“DIFERENÇA: FILOSOFIA DA FRONTEIRA – O pensamento do ...
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FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – DEPTO. DE FILOSOFIA
“DIFERENÇA: FILOSOFIA DA FRONTEIRA –
O pensamento do Acontecimento de Gilles Deleuze”
Por: Valéria Loturco da Silva
Orientador: Prof. Dr. Bento Prado de Almeida Ferraz Júnior
-- Tese de Doutoramento – Maio de 2006 --
1
Dedico todos os agradecimentos
àqueles que se tornaram as minhas duas
maiores referências no campo intelectual e,
sem exagero, na vida, porque entendem, tanto
quanto eu, filosofia como tradução do próprio
viver.
2
Resumo
A leitura mais óbvia para se inteirar do pensamento da diferença de Gilles
Deleuze (1925-1995) é sua obra capital "Différence et répétition" (1968), contudo, o
"Logique du sens" (1969), publicado na mesma época e igualmente notável, se não
é declaradamente um livro de teoria da diferença, tem, por certo, o espírito dela. Ao
nosso ver, a teoria exposta no "Diferença e repetição" é posta em prática no "Lógica
do sentido", onde ele consegue realizar seu projeto de filosofia que é considerar a
diferença em si mesma e a relação do diferente com o diferente. Nesse livro, ele
distingue uma fronteira entre as proposições e as coisas que se afigura como
instância mesma da diferença, tanto no aspecto lógico como ontológico."Tudo se
passa na fronteira", afirma Deleuze, embora seja a linguagem o "território" que dá
visibilidade ao que decorre nela, no que é próprio às proposições e às coisas. A
fronteira é articulação entre ambas dimensões que coloca elementos de uma e de
outra numa mesma superfície sem espessura por meio dos atributos lógicos das
coisas (acontecimentos) e do expresso da proposição (sentido).A fronteira é essa
exterioridade que toca os dois âmbitos sem pertencer a nenhum deles, que sobrevém
às coisas e insiste nas proposições, mas não é um existente, o que permite falar não
exatamente em ser, porém, num mínimo de ser, num extra-ser. Romper o círculo da
proposição restrito às questões do pensamento representativo é transformá-lo numa
lógica da linha reta sem espessura, num procedimento análogo à cisão do anel de
Moebius, o que faz com que a instância da diferença apareça, a fronteira ganhe
relevo e somente o Acontecimento subsista. É pela lógica do anel de Moebius que
se torna possível pensar a Diferença em si mesma.
Palavras-chave:
Diferença – Acontecimento – Sentido – Fronteira – Extra-ser
3
Summary:
The most obvious reading to complete of the thought of Gilles Deleuze's
difference (1925-1995) it is his capital work "Différence et repetition" (1968),
however, " Logique du sens" (1969), published in the same time and equally
notable, if it is not declaredly a book of theory of the difference, it has, for right, its
spirit. To ours to see, the exposed theory in it "Differentiates and repetition" is put
into practice in the " Logic of the sense ", where he gets to accomplish his
philosophy project that is to consider the difference in herself and the relationship
of the different with the different. In that book, he distinguishes a frontier so much
among the propositions and the things that it is figured as same instance of the
difference, in the logical aspect as ontological. “Everything happens in the border”,
affirms Deleuze, although it is the language the " territory " that gives visibility to
the that elapses in her, in what it is own to the propositions and the things. The
frontier is articulation among both dimensions that it puts elements of one and of
other in a same surface without thickness through the logical attributes of the things
(events) and of the express of the proposition (sense). The border is that exteriority
that plays the two extents without belonging to none of them, that it occurs to the
things and it insists on the propositions, but it is not an existent one, the one that
allows speak not exactly in being, however, in a minimum of being, in an extra-
being. To break the circle of the restricted proposition to the subjects of the
representative thought is to transform it in a logic of the straight line without
thickness, in a procedure similar to the scission of the ring of Moebius what does
with that the instance of the difference appears, the border wins relief and only the
Event subsists. It is for the logic of the ring of Moebius that if it turns possible to
think the Difference in herself.
