Diferentes Concepções de Criança-Infância
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CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA/CRIANÇA
Francisca Lidiane Araújo de Souza*
“(...) uma escola que não se articula com os direitos da criança não merece abrir as suas portas”.
Manuel Jacinto Sarmento.
INTRODUÇÃO
A infância é caracterizada pela complexidade. Mas, na sua análise nem sempre
são levados em consideração os fatores integrantes que a definem. Na tentativa de
compreender a infância depararemos na primeira instância com a necessidade de entender a
organização social e o meio em que esta se insere. Pois, são fatores intrinsecamente ligados a
formação das crianças como indivíduos.
O objeto desse artigo é apresentar algumas experiências que tive com crianças de
diferentes contextos. Primeiro a minha experiência de bolsista do projeto “Escola que
Protege” no período de 2008 a 2010. Segundo durante as disciplinas “Desenvolvimento da
Criança” e “O brinquedo no desenvolvimento da criança”. Ambas tinham como exigência a
realização de trabalhos em escolas ou creches.
Portanto, esta reflexão baseia na realidade de quatro escolas que tive a
oportunidade de conhecer os seus funcionamentos durante a aplicação prática das tarefas
referentes às disciplinas acima mencionadas. Entre as escolas, duas são públicas, e duas
escolas/creches particulares.
No “Escola que Protege” tive muito contato com os professores e seus relatos
sobre as vivências com as crianças nas escolas. Muitos relatos de casos de violência vividos
pelas crianças, geralmente tendo os pais como agressores.
Conhecendo as crianças de espaços tão distintos pude fazer uma relação entre as
diversas realidades das escolas, dos professores e a teoria discutida em sala de aula.
*Graduanda em Economia Doméstica pela UFC. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre Gênero, Idade e Família-NEGIF. Bolsista do Programa de Educação Tutorial-PET.
DIFERENTES CRIANÇAS, DIFERENTES INFÂNCIAS
Entre as escolas particulares, uma é grande e trabalha com orientação
construtivista, oferecendo excelentes serviços às crianças, a outra é uma escola pequena, não
construtivista e que não apresenta boa estrutura e os funcionários não são bem preparados.
A primeira visita foi realizada na escola Gerôncio Bezerra, localizada no bairro
Pio Saraiva, por intermédio de um amigo que é estagiário da prefeitura. Observei vinte
crianças com idade entre sete e oito anos, durante uma tarde, assistindo aula e no intervalo. A
segunda visita foi realizada na escola Manuel Caetano de Souza, localizada no bairro
Genibaú, com auxílio de uma amiga que, junto a um grupo de uma igreja evangélica, realiza
trabalho voluntário com um grupo de crianças. Eles se reúnem todos os sábados com as
crianças para realizar atividades, como contação de histórias, brincadeiras e servir sopa para
estas e também para as famílias que moram em torno da escola. No dia em que realizei a
visita estavam presentes dezoito crianças, com idade entre sete e doze anos. Estas
confeccionaram, neste dia, brinquedos com material reciclável.
A primeira escola, embora seja localizada em bairro de periferia, tem uma
estrutura boa e a professora da sala que observei demonstrava ser muito comprometida com a
educação das crianças. Estas chegaram à escola, todas “arrumadinhas”, com roupas limpas e
cabelos penteados. Já na segunda escola, a situação é bem diferente. As crianças usavam
roupas bem simples, algumas até sujas. O bairro enfrenta muitos problemas com a falta de
equipamentos sociais, inclusive de coleta de lixo. As crianças não têm acesso a espaços de
lazer e muitas delas utilizam um rio (Rio Maranguapinho) que corta o bairro para brincar. São
crianças muito carentes, inseridas em um ambiente com muitos problemas sociais, como
pobreza, violência e drogas.
As crianças observadas, mesmo o grupo que mora em bairros da periferia de
Fortaleza e o outro que estudam em escolas particulares, apresentam algumas semelhanças
entre si, são realidades bastante diferentes. São crianças que estão no mesmo período da vida,
em que se denomina de infância, mas não é a mesma infância, não são as mesmas crianças.
São “outras crianças, outras infâncias”1.
De acordo com Gouvea (2008), nas produções mais recentes sobre a infância,
diferentemente de outras mais antigas, como o estudo de Ariès, que apresentava um modelo
universal, tendo como referência as classes abastadas dos países europeus, apresenta-se uma
diversidade de processos históricos, em que a infância diferencia-se de acordo com outras
categorias sociais que definem sua identidade, como gênero, classe social, etnia, e religião.
A variedade de vivências e contextos socioculturais das crianças permite se falar
em infâncias, ao invés de infância, pois as infâncias são múltiplas, e plurais nas suas mais
diversas formas de manifestações e produções culturais (MARTINS FILHO, 2005).
Na concepção atual da Sociologia da Infância, a concepção de socialização não
mais considera as crianças como sujeitos, que precisam simplesmente se adaptar aos valores,
hábitos e regras sociais do mundo dos adultos. Essa nova concepção ultrapassa essa
compreensão, tendo as crianças como sujeitos capazes de agir e se manifestar no interior do
contexto social em que estão inseridas, bem como, capazes de produzir cultura (MARTINS
FILHO, 2005).
Para Arroyo (1994), a própria concepção de infância está em permanente
construção. Desse modo, a concepção de infância varia de um momento histórico pra outro,
de cultura pra cultura e mesmo dentro de uma mesma cultura, varia de grupo para grupo. A
infância rural é diferente da infância urbana, por exemplo.
A concepção de infância na atualidade é bem diferente das concepções que se
tinham em outros períodos históricos, em que a criança/infância era vista como um período de
falta, deficiência e estavam sempre a mercê dos adultos. Atualmente, existe uma infinidade de
estudos e pesquisas sobre infância/crianças abordando essa nova concepção de infância, como
sujeitos ativos, que não só se apropriam da cultura, mas que também a produzem. Existe
também um cuidado/proteção, as crianças são reconhecidas como sujeitos, o Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA é o marco de legalização desses direitos.
Segundo Sarmento (2002) a infância, como construção social, sofreu na segunda
modernidade processos de reinstitucionalização que dá ênfase á representação e imagens das
crianças vigentes nos últimos vinte anos. A análise da reconstrução das identidades sociais e
das subjetividades infantis constitui, na atualidade, uma tarefa teórica mais exigente. Mesmo
com a construção de consensos globais sobre os direitos das crianças, esse processo de
reinstitucionalização da infância veio a aumentar os fatores e as condições de exclusão das
gerações mais jovens face aos direitos sociais e da cidadania.
Desse modo, não se pode dizer que crianças que vivem em um contexto de
violência e pobreza são tão crianças quanto as que vivem em um ambiente de cuidado, de
posses. As crianças que têm que trabalhar logo cedo para ajudar no sustento da família, as que
são violentadas pelos próprios pais, as que são discriminadas na escola por serem pretas,
homossexuais, pobres, não pode ser comparado com as crianças que moram nos condomínios,
que estudam em escolas particulares, que têm os pais como protetores.
São todas crianças e apresentam traços que as identificam, no entanto, nem todas
vivem a infância como uma fase da vida em que não se tem preocupações e vive-se rodeados
de cuidados, como prega a visão romântica da infância.
Pinheiro (2009) afirma que a maioria da população brasileira está excluída dos
bens e serviços, que deveriam garantir a sua qualidade de vida, a sua cidadania, e que são
responsabilidade do Poder Público, tais como educação e saúde de qualidade, saneamento
básico e transporte público, moradia e empregos dignos e salário capazes de atender às suas
necessidades básicas.
Há desigualdades sociais que refletem os processos históricos da nossa vida social. Em decorrência, convivemos com incontáveis e vergonhosos absurdos no país. (...) prevalecem os valores referentes aos adultos, em detrimento principalmente de crianças e adolescente, de um lado, e integrantes da terceira idade, de outro (PINHEIRO, 2009, p. 98).
Diante da multiplicidade da infância e do contexto de exclusão em que muitas
crianças estão inseridas, a escola deve ser um espaço (embora seja muitas de exclusão
também), que abraça as diferenças, prepara para o futuro e para a vida, um espaço de inclusão
da diversidade.
É no quadro da Escola como política da vida – da Escola como utopia realizável – que
julgo ser sustentável uma lógica alternativa para a educação escolar, contra a exclusão e pela
afirmação dos direitos sociais (SARMENTO, 2002, p. 278).
FINALIZANDO...
Embora, a infância esteja relacionada com a idade, a concepção que se tem desta
varia bastante de acordo com o contexto histórico e também com a realidade em que as
crianças estão inseridas. O que pude observar com essas visitas foi que embora as duas
escolas públicas e as duas creches apresentem algumas semelhanças, como serem localizadas
em bairros da periferia e as outras duas em bairros centrais, existem muitas diferenças entre a
realidade daquelas crianças.
No primeiro grupo a pobreza, a falta, se apresenta de uma forma muito violenta,
em uma escola mais do que na outra. Nas particulares, a educação que as crianças que
estudam na escola maior recebem é muito diferente da que as crianças da escola pequena
recebem. As condições financeiras são muito diferentes e até certo ponto determinantes.
A relação com a escola, com a família, o acesso a brinquedos, ao conforto, à
condições de vida digna, são diversas. Desse modo, mesmo sendo todas crianças, não são
iguais. São crianças/infâncias diferentes, múltiplas e complexas.
Por outro lado, observei que existem traços que as identificam e as diferenciam.
As brincadeiras estavam presentes nas duas realidades. Ao serem indagadas sobre o que
brincavam e onde brincavam, os dois grupos das escolas públicas disseram que brincavam na
rua, de esconde-esconde, de bilhar, de polícia e bandido, de casinha, entre outras. As das
escolas particulares brincam em casa, com brinquedos, quase não tem acesso à rua.
A brincadeira é uma fonte de conhecimento, de aprendizagem e de
desenvolvimento cognitivo, psicomotor e socioafetivo, sua função na educação infantil é
mediar e promover aprendizagens e desenvolvimento. Quando brinca só ou com o grupo, a
criança experimenta, organiza e constrói conhecimentos e dessa forma, aprende
(SIMONETTI, s/d).
Martins Filho (2005), ao falar dos traços e retratos que identifica e diferencia as
crianças, afirma que “essas não existem o singular, sendo mais apropriado falarmos em
crianças, que juntas, em sua pluralidade, formam a categoria infância (p.13).
As crianças que sofrem violência ou vivem em contextos de violência são ainda
mais diferentes. Não desfrutam como têm direito, dessa fase da vida que deve ser de cuidados,
de brincadeiras, de afeto, visto que é uma fase de pleno desenvolvimento e aprendizagem
Não se pode negar os avanços que tivemos com relação ao cuidado com a
infância, com maior atenção à educação e à proteção aos direitos das crianças, no entanto, não
se pode negar a existência de uma realidade (de uma outra infância) muito preocupante e que
parece não estar inserida neste contexto de direitos. Muitas crianças passando fome, vítimas
de violência e que não têm acesso à educação de qualidade.
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel Gonzalez. O significado da infância. I Simpósio Nacional de educação Infantil. Brasília, 1994.
MARTINS FILHO, Altino José. Culturas da Infância: traços e retratos que as diferenciam. In: ______ (Org.). Criança pede respeito: temas em educação infantil. Porto Alegre: Mediação, 2005.
GOUVEA, Maria Cristina soares de. A escrita da história da infância: periodização e fontes. In: SARMENTO, Manuel; GOUVEA, Maria Cristina soares de (Orgs.). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
PINHEIRO, Ângela de Alencar Araripe. História da Infância e da Adolescência: Algumas Considerações Sobre o Contexto Social Brasileiro. In: MOTA, Maria Dolores de Brito, et al (Orgs.). Escola que Protege: em defesa dos direitos da criança e do adolescente. UFC/UECE. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009.
SARMENTO, Manuel Jacinto. Infância, exclusão social e educação como utopia realizável. Educação e Sociedade. 2002, vol.23, n.78, pp. 265-283. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302002000200015&script=sci_arttext&tlng=e. Acesso em 05 de janeiro de 2011.
SIMONETTI, Amália. Na Educação Infantil a Criança Brinca e Aprende. Fortaleza, s/d.