de Janeiro,   Seco

Municipal de Cultura. 1990.

39

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 pos: de um lado "o progresso, a civilização e a regeneração", do outro

a "cidade atrasada, suja e doente". Institui-se o "bota-abaixo" e sur~em

os deserdados da urbe renovada. Uma grande força segregadora se ar-

ticula através de um conjunto notável de obras e regula~entações jurí-

dIcas, executadas nos moldes de uma operação rrtilitar. E reduzido a es-

combros o suporte material da trama de relações engendradas na desa-

gregação do escravismo. A urbanização do Rio de Janeiro (e do Br~il)

é o retrato fiel de sua visão de cidadania: a exclusão permanente dasclasses subalternas. "

. O trabalho que desenvolvi junto à coordenação de segurança pú-

 bhca durante o governo Leonel Bnzola (1991-1994), o dia-a-dia letal das

favelas, a implantação dos Centros Comunitários de Defesa da Cida-

dania, a desolação que o comércio varejista de drbgas e'a barbárie que

este merca~o desencadearam me fazia sempre refletir:   COq10   alguém

 pode acreditar que esses meninos são os vilões da nossa história?

Como não enxergar nessas comunidades as principais vítimas de uma

modernidade exterminadora e segregadora, cuja dinán\ica tenta destruir 

as redes de solidariedade tão cuidadosamente mantidas em séculos de

colonização e barbárie?

Essa perspectiva me conduzia para os objetivos da minha pes-: quisa: analisar a criminalização por drogas da juventud y   do Rio de Ja-

I   neiro, entre 1968 e 1988, analisar historicamente a cons'trução do este-

" I "   reótipo do novo "inirrtigo interno" (bandidos, traficantes) e do processode ideologização que disserrtina o "medo branco" na sociedade brasilei-

ra, e mapear as mudanças nas comunidades faveladas/periféricas' pro-

vocadas pelo recrutamento dos jovens para o tráfico de drogas, a partir 

da consolidação da cocaína no mercado internacional na conjuntura

considerada.   " I

Minha hipótese central de trabalho foi que na transição do auto-

ritarismo, da ditadura para a abertura democrática (1978-1988) houve

uma transferência do "inimigo interno" do terrodsta para o traficante.

Todo o sistema de controle social (incluindo ai suas instituições ideoló-gicas, como os meios de comunicação de massa) convergiu para a cpn-

fecção do novo estereótipo. O inirrtigo, antes circunscrito a um pequeno

grupo, se multiplicou nos bairros pobres, na figura do jovem traficante.

Este jovem traficante, vítima do desemprego e da destruição do

Estado pelo aprofundamento do modelo neoliberal, é recrutado pelo

 poderoso mercado de drogas. Com a consolidação da cocaína no mer-

40

cado internacional, o sistema absorve o seu uso mas criminaliza o seu

tráfico, efetuado no varejo pela juventude pobre da periferia carioca. A

convivência cotidiana com um exército de jovens queimados como car-

vão humano na consolidação do mercado interno de drogas no Rio de

Janeiro, a aceitação do consumo social e da cultura das drogas paralela

à   demonização do tráfico efetuado por jovens negros e pobres das fa-

velas, tudo me remetia   à   gênese do problema que hoje vivemos.

A cocaína se consolida no mercado internacional e no Brasil na

década de setenta, junto com o fortalecimento, a nível planetário, do

neoliberalismo. Importante do ponto de vista cultural,   high-tech   e nar-

císica, a cocaína movimenta um mercado paralelo milionário, cujos cir-

cuitos de comercialização e produção são controlados pelos países cen-

trais. Num mundo onde nenhuma lei vale mais do que a da oferta e da

demanda, a cocaína transforma-se numa mercadoria altamente valoriza-

da. O sistema convive com seu uso social, sua alta lucratividade, mas

desenvolve um discurso moral esquizofrênico que demoniza a parcela

da população atirada   à  sua venda pelo mercado de trabalho excludente

e recessivo. A manutenção da sua ilegalidade aumenta sua lucrativida-

de e reduz   à  condição de bagaço humano uma parcela significativa da

 juventude pobre de nossas cidades.

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T I -   Criminologia e História

1. A função oculta do sistema penal

Para a compreensão deste brutal processo de criminalização re-corri primeiramente a Ruschell, por ser o primeiro a analisar historica-.

mente a relação entre as condições sociais, a estrutura do mercado de

trabalho, os movimentos da mão-de-obra e a execução penal. Ao

considerar a história da execução penal, distinguem-se diferentes

sistemas punitivos estritamente vinculados às fases do desenvolvimento

econômico.Rusche analisa a transformação da pena pecuniária a partir da

Alta Idade Média, de pena privada em instrumento de dominação soci-

al fundado nas necessidades dos senhores feudais de incrementar suas

funções disciplinares e dos interesses decorrentes da lucratividade da

administração da justiça criminal.

Quando, a partir do século XV, pioram as condições de vida dossetores populares, começam a surgir intensos conflitos sociais; a expul-

são'de mão-de-obra do campo ameaça os artesãos nas cidades, surgem

as hordas de vagabundos, mendigos e delinqUentes, nos limites

urbanosl2•   A mão-de-obra torna-se abundante, o capital perde seu

 papel secundário para transformar-se na força'motriz da economia. A

transição para o capitalismo conduz a um direito penal orientado direta-

mente contra estes setores populares:--A-criação de um direito eficaz

 para combater os delitos contra a propriedade toma-se a preocupação

central dá burguesia urbana ascendente, A preocupação com a

administração da justiça faz com que surja uma administração

centrajizada por uma burocracia educada pelo direito romano, Aprofun-

dam-se as diferenças de execução das penas por classe; quanto maisempobreciam as massas, mais severas as penas. As execuções,

mutilações e açoitamentos se convertem em regra. Impossibilitados de

sofrer penas pecuniárias, os pobres emprestam seus corpos para o

11  George Rusche e Quo Kirchheimer.   Punição   t!   estrutura social.   Rio de Janeiro. Insti-

tuto Carioca de Criminologia!Freilas Bastos.1999 p. 114.12   ~nrameticulosa informação acerca do papel do controle penal desses pobres na criação

moderna da pena de pris ão. c f . Dario Mel os s i e Mass imo Pavari ni.   Cdrctl    y   fdbrica.

Ml!xico, Sigla XXI, 1980.I

43

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espetáculo do horror. Para Rusche, o significado da pena de morte se

transforma em meio de eliminação de indivíduos. Todo o sistema punitivo

da Baixa Idade Média demonstrava a abundãncia de mão-de-obra e a re-

dução do valor da vida humana. A caça às bruxas toma proporções epi-

dêmicas. Bruxas, judeus e criminosos satisfazem o desejo de crueldade das

massas. Impera a convicção oficial do caráter dissuasivo das execuções

 públicas. O sistema expressa o seu sadismo em um círculo vicioso em que

os "fora-da-lei" são mutilados e marcados para permanecerem excluídos

da sociedade.

Já no [mal do século XVI, com o surgimento do mercantilismo, os

métodos punitivos se transformam diante da possibilidade de exploração

da mão-de-obra através da pena de prisão. O crescimento demográfico da

segunda metade do século XVI não fôra capaz de cobrir as necessidades

de emprego dos novos tempos. A escravidão nas galés, a deportação e a

servidão penal colocam esta mão-de-obra escassa à disposição do aparato

administrativo. Durante o século XVI, na Europa, enfatizou-se a çiistinção

entre mendigos aptos e inaptos para o trabalbo, distinção que criminalizará

o controle social dos habilitados recalcitrantes. Se na época de abundância

de mão-de-obra os mendigos são considerados criminosos, o final do sécu-

lo XVI, de escassez, impõe mudanças no tratamento dos pobres. Multipli-

cam-se as leis que punem os trabalhadores aptos que deixaram seu traba-

lho para mendigar, já que os trabalhadores se transfOrmavam periodica-

mente em mendigos, quando desejavam descansar das penosas condiçqes

de trabalho da época.

 Novas mudanças nas condições econômicas gerais transfor-

mam as casas correcionais do final do século XVII. Nessas unida-

des aproveitava-se a mão-de-obra disponível absorvendo-a nas ati-

vidades econômicas. A força de trabalho dos reclusos era utilizada

 pelas próprias autoridades ou alugada aos empresários privados. As

casas de correção tinham uma administração lul:rativa e este argu-

mento foi decisivo na substituição da pena de morte pelo confina-mento. A relutância em trabalhar era punida mesmo ao nível inter-

no, regulamentar das casas de correção, como na hipótese de ne-

gar-se ao trabalho P?r três vezesl3.   As casas de correção eram imo:

 portantes para o conjunto da economia; os baixos salários e o ades- :

tramento dos trabalhadores desqualificados deram uma importante   i

contribuição ao surgimento do modo de produção capitalista.   J

--.-

13   MeJossi e Pavurini, op.   c ito

44

A forma precursora da prisão moderna está estritamente ligada às

casas de correção e ao seu modo de produção. O seu objetivo principal

era a exploração racional da força de trabalho e não a produção. Mas a

necessidade de sustentar o abastecimento da força de trabalho para o

Estado complicava-se com a competição dos empresários privados. As

condições de vida nas prisões eram indescritíveis, mas sua administração

foi um negócio lucrativo até o final do século xvrn. .As raízes do sistema carcerário se encontram no mercantilismo,

mas sua promoção e elaboração teórica foram tarefas do Iluminismo.

É nesta época que se desenvolve a teoria do direito penal. Surge um

m ov im en to d ir igi do c on tr a a i nd et erm in aç ão d as p en as e a

arbitrariedade das cortes penais (Montesquieu e Beccaria). Os

 pioneiros da reforma penal estavam preocupados em limitar o poder 

sancionador do Estado, formalizando o direito processual e matenal.

Hobbes já havia efetuado a formulação do conceito de culpabilidade

 penal pela conexão rigorosa de um fato juridicamente definido. A idéia

de proporcionalidade se concretiza no reconhecimento legal da grada-

ção ela pena segundo a gravidade do delito. A privação de liberdade é

considerada como uma conseqüência natural da violação do direito de

 propriedade; a propriedade e a liberdade pessoal têm o mesmo valor. -,

O uso tradicional da pena de morte baseada no terror não serveli

mais para defender os proprietários, pois incita as classes subalternas.   l iA diminuição da severidade das penas se converte em medida prática'   I

de defesa contra a revolução social. Marat, ,?m seu  Plan de Législa-tion Criminelle14,   recupera Beccaria, ao reduzir a severidade penal

 para os atos não intencionais ou resyltantes da pobreza. Mas os legis-

ladores revolucionários não deixaram-ae desenvolver um direito penal

 baseado na igualdade fictícia entre ricos e pobres.

O movimento pela reforma do direito penal assume grande impulso

durante a segunda metade do século   xvrn,   mas a base daquele sistema

 punitivo, a necessidade de força de trabalbo, desaparecia simultaneamente.A organização da indústria cria novas condições no mercado de

trabalho. Na Inglaterra, a classe trabalhadora vive o pior estado de mi-

séria de toda sua história. Graças a um exército industrial de reserva já

não eram necessárias as penas selvagens para disciplinar as massas. O

mercado se encarrega do aumento da opressão e da diminuição do ní-

vel geral dos salários.

14   Jean-Paul Maral.   Ptan de  législatjon   criminelle:   texte   conforme   à  Z 'edi l ;on   de 1790,

Paris, Aubier Montaigne, 1974.

45

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 Na primeira metade do século XIX, a poss ibilidade di: rebeldi acomeça a assombrar as elites. O número de delitos contra a proprieda-de aumenta desde o final do século XVIII. "A classe dominante sesentiu tentada a retomar os métodos pré-mercantilistas para o tratamen-to da criminalidade, aumentando as demandas por penas mais severase a crítica do uso liberal da prisão como substituição das formas puni-tivas tradicionais"15. Voltam os castigos físicos, as mutilações, o con-

fisco da propriedade e a perda dos direitos civis.As necessidades da burguesia modelaram amplamente as fun-

ções de defesa social do direito penal, e mantiveram ai' antigas ~iferen-.ciações de classe da legislação penal. Eliminando 6s elementos subje-tivos da relação legal entre o fato particular e a norma geral, o idealis-mo prepara o caminho para a concepção liberal do direito penal.. A prisão se converte na pena mais importante de todo o mundo oci-

dental. Essas penas tomaram diversas formas e gradaçÕes de acordo coma gravidade do delito e com a posição social do conden~do.  O aumento donúmero de condenações levou a uma superpopulação das prisões, ao mes-mo tempo em que o governo reduzia o total dos gastos com o sistema. Re-latórios da época concluemgu~ 1l.~21)<!içã9necessária para a reinserçãosocial do detento é a submissão incondicionaí à au(oridade16:As.prisoes

 passãiamaserrégidas pela ordem e dEcrpl ina nU1itar.Anova situação decompetição de mercado transformou o trabalho dos presos em ameaça aostrabalhadores livres e aos empresários.

Sem a utilização da mão-de-obra presidiária, os efeitos dissua-sivo-repressivos assumem o primeiro plano quanto à finalidade das pe-nas.   O trabalho nas prisões se converte em método de tortura, medo eterror.   O princípio básico das penas detentivas era de que deveriamconter uma certa quantidade de dor e privação.

O século XIX presenciou a difusão do isolamento celular na Eu-ropa. Este isolamento era elemento valioso de disciplina.   O novo siste-ma estava concebido arquitetônica e administrativamente para manter o detento submetido   à  mais completa solidão. Foi criado também, na

Inglaterra, uma espécie de moinho humano, que a partir de 1898 refor-çava a crueldade e a monotonia na prisão.

l~Rusche e Kirchheimer, op. cit., p. 114.

16   Foucault retomará esta questão desenvolvendo a análise do conceito de disciplina em

Vigiar e punir.   Petrop6lis, Vozes, 1977.

46

A atitude liberal e progressista que influenciava Von Lizst eoutros reformadores encontrou sua máxima expressão na filosofia

 positivista da segunda metade do século XIX.   O método científicoadotado pelos novos reformadores criO? a ilusão de q~~ um siste~a

 punitivo é a conseqüê~cia ~e ,uma teona pena~ espeCIfIca, atnbum-do à teoria um poder Imagmano sobre a realIdad~. Na luta ~ontraos resíduos do feudalismo e da burocraCIa absolutIsta consolIda-sea independência do poder judiciário e a racionalização do di,reito

 penal.

A necessidade de restituir a maior quantidade possível deforça produtiva   à   sociedade abriu espaço para o desenvolvim~ntoda  probatipn   e das penas pecuniárias, instituindo a responsabilIda-de social. 'no fenômeno criminal. Do final do século XIX até o co-meço do século XX a propensão a subst~tu!r a.p!isão por outrasformas pujJitivas se deu paralelamente   à   dlmmUlçao do tempo e daseveridade das penas em toda a Europa. Mas os cnmmólogos destanova Escola Reformista conservaram a velha noção segundo a qualo nível de vida nas prisões deve ser inferior ao nível mínimo da po-   1

 pulação livre. _ .., No século XX se consolidam as condenaçoes condICIOnaIS e

o uso mais difundido das penas pecuniárias.   O   trabalho nas prisõescbntinuou como I1roblema, apesar de ter perdido .sua sig~ificaçãoeconômica nos países com alto grau de desenvolvimento mdustnalcapitklista.   O   pagamento de um salário p:lo trabal~o na pri~ão en-frentou a mesma oposição que a produçao carcerana rentavel.. Osubstitutivo dessa contrapartida salarial foi a introdução de um SIS-tema gradual pelo qual a quantidade de trabalho realizado possibi-litava a diminuição da duração da-eendenação.-

Mas, de uma forma geral, permanecem em níveis baixos ascondições de vida nas prisões. Nas formulações teóricas modernasde reforma carcerária, o sistema celular é substituído pelo gradua-lismo da execução; a disciplina passa a ser mantida através de estí-mulos positivos, como a redução da pena em fun~ã? de bom cmn-

 porlamento. Embora na teoria os aspectos pedagoglcos reeducatl-

vos passem ao primeiro plano, a prática dos tempos modernos (osinvestimentos requeridos, a dificuldade para encontrar mercados ea pressão da opinião pública) não permitia a implantação de qual-quer programa educacional efetivo. Desprovido de qualquer caráter 

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educativo, o mais importante do sistema moderno gradual é a disci- plina, a reprodução de uma atitude completamente conformista   I?

 Nos novos tempos o Estado aumenta sua intervenção na esfera in-dividuai criando organismos, normas, regulamentos. Os detalhes mais  m -

timos da vida do indivíduo se encontram sob intensa vigilância. Ao detentoimporta obedecer cada disposição administrativa. A prática da execução

 penal passa a reger-se por regulações administrativas que podem ser inter- pretadas arbitrariamente. A burocratização da vida cotidiana e as limitaçõessobre a liberdade pessoal são características da pena de prisão. Nenhum

 programa de reforma se dispôs a abandonar o princípio segundo o qual ascondições de vida dos prisioneiros devem ser inferiores às das classes mais

 pobres e de que os efeitos dissuasivos da pena seriam mantidos dessa ma-neira. Historicamente, repetem-se os poucos resultados obtidos em todosos programas de reabilitação. Como no tempo das mutilações, a prisãomarca o excluído que ao nela entrar foi duplamente excluído, criando umcírculo vicioso reificador da segregação e da estigmatização.

2. As ilegalidades populares

É a partir da relação entre os vários regimes punitivos e os sistemasde produção analisada por Rusche que Foucault disseca a "economia po-lítica do corpo" e a "microfísica do poder". Para ele, esta microfísica, postaem jogo pelos aparelhos e instituições, supõe que o poder nela exercidoseja concebido como estratégia. As relações que se aprofundam dentro dasociedade não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou nasfronteiras de classe, mas numa rede de relações sempre tensas que apare-cem sob a forma de disposições, manobras, táticas, técnicas e funções.

 Na França, a ordenação de 1670 regeu, até a Revolução, as for-mas gerais da prática penal que continham um rígida hierarquia de casti-gos. Foucault se refere ao suplício como uma técnica que repousa na "artequantitativa do sofrimento"". O suplício faz parte de um ritual organizado

 para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune.

17  É   a partir desse estudo que Foucault desenvolve a sua   teoria   sobre os corpos dóceis. Rus-

ehe afirmara em seu livro (p.126) que "a conclusão a que se  c h e g r 1 t ( . . . )   é que a condição ne-

cessária para a reinserção social do detento ê a submissão incondicional   à   autoridade, posição

que permaneceu praticamente inalterada nos programas de reformas até os nossos dias".

1 8   Michel Foucault, op. cit.. p. 34.

48

,.

 No ritual do suplício,   O  corpo do condenado é uma peça essenci-al. O papel da confissão, da tortura e do interrogatório funciona "nessaestranha economia em que o ritual que produz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição"   19  A execução pública faz do culpa-do o "arauto" de sua própria condenação, a cerimônia punitiva tem queser aterrorizante. O suplício tem uma função jurídico-política, é um ce-rimonial que reconstitui a soberania lesada. A execução pública é muitomais uma manifestação de força do que uma obra de justiça e manifes-ta o poder sem medidas do soberano.

A partir do século XVIII estas cerimônias tomam-se perigosas; asolidariedade popular com os delinqüentes abre caminho para os reforma-dores do século   xvm e XIX. Na Época das Luzes é preciso que a justiçacriminal puna em vez de vingar. Durante todo o século xvm uma nova es-tratégia é formada para o poder de castigar, e a reforma retoma politica-mente essa estratégia. Seus objetivos principais são: fazer das punições eda repressão uma função regular; não punir menos mas punir melhor; einserir mais profundamente no corpo social o poder de punir.

A pressão sobre as ilegalidades populares se torna, neste mo-mento, um imperaiivo essencial. Criou-se, no século XVIII, umariova

economia e uma tecnologia do poder de punir na reforma penal. Umsistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir dife-rencialmente as ilegalidades e não para suprimi-Ias totalmente. O direi-to de punir desloca-se da vingança do soberano para a defesa da socie-dade. A necessidade de uma classificação paralela dos crimes e doscastigos e a necessidade de individuali.zação das penas aparece comouma economia calculada do poder de punir.

Mas é analisando a disciplina que.Eoucault avança em sua análi-se do sistema penal. Para ele, as disciplinas se tomaram fórmulas geraisde dominação durante os séculos XVII e XVIII. São elas "métodos que

 permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizama sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de doci-

lidade-utilidade"2o. Para o autor, essas disciplinas definem um novomodo de investimento político e constroem a microfísica do poder quese amplia em todas as relações sociais a partir do século XVIII.

A disciplina produz uma "arte de distribuições". Para isso utilizavárias técnicas, determinando lugares individuais, tornando possível o

19   idem.   p : 41

20   idem, p.126.

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controle de cada um e o trabalho de todos. Cria espaços complexos na

arquitetura e nos níveis funcionais e hierárquicos. NaS fábricas, escolas,

asilos e prisões, o aparelho disciplinar busca a perfeição através da

constituição de um "olhar" que tudo vê permanentemente. O século

XVIII desenvolve as técnicas de vigilância hierarquizada, contínua e

funcional, necessárias à integração do sistema.

A disciplina mantém uma maneira específica de punir; nos siste-

mas disciplinares funciona um pequeno mecanismo penal, a sanção

nonnalizadora que cria "pequenos tribunais" em todas as instãncias ju-ridicas e não juridicas. No fim do Antigo Regime, a vigilância e a regu-

lamentação tomam-se grandes instrumentos de poder. A teoria política

dos séculos XVII e XVIII traduz   O  crescimento comercial que represen-

ta uma associação contratual de sujeitos juridicos isolados, mas, simul-

taneamente, desenvolve uma técnica para transfonnar os indivíduos em

"elementos correlatos de um poder e um saber'2i: um poder que produz

realidade. No começo do século XIX iniciam-se nos asilos, prisões, colégi-

os e manicômios os métodos de "repartição analítica" do poder. Desen-

volve-se um conjunto de técnicas e instituições que medem, controlam

e corrigem os "anormais". Bentham, com seu pan6ptico, construíra ol

modelo arquitetônico deste princípio cujo principal efeito é "induzir no   Idetento um estado consciente e pennanente de visibilidade que assegu-   i

ra o funcionamento automático do poder"22. Modelo generalizável de/'

funcionamento definidor das relações de poder com a vida cotidiana, o

 pan6ptico sintetiza o processo ocorrido ao longo dos séculos XVII e

XVIII: a formação da sociedade disciplinar. A extensão dos métodoS

disciplinares, referida a uma ampla transfonnação hist6rica, está asso-

ciada à "decolagem econômica do Ocidente" gerada pela acumulação

de capital. Este processo resultou numa mudança em relação às for-

mas tradicionais de poder, através da implantação de uma "tecnologia

minuciosa e calculada de sujeição".A prisão que se consolida no fim do século XVIII e no princípio _.\

do século XIX se constitui num aparelho disciplinar exaustivo. Conver- .te-se em um local de constituição de um saber que regula a administra-

ção penitenciária e que transforma o infrator condenado em

delinqüente. Os discursos penais e psiquiátricos se confundem para es-

2 1 i d e m.   p.   17 2.

22   idem, p.l77.

50

:.

tabelecer redes de causalidade entre a biografia do indivíduo e uma sen-

tença de punição-cprreção.

A critica das prisões, contemporânea à sua consolidação, já for-

mulara algumas análises que se repetem até hoje (as prisões não dimi-

nuem a taxa de crirninalidade, provocam a reincidência, fabricam delin-

. qüentes, etc.). O aparente fracasso esconde o cinismo do sistema penal

e o seu principal objetivo: organizar a transgressão das leis numa tática

geral de sujeições.

O esquema geral da reforma penal aplicado no fim do século

XVIII se dirige ao conjunto de ilegalidades e conflitos que provoca a

queda   doAncien Régime. A passagem do século XVIII para   O   XIX,

com seus novos conflitos, revoluções, enfim, seu conjunto de ilegalida-

des populares, faz com que a prisão, ao fracassar aparentemente, esta-

 beleça uma ilegalidade visível que é marcada; é rebelde e dócil ao mes-

qlO temp? ~ prisão pennite diferenciar, arrumar e controlar as ilegali-

ddades;a JUStIçase converte em instrumento para   O controle diferencial

as ilegalidades populares.

3. Criminologia crítica

Lola Aniyar de Castro, crimin610ga e militante pelos direitos

humanos da Venezuela, sintetiza os grandes cortes na criminologia

do século XX23. O aumento da delinqüência juvenil nos Estados

Unidos entre   1910   e  1925,   a partir das migrações urbanas e dos

guetos formados pelo processo de industrialização, forçou o apare-

cimento da criminologia sociol6gíeii-n.orte-americana da escola de

Chicago, profundamente ligada à prática penal, com estudos e ex-

 peri~~cias. Mas o primeiro ponto de ruptura com a criminologia

~radlclOnal se dá entre os anos quarenta e cinquenta, com a escola

mteracionista que "insistiu numa atitude não valorativa diante desse

tipo de condutas (desviantes), e também na necessidade de

 prescin?ir dos estere6tipos legais representados pelas codificações

respectIvas( ...) Esta escola deixou estabelecido, finalmente, que a

causa do delito é a lei, não quem a viola, por ser a lei que transfor-

ma condutas lícitas em ilícitas"24. A conjuntura política dos anos

23   Lola Aniyar de Castro.   Criminologia da  r~ação social.   Rio de Janeiro Freitas Bastos1978. • •

24   idem.   p.  97.

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sessenta e setenta determina essa ruptura definitiva com a crimino-logia tradicional. Os interacionistas já haviam questionado o papeldo controle social nas sociedades, mas a partir da política exterior norte-americana, do nascimento das contraculturas, das rebeliõe~: 1 1 0lí-ticas nas prisões e nas universidades, a criminologia passa de interaci-onista a radical. Surge na Europa e nos Países Baixos a tendência àdescriminalização, liderada por Hulsman25 Se os interacionistas se in-teressavam pela administração da justiça e pela sociologia do direito

 penal, os teóricos radicais se concentram na sociologia do conhecimen-to e na práxis. Os dois primeiros movimentos radicais aconteceram emBerkeley (EUA) e na Inglaterra. Altamente politizado, o grupo deBerkeley se opõe aos objetivos da Escola de Criminologia de Chicago:formação de quadros na luta contra o crime. Para Castro, uma dasabordagens mais importantes do grupo de Berkeley foi a redefinição doobjeto da criminologia. Para eles "o criminólogo seria mais um protetor dos direitos humanos do que um defensor da ordem"26.

O grupo inglês denominado "A National Deviancy Conference"trabalha contra o positivismo, a posição reformista e convencional e o

 pragmatismo da criminologia européia. Em 1973 realiza-se em Florença a primeira reunião do Grupo Europeu para o Estudo do Desvio e do ControleSocial. Quando o mesmo grupo se reúne em Amsterdã, em 1975,já contacom mais de quatrocentos membros. Em 1975 aparece a revista  La Ques-

tione Criminale,  editada pelo "grupo de Bolonha" (Baratta, Bricola, Pava-rini, Melossi e outros)27,que começa a usar o conceito de "política criminal"em oposição ao de política penal.

2~Cf. Louk Hulsman e Jacqueline Celis de Bemat.   Sistema penal   y  seguridad    ciu d ad alla,'

 hacia una alternativa.   Barcelona, Ariel. 1982; e Louk Hulsman.   Penas perdidas:o sistema

 penal em questão.   Niterói, Luam, 1993.26 Lola   Aniyar de Castro, op. cit., p. 143.

27   idem,   p.   144. Esses autores individualmente produziram várias obras naquele período:

Baratta.   Marginalidad social   y   justicia   (Caracas 1976);   Sociologia guiridica e sociologia

 dei diritto penale   (Milão, 1972);   Criminologia Crítica"e Politiea Criminaie Alternativa

(Bologna 1977) ; Bricola.   Criminality and Economic Condition   (Londres, 1969);   Per una

 poUtica criminale dei movimento operaio   (Bolonha, 1975); Massimo Pavarini.   Tema di

economia politiea delta pena:   i raporti tra struuura economia e lavara penitenziario alte

 origini dei sistema capitalistico   (Bolonha, 1976): Dario Melossi.   Instituzioni di contralto

 sociale e organizzacione capitalistica dellavoro. Alcune ipotesi di rieerca   (Bolonha,

1976).

52

É a partir destes movimentos radicais que se coloca em pauta aquestão do método na criminologia. Para Castro, "se dá voz de alarmesobre um problema científico fundamentai, que teria sido sempre escamo-teado em nossa disciplina, o da teoria do conhecimento"28.

A criminologia supera então a metafísica idealista e passa alidar com as três características básicas do conhecimento, que é

 prático, social e histórico. Esta superação desmantela qualquer visãoque queira analisar o crime fora do contexto geral da sociedade.

Lola Aniyar de Castro denominou "criminologia da reaçãosocial" o conjunto de concepções criminológicas das teorias da rotula-ção (Becker e outros) do estigma (Goffman), do estereótipo (Chapman)e da criminologia cótica. O conceito de criminologia cótica é utilizado a

 partir do livro   Criminologia crítica,   de Taylor, Walter e Yong. Estaobra é um marco na criminologia com diversos artigos de criminólogosingleses e americanos que têm como base teórica comum as categoriasdo materialismo histórico. Os paradigmas funcionalistas são superadosaqui pela perspectiva do conflito, para a extensão e ambigüidade dosconceitos de criminali~ação, dirigidos aos grupos mais vulneráveis deuma sociedade medida em classes.

 Na América Latina, a Criminologia Cótica encontra um campofecundo, no final dos anos setenta e durante os anos oitenta, seja pelavulnerabilidade dos mesmos contingentes de despossuídos, seja pelociclo das ditaduras militares que oprimiam o continente. Destacam.-seassim Rosa dei Olmo, Eugênio Raúl Zaffaroni, Errulio GarCÍa Mendez,

 Nilo Batista, Maria Lúcia Karam, Augusto Thompson, Gisálio CerqueiraFilho, Gizlene Neder e outros. ~ .

O argentino Zaffaroni, jurista contemporãneo, analisa em seulivro   Em busca das penas perdidas   a situação crítica do sistema

 penal latino-americano, com um discurso jurídico-penal "esgotadoem seu arsenal de ficções gastas, cujos órgãos exercem seu poder 

 para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa"(realidade letalj29. Para o autor, o discurso jurídico-penal latino-americano é falso, já que sua planificação não dá conta da realidadeoperacional de nossos sistemas penais.

[

 A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições, . - \ J   para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a con-

---

28   Cf. Laia Aniyar de Castro, op. cit., p. 96.

29 Eugênio   Raúl Zaffaroni.   Em busca das penas perdidas.   Rio de Janeiro, Revan, 1991, p. 13.

53

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centração de poder, a verticalização social e a destruição das rela- ções horizontais ou comunitárias não são caracterfsticas conjuntu-

 rais, mas estruturais-do exercício de poder de todos os sistemas pe-

 nais 30 .

Utilizando amplamente o exercício do poder de seqüestro e estig-matização, o verdadeiro e real poder do sistema penal não é o repres-sor mas o exercício positivo, configurador, simbólico. Existe uma re-

núncia expressa   à  legalidade penal através de um controle social mili-tarizado e verticalizado sobre os setores mais pobres da população ousobre os dissidentes. Esse poder configurador é também repressivo aointeriorizar a disciplina, conformando uma sociedade submetida a umavigilância interiorizada da autoridade. É fundamental o papel dos meiosde comunicação de massa na introjeção dessa ordem verticalizante.Esta vigilância disciplinada, camuflada, não é percebida em nível cons-

ciente.A disparidade entre o exercício do poder programado e a capa-

cidade operativa das instituições é enorme, e é um dos principais em-

 bustes do sistema, que "pretende dispor de um poder que não possui,ocultando o verdadeiro poder que exerce,,3l.O sistema penal está estru-

turalmente montado para que não opere a legalidade processual e paraexercer seu poder com o máximo de arbitrariedade seletIva dirigida aossetores vulneráveis. Na América Latina, a própria lei se ocupa de re~nunciar   à   legalidade concedendo ampla margem de arbitrariedade a

suas agências.Ao falar da violência operativa dos sistemas penais latino-ame-

ricanos, Zaffaroni diz que somente o próprio exercício do poder podetentar neutralizar a situação crítica na América Latina.  O  saber jurídicoe a comunicação de massas se esforçam em inventar uma realidade quenão permite que a percepção direta dos fatos deslegitime o sistema, en-tre esses o "fato da morte", cuja magnitude caracteriza o exercício de

 poder dos sistemas penais. Mas o ponto nevrálgico desta crítica desle-

gitimadora é que esse exercício de poder não se dirige   à repressã\l dodelito mas  à   contenção de grupos sociais bem determinados.

Para o autor, o desprestígio dos discursos penais latino-ame-

ricanos se dá em função de seus vínculos ideológicos genocidas, deraiz positivista. Trabalhando em cima da análise da deslegitimação

30   idem,   p.   15.

31   idem.   p.  26.

54

do discurso jurídico penal efetuada por Marx, pelo interacionismo -simbólico e por Foucault, Zaffaroni estende o conceito foucaultianode "instituições de seqüestro" (prisões, escolas, asilo, etc.) para acolônia (região marginal) em si. Sendo assim, a região latino-ame-ricana se constituiria numa gigantesca "instituição de seqüestro".

Trabalhando os conceitos utilizados por Darcy Ribeiro (atua-lização histórica e aceleração evolutiva), o autor descreve o siste-ma de controle social da América Latina como produto da transcul-

turação protagonizada primeiro pela revolução mercantil, depois pela revolução industrial e agora pela revolução tecno-científica.   Omarco desta transculturação e deste sistema de controle social temsido, século após século, o genocídio. Nessas condições, as prisões(du pequenas instituições de seqüestro) na América Latina não têmas mesmas funções das prisões do Centro. Aqui o modelo ideológi-co do panóptico de Bentham é substituído pelas teorias de inferio-ridade biológica de Cesare Lombroso. A prisão dos paíse~ periféri-cos é uma instituição de seqüestro menor, dentro de outra muitomaior, um   apartheid   criminológico natural. Em nossa região o sis-tema penal adquire características genocidas de contenção, diferen-tes das características "disciplinadoras" dos países centrais.

. Submetido a um processo de atualização histórica incorpora-llva resultante da passagem   à   modernidade, o continente implanta

um controle social punitivo transculturado, funcional para os obje-tIVOScolonialistas e neocolonialistas, e basicamente genocida e et-nocida. Na atual conjuntura de revolução teçno-científica, é notória.a posição deteriorada da América Latina em termos de intercâmbio.O   nív~l de endividamento de nossos países fa~ com que qualquer 

 benefICIO da balança comercial s~sorvido pelo centro, impe-dmdo a acumulação de capital produtivo.   O   enfraquecimento doEstado com o colapso das políticas públicas, o aumento da desocu-

 pação e do subemprego, o rebaixamento dos salários e da renda

 per capita,  enfim, todo este quadro neoliberal afeta principalmente

as classes urbanas marginalizadas, aumentando os níveis de pobre-za absoluta. "Desta nova marginalização nutre-se, para sua reprodu-ção de clientela, o sistema penal latino-americano, selecionando

 prisioneiros ou fuzilados sem processo"32.

J2  idem,   p.   15.

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Zaffaroni afirma que as projeções para o continente latino-

americano são sombrias. Mantido o atual quadro de cortes nos gas-

tos públicos em saúde e educação, calcula-se que no ano 2000 ha-

verá uma massa de 220 milhões de habitantes com menos de 17

anos33, com piores condições gerais de vida. Por outro lado aumen-

ta percentual mente o número de presos sem condenação na re-

gião. Estas massas urbanas empobrecidas num quadro de redução

da classe operária, de pobreza absoluta, sem um projeto educacio-nal, sem condições sanitárias, sem moradia, não encontra no modelo

neoliberal respostas alternativas a um controle pelo terror do Esta-

do; um sistemá penal que reprime através do aumento de presos

sem condenação, dos fuzilamentos sem processd, da atuação dos

grupos de extermínio. "A projeção genocida de um tecno-coj(mialis-

mo correspondente   à   última revolução (tecno-científica) faria em-

 palidecer a cruel história dos colonialismos anteriores,,34.

É  sobre os setores mais vulneráveis da população que

recai a violência cotidiana. Os sistemas penais latino-america-

nos exercem seu poder de maneira muito mais configuradora do

que repressiva. Os órgãos judiciais são militarizados, burocrati-

zados e discricionários e as agências não judiciais atuam   à   mar-gem de qualquer controle, impondo penas, violando domicílios,

fichando a população, etc. A qualquer ameaça de diminuição

deste poder, os meios de comunicação de massa se encarre:glu)"l

de difundir campanhas de lei e ordem que aterrorizam a popula-

ção e aproveitam para reequipar para os "novos tempos". Os

meios de comunicação de massa, principalmente a televisão,

são hoje fundamentais para o exercício do poder de todo o sis-

tema penal, seja através dos novos seriados, seja através da

"invenção da realidade" para "produção de indignação moral",

seja pela fabricação de estereótipos do criminoso. "E, como a

cada estereótipo deve corresponder um papel, as pessoas assim

selecionadas terminam correspondendo e assumindo os papéisque lhes são propostos,,35 Na América Latina este estereótipo

é associado a essa jovem massa urbana marginalizada.

33 o  autor se refere aqui aos dados economicos de   Ricardo Lagos em   "E/eclos sociales de

la crisis economica"   (Cepal, 1986). Idem, 121.

34   idem, p.122.

3$  idem,   p.   130.

56

A capacidade reprodutora de violência dos meios de comunica-ção   é enorme: na necessidade de uma criminalidade mais cruel para melhor excitar a indignação moral, basta que a televisão dê

exagerada publicidade a vários casos de violência ou cruelda-

de gratuita para que, imediatamente, as demandas de papéisvinculados ao estereótipo assumam conteúdos de maior cruel-

dade e, por conseguinte, os que assumem o papel correspon-dente ao estereótipo ajustem a sua conduta a estes papéis"36

4. Cidadania negativa

 Nilo Batista, em seu discurso proferido na abertura do XV

Congresso Internacional de Direito Penal, ao referir-se à escravatu-

ra negra no Brasil que dura até 1888, fala da articulação do direito

 penal público a um direito penal privado-doméstico, na implanta-

ção de um sistema penal genocida, cúmplice das agências do Esta-

do imperial-burocrata no processo de homicídio, mutilação e tortu-

ra dos negros. "Essas matrizes do extermínio, da desqualificação

 jurídica presente no 'ser escravo', da indistinção entre público e pri-

vado no exercício do poder penal, se enraizaram na equação hege.

mônica brasileira,m. São estas raízes que frutificam na implantaçãc

da ordem burguesa no final do século XIX, na recepção da doutrim

da segurança nacional no século XX, nas políticas urbanas d,

apartação, nas campanhas de lei e ordem que "fundamentalmente

visam à mobilização de forças políticas, alimentadas pelo pânico

 para o projeto autoritário de apartação social. Todos os democratm

que, de alguma forma, se oponhaU1~elas forças, têm a sua espe.

ra um sálice transbordante de amargura e hostilidade"38.

E neste quadro que Batista se refere   à   concepção de cidada.

nia negativa, que se restringe ao conhecimento e exercício dos limi.

tes formais à intervenção coerciva do Estado. Esses setores vulne.

ráveis, ontem escravos, hoje massas marginais urbanas, só conhe.cem a cidadania pelo seu avesso, na "trincheira auto-defensiva" d~

opressão dos organismos do nosso sistema penal.

36 idem,   p.13l.

37Nilo   B~tista. "Fragmentos de um discurso sedicioso", in   Discursos Sediciosos. crime,

 direito e sociedade,   n"  1.   Rio de Janeiro. Relume-Dumará. 1996.   p.  71.

Ja idem.   p.  71 .

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Para Batista, o panóptico de Bentham como vigilância perma-

nente, "insone olhar do poder", é substituído magistralmente nas so-

ciedades pós-industriais pela televisão, como controle da força de

trabalho e seu exército de reserva. "Agom trata-se de intervir menos na li-

 berdade do que na comunicação, e produzir assim outra espécie de muti-

lação com a qual Bentham não sonhara"39 A enorme concentração de

 poder polftico cria nova modalidade de controle SOCIaloperando sua cons-

tante supervisão.

Para as massas analfabetas e excluídas da sociedade nacional brasileira,comprar a televisão, para além do ato de consumo, é também comprar ogrande inspetor de sua opinião e de sua consciência, ganhando de

 brinde O index librorum prohibitorum.   Não pode surpreender que,

 para pequenas infrações penais, este homem solitário, sentado diante

do vídeo, com ou sem pulseira eletrônica, e.5tejasubmetido a uma penaadequada"4o

Esta pena é compatível com as sociedades pós-industriais em que o

capital financeiro se interessa, no corpo do homem, pela sua capacidade de

consumir, e não mais pela sua capacidade de produzir.

Paralelamente, viabilizam-se propostas político-criminais cujo conteú-

do humanístico e progressista não elide sua funcionalidade sistêmica:descriminalização, desjudicialização,alternativas à  prisão, minimalismo penal, abolicionismo, vigilância ~letrônica, etc4'.

Gizlene Neder, em sua tese "Criminalidade, justiça e merca-:

do de trabalho no Brasil", analisa a construção da ordem burguesa   Ino Brasil a partir do pensamento jurídico que, ao formular projetos

 para a construção de "nação", promove a "individualização pos

conflitos através do processo de criminalização e encaminha a ide-

ologia burguesa de trabalho, abrindo caminho para a ~onstituiç~p do

mercado de trabalho na sociedade brasileira"42 As contradições

desse processo de implantação do capitalismo no Brasil fazem com

que assuma traços profundamente autoritários. Aqui, liberalismo e

autoritarismo são "duas faces de uma mesma moeda".O processo de construção da ordem burguesa no Brasil enfrenta

o problema da massa de ex-escravos excluída do mercado de trabalho,

39   idem.   p.  75.

40   idem. ibidem.

41   idem. ibidem. .

42   Gizlene Neder.   Criminalidade. justiça   t!   mercado de trabalho no Brasil.   São Paulo.

Edusp, 1986, p.5.

58

aperfeiçoando a eficácia das instituições de controle social, baseado no _ 

modelo racista e positivista de Cesare Lombroso. Para a autora, "a efi.

cácia das instituições de controle social se funda na capacidade de in-

timidação que estas são capazes de exercer sobre as classes subalter.

nas" mais vulneráveis à criminalização. ' .

, A análise do discurso jurídico permite a análise da situação

histórica de adequação da estrutura burocrático-administrat~va e

 jurídica no período de transição, na conjuntura pós-proclamaçao da

República, que requeria formas mais modernas de controle ~oclal.

Os bacharéis, agentes desta nova ordem, tiveram sua formaçao nasorigens autoritárias da formação histórica brasileira, ~um hberahs-

mo comprometido até o fundo da alma com o escravIsmo.   A ~eo~-

ganização do Estado, numa conjuntura em que se reconstróI a IdéIa

de Nação é associada à organização judicial, principal eixo do dIS-

curso jurídico entre o final do século   XIX   e o começo do século

XX.

Assim, em 1890, aparecem as primeiras referências à aplica-

ção do sistema penal para "vadios" e "vagabundos", para a mass<

excluída do novo mercado de trabalho. Como Foucault, a autor;

revela a crítica ao sistema penal contemporânea   à   sua criação. Ji

em 1838 os relatórios do Ministro da Justiça acusam a inutilidadl

funcional da prisã043. O sistema penal da República já nasce pontificado pelá sua ineficácia estrutural como repressor da criminalida

de; seus objetivos ocultos, ideológicos, eram config~radores e sele

ti vos quanto às ilegalidades populares. A ideologIa do tmbalho

neste processo de ideologização, desempenha uma função Impor.

tante nos discursos jurídicos. "Assim, o trabalho está, dentro deste

 processo de ideologização, relaci=ado à honestidade, bem-estar 

dignidade, sendo que seu oposto, a ociosidade, relaciona-se a afron

tamentb, corrupção, depravação, suspeita"". Pode-se imaginar qUI

estereótipo se armava para o contingente de ex-escravos sem pers.

 pectiva de inserção no mercado de trabalho, desqualificados pela:

condições de miséria e opressão da ordem escravocrata.

A esses grandes movimentos contrapõe-se um processo d,normatização e disciplinamento que, no Rio de Janeiro, realiza to-

das as transformações históricas da formação social brasileira em

43   idem.  p .   112.

44   idem.   p.   127.

59

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sua passagem para o capitalismo. Formulam-se casas correcionais,abrigos para menores, enfim toda uma arquitetura legal e física paradar conta dos novos excluídos da ordem urbana republicana. Antes,como agora, um grande "alarido" sobre um suposto aumento dacriminalidade justifica e legitima medidas de aumento e reestrutura-ção das instituições de controle social face ao crescimento e à con-centração das populações urbanas do país.

A questão criminal é política, e o arcabouço teórico dos ju-

ristas da época é fundamentalmente lombrosiano. Nina Rodrigues,com sua obra   As ,-~~._h_"-man(l~.Lª_!,,sp9.nsaki1i4adevenal no. Brasil,   pontifi'<:Ji...e_ml8~4..sol~reas relaçÔ(:s.de sU)2erioridade e i1]fe-rioridade racial, ao mesmo tempo em que relativiza o conceitó decrime. Há uma ,grande confusão ideológica, com o movimento   S ; ) -cialista e anarquista apoiando a repressão à prostituição, à capoeira-gem e ao conjunto das "ilegalidades populares". Esta   mélange ide-ológica dificulta a luta pelos direitos de cidadania dos contingentesurbanos daquela época, e contribui para a construção da deslegiti.mação do discurso e da prática jurídico.penal.

Sob a égide do confinamento e do extermínio, o sistema pe-:nitenciário brasileiro transforma a prisão de castigo em remédio. A

ilusão ressocializadora e as metáforas biológicas mascaram a cruel.dade dos processos de "regeneração" através do trabalho obrigató-rio, da educação e da disciplina.

A penetração da ideologia do trabalho se cristaliza na sua an-títese: a malandragem. Se os capoeiras representavam a resistênciacoletiva à sociedade escravista, os malandros, na passagem ao capi-talismo, personificam um caráter carioca que se estende ao resto do

 país, para compor um caráter nacional, muito importante ao proces.so de ideologização da nova ordem burguesa. Se os capoeiras pre-cisavam ser extintos violentamente, a malandragem devia ser incor-

 porada, em sua resistência à ordem, como constitutiva do "caráter nacional" .

As estruturas de controle social criam um espaço de interme~   1'1.

diação entre o mundo da ordem e o mundo d~ desordem. A organiJ

zação da cultura da malandragem pela estratégia de poder a legitiima e a confina.

O fimda capoeiragemdesmanteloua organizaçãooriginal,coletiva,queameaçava a imposição da disciplina e da ideologia burguesa de traba-lho. Porém, aqueles elementos pitorescos que estariam a configurar 

60

uma certa maneira de ser e de fazer as coisas, incorporados ao cotidia-

no e produzindo efeitos histórico-ideológicos na formação social, são preservados~5.

Em recente trabalho, Gizlene Neder se refere à produçãoimagética do terror, que c0t1.~!fjLalegorias atrayés de imagens para di-fusão demedü'ehorror ô.   A constituição histórica da malandragemajustada à nova'onClade exclusão dos deserdados do "banquete neolibe-ral" faz com que o debate sobre a violência garanta a saída da ditadura

com salvaguardas eficazes (reaparelhamento das polícias, campanhas delei e ordem, entrada do Exército no combate ao crime etc.). Fazendo umainterpretação analógica entre os efeitos de "internalização ideológica dateatralidade do poder" nas praças públicas através das fotos de corposmutilados nas bancas de jornal, e os autos-de-fé na Inquisição, o texto ex-

Jl!icita .Q.J2fl~_discip!jI!ª-d-ºr@~!!\mQCllJÇiloimagétiçado_le!IQ[,dirigida.aos~entos étnico.cultll!ais. mais vulneráveis, a juventude afro-brasileira,novo alvo da ira das elites da revolução tecno-científica.

5. A   aventura   metodológica

Para desenvolver minha pesquisa, tive, como todos, que ati-

rar-me à aventura metodológica. Não há formulas, não há manuais,mas sofrimento na busca do rigor elástico a que Ginzburg se refere,compreendendo a história como ciência "fundada irremediavelmen.te no concreto,,47.

Para trabalhar a concretude da criminalização por drogas me lvali de vários autores oriundos da criminofogia crítica, desenvol-vendo análise de caráter histórico. social.

Em Marc Bloch48 trabalheiCLrrn a relativização radical dastestemunhas pelo método crítico. O conhecimento do passado ésempre indireto, n1iº-se pode modific.aro pas_s"d_o,mas sim seu co:nhecimento . Para fazer falar as testemunhas, fazer das perguntas"ímãs às limalhas do documento", é importante não só "limitar-se a

45   idem.   p.   353.

46 Gizlene   Ne1der.   Em nome de Tânatos.   Rio de Janeiro. Cadernos do Ceuep.   1993.

"" 47  Carla Ginzburg. "Chaves do mistério", in O  signo de três.   São Paulo, Perspectiva, 1991.

'" , r f > . . 9 . 7 .\,_~arc   Bloch.   Introdução à História.   Lisboa. Europa-América,   s/d.

61

iI, ,I I

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,

,

----ponderar as afirmações explicitas dos documentos" (... ) .mas tam- bém "extorquir-lhes os esclarecimentos que eles não pretendiamfornecer", "fazê-los falar para os compreender". Temos que com-

 preender as testemunhas junto com os preconceitos da opinião vul-ga~, "espe!h~, em que a consciência coletiva contempla as suas pró-

 pnas felçoes . AssIm trabalheI os testemunhos do objeto através daverificação e da interpretação que não tolera regras mecânicas.Para verific~r, já g.ue a base de toda teoria crítica é a cdmparação,trabalheI a mserçao da mf9_rm~.ªQ.nJ1Inil_sjlie. cto.!1olQgiça mas

também num conjlJnto ~insrônicQ..'-Em Ginzburg, na introdução à   História noturna   interessou-me

a metodologillClf:.re~!1.;;.I:!:!!Ç,ãodos mecanismos ideológicos gue permi-tir~m aperseguição dªJ~iÜçªri.a n.aEurQJlª,.J11jldari<!9o eixo da~gUIsas g]!~~~ml!centranam)mJ).efâ~glÚçíio.el)ªQ .nas atividades e com-

 portament~sd()s perseguidos. Ginzburg estava interessado n~riqu~i~simbólica das confissões e na análise sistemática desses elementos efe-tuando uma crítica cerrada ao reducionismo psicológico e ao funciona-lismo sociológico. Analisando a fala dos   "benandan1ti"  e os estereóti-

 pos dos inquisidores, não se resignou a escrever única e exclusivamentea história dos vencedores, ou a vitória do estereótipo. Assim, interes-sou-me reconstituir a história dos meninos e meninas criminalizados

durante a década de setentª,.º~mS:Q!JlQ~J!1.cidar a cristalização do.es-tereótiPQ..ç9nd!!.zido_Jl9Xj;~US~'i!tqillsiQQ[.e~'~únédicos, psicólogos, edu-cadores, assistentes soci.ais,'pQHc.iais_e juíz~s). Para isso tive que re-construir, através de fragmentos, o choque entre culturas heterogênease discursos antagônicos, tais como nos apresentam os processos.

Quando falo de estereótipo..£.estou utilizando os conceitos de cul-tura e os sistemas simbQlil;..o_ssom.Q.inslwmenl.Os depruJe;;;;-'B--o);r-dleu. Este campo simbólico que ordena o mundo natural e social, atra-vés de alegorias da estrutura real de relações sociais, aliado   à percepçãode sua funç~o ideológica e políticugitima a ordem arbitrária em quese funda o sIstema de dominação vigej)~. Interessou-me compreender o que o autor chama de "programação" dos sistemas de ensino e de

 pensamento para compreeender os discursos dos agentes mediadores(os "inquisidores" enumerados acima).   É importante explicar não so-mente o gue esses discursos J2I:.ocl~ll!J1,mas o gue escondem. A visãoque esses agentes proclamam se aproxima da visão de Bourdieu dareligião, que j;QotribJIÍ ,par" a im,posi.çãoóissÍlIlJllªda.dQs..prirn;ípiQs_ de es~

62

.1

truturação da percepção e.clQ.!Jensªme!llo.domuJldo,   e e11!.Q..articular domundo social, na mediJla em q.\!~.imJl.õe..!!m.Alli.~Jll1i9.!U)!it!çase dereQii-sentações c~jª~.\!1ll1!11lQ1:Jj~ti'!.amenjeJlm<!adae1l11!J!1 princípio d.edi'éi.s.ão

--p-olític".apresenta~secomo a estrutura natural-sobrenatural do cosmos"49.Roger Chartier, em sua  História cultural,  nos fala das representa-

ções, determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam, e que nãosão neutras. Para entender o processo de crirninalização a que ajuventude

 pobre do Rio e do Brasil vem sendo submetida em nossa história recente, lé importante p~Jç~1:Je.ul!!~aslutas <!erepreSel)taS9.essão tãoilllPortantesguanto as lutas econômi~.as.Os setores conservadores rio Brasil souberamcompreender isto, trabalhando seus estereótipos cotidianamente na forma-ção_dos l!g.eng:s.el)º--trll1:Jªlhoda.lIlÍdia. Temos que nos remeteraofrrmt 

simbólico da violência, para darmos conta da riqueza desses discursos e para não cairmos em suas armadilhas'_PlspráticllS_discursivas são produ-toras.<l.e~O!geAaJ!Iel1tosediyis.ii~s~A compreensão desses processos de re-

 presentação permite desembaraçar-se das etiquetas que mascaram a re-

alidade.Pretendi realizar também o que Gisálio Cerqueira chamou metafo-

ricamente de desmontagem ou análise: "análise .S!Wfica tratar de desfazer 

os laços dos fios, de libertar os .Y.iÍJios.el.e.ment9s.Q.l!totlllidade em Q\lesig-:nihcam"so. Utilizando pressupostos de uma análise marxista e da psica-nálise, Cerqueira trata as formações discursivas envolvendo representa-ções ao nível do cQÍlsciente mas também do inconscie~

Entendendo a história pela sua relação específica com a verdade,reconstruindo um passado que existiu, temos na'prova o centro da investi-gação histórica; temos uma realidade recorihecida a partir dos seus vestí-gios. O paradigma indiciário articula àCõirstituição dos vestígios como re-

 presentações com a relação entre as séries de representações e as práti-cas que constituem o seu referente externo. Sem essa dupla operação te-remos apenas uma realidade fragmentária. Daí a importância de analisar simultaneamente de forma vertical e horizontal .

 Na busca das fontes, realizei levantamentos preliminares nos arqui-vos do Dops no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, nos arquivosda extinta Fuhabem e no Arquivo da  2' Vara de Menores do Estado do Riode Janeiro. o's arquivos da Funabem constituíam uma abundante e organi-zadadocumentação, trabalhada por heróicos e anônimos funcionários pú-

49   Pierre Bourdieu. A   economia das trocas simbólicas.   São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 33.

50   Gisálio Cerqueira Filho.   Análise social da ideologia.   São Paulo, 1988, p. 39.

63

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 blicos em meio ao processo de desmonte levado a cabo pelo mimetismo

neoliberal tupiniquim. Os prontuários constantes desses arquivos são com-

 pletos, extensos e numerosos, mas foram por mim descartados por possu-

írem informações sobre o tratamento dado dentro do sistema Funabem.

Meu objeto de pesquisa era o processo de criminalização dos adolescentes

como um todo.

 Nos arquivos do Dops trabalhei as vinte e seis fichas referentes ao

título "tóxico". A primeira ficha é de 1970, aparecem mais três em 1973,Oitoe~tre 1975 e 1976 e quatorze no período de 1977 a 1982. Meu objetivo   I

na analtse dessas fichas era a compreensão da "construção do estereóti- .:

 po" que se des~nhava no.s órgãos de repressão política naquele período.   i.

. Os arqUlv~~d~}ll~c!º-.<!e MenoresJoram minha principal fonte de

 pesqUls~. Esses .arqUlvos vão de 1907 até os dias-º.e hoje e se encontram

no ArqUIvoNaCIonal. Eu os trabalhei no último andar, naqueles dias aban-

donado, da Escola XV de Quintino, entre os fantasmas dos meninos tortu-

rados, maltratados e segregados de nossa República e aqueles sobreviven-

tes do massacre, que se dirigiam ao Arquivo procurando a documentação

de 8ud vida pessoal, a sua história.

O tratamento dessas fontes foi encaminhado metodologicamente da

seguinte forma: levantameIltg_est;lt:í~ticoçl~!!!Qgé@coda criminaliza窺-ill_'veml; atliiJised~ cº-nleúdº-<:Ias[~IJreSe!l~ç9-"s_£.Qmbjnf\çl<\com análise his-

..!.óric~sOCi21.ógicad()sprofissioll.~s_opera(\O~Sdo sistema assistencial e ju-

rídico~.cJ()~lldCl.J~~s~el1te.s.e_sl1a~fanulias;análise das i!1stituições de con-

trole social formal (assistência SaCIar,polícia ejustiça). Pude trabalhar aS-

sim nos dois níveis a que nos referimosaTIienorIDenie~

 No vertical, elaborei as estatísticas da criminalização por drogas nos

 processos da 2' Vara de Menores do Rio de Janeiro. Trabalhando a faixa

temporal de 1968 a 1988, utilizando intervalos de cinco anos, levantei, nos

anos escolhidos, a percentagem de adolescentes envolvidos com drogas

 para verificar a variação da incidência deste delito, antes, durante e depois

da década de setenta. Estas estatísticas foram relacionadas também'a et-

nia, escolaridade, idade, local de moradia, naturalidade e trabalho. No nívelhorizontal, trabalhei os IJrocessos do judiciário para análise dos discursos

dos diversos agentes queªt1lam no sistema, que começa na Delegacia de

Menores e termina nas instituições para infratores, Neste sofridd caminho

te';l~s, de um lado, os diagnósticos e encaminharrlentos (dos psicólogos,

~edicos, assIstentes sociais e educadores) junto ao boletim de investiga-

çao e despachos (dos policiais e juízes); e de outro, os depoimentos dos

meninos e meninas bem como de suas famílias,

64I

III - A Criminalização da Juventude

Pobre no Rio de Janeiro: Aspectosdo Processo Histórico Republicano

1. Novos excluídos na ordem repnblicana

Luiz Tarlei de Aragão51 fala da eficácia simbólica da violência

como troca nas relações sociais brasileiras. Ele descreve a violêiiCia

social presente nas relações com a mãe preta, a ama de leite e a babá.

Estas relações estariam presentes nos fundamentos do processo de

socialização das elites brasileiras. Ao complexo mediterrâneo da mãe

como pureza, renúncia e doação se somaria a violência contra a mulher 

escrava e a questão cultural decorrente do sentido de propriedade na

sociedade brasileira. A figura da mãe no Brasil se decomporia em duas:

a de uma mãe biológica, a cujo corpo não se tem acesso mas que é

socialmen\e reconhecida, e a de uma mãe preta à qual se tem acesso,

mas que não é socialmente reconhecida.

Se as amas-de-Ieite, as mães pretas, e as babás ofereceram seus

corpos e seu leite para os filhos da elite, o que teria acontecido com os

filhos das amas-de-Ieite? Estes foram sempre um estorvo, no mundo

escravo e no mundo pós-emancipação, povoando as rodas de expostos,

vagando pelas cidades, realizando pequenos biscates52

, A justiça J?ara crianças, àquela época, funcionava como Vara de

Orfãos. Trabalhando nos arquivos analisei os primeiros processos, que

vão de 1907 a 1914, não encontrando ~m processo relativo a cri-

mes, o que nos fez pensar se elas seriam julgadas junto com os adultos

nas varas criminais.   !'maioria dos processos é de meninas; naquele

momento, a Vara de Orfãos funcionava como uma agência de serviços

domésticos, intermediando a colocação de meninas abandonadas, que

saíam do "Azylo de Menores" para trabalhar "à soldada" em casas defamília. A "soldada" era uma prática comum em que uma família

51   Luiz Tarlei Aragão. "Mãe preta,tristeza branca", in  CUnica do social.   São Paulo, Ensai-

os, 1991.

52 O tema neste recorte cronológico tem sido trabalhado recentemente por vários trabalhos acadê-

micos e de interesse social. Gizlene Neder em  Faml1ias, crianças e exclusão social- a criança de

rua no Rio de Janeiro   faz uma análise desta produção na parte IH: "O estado das artes: ba- .

lanço dos estudos s6cio-demográficos recentes sobre crianças de/na rua", p.150  S5.

65

"

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tomava sob sua responsabilidade jovens com idade entre 12 e18 anos, comprometendo-se a "vesti-la, calçá-Ia, alll~e~tá-Ia edepositar mensalmente em caderneta da C~lxaEconomlca Fe-deral"53 quantias que variavam de   5   a lO mJ1 réIs. Um termo d.ecompromisso era assinado perante o Juiz, que portanto org~m-zava e intermediava uma espécie de prorrogação dos servIços

 prestados geralmente pelas jovens escravas no passado. Nãosehaviam transcorrido ainda vinte anos da abolição e não é COin-

cidência que a maioria destes processos' se refira a jovens mo-renas ou pardas.

Analisando quatorze processos no período de   1907   a1923,   vemos um cotidiano brutal. A menor L.E.C.,   13   anos,órfã, filha natural de E., declarou, em   23   de agosto de   1907:

há um mes mais ou menos veio do seu Estado natal (EspíritoSanto) com uma família que não conhecia, que aqui che.gada afamília a pos na rua, que no dia em que a declarante fOIpostana rua, andava vagando, encontrou-se com uma senhora que

levou a declarante para casa de O., onde esteve por um mes,que ali trabalhava, não era bem tratada, recebia pancadas e nãoganhou cousa alguma"54.

O Doutor Juiz da 2' Vara de Órfãos estipula então que a "me-nor sej.a depositada em casa da Doutora,   à   Praia do Flamengo",mediante a quantia de cinco mil réis mensais a ser depositada naCaixa. O processo informa que três anos depois, em agosto de1910,   a caderneta nem sequer t inha sido aberta~ , .

Os jovens chegam sempre ao JUIZpelas maos da poltcla, em- bora não tenham cometido nenhum crime. A.F.S., morena de 15anos, foi remetida ao Juiz pela delegacia do lO' Distrito Policial em1914, em completo abandono, "sendo impossível sua inte~açã0.naEscola de Menores Abandonados que se acha com a lotaçao mUItoexcedida". Os asilos e abrigos são recorrentemente superlotados,

 jamais darão conta do número de crianças "abandonadas". Entre-

gue   "à soldada", A. foge da casa em   1915   e ao ser detida a~,~sao proprietário da casa em que foi colocada de deflorá-Ia. A hlstónade A. é contundente. Após seu defloramento, volta ao Azylo de

5) Arquivo da 2- Vara de Menores do Juizodo de Menores do Rio de Jane.iro.   caixa.l~07-

J 914. A   numeração a que me refiro era   utilizada durante minha   pesquisa   em  Qumtlno.

antes da mudnnça do acervo para o Arquivo Nacional, em fins de 1996.

5"Processo L.E.C., caixa 1907.1914 _ ano 1907. Arquivo da 2- Varn de MenoresJ.M.RJ.

66

Menores até ser entregue a outra soldada em  1916. Neste ano, apare-ce um termo de declaração de A. "que não deseja empregar-se por enqultnto, preferindo ficar na Escola de Menores,,55.