Words-key:
Difference – Event – Sense – Frontier – Extra-being
4
Índice
A) ABREVIATURAS DAS OBRAS CONSULTADAS: ......................... 6
1) INTRODUÇÃO ......................................................................... 8
2) A DIFERENÇA EM SI MESMA ................................................. 13
2.1) Relação causal: cisão .................................................................................... 13
2.1.1) Subversão pré-socrática e reversão do platonismo: perversão .............. 19
2.1.2) Autotraição de Platão: simulacro de superfície ..................................... 24
2.1.3) As três dualidades.................................................................................. 35
2.2) Lógica circular: representação...................................................................... 37
2.3) Lógica do anel de Moebius: diferença.......................................................... 45
2.4) Lógica paradoxal .......................................................................................... 52
2.4.1) Paradoxo versus ‘doxa’ ......................................................................... 58
2.4.1.1) Paradoxo contra bom senso e senso comum .................................. 60
2.4.2) Autonomia do efeito = Diferença em si mesma .................................... 64
2.4.3) Cérebro versus boca............................................................................... 78
2.4.4) Inconsciente: âmbito da Diferença ........................................................ 86
2.5) Não-senso de superfície................................................................................ 93
2.6) Aion: campo transcendental ......................................................................... 98
2.6.1) Aion e Cronos: instante e agora........................................................... 101
2.6.2) Cronos e Aion : eterno retorno do Mesmo e do Diferente .................. 110
2.6.3) Eterno Retorno: afirmação................................................................... 126
2.6.4) Eterno Retorno: além-do-homem ........................................................ 134
5
2.6.5) Ante-crivo seletivo: relação de forças ................................................. 140
2.6.6) Pós-crivo seletivo: diferença ............................................................... 142
3) RELAÇÃO DO DIFERENTE COM O DIFERENTE...................... 144
3.1) Diferença diferenciante............................................................................... 145
3.2) Acontecimento: comunicação entre acontecimentos.................................. 149
3.2.1) Divergência, disjunção, distância, diferença positivas ........................ 153
3.3) Univocidade do ser: extra-ser ..................................................................... 159
3.4) Linguagem.................................................................................................. 167
4) FRONTEIRA E INTENSIDADE .............................................. 174
5) PARA NÃO CONCLUIR......................................................... 179
6) BIBLIOGRAFIA ................................................................... 181
6.1) De Deleuze ................................................................................................. 181
6.1.1) Obras.................................................................................................... 181
6.1.2) Artigos ................................................................................................. 182
6.2) Sobre Deleuze............................................................................................. 182
6.3) Outros ......................................................................................................... 183
6
A) Abreviaturas das obras consultadas:
Obras:
De Deleuze:
C = Conversações
DF = Différence et répétition (Diferença e repetição)
EFP = Espinosa – filosofia prática
EeS = Espinosa e os signos (Spinoza e, parcialmente, Spinoza – philosophie
pratique)
ES = Empirisme et subjectivité
FCK = A Filosofia crítica de Kant
H = Hume, in Histoire de la philosophie, org. por François Châtelet
IT = Imagem e tempo (L’image-temps )
IV = L’immanence: une vie... in Philosophie nº 47.
LS = Logique du sens (Lógica do sentido)
MP = Mille plateaux (Mil platôs)
N = Nietzsche
NF = Nietzsche e a filosofia
NP = Nietzsche et la philosophie
OF = O que é a filosofia?, com Félix Guattari
P = Pourparlers
PCK = La philosophie critique de Kant
QP = Qu’est-ce que la philosophie?, com Félix Guattari
SPP = Spinosa - philosophie pratique
De outros :
AD = O avesso da dialética, de Gérard Lebrun
AE = Através do espelho e o que Alice encontrou lá (Through the looking-glass), de
Lewis Carroll
AFZ = Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche
CP = Cinco prefácios para cinco livros não-escritos, de Friedrich Nietzsche
DF = Deleuze e a filosofia, Roberto Machado
E = Ética, de Baruch Espinosa
EDL = Estudos deleuzeanos da linguagem, de Júlia Almeida
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ET = Empirismo transcendental na filosofia de Gilles Deleuze, de Valéria Loturco
da Silva
F = Ficciones, de Jorge Luis Borges
F = Filebo, de Platão
F = Física, de Aristóteles
GC = Gaia ciência (Die fröhliche Wissenschaft), de Friedrich Nietzsche
I = Ideas relativas a una fenomenologia pura y una filosofia fenomenológica, de
Edmund Husserl
IPI = A idéia de “plano de imanência”, de Bento Prado Jr.
M = Metafísica, de Aristóteles
OGD = L’ontologie de Gilles Deleuze, de Véronique Bergen
P = Parmênides, de Platão
PC = La Patience du Concept, de Gérard Lebrun
S = Sofista, de Platão
SBC = Sylvie and Brune concluded, de Lewis Carroll
SEM = Essai sur les notions de structure et d’existence en mathématiques, de Albert
Lautman
SL = Science de la logique (wissenschaft der logik), de Georg W.F. Hegel
SM = Gilles Deleuze ou le système du multiple, de Philippe Mengue
SS =Le système stoïcien et l’idée de temps, de Victor Goldschmidt
T = Timeu, de Platão
TD = Os trabalhos e os dias, de Hesíodo
TI = La théorie des incorporels dans l’ancien stoïcisme, de Émile Bréhier
TNR = O tempo não-reconciliado, de Peter Pál Pelbart
VFI = Vidas, opinioes y sentencias de los filosofos mas ilustres, de Diógenes
Láercio
8
“Diferença : filosofia da fronteira –
O pensamento do Acontecimento de Gilles Deleuze”
Por Valéria Loturco da Silva
1) Introdução
“Enquanto a diferença é submetida às exigências da
representação, ela não é nem pode ser pensada em si
mesma”. “Deixando de ser pensada, a diferença dissipa-se
no não-ser”1.
A leitura mais óbvia para se inteirar do pensamento da diferença de Gilles
Deleuze (1925-1995) é sua obra capital Différence et répétition (1968), contudo, o
Logique du sens (1969), publicado na mesma época e igualmente notável, se não é
declaradamente um livro de teoria da diferença, tem, por certo, o espírito dela. Ao
nosso ver, a teoria exposta no Diferença e repetição é posta em prática no Lógica
do sentido, onde ele consegue realizar seu projeto de filosofia que é considerar a
diferença em si mesma e estabelecer a relação do diferente com o diferente2, que a
torna pensável, observando obviamente a temática do sentido. Nesse livro, ele
distingue uma fronteira (frontière) entre as proposições e as coisas que se afigura
como instância mesma da diferença, tanto no aspecto lógico como no ontológico.
“Tudo se passa na fronteira”3, afirma Deleuze, embora seja a linguagem o
“território” que dá visibilidade ao que decorre nela, no que é próprio às proposições
e às coisas. A fronteira é articulação entre ambas dimensões que coloca elementos
1 Deleuze, DR, pp.415 e 416; orig. p.337 : « Tant que la différence est soumise aux
exigences de la représentation, elle n’est pas pensée en elle-même, et ne peut pas l’être ».
« Cessant d’être pensée, la différence se dissipe dans le non-être ». 2 Cf. Deleuze, DR, p.16; orig. pp.1 a 2. 3 Deleuze, LS, p.10 (grifos nossos) ; orig. p.19: « Tout se passe à la frontière ».
9
de uma e de outra numa mesma superfície sem espessura por meio dos atributos
lógicos das coisas (acontecimentos4) e do exprimível da proposição (sentido5).
Nunca devemos nos perguntar sobre o sentido de um acontecimento porque “o
acontecimento é o próprio sentido”6, observa ele. A própria definição de fronteira é
paradoxal e de profunda inspiração estóica: ela é essa exterioridade que toca os dois
âmbitos sem pertencer a nenhum deles, que sobrevém às coisas e insiste nas
proposições, mas não é um existente, o que permite falar não exatamente em ser,
porém, num mínimo de ser, num extra-ser (Extra-être). A proposição “a árvore é
verde” designa a qualidade física da árvore, contudo, “a árvore verdeja” revela o
acontecimento da cor da árvore, sendo o “verdejar” um atributo lógico que se diz da
coisa e não um aspecto sensível; por conseguinte, não é um ser e nem qualifica um
ser, é antes um extra-ser7 que se diz da coisa pela proposição. O atributo lógico não
diz a coisa (não a designa em sua qualidade sensível, não é o designado), mas se diz
da coisa (é seu noema). Como atributo lógico, “o acontecimento pertence
essencialmente à linguagem”, “mas a linguagem é o que se diz das coisas”8. Essa
característica essencial da linguagem, o dizer-se das coisas, torna-a um terreno
privilegiado na medida em que confere evidência à fronteira e faz com que “tudo o
que se passa, passa-se na linguagem e passa pela linguagem”9. No entanto, o âmbito
próprio da diferença é a fronteira e não a linguagem.
Para traçar a fronteira, Deleuze privilegia a dimensão extraproposicional do
sentido e abandona as reflexões sobre a linguagem suscitadas desde Platão e
Aristóteles, passando pelos empiristas, intelectualistas e mesmo os positivistas
lógicos, porque todas estão circunscritas ao interior da proposição e atendem apenas
às condições do pensamento representativo e não da diferença. Os ruídos corporais
tornam-se linguagem por obra do sentido, que lhe é exterior e, contudo, não
sobrevive sem ela. Não por acaso, Deleuze recorre aos Estóicos e a Lewis Carroll, 4 Événements. 5 Sens. 6 Deleuze, LS, p.23; orig. p..34: «L’événement, c’est le sens lui-même ». 7 Cf. Deleuze, LS, p.22; orig. p.33. 8 Deleuze, LS, p.23 (grifos nossos); orig. p.34: « L’événement appartient essentiellement au
langage », « mais le langage est ce qui dit des choses ». 9 Deleuze, LS, p.23; orig. p.34: « Tout ce qui se passe se passe dans le langage et passe par
le langage ».
10
mestres na arte de produzir paradoxos, para explicar a lógica do sentido. Toda a
crítica que Deleuze faz no Diferença e Repetição à pretensão da filosofia de dizer a
verdade das coisas é efetuada no Lógica do sentido por meio de um simples e
crucial deslocamento lógico à exterioridade das proposições. Como falar em
proposição verdadeira e falsa se ambas têm o mesmo sentido e até mesmo as
absurdas são assim dotadas? Ou, nas palavras do filósofo, “como evitar que as
proposições contraditórias tenham o mesmo sentido, visto que a afirmação e a
negação são apenas modos proposicionais? E como evitar que um objeto
impossível, contraditório em si mesmo, tenha um sentido, embora não tenha
«significação» (o ente-quadrado do círculo)?”10.
Então, evadir-se da interioridade da proposição significa ultrapassar
questões filosóficas tradicionais sobre verdade e falsidade, afirmação e negação,
entre outras, porque todas submissas às exigências do princípio de não-contradição.
“O sentido é sempre duplo sentido”11, pondera Deleuze. E “o paradoxo é a
afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”12. O sentido é, pois, paradoxal,
enquanto as dimensões interiores da proposição operam pela lógica única do bom
senso e do senso comum. Segundo ele, o paradoxo destrói o bom senso como
sentido único para depois destruir o senso comum como designação de identidades
fixas13. Não é à toa que a fronteira é tida como devir de superfície que avança
simultaneamente para o passado e o futuro, furtando-se sempre ao presente, este
último, tema circunscrito à proposição já que designa o tempo corporal. Mesmo o
devir da profundidade dos corpos, entendido como desmedida, também remete à
interioridade proposicional, pois opera uma identidade infinita dos contrários14,
inseparável de um movimento do negativo e da exclusão, enquanto o devir de
superfície se articula por uma diferenciação da diferença15, uma afirmação de sua 10 Deleuze, DR, p.255; orig. p.202 : « Comme éviter que les propositions contradictoires
aient le même sens, puisque l’affirmation et la négation sont seulement des modes
propositionnels ? Et comment éviter qu’un objet impossible, contradictoire en lui-même, ait
un sens, bien qu’il n’ait pas de ‘signification’ (l’etant-carré du cercle) ? ». 11 Deleuze, LS, p.35 ; orig. p.46 : « Le sens est toujours double sens ». 12 Deleuze, LS, p.1; orig. p.9 : «Le paradoxe est l’affirmation des deux sens à la fois ». 13 Cf. Deleuze, LS, p.3 ; orig. p.12. 14 Deleuze,LS, p.181 ; orig. p.205 : Identité infinie des contraires. 15 Deleuze,LS, p.181 ; orig. p.205 : Différenciation de la différence.
11
própria disjunção, expresso pelo sentido. Segundo Deleuze, é preciso ascender à
superfície, desmistificar a falsa profundidade e descobrir que “nada sobe à
superfície sem mudar de natureza”16 e, como dissemos, mormente que “tudo se
passa na fronteira”17.
Temas caros à filosofia como “mundo”, “eu” e “Deus”, que funcionam
como princípios das três dimensões ordinárias da proposição, respectivamente,
designação, manifestação e significação, são dissolvidos na superfície fronteiriça do
sentido que não os comporta. Ali há não um mundo, mas um “caosmos”, não um
eu, porém um “contra-eu”, não um Deus ou um princípio teológico, todavia um
“princípio diabólico”18. O sentido não se reduz ao objeto designado, nem ao estado
vivido daquele que se exprime e tampouco aos conceitos da significação e seus
objetos condicionados num campo de representação; ele sempre escapa à
proposição: nunca podemos dizer o sentido daquilo que falamos19. Na realidade, o
sentido emana da instância paradoxal do não–senso, única palavra a dizer a si
própria e a seu sentido20. Deleuze explica que “a manifestação da Filosofia não é o
bom senso, mas o paradoxo”21, que é o seu pathos ou paixão que se opõe ao bom
senso e ao senso comum. E o paradoxo, explica ele, tem uma ligação intrínseca com
a Diferença, pois, subjetivamente, “quebra o exercício comum e leva cada faculdade
diante de seu próprio limite, diante de seu incomparável, o pensamento diante do
impensável que, todavia, só ele pode pensar”22. Ao que tudo indica, a fronteira é o
impensável do pensamento na medida em que inexiste nas coisas e nas proposições;
16 Deleuze, LS, p.170 ; orig. p.193 : « Rien ne monte à la surface sans changer de nature ». 17 Deleuze, LS, p.10; orig. p.19: « Tout se passe à la frontière ». 18 Cf. Deleuze, LS, p.182 ; orig. p.206. 19 Cf. Deleuze, DR, p.253; orig. p.201. 20 Segundo Deleuze, só a palavra não-senso, abraxas, snark ou blituri diz a si própria a seu
próprio sentido. Blituri é uma palavra estóica que nada significa, segundo Diógenes
Laércio, VFI, livro VII, par. 41, p.1284. Cf. DR, p.254; orig. p.201. E cf. LS, pp.45 a 50:
também as “palavras-valises” dizem o seu sentido. 21 Deleuze, DR, p.364 ; orig. p.293 : « la manifestation de la philosophie n’est pas le bon
sens, mais le paradoxe ». 22 Deleuze, DR, p.364 ; orig. p.293 : « brise l’exercice commun et porte chaque faculté
devant sa limite propre, devant son incomparable, la pensée devant l’impensable qu’elle est
pourtant seule à pouvoir penser ».
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insiste nestas e sobrevém àquelas, embora seja o que o force a pensar. E acrescenta
que objetivamente, “o paradoxo faz valer o elemento que não se deixa totalizar num
conjunto comum, mas também a diferença que não se deixa igualizar ou anular na
direção de um bom senso”23.
Romper o círculo da proposição restrito às questões do pensamento
representativo é transformá-lo numa lógica de linha reta sem espessura, de duas
faces ímpares, uma voltada às coisas e outra, às proposições. Procedimento este
necessário para que a instância da diferença apareça, para que a fronteira ganhe
relevo e somente o Acontecimento subsista. Com a ruptura, não há mais o círculo,
mas a linha reta dotada das mesmas características, principalmente da
unilateralidade, da lógica do anel de Moebius, pois “é sempre contornando a
superfície, a fronteira, que passamos do outro lado, pela virtude de um anel. A
continuidade do avesso e do direito substitui todos os níveis de profundidade; e os
efeitos de superfície em um só e mesmo Acontecimento, que vale para todos os
acontecimentos, fazendo elevar-se ao nível da linguagem todo o devir e seus
paradoxos”24. O circuito da proposição só permite inferir indiretamente o sentido,
contudo, o que ele é diretamente só pode ser alcançado com sua cisão, “numa
operação análoga àquela que fende e desdobra o anel de Moebius”25. Não mais
eterno retorno do mesmo promovido pelo círculo da proposição, mas eterno retorno
do diferente ou do Acontecimento impulsionado pela linha reta. Quando se rompe o
círculo e tudo se torna superfície, fronteira, diferença, só o Acontecimento subsiste
ao crivo da tortuosa linha reta, só ele retorna. Diz Deleuze: “Mais nada subsiste
além do Acontecimento, o Acontecimento só Eventum tantum para todos os
23 Deleuze, DR, p.364 ; orig. p.293 : « Le paradoxe fait valoir l’élément qui ne se laisse pas
totaliser dans un ensemble commun, mais aussi la différence qui ne se laisse pas égaliser ou
annuler dans la direction d’un bon sens ». 24 Deleuze, LS, p.12 ; orig. p.21 : « C’est toujours en longeant la surface, la frontière, qu’on
passe de l’autre côté, par la vertu d’un anneau. La continuité de l’envers et de l’endroit
remplace tous les paliers de profondeur ; et les effets de surface en un seul et même
Événement, qui vaut pour tous les événements, font monter dans la langage tout le devenir
et seus paradoxes ». 25 Deleuze, LS, p.128 ; orig. p.149 : « dans une opération analogue à celle qui fend et
déploie l’anneau de Moebius ».
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contrários, que comunica consigo por sua própria distância, ressoando através de
todas as suas disjunções”26.
2) A diferença em si mesma
Deleuze faz uma nítida separação entre o campo da diferença em si mesma e
o campo da representação. No âmbito da linguagem, este está confinado ao círculo
das proposições e às questões concernentes aos seus três termos ordinários, a saber,
designação, manifestação e significação, todas submissas ao princípio de não-
contradição. E aquele é a fronteira entre as proposições e as coisas, em que aparece
a quarta dimensão (exterior) da proposição, que opera como diferença e por uma
lógica paradoxal tal qual a do anel de Moebius. É paradoxal porque inexistente,
exterior, neutra ao mesmo tempo com poder genético.
E, deter-se na fronteira, é torná-la pensável, o que significa, no nosso
entender, realizar o projeto filosófico deleuzeano: pensar a diferença em si mesma.
Todavia, não se trata de um plano de fácil execução dado o caráter paradoxal da
diferença, entendida como fronteira, que precisa ser explorado, e dada outrossim a
tradição filosófica que deve ser enfrentada, criticada. No Lógica do sentido, uma
peