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5 DIÁLOGO 23 • 1 2011 Jerusalém e Atenas: duas cosmovisões, duas escolas de pensamento Jerusalém versus Atenas. Por que devemos considerar um tema que nos obrigue a escolher entre uma das duas cidades? Que diferenças significativas há em relação à concepção da realidade e às bases de pensamento apresentadas por essas duas cidades? Como é possí- vel que duas escolas de pensamento, tão diferentes uma da outra, tenham con- seguido se unir a ponto de dar origem a uma nova concepção de mundo? Como aconteceu esse choque de ideias tão poderoso, capaz de criar uma cultura totalmente nova, chamada de “cultura ocidental cristã”? O paradigma de Jerusalém Inicialmente, vamos rever alguns fatos históricos e geográficos relacio- nados ao pensamento representado por Jerusalém. Pouco depois de 1500 a.C., o povo de Israel, deliberadamente escolhi- do pelo Senhor, fez sua aparição no cenário mundial. Este povo foi esco- lhido para manifestar ao mundo o caráter de Yahweh. Anos mais tarde, ele se estabeleceu na terra da promes- sa, na Palestina. Jerusalém se tornou a capital política e religiosa, com o Templo Sagrado no centro. Ao mesmo tempo em que se foi materializando a Jerusalém geográfica, foram se defi- nindo séculos de fé e crenças, moral e costumes, bem como um estilo de adoração e serviço, em um sistema cujo centro era o Senhor Deus. A cidade escolhida pelo Senhor para seu povo se tornou não somente a capital de Israel, mas também a personificação de uma grandiosa e importante manifestação cultural. Não foi apenas a localização geográ- fica da cidade que transformou essa escola de pensamento em um símbolo. A fim de analisarmos essa questão de maneira precisa, devemos nos voltar para os fatos relevantes que determi- naram a identidade da nação judaica. Esses eventos significativos são clara- mente identificáveis através das décadas de aprendizagem do povo judeu. A longa peregrinação pelo deserto faz parte dessa experiência. Tais fatos são ainda mais importantes na memória coletiva desse povo, pois ocorreram no contexto de uma estreita relação que mantiveram com Deus. Somente a títu- lo de um resumo sinóptico, podemos identificar alguns eventos significativos específicos. Por exemplo, as bênçãos e riquezas materiais que Abraão rece- beu; a educação adquirida por Moisés na escola dos faraós; as dez pragas do Egito, resultando na libertação final do povo escolhido; a tortuosa viagem de peregrinação pelo deserto; a entrega da Lei de Deus a Moisés; a organização do povo de Israel; a nuvem que os guiava através do deserto; a Arca da Aliança, o Tabernáculo e o simbolismo salvífico do Santuário. A lista é longa. O paradigma grego As origens do paradigma grego estão em uma região remota, embora não muito distante do que pouco mais tarde se tornaria o lugar de instalação de Atenas e sua cultura. Essa região é a Ásia Menor, mais precisamente um grupo de pequenas ilhas situadas em frente à costa turca do continente asi- ático. Por volta do século VI a.C., em Mileto, emergiu uma filosofia que se opunha ao que comumente cons- tituía o pensamento da época, uma compreensão mitológica do mundo. Thales fundou a escola de Mileto. Sua filosofia deu início a uma tradição racional, embora no início também incluísse muitos elementos mitológicos. Transcorridos quase dois séculos desde seu início, essa filosofia já havia elimi- nado a grande maioria de seus vestígios mitológicos. O que ocorreu em Mileto, e em toda a área que recebeu sua influ- ência, na Ásia Menor, foi o nascimento de uma interpretação fundamental básica da realidade (physis). Essa expli- cação, por ser racional, pertence ao nível da ciência (episteme), e não mais Fernando Aranda Fraga Entre a compreensão teocêntrica ou antropocêntrica do Universo, qual deve ser nossa escolha? Para um cristão, a resposta precisa ser clara.