Este desejo de permanecer no asilo, após várias experiências de"soldada", dá uma idéia da violência que esta relação engendrava, jáque imaginamos não serem boas as condições dos abrigos, que funci-onavam sempre com "lotação muito excedida". O primeiro movimento

. das meninas é querer livrar-se do asilo, mas depois de duas ou três ex-

 periências   "à soldada" elas optam pelo encerramento institucional. Esteé o caso de J.G.R., que em   1914 acusa seu tutor de defloramento e

 pede para ficar no asil056.  É o caso de D., que após sucessivas solda-das, entre   1914 e  1918, opta pelo asilo (em seu processo, o Diretor doPatronato, ao falar do seu comportamento, diz que D. "tem deixadotransparecer seu pensar ainda volúvel e algumas vezes censurável"57.

Os sentimentos de posse, herança da escravidão, perpetuadosnesses procedimentos, transparecem claramente no caso de Engraciada Silva58, em dja apresentação se lê que seu pai "se dá ao vício daembriaguez, não pçrmitindo que a mesma se empregue, querendo ar-rastá-Ia para a prostituição". Tomada   à  soldada, prefere voltar ao asilodevido aos maus-tratos a que era submetida. Vai para outra soldada,

fugindo em seguida. Detida pela polícia, ela acusa seus tutores de se~propriarem de seus salários ganhos em trabalho na fábrica de tecidos.A vida nos asilos, os.traha.lhoslorçados...nas.::soldadas", as fllgas e.co.n-seqUentes detenções p~!ª-pglíçiª me fazem pensar em vidas-prisã.es.

 Não há escapatória possível ao seu destino, não há'como fugir do asilo,da polícia, do juiz ou das soldadas. A última referência a Engracia emseu processo traz um recorte de jornal que-atesta o sentimento de pos-se e o desrespeito com que as "famílias" tratavam essas meninas. Amanchete é: "A Engracia desapareceu (...) e a família está   à  sua pro-cura". Segue o texto:

Engracia, que nãoera lá muitoamante de exercerfielmente as suas fim-ções de doméstica, preferia estar, de quando em vez, najanela, engra-

çando-se com os jovens que passavam por ali.

S'Processo   A.F.S. -   ca ixa 1907-1914 - ano 1914 Arquivo da 21 Vara   1M.R.I.

'6Pro~esso1.G.R. - ca ixa 1907-1914. ano 1914. Arquivo da 21Vnra J.M.RJ.

" Processo D.M. -  caiu   1926 - Arquivo da 21Vara J.M.R.l.

ss Processo   E.S. -   ano 1914 - reproduzo aqui o nome fexlual de Engracia pelo uso depreci-ativo que lhe será dado em jornal. Arquivo 1.M.RJ.

67

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I

Hontem, tanto se engraçou, que, descuidando-se, abandonou a resi-dência do Sr. Botelho, não mais aparecendo. Este, farto de a esperar,

foi à polícia do  9°  Distrito, onde deixou registrada a s~a queixa"59.

Para a compreensão do suporte ideológico que fundou a es-

truturação do Juizado de Menores na década de vinte, destacamos

os conceito de periculosidade e seu desdobramento práticb, a~ ine-

di das de segurança.

...segunduHilQHati£tª,OlU'iUl.dlL(\Q~éç!!lo _XIX,jl_~rí odo deturbulentas lutas sindicais, a burguesia precisava eqtJipar o sistema

 jurídico pe.nal ~oili;;;edidas que iunissem além-do crime.   É   aí que

nascem as medidas de segmanç.ª,

Da mesma forma, criminalistas podem perçeber com antecipação

tempos sombrios, porque dispomos de uma antena muito sensível: ademanda de repressão penal. O emprego inflacionário do sistema penal

é o sinal que nos adverte para uma intranqüilidade, um medo social

que, em nosso caso, é conseqüência inevitável da pauperizaçãomarginalizadora de imensos contingentes humanos que a hegemonianeoliberal está acrescendo a seus legítimos antecessores desde o es-cravismo colonial. Da mesma forma que, na ocasião histórica de sua

ascensão, à burguesia brasileira não agradavam as faràndolas dos

capoeiras(criminalizadaspeloCódigo Penal de 1890),  o "medo branco"de hoje tem nas associações criminais sua recorrência mítica predileta.

 No século XIX a política criminal européia, após breve e incendiada luade mel com o princípio da legalidade (aquela inesquecível mistura da

vadiagem com a criminalização da greve), se dava conta de que a or-dem burguesa-industrial podia expor-se a perigos sem que (ou antesque) um crime fosse cometido: a invenção, no final daquele século, da

 periculosidade criminal e de sua resposta - as medidas de segurança -seria a melhor demonstração de que, para os medos burgueses, existecrime além da lei. (Periculosidade   &Medidas tiveram longa vida, eainda recentemente eram, entre nós,   O   camuflado eixo teórico do

tratamento de crianças e adolescentes "em situação irregular")6o.

A Justiça de Menores instituída em 1923 se estrutura sobre estasidéias.   É criado primeiro o Juizado de Menores e depois o Código de

Menores, tendo como figura central o Juiz Mello Mattos. Trata-se de um

sistema minuciosamente organizado, influenciado também pelas idéias de

59Processo E.S. - caixa   1907-1914 -  ano   1914 -   Arquivo da  z a   Vara J.M.R.J.

60   Nilo Batista. "Um oportuno estudo para tempos sombrios", in   Discursos Sediciosos   n°

2. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia. 1996. p. 302.

68

Lombroso.   É  neste momento que a palavra   menor   passa a se asso-

ciar definitivamente a crianças pobres, a serem tuteladas pelo Es-

tado para a preservação da ordem e asseguramento da moderniza-

ção capitalista em curso.Os processos relativos ao período posterior    à   criação do Jui-

zado em dezembro de   1923   são elucidativos das mudanças e das

 permanências do olhar 'sobre as crianças e jovens na República. Os

crimes dos   menores   passam a ser julgados .V.elo)uiz-'\.<:lQ,que seorgaI)iza meticulosamente de acordo com os padrões internacionais

de "proteção à infância". Aparece a figura do Comissário de Vigi-

lância, encarregado dos relatórios de informações, de acordo com

os artigos 38, 42 e 50 do Decreto n° 16.272, de dezembro de 1923,

que criara o Juizado. "Os dados referentes ao menor devem ser 

cuidasJosa e pessoalmente recolhidos pelo Comissário de Vigilân-

cia". E estabelecido um questionário padrão que contém pérolas do

lombrosianismo nativo:

" 'Algum ascendente ou colateral é, ou foi, alienado, deficiente men-

ta\, epilético, vicioso ou delinqüente?,

Há concórdia doméstica, respeito conjugal, sentimentos filiais?

Com que gente costuma ajuntar-se? Seus camaradas são mais ido-

sos, vadios, mendigos, libertinos, delinquentes?

Qual seu caráter e moralidade, seus hábitos e inclinações?   Écruel,violento, hipócrita, tímido, generoso ou egoísta, viril ou afeminado,

mentiroso, desobediente, preguiçoso, taciturno ou loquaz. rixoso,

desonesto ou vicioso, dado ao  rOUbO   ou furtó?

Sua linguagem   é   correta ou   lisa   de calão, de expressões baixas eindecorosas?61 /  

O questionário é completo: esquadrinha a vida do menino, desua família, sua escola, sua saúde, seu físico, enfim todos os indica-

dores que possam fornecer sintomas para a sua "patologia". Gosta-

ria de chamar a atenção para os itens "antecedentes hereditários",

"meio familiar" e "caráter-perversões", todos estereótipos de uma

ideologia 1?.iglogi!>tae ffi.QrAlislª,

6lRelatório de InformaÇões, de acordo com os artigos 38. 42 e 50 do Decreto n° 16.272.

dezembro de 1923.

69

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. No primeiro processo julgado pelo juiz Mello Mattos, em ja-

neiro de .1924, temos o que será a tônica do trabalho do juizado:

an.alisar Jovens negros e pobres acusados de crimes contra a pro-

 pnedade. M.D.,   17 anos, pardo-claro, natural da Bahia, foi preso

em flagrante, artigos 330 e 13 do Código Penal. "Como não existe

e~tabeleci~ento pr~prio para menores delinquentes, permaneça o

reu n~ Seçao Especial da Casa de Detenção em que se acha"62,   6

Relatono do Comissário indica que M.D. tem três entradas na Casade Detenção. Na pergunta "Com que gente costuma ajuntar-se?",

 pode~os saber que M.D. tem camaradagem com meretrizes. Com

relaçao ao seu "caráter e moralidade", vemos que é "mentiroso e

dado a? rou~o"; "acostumado a viver com meretrizes, aplicado à

ImpudencIa . Essas e outras informações levam o Comissário à

conclusão:."Péssüno.conceito sou forçado a fazer do menor, pois

tem procedido mUlto Irregularmente, maus são os seu costumes". O

exame médico caracteriza-o como "pardo claro, bem constituído

flSlcamente, sem defeito. Seu humor é irritável, tem mau modo

mau genio e é dissimulado. Nega hábito de pederastia e onanismo":

 Nun~a freqüentou escola, não tem nenhum documento ou registro

que Identifique ao menos sua idade, ou seja, não tem identidade.. A n~vidade é a figura do advogado de defesa, que representa

um mdlcatlvo de um certo nível de garantia inexistente até então e

qu:, se~á cassada a~os mais tarde. No caso de M.D., a defesa invo"

ca o signo Implacavel e cruel do infortúnio, abandonado áo léo da

sorte, sem conhecer a doçura e meiguice do lar paterno. Aqui che-

gando resvalou-se na convivência com elementos secundários, é

tangido pelo sopro cruel e ingrato da necessidade e talvez influenci-

ado por maus conselhos é levado a prática de atos ilícitos". O de-

fensor alega que o menor "carece de meio elevado e nobre capaz

de reabilitá-lo", e ~rocura "o corretivo justo e preciso para que o

menor em futuro nao remoto seja um cidadão útil à família à soci-

edade, à nação". Mas a sentença do juiz é implacável.   "É  n'taior de I16 anos e menor de   18 e se trata de indi víduo perigoso pelo seu   I

estado ~e corrupção.~oral. Julgo procedente a acusação e conde-I

no a dOIS anos de pnsao celular", a serem cumpridos na Seção de'

Menores da Casa de Detenção".

::processo   ~.D.-ano   1923.   dezembro - Arquivo   1.M.R.I.

Todas as citações   acima   referem-se ao mesmo processo de M.D. dezembro i923.   Arqui-

vo 1.M.R.I.

70

Este caso, o primeiro a ser julgado pelo Juizado, é padrão.

Os casos que não se referem a crimes cont~a a propriedade são pe-

quenos incidentes, defloramentos e outros. E impressionante como a

maioria esmagadora dos.casos se refere.~.Jl!eninos IJQ\Jres;as elites re-

solvem seus casos em outras instâncias, informais e não segJ!gadoras.

As histórias se repetem, pequenos furtos, meninos pobres, anal-

fabetos, pretos e que quase sempre têm ocupação fixa, ou seja, traba-

lham. J.F. e M.R.", presos em 1931 por furto de ferramentas, são res-

 pectivamente caixeiro de armazém de secos e molhados e servente de pedreiro. Analisando as informações do Comissário de Vigilância ve.

mos que os extensos questionários são pouco preenchidos. Penso que,

com o te!J1J?o,os próprios ag~n.~"s~cLo.-s.iste!!!~.pq~ebemque BA.hi.stºri~

de vida d25.1Ue.J1i.nº-s.não p_()n.tificamas ]Jer.versii;:s.Iombrosian<l.sL()~as

~.,ca(actetistiça~hereçlitáriasdobiologis.mº- criItlil1.aI,mas sim as histórias

de miséria, de exclusão, de falta de escola, de pequenos inCici'entesque

introduzem o joyem a um processo de criminalização que"ape'nas mag-

nifica e reedita a margin.alizaç1i9.que .s.~u<l,,~i,,º_(!.~p.!:etoe pobrejt

.. !]Jarc.ª"<J.,

2. Orientação correcional - os tempos do SAM

A partir dos anos trinta, o cenário muda. Para Antonio Carlos

Gomes da Costa", o período que vai de 1930 a 1945 é a fase de im-

 plantação efetiva do Estado Social brasileiro. Segundo ele, o período

. que se segue ao Estado Novo fez das políticas sociais o instrumento de

incorporação das massas urbanas ao projeto nacional, liderado por Ge-

túlio Vargas. '~Foi criada toda uma infra-estrutura de atendimento às crianças

que teve no SAM (Serviço de Assistência ao Menor) seu principal ali-

cerce. Sob orieiiIaçâücorrecionafi-epressiva, o sistema baseaYllc~~_e,!IL

refonnató£i()s,.casa3 d~~ôITeção;-ern"pairol1-ªtoúgrícolas e~.s.col.asd"

 _<!prendizª~!!Lde...9fffiº-s"urb~IloJõ.O sistema como um todo conta tam-

 bém com outros programas, tais como a LBA, Fundação Darcy Vargas,

Casa do Pequeno Jornaleiro, Casa do Pequeno Lavrador, do Pequeno

Trabalhador e as Casas das Meninas. Antonio Carlos faz a crítica do

"caráter marcial e compulsório das práticas pedagógicas desenvolvidas

MProcesso   1.F.  e   M .R . -   caixa 1931 (1-19) - Arquivo   I.M.R.I.

61   A. C. Gomes da Costa.   De menor  a  cidadão.   CBIA,   s/d.

71

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nesse período mas sustenta que até 1945 o órgão (SANO responde bem às finalidades para as quais foi criado".

Trabalhando com processos dessa época, chamou-me a atenção umquestionário do Serviço de Fiscalização e Repressão à Mendicãncia e Meno-res Abandonados da Polícia Civil do Distrito Federal, no qual aparece uma

 pergunta emblemática:   "tem vendido jornais, bilhetes de loteria, doces,

engraxado sapatos ou desempenhado alguma ocupação na via públi-

ca";> ó'   Estas ocupações, que na ~er~ade são estratégias de sobrevivência, já possuem carga negatrva para poliCHUSe agentes do Judiciário. "O Menor dizque exerce as funções de vendedor de jornais e engraxate, profissão que ale-gam todos os menores que não podem provar o exercício de profissão."" Otraball10.étalIlbéfil aE~!ltereahilitadQr:

~e~anecia nos porões da redação de A Manhã onde passa as noites

mtelrase pela madrugada vende aquelafolha... Assim faço bom concei-to ~~breele vist? que demonstra ser um me?ºr obediente eaindaapro-veltavel, ~engoutll a SI e a soc1eclade(I.S., preto,  16  anos, briga,  1942).

Atuou em legítima defesa, menor sem antecedentes que vive em

ambiente familiar sadio e trabalha regularmente." (E.F.A.,branco, 15anos,agrediu colega em  1957).

O trabalho ajuda a encurtar ª-psma. Garantia de emprego é atenu-ante que somado ao atestado de Boa Concluta dOs.direton:osdos reforma-tórios sens~bilizao~~fzes. 'Trabalhlt,..el1~glJ.S.aláriomehs~ à mãe" (A.R.,17 anos, branco) . R.R.D., tem promessa de colocação na Fábrica"(~.~.D.,   15 anos, preto)69 "Tendo arranjado emprego como aprendiz emfabnca de tamancos, peço autorização para desligamento de R.EC.   (15anos, pardo, preso por briga?O "J.O. estava trabalhando na Coca-Colaabrigado na Casa do Menor trabalhador" (S.S.H., preto,  16 anos, furtou re:lógio)71.A "orientação profissional" faz parte do processo de "recupera-ção" dos adolescentes, e o ensino profissionalizant(j parece ser a únicaalternativa para ajuventude pobre~pirar à integração por baixo no mer-

cado de trabalho ~_aJ!!1içªJ;1er~p~tivapossí'Lel.66Questionário padrão do Serviço de Fiscalízação e Repressão   à   Mendicância e Menores

Abandonados da Polícia Civil do Distrito Federal- caixa (1-15) -ano 1931. Arquivo

I.M.R.!.67   Processo -   I.S., -  caixa   192-206.   ano   1942 -   Arquivo I.M.R.J.

68Processo   A.R. - caixa   192-206.   ano   1942 -  Arquivo I.M.R.J.

69   Processo R.R.D .. caixa   192-206 -  ano   1942.   Arquivo 1.M.R.I.

~~Processo   RF.C. -  cai~a   192-206 -  ano   1942 -   Arquivo I.M.Rl.

Processo S.S.H. - caIxa   192-206.   ano   1942 -  Arquivo 1.M.R.l

72

O Serviço de Assistência ao Menor (SAM) já está plenamente im- plantado em 1942. No ofício de apresentação do delegado ao juiz semprese vê, escrito à mão, do lado esquerdo:   "Ouça-se o menor que será

encaminhado ao SAM".   Mesmo que não tenha antecedentes ou queainda não tenha sido investigado, o menino é recolhido ao alojamento

 provisório do SAM. Em "casos especiais", os pais ou parentes conse-guem a guarda provisória.   É  o caso de A.R., branco, 17 anos, que

consegue liberdade vigiada, por ter "fanulia legítima e bastante unida",com pais que "vivem em harmonia em um lar organizado" (A.R., haviafurtado um carro)72; é também o caso de J.L.E.P.C.   (16  anos, branco,aluno do Colégio São Bento)73, que provocou um acidente automobilís-tico dirigindo sem habilitação. "Apurei tratar-se de um rapaz estudioso,filho de boa fanulia, estudando o   1 0 Científico do Colégio São Bento"74.

A desigualdade no tratamento é chocante e queremos mencionar um processo especificamente: R.RD., preto,   15 anos75, órfão de pai emãe, que começou a trabalhar como vendedor de jornais e engraxateaos dez anor Roubou, em 16 de julho de 1942, dois g!!~ܺ.~-<marcaBorboleta) em-EJ!lllI111.az.ém_deseços e molhados, pam "arm.njar_alglJID.a..Ii!!1entoqueJhe ..lIlinorª~~!l_ªf9me". A alegação de seu trabalho de

vendedor de jornais e engraxate já havia aguçado as suspeitas do Co-missário de Vigilãncia, que o vê como "preguiçoso, hipócrita e dado ao   !

furto". Seu, parecer é de que o "menor é um indivíduo que necessita de   I ;

uma adaptação, pois se continuar a trilhar o caminho que seguiu bem'cedo se tomará um criminoso e um elemento prejudicial à sociedade"76RRD. recebe como sentença uma internação por três anos na Escolade Reforma; um ano e meio por cada queijo.

O período que vai de 1945 a f%2fé denominado por AntonioCarlos Gomes da Costa 77de "expansão conflitiva". Com o fim doEstado Novo e a Carta Constitucional de 1946, temos um período delutas por ampliações das conquistas dos trabalhadores e rearticulaçãodos setores conservadores.   É um período de legalização dos partidos de

esqu~rda, abertura democrática, mas também de desmonte das políticassociais implantadas no período "autoritário". Este é o período de deca-

72Processo A.R. -.caixa   47.   58 - ano   1947-   Arquivo J.M.R.J.

73 Processo   J.L.E.P.C .. caixa   47.   58 - ano   1947-   Arquivo   J.M.R.I.

74   idem.

75   Processo R.R.D. - caixa   192-206.   ano   1942 -   Arquivo I.M.R.l.

76   idem.

77 A. C. Gomes da Costa. op. cit., p. 16.

73

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dência do SAM e de execração de seu "caráter repressiv,o, embrutece-

dor e desumanizante". Gostaria de apontar para um fenomeno similar 

ocorrido, na transição democrática .de 1978/88, com relação à estrutura

do juizado e da polícia, que também configura um "deSmon~e".

Mas, com ou sem desmonte, o caráter seleavo, desumaruzador e re-

 pressivo do sistema se mantém. Até 1957 temos o velho Bo~etim de Inves-

tigação do Comissário de Vigilância, com suas conslderaçoes sobre o ca-

ráter, a moralidade e as perversões. Enfim, a sociedade se de.mocraa:a ~as permanece o olhar lombrosiano e o darwinismo social nas mSlllUiçoesJU-

rídico-penais. . _  

O caso de M.S., 14 anos, preto, residente no Morro de Sao Car-

los, é chocante. Trabalhava fazendo carreto na feira, vivia com os PaiS,

freqüentara escola até o 4° ano primário. Era ele que, "segundo o apu-

rado, estava desempregado, perambulando em estado de vadiagem

 pela Zona Sul, quando sua residência se encontra na Zona Norte"n

Foi detido à entrada do túnel do Pasmado, em fevereiro de 1957, sob

suspeita de furto de roupas. Segundo o policial que o deteve:   ' : 0   menor 

apresentava-se vestido com uma calça de tamanho mUito maIOr que o

seu físico, evidenciando que havia sido furtada, bem como calçava sa-

 patos também de número maior do que seu pé"79. No entanto, nãohouvera notificação do furto: ninguém reclamou a calça e o sapato que

o menor M. trazia: "não foi identificada qualqu~r pe~soa à .9ual as ,mes- \mas (roupas) pertencessem". Apesar de ser pnmáno, e nao.ter come-

tido crime algum, o curador pediu sua internação: "nada fOIapurado,

mas o menor vive em estado de abandono e perambulando"8o . A sen-

tença do juiz coincide com a opinião do curador, e M. ficou internado no

SAM por quase três anos! _  

As características dos processos formados chamam ~ at~nçao

 pela crueldade com que se atinge a vida dessa ga~otada: pnmelro, a

lentidão dos mecanismos do sistema. Como, na maIOr parte dos casos,

o menino é enviado direto para o SAM. Ali começa .um longo períod.o

de privação de liberdade que se agrava com a lenll?ão do~ pr,oc~dl-mentos investigatórios; os diagnósticos do Comissáno de Vlgllancla e

os exames médicos realizados pelo SAM.

J.D.M., branco, 16 anos, que furtou um corte de casimira e um

relógio em fevereiro de 1947, é enviado ao SAM imediatamente. Em

18 Processo M.S. _ caixa   77-100 -  an o   1957 -   Arquivo J.M.RJ.

79   idem.

80   idem.

74

outubro, ele é intimado a depor, foge, é recapturado; sua sentença sai

em janeiro de 49, tendo ele permanecido no SAM até 1953.

O jovem lavrador de Guaratiba, pardo, 15 anos, preso em fe-

vereiro de   47,   va i pa ra o SA M. Se us e xam es mé di co s s ó se

realizam em março. No final do mês ele é apresentado para inter-

rogatório. O juiz determina sua internação no SAM. Em abril de 48

o juiz pede informações sobre as condições de educação do menor,

que só vem a ser desligado em 1950, depois que o curador se dirige

ao juiz: "o fato resultou de reação a uma ação injusta da própria ví-

tima . A agressão não foi perversa e não teve conseqüências gra-

ves. Decorridos mais de três anos da decisão por força da qual se

encontra internado o menor, que conta hoje com mais de dezoito

anos, requer esta Curadoria seja julgada cumprida a decisão"81. O

 juiz então autoriza o desligamento "depois de encaminhá-lo a

emprego, do qual deverá ter ciência este juízo". Eu diria que se

 julgássemos esse sistema, o condenaríamos por apropriação indébi-

ta de vidas, muitas vidas.

R.O., preta, 16 anos, doméstica, furtou um par de sapatos

em fevereiro de   47;   vai para o SAM, onde aguarda sua sentença,

que sai em julho. A menina fica no SAM até 1950, até que o juiz

aceite o pedido de arquivamento da Curadoria, que se baseia na

não periculosidade da menina que, maior de 18 anos, está em vias'

de ser mandada a um presídio.

Esta lentidão se associa a outros itens: ind~~Irpin.aç,ãg,   9 il.B .

 penasefalfa"dâ'figura'doderensor.O cúradór pode agravar ou ate-

11uãf-áspenâidianie dõenornie poder do juiz. No começo da vida

do Juizado percebemos a figura dô<tefensor em vários processos,

mas ela desaparece nlleríodQ, 19,42-1962. Em 1942 ainda vemos

casos com pena determinada:I :

Atendendo a que o menor necessita de amparo do Estado para

reformá-lo, antes que se tome elemento pervertido e nocivo  à  socieda-de, determino a internação por um ano em Escola de Reforma" (H.P.N.,

 preto: 16 anos, furto de roupas)82.

"é o menor um indivfduo que necessita de uma adaptação, pois se con-tinuar a trilharo caminho que seguiubem cedo se tomará um criminosoe um elemento prejudicial à  sociedade. Somente P!'lainternação poderá

81  Processo R.F.C. - caixa 47-58 - ano 1947- Arquivo J.M.R.l.

81  Firocesso H.P.N. _ caixn   1 9 2 -2 0 6 - an o 1 9 42 -   Arquivo   J.M.R.J.

75

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o menor ser tornado um elemento útil. Determino sua internação portrês anos na Escola de Reforma" (R.R.D.,  15  anos, preto)83

A partir de 1947, todos os processos apresentam a seguintesentença:   "determino internação no SAM, onde permanecerá otempo necessário   à sua reeducação  "84  Seja por furto, agressão, va-diagem, roubo, a qualquer infração a mesma sentença, invariável, im-

 perturbável, dita sempre com as mesmas palavras "internação, tempo

necessário a sua reeducação". Não pretendyl!lJl~m1fllisarJLqui o SAM, ..fartamente conhec~() l111nos_s:lhistórill_~IIlºl,!stitlJiçãºJgtal.gl,le sef!l..::

 pre funcionou da fO!.!!111~aisc_l1!<eI,.seja na figuSª dell1aus,tratos, \01111:ra ou deScilliJl.ªQspl\IlQ.Reproduzo aqui um trecho do parecer de umcurador, dado em janeiro de 1952:

I   Com tanta falta de vigilância do SAM, como demonstram as constan-i   tes fugas, outro resultado não se poderia esperar da educação desse

menor, exemplo típico de como, naquele serviço, simples abandonadosse convertem em desajustados, prováveis delinqüentes do amanhã.Esta foi a primeira apresentação do investigado por ação anti-social,razão pela qual não o considero perigoso, prefiro 'continuar a conside-rá-locomo um abandonado,vítimada inércia daqueles a quem tem sido

confiada a sua guarda"85.Mas para o sistema não há perdão: "Por força da ocorrência em

apreço (furto de uma calça) sou obrigado a requerer que se observe odisposto no ar!. 2°, letra A do Dec. 6.026, recomendando o menor aoSAM para que não ocorra a sexta fuga". O juiz, então, determina a in-ternação até a reeducação do menor em questão. Faz parte da readap-tação dos rapazes o ingresso nas Forças Armadas; o período de alista ..mento abrevia internações e é sempre incentivado pelos diretores doSAM e pelos juízes.

O SAM, descrito tão sinteticamente pelo curador, produz umaoutra pérola presente em todos os processqs: os exames médicos. Suainvariabilidade, seu padrão de clínica só muda mudando a classe social

e a cor do examinado. Após serem detidos, os presos vão para o SAM,onde aguardam, ou não, sua sentença. Mesmo os que são liberados

 para aguardar a sentença, ou os que são condenados a liberdade vigia-da passam pelos exames médicos do Serviço. A ficha do exame tem

83   Processo R.RD. ~caixa   192~206_   ano 1942 ~Arquivo l.M.R.!.

84  Processos de 1942 - caixa 192-206. Arquivo 1.M.R.L

85  Processo N.P.B. ou A.P.B.. caixa 685~700- ano 1952. Arquivo 1.M.R.I..

76

uma parte dedicada a dados gerais (registro, nome, nacionalidade e his-tória). O item história é preenchido sempre e eu disse sempre, com umaúnica palavra:   transviado.  Em seguida temos o diagnóstico, com o re-sultado dos exames de fezes, dentário, oftalmológico, pedagógico e psi-cológico. Em seguida, temos as indicações pertinentes ao diagnóstico.Os últimos itens do diagnóstico_e das }ndicaçõ~s s.íí.9.seIIlPreasitocia-dos. DiagnósiíEõ: personalidade normal ou instável, desajustamento so-cial. Indicação: readaptação social. Esta c0I!!binação de di<tgnós1ÍCO..e

"índieação está 'em   todos  'Qsexames médicos! Às vezes soma-se àindicação de reaélaptação"social ade orientação profissional. O   únicocaso, exceção a confirmar a regra, é o de J.L.E.P.C., 16 anos, branco,aluno do Colégio São Bento. Por ser branco, de classe média, seu diag-nóstico é: personalidade normal, não há indicações terapêuticas. A uni-formidade e a despersonificação dos diagnósticos e das indicações dãouma idéia da "readaptação social" a que serão submetidos osadolescentes no SAM.

Os processos são cheios de pareceres de natureza moral, em ge-rai desenvolvidos pelos Comissários de Vigilância, que trazem infor-

mações sobre os acusados para composição dos processos. No item re-lativo a caráter e moralidade temos respostas como essa: "demonstrouser morigerado, imoderado e rixento" , ou "hipócrita, preguiçoso, dadoao furto", ou ainda, "viril, mentiroso, dado ao furto". Com relação àsfamílias temos desde os pareceres positivos ("pais vivem em harmoniaem um lar organizado" ou "a familia é legítima e bastante unida") atéos pareceres que pesarão na sentença: "mãe amasiada", "o desajusta-mento dos pais é a principal das causas-do.desvio deste menor que tem

 permanecido em maus ambientes e conivências. Eis como, da necessi-dade de sua readaptação ao meio social". Os curadores e comissários

 _~mbé.!!1 ~~~*111_das_qu~s.t.õ.es_1Il9!ai~J)ara ..d_e.t.eàiÍ,lllira:~~te•.nliSão":'tratando,:-se_de I1!enorque se acha inteiramente..c'e:~~mparado-,- sem

apoiollloralde sua mãe ...••, ou "a menor em companhia de outras do-mésticas costuma frequentarbailes.públi~os dellominados 'gafieiras'onde travou conhecimento com pessoas de comportamento heterogê ..neo". Ainda do comissário: "Observa-se excesso de liberdade prejudi-cial a sua educação. Faz-se mister reeducação"; "Tudo ocorreu devidoao meio-ambiente em que vivia a investigada - uma casa de cômodos,sempre fértil em incidentes desta natureza, quer pela ignorância e faltade educação de seus moradores, quer pelas exigências muitas vezes

77

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absurdas de quem as dirige".

Enfim, tudo se encaixa na criminalização do adolescente pobre;

da investigação do meio em que se criou à falta de defesa nos proces-

sos, passando pela unifomúzação dos pareceres médicos, dos curadores

e da sentença dos juízes. Não há saída possív~L O Qbjetivo p_rinciIJ.~de

3I,artá-lo, de privá-lo de liberdade, puni-l~, já é alcaIlç~d~aEtes_?e su~

investjgªção, acusação ou sentença; antes de qualquer medida, o jovem

irá conhecer os horrores do SAM.

3. 1964 - Funabem, menoristas e Segurança Nacional

O golpe militar de 1964 produz um novo pacto político-social em

que o Estado brasileiro aprofunda o seu caráter autoritário, de acordo

com a doutrina de segurança nacional86 Segundo Sonia Wanderley

esta doutrina, amplamente utilizada pelo tecnocracia do governo militar 

se legitima através da luta contra os "inimigos internos" e a ameaça

comunista. A segurança interna faz com que o Estado esteja preparado

 para "de maneira eficaz, anular as pressões e os antagonismos dentrodo cenário político"87.

Estas mudanças produzem um novo corte no sistema.  É

 a lei4513/64 que cria a Política Nacional de Bem Estar do Menor e a lei

6697n9   que cria o novo Código de Menores dirigido aos menores   em

situação irregular.   É criada a Funabem e as Febem, órgãos executo-res estaduais.

Para Maria de Fátima Migliari88 a criação da Funabem está rela-

cionada   à   Doutrina de Segurança Nacional, aonde a questão da juven-

tude pobre se encaixa na doutrina de defesa do Estado. A Funabem pas-

sa a atuar como a propagadora de ideologia em nível nacional, com

discurso ideológico fortalecedor das representações negativas dajuven-

tude pobre, prenhe dos discursos darwinistas sociais e dos determinis-

mos da virada do século. A Funabem faz o  marketing'   das políticas so-

ciais da ditadura, no contexto dos "fatores psicossociais" da política deSegurança Nacional. O novo código "menorista" trata da situação irre-

86 Sonia Wanderley.   A conslrução do silêncio: a Rede Globo   1I0S   projetos de controle

 social e cidadallia.   Disserl:lção de mestrado. Nilerói. UFF, 1995. p. 19: "a doulrina de se.

gurança nacional. na sua verlente brasileira. foi elaborada peja Escola Superior de Guerra.

denlro da conjunturn da disputa ideológica. fruto da guerra frin".11 idem.   p.  2 1.

ss Maria de Fátima Migl iar i. / I ljància   e adolesc2ncia'pobresno Brasil. Ri o de Jane ir o . P UC. 1993 .

78

guIar como estado de "patologia social ampla". Para Migliari, a situação

irregular é metáfora da criança/adolescente pobre que precisa estar sob

o controle rígido de um conjunto de normas jurídicas. O Código de

Menores fortalece a figura do juiz e não faz menção a nenhum direito

da criança. Nos processos relativos a adolescentes infratores não exis-

te a figura da defesa do acusado. O jovem em "situação irregular'.'....é

 processado e entra no_c!r~uit~p~nal_~~~ que~jJ~r=-çaa-º_g~rad~_a~~o~ '

gado. Um dos e~~~ do [Jroc~so menonsta   é   o não reconheçlmento do,JI.lS:!!9rcomo pessoa, mas como alguém a ser   tutelad2:

Ao longo de toda a história da Humanidade, a ideologia tutelar emqua"i~lerâmbito resultou em sistema processual punitivo inquisitório.O 'tuielado' sempre o tem sido em razão de alguma 'inferioridade'

(teológica, racial, cultural, biológica, etc.)89.

A ausência do defensor ou advogado demonstra a falta de

garantias nos procedimentos judiciais antcriores ao Estatuto da Criança

e do Adolescente.

89   Eugenio Raúl Zaffaroni. "Verbele do Advogado". in  £stalulo da Criança e do Adoles-

 cente Comentado.   São Paulo. Malheiros. 1992. p.   640.

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IV - Drogas e criminalizaçãoda juventude pobre no Rio de Janeiro:

1968 - 1988

1.omito da droga

Segundo a criminóloga venezuelana Rosa deI Olm09o

,a econo-mia liberal é a força motriz do desenvolvimento do mercado de dro~,L

lega~~~ ileg~s. Há uma determinação estrutural no caso das drogas,regulada porJeis de oferta e de demanda, concomitante a uma cargaideológica e emocional que criou "o mito da droga"91, disseminado

 pela midia e ac olhido pelo imaginário social, a partir de uma estratégiados países capitalistas centrais, responsáveis pela volumosa demand'a

 por drogas no mercado internacional. Nos Estados Unidos, conflitos econômicos foram transformados

em conflitos sociais que se expressaram em conflitos sobre determina-das drogas. A primeira lei federal contra a maconha tinha como cargai<1~Jógica a sua associaçã()_~(),!!irrligra'!tf:~_lllexlcanosgue_~II1~~~à~vamª-()ferta del1l~():de:obra no perí()do <!a-º~pre~sã(). O mesmoocorreu com a migração chinesa na Califórnia, desnecessária após aconstrução das estradas de ferro, que foi associada ao ópio. No Sul dos 'Estados Unidos, os trabalhadores negros do algodão foram vinculados ' Ia cocaína, criminalidade e estul,}I'O.,..];lO'momeniode sua luta por emancipação. O medo do negro drogado coincidiu com o auge dos lin-

chamentos e da segreg~ção sociallegalizadll:. Estes três grupos étnicosdisputavam o mercado de trabalho nos Estados Unidos, dispostos a tra-

 balhar por menores salários que os brancos92.

O problema da droga está situado no nível econômico e ideológi-co. Com a transnacionalização da economia e sua nova divisão do tra-

90  Rosa dei Olmo. A face oculta da droga.   Rio de' Janeiro. Revan, 1990.

91Para Rosa dei Olmo, a difusão do medo da droga converteu a palavra em estereótipo; a

importância do problema não está na substância mas no-discurso que se construiu em torno

da droga. a difusão do medo pelos meios de comunicação produziu o pânico moral das

drogas e também os estereótipos do consumidor e do traficante.   i ' , '

92   Rosa dei Olmo.   E[ nuevo ordeu economico de la droga   y   su   impacto en América

 Latina.   Mimeo, s/d.

81

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 balho, materializam-se novas formas de controle nacional e intemacio-nal. Foi criado todo um sistema jurídico-penal com a finalidade de crimi-nalizar e apenar determinadas drogas. O sistema neoliberal produz umavisão esquizofrênica das drogas,~spe_ci~lIIeIlte .!l_~9_cafIla~Jlor  _,!-mladõ,estimul_,!-~y!odução, comercialização e circulação da droga, qu~ temalta rentabilidade no mercado internacional, e por outro lado constrói umarsen~lJuTIdico-eiaeoIÓgiCo-dé demonizàção e criminalização desta

mercadoria tão cara à nova ordem econômica. . .---"i\jessandro Baratta93   relaciona a teoria do poder em Foucault

com a atual política anti-drogas. Ele analisa   - ª   imªgçmsgctaLesteJepti-}Jada do criminoso (classes proletárias, minorias raciais ~grupos ma(-

 _ginalizados) e o fenômeno que faz com que a criminali~aç㺠de deter-mi!1.~as substâncias preceda o aparecimento do problema social. Adramática concentração da opinião pública e da ação repressiva do-Es-tado não tem como fator determinante o incremento do consumo real~as. sim o incremento do controle levado a cabo pela mediCina e pelodlrello penal. São movimentos ligados   à   disputa de poder interno e in-ternacional. O autor insere a atual política de drogas no sistema de po-der pastoral do Estado tecnocrático, onde a criminalização substitui a

delimitação de segmentos sociais.Vera Regina Pereira Andrade sintetiza a hipótese central do livro

de SaIo de Carvalho,   A política criminal de drogas no Brasil: do

discurso oficial às razões da descriminalização:

É senso comum a idéia de que o combate à criminalidade e particular-mente ao uso e tráfico de entorpecentes são fortemente obstaculi-zados, no Brasil, pela inexistência de uma adequada política criminal. Ahipótese aqui desenvolvida e fundamentada rompe com este sensocomum preci samente ao af irmar que tal polí ti ca ' exi s te ' e tem uma coe-

rência interna. Trata-se de uma política de guerra, combate ou belige-rância (genocida) que, inserida num processo de transnacionalizaçãoou globalização do controle social - gerenciado pelo capitalismo central

- é potencializada, no Brasil, por uma tríplice base ideOlógica: aideologia da defesa social (a nível dogmático) complementada pela ide-ologia da segurança nacional (a nível de segurança pública), ambas ide-ologias em sentido negativo instrumentalizadas (a nível legislativo) pe-los movImentos de lei e ordem (como sua ideologia em sentido positi-vo). (...) O mote que sustenta toda a argumentaçãoé o da distinção entre

~3Alessandro Baratta. "Fundamentos ideológicos da atual política criminal sobre drogas",

In S6  socialmente.   Rio de Janeiro. Relume.Dumará. 1992_

i

!

1

82

o discurso oficial (declarado)e a funcionalidadereal da políticacriminalde drogas (não declarada) pondo a descoberto esta última e situandoo primeiro como o seu discurso l egi timador, o que remete, d iretamente , . .

para o conceito e o funcionamento da ideologia no  interior   do sistemade   c~mtrolepenal94.

SaIo de Catvalho, na mais atual e completa obra sobre a questãodas drogas no Brasil, critica "aquelas ideologias ocultadas pelosaparelhos qe Estado que inviabilizam a otimização dos direitos humanos,demonstrando a diafonia existente entre o discurso oficial e a funciona-

 bilidade do sistema de drogas fundados em legislações penais doterror"95

SaIo critica historicamente a legislação penal sobre drogas no'Brasil com dispositivos vagos e indeterminados e uso abusivo de nor-mas Eellais em branco, que "acabaram por legitimar sistenlas -de totalviolação das garantias individuais"96. O autor demonstra também   ü "

-alinhamento legal do Brasil   à política norte-americana, a partir dos anossetenta, atra~és da absorção do discurso central em que o inimigo inter-no seria o proçlutor e Otraficante. Para ele o ápice do modelo jurídico-

 político ocorre ao final da década de setenta e início da década de oi-

tenta, "com a total incorporação dos postulados da Doutrina de Segu-.rança Nacional na concepção de seguridade pública", dentro das cate-gorias desenvolvidas pelos teóricos da ditadura militar (geopolítica, bi-

 polaridade, guerra total e inimigo interno).Os estudos que tratam da análise da economia da droga afirmam

que a política de repressão na verdade dinamiza esses circuitos econô-micos, e que a econ~!Ilia de mercadui.U1)cionaEe.rfeitamente para o lu-cro dos fornecedores que controlam   O  tráfico de drogas proibidas97 Arepressão favorec'e- a   formação demonopôfios, a começar pelo meca-nismo essencial da formação e controle do preço. O tráfico se utiliza daameaça de violência do Estado para deter completamente   O controle do'Rfeço daquela mercadoria. Para Praslin, a criação do mito da droga

enseja um processo de repressão ao tráfico que na verdade atende

94   Vera Regina Pereira de Andrade. in A polftica. criminal de drogas no Brasil.   Rio de Janei-

ro. Luam, 1996. p.2.

95   Sala de Carvalho. op.   c i to   p. 10.

96   idem.   p _   27.

97   Henri C. Praslin.   La drogue: une économie dynamisée par la repressi6n.   Paris_. CNRS,

1991.  p.   16.

83

n

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a abjetivas de regulação. ecanômica. E tadas sabemas que a camér-cio.ilícita termina par fazer parte da sistema financeirb lícita e ins-titucianal. Saulay e Le Banniec fazem uma descrição.minuciasa dasaperações financeiras decarrentes da tráfico. e suas canexões   c a m

linhas aéreas, bancas e empre'sas transpartadaras. Citanda umtraficante calambiana, que descrevia a fila de banqueiros que dispu-tavam seus "narcadólares", as autares reafirmam a tese da ecana-

mista Jarge Guitán98 de que a partir da crise das petrodólares a sis-tema financeiro internacianal se revig()f~am as "narcad6Ia'res'::'

Para campreender a impacto. da cacaína nas anas setenta nasEUAe a farmaçãa da grande indústria na América Latina da década deaiten.ti.:{irijpºrtaJ1t~J!!~Ilci().Qê"icris"d"supeiPrc,(ilifãa d~-;canamiamUl1diala partir de 19_67e a madela recessiva que se segue-;rté1982,--cam a aumenta da inflação  é  da desemprego, gerando.uma reestrutu-ração.da ecanamia mundial. A cacaína, mercadaria de alta rentabilida-de, passa a cantar cam um sistema de divisão.internacianal de traba-

I lha; algumas regiões da Ainérica Latina se especializam na produção.. das falhas, autras na fabrica da pasta, autras na camercializaçãa, etc.

 Na casa da Ria de Janeiro, que não.produz cacaína, percebe-se

a partir das anas setenta a fartal"cimenta gradual da seu cansuma. Adisseminação.da usa da cacaína traz cama cantrapartida a especializa-

..çãa da mãa~de-alJr~.das camunidades perif~ricas na venda ilegal da'mercadaria. Cameçam a aumentar nas delegacias, na juizado.de mena-res, nas unidades de atendimento.a javens, as infrações relacianadas a

 passe, cansuma au venda de cacaína. Aas javens de classe média, quea cansamem, aplica-se a estereótipo.médica, e aas javens pabres,,gl!ea camercializam, a estereótipo. criminal. Na início. das anas setenta'aparecem as primelfas campanhas de "lei e ardem" tratando. a drogacama inimiga interna. Permitia-se assim a farmaçãa de um discursa

, palítica para que a droga fasse transfarmada em uma ameaça à  ardem.As ações gavernamentais e a grande mídia trabalham a estereótipo.

 palítica criminal. Na medida em que se enuncia a transição. demacrá-tica, este nava inimiga interna justifica maiares investimentas nacantrole sacial. .

 Nas vinte e seis fichas referentes ao.verbete "tóxicas" nas arqui-vas da Daps, a "canstruçãa da estereótipo." está sempre presente.Uma delas, dejaneiro de 1973,intitula-se "Tóxicas e Subversãa"; é um

 _ _ I

98 M. Sauloy e Yves Le Bonniec.  A qui profite la cocaÍne?   Paris, Pluriel, 1992, p. 362.

84

dacumenta aficial, um artigo.sabre a taxicamania cama arma das camu-nistas. Citanda Lênin, Maa e Ha Chi Min,_atribui.-sea disseminação.da

 _usa de dr.Qgªs!lJl!Il!les!ra.tégja.f,aJIlu!!istapªrª .ªrl"Sifui£.ão~4aiil.iimIQ_ ..acidental.

Há um blaca de dacumentas cam relatórias e recartes de jamalsabre a arganizaçãa da crime depais da supasta entrosamento. entre.

 _pr"s()sQQ.mkQ~e_'pr~s.a~.f..Q.mut:ls.Sab a título."Camanda Vermelha"

tenta-se difundir a idéia de que a esquerda se infiltra na crime, que pas-sa a se arganizar mais.  É interessante natar que tanta as "bandidas"   iquanta as:'subversivas':_negaIIl_~al.'~~~.r.s.~~'..rnase.Jaé e.J'l'a~~ camü."';~+fasse real.   I

"ÉTriteressante também, neste dassiê, a discurso.das paliciais edd general então.Secretária de Segurança Pública. Tadas pedem maisarmamentas, a palícia estaria em candições inferiares, abservamas en-terra de paliciais cam protestas e  slogans   "bandida tem que marrer".

2. 1968.1988: o recrutamento da juventude pobre

 Nas processas da arquiva da Juizado. de Menares trabalha-

mas cam um intervalo. de cinco. anas, a partir de 1968 e até 1988. Ainclusão. de 1968 se dá para que averiguemas se há efetivamenteum carte a partir das anas setenta._As estatísticas .que desenvalve-mas sabre a.cri!T!itlalizaçãa par drogas demcnstrarnqueÍlLumacurva ascendeIlte.a partir de 1973. Mas é na análise qualitativa düs

 processüs envalvenda dragas e adülescentes que detectamas mu-danças significativas99

Trabalhamas cam cento. e oITenta fichas' elabaradas a partir de pracessas da Juizado. de Menares entre 196.8e 1988. Esses pro-cessas, escalhidas par intervalas aleatórias e recarrentes, faramdis.tri.huídQS..e.n1r.e..Q...kOJll.'4Q.,.iLI!ld.Q....eo fim de...çad.a..aIllLApartir desses dadas e cam a amastragem aleatória que tínhamas, desen-

valvemas estatísticas que utilizaremas durante a descrição. da perí-ada e que se encantram entre as anexas da trabalha. Na ano. de 1968 pesquisamas trinta etrês prgcessas. Desses,

vinte  é   cinco.são.referentes ajavens"pobres:moradares de favelas aude bairras pabres au de canjuntas habitacianais da periferia da ci-

99  Ver gráficos I e 11em Anexos, p.131,132.

85

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- - o

dade; vinte e quatro deles trabalham (vendedores de jornais, ajudan-tes de eletricista, bombeiros ou mecânicos; balconistas, operários,

 biscateiros, entregadores, comerciários); dezoito não são brancos, eapenas um é do sexo feminino. Embora a idade dos adolescentesenvolvidos com drogas seja de 90,9% entre 15 e 17 anos, apenas24,2% freqüentavam   à   época o curso ginasial, compatível comaquela faixa etária. Do total, apenas 45,5% tinham o curso primárioe 24,2% eram analfabcet()_s! I

 Nesta época ainda estava em vigor a redação original do artigo281 do Códig9 Penal de 1940, que apenava a conduta de traficar masnão a simples posse para usolOO.Em todos os processos estudados em1968 apenas três são por tráfico. J.R.S., 15 anos, pretolOl, cursou o pri-mário, residia na Cidade de Deus e trabalhava ocasionalmente emobras; foi detido por policiais civis da 3 2" Delegacia Policial "em localde tráfico (...) portando um pacote contendo erva"102 Na audiência deapresentação J. confirma o tráfico: "tanto o investigado como o seu  dl -lega estavam de posse da erva; que a erva se destinava   à   venda". J. éinternado provisoriamente no Instituto Padre Severino da Funabem,onde ficará até 1970.

Se o Código Penal não previa pena para a posse com finalidade

de uso, o Código de Menores utiliza "medidas" que impõem, na práti-ca, aos adolescentes aquilo que o Código Penal não impunha aos mai-ores de idade. Assim, temos que, em doze processos (sem que hajareincidência) os meninos são encaminhados para internações no siste'-ma.   Éo caso de P.C.A.C., pardo, 15 anos, morador da Favela do Can-tagalo, detido em 25/6/68 com dez cigarros de maconha. Ele é interna-do no Instituto Padre Severino em junho de 1968, onde ficará até no-vembro de 1969103.

 N.C.S., uma menina de   15 anos, detida após "ronda na qua-dra de ensaios da Mangueira" em 3/3/68 ("ao submetê-Ia a uma re-vista, foi encontrado no interior do soutien   (1)   um vidro pequeno,contendo substância nociva   à   saúde, conhecida por cheirinho da

100   Gilbertn Acselrnd.   Drogas   e  cidadania.   in   Jornal do Brasil,   26 de junho de 1996.

101 Ao   u li l iz n r a s   classificações   p n r d l l   o u pr e t a e s t a m o s a p e n a s   r e p r o d u z i n d o   os   dados   e n C O R -

trodos nos processos, acriticnmente. A análise destas c1assificnçõe5 por cor. utilizadas pelo sis-

tema, constituem interessante objeto de pesquisa não desenvolvida no presente trabnlho.

102  Processo n°  1165 -  MO   1968.   Arquivo da 2' Vam do Juizado de Menores. Rio de Janeiro.

103  Processo   580.   caixa   568-585.   ano   1968.   Arquivo da 2' Vara de Menores .J.M.R.J.

86

loló")104 foi internada no Instituto Coração de Maria em 6/3/68, ondeficou até a comunicação de sua fuga, um ano e meio depois!

Aliás, no ano de 1968 podemos observar um número razoável deqpreensões por drogas químicas "legais", mas com utilização restrita.Foram quatro casos de "cheirinho da loló", um de dexamy! em pílulas,dois casos de amedrine, um vidro de preludium, um de entorpecente lí-quido. Afora estes casos, todos os restantes (excetuando? de tráfico)referem-se a pequenas quantidades de maconha, apreendidas com  JO -

vens trabalhadores pobres (apenas quatro são de classe média). Nãohá neste ano, entre os processos estudados, nenhum caso de cocaína.

 No final do ano de 1968, o Decreto-Lei 385 altera o artigo 281 doCódigo P.enal."-,.~~gllnç!o.9ilb~rta ~~~elrad..Qete[I1lina 1.!.I!l,arup.tura.!!.a_ tradlçãõ jurídica bras~eira.l!tri!>!Jind.o.p~nl!s.id_ª.!!!lçasp:g-at~a.fican!~. ~usuários~ .

O ano de 1973 já apresenta características completamente dife-rentes.   É que neste ano já se faziam sentir as conseqüências da Lei nO5.726 de 25 de o~tubro de 1971, que segundo Fragoso foi "uma daS\leíSmáisrepressivasque já tive~os,Jntroduzindo rito.p_r~~essual prQ: prio para esta espé~.!e_~e Cflme   m.   Segu~d~ ~~selrad, a leI 5.726,além de manter a equiparação entre comércIO IlIcltOe uso pessoal, per-mitiu o oferecimento de denúncia sem o necessário laudo toxicológicoque positiva a matenalIdade do dehto, abrindo campo para o desrespei-to às normas báSIcas de cldadama"106 Mas talvez a maIs Importantemodificação desta lei atue no campo subjetiv? ou.di! c,QllfJgur ação cl~subjetividade. No capítulo   1(que trata da prevençao) podemos ler:

Art.   10 _  É dever de toda pessoa físicaou jurídica colaborar no combateao tráfico e uso de substâncias e'iitõrpecentes ou que determinem de-

 pendência física ou psíquica.

Parágrafo único~essoas jurídicas que não prestarem, quandosolicitadas,a colaboracãonos planos e programasdo GovernoFederal de

.,ÇJl.nJ!lateaQ...tUi6c::Q_e.us.Qde.drogas,.perderãp..ajuízo .do_P.oderExecuDvo,

auxilias e subve.!!~ que venham receP!'!.'d.9.da.União, dos Estados,.doDistrito Federal.Ternt6rios e Municípios.bem como de suas autarqUIas.empresas públicas,sociedade de econollÚallÚstae fundaçõeslO7.

104 Processo   265.   caixa   251-282 .   ano 1968. Arquivo da 2' Vara de Menores.   R.I.

105   Heleno Claúdio Fragoso.   Uçóes de direito penal.  RJo de Janeiro, Forense, 1981, p. 241.

106   Gilberta Acselrad, art. cil.

101   Lei n°   5.726   de   25   de outubro de   1911.

87

, . . . . .

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. '

Os artigos 7° e 8° detenninam que diretores de estabelecimentos

de ensino ficam obrigados, sob pena de perda do cargo, a comunicar às

autoridades sanitárias os casos de uso e tráfico; e que os alunos que

 portarem drogas para uso próprio ou tráfico terão suas matrículas tran-cadas no ano letivo.

(' A lei 5.726 transpôs para o campo penal as cores sombrias da

iLei ae~e~urança Na~ion~Ie~ ar~pre~~ão~~lllliffiites que era)ffiposta, aos brasileIros, no penodo mms agudo da ditadura militar. Esta lei sinte-"

, tiza o espírito das prim~i~a~ ca~panhas de "lei e ordem" em que a

~ •(droga era tratada co~o InImIgo Interno. A construção dp estereótipo• sempre com o auxílIO luxuoso da Imprensa) se ob/,erva no tratmnento

dado aos jovens estudantes envolvidos com progasla sUllo~ão de que

 portem drogas llarª.'!$º_   0 .1 1   tf.:ífifodetenninaQ.f<lJ1celamento da matrí-

cul~ escol~ ~ os profes$ores, os diretore~,e toda~as pes~oªs físicas e

!,undl,:as S.a_Ql11.çlõl!!l\,agasadelataros"iniDl!go.s:'. No artigo 24 lê-se:

~onslde~a-~e.servlço relevante a colaboração prestada por pessoas fí-

sIcas ou Jundlcas no.combate ao tráfico e uso de substância entorpe-

cente ou que dete~me dependência física ou psíquica"   108  Esta lei é

. assmada por I?mJ11OGarrastazu Médici, então Presidynte da República.

O~ efeItos desta leI e do contexto em que é promulgada se fa-

zem sentrr no aumento da criminalização. A criminalização por drogas,

qu: er-ª.7% e~ 19~8, pula para 12% em 1973 (ver gráfico I). A classe

medIa entra nao so no mundo das drogas como tambérri é criiiUi;arrr:;::

?a dentro do espírito "anos de chumbo" da época.   (É   nessa mesma con-

Juntura que a classe média experimenta a tortura). Dos trinta e nove

 processos levantados em 1973, dezessete ermn de jovens brancos, resi-

d~n:es em c~sas_ou apartamentos da Zona Sul e Tijuca, estudantes do

gmaslO ou clen~fico que não trabalhavam à época dos processos. Aos

JOV'~I~S~.o_nsll mlj~.!:. e~,da,;?;oIu01!Lalllifa.:-se o "eJ.!ereótipo médico"atraves da estrategla dos atestados médicos particulares que garantem a

 pena   fO Ta   dos reformatórios.

E o caso da menina M.C.R., 17 anos, branca, moradora de casa em

Botafogo, cursando o científico, detida em   13nn3   com "um embrulhinho

cont~ndo erva:109

•   É ~ntregue à mãe, com liberdade provisória, três dias'

depOIS.Um  m~sdep~ls é apresentado um atestado médico particular e o   Icaso fica restrIto entao às esferas privado/doméstica.

lD8Lei n° 5.726, de 25 de outubro de 1971.

109   Processo n° 895 - caixa 865-899 _ ano 1973 _ Arquivo da 2° Vara do   1.M.R.I.

88

W.O., 17 anos, 2° científico, morador em apartamento na rua

Prudente de Morais, detido com quatro gramas de maconha em 6/ln3,

 passa pelo circuito criminal mas também volta rapidamente ao circuito

 privado /doméstico no encaminhmnento de seu casollO•   Dois dias após

o flagrante é entregue ao seu responsável, que quatro dias depois apre-

senta um atestado médico particular ao Juizado. Vinte dias depois seu

caso está arquivado. Esse caminho se repete em outros casos e vemos

que, apesar de entrarem no circuito policial, os processos relativos a jovens de classe média têm em seu desdobrmnento percurso bem dife-

rente do de seus contemporâneos das classes subalternas .

R.O.M., por exemplo, não tem a mesma sorte. Aqui se aplica o

estereótipo criminal. Preto, 17 anos, morador de favela em Rocha Mi-

randa, margeador gráfico, foi detido em 18/2/73 com dez cartuchos de

maconha. Declarou na delegacia que "é viciado há cerca de dois anos;

que resolveu vender maconha para ajudar sua genitora financeiramen-

te; que s~vs pais não sabem que se encontra na venda de maco-

nha"   111.   E ,internado no Instituto Padre Severino em fevereiro de 73,

foge, é recapturado, foge de novo e tem seu caso arquivado em outubro

de 1974. A gravidade do crime de tráfico poderia justificar a sentença,

mas comparemos com L.A.B.M., 17 anos, branco, detido em 25/7/73fflmando lJIaconha em um carro roubado. L.A.B.M. já havia sido deti-

do em 1971 por furto, mas é internado no Instituto Padre Severino -

 por dois dias. A internação é rapidmnente convertida em liberdade vigi-

ada pelo Juiz, "uma vez que a mãe se compromete a levá-lo para Bra-

sília e lá submetê-lo inclusive a tratmnento adequado" I 12.

A concentração na faixa etárla..<:!gs 15 aos. 17 anos continua,

com um índice de 92,3%. Os percentuais de etnia e escolaridade são

modificados com relação a 1968 pela entrada da classe média no con-

sumo. Cabe ressaltar que, de fato, nos anos setenta, o movimento hippie

e de contracultura iniciados nos Estados Unidos e na Europa populari-

zaram o uso de drogas entre a juventude de uma forma geral.

O número de entradas por tráfico muda, de 9,1 % no ano de1968 para 17,9% em 1973. Alguns casos de drogas legais usadas ile-

galmente também aparecem (preludium, "cheirinho da loló" e stanarni-

na). Aparece também um caso envolvendo ácido lisérgico ou L.S.D.,

110Processo n° 011 - caixa 001- 0015 _ano 1973 _ Arquivo da   2°   Vara do J.M.R.J.

111  Processo n° 276 - caixa 253 a 278 - ano 1973 _ Arquivo da 2&Vara do 1.M.R.I.

Jl2   Processo n° 1006 - cai xa 981 a 1010 _ ano 1973 - Arqui vo da 2D Vara do J.M.R.J.

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droga símbolo do movimento da contracultura protagonizado por Timo-thy Leary na Califórnia. Em 1973 aparecem também três entradas nosistema por cocaína. Coincidentemente, os três casos são de jovens declasse média. Tomemos FL.P.B. como exemploll3: morador de coper-tura na Avenida Atlântica, em Copácabana, cursando o 1° ano científi-co, é detido em 11/7/73 com duas "trouxinhas de maconha" e um "pa-

 pe!" de cocaína, sendo entregue ao responsável dois dias depois medi-ante atestado médico. A.S.S.F, 17 anosl14,   branco, morador em casana Tijuca, é detido com nove papelotes de cocaína e também é tratado

 por médico particular, bem com P.T.PM., 17 anosl15,   morador de Co- pacabana, que chega a fazer exame de dependência no Instituto PadreSeverino mas é desligado da instituição três dias depois.

Alguma coisa mudara no ano de 1973. Mais duramente reprimi-dos, o uso e o tráfico de drogas passam a ser assuntos da esfera da Se-gurança Nacional.   É interessante observar a quantidade de processosiniciados a partir de delação. O número de envolvidos por denúnciaanônima é grande, bem como o número de detidos em   blitze,  o que secoaduna com o Estado policial e o autoritarismo daqueles dias. Doiscasos de prisão por delação nos chamaram a atenção.

J.L.A.M., branco, 16 anos, morador em casa no Anil, em Jaca-repaguá, foi denunciado   à   policia por seu pai e preso em 7/2/73. O pai,funcionário público estadual, levou ao pé da letra o artigo 24 da Lei5726, e declarou ao Juiz de Menores:

é pai de oito filhos, que suspeitou que seu filho estivesse envolvidoem alguma coisa desagradável, no entanto não susp~itavaser   O   que

era, que há alguns dias, quando seu filho saiu, o declarante revistou aroupa de mesmo e encontrou certa quantidade de maconha; compare-

ceu ao   5°   Setor de vigilância e solicitou uma providência;   é sujeito ho-nesto, cumpridor de seus deveres e lamenta o fato de ter um de seus fi-lhos envolvidos em tal fato, no entanto tomou  a   melhor p~ovidênciaque achou plausível116

Já a diretora de um colégio estadual resolveu cumprir os artigos

7° e 8° da lei anti-drogas de Médici, e entregou à Polícia Federal cin-qüenta e quatro nomes de alunos "suspeitos de estarem envolvidos em

113   Processo n° 889 ~caixa 865.899 - ano 1973 - Arquivo da 2° Varado J.M.RJ.

114   Processo n° 1034 _ caixa 1625-1650 ~ ano 1973 - Arquivo da 2° Vara do J.M.R.J.

115   Processo n° 1598 ~ caixa 1567-1600 - ano 1973 - Arquivo da 2° Vara do J.M.RJ.

116   Processo n° 189. caixa 170-200 ~ano 1973 - Arquivo da 2-  Vara J.M.RJ.

90

tóxico". Segundo o agente federal encarregado do relatório, quinze deles prestaram declarações na polícia federal.

Depois de oportuna e proveitosa conferência no Colégio com relação atóxicos, a pedido da diretora e assistida por centenas de pais e alunos,achei por bem alertar-lhes mais uma vez de como procederem a fim dealijar de seus filhos as más companhias, que através dos tóxicosdesejam degradar a nossa mocidade, principalmente estudantes e ado-lescentes, incutindo   à juventude m oralmente desorientada, em meio a

inquietação social dos nossos dias, a pensar encontrar no uso detóxicos, um modo de se afirmar,de se projetar ou de fugir, sabendo queo denominadorcomum do viciado é a vontadefraca e o débil caráter l17.

Ajustiça arquiva o caso, já que, segundo o mesmo relatório,"quanto aos menores nada ficou apurado". Mudam as leis, aparecemoutras drogas (L.S.D. e cocaína), mais jovens entram no tráfico, aclasse média entra firme no consumo. No ano de 1973 observam-setransformações importantes no panorama da criminalização por drogas.

 No ano de 1978 há um aumento notável de entradas por tráfico;a partir da nova lei, a 6368, "elaborada em 1976 no contexto da ditadura

--_._-----_  • •--_.,._-_.   _._-----~----------------~-

[que] volta a dtstmguir a figura do traficante e do usuário, no que serefere à duração da pena de perda de liberdade, mas mantém a crimi-

nalização do usuário, ainda que recupere a exigência do laudo toxico1ó-gicO"."8 (Esta lei continua em vigor até os dias de hoje!). A tendênciaa se afastar daquele perfil de 1968 se aprofunda. Dos trinJª_e.Jrês

 proces~()£ anllli.sa.d-.-?-'.en:!J97ª, oito, ou 24,2%, são por tráfico. Nesteano já   se percebe um processo de estruturação do tráfico. Os meninos

 já se referem ao tráfico como trabalho-o-- ._- -.

Ouçamos M.C.S., pardo, 16 a n o s - :   residente em Santíssimo:

há alguns dias travou conhecimento com Mangueira, conhecido comotraficante, que sabendo das dificuldades por que passava ofereceu-lheCr$ 100,00 por dia para que ficasse tomando conta do local onde

 passava   Ó  tóXÍcOl19

Ouçamos FA.S., pardo, 16 anos, residente na favela Barros Filho:

que vende maconha e cocaína há cerca de oito meses; que  O  declaranterecebe a importãnciade Cr$50,00 (um galo)por cada papelotede cocaí-na que vende;que a maconhaé vendida à razão de Cr$75,OOpor 'troUJo-

117   Processo n° 70 - caixa 51. 73 ~ ano '1973 . Arquivo da 2° VaraJ .M.RJ.

118  Gilberta Acselrad. art.cit.

119 Processo   n°   1254 -   caixa M.I31 - ano 1978 - Arquivo da 2-   Vara J.M.RJ.

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nha'; que o papelote de cocaína é vendido à razão de Cr$ 350,00; queo declarante já foi preso por três vezes; que trabalha junto com X hácerca de quatro semanas;que ganha uma média por dia de Cr$ 500,00 eàs vezes ganha mais, sendo que no dia de ontem ganhou Cr$ 900,00,

 pois aos sábados é o dia que mais vende; que é viciado em maconhasendo que na data de hoje somente tinha maconha pois a cocaína aca-

 bou toda ontem" 120.

Ouçamos A.B., 17 anos, pardo, morador do Morro dosTelégrafos:

que a erva era para seu próprio uso, porém também vende maconha láno Morro; que assim procede na modalidade de comissão, ganhandoCr$5,00 por cada baseado que vende; que não estuda e nem trabalha,só vende maconha   121,

A mãe de M.D.R., pardo, 17 anos, morador da Cohab na Penha,

 preso porque "vinha vendendo entorpecente há cerca de um mês", de-

clarou: "o investigado é o único filho e muito aNda a depoente; que a

depoente não sabe explicar o que aconteceu"122.

M.S.S, 17 anos, morador de Realengo, "declara que eram vendi-

dos os papelotes de cocaína a Cr$ 10,00 e o cartuchos de maconha a

Cr$ 60,00; que o interrogado declara que a freguesia era mais constitu-ída pela 'garotada'; que a garotada às vezes fazia uma 'vaquinha' lá em baixo para comprar" 123.

Percebemos nesses depoimentos não só uma explicitação sem

culpa do trabalho no tráfico como estratégia de sobrevivência, mas os

indícios ele.~l11me!cado.de dr()g~~já estnlturado, altal11entelucrativQ.

com clientela fixa  ("a garotada lá de baixo").Es-Sà'estrUtl.lraáparece já   n o s   depoimentos da polícia e dos meni-

nos através das posições que ocupam, como parte de uma organizaçãoI

local de trabalho. No processo de A.G.M., 16 anos, pardo, morador de

Quintino, os policiais descrevem "um indivíduo de cor preta, franzino,

com uma marca no pescoço e que figurava como 'aviãozinho' na boca

de fumo existente naquele local"124 A.G.M. descreve assim suas ativi-dades:

que os fornecedores são encontrados no alto da rua Saçu, que são

l20Processo   n O   1413 - caixa M.139 ~ ano 1978. Arquivo da  2.  Vara J.M.R.I

121  Processo n° 752 - caixa M.115 - ano 1978. Arquivo da 2&Vara 1.M. RJ

122  Processo   n O   1238 - caixa M. 131 . ano 1978 - Arquivo da 2- Vara J.M.R.J.

mProcesso n° 1353 - caixa M. 136 - ano 1978 - Arquivo da 2&Vara 1.M.RJ.

124   Processo n° 113 . caixa M. 85 - ano 1978 . Arqui vo da 28 Vara J.M.R.J.

92

grandes vendedores de tóxicos; que o depoente era empregado dosdois, fazia a entrega, recebia o dinheiro, prestava contas e ret!fava suaremuneração; que era mero depositário da casa e à medida que aquele~iam vendendo, apanhavam com o depoente; que o matenal er distribuído em lotes, e se o depoente fizesse uso de algum, tena de

 pagar o preço àqueles.

Como em outros casos acima mencionados, A.G.M. também faz

uso da droga, "em dias alternados mediante processo venoso". M.C.S.,

que trabalha "tomando conta do local onde passava o tóxico", desc~eveassim a sua função: "caso visse algum movimento estranho dana o. l' ...125

sinal (...); quando estava fazendo seu serviço, apareceu a ~o leia .Além desta estruturação e dos indícios de uma diVisa0 de traba-

lho, aparecem também os primeiros relatos da "boca de :umo:' armada,

criada como núcleo local de força. FA.S. declarou que 'na ultima vez

que foi preso estava com quatorze papelotes de cocaína e um revól.

ver,,126 R.L.M., preso após comprar maconha no Dendê, Ilha do Go-

vernador, declarou: "que a droga que comprou no dia de hoje, l?e fora

vendida por X, o qual portava um revólver em sua cmtura, acmtosa.

mente; que os demais elementos referidos também andavam

armados"lZ7.

A cocaína, que não aparecera em 1968, e representou 7 ,7% do~casos de 1973, pula para 15,2% em 1978. Sua entrada no ~ercado e

que determina esta estrutnração, a partir de sua alta r~ntabI1idade e do

modelo recessivo que impacta a economia mundial.   Eua  varejo deste

mercado nos morros do Rio nas histórias desses menmos, que perce.

 bemos a força desta mercad~ria que entra pàra se afirmar e que vai re-

crutando a cada dia mais e mais jovens pobres para os riscos de sua co.

mercialização ilegal. ~ . .O padrão geral do perfil dos adolescentes envolvidos ~om dro.

gas permanece parecido com o de 1973: concentração na faIxa etána

dos 15 aos 17 anos (90,9%) e aumento na escolaridade do 2° grau (o

que reforça a afirmação de que a classe média entrou no mercado: dos

casos escolhidos aleatoriamente, 30,3 % referem-se a Jovens de classemédia). Há também um incremento no número de negros e pardos (se

comparado a 73) e nos processos que não informam a etnia (de 2,6%

mProcesso   n O   1254 _ caixa M. 131 _ ano 1978 - Arquivo da 2a

Vara 1.M.R.J.

116   Processo   nO  1413 _ caixa M. 139 _ ano 1978 - Arquivo da 28

Vara J.M.R.l.

127   Processo   n° 1405. caixa M. 139 - ano 1978 - Arquivo da 28

Vara 1.M.R.l.

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em 73 a 6, I% em 78). O número de meninas envolvidas também está

em curva ascendente: 3% em 1968,5,1% em 1973 e 12,1% em 1978.

Em 1978 todos os casos de meninas envolvidas referem-se a consumo

de. drogas, sendo que em dois casos as meninas são entregues ao

JUIzado p~las mães. Uma delas é encaminhada a sanatório particular 

(onde fOi . submetida a vánas sessões de sonoterapia e eletrochoques

como casltgo pelo seu mau comportamento")128. A outra, encaminhada

ao S.L.A. pela mãe, também recebe indicação de tratamento em clínica

 partiwlar pelo Juiz. Levadas ao Juizado para a realização dos sonhoscorr~clOnals de suas mães, voltam à esfera privada por serem de classe

média. O sistema não é para elas, mesmo o choque elétrico será minis-trado num espaço privado.

. ~m 1983 os dados revelam uma volta ao padrão mais popular 

de cnmma!Ização po~ drogas: Dos quare?ta processos estudados ape-

nas nove (22,5%) sao relallvos a memnos de classe média (eram

30,3% em 1978). A percentagem de adolescentes cursando ginásio ou

científi~o cai de 57% em 1978 para 35% (27,5% dos processos não

trazem mformações sobre escolaridade). O número de adolescentes de

etma branc~ diminui de 45,5% em 1978 para 35% em 1983. A grande

concentraçao na margem etária superior continua (90%) mas há um

acré~cimo na faixade 12.a 14 anos (9,1 % 1978 para 10% em 1983).O numero de memnas fIca em 10% contra 90% de meninos. Para

cO,mpor este perfil, agora mais popular do que nos anos setenta, temos

o mdlce de 37,5% de jovens moradores de favelas (21,2% em 1968,

10,3% em 1973, 18,2% em 1978). Terminado o período mais duro do

. autontansmo, a criminalização volta a recair principalmente na juven-

. tude pobre ~ue vive ~s consequências dramáticas do aprofundamento

. de um padrao recessIvo da economia com aumento da inflação e do, desemprego.

A proporção de prisões por tráfico sobe de 24,2% em 1978 para

'47,5% em 1983! Cada vez mais esses processos combinam posse de

Idr?ga~ e armas: M.EJ.,   17   anos, pardo, morador da Cidade de Deus,

!fOldetido com dezoito cartuchos de maconha e um revólver l29; H.D.P.,!16 anos, pardo, também da Cidade de Deus, foi preso com sessenta e

:OIto "trouxinhas" de maconha e muniçãol30; L.C.S., 16 anos, morador 

'.-128p   022'

1'29   racesso   no -   caixa   ,M. 82 .  ano   1978 -   Arq u iv o d a   2-   Vara  J  .M.R.I.

: Processo n 9.347 -   caUt a   556 - ano 1983 - Arquivo da 2- VaraJ   M R   JIJOp   o ..•.

t   racesso n 9.346 -  c~ixa 556 - ano 1983 - Arquivo da 2- Vara1.M.R.l.

I94

Ii

..I

da favela de Acari, foi pego com dezoito "trouxinhas" de maconha e

duas armas; 131P.C.V.S, 14 anos, morador em favela de Rocha Miran-

da, foi detido com sessenta e seis "trouxinhas" de maconha e uma

arma de fogo; 132P.P.P,   17   anos, foi preso com cem pacotes de

maconha, vários papelotes de cocaína e um revólver; 133V.M.L., 17

anos foi preso com quatrocentos e cinquenta e dois cartuchos de maco-, 134

nha, cento e seis papelotes de cocaína e um revólver . Esses proces-

sos, que representam 15% do total, atestam não só a cl?nsoJidação do .

 binômio tráfico de drogas/tráfico aeannas,   m a s   também a violênciª

qiieesiãs"atívidãdes ilegais passam a ~ng~jE~!": Aparecem trocas de

ltros e princlpãlmeiite"ânieaças   d e "  morte para os meninos envolvidos ..

H.D.P., 16 anos, alegou que o material encontrado com ele (ma"

conha e Il'iunição) lhe foi imposto sob ameaça: "que guardou por ter 

medo de X que era mesmo um bandidão, e se não fizesse a vontade

dele, providenciaria vingança" 135.A mãe de M.F.J., preso com maco-

nha e um revólver, declara no Juizado "que ele não reside na sua com-d   . d 'd   "136 panhia e sim na da avó e que pode estar corren o pengo e VI a .

Ou o dramático caso de A.S.V., que se constitui "crônica de uma mor.

te anunciada". Preso com vinte e oito "trouxinhas" de maconha, fica

em liberdade assistida, sendo baleado alguns meses depois; seu pai

 pede sua internação, pois o menino está ameaçado de morte. Seismeses depois, surge um ofício comunicando seu assassinatol37. .

I   A mãe de EA.M.S., 15 anos, da favela do Jacarezinho, denuncia

no Serviço tle Liberdade Assistida:I

que o menor teria sido ameaçado de morte pelos trafica~tes po: ter transmitido a estes seu objetivo de abandonar o negócIO; por ISSO

aconselhada por amigos viaj~ o menor para a cidade de SãoMateus; relata também que, em janeiro, quando regressou da viagem,

sua casa foi invadida por dois homens que diziam estar procurando o

menor para matá-lo138.

O depoimento da mãe de J.L.R., o Zé Pretinho,   16  anos, do

1)1  processo n° 11.055 . caixa 616 - ano 1983 - Arquivo da r Vara   I.M.RJ.1 3 '2   P tocesso nO 10.663 _ cailta   603 -  an o   1983 -   Arquivo da  r Vara  I.M.R.l.

m P~ocesso n°   7.886 -  caiu   505 .  a no   1983.   Arq u iv o d a 21 Vara J.M.R.J.

I" 'P rocesso nOfi05 - caiu   505.   an o   1983.   Arq u iv o d a 21 Vara  J.M.RJ.

" 'Pro cesso n°  9.346.   caiu   556.   ano   1983 -  ArquivÇ) da 21Vara  J.M.RJ.

136Processo nO9.347 _ caiu   556.   an o   1983.   Arq u iv o d a 21Vara  J.M.R.l.

m P rocesso nO 11~060- caiu   616.   an o   1983.   Arq u iv o d a 21Vara  J.M.RJ.

1311P rocesso n°   10.676.   cailt3   603.   an o   1983 -   Arq u iv o d a r Vara  I.M.R.l.

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Morro do Encontro, ~evela t~da a dramaticidade ensejada pelo pro-

cesso de consohdaçao do trafiCO de drogas no Rio de Janeiro.

Declarou-se revoltada com sua situação de vida. Disse-nos estar cansada de oferecer tudo o que pode para os filhos e nada receber emcroca.Relatou-nos que perdeu um filho recentemente envolvido em crá-

fiCO,para o qual fez o possível a fim de afastá-lo desse tipo devivências l39.

-.A   divisão do trabalho também vai-se consolidando. Os meni-

nos, em seus depoimentos, já indicam quais posições Ocupam numa atiyi-dade estgIturada. Já falam de gerentes, olheiros, seguranças e aviões:

q~ando ?  menor foi preso, relata a responsável que ficou ciente, atra-ves de vlzmhos, que seu filho estaria envolvido com craficantesde tó-XICOSda favelado Jacarezinho, os quais o pagaram para que juntamenteC?ffi  outros .menores servisse de "avião"   transportando   as drogas (as-sistente SOCialdo S.L.A.)l40;

que t?dos os menores envolvidos no cráficocrabalhampara um homemque e do Morro do Juramento: este faz todos os sábados a encrega deaproxlmada:nente duzentas "crouxinhas" de maconha; que a carga dodeclarante e apro~lmadamente dez "trouxinhas"; que quem faz asegu~ça da boca e um homem de cor negra, alto, magro, aparentando

uns vmtee poucos anos (A.S.V., 14 anos, pardo, analfabeto, residenteem Ramos)l4I;

não sabendo dizer os referidos menores o que faziam no local tudofazendo crer serem vigias do mencionado ponto de venda de   tó~icoeentorpecentes (policial da  2 0"   D.P.)l42;

que o menor P.P.P.estava com um revólver Rossi, calibre 38, carregado,tornando conta da boca de fumo e dando segurança   à   mesma; destafeita consegUIram prender em flagrante os passadores de maconha edo pó, bem como seu segurança; o segurança não teve tempo de agir eatIrarnos policiais (policial da  2 0"   D.P.)143;

que a bolsa com entorpecente e a arma de fogo pertencia a  X   dono do ponto" (P.c.V.S., 14 anos, analfabeto)I44; ,

139p   "781' .140   r e ce s so n " .   1- cal~a   502 -  a no   1983 -   Arqui vo da 21 Vara J.M.R.J.

l41   Processo n" 10.676 -   ca~xa603 - ano 1983 - Arquivo da 2a Vara   1.M.R.I.

142   Processo n" 11.060 -  c~lxa 616 - ano 1983 - Arquivo da 2" Vara 1.M.R.I.

Processo n 7.886. caixa 505 - ano 1983 -   Arquivo   da 2" Vara   J   M R 1143  idem. . . . .

144  Processo   n°   10.663 -  caixa   603 -  a no   1983 -   Arquivo da 2&Vara  1.M.R.l.

96

hoje permanecia no  interior   do quintal junto ao muro, de onde avistamos fregueses, avistando um freguês saía   à rua para saber o que deseja-va, para depois retomar com a quantidade pedida" (G.T.F.J., 15 anos,morador de conjunto habitacional em Realengo) 145.

A entrada maciça da classe média no consumo aparece em inúme-

ros processos. Se a demanda cresceu tanto ("fizeram uma vaquinha e ad-

quiriram uma "trouxinha" de maconha por Cr$600,OOno Morro do Anda-

rar - c.B.L., branco, 16 anos, morador de apartamento no Grajaú)146, a

oferta vai recrutando nos morros do Rio de Janeiro os jovens que vêmna atividade possibilidades de ganhos fáceis e rápidos:

recebeu em pagamento de uma dívida que o amigo tinha (...) a impor-tância de Cr$IO.OOO,OO;que em seguida trocou-a por certa quantidadede maconha de um desconhecido que lhe disse que poderia ganhar al-gum dinheiro  vendendo-a;   que com esse elemento se entrosou no pro-

cesso de preparo para a venda da erva e confeccionou cinquentacartuchos"(G.T.F.J.)147.

A alta relltabilidade cIonegócio   é   atestada em vários depoimen-

tos, como o de G.T.F.J., e parece constituir-se em principal fator d~i_l1--

destrutibilidade do vª,EQ<:le dr-ºgª~,!º_gLo deJ:aneií:9~Nuriimurido que

está sendo paulatj1J.~en.!~glo1J.!IJ!~_acIo.Jl_ partir--º-ª_~-'JPremaci;ulQ.

mercado, que em brev,,_~~ará_~~glll.ª-ITl~ntm)çIº a maio1".parte_da_\1ida pública e privada, combater um negócio tão lucrativo vai-se tomando

tarefa íffip~~~l;,.d. Pelós processos examinados, seria possível até fazer 

um estudo meticuloso das mudanças do preço e do valor da maconha e

da cocaína durante o período considerado:

O papelote estava sendo vendido a Cr$3.000,OO e os cartuchos de

~aconha a Cr$ 1.000,00(F.P.P')l4'; '_~

que achou tais pacotinhos (seis) no chão e pretendia revendê-los por Cr$3.000,00 cada um (F.A.M.S.)149;

que adquiriu a erva por Cr$ 1.000,00 (uma 'trouxinha') ontem no cencrode Belford Roxo"(J.S.c.)15o

145   Processo n" 9.312. caixa 555 - ano 1983 . Arquivo da 2a Vara J.M.R.I.

146 Processo   n O   7. 802 - caixa 502 - ano 1983. Arquivo da   2 & Va r a   J.M.R.I.

147   Processo n° 9.312 - caixa 555 - ano 1983 ~ Arquivo da 2" Vara 1.M.RJ.

14S   Processo n° 7 .886 ~ caixa 505 - ano 1983 - Arquivo da 2" Vara  1.M.R.l.

149  Processo   n° 10.676 - caixa 603 ~ ano 1983 _ Arquivo da 2" Vara   J.M.R.I.

150  Processo   nl>9.224 - caixa 551 - ano 1983 - Arquivo da 2" Vara   1.M.R.l.

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.

 Nossos depoimentos comprovam haver nos morros do Rio, já em1983, uma atividade de venda no varejo de maconha e cocaína altamentelucrativa, estruturada numa divisão informal de lrabalho. com uma deman-da assegurada pelo consumo maciço destas.drogas, que têm na "garotada"da classe média sua freguesia básica. Podemos ver também que não hámenção, nos discursos policiais e dos meninos, a qualquer atividade orga-nizada fora do JÚvelmicro das organizações locais de venda. Esta estrutu •.ração e divisão locais se dão em volta das "bocas de fumo" sem qualquer 

indicação de que haja uma centralização na compra por atacado oua~guma grande organização por trás deste comércio ilegal A própria

' 1 vIOlência das relações de coerção (assassinatos, ameaças de morte. etc): 1 sinalizam---.Q 8f< l  uma formAQe_11ldistintagQ.,Çpnçeito de."crime.m:ganizacta::; que começava a ser dif!!l}djgo !laq!!.e.Le.J!l.QJIl.entp.n~ mídia e no ima-. ginário.;-'0que vemos é o crime desorganizado, pulverizado em pequenas

unidades nas favelas e conjuntos, recrutando seus jovens moradore~ para uma alternativa de trabalho certa e rápida (embora letal e embru-tecedora) numa década que iria ser chamada na América Latina, anosmais tarde, de "década perdida", pelos seus irrisórios níveis de cresci.mento econõmifcJê1felO-ênj.iiiibr~chjjénio   e }!!il!~!,ãi:jiJi.zãçã~º~seu~ !l-ª--

 bitantes. Zaffaroni 15 já afirmara que, mantido o processo de diminui-ção do Estado e os cortes nos gastos públicos em saúde e educação,calcula-se que no ano 2000 haverá uma massa de duzentos e vinte mi-lhões de habitantes com menos de 17 anos com condições reais de vidaainda piores, Se compararmos este quadro com as dezenas de bilhõesde dólares que o mercado de drogas movimenta a nível mundial, pode-remos compreender porque o quadro de 1983,Só poderia estar maisconsolidado em 1988.

Os dados que levantamos nos processos de 1988 demonstramclaramente, já no fim da década perdida, os efeitos deste processo cru-el. Se observarmos o gráfico com a curva referente aos adolescentes en-volvidos em atos infracionais relativos a drogas veremos claramente

dois picos: um em 1973 (12%) e o outro e,h 1988 (16%). Se 1973 de-tectava a entrada maciça da classe média no consumo, em 1988 vemosa consolidação do quadro de 1983. O perfil dos adol~centes criminaJi-zados é agora basicamente composto de jovens pobres. A percenta-gem de jovens criminalizados por drogas moradores de favelas sobe

15I   Eugenio Raúl Zaffaroni.   Em busca das peneu perdidas.   Rio de Janeiro. Revan. 1991, p.J21.

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 p~~j~,9%;.~.8.,.º~.QC:~s~~ jov~J!Syab!1.!hlI,J!l;57,1_%só têm curso pri-.má.Ij,?,(qu.a_s.e.,~.o/'!..~~o~~::!fabetosD,_embor~lOO% deles eS,tçjana faixãd()s   1 4 _ !i.Q s   17 anos~A criminalização por cocaína pula de 7,7% em 1973

 para 40% em 1988! O tipo de criminalização por drogas (consumo outráficb) já é quase o inverso de 1968. Se no ano inicial da pesquisa tínha-mos 9,1 %   no tráfico e 84,8% no consumo, em 1988 temos 28,6% noconsumo e 65,7% no tráfico! Se pensarmos que em 1995 as infraçõesenvolvendo adolescentes e drogas já constituem cerca de 50% do uni- .

verso de entr~das no Juizado de Menores do Rio de Janeiro (eramapenas 7% em 1?~8)152, entendemos que a criminalização maciça'dessa Juventude, 100cmdanos anos setenta, adquire dimensões assusta-doras. Se pensarmos que, entrando num negócio que rende bilhões dedólares anuais, esses jovens só perdem, e estão cada vez mais pobrese sem saída, percebemos que os vilões desta história não são os garo-tos pobres armados até os dentes das favelas do Rio.

 Nos processos já vemos os sinais de operações da guerra quetem como cenário os bairros pobres:

Hoje por volta das 7hs. o declarante participou de uma invasão a pé nafavela do A~o em Santa Cruz; cerca de cinquenta policiais militares

 partic~paramdessa operação visando a repressão ao tráfico de tóxico, .

mcluslve um helicóptero da Polícia Civil; que as diferentes guarniçõesestavam posicionadas, cercando toda a favela (soldado PM)153;

En<;ontrava-seem patrulhamento pelo Engenho da Rainha quando orádIOda vIatura deu uma solicitação de apoio para o Morro do Enge-nho da Rainha onde policiais encontravam-se em confronto com mar-ginais, que quando começou a subir o mOITO, percebeu que cerca deOItoelementos armados desciam o morro provavelmente para fugir (soldado PM)'S4; ~~ ' .

Hoje cerca das 13hs. após o enterro de um marginal morto a tiros por PMs, houve uma manifestação em frenteao DPO localizado na Cidadede Deus, ocasião que popularesjogaram pedras e fogos de artifício emdireção aos policiais militares do DPO " momentos antes haviam blo-queado a avenida impedindo a passagem de veículos, tendo tambémderramado lixo nessa via pública com a ajuda dos garis da Comlurb"(soldado   PM )'ss. .

152Fonte:   Estatísticas da Segunda Vara da Infilncia e da Juventude _ Rio de Janeiro - 1995.

:~ ~rocesso n O   33.637. caixa M. 1305. ano 1988 - Arquivo da 2- Vara J.M.R.1.

15   Processo n° 29.817. caixa 117. ano 1988 ~ Arquivo da 2- Vara J.M.R.J.

5   Processo n- 29.799 . caixa 1171 . ano 1988 - Arquivo da 2- Vara J.M.RJ.

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Esta carta do Diretor da Escola Ody lo Costa Filho ao Juiz de,

Menores sintetiza o espírito do fim dos anos oitenta: "Comunicamos aVossa Excelência que o menor E.S.J. (que havia sido preso por tráfico)foi considerado envolvido no dia 7/11/88, quando elementos arrn~dos dacomunidade invadiram esta escola a tiros dando fuga a sessenta e oitomenores". No relatório da ocorrência vê-se:

O quadro foi caracterizado pela exacerbada violência por parte dos oitoinvasores, fortemente armados C . . ) . Diante de tamanha desvantagem!:

da disposição enfurecida dos atacantes, os funcionários desta casa fi~caram impotentes e em extrema situação de risco de suas próprias

vidasl56.

Se o binômio tráfico de drogas/armas segue a pleno vapor, cons-tatamos também a familiaridade e a naturalidade com que os meninosvêem os protagonistas do tráfico:

Foi preso quando estava na rua, à toa; que havia uma manifestação derua dos moradores da Cidade de Deus e que a polícia havia matado umamigo seu cujo apelido era "Janico" sem motivo nenhum(...) que achaque Janico estava certo pois apenas vendia tóxico e não se m etia comninguém, não matando, nem roubando" (M.G.O., 14 anos, preto)!57;

Desde agosto do ano passado está desempregado, apesar de já ter trabalhado como ajudante de padaria, office-boy e balconista; que énascido e criado no Morro do Borel; que desde que passou a seentender por gente ouvia falar no indivíduo conhecido por X, comotraficante de drogas naquele morro; que estando desempregado e sa-

 bendo que X recruta menores para serem 'aviões' na distribuição deentorpecentes naquela e em outras áreas no grande Rio; o declaranteque já era dependente de drogas, resolveu trabalhar para o citado tra-ficante;que X pagava a importànciade CZ$12.000,00por mês" (A.B.S.,"Negão", 16 anos,  preto)158;

Que estava na favela do Fumacê de olheiro para outros elementos quevendianatóxicos, em cima da caixa d' água quando viu a aproximaçãodos policiais militares e avisou aos traficantes que saíram correndo,

deixando o 'bagulho' no lugar; que não vende nem faz uso; que cursouaté a 4' série; que não trabalha e às vezes vende picolé; que reside coma mãe e a avó e tem três irmãos" (C.A.S., pardo, 17 anos)!59

156 Processo n031.991 - caixa 1.224 ~ ano 1988 - Arquivo   da   2 aa Vara J.M.R.J.

157   Processo n029.799 _ caixa 1.17 1 _ ano 1988 - Arquivo da 2a&Vara 1.M.R.J.

158   Processo na 32:070 - caixa 1.246 - ano 1988 _ Arquivo da 2&Vara 1.M.R.l.

159 Processo   na 29.804 - caixa 1.171 - anO 1988 _ Arquivo da 2a Vara 1.M.R.J.

100

O trático de drogas é incorporado cada vez mais como trabalho: que foi preso com a erva e um revólver que pretendia vender no bairro; que tra- balha para traficantes que têm "boca de fumo"; que trabalha há doisafiosganhando CZ$ 3.000,00 por semana; que costuma guardar o tóxicona casa de sua mãe; que tanto a mãe como o padrasto têm ciência que

 passa "bagulho" (P.S.v., 16 anos branco, morador do conjunto Sta.Margarida) !60;

Que costuma vender entre cem e quatrocentos papelotes e 'trouxi-

nhas', que recebia por semana cerca de CZ$ 2.000,00 e quando vendia bem até CZ$5.000,00; que parou de estudar no ano passado; que alémda venda de tóxico às vezes ajuda sua mãe no comércio de bijuterias;

que faz o comércio de tóxicos há cerca de um ano" (R.L.S., 13 anos, branco, morador de conjunto habitacional em Oswaldo CruZ)'6!.

 Na America Latina, os meios de comunicaçlío di~selninam o p á -o

nico e as l~is..d~mercadi'see~~llrI:~Úmcle:re~flltar..aiuv.e..ntude pobre para os riscos do.trab.alho nO..c.Q.,!,eEcioilegal. Sobr~_()s habitantes Msfl!YelljSdifunde-_se.o estere.éltip9 criminal; .a violênc!i' <!e.ºorrenteda dis-]luta.P~~ospontos de venda aumenta paulatinamente. A desorganizaçãodo varejo no mercado de drogas vai intensificando esta disputa e o for-talecimento dos núcleos de força, principalmente nas comunidades pró-

ximas aos bairros de classe media. Num contexto de aprofundamento de uma economia recessiva e

de enfraquecimento das políticas sociais básicas, um contingente cadavez maior de jovens pobres vai sendo recrutado a cumprir sua tristesina, seu papel trágico na nova divisão internacional do trabalho. Acocaína - a droga neoliberal, símbol0cle.êxit9.   e..<le._~tqtJls.~nJresell!!consumidores   (yU P E £ es)lig .h ..:: tec;h   '~f1s_e.rn p.!e.~ári().!l,exec~!i'"o_s de._ Qolsas..de .valores) - tem como contrapartida a destruição da juventude pobre das nossas favelas, lançada pelas leis do mercado à criminaliza-ção e ao CÍrculo viciado da violência urbana.

3. Atitude suspeita

Observadas as modificações ocorridas no período (1968-1988)gostaríamos de chamar a atenção para algumas permanências. Várias

 palavras/ expressões-chave repetem-se nos cento e oitenta (180) pro-

160   Processo na 29.805 - caixa 1.171 _ ano 1988 - Arquivo da 2~ Vara 1.M.R.l.

161   Processo n° 31.995 - caixa 1.244 _ ano 1988 - Arquivo da 2" Vara   J  .M.R.l.

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cessas. A expressão   atitude suspeita   aparece na fala policial em de-

zenove processos. Referimo-nos anteriormente ás medidas de seguran-

ça, que na virada do século XIX foram criadas para impor ao sistema

 jurídico penal medidas que punissem independentemente da prática de

crim~_ !\rtifi£io Aa_atitude_suspejtª    faz parte do Universo d~ssaLr!Le_-

didas. Se estas medidas apontam para a contenção de uma periculosi-

dade difusa, a ati!t!<Ie_S!lW~it1U'j)ºnta paril.UJIla.sel~tivjçla.ge_nas práJi-=-

cas da implementação dessas medidas.

Dos dezenove detidos por   atitude suspeita,

  onze são pardos, seissão pretos e apenas quatro brancos. Desse universo, apenas cinco não tra-

 balham. Os outros quatorze são jovens trabalhadores distribuídos em ser-

viços tais como venda de jornais, trabalho em feiras livres, pintura de pare-

des, estofamento de carros, etc. Em que circunstâncias ocorrem estas de-

tenções? O policial da I' D.P. assim procedeu, em 4/1 0/68, ao deter 

 N.T.O., 17 anos, preto, vendedor de jornais:

Hoje, cerca de 21,20hs no Pier da Praça Mauá, prendeu em flagrante bacusado em virtude do mesmo ser encontrado em atitude suspeita  r o d -dando os carros estacionados (...) que ao passar revista foi-lhe encon-trado no bolso da frente um "dólar" da erva denominada maconha 162.

Um policial militar deteve, em 3/12/73, J.C.v., 16 anos, pardo,

 pintor de paredes, na ocasião desempregado:Hoje cerca das 14,45hs. o declarante se encontrava de serviço nacompanhia do colega, patrulhando o Aterro do Flamengo, ocasião emque em frente ao hotel Novo Mundo tiveram a atenção voltada paratrês indivíduos que se achavam em atitude suspeita, sentados  à  grama;

que a seguir o declarante e seu companheiro resolveram   proceder   umarevista nos mesmos (...) que o declarante arrecadou junto aos mesmosuma trouxa de uma erva de cor esverdeada seca de forte odor conheci-da vulgarmente como maconha!63.

lR.C. foi detido em 27/01/78. Com 16 anos, pardo, boy de uma

firma, residente em São Gonçalo, foi detido por um policial militar:

162   Processo n° 1.105 - caixa   1.101~1.1l8-  ano 1968 - Arquivo da 2" Vara1.M.R.l.

163   Processo n° 1.567 - ex. 1.567-1.600 - ano 1973 -  2-   Vara1.M.R.l. Processo que ape-

lidamos   "No woman, no cry"   em homenagem   à   versão de Gilberto Gil para a canção de

Bob Marley que diz:  "bem que eu me lembro a gente sentado ali, na grama do Aterro sob

 o céu, observando hipócritas disfarçados rondando ao redor. amigos presos, amigos

 sumindo assim prá nunca mais... ".

102

 por volta das 15,30hs. em patrulhamento pela R. Visconde de Albu-querque, deparou com o investigado que em companhia do seu colega(...) transitavam em atitude suspeita; que imediatamente abordaram osmesmos e após uma breve revista encontrou em poder dos citados ele-mentos três trouxinhas164

.

Em 13/11/83 R.G.F.L. foi detido por soldados PMs. Pardo, aju-

dante de padeiro, com 17 anos, morador de Belford Roxo, foi abordado

na seguinte situação:

hoje, cerca das 11,3Ghs.o declarante e seu colega deram voz de prisãoao acusado(...) que estava em companhia dos menores(...) que os trêselementos estavam na Pedra do Leme em atitude suspeita; que ao seaproximarem dos elementos, os policiais procederam  à  revista de praxe;que em poder dos elementos foi encontrada certa quantidade de

erva l65.

M.V.S., 17 anos, preto, pintor de paredes, morador da Vila do João,

foi preso por policiais militares em 10/01/88:

Encontrava-se em patrulhamento quando ao passarem viram o m enorinfrator M.Y.S. em atitude suspeita. E sendo este abordado foiencontrado em seu poder cinco papelotes de cocaína, tendo dito o

menor que era viciadol66.

Esses casos, distribuídos entre 1968 e 1988, ilustram uma recor-

rência do.uI~2:~I!,?_veIl,Q£ess.2~ e~êiue :a~xJlressão-~âtihidesuspeTia;'

aparece explicitameIIle. Analisando a fala dos policiais o que se vê é

que a "atitude suspeita" não se relaciona a nenhum ato suspeito, não é

atributo do "fazer algo suspeito" mas sim de ser, pertencer a um deter-

minado grupo social; é isso que desperta suspeitas automáticas. Jovens

 pobres pardos ou negros estâo em,atitude suspeita andando na rua, pas-

sando num táxi, sentados na grama   dô   Aterro, na Pedra do Leme ou

reunidos num campo de futebol.

O caso de 1957 relatado no capítulo anterior, em que M.S, 14

anos, preto, foi preso ("segundo o apurado, estava desempregado, pe-

rambulando em estado de vadiagem pela Zona Sul, quando sua residên-

cia se encontrava na Zona Norte"), sintetiza a metáfora da   atitude

suspeita.   Por vestir roupas grandes e perambular pela Zona Sul, aca-

 bou sendo preso por três anos por suspeita de furto.

164  Processo n° 93 - ex. 84 - ano 1978 - Arquivo da 2° VaraJ.M.R.l

165   Processo n° 10.678 - ex. M. 603 ~ ano 1983 - Arquivo da 2"Vara1.M.RJ.

166   Processo   n O   29.874 - caixa M. 1.173 - ano 1988 - Arquivo da 2"Vara J  .M.R.J.

. 103

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o   artificio da atitude suspeita vincula-se ao que Sidney Chalhoubchamou de "estratégia de suspeição generalizada" utilizada para o controledas populações negras recém-libertas no final do século XIX. No final doséculo XX essa estratégia continua entranhada na cultura e nos procedi-mentos policiais como forma de manter sob controle os deslocamentos e acirculação pela cidade de segmentos sociais muito bem delimitados. A ati-

tud: suspeita   carrega um forte conteúdo de seletividade e estigmati-zaçao.

É nestas rondas, na abordagem a indivíduos   "em atitude suspei-ta"   através de revistas policiais que começa o mecanismo do que cha-maremos   "via crucis da autolesão criminalizada". Nilo Batista lembra:

Co?,o ensin,,--Roxills<'pode ser_."a~tig"""o _aqu,elecomportamento queI~SlO!!~_d~!".-~~~<!_s_~e.9p~aspessoas e que não é simplesmente um   COffi-

Eortalll~nto pecamin?so _011.illloral;(."),0 direito penal só podeassegurar a ordem pacIfica externa da sociedade, e além desse limiten~m está legitimado nem é  adequado para a educação moral dos cida-daos. A   conduta puramente ,interna, ou puramente individual - seja

 pecamm~sa, Imoral, escandll10saou dife,e.l1te.~.i""lta~lesividade que pode legItImar a mtervençãoJlen~11,7 - .-----.---- ...

Entre as principais funções do princípio da lesividade está a de

 proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor.

O mesmo fundamento veda a punibilidade da autolesão, ou seja, ac~ndutaexterna que, embora vulnerando formalmenteum bem juridico,nao .ultrapassa o ãmbito do próprio autor; como por exemplo oSUlCldlO,a auto-mutilação e o uso de drogas. No Brasil, o artigo  16  daleI n' 6.386, de 21.0ut. 76, incrimina o uso de drogas, em francaoposição ao princípio da lesividade e às mais atuais recomendações

político-criminais   168.

Vejamos então a  via crucis da autolesâo criminalizada. N.T.O.,17anos, preto, morador da Estrada do Engenho, vendedor de jornaisfOIpreso "em atitude suspeita rondando os carros"169. Em seu bolso'

após revista, foi encontrado um "dólar" de maconha. Preso em f1agran~te pela I" DP em 4/1 0/1967, ele foi recolhido no mesmo dia ao PresídioEstadual. Embora menorde idade, ficou preso em ]Jrisão comum até

167   Nilo Batista.   Introdução crítica ao direito penal brasileiro.   R i o d e J ane iro R ev an 1 9 89 9 1168  idem,  p .   93. . , , p . .

16 9Processo n° 580 - caixa 568-585 - ano 1968   - Ar qui vo   da  ZD Vara   1.M.RJ.

104

14/11/1968, após idas e vindas burocráticas, resultados de ~xames..Q!<ida..d.e,()í},c:i()úãlvaiâs. ~eu:cã.so SÓf~L;mIUivªdõ ~1l1.3clef'e\,er~irQJI.S'

1 . 210!. É o caso de J.c.P.L.,   17  anos, mulato, morador de casa de cô-

modos em Laranjeiras, balconista, que estudara até 4" a série do I'grau. Foi preso durante serviço de ronda de policiais da 9" DP, que, aorevistá-lo, encontraram entre a camisa e o corpo três cigarros de maco-

nha.

Confessa que realmente estava fumando um cigarro de maconha, masque está arrependido. Os policiais tentaram espancá-lo, está matricula-do na escola e trabalha em loja e como jogador de futebol, entrega odinheiro que ganha  à  mãel70

Ou J.S., mulato, 17 anos, com primário completo, morador doIAPI da Penha e aprendiz de mecânico, preso nas seguintes circunstân-

cIas:Chefiava turma de ronda desta delegacia (Delegacia de vigilância) eq(lando de passagem pelo conjunto do IAPI da Penha, deteve o menor presente; que ao ser revistado, foi encontrado em seu poder um

cigarro de maconha   17\ .

Os casos se repetem, serviços de ronda, atitudes suspeitas,

 pequenas quantidades de droga, delegacia, autuação, etc.Como contrapartid!!..à_ se~tivisI!ld.e.   ~a_,,-£it!lª~suspeitCl.~.àvia..

crucis  da autolesã.o 9riminªlizadª,.<;()!1stata~se uma.estr.at~giª.bem di-ferente se o jQYe..rpobjeto. ~o.f1ªgr!1lltepolicial é branco e/ou de classemédia ou alta. No universo total dos cento.e oitenta processos estuda-dos, apenas'll ,1% são refer~l1tes---ª meninQ~_cl~__ -,:\assLf!lédjª. O con-teúdo do processo e o local de rrroradia atestam o padrão de renda fa--miliar: apartamentos, coberturas e casas da zona suL Todos são bran-cos, a maioria freqüenta a escola e foi pega usando ou comprandodrogas. A essesiov'êmS9.I)s_llmi-dQreS.da zona. suLéimediatamenteaplicado o "estereótipo médica", através da estratégia dos atestadosmédicos particulares que garantem a pena fora dos reformatórios.

Vejamos o caso de A.M.P.N., branco,T1aÍÍos~cursando a 3"série ginasial, morador de um apartamento em Copacabana. O jovemfoi "encontrado fumando a erva denominada maconha" por policiais da12"DP em 19/01/68. Reincidente, havia sido pego em janeiro com cinco

170Processo   nO   149 _  caixa   135-150 _  a no   1968 -Arquivo da 2° Vara J.M.R.l.

17l   Processo n° 153. caixa 152-175 _ ano 1968 - Arquivo da 2° Vara J.M.RJ.

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"trouxinhas de maconha". O atestado médico é apresentado com amesma data do flagrante. "Atesto que meu paciente A.M.P.N. neces-sita ser internado de urgência nesta clínica (particular) para submeter-se a tratamento psiquiátrico. O referido menor encontra-se em trata-mento ambulatorial desde janeiro"l72

Já na primeira apreensão o curador assim se pronunciara: "Om_enor investigado confessou ser viciado, sendo assim, pela improce-den~!a da mvesllgação por não haver ato anti-social a punir". Naaudlencla de apresentação o Juiz determina: "a) entrega do menor ao

 pai, mediante O compromisso de promover com toda urgência o trata-mento do investigado; b) apresentação neste juizado de documentocomprobatório de que o menor foi internado em casa de tratamento es-

 pecializada".

F.L.P.B., branco, 17 anos, morador de cobertura na Av. Atlântica,cursando o I ° ano cientifico, foi preso em 11/7/73 com duas "trouxinhas"de maconha e um "papel" de cocaina. Em S\1a~entença o Juiz determinaa entrega do menor ao pai, que se compromete a continuar o tratamento,trazendo relatório médico do desenvolvimento do caso173. .

W.O., branco, 17 anos, residente em um apartamento de Ipane-ma, cursando o 2° cientifico, foi preso com uma pequena quantidadede maconha. O juiz "determinou a entrega do menor a sua responsávelq~e deverá a'prese~tar exame médico positivo ou negativo de depen-dencla de tOXICO 174 Preso em 6/1/73, seu atestado médico foientregue seis dias depois e seu processo arquivado em vinte e quatrodia~LA rªpidez. dos pt:oc~dÍ]ne!)l-ºsPºliciªis(:jllº!ç.ÍJtisgif~lLda le.t!rlti.ª_ 

- .0CQI["Cm<:ênoª-SllsQs.<laclientela pobr(:(: subllrbana,Os casos se repetem. S.B.S., branco, 17 anos, morador em

apartamento no Grajaú, cursando a 7" série do I° grau, é pego pela se-gunda vez em 11/07/78. Estava com uma trouxinha de maconha e um

 papelote de cocaína.   É entregue a seu responsável no dia seguinte,após a sentença do juiz: "Julgo procedente a investiga~ão e na formado arllgo 2°, I caput da lei 5439/68, determino a entrega do menor aseu responsável em caráter definitivo após ser severamente adverti-

•.do"17:'_Rojs p.elºª,_cluas medidas. Aqui a auto lesão não é criminaliza-. da, e a justiça não tarc!,ae nem falha!,-

, 1 72  P   0685',m   rocesso n " -   ca~xa670-700 - ano 1968 - Arquivo da 2" Vara J.M.R.l.

; 1 1 4 Processo n" 889 -   c.RIxa   865-899 -  a no   1973 - Arquivo da 2" Vara   1.M.R.l.

!   115Processo n   11 ~ calxa   1-15   Mano   1 9 7 3 -   Arquivo da 2° Vara   1.M.R.l.

i   Processo nO809. caixa 117. ano 1978 - Arquivo da 2" Vara   1.M.R.l.,

1106

I

É interessante observar entretanto que, do ponto de vista dassentenças, não há grandes mudanças no período que vai de 1968 a1988. Como vimos anteriormente, a etnia e a classe diferenciam muito •o tipo de atendimento pelo sistema. Mas, no que diz respeito à crimina-lização por drogas, de uma forma geral não há mudanças significativasna visão dos juizes e promotores. Muda o perfil das infrações com umaincidência cada vez maior de adolescentes envolvidos no tráfico; noentanto, o teor das sentenças não se modifica, no período, na direção domáximo aproveitamento do sentimentalismo penal já em voga na época.

Fazendo uma tipologia das sentenças, vemos que, em geral, o .consumo de drogas ou os incidentes envolvendo pequenas quantidadesde maconha ou cocaina não conduzem à privação da liberdade, ou seja,não incluem grande número de internações no sistema. Os meninos sãoem geral entregues definitivamente aos pais, ou sofrem medidas deliberdade assistida ou vigiada, que incluem um comparecimento perió-dico ao Serviço de Liberdade Assistida, onde serão minuciosamente es- .quadrinhados por assistentes sociais, psicólogos e pedagogos (sobreeste esquadrinhamento nos alongaremos mais adiante). .

 No caso de S.R.A.M., morador de apartamento em Copacaba-na, com 17 anos, branco, preso com algumas gramas de maconha, asentença estabeleceu: "Julgo procedente a investigação, mas na pre-sunção de que o menor é responsável, converto em definitiva a liberda-de anteriormente concedida (20/5/69)"176 .

L.C.v, 16 anos, pardo, morador de Nilópolis, pintor de paredes, pre-so com uma trouxinha de maconha em 3/12173 foi entregue provisoria-mente à mãe, dois dias após o flagrante. E em 20/2/74 recebe a sentençadefinitiva: "Julgo procedente, acolhend~a promoção, determino a interna-ção qu~ converto em liberdade vigiada por três meses"l77

Em 19 de janeiro de 1978, P.R.L.A., pardo, 14 anos, aprendiz deoficin,a tipográfica, morador de Piedade, foi preso pela policia com uma

 pequena quantidade de maconha, recebendo em 30/1/78 a seguintesentença: "Entrega do menor ao responsável, permanecendo em liber-dade vigiada pelo prazo de doze meses ( ...) Comparecer ao Juizado deMenores mensalmente comprovando trabalho e escolaridade, devendoainda fazer recolher o JTlenoraté às 20 horas, salvo quando em compa-nhia do responsável"178

176 Processo   na   1 7 2 _  caixa 152-175 - ano   1 9 68 -   Arquivo   da  2 a Vara   1.M.R.J.

117 Processo   n°   1.567 -  caixa   1567-1600 -  ano   1973 -   Arquivo da 2" Vara 1.M.R.l.

178   Processo n" 100 - caixa M. 84 - ano 1978 - Arquivo da 24 Vara J.M.R.J. .

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Em 10/2/88, o curador, que se pronunciava sobre o caso deAB.F., 15 anos pardo, analfabeto, morador de Vicente de Carv~lho,tr!balhando eom_biscates na feira,requer: "procedência da investiga-çao com aplIcaçao da medida de lIberdade assistida, entregando-se omenor provlsonamente aos responsáveis mediante entrega de certidãode nascimento"'79

. .. _tclaroque entre os consumidores não institucionalizados en-,.eontram~s~   quase todos   os casos de j avens brancos de class~ média.

. Mas em muitos casos de jovens trabalhadores negros ou pardos as.s~n-tenças também são brandas. Vamos analisar então os casos de crimina-lização do consumo para ver o que diferencia uns processos dos ou-tros. ~m é i.!)stituçiQ!!alizado por consumo e PQrguê?-

Dos VInte e oito processos analisados, em que jovens são priva-dos ~e l~berdade por posse de pequenas quantidades de drogas, apenas21,4 Yosao brancos, apenas 28,5% não trabalham (ou não declaram trlj-

 balho) e apenas um mora em apartamento de cla~se média na Tijuca.Comecemos por esta última exceção: AS., 16 anos, branco morador em apartamento na Tijuca, é um caso atipico. Em seu process~ não apa-rece registro polICial. A.S. é levado ao Juizado pelo pai, oficial da Ma-nnha, que pede sua internação em 1978.

A partir de 1975 seu filho começou a apresentar problemas de compor-tame,:'o, como abandono temporário do lar, da escola, uso de drogasque vao desde a maconha, picos na veia, cocaína, até uso de MelhoraiO?SCIgarros. Que as agressões em   relação   a  ele,   pai,   irmãos   e sua avó

vem s~ avolumando num crescendo insustentável; que há temorgeneralizadoem sua família de que o menor veuha a cometer algum atograve: agressão ou homicídio contra seus  familiares   180.

. lnte~ado em 1/2/78 no Instituto Padre Severino, AS.~li permanecemtemado ate 11/12/80 (quase três anos). O menino alegOlÍque a internaçãoImposta pelo pai se deve a conflitos entre ele e sua madrasta. E tem osegumte diagnóstico, elaborado pelos técnicos da Funabem:

Até o presente momento o menor não tem apresentado problemas nestaumdade; seu comportamento , observado por   t~cnicose Inspetoria, pareceser totalmenteoposto ao que é observadopelos familiaresem casa ondese mostraextremamenteagressivo e descontrolado. '

179   Processo n° 30,182 - caixa M.1.181 - ano 1988 _ Arquivo da 2~ Vara   1.M   R   J180p   °139' ...

rocesso n . 5 - caixa M. 139 - ano 1978 - Arquivo da 2a Vara  1.M.R.l.

108

Quanto ao uso de drogas o setor psiquiátrico tem outra visão:

Relata o uso esporádico de cannabis,   sem entretanto evidenciar sinto-mas de dependência. No momento assÍntomático e sem queixas.

Este cas9-,."-º-f!)JJletaDleºte"ª-tjjJi.s:~xprime um peculiar uso privado d9 sistema que realizaos.so.nll0s.c.o!!'êcio.n_ais do pai.

Outro caso atipico é o de J.P.S., branco, 17 anos, interno daEscola João Luis Alves; apresentado ao Juiz pelo diretor da escola "fla-grado no setor de esportes da escola, portando um cigarro de maconha"no dia 3l/1 0/78. Recebeu uma ordem judicial de forte conteúdo moral:

Determino o desligamento imediato dos mesmos da Escola João LuísAlves devendo eles serem encamÍnhados a presença do Df. Delegadoda 37' DP juntamente com a substância entorpecente para lavratura doauto de prisão em flagrante (...) Tal medida se impõe, não só porqueevidenciada a periculosidade dos infratores, como também porque, emtese, a hipótese se enluva no artigo 12 da lei n' 6368, já que por eles foilevado o entorpecente para o interior de uma Escola cuja finalidade é

. reeducar e ressoeializar o menor. Não há dúvida de que a conduta dosinfratores foi de toda em toda reprovável e por serem eles destinatáriosda norma penal, merecem receber a sanção que para eles a lei reservou,

 já que con tra aqu ele qu e ma nté m em seu pod er sub stân cia ent orp ece n-te pode-se presumir que futuramente se encaminhará para a prática de

atos anti-sociais"181.

Este caso é atipico por várias circunstâncias; primeiro, por ser um caso em que um flagrante é lavrado em cima de depoimentos deinspetores da escola que se reportam a um fat() ocorrido oito dias antes;segundo, porque são autuados por tráfico, como disse o juiz, em tese, jáque apenas fumavam um cigarro d:emaconha, isto se não quisermosquestionar o sentido "ressocializadore reeducador" da instituição enem a presunção de que o porte de pequena quantidade de maconha"futuramente se encaminhará para a prática de atos anti-sociais".Mas, de qualquer maneira, podemos destacar os dois casos marcadosacima como atipicos.

Analisando os outros processos em que a posse de pequenasquantidades de drogas ensejou sentenças de privação de liberdade, ob-servamos diferentes situações. Algumas internações são determifll!d_as \\em virtude do "estado de abandono". São jovens guenãütêm residên- .cia fixa I!egl vinculosfamW"ãTes'-É   o c a s o   de N:C.S., 15 anos, branca,

181   Processo n° 1.301 - caixa 134 - ano 1978 _ Arquivo da 211 Vara 1.M.R.J.

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III

m?ra~on: d;, Nilópolis, presa em 3/3/68 quando policiais da Delegacia deVlgllancla. na quadra de ensaios da Mangueira encontraram em seu

 poder, no mtenor do soutien, ao submetê-la a uma revista, um vidro pequeno contendo substância nociva   à  saúde conhecida por chel'n'nhod   11'''182   O 'd 'a o o .   UVl   o o Dr. Curador, o "M.M. Juiz determinou o interna-mento da menor no Instituto Coração de Maria, em virtude da mesmaestar sem responsável". Oito meses depois, em novembro do ~esmoano, a Funabem comunica a sua fuga. Em 1969 o caso foi arquivado.

. J.P.S.E,  17

  anos, blscatelro, branco, sem residência fixa, apreen-dIdo em 14/1/78 com 0,83 g de maconha, recebe sentença de interna-mento no InstItuto Padre Severino "tendo em vista o seu estado deabandono". Sete meses depois foi transferido para a escola João LuisAlves, onde no setor psiquiátrico foi "submetido a ter~pia hipnÓÚca (Ni-trazepol 5 mg ao.deitar) apresentando melhora no quadro. Atualmenteapre~enta-se assmtomático e sem queixas"183 Por ser menino de rua'fica mterna<io 1I1definidamente; porfulll.az:u_'!lcigarrgd.e,maconha'é

~bme!I!ÍQ!1l1ma.tefapla com emprego de drogas pesadas!' , .Os outros dOIS casos são similares; apanhados portando uma

gram~ d~ maconha ou cheirando benzina, são internos por não teremresldencJa fi~a e por não contarem com a presença de algum responsá-

vel nas audlenclas de apresentação do Juizado de Menores. N.T:O;;   17   anos, preto, vendedor de jornais, abordado por "ati-tude suspeIta e preso em flagrante por portar um "dólar" da   e   1 -d'   '-d'   rva ma

 ,ta, nao po e provar sua menoridade e é recolhido ao Presidio Estadu.aI em 4/10/67, lá ficando um ano e dois meses! 184

Outros casos de internação ocorrem ou I?or reincidência ou por  porte de drogas associado a outras infrações . .E o caso de R.L.M.,   17

anos, preto, v~ndedor de legumes e frutas, morador da Cidade de Deus, preso por partIcIpar de furto numa loja em Madureira. Foi pego com o produto do furto, CJ,uatropapelotes de pó e uma "trouxinha" de maco-nha em 3/1/1988. E internado em 5/1/88 no Instituto Padre Severinoonde fica por dez meses, até completar dezoito anosl85. Do total de pro~

cesso~ eS,tudados, 25% se dão nestas circunstâncias de reincidência ouassoclaçao a outras mfrações. ",

1lJ 2   Processo n° 265 - caixa 251 ~282 -   ano 1968 _ Arquivo da 2a Vara   J   M R  J '183   P   o . . ..

racesso n 35 - caixa M. 82 - ano 1978 _ Arquivo da la Vara  J   M R  J184  P   o . . .

185   rocessono

I.IOS-caixa 1.101-1.118-ano   1968-Arquivo da   2 1 1 .  Vara J.M.R.JProcesso n 29. 793 - caixa M. 1. 171 - ano 1988 _ Arquivo da 211 Vara J.M.R.J.

110

Mas a maioria dos processos de privação de liberdade por con.sumo (dezesseis processos) não têm explicação interna (abandono,reincidência, outras infrações). Nestes casos, a sentença pesada e in.sólita se explica na etnia e na classe social dos jovens. Todos os meni.nos são pretos ou pardos; com exceção de uma menina branca, porémmoradora da Cruzada São Sebastião. Todos são jovens trabalhadores

 pobres (vendedor de jomal, eletricista, mecânico, biscateiro,   boy,  garra-feiro, lanterneiro, serralheiro) e todos moradores de favelas (Rocinha,-Jacarezinho, Mangueira, Morro da Engenhoca, Parada de Lucas, SãoCarlos), Elaixada (Nova Iguaçu, São Gonçalo) ou de áreas pobres dacidade (Rua do Lavradio, Cruzada São Sebastião).

É o caso de J.R.C.,   15  anos, analfabeto, preto, vendedor de li-mão em feira livre, morador do Morro de São Carlos, no Estácio. Presono dia 6/12/73 "na Travessa Tupi, com um lenço cheirando 'cheirinhoda loló' "186 Tem residência fixa, trabalha, mora com a avó e o irmão,mas recebe sentença de internação no Instituto Padre Severino, ondefica por quatro meses. Ou R.O.P., 15 anos, pardo, morador de SãoGonçalo, trabalhando em "biscates de carregar água", preso em 8/1/78com uma "trouxinha" de maconha, após abordagem por "atitude sus-

 peita" 187.Fica preso na Funabem durante vinte dias, apesar de ser pri-mário, portar pouca quantidade de droga, ter endereço fixo e vinculosfa,miliares. Nesses dezesseis casos, não há um só caso de jovens declasse médi~. Ou seja, nos processos escolhidos aleatoriamellte e!1t,e.,1968 e 1988 'apenas jovens pobres e não brancos são institucionalizados

 por portarempequehas quantidades de droga para consumo próprio. Secompararmos com os casos de classe média ou alta em que até reinci-,

 _ dentes são ejltregues imediatamente aos pais, pod~remos concluir que. o que determina a institucionalização"nãõ"é a droga ou a infraçã,qem si,

mas as condições materiais de existência e a etnia dos adolescentes-=-~ri~olvid<:is~'Se alguma efetividade o sistema penal para menores apre-"

senta aqui, neste caso, ela se dá no campo simbólico,

Só  pra mostrar aos outros quase pretos

(e são quase todos pretos)E aos quase brancos pobres como pretosComo é  que pretos, pobres e mulatosE quas~ brancos quase pretos de tão pobres são tratados(Haili - Gilberto Gil e CaetanoVeloso)

186   Processo n° 1.583 _ caixa 1.567.1.600 - ano 1973 - Arquivo da 211 Vara   J.M.R.l.

181   Processo nO16 _ caixa M.81 _ ano 1978 - Arquivo da 211 Vara 1.M.R'].

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Durante todo o período analisado, as sentenças relativas a tráfi-

co não têm o rígor punitivo que imaginávamos. Nos cinqüenta e um

 processos por tráfico estudados, tivemos vinte e sete sentenças mais du-

ras e vinte e quatro mais brandas, e não há variações por ano. Ou seja,

o padrão de criminalização por tráfico de drogas não varia durante todo

o período estudado, embora seja crescente o número de jovens crimina-

lizados. Vejamos algumas das sentenças mais brandas.

F.R.A., 15 anos, branco, morador em um apartamento em Santa

Rosa, Niterói, cursando a 6' séríe do 10grau, foi detido no dia 8 de fe-vereiro de 1988, com 72 g de maconha na Estação das Barcas na Pra-

ça  Xv.   Na audiência de apresentação, declarou: "São verdadeiros os

fatos imputados; que recebeu CZ$ 900,00 para ir juntamente com o

irmão comprar tóxico no Morro do Borel para uma pessoa de cor escu-

ra, mediante pagamento de CZ$500,00. Que já fez uso de tóxico mas

não é viciado; que sabe que ele mora no Morro do Bumba"188. Apesar 

de declarar para o juiz que estava intermediando a "referida erva

mediante a pagamento de CZ$ 500,00", o rapaz recebe a seguinte

sentença: "Pela curadora foi dito que requeria a procedência da inves-

tigação com entrega definitiva do menor ao responsável". O juiz acolhe

a promo.ção e a entrega definitiva aos pais é feita no dia seguinte á sua

 prisão. E claro <:J.l!~$_~ll_eºclereço,sua_~t!liª,sua escQIaridª-cle.-deroon$, _tram_\Lm.padrjjp_c)assemédia, que, sem dúvida determjllO\l__ esta "absol-

viçi\Q::.imediata.

 No entanto, outros casos, não tão brandos, podem ser conside-

rados penas leves para infrações que mais tarde viriam a ser conside-radas "hediondas".

M.A.E.R., 17 anos, pardo, que cursara até a 3' série do 10grau,

residente na Taquara, em Jacarepaguá, foi detido no dia 4/2/88 com de-

zesseis "trouxinhas" de maconha. Perante o juiz, declara: "q~e são

verdadeiros os fatos imputados; que o tóxico lhe pertencia; que cobra

CZ$IOO,OOpelo tóxico; que comprou 100 g por CZ$ 1.000,00; que

trabalha com venda de tóxico há menos de uma, semana; que reside em

companhia dos pais; que tira uma média de CZ$ 600,00 por dia"189 Na primeira audiência de apresentação, em 8/2/88,   li curadora or,ina pela

medida de internação para estudo de caso. O juiz acolhe na íntegra o

 parecer do Ministério Público, e o menino é internado no mesmo dia no

188   Processo n° 30.177 - caixa 1.181 _ ano 1988 - Arquivo da 2" Vara 1.M.R.l.

189Processo n°   30.149 -   caixa   1.181 -  a no   1988 -  Arquivo   da  2" Vara   J  .M,R.].

112

Instituto Padre Severino. No dia 29 de fevereiro, três semanas depois,

o próprio Instituto sugere seu desligamento. No dia 10de março, dois

dias depois, é realizada nova audiência e seu pai, gari da Comlurb,

requer seu desligamento prometendo dar toda assistência e apoIO.

Curador e juiz coincidem na sentença: conversão da internação em

acompanhamento pelo Serviço de Liberdade Assistida (S.L.A.).

C.R.R.R., 17 anos, pardo, que cursara até a 50 série, morador 

de favela em Santa Cruz, era mecânico, mas vivia de "vender bagulho"

na ocasião de sua prisão. Foi detido em 7/1/88 com cinqüenta e quatro"trouxinhas" de maconha e sete papelotes de cocaína. Declara perante

o juiz que "vende tóxico, ganhando cerca de CZ$ 2.000,00 por dia na

venda"190 Sua primeira audiência de apresentação se dá no dia seguin-

te. "Tomadas as informações do menor, este traduziu uma série de

elementos que confirmam seu processo de marginalização. A Dra.

curadora opina pela procedência da investigação e requer a internação

do menor para estudo de caso". O juiz acolhe "a douta promoção" e o

menor é internado na Funabem. Mas apesar do "seu processo de

marginalização", um mês depois o diretor do Instituto Padre Severino

 pede o desligamento e no dia seguinte o menino é entregue definitiva-

mente aos pais, com medida de advertência.

J.C.O., 16 anos, morador no Morro dos Prazeres, foi detido nodia 31/1/83 com dez "trouxinhas" de maconha. Na audiência de apre-

sentação, no Juizado, ele "confirma os fatos e se compromete a não

cometer mais infrações", já que a maconha "era pra vender para aju-

dar a mãe financeiramente"191. O juiz julga procedente a investigação

e impõe a medida de liberdade assistida autorizando a entrega à respon-

sável. Em julho, lC.O. atira e fere-eutro menino, sendo preso e inter-

nado no sistema, fugindo em julho de 84, tendo seu caso arquivado em

1985.

Vemos nos dois últimos casos que, até quando percebem um

"processo de marginalização", os operadores da Justiça, neste momen-

to, preferem a utilização mínima de privação de liberdade e máxima do

Serviço de Liberdade Assistida. Podemos afirmar que talvez para jo-vens de classe média a passagem pelo sistema seja mais rápida que a

dos jovens trabalhadores de bairros pobres ou de fa~elas. Mas há, visi-

velmente, uma política de minimizar as internações. E claro que todos os

190   Processo   nO 2 9 .8 4 1 -   caixa   1".172_  an o   1988 _ Arquivo da   2"   Vara   1.M.R.l.

191   Processo n° 7.872 - caixa 504 _ ano 1983 _ Arquivo da 2° Vara J.M.R.l.

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casos de jovens "traficantes" de classe média se encaixam nas penas

 brandas.

P.T.P.M.,   17 anos, branco, estudante na  4'   série ginasial, morador 

de apartamento em Copacabana, foi preso em 29/11173, vendendo

L.S.D. O jovem declara que "estava com problemas famIliares onundos

da separação de seus pais e necessitava de dinheiro para manter-se;

que por estar desorientado e sem apoio em casa, concordou em manter 

tal transação a fim de possibilitar sua saída de casa,,1n O juiz determina

o envio de P.T. ao Instituto Padre Severino para exame de dependência

de tóxico. O exame é feito imediatamente e três dias depois, numa

outra audíênci"a, a sentença é "liberdade vigiada por quatro meses".

Podemos dizer que a classe social e a etnia podem abreviar ou retardar 

os procedimentos, mas a quantidade maior de sentenças brandas

distribuídas por casos diversos é uma realidade no periodo de 1968 a

1988.

E as sentenças mais duras? O que determina que, em vinte qua-

tro casos, a privação de liberdade tenha sido a solução?

R.M.M.,   15   anos, pardo, morador do Largo do Tanque, em Jaca-

repaguá, cursou até a segunda série, foi detido com um revólver calibre

38 no dia 11/1188, em local de "boca de fumo". Perante o juiz declara

que estava "dando guarda à boca, que estava trabalhando nessa função

há duas semanas"193 Já tinha sido preso antes por furto, tendo perma-

necido por uma semana no Instituto Padre Severino, encontrando-se

em liberdade assistida. Recebe sentença de internação em 13/1/88, fu-

gindo cinco meses depois.

P.S.V., branco,   16 anos, que estudara até a  3'   série, morador do

conjunto St' Margarida, foi preso com cinqüenta e oito "trouxinhas" de

maconha, nove papelotes de cocaína e uma arma em 4/1/88 e declarou

vender droga com o conhecimento de sua mãe e seu padrasto. A pro-

moção requer a internação para estudo do caso, "em face do envolvi-

mento do menor, assim como seus familiares em tráfico de entorpecen-

tes,,194. O juiz acolhe o parecer e P. é internaqo no Instituto Padre Se-

verino em 6/1/88 ali pemanecendo até 28/12/8~, quase um ano. Grande

 parte das sentenças com privação de liberdade se dão por reincidência:

P.P.P., pardo,   17  anos, mensageiro desempregado, morador de Guada-

In   Processo n° 1.598 _ caixa   1.567~1.600_ ano 1973 _ Arqui vo da   l U   J.M.R.l.

19)   Processo n° 29.887 - caixa M. 1.173 - ano 1988 _ Arquivo da 23 Vara 1.M.R.J.

194   Processo n" 29.805 - caixa M. 1.171 - ano 1988 _ Arquivo da 23 Vara J.M.R.

114

lupe, foi detido em 2/2/83 com cem cartuchos de maconha, um revólver 

calibre 38 e vários papelotes de cocaína no Morro do Encontro195. P.já

havia sido detido por roubo e furto duas vezes. Recebe sentença de ín- •

ternação, fugindo três dias após sua entrada no sistema. Todos os jo-

vens preso~ por tráfico que já tinham passagem pelo sistema recebemsentenças de privação de liberdade.

Os outros casos se dão com jovens que não apresentam re.-.

ferências familiares.   É o caso da jovem S.A.O., branca, 17 anos,

que cursara até a 5' série, presa em 9/1/88 com treze "trouxinhas"de maconha. Perante o juiz, declara "serem verdadeiros os fatos,

costuma vender tóxico( ... ) para cuidar de seu filho, não tem mãe,

nem pai e reside na rua"196 Ela é internada na Feem e foge dezmeses depois.

Este também é o caso de R.O.M., preto,   17   anos, ex-margeador 

gráfico, preso com dez cartuchos de maconha em 18/12/73197. Na aw-

diêricia de apresentação declara "ser órfão de pai e mãe, não tem ne-

nhum parente conhecido; que depois da morte de seus pais foi para a

~asa de um padrinho de crisma que mora em Pedro do Rio e de lá fu-

giu por ser constantemente espancado pelo padrinho que sofre de neu-

rose de guerra; que no momento vive de favor em companhia de uns

homossexuais" Receb.e...s.entenç.a_d_ejnt.ernação"tendo em vista o es-tado de abandono do menor".   É   internado em 21/2/73 e foge quatro

meses depois~E-ie;ntérnado em 20/9/73, fugindo de novo três mesesdepois.

Entre os casos de internação aparecem jovens que integram es-

truturas de tráfico e que correm perigo de vida ao serem presos e infor-

marem sobre as atividades que deserrvelviam.   É  o caso de A.G.M., 16

anos, preto, morador de Quintino, preso em 31/1/78 com cento e seten-

ta cartuchos de maconha, que delata à polícia o nome do "dono do ne-

gócio". O juiz determina a sua internação "recomendando que lhe dê o

tratamento, bem como vigilância, tendo em vista o teor de suas decla-

rações onde aponta terceiros"198. Internado em 1/2/78 no Instituto Pa-

dre Severino A.G.M. ali permanece até 31/10/80.

19$   Processo n" 7.886 - caixa 505 - ano 1983 _ Arquivo   da 2m Vara 1.M.RJ.

196   Processo n" 29.858 - caixa M.l.l?3 - ano 1988 _ Arquivo   J .M .Rol.

197   Processo n" 276 - caixa 253-278 - ano 1988 _ Arquivo 1.M.RJ.

198Processo   nO  1 1 3 -   caixa   85 -  ano   1 9 78 _   Arquivo da 23 Vara J.M.RJ

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1 " '   r ..

8/17/2019 Difíceis Ganhos Fáceis - Vera Malaguiti

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 Não há, entre os casos de sentença mais pesada, nenhum ado-lescente de classe média. Melhor diriamos, os poucos jovens de classemédia detidos por tráfico recebem sentenças brandas. \lln caso, i~ntre-tanto, nos chamou a atenção e é bem emblemático. M.S.M. é umamenina branca, de 15 anos, moradora em casa de classe média de Pe-trópolis, tendo cursado até a  6 "  série do la graul99 Foi detida no dia 29/6/78 com 50 g. de maconha. M. já havia sido internada na Feem duran-te vinte e oito dias; examinando o processo, não se conseguia entender 

.como uma menina de classe média havia "caido" duas vezes no siste-ma. Sua internação vai até 28/5/79, quase um ano. A).unentando as len-tes, vimos que era uma menina adotada. Sua mãe não luta pela senten-ça mais branda, já que "não têm bom entrosamento". M.S.M. ~stánuma familia de classe média, mas não é de classe média: recebe en-tão a sentença dos pobres.

Através das sentenças, pudemos analisar o discurso dos opera-dores centrais do sistema penal: promotores e juízes. Para surpresanossa constatamos que, apesar de estar em curso um aumento daquantidade e da qualidade dos atos infracionais envolvendo drogas, nãohá no período estudado uma tendência ao endurecimento no tratamen-to penal da questão. As sentenças variam de acordo com uma tipologia

que pudemos enunciar: mesmo os crimes de tráfico recebem penas brandas, caso o adolescente não seja reincidente ou não esteja em ris-co. Há exceções que confirmam a regra, mas podemos afirmar que osoperadores centrais trabalham no limite mínimo da privação de liberda-de. E apesar das mudanças na legislação, não há diferenciação ex-

 pressiva entre o uso ou tráfico de drogas. As sentenças são dadas emfunção das circunstâncias, da análise de cada caso e,  ça va sans dire,

das condições socioeconômicas dos envolvidos.

4. O olhar   seletivo

As equipe auxiliares das Delegacias de Menores, do Juizado de

Menores e as equipes técnicas da Funabem, compostas por assisten-tes sociais, psicólogas, psiquiatras e médicos, se destacam no processo

 pela construção de estereótipos. Quando falamos de estereótipos utili-zamos os conceitos de cultura e os sistemas simbólicos como instru-

199   Processo n° 751 - caixa M.115 . ano 1978. Arquivo da 2~ Vara J.M.R.)

mentos de poder em Bourdieu2 o o .   Nos depoimentos desses operadores podemos compreender a "programação" de seus discursos de seussistemas dr   ensino e de pensamento. Nesses depoimento's busca-mps entender o que é proclamado e o que é escondido. Lembrandotambém Chartier 2 o l,   trabalhamos as representações expressas por estes agentes e determinadas pelos interesses que as forjaram, eque a~esar do discurso "técnico" não são nada neutras. Estes qua-dros teclllcos, que entram no sistema para "humanizá-lo", revelam

em seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre assent~nças a serem proferidas) conteúdos moralistas, segregadorese racIstas carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista socialerigido na virada do século XIX e tão presente até hoje nos siste-mas de controle social.

Franco Basaglia202 afirma que os graus de aplicação da violêncianas escolas, famílias, fábricas, hospitais e prisões dependerão da necessi-dade de ocultá-la ou disfarçá-Ia. Nos nossos sistemas, a concessão de po-ç1eraos técnicos disfarça a violência, mistificando-a através do tecnicismocujo objetivo é fazer com que o objeto da violência se adapte sem chega;a ter consciência e sem reagir. Sua função é ampliar as fronteiras da ex-clusão, descobrindo tecnicamente novas formas de infração e produzindo

a ação técnica reparadora, que adapte os indivíduos   à aceitação de suacondição de "objetos de violência", perpetuando o processo de violênciaglobal.

Gizlene Neder, em seu   Ajustando ofoco das lentes: um novoolhar sobre a organização das famílias no Brasil,   repõe em discussãoa fo~ação da nacionalidade e da cidadania desde a fundação da Repúbli-ca no BrasIl. Para Neder, o paradigma científico hegemônico naquele con-

texto ~ra o raclsm.o de...ins.Pinlç.ão biOIO.gista com sua noção de "raças infe-   Inores ..:g~~~e~~lema da formação da nacionalidade brasileira "criava   I~nstr~ng~~erIt?":com:ó -inchiir-o s e x :escravos'fõ teÚü, dirigido a   i

ope~dores SOCIaIS, busca romper o conceito de família padrão (tradicional,   ! patnarcal, vitonana ou ibérica) utilizando o conceito de "famílias", no plural, .

a partir da multiplicidade étnico-cultural de nossa formação sociocultural.Estas metáforas biológicas que jUndaram a República têm presença   I

assustadota no discursodªs-''!;q).JiPj;~_~J;lÜ£illi':'llJ.!e.trabalham nas ins-

200  Pierre Bourdieu, op. cit.

201  R Ch'   Ah'    .1.   I Ioger art ler.   IstonQ cu lura -  entre práticas e   representações.   Rio de Janeiro, Ber-

trand, 1990.

202Franco Basaglia.   A  instituição   negada.   Rio de Janeiro, Graal, 1985, p.   101.,

:'   ,

117

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;

II

tituições de controle social do sistema de atendimento a adolescentes

envolvidos em atos infracionais no final do milênio. O olhar tuoral e pe-

riculosista que esses técnicos lançaram às noções de família, trabalho e

moradia é digno de nota.

Ao ler os relatórios, pareceres~iagtl<Jsti<:os.4~ss~l"'técnicoi'

I I percebem. oS.9ue ..oc.o.nví".io fam.iliar fun.c.io.na.se.mp.ree.o.!!lo ilt~nu~te

, . d e p e n is . .ouaTiernativas de recuperação paraj0'lens"infra!()re(':J'Io

, i I entanto, à"cargáldeol6gicà cOlitida na visão das famílias p..obr~s2.E_ãol n -! I cluídas na "f~J!líli~'p~dr'iº-,~L~_<:l!bafun..c.lonal1d-º<:ºmocarg~ l1~ll~!IY-ª

i i  que afeta duramente as sentenças e sanções estip1!!~<!as.p.aI.aJ~~~.I1e:

: I gl"OSe/ou pobr"s.

. No sumário social do Juizado, como informação básica sobre

R.C.A., uma menina parda de   17  anos, moradora de Paciência, detida

"em companhia de individuos maiores de idade que faziam uso de

maconha", temos; "a menor é proveniente de família desestruturada, d~

nivel socioeconômico baixo''203

A.C.A.,   16 anos, branco, vendedor de refrigerantes na praia,

 pego com 1,6 g de maconha, é "membro de família desestruturada"204;

R.O.P., 15 anos, pardo, morador de São Gonçalo, trabalhando em

"biscates de carregar água", preso em 1978 com uma "trouxinha" de

maconha, é "menor com família desestruturada, já que vive com a tia e

avó paterna já que sua mãe é muito pobre''205 Ou seja, toda estratégia

de estruturação familiar num contexto de miséria e exclusão social é

tida como sua antítese, a desestruturação.

Vejamos o emblemático caso de M.S.C.B., 14 anos, branca, mo-

radora da Cruzada São Sebastião, detida em 1/2/78 com duas gramas

de maconha. O serviço social da Delegacia de Proteção ao Menor afIr-

ma;

Sua família  é  totalmente desestruturada; apesar de sua mãe viver com omarido, tem companheiro que costuma levar para dentro de casa quandoo marido não está. (...) Acreditamos que a menor deva ser mtemada para

. - 'd futur    "206que receba tratamento e onentaçao para sua  VI   a a .

203Process o n° 7.695 - caixa M. 498 - ano 1983 - Arquivo da 28 Vara   1.M.R.l.

204Processo n°  7.722 _ caixa.M.   459 -  ano   1983 _ Arquivo da  24 Vara   1.M.R.l.

205   Processo nO 16 _ caixa M.   81 -  ano   1978 _ Arquivo -da 2a Vara   1.M.R.l.

206Processo n° 97 .   caixa M.   84 -  ano   1978 -   Arquivo da   28 Vara   1.M.R.l.

118

Internada na Escola Santos Dumont (onde permanecerá por seis

meses) recebe o seguinte "Resumo Psicológico" dos especialistas daFunabem:

Seu comportamento anti-social   é um reflexo de toda uma estruturafamiliarirregular,ondefaltou-lheeducaçãomorale social adequada.Sua

 personalidade está afelada por uma contradição entre seu EU e certosconceitos adquiridos por uma existência pautada num meio .ambienteanti-social.

O olhar moral repete-se inúmeras vezes. J.P.S., 17 anos, morador de Nova Iguaçu com histórico de seis encaminhamentos para a Funabem_ 

 por estar perambulando, vem de "família ilegalmente constituída, com con-.

vívio marital de vinte anos, composta de casal e cinco filhos. A gemtora fa-

leceu e o genitor vive amigado"207 lG.,   16   anos, entregador de farmácia,

"propede de família ilegalmente constituída, mãe solteira"2os.

O caso de G.F.F.J, preso por tráfico em 1983, aos 15 anos, mo-

rador de conjunto habitacional em Realengo, tem na mesma ficha de

avaliação e encamihhamento do Instituto Padre Severino duas informa-

ções contraditórias: por um lado, um especialista afirma que ele "proce-

de de família desagregada, composta de mãe e seis filhos"; e, por outro,

"através de nossos contatos, percebemos tratar-se de família bastante

unida, existindo fortes elos afetivos, os quais se traduzem no apoio econfiança que depositam uns nos outros"209. Aqui a agregação é

entendida como desagregação a partir do padrão atriarcal' e ã '

 pai, é desagregada. Toda a realidade antropológica de organizacão da   * * 'família afro-br~ileiraª()º",yivell~ ..s'-a~-ª<:ravi.4~~1p....9..uea mulher tem

um papel "agr.!<gador",  ! \ . .cJ.e_'illI,:zada.",_~.el1tel1.di<!.apeloseu contráriº.

Em todos os processos que sele'ctofiamos para analisar a visão

de família dos operadores, apenas dois apresentam a família estruturada

como elemento positivo, atenuante das sanções impostas aos jovens.

Será coincidência a origem sacio econômica dos casos em questão? .

c.B.L., branco,   16 anos, morador de apartamento no Grajaú,

detido por fumar maconha nas pedras do Arpoador, em 1983, não é de

família desestruturada; apesar dos pais serem separados, "vive emcompanhia da mãe e sempre houve bom relacionamento familiar"210

21l7Processo n°   1.301 -   caixa M.   134.   ano   1978 -   Arquivo da  28 Vara  1.M.R'}.

21lBProcesso n°   184 -  caixa   170-200 -  ano   1978 .   Arquivo da r Vara   1.M.R.l.

209Processo n°   9.312 -   caixa 555 - ano   1983 -   Arquivo da 2 8 Vara   1.M.R.l.

210Processo n°   7.802 -   caixa M.   502 ~ ano   1983 -   Arquivo da 28 Vara   1.M.R.l.

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.

  J.P.R.P., 17 anos, branco, morador de apartamento na Tijuca,cursando a 8' série do I' grau, detido com 1,3 g de maconha em 1983,filho de um casal separado (coronel do Exército com uma assistentesocial) tem em seu estudo de caso da seção de Prevenção e Diagnós-tico da Delegacia de Proteção ao Menor a seguinte conclusão:

Em entrevistaobservamos que o menor procede de família organizada,tendo ainda irmãos maiores estudantes (...) Sugerimos à família o seuencaminhamento a serviço especializado"211

.

 No Serviço de Liberdade Assistida a assistente social declara:O menor  é  componente de família bem constittlída,de classe média alta(...) Diante do exposto acima, não vemos a nbcessidade do menor sesubmeter a tratamento psicoterápico neste serviço. Acrescentamos

ainda que a mãe do menor  é  assistente social, portanto capaz de lhe dar apoio necessário, no que aliás a mesma se comprometeu.

Este depoimento acima enuncia não só a visão positiva que o sis-

1 I t~ma tem da família I!adrªº-.(br<lm:.ª.Sl_PNprietária)JnasJambém, e prin-

I

,clpalm~te ..•..a cert~za._c!~._q.ue....!;.s.s".sistema Pegai !~!!Letigueta, só   Sl';[Vg.

 para J)Qbres,EJi!e.JQVem,Jlor pm~e9.eLde "familifl organizada", "benlconstituída, de classemédi~ªlta", não tem "necessidade" de submeter-se ao Sistema de Liberdade Assistida. Isto demonstra não ser a liber:

.clãde-àsslstidamedidÜl!!:!>1iç"ª-.para deJ!;rmin~c!9--!Ip--ºde-ato-i~fra.9W!1-ª1rnas,Jnm, medIda de controle social para setores sociltis ,expliçjtamented..etenninados.

Esta seletividade do sistema aparece cristalinamente no caso deR.T.T., branco, 16 anos, que   "nunca trabalhou",   estudante do 2' ciert-t!fico do colégio Andrews e morador de apartamento em Botafogo, dd-tIdo em 1973 com um "dólar" de maconha. A assistente do Serviço deLiberdade Assistida afirma em seu relatório: .

há de se ressaltar também que, sendo o menor de classe sócio-econômica privilegiada, sente.se bastante constrangido em precisar decomparecer a este estabelecimento e este fato   chegou   a acarretar  no

~e~or  u m   se~tiITI~!!!º_ 4~_meI).-ºsval~~_ ªQ ª !~ .9 .ª -4 ~ _-  o que só vem a pre-

JudIcar o entrosamento e recuperação do mesmo (...). Em virtude dascircunstâncias  j á  expostas. consideramos não ser recomendável a per-manência do respectivo menor em nosso serviço, visto que estárecebendo orientação médica e familiar".212

111   processo n° 11.135 - caixa M. 613 - ano 1983 _ Arquivo da 2a Vara J.M.R.l.

212Processo nO109 _ caixa 0101.0122 _ ano 1973 _ Arquivo da 2'"Vara   1.M.R.l.

120

..;

Podemos dizer então que, na visão de seus operadores, o Serviçode Liberdade Assistida cura e recupera um certo tipo de jovem, mas prejudica e constrange um outro tipo. Nada mais verdadeiro do queisto. Há um caso, de 1988, em que L.S.R., 17 anos, branco, natural dePernambuco, morador no Morro do Borel e entregador de pizza, detidocom 6 g de maconha, compareceu a apenas uma entrevista do Serviçode Liberdade Assistida. No relatório do Serviço, é dito ao juiz: "desaten-deu convocações, tem-se negado a responder as perguntas indispensá-

veis ao   acompanhamento curativo  213 Ç,\j!fl.!!Y9J2ªra..u_n-ª,cQnstrange-dor ~.ªgaT.!'~!.a40rMs.e1!!irnen!.()de menos valia e ansiedade para

 _OUITos.   Ó  mundos tão desiguais!'Um outro campo de representações reveladoras de uma visão

de mundo muito estrutur8;da na mentalidade desses operadores sociaisé a questão do trabalho. E importante ressaltar que, na elaboração denossas estatísticas, com relação à pergunta número quatro, relativa atrabalho (respostas sim ou não), observamos, após os primeirosduzentos pr6cessos, que nas muitas vezes em que a resposta era   "nãotrabalha"    v'íamos depois, no corpo do processo, informaçõesrelativas a trabalhos no setor informal, não considerados cornotrabalho. Já haviamos analisado anteriormente a pergunta que apa-

recia no questionário do Serviço de Fiscalização e Repressão àMendicânCia e Menores elaborado nos anos trinta:   "Tem vendido

 jornais, bilhetes de loteria, doces, engraxado sapatos oudesempenhado alguma ocupação na via pública? ".   A carganegativa que essas estratégias de sobrevivência possuíam aparecena fala dos policiais e auxiliares do Judiciário:   "O lnenor diz que

exerce as funções de vendedor de-jawais   e   engraxate, profis-são que alegam todos os menores que não podem provar oexercício de profissão   "214

Cinqüenta anos depois este olhar permanece: há serviços quenão ~ão considerados trabalho e há ocupações que induzem à sus-

 peição. Temos então, em 1988, o depoimento de uma psicóloga do

Serviço de Liberdade Assistida que assim se refere a C.G., 17anos: "Está trabalhando em biscates, pois diz não ter paciência paraaturar patrão; não está estudando, nem trabalhand0215."

213Processo nO29.839 - caixa 1.172 - ano 1988 _ Arquivo da 2a Vara   1.M.R.l.

214Processo n°   1 .5 -   caixa 192-206 - ano 1942. Arquivo da 2'"Vara 1.M.R.l.

215Processo nO29.815 - caixa 1.171 - ano 1988 _ Arquivo da 2" Vara   1.M.R.l.

121

,

Ii,   ,

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Este olhar é incorporado pelos próprios adolescentes: C.A.S.,

17 anos, declarou na audiência de apresentação no Juizado de Me-

nores, em   611/88,   "que cursou até à   4'   série (...), que não trabalha

e às vezes vende picolé"216

O caso de A.M.N.T.,   14   anos, morador da Favela dos Caí-

dos, detido com nove sacolés de cocaína em   1988,   é contraditório.

A assistente social do Instituto Padre Severino diz: "Não teve Jida

 produtiva declarada, mas   alega ter-se ocupado com subempre-gos diversos como engraxate   ou ou tro s bi sca tes ,,21 7 J á a

 psicóloga do Serviço de Liberdade Assistida, ao considerá-lo

"curado", àfirma:   "atualmente o jovem está trabalhando comoengraxate e perfeitamente integrado   à   sociedade, ".

Esta ambigüidade tem grande valor simbólico; se por um lado

esses serviços não são considerados trabalho e induzem à suspei-

ção (lembremo-nos da vadiagem), por outro lado só o trabalho pode

recuperar, através do "ensino profissionalizante", que trata de

manter este contingente jovem atrelado a posições e ocupações su-

 balternas.

O trabalho como recuperação aparece em muitos processos.

AB.,   17  anos, biscateiro; detido em   1978   com uma grama de maconha,

recebe o seguinte laudo do Setor de Prevenção e Diagnóstico da De-

legacia de Menores: "o menor parece necessitar de orientação visando

à profissionalização e mudanças de hábitos visando também   à   sua for-

mação pessoal"218 Ou a assistente social do Instituto Padre Severino

que afirma (com relação a AS., I7   anos, detido em I988   com vinte e

dois papelotes de cocaína): "refletimos com o menor e sua família a

necessidade do mesmo manter-se ocupado de modo laborativo, evitan-

do a ociosidade assim como continuar seus estudos objetivando melho-

res perspectivas futuras"219

Quanto a estas "melhores perspectivas futuras", podemos garantir 

que não ocorrerão, se depender das "terapias profissionais" do sistema

(Funabem). De que são constituidas as oficinas profissionalizantes?

. C.AT.S.,   17  anos, pardo, detido em   30111/68,   tem seu pedido d,e

deshgamento autorizado em   1969   a partir do depoimento da assistente

21 6   Processo   n O 29.804 -   c a i x a   1.171 _  an o   1988 _ Arquivo da 28 Vara 1.M.R.l.

21 7   Processo   nO  29.868 -   c a i xa   1.173 _  a no   1988 _ Arquivo da   2. Vara J.M.R.1.

218   Processo n° 752 - caixa M.115 _ ano 1978 _ Arquivo da   2. Vara J.M.R.I,

219   Processo n° 3 1.764 - caixa M.l.235 _ ano 1988 _ Arquivo da   Z -   Vara  1.M.R.l.

122

.  ,

social do Juizado de Menores: "Pelo que podemos deduzir das entre-

vistas feitas com ele, já está em condições de dar um rumo mais posi-

tivo em sua vida, pois durante o periodo de internação procurou ocupar 

o tempo na confecção de carteiras e também na faxina do estabeleci-mento,,220.

G.T.F.S.,   15   anos, detido por tráfico em   1983,   tem como argu-

mento positivo em sua ficha de avaliação e encaminhamento do Insti-

tuto Padre Severino: "freqüentou a oficina de vassouras,,221

Já A.P.A.C., preto, 16 anos, pego com uma "trouxinha" de ma-

conha em   1983,   foi encaminhado para a Escola João Luis Alves "onde

teve oportunidade de freqüentar o curso de eletricista de automó-

vel"222, segundo o Serviço Social da Delegacia de Menores.

RL.M.   16  anos, pardo, preso em   1978 com   0,6  g de maconha e in-

terno na Funabem, tem como argumento para seu desligamento "o fato de

ter concluído a profissionalização de pintura de construção civil"223.

P.S.v.,   16   anos, branco, detido em   1988   e interno na Escola

João Luiz Alves, "freqüentou oficina de solda"224; e A.H.D.,   17

anos, preto, detido também em   1988   "fez o curso de mecânica de auto-

móveis"225. lL.R. (ou Zé Pretinho),   16   anos, morador do Morro do En-

contro, interno na Escola João Luiz Alves em   1983,   "apresentou bom

comportamento, participou de todas as atividades recreativas aqui

desenvolvidas e frequentou oficina de vassouras"226 Mas o rapaz pre-

ocupa o serviço social da Escola: "Parece-nos contudo um adolescente

sem grandes aspirações em termos de seu crescimento interno e de,   ,

seu papel social, dando-nos a impressão de sequer se dar conta de que

como pessoa possui um papel a cumprir na sociedade".

Já R.L.S., 13 anos, branco, moradorJl,e conjunto habitacional em

Oswaldo Cruz, detido em   1988   por tráfico, "freqüenta a oficina devime,,227.

Para as meninas abrem-se outras perspectivas para "se darem

eqnta de que como pessoas possuem um papel a cumprir na socieda-

220   Processo   n O   1.088 - caixa 1.074-1.100 -  a n o   1968 - Arquivo da 21 Vara 1.M.R.J.

lil Processo nO9.312 - caixa 555 - ano 1983 - Arquivo da 21Vara 1.M.R.l.

111   Processo nO9.326 - caixa 555 - ano 1983 - Arquivo da r Vara 1.M.R.J.

113   Processo nO1,405 - caixa 139 - ano 1978 - Arquivo da 21Vara 1.M.R.l.

114   Processo n° 29.805. caixa 1.171 - ano 1988 - Arquivo da 21Vara lM.R.l.

115   Processo nO32.037 - caixa 1.245 ~ ano 1988 - Arquivo da 21Vara  1.M.R.l.

116   Processo n° 7.811 - caixa 502 - ano 1983 - Arquivo da 21Vara 1.M.R.l.

1 1 ' ' 1   Processo nO31.995 - caixa M.1.244 - ano 1988 - Arquivo da r Vara  J.M~.l.

123

- .

--~1~

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de", como tão bem sintetizou o serviço social da Funabem. M.S.M., 15

anos, branca, detida em 1978 com 50 g de maconha, recebe a seguinte

formação para cumprir seu papel na sociedade: "Na escola Stella Maris

continuou participando normalmente da programação (culinária,

cabeleireira e manicure)"228, segundo a folha de evolução do caso,

elaborada pela coordenadora pedagógica da Funabem.

S.A.O., 17 anos, branca, menina de rua presa em 1988 por trá-

fico de maconha, é interna na Escola Santos Dumont, vinculada então

á Fundação Estadual do Menor (Feem). A assistente social daquelainstituição afirma que "em suas permanências sempre apresentou ótimo

comportamento, participando também de forma positiva no estágio la- borativo de cozinha e lavanderia"229.

 _TQ,Q.oLe:isê-sq~()Situ~,-ªma_ql1i.1L!!)ª. conc<\pção de trabalho

; 1 \   que se £!J_I!!ltituinUI!1ililLmadiJh!l'... NosJa1!d()s que informam o pro-cesso, bIscates e serYlçosw_o_são consideradQsJrabalho e fazem

I   parte de um universo de sus.. peição em que são vinc~hi"d;s'   à   ocüis i . .: dade. Internos em estabelecimentos que irão recuperá-los através

' I   do "ensino profissionali:;::ante.."J.eceb~m fQ..l1Jl,,ªªoparª ..\rQ,ltN.....i!Qmer:

cado de trabalho como biscateiros e prestadores de serviços, as m...es-

I   mas ocupações que pareciam incrimimHosL ..

Encontramos alguns casos de jovens analfabetos com várias pas-sagens na Funabem. lS.C., por exemplo, detido em 1983 com I g de

maconha, 16 anos, preto, vendia laranjas na Cinelândia e dormia na rua.

 No Serviço Social da Delegacia de Menores temos o seguinte relato:

"O menor informa ser órfão de ambos os pais (alcoolismo). Suas irm!is

são internas da Feem e ele foi aluno da Escola Levi Miranda. M~is

tarde retomou á Funabem (escola João Luiz Alves) por suspeita de

furto"230 Apesar dessas passagens, J.S.C. é analfabeto aos 16 anos.

Mas o sistema é implacável: "Sugerimos o seu retomo á Instituição

onde possa adquirir conhecimentos (educação formal e profissionaliza-

ção) e encaminhamento adequado". Alguns meses depois o relatório

de estudo de caso indica: "Bom desempenho e aproveitamento no

aprendizado de sua profissão como lantern~iro".A iniqüidade do sistema é reveladora também no caso de A.C.O.,

 pardo, 15 anos, morador da Favela do Aço em Santa Cruz. Foi detido em

228   Processo n° 751_- caixa 115 - ano 1978 _ Arquivo da 2a Vara 1.M.R.l.

229 Processo n"29-.958 . caixa M. 1.173 _ ano 1988 -   A rqu i vo d a  2°   Vara J.M.R.l.

230Processo na 9..2 24 ~ caixa M. 551 - ano   1 9 8 3 .  Arquivo   d a :20 Vara   J.M.R.l.

124

1983 na Praia do Leme cheirando benzina. Foi internado na Funabem, de

onde fugiu alguns meses depois. Na seção de Prevenção e Diagnóstico da

Delegacia de Menores vemos que o menino já tinha passado por quatro

unidades do sistema: Triagem, Escola Oscar Araripe, Educandário Montei-

ro Lobato e Cidade dos Meninos. No entanto, "é analfabeto, desconhece

qualquer iniciação profissional e em entrevista demonstra vivência tipica de

menino de rua. Sugerimos seu retomo á Instituição para que receba aten-

dimento adequado (escolaridade e profissionalização), bem como acompa-

nhamento psicológicO"!231Ressocializar, reeducar e profissionalizar. Objetivos aparentes do

sistema encobrem com sua negação os seus verdadeiros objetivos:

manter sob controle uma parcela muito bem delimitada da população.

Dentre as estratégias de "reeducação, ressocialização e recuperação",

a incorporação às Forças Armadas mantém destaque ao longo das dé-

cadas de República. Utilizemos exemplos em duas décadas:

1968: C.A.T.S., pardo, 17 anos, sem endereço fixo; a assistente

social do Juizado indica: "Tendo em vista que o menor completou 18

anos e deve servir às Forças Armadas, sugerimos seja ele entregue à

familia em Campos, Estado do Rio, onde poderá tirar certidão de idade

e ultimar a sua incorporação"232.

1988: c.G., 17 anos, branco, morador de Freguesia; segundo a psicóloga do Serviço de Liberdade Assistida: " .. não está estudando,

nem trabalhando, não se alistou no Exército"233

O alistamento militar, além de obrigação prevista ao completar 

a maioridade, aparece inúmeras vezes como terapia extramuros; meni-

nos em regime de privação de liberdade têm nos relatórios das equipes

técnicas a incorporação como arg\!me.rlto que garante a recuperação

fora da Funabem. A idéia do alistamento militar como alternativa para

as classes populares permanece a mesma da fundação da República.

A visão que esses operadores têm das favelas do Rio de Janei-

ro revela as estruturas inconscientes de um   a12artheid    social que só

vem se consolidando. Uma assistente social do Instituto Padre Severi-

no afirma em seu relatório de estudo de caso em 1988 (1): "O localonde reside - área favelada - propicia seu envolvimento com pessoas

23[   Processo na 9.195. caixa 551 - ano 1983 - Arquivo da 2" Vara J.M.R.l.

232   Processo n° 1.088 - caixa 1.074 -1.100 - ano 1968 _ Arquivo da 2° Vara 1.M.R.l.

233   Processo n° 29.815 - caixa 1.171 - ano 1988 - Arquivo da 2° Vara   1.M.R.l.

125

i i à f ã l" 234 O d 1988

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 perniciosas   à   sua formação moral".234 Outro caso de 1988 em que aassistente social do IPS fala da favela em sua sintese informativa:"Reside em área favelada, num ambiente propicio   à  marginaliza-çãO,,235Um oficial d7   justiça, também em 1988, justifica a não entregade uma intimação: "Area de dificil acesso e que por certo porá em ris-co tantos quantos ali penetrarem, povoada de malfeitores, todos alta-mente temidos pelos moradores da localidade" 236

Outro depoimento de 1988 (assistente social):

Residena mesma moradahá qnase dezanose o localabrigaváriasfamílias

com poucos recursos mas em termos de envolvimento com a Justiça, aregião apresenta pequeno Índice que não chega a atuar negativamentesobre o aluno pois mantém-se sempre ocupado, fora do la,-237

Em   1978, no resumo da situação social de A.S.B.N., sua "(:on-duta deve-se a que segundo declarações da mãe, o pai sempre viveuem péssimo ambiente (Morro de São Carlos)". E vejamos o que revelaa síntese diagnóstica:

interno oriundo de lar ilegalmente constituído, tendo sido autuado por práticas anti-sociais, ocorridas em conseqüência de ter-se ligado a máscompanhias quando ia encontrar-se com o pai no Morro de SãoCarlos238

Encontramos, em 1968, um processo que continha o mesmo Bo-

letim de Investigações dos anos vinte, com suas perguntas sobre perver-sões, hereditariedade, etc. Encontramos também relatórios de estudode caso do serviço social que sugerem carga negativa para assuntostais como: "Seus pais frequentam macumba" ou "Seu pai é bicheiro".

,0 set()r"<!tl_psig\l~a~ri~c()I!~e!!!J:ª".!ie1!sdiagnóstiçº"s num sellSPcomum constituI.d_os-ºbre_p'reconc_eitos":,~XI1!!£ãode cçar "corpos dócceis" aparece semprj': qqe há sinal.de rebeldia. M.A.O.B., morador doMorro de São Carlos, detido em 78 com 4,53 g de maconha, recebe doServiço de Liberdade Assistida o seguinte Relatório psico-social:

Projeta suas dificuldades e deficiências no meio ambiente, disso resul-tando idéias de que é prejudicado e injustiçado. O ideal seria que estemenor continuasse o tratamento por longo período, em face das   carac~

.234   Processo n" 29.868 - caixa 1.173 - ano 1988 _ Arquivo da 2" Vara 1.M.R.l.

235   Processo n" 29.862. caixa M. 1.173 - ano 1988 _ Arquivo da 2" Vara 1.M.R.I.

236   Processo n" 29.862 - caixa M. 1.173 - ano 1988 . Arquivo da 2" Vara   1.M.R.l.

237   Processo n" 33,476 - caixa M. 1.298 - ano 1988 _ Arquivo da 2" Vara 1.M.R.I.

238   Processo n" 1.391 - caixa M. 138 - ano 1978 _ Arquivo da 28 Vara   I.M.R.I.

i  126

I!

terísticas de personalidade, muito suscetíveis a reincidências239.

O relato médico-psiquiátrico da Funabem analisa w'S.L., 17 ~anos, preto, morador da Cidade de Deus, preso por tráfico de maconha •e cocaína em 1988:

Possui porte altivo, cabeça erguida, andar tranqüilo, seguro de si.,   .

Todo ele sugere sua auto-confiança. (...) O soroso que por vezes afloraé mais como um reforço de expressão corporal do que afetividade (...)

 jam ais dem ons tro u sub mis são , e de fat o, não   é  submisso240.

A revolta com seu destino aparece para a psicóloga como "pro- jeção de suas dificuldades e deficiências" e tem como indicação "o trac   .

tamento por longo período" em face das "características da personali-dade muito suscetiveis a reincidências". A mensuração da submissão

 pelo outro "especialista" é feita pelo "porte altivo", pelo tipo de sorriso, pela "auto-confiança". O caso de F.A.S.,   16  anos, pardo, morador dafavela Barros Filho é absolutamente chocante. Preso por tráfico em1978, ele vai para o Instituto Muniz Sodré, do sistema penitenciárioadulto (Desipe); após dois anos de prisão, o promotor pede um examede cessação de periculosidade. O laudo da psicóloga revela:

O menor ainda se sente atraído por uma vida de ganhos fáceis. Estavida  é  ainda sentida como uma coisa boa, fazeodo com que os olhos

 brilhem ao referir-seao que faziacom o dinheiro conseguido.A fantasiade poder manter um  status, um grande guarda roupa em plena moda,cercar-se de guloseimas e garotas bonitas , não se coadunam com avida que é possivel se levar com um salário minimo (...) Sua declaraçãode que quer mudar de vida ficou bem pouco aceitávelpois ela é feita demaneira muito pouco sincera, como se estivesse apenas dizendo o queera esperado que dissesse,   tent.çl.1Ld~dissimull;lr para os peritos suasverdadeiras idéias,,241. '

O "brilho no olhar", o desejo de  status  e de adquirir coisas "quenão se coadunam com a vida de salário minimo" atestam, para o espe-cialista ell1qllll~tão,   . < I 1 I ' ! . .  ayericuTôsldâ:dén1io"liavia céssado~o que"lhegarante mais um ano de prisão   e   CiepQiS_llliliHlois anos de liberdadeassistidaJ).ill£e.i~. gaflhQ.sfáceis!

O ideário higienista que povoou as políticas públicas na virada doséculo passado também pontifica nos relatórios psiquiátricos: "Ao exa-

239   Processo n" 189 - caixa M. 87 . ano 1978 - Arquivo da 2" Vara   1.M.R.I.

240   Processo n" 33,456. caixa 1.298 . ano 1988 - Arquivo da 2" Vara   1.M.R.l.

241   Processo n" 1.413 - caixa M.139 - ano 1978. Arquivo da 28 Vara   1M.R.J.

127

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(

me se apresentou em boas condições higiênicas"; ou "descuidado dahigiene pessoal, sendo sua conduta diante do examinador, por vezes,desrespeitosa", ou "tem bons hábitos, é asseado, anda sempre limpo etem bom relacionamento com colegas".

Os indicios de doença mental têm carát~ hereditárioJ"Co-mo antecedente patológico, registre-se o pai do menor, que já feztratamento nervoso no INPS, o que de alguma forma, por si, jáconstitui um importante dado a ser pesquisado neste menor" - psi-

cóloga do Serviço de Liberdade Assistida); cultural ("mostra voca- bulário de acordo com seu nivel cultural e não faz uso de gírias" - psiquiatra da. Funabem), ou visual ("pelo estudo do exame mental, percebe-se que sua aparência é modesta, não vivenciando expres-são de mímica facial quando está a verbalizar"- psicóloga do Servi-ço de Liberdade Assistida).

Os diagnósticos são repletos de conteúdo moral e com duvidosasdoses de cientificidade. AS conclusões do exame psíquico de P.c.A.c.,15 anos, pardo, detido com maconha em 1968, são as seguintes:

Trata-se de menor com distúrbio de conduta bastante acentuado, o quetem-no conduzido a práticas anti-sociais várias, no campo dos tóxicos,

caracterizando assim sua inadaptabilidade social, o que indi~a ao

mesmo tempo a necessidade de ser o menor submetido a medidasreeducativas e psicológicas. Não há, entretanto, como evidencia o di-agnóstico,evidênciasde doença mentalpropriamente dita, mas sim umaestrutura de personalidade mal plasmada e que responde ao meiosempre de forma anormal242

O diagnóstico do caso de J.F.L., 17 anos, pardo, detido em 1978com uma "trouxinha" de maconha, é curioso. A assistente social que oatende no Juizado afirma em seu relatório psico-social que

nas primeiras entrevistas mostrou-se chocado. pela experiêhcia

vivenciada na prisão. Alegou ter apanhado dos outros colegas de 'celae quando reclamou com o guarda, levou vinte pauladas, de cabo devassoura em cada mão.

Diante desses quadro o psicólogo faz o seguinte diagnqstico:

 Nas entrevistas posteriores observamos sintomalogia depressivaneurótica (descrição subjetiva de infelicidade, preocupação com pen-

242   Processo nD 580 - caixa 568-585 _ ano 1968 _ Arquivo da   211.  Vara J.M.R.J.

128

samentos desagradáveis, dificuldades em pegar no sono, incapacidade para enfrentar o futuro imediato)243.

A sintomatologia "depr~~~iv_a-'leurºtic:a"-'lã_o.leyª-,,~~on!a   2

.JJesad(:10_reiJy.iv!ª9pefQrll~nÍ!lQ _e9fato dI) que para; ell)_Dã.o~M_mesrn.Q."futuro imediato" que o reconforte. PlOr que o dlagnosbco, so mestp() ,o

. tratamerito(ou "acompanhamento éiirativo"): "foiencªmi,!had_o ao   .~l-. -neIpaiatraiamento médico-psiquiátrico concomitan!e.aQ_!lQ~s<L. AlIas,- - a s   indicações -de tratamento para as "condutopatias" são reveladoras:

Em razão destes fatos e por estar o menor vivenciando de  forma   ~esa-daptada as características da adolescência, .e~or n_ãohaver .no  mel~deorigem condições favoráveis a sua ressoclahzaçao, sugenffios seja omesmo mantido em um dos estabelecimentos da Funabem para queconsiga sentir algum tipo de controle externo, tendo em vista que seu

 próprio controle interno está enfraquecido"244(H.P.C., 16 anos, bran-co, detido em 1983 com duas "trouxinhas" de maconha).

O Serviço de Liberdade Assistida insiste na internação apesar de que "a mãe teme as conseqüências negativas de uma internação,uma vez que o menor ameaça suicidar-se".

A internação na Funabem como cura também é a solução apre-sentada pela psicóloga do S.L.A. para o caso de L.W.H .. , branca, 17

anos, introduzida no serviço em 1978 pela mãe,em virtude da mesma vir apresentando problemas de conduta; (...)desde o início a menor nos pareceu muito rebelde, não aceitando .bemas perguntas e repetindo diversas vezes quenão gostava de Vlf aoJuizado pois se sentia muito mal nesse ambiente. Trata-se de umamenor que vem apresentando comportamento anti-social desde a

 primeira infância, caracterizado por.llSQ..5iedrogas, furtos e Vidadesre-grada na mais completa ociosidade. Diante do exposto, achamos que amenor deveria ser internada a fim de reformular esse comportamento

d  245anti-social que vem se agravando com o passar o tempo .

O sentido "correcional" do tratamento se traduz também nos pa-

receres positivos:considerando que o mesmo já está conscientizado de sua problemáticaexistencial e que tem se mostrado disposto a seguir uma vida normal,dentro dos padrões éticos e morais da sociedade, somos de parecer que

243   Processo n° 84 - caixa M. 84 - ano 1978. Arquivo da  2 1 1 .   Vara 1.M.R.l.

244  Processo   nO   10.713 _ caixa M. 605 - ano 1983 _ Arquivo da 2.   Vara 1.M.R.l.

245   Processo n° 823 - caixa M.1l7 - ano 1978 _ Arquivo da 2D Vara J.M.R.J.

129

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não mais necessita de nosso atendimento (psicóloga do S.L.A., paraA.M.N.T.,   14  anos, engraxate, em 1988)246.

A psicóloga do S.L.A. também reconhece no casamento a cura para jovens "desviadas": "c.P.S. (17 anos, parda, da Rocinba), relatou-nos ainda, com a confirmação de sua mãe, que conheceu um rapaz demuito boa índole, que tenciona casar-se com ela", diz a psicóloga, para

 pedIr o deslIgamento de C. do serviço.Dramático é o caso de M.T.C., 16 anos, internada em 1978 na

Escola Santos Dumont por "fazer uso de substãncias tóxicas". Encami-nhada para sanatório particular, informa ao Serviço de Liberdade Assis-tida que "neste período foi submetida a várias sessões de sonoterapia eeletrochoques como castigo pelo seu mau comportamento"247.

 No começo do século, analisando as soldadas, a impressão é deque não haVia escapatÓnaposSivel para-iIcjuelesdeStiõos: uma vez "ca-Ida~': no SIstema, na()liayíãcoiiiQJiigiJ:~0~~i!SliQ~,9ª-p..91jcia, do juiz Ol.!..das_~old~das. Esta impressão permanece ngji!li!J d~~!~sécuLo~O_s~.=_ ma em SI constItUi-se numa armadilha. Através do dis.cu.ljiocle.'.'r.eç.up~-=--

I ra~a~, dá .ressocialização   eda reeducaç~o", o 9ue se percebc::.são...llS

1

~bJetIv9s bem clar~s:. medidas de contençao socIal elaboradas .com.cri-térios bem explícitos na sua seletividade.

--E. por isto .que a rebeldia, a não submissão, ou um certo brilhono olhar constituem-se em indícios de doença mental ou periculosidade

 para os operadores do sistema penal para jovens ainda nesta virada deséculo!   . É .  por isto que os diagnósticos dos psicólogos e psiquiatras daFunabem ou do Juizado falam de "inadaptabilidade social" ou "persona-lIdades mal plasmadas" ou "sintomatologia depressiva neurótica deéor-rente,da incapacidade para enfrentar o futuro imediato". E é por istotambem que os tratamentos disponíveis para estas "condutopatias" va-riam das pancadas na prisão aos eletrochoques nos sanatórios, às inter-nações prolongadas e também à incorporação através do alistamentomilitar ou, no caso das meninas, do casamento. Podemos concluir entãoque, se por um lado temos uma problemática criminal contemporânea

(a consolIdação de um enorme mercado ilégal de drogas) que envolvemilhares de jovens, temos, por outro, os mesmos procedimentos, aSmesmas altenativas e o mesmo olhar que tínhamos no começo da Re-

 pública.

~:: Processo ": 29.868. - caixa   t   .173 - ano 1988 - Arquivo.da 21 1 Vara J.M.R.J

Processo n 22 - caixa M.82 - ano 1978 - Arquivo   da  Z U   Vara J.M.R.J.

130

Em nossa pesquisa, esperava deleitassem-nos as falas e os dis: .1cursos dos policiais, juízes e promotores. Mas em seus registros nos   j

 processos há um cuidado e uma uniformização feitas a partir dos dispo-   isitivos legais. Curiosamente, são as "equipes técnicas", incorporadas   i

 parà "humanizar"o sistema penal, que mais desbragadamente reprodu- "z~m .t04as as metá~oras do darwinismo social empregadas para o diag- :'nostIco das "IlegalIdades populares". PSicólogos, pSIqUiatras, pedagOU.gos, médicos e assistentes sociais trabalham em seus pareceres, estudos

de caso e diagnósticos da maneira mais acrítica, com as mesmas cate'gorias utilizadas na introdução das idéias de Lombroso no Brasil. :Todos os lapsos, metáforas, metonímias, todas as representações

da juventude pobre como suja, imoral, vadia e perigosa formam o siste-ma de controle social no Brasil de hoje e informam o imaginário social.

 para as explicações da questão da violência urbana.

131

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(

v -Conclusões

Rusche, o primeiro a analisar historicamente a relação entre as

condições sociais, a estrutura do mercado de trabalho, os movimentos

da mãb-de-obra e a execução penal, desvendou a função oculta das pe-

. nas e dos processos de criminalização. Foucault avançou mais na com- preensão do sistema penal como funcional para o controle de algumas

ilegalidades, mais explicitamente as ilegalidades populares.

O verdadeiro e real poder do sistema penal na América Latina é

 positivo, configurador e dirigido aos setores pobres e aos dissidentes,

com o máximo de arbitrariedade seletiva.   O  marco deste sistema de

controle social tem sido o genocídio. Zaffaroni afirmou que a projeção

genocida da última revolução tecno-cientifica e neoliberal faria empa-

lidecer a crueldade histórica dos colonialismos anteriores.   O  enfraque-

cimento do Estado, o aumento do desemprego, a desarticulação dos

movimentos sindicais do neocolonialismo servem apenas"para fortalecer 

e aprimorar os me~~nism"OS"decõntroíe-soclãf.   " s e " h á :  umsetoiôü Esta-

do no neo!iberafismo"qüe-êol1c"entrará recursos e não se destruirá, é osistema penal.

O   conceito de cidadania negativa de Batista percebe que esses

setores vulneráveis, ontem escravos e hoje massas marginalizadas urba-

nas, só conhecem o avesso da cidadania através dos sucessivos espan-

camentos, massacres, chacinas e da opressão cotidiana dos organismos

do sistema penal. A eficácia das instittli9ões de controle social está fun-

dada na capacidade de intimidação que são capazes de exercer sobre

estas massas vulneráveis, como afirmou Gizlene Neder. Toda a arqui-

tetura legal e fisica do sistema penal na República brasileira   é  erigida

 para dar conta dos novos excluídos da ordem republicana, sob o olhar 

lombrosiano e positivista.

A Justiça de Menores, críada no Rio de Janeiro em 1923, se es-truturou dentro deste quadro. No entanto, nos processos estudados a

 partir de   1907,   não pontificam as perversões lombrosianas e as carac-

terísticas hereditárias do biologismo criminal, mas sim histórias de misé-

ria e exclusão em que pequenas infrações introduzem crianças e jovens

 pobres a um processo de criminalização que apenas reedita o processo

133

d i li ã já b id T d i i O l ó i d d i ã b U

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de marginalização a que já estavam submetidos. Tudo se encaixa na

criminali,zação do adolescente pobre; da investigação do meio em que

se cnou a falta de defesa nos processos, passando pela unifonnização

dos pareceres m~dicos e das sentenças dos juízes. Este olhar pennane-

ce e tem continUidade através dos tempos, seja no Serviço de Assistên-

~ia ao Menor, .criado em 1942, seja na Funabem, criada em 1964. A par-

tir do golpe milItar, a questão da juventude pobre se reladona á doutrina

(

de Segurança Nacional e da defesa do Estado. A Funabcm passa a

atuar como propagadora de ideologia, com discurso fortalecedor das

~ representações .negativas da juventude pobre, prenhe dos discursos da-rwinIstas SOCiaISe dos detenninismos da virada do século.

 Na transição da ditadura para a "democracia" (1978-1988), com

o deslocamento do inimigo interno para o .criminoso comum e com o

auxílio luxuoso da midia, pennitiu-se que se mantivesse intacta a estru-

tura de controle social, com mais e mais investimentos na "luta contra

o crim7 " ,   E, o que é Ri.Qr,c0.D1.11scampanhas maciças de pânico social,

"'p-ennltlU-Sl:_UJ]1avanÇQ,~sm:Ll1recedentesna internalização do autQ.rita-

.• nsm,o. P?demos afinnar sem medo de errar que a ideologia do extenní-

mo e hOJe mUito maIS massiva e introjetada do que nos anos imediata-mente posteriores ao fim da ditadura.

. O "mito ,d_':..-~~g!!"se estabelece nesse periodo de transição da

.• \ ditadura, ~p~!!!rdo~ ~~os.setenta. Há uma detenninação estrutural re-gu,lada por leISde oferta e de demanda .concomitante a uma carga ide-

ologlca e em.oclOnal dissemi?a?a pela n;ídia e a~olhida pelo imaginário

. socml a pa;t,r de uma estrategta dos palses capItalIstas centraIs.

- j. . . .   A dlssemmação do uso de cocaína trouxe como contrapartida o

" i 1   recrut~mento da mão-de-obra jovem para a sua venda ilegal e consti-

. ~.: tUIUnucleos de força n~s favelas e bairro~ pobres do Rio de Janeiro.

'1 Aos)ovens .d~classe medIa que a consumiam apltcou-se sempre o es-

I   i t.ereotIP? ~edlco, e aos jovens P?bres que a comercializavam, o estere-

•. Ollpo_cnm,?al. Este quadro proPI.cIOUum colossal processo de crimina-

, ltzaçao de Jovens pobres que hoje superlotam os sistemas de atendi-

" mento aos adolescentes infratores.

-: A visão seletiva do sistema penal para adolescentes infratores ea diferen.ciação no tratamento dado ao~ jovens pobres e aos jovens ri-

cos, ao lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de dro-

gas, pennite-nos afinnar que o problema do sistema não é a droga em

SI, mas o controle específico daquela parcela da juventude considerada

134

 perigosa. Os relatórios e processos dos agentes do sistema são bastan-   Ute claros quanto a isso. São pouquíssimos os casos de análise do ponto,

de vista da droga em si. Em geral os processos se relacionam às famí-

lias "desestruturadas", ás "atitudes suspeitas", ao "meio ambiente per-

nicioso á sua formação moral", á "ociosidade", á "falta de submissão",

ao "brilho no olhar" e ao desejo de   status   "que não se coaduna com a

vida de salário mínimo".

. O processo de demonização do tráfico de drogas.fortaleceu 0j

sistemas de controle social, aprofundando seu caráter genocída. O nú-   ;J

mero de mortos na "guerra do tráfico" está em todas as bancas. A violência policial é imediatamente legitimada se a vitima é um suposto Ira .

ficante. .

O mercado de drogas ilícitas propiciou uma concentração de

investimentos no sistema penal, uma concentração dos lucros decorren-

tes do tráfico e, principalmente, argumentos para uma política penna-

nente de genocídio e violação dos direítos humanos contra as classes

sociais vulneráveis: sejam eles jovens negros e pobres das favelas do

Rio de Janeiro, sejám camponeses colombianos, sejam imigrantes inde-

sejáveis no Hemisfério Norte.

13S

• •

QUADRO l-A

Adolescentes envolvidos com drogas

QUADRO 1- B

Adolescentes envolvidos com drogas

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• •

Adolescentes envolvidos com drogas

Sexo   1968   1973   1978 1983 1988

Masculino   97,0% 94,9%   87,9% 90,0   85,7%

Feminino 3,0%   5,1%   12,1% 10,0% 14,3%

Idade 1968   1973 1978 1983 1988

<   12   0,0% 2,6% 0,0%   0,0% 0,0%

12 - 14 9,1% 5,1%   9,1% 10,0% 9,4%15 - 17 90,9%   92,3% 90,9% 90,0%   85,7%

Etnia 1968 1973 1978   1983 1988

Branca 42,4% 56,4% 45,5%   35,0% 31,4%

Pre1a   30,3%   17,9%   12,1% 12,5% 22,9%

Parda   24,2% 23,1%   36,4% 35,0% 34,3%

 Não Informa 3,0% 2,6% 6,1% 17,5%   11,4%

 Não Brancos 54,5% 41,0% 48,5% 47.5%   57,1%

Escolaridade 1968 1973   1978 19lh 1988

Analfabeto 24,2% 10,3% 6,1%   10,0% 5,7%..

Primírio   45,5%   30,8%   24,2% 27,5%   5 7 .1  %

Ginasial 24,2% 33,3% 39,4% 27.5%   22,9%

Cientilico 0,0% 20,5% 18,2%   7,5% 2,9%

Superior 0,0% 0,0% 0,0%   0,0% 0,0%

 Não informa   6,1% 5,1% 12,1%   27,5% 11,4%

Endereço 1968   1973 1978 1983   1988

Zona Norte   39,4%   46,2% 36,4% 45,0%   37,1%

Zona sul 24,2%   28,2% 18,2%   12,5%   5,7%'

Zona oeste 6,1% 2,6% 6,1%   20,0% 40%

Centro   9 ,1% 5,1% 6,1% 5,0%   5,7%Baixada/S.G   9,1%   5,1%   21,2% 10,0%   2,9%

Outros   9,1% 10,3% 9,1%   0,0%   5,7%

 Não Infurma   3,0%   2,6% 3,0%   7,5%   2,9%,

F o n te : P r o c e sso s d o J u iza d o d e Me n o re s d o R io d e J a n e ir o - A r q u iv o N a c io n a l

136

g

EndJtipo   1968   1973   1978   1983   1988

Favela   21,2%   10,3%   18,2%.   37,5   42,9%

Casa de com   6,1%   0,0%   0,0%   2,5%   0,0%

Casa   6,1%   20,5%   18,2%   7,5%   5,7%

Conj. Hab.   6,1%   7,7%   9,1%   7,5%   14,3%

Apartam:nto   15,2%   43,6%   27,3%   20,0%   5,7%

Outros   6,1%   0,0%   3,0%   0,0%  0,0%

 Não infunro   39,4%   17,9%   24,2%   25,0%   31,4%

'frabalho   1968   1973   1978   1983   1988

Sim   72,7%   35,9%   54,5%   37,5%   68,6%

Não   24,2%   43,6%   45,5%   45,0%   5,7%

 N~o infonro   3,0%   20,5%   0,0%   17,5%   25,7%

 brigem   1968   1973   1978   1983   1988

Rio de Janeiro   54,5%   84,6%   66,7%   50,0%   77,1%

Interior RI   12,1%   2,6%   0,0%   0,0%   0,0%

Baixada   0,0%   0,0%   0,0%   0,0%   0,0%

 Nordeste   9,1%   0,0%   3,0%   5,0%   8,6%

OutroS   12,1%   10,3%   12,1%   17,5%   5,7%

 Não infonro   12,1%   2,6%   18,2%   27,5%   8,6%

lnfmção atr.   1968   1973   1978   1983   1988

COTlSUJTK)   84,8%   79;5%-   75,8% .   50,0%   28,6%

Tráfico   9,1%   17,9%   24,2%   47,5%   65,7%

 Não infunro   6,1%   2,6%   0,0%   0,0%   0,00%

Outros   0,0%   0.0%   0,0%   2,5%   5,7%

Droga   1968   1973   1978   1983   1988

Maconha   78,8%   82,1%   75,8%   80,0%   48,6%

Cocama   0,0%   7,7%   15,2%   12,5%   40,0%

Outros   21,2%   7,7%   3,0%   2,5%   0,0%

 Não infonro   0,0%   2,6%   6,1%   5,0%   11,4%

Fonte: Processos do Juizado de M enores do Rio de Janeiro - Arquivo Nacional

137

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Adolescentes envolvidos em atos infracionais:TRÁFICO E CONSUMO DE DROGAS

Fonte:. Processos do Arquivo do Juizado de Menores do Rio de Janeiro -

Arquivo Nàcional .

Adolescentes envolvidos em atos infracionais

Etnia   1968   1973 1978   1983   1988

Branca   38%   42%   39%   33%   35%

Preta   23%   23%   21% 28%   21%

Parda   37%   33% 32%   32%   38% Não [nfunna   2%   2%   8% 7%   6%

 Não Brancos   60%   56%   53% 60%   59%

Sexo   1968   1973   1978   1983   1988

Masculino   89%   89%   92%   91%   90%

F e m i n i n o   lI%-   1I%   8% 9%   10%

Idade   [968   1973   1978   1983 [988

<  12   3%   0% 0%   2% 2%

12 a 14   21%   12%   11%   16%   16%

15 a 17   75%   87%   89%   82% 82%

Outros   1%   1%   0%   0% 0%. ,

Thabalho   1968   1973   1978   1983 1988

Sim   55%   40%   44%   40% 48%

 Não   39%   55%   46% 47%   38%

 Não Infunna   6%   5% 10%   13% 14%

Crime   1968   1973   1978   1983 1988

Art [55 CP   42%   29% 31% 43%   42%

Art. 129 CP   18%   [7%   12% 7%   6% .   ,

Art. 19 LCP   3%   3%   3%   6%   5% '   ,

Art 157 CP   6% 13%   19% 19%   22%Art   281/12/16   7%   12%   10% 9%   16%

Outros   24%   26%   26%   1 7 0 / , 0   9%

Fonte: Processos do Juizado de Menores do Rio de Janeiro - Arquivo Nacional

,

! .

16%

14%

12%

10%

8%

6%

4%

2%

0%

Hl 68   1973   1978   1983

. .

1988

138   139

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Adolescentes envolvidos em atos infracionais:TIPOS DE INFRAÇÃO

38%

Adolescentes envolvidos em atos infracionais:ETNIA

Nãoinforma

6%

Preta

24%

 Art.155 Art.157 Art.129 Art. 281 Art. 19 Outros

CP CP CP 12 e 16 LCP

Branca

36%

Fonte:Processos do Arquivo do Juizado de Menores do Rio & Janeiro -Arquivo Nacional

140

Fonte:Processos do Arquivo do Juizado de Menores do Rio de Janeiro -Arquivo Nacional

141

---- - - . , - ,

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  _ .

Adolescentes envôlvidos em atos infracionais:ETNIA

Adolescentes envolvidos em atos infracionais'FAIXA ETÁRIA .

, ,

Não Brancos58%

<  12 anos

1%

12 a 14 anos

15%

15 a 17 anos

84%

Fonte:Processos do Arquivo do Juizado de Menores do Rio de Janeiro -Arquivo Nacional

142

Obs.: Os valores registrados para

outras faixas etárias, correspondem a

um indice inferior a 1% do total

Fonte:Processos do Arquivo do Juizado de Menores do Rio de Janeiro -Arquivo Nacional

143

• • •

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(

•Adolescentes envolvidos em atos infracionais:

ESCOLARIDADE   Adolescentes envolvidos em atos infracionais:TRABALHO

45%

:

NÃO INFORMA

11%

NÃO

44%

. ,

~IIIIIIIII~

.~   iii   o   o   1 Il I

SIM

U i  ••   li E

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E  1 Il   .a   • •

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~

Fonte:

Processos do Arquivo do Juizado de Menores do JUo de Janeiro -

Arquivo Nacional

Fonte:Processos do Arquivo do Juizado de Menores do Rio de Janeiro -

Arquivo Nacional

144145

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Adolescentes envolvidos em atos infracionais:

SEXO

Feminino

9%

Masculino91%

Fonte:Processos do Arquivo do Juizado de Menores do Rio de Janeiro -

Arquivo Nacional

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