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    Jerusalm e Atenas: duas cosmovises, duas escolas de pensamento

    Jerusalm versus Atenas. Por que devemos considerar um tema que nos obrigue a escolher entre uma das duas cidades? Que diferenas significativas h em relao concepo da realidade e s bases de pensamento apresentadas por essas duas cidades? Como poss-vel que duas escolas de pensamento, to diferentes uma da outra, tenham con-seguido se unir a ponto de dar origem a uma nova concepo de mundo? Como aconteceu esse choque de ideias to poderoso, capaz de criar uma cultura totalmente nova, chamada de cultura ocidental crist?

    O paradigma de Jerusalm Inicialmente, vamos rever alguns

    fatos histricos e geogrficos relacio-nados ao pensamento representado por Jerusalm.

    Pouco depois de 1500 a.C., o povo de Israel, deliberadamente escolhi-do pelo Senhor, fez sua apario no cenrio mundial. Este povo foi esco-lhido para manifestar ao mundo o carter de Yahweh. Anos mais tarde, ele se estabeleceu na terra da promes-sa, na Palestina. Jerusalm se tornou a capital poltica e religiosa, com o Templo Sagrado no centro. Ao mesmo tempo em que se foi materializando a Jerusalm geogrfica, foram se defi-nindo sculos de f e crenas, moral

    e costumes, bem como um estilo de adorao e servio, em um sistema cujo centro era o Senhor Deus. A cidade escolhida pelo Senhor para seu povo se tornou no somente a capital de Israel, mas tambm a personificao de uma grandiosa e importante manifestao cultural.

    No foi apenas a localizao geogr-fica da cidade que transformou essa escola de pensamento em um smbolo. A fim de analisarmos essa questo de maneira precisa, devemos nos voltar para os fatos relevantes que determi-naram a identidade da nao judaica. Esses eventos significativos so clara-mente identificveis atravs das dcadas de aprendizagem do povo judeu. A longa peregrinao pelo deserto faz parte dessa experincia. Tais fatos so ainda mais importantes na memria coletiva desse povo, pois ocorreram no contexto de uma estreita relao que mantiveram com Deus. Somente a ttu-lo de um resumo sinptico, podemos identificar alguns eventos significativos especficos. Por exemplo, as bnos e riquezas materiais que Abrao rece-beu; a educao adquirida por Moiss na escola dos faras; as dez pragas do Egito, resultando na libertao final do povo escolhido; a tortuosa viagem de peregrinao pelo deserto; a entrega da Lei de Deus a Moiss; a organizao do

    povo de Israel; a nuvem que os guiava atravs do deserto; a Arca da Aliana, o Tabernculo e o simbolismo salvfico do Santurio. A lista longa.

    O paradigma gregoAs origens do paradigma grego esto

    em uma regio remota, embora no muito distante do que pouco mais tarde se tornaria o lugar de instalao de Atenas e sua cultura. Essa regio a sia Menor, mais precisamente um grupo de pequenas ilhas situadas em frente costa turca do continente asi-tico.

    Por volta do sculo VI a.C., em Mileto, emergiu uma filosofia que se opunha ao que comumente cons-titua o pensamento da poca, uma compreenso mitolgica do mundo. Thales fundou a escola de Mileto. Sua filosofia deu incio a uma tradio racional, embora no incio tambm inclusse muitos elementos mitolgicos. Transcorridos quase dois sculos desde seu incio, essa filosofia j havia elimi-nado a grande maioria de seus vestgios mitolgicos. O que ocorreu em Mileto, e em toda a rea que recebeu sua influ-ncia, na sia Menor, foi o nascimento de uma interpretao fundamental bsica da realidade (physis). Essa expli-cao, por ser racional, pertence ao nvel da cincia (episteme), e no mais

    Fernando Aranda Fraga Entre a compreenso teocntrica ou antropocntrica do Universo, qual deve ser nossa escolha? Para um cristo, a resposta precisa ser clara.

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    ao nvel da opinio (doxa), forma tpica da mitologia. Isso marca uma mudana de paradigma fundamental.

    O que foi realmente alterado, o mtodo ou o contedo? Na realidade, ambos sofreram transformao. Uma mudana metodolgica sempre envolve uma alterao radical de pensamento, que no acontece ao acaso, mas afeta o ponto crucial. Vamos rever brevemente como essa mudana paradigmtica ocorreu na compreenso dos princ-pios da filosofia grega a passagem do mito ao logos destacando, por sua vez, como os remanescentes do pensa-mento mitolgico persistiram no novo paradigma filosfico durante os seus primeiros sculos de existncia e poste-riormente ao seu desenvolvimento.

    O mito uma explicao no cient-fica da realidade, da natureza: a physis grega. Esse conceito refere-se a uma viso dotada de uma fora divina vital, uma espcie de respirao da divinda-de, sem princpio nem fim, mas com um propsito. Essa uma concepo grega conceitual semelhante concep-o de destino (dike), ideia padro da qual a filosofia e a teologia protestante, especialmente desde o sculo XIX, tornaram-se dependentes. Embora a physis estivesse em constante mudana, negando a essncia de todas as coisas sujeitas ao tempo, essas mudanas, de acordo com os filsofos pr-socrticos, eram mera aparncia. O que se manti-nha constante na physis era sua prpria essncia, aquilo que no era afetado pelo tempo (chronos). Dessa forma, o que no era temporrio, em ltima anlise chegava a ser eterno e imutvel.

    O debate entre Herclito e Parmnides (530 a.C.) ilustra claramen-te essa viso grega ambivalente em rela-o essncia da natureza. No entanto, ambos pensadores concordaram com a ideia de que, alm do movimento perptuo e da mudana generalizada, existe uma substncia que no muda. Portanto, sua essncia perdura. Isso o que Herclito, conhecido como o fil-sofo do movimento, chamou de logos. Para ambos os filsofos pr-socrticos,

    qualquer interpretao deve ser colo-cada sobre a razo, o logos. A razo no estaria sujeita a chronos, substncia final que governa o eterno processo de mudana do mundo material e tang-vel.

    O desenvolvimento da filosofia pr- socrtica se tornou a base de todas as tentativas subsequentes para propor uma soluo para a ambivalncia do Ser, como o um e os muitos, o eterno e o temporal, o imutvel e o mutvel, o esttico e o mvel, o inteligvel e o sensvel e, finalmente, o espiritual e o material, o que resume a essncia de tal oposio.

    A contnua influncia da filosofia grega

    Essa oposio descrita anteriormente no se limitou antiga filosofia grega. Prevaleceu durante toda a Idade Mdia. Nesse perodo, estudiosos catlicos, e tambm alguns filsofos islmicos, reformularam o dualismo fundamen-tal, a partir dos escritos de Aristteles, propondo alguns pequenos ajustes. Revestiram-no com uma vestimenta religiosa, mas sem grandes mudanas em sua essncia ou natureza substan-cial. Assim, durante a Escolstica, o intelectual se encontrava em oposio ao fsico e ao material. Nessa oposi-o, o intelecto tinha primazia sobre o corpo, como pode ser visto claramente na verso aristotlico-tomista do rela-cionamento que o corpo e a alma man-tinham entre si, o que a partir de ento passou a ocupar o centro da cosmoviso crist.

    Entre o dualismo platnico de Agostinho (350-430) e o dualismo aristotlico-tomista (Toms de Aquino, 1225-1274), a Igreja Catlica adotou uma posio central e equidistante, absorvendo e fundindo o pensamento de ambos os clssicos gregos, matizan-do algumas de suas diferenas, embora o essencial permanecesse inalterado. O dualismo platnico foi formalizado e canonizado pela Igreja ao adotar a filo-sofia agostiniana, uma verso cristiani-zada do platonismo original. Tal posi-

    o foi posteriormente reformulada por Toms de Aquino, recriando a viso aristotlica do mundo e do homem, limitando assim a imortalidade da alma ao intelecto agente (intellectus agens). O intelecto agente , de acordo com Toms de Aquino, a parte racional da alma que desfruta da imortalidade e, portanto, da eternidade em um sentido futuro (porque foi criado, teve uma ori-gem, segundo a cosmoviso criacionista crist, um elemento que no foi altera-do). tambm imaterial e espiritual. Portanto, atemporal.

    Notavelmente, esse dualismo repetido no pensamento de Hegel1, no sculo XIX, em um ambiente pantes-ta, muito apropriado a uma poca que comeava a se afastar do desmo predo-minante durante a Modernidade rumo ao neopantesmo que dominaria o cenrio religioso nos sculos XX e XXI. S que o dualismo de Hegel no dado em funo de indivduos, de entidades particulares, mas em termos de uma substncia primordial que a soma de toda a histria e de suas manifestaes dialticas. Trata-se da vida prpria do Esprito Absoluto que assim se constitui aps uma srie de movimentos e con-tramovimentos que ocorreram em um mundo material-espiritual, no qual este ir gradualmente se distinguindo at adquirir sua forma perfeita e alcanar o absoluto. Aqui est a expresso mxima de um dualismo em que o espiritual, seguindo o roteiro definido pela filoso-fia e mitologia gregas, substancialmente prevalece sobre o material, que serviu como um veculo para o seu desenvol-vimento.

    Pouco depois, ocorreu uma ruptura epistemolgica ou mudana paradig-mtica na histria do pensamento. Isso aconteceu com o surgimento do materialismo dialtico, que teve forte influncia hegeliana quanto ao mtodo, mas foi dotado de uma metafsica mais realista, com fortes conotaes polticas e econmicas.

    Essa compreenso tornou-se realida-de com Karl Marx (1818-1883), cujo trabalho tem a marca de um discpulo

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    de Hegel, Feuerbach, o pai do mate-rialismo e do atesmo moderno. Marx pretende colocar a razo em terra firme, rejeitando o espiritual como mero fen-meno suprfluo. A realidade espiritual no tem lugar no mundo puramente material de Karl Marx.

    Ainda no sculo XIX, o pensamento metafsico de Nietzsche contribui com a mudana de paradigma que iria ocor-rer com maior intensidade a partir do incio do sculo XX. Embora no seja possvel, neste artigo, apresentar a filo-sofia de Nietzsche de forma aprofun-dada, pode-se mencionar que a crtica nietzscheana ao conceito de Ser conce-bido pela filosofia anterior influenciou grandemente os existencialistas do novo sculo.2

    Foi Heidegger (1889-1976), talvez o mais famoso existencialista do sculo XX, que devolveu ao Ser seu carter esquecido de temporalidade essencial, ou seja, o tempo constitui a essncia do Ser.

    Em certo aspecto, tal revoluo sig-nificou o abandono do conceito de que a temporalidade era exterior ao Ser em sua realidade essencial mais ntima. Desde Heidegger, esses aspec-tos so considerados propriedades cons-titutivas do ser.

    A ruptura paradigmtica operada por Heidegger3 e por todo o existencialismo atesta dali em diante teve fortes impli-caes no que diz respeito aos tipos de seres e ao Ser em geral, interpretado como ontos o Ser em sua totalidade, o substrato ltimo da realidade e dos fenmenos puros a que restrito.

    No haveria nenhuma realidade nou-mnica, como afirmara Kant, um sculo e meio antes, ao tentar explicar o Ser. Aquela realidade foi aniquilada pela conscincia temporal. No h imor-talidade da alma. No h espao para qualquer tipo de dualismo. O Ser tempo. Este o componente essencial.

    Onde fica Deus em um esquema como este? O prprio Heidegger explicou isso. Sem chegar a neg-Lo, ele assumiu uma posio agnstica. Na medida em que nossa compreen-

    so depende da experincia, e sendo que no poderamos ter qualquer experincia de Deus dentro da realida-de espao-tempo, somos incapazes de afirmar a existncia divina. Jean-Paul Sartre (1905-1980),4 existencialista ateu, manteve um pensamento seme-lhante ao de Heidegger, embora mais relacionado descrio da conscincia.

    ato no necessariamente dotado de um fenmeno correlato existente e real, tal como o do Jesus histrico, por exemplo. A teologia erudita, ento, encaminhou- se para os meandros acidentados do mtodo crtico-histrico, um caminho do qual muito difcil escapar.

    De volta a JerusalmDurante o perodo de desenvolvi-

    mento das ideias anteriormente cita-das, o que estava acontecendo com o conceito filosfico simbolizado por Jerusalm? Tentemos descrever seu paradigma fundamental, por meio do qual abordaremos sua metafsica, seu conceito de Ser.

    A Bblia nos proporciona a luz funda-mental sobre os contornos do paradig-ma representado pela antiga Jerusalm. Como? As Escrituras Sagradas so uma narrativa histrica real, na qual Deus se revela em suas mltiplas teofanias. A partir do momento da criao do mundo e da humanidade, Deus inva-diu o tempo humano, sem perder Sua essncia constitutiva. De acordo com o relato bblico, Deus . Portanto no est limitado pela sentena de Heidegger quando se referiu ao silncio de Deus. Isso significa que a divindade no pre-cisa permanecer ligada a esta dimenso temporal dimenso humana para que ambas as realidades (humana e divina) possam se comunicar entre si. Nisto consiste o erro fundamental do paradigma ateniense. Desde o incio da filosofia, na Grcia antiga, o pensamen-to filosfico estabeleceu a ideia bsica e princpio epistemolgico de que somente o igual conhece o igual.

    Mas quem disse que deveria ser assim? Por que toda metafsica e episte-mologia deveriam estar subordinadas a esse princpio? No relato de Moiss, h uma passagem que ilustra esse ponto.

    Vamos analisar o captulo trs de xodo, com especial nfase no vers-culo 14. Ali, Deus aparece em uma epifania espao-temporal: Disse Deus a Moiss: Eu Sou o que Sou. isto que voc dir aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocs (NVI). No estamos

    O desenvolvimento dos paradigmas materialista e existencialista teve pro-fundas implicaes para a teologia e inclusive para a compreenso leiga, no erudita, das Sagradas Escrituras. At Heidegger e at o auge do existencialis-mo, pode-se dizer que toda a teologia era dogmtica. E nisto no podemos distinguir nem mesmo a teologia cat-lica da teologia protestante. Ambas eram produzidas em um mesmo padro paradigmtico. Isso ocorreu at o sculo XX, quando Rudolf Bultmann5 (1884-1976) reestruturou toda a exe-gese bblica a partir da nova metafsica introduzida por Heidegger. Bultmann trouxe destaque ao movimento da nova teologia, iniciado com telogos como Strauss, Weisse, Wilke, Wrede, Schmidt e Khler.

    O propsito da teologia de Bultmann era desmistificar a narrativa bblica, em que grande parte da mesma ficou reduzida mera alegoria. Desse modo, a f manifestada pelo crente seria um

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    diante de uma expresso meramente retrica. Na verdade, trata-se de uma sentena importante por meio da qual a Divindade se dirigiu a Moiss, seu interlocutor, com a finalidade de confiar-lhe uma mensagem ao povo da aliana. Essa era uma mensagem desti-nada ao povo de Israel, vinda da maior autoridade da existncia. Assim, a Divindade se manifesta em Seu carter ao mesmo tempo temporal e atemporal (uma sara ardente que paradoxalmente nunca consumida). Revela-se em Seu discurso a constituio essencial de Seu carter. O Deus Yahweh, durante o con-tato com Moiss, esteve no tempo e ocu-pou um lugar no espao. A Divindade que se apresentou a Moiss para dar-lhe uma mensagem realizou Sua fenome-nolgica apario na realidade espao- temporal e Se comunicou face a face com o homem, Seu porta-voz para o povo da aliana. Eis aqui a supratempo-ralidade divina. Deus no permaneceu na sara, embora Ele tenha se fenome-nalizado nela. Ao se fenomenalizar, Ele irrompe no tempo humano, embora ainda o transcenda.

    Esse o modo como Deus se mani-festa. Ele est na histria humana e tambm est acima e alm dela. Caso contrrio, h apenas duas opes plau-sveis:

    1. Deus estaria reduzido ao tempo e matria, o que beira uma viso pan-testa, pois a Divindade j no ima-terial, visto que ficaria presa prpria matria. Ao reduzir a divindade a algo to igual ao homem e ao resto da rea-lidade material, confunde-se o divino com a matria e a conscincia. A partir dessa compreenso, surgem as religies da Nova Era, construdas a partir de seu fundamental neopantesmo, o qual estabelece que divindade formada e existe apenas na conscincia individual.

    2. A alternativa concepo pan-testa da divindade o deus que est localizado nos pantanosos contornos do desmo.6 De fato, o tesmo clssico da teologia catlica de base tomista, quando levado ao limite de sua lgica interna, chega a uma concepo des-

    ta. Desse modo, somos reconduzidos ao deus aristotlico, aquele primeiro motor-imvel, que move todas as coisas sem ser movido por nada. Mas no precisamos ir to longe como faz a teologia aristotlica. Basta pensarmos nas dificuldades da teologia catlica tomista e de grande parte da teologia protestante para explicar a comunica-o entre Deus e o ser humano.7

    A partir das consideraes estabele-cidas, qual a implicao dessas duas opes para a religio? Alm disso, de que modo a teologia adventista e seu corpo de doutrinas so afetados por essas opes colocadas, especialmente considerando que nossas posies sobre sade e educao derivam de nossa teologia?8

    Eplogo1. Nosso pensamento teolgico nem

    sempre tem sido coerente e estrutu-ralmente integrado ao conceito de Ser evidenciado na Bblia. Isso acontece em relao ao ser de Deus e, consequente-mente, tambm em relao ao conceito de existncia dos demais seres, os quais no podem ser compreendidos se no estiverem situados historicamente.

    2. A nossa filosofia de educao tambm no tem sido consistente com os fundamentos bblicos de uma abor-dagem educacional integral e holstica. Muitas vezes essa ideia de educao

    integral prevalece na rea do dizer, mas geralmente esse conceito no passa de mero discurso. No avana para o nvel do fazer. Essa ideia no total-mente compreendida porque as bases sobre as quais ela est edificada no so conhecidas. Inmeras vezes, tomamos ideias emprestadas de outros sistemas, sem dedicarmos tempo para peneir-las com base nos fundamentos de nosso prprio sistema de crenas, em que no h lugar para dualismos de qualquer tipo, nem para conceitos mecanicistas, evolutivos ou antiteolgicos. Por exem-plo, quanta importncia damos em nosso sistema educacional educao harmoniosa de todas as faculdades humanas, colocando no mesmo nvel de importncia o desenvolvimento fsi-co, intelectual e espiritual? claro, temos propsitos bem redigidos, mas realmente cumprimos isso? Esses propsitos se manifestam claramente no currculo de formao de nossos alunos?

    3. Esta no uma questo insignifi-cante, visto que tem um forte impacto no currculo de cada programa de estudo, bem como em cada um dos temas que lhe do forma, no apenas nas cincias fsicas e naturais, em que relativamente fcil identificar os conte- dos que esto em conflito com a nossa viso de mundo, mas especialmente nas cincias humanas e sociais, manifestan-do-se em determinados conjuntos de valores e afetando a disciplina em sua totalidade (o evolucionismo biolgico e social, o behaviorismo, antifinalismo, historicismo etc).

    4. O mesmo ocorre na rea da sade. Na verdade, em nossos hospitais e cl-nicas, interpretamos a sade como uma unidade psico-fsico-mental-espiritual? Ser que no temos dualismos irredut-veis que permanecem em nossas prti-cas mdicas? Por exemplo, temos bem claro o conceito de interconexo entre o fsico e o mental na grande maioria das doenas e distrbios que muitas vezes so tratados como questes puramente patolgicas em sua aparncia fsica? Em que medida enfatizamos o conceito integral de sade ao planejar trata-

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    mentos, cirurgias e ao receitar e aplicar frmacos? Esse conceito de sade e as prticas dele derivadas no deveriam resultar de uma teologia do Ser histri-ca, real e concreta, comeando com o Ser de Deus, o nosso Criador?

    5. A teologia judaico-crist fornece fundamentos suficientes para no ter-mos de depender de teologias estrangei-ras, fundamentadas na filosofia grega. Tudo o que devemos fazer basear nossa interpretao teolgica no relato histrico que Deus, atravs de seus pro-fetas e mensageiros, deu-nos a conhecer em situaes histricas especficas atra-vs de Sua Palavra.

    6. Devemos estar cientes de que a nossa teologia e filosofia da educao e da sade podem ser encontradas nos fundamentos slidos das Sagradas Escrituras. Isso implica na necessidade de redefinir o conceito de Ser em geral e a Sua relao com todos os seres. Tais conceitos no tm nada a dever s filo-sofias com princpios gregos, como, por exemplo, o axioma bsico ocidental de que somente o igual conhece o igual, princpio fundamental que constitui o paradigma interpretativo de toda a metafsica dualista por uma parte, bem como tambm a nova metafsica feno-menolgica existencialista do sculo XX.

    7. Na base de todo pensamento e de toda a lgica da entidade do Ser pode-mos encontrar o fato real e concreto do Eu Sou o que Sou expressado por Deus em xodo 3:14. Essa viso do ser manifestada em dois aspectos: como uma sara ardente naquele momento histrico particular, bem como trans-cendendo o espao e o tempo de toda a histria da humanidade e do universo criado por Deus.

    Para concluir, todo este debate entre as duas escolas pode ser resumido com a seguinte pergunta: devemos ser guia-dos pelos interesses e preocupaes das pessoas de Jerusalm ou de Atenas? A resposta adventista no deveria deixar espao para dvidas ou interpretaes dbias.

    Fernando Aranda Fraga (Ph.D., Universidade Catlica de Santa Fe, Argentina), quando escreveu este artigo, era professor de ps-gradu-ao e diretor do Departamento de Pesquisa e Publicaes da Universidade de Montemorelos, Nuevo Leon, Mxico. Atualmente, aceitou o convite para retornar a sua universidade de origem, a Universidade Adventista del Plata, na Argentina.

    Uma verso preliminar deste artigo foi apresentada pelo seu autor no Simpsio da Sociedade de Filsofos Adventistas, na cidade de Atlanta, Georgia, EUA, em novembro de 2010.

    NotaEu quero agradecer ao meu mentor filsofo e telogo, Dr. Fernando L. Canale, da Universidade Andrews, que h alguns anos, na poca do Colgio Adventista del Plata (atu-almente Universidade Adventista del Plata) me inspirou em minhas indagaes sobre as analogias, semelhanas e diferenas entre as duas escolas de pensamento.

    REFERNCIAS 1. Veja suas obras principais: Phnomenologie

    des Geists, 1807 (Fenomenologia do Esprito); Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1821 (Fundamentos da Filosofia do Direito); Lectures on the Philosophy of History, 1837, (Lies de filosofia da Histria).

    2. Sem esquecermos de Herder, Dilthey (1833-1911), e da corrente historicista fundada por este ltimo, que devolveu a histria ao mbito da filosofia especialmente furtada pelos medi-evais em seu anelo estritamente dualista. Hegel foi um dos grandes precursores do historicismo, em seu caso, espiritualista. Marx representa o historicismo materialista.

    3. Sein und Zeit, 1927 (Ser e tempo). 4. Ltre et le nant, 1943 (O ser e o nada). 5. Die Geschichte der synoptischen Tradition, 1921

    (Histria da tradio sinptica); Religion without Myth, co-autor, junto com Karl Jaspers, 1954 (Religio sem mito).

    6. Postura teolgico-filosfica com respeito ao problema da existncia de Deus e da sua rela-o com o mundo, que teve forte vigncia e

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    predomnio durante a Modernidade (especial-mente do sculo XVII ao XIX). Seus mximos expoentes foram os pensadores franceses e britnicos da Ilustrao e da Enciclopdia. Foram destas, entre outros, Descartes, Leibniz, Voltaire, Rousseau, Locke, Berkeley, Hume, Smith. O desmo interpreta a Deus como uma espcie de grande relojoeiro que criou o mundo e logo o deixou livre de suas leis internas, isto , deu-lhe suficiente corda como para no ter que estar intervindo a cada momento e para que continuasse a sua marcha inexorvel dali em diante.

    7. Veja: Fernando L. Canale. A Criticism of Theological Reason: Time and Timelessness as Primordial Presuppositions. Andrews University Seminary Doctoral Dissertation Series, 10 vol. Berrien Springs, MI: Imprensa da Universidade Andrews, 1987.

    8. Canale. The Emerging Church. What does it mean? And why shoud we care?. In: Revista Adventista, Junho 10, 2010. Disponvel em: . Acesso em: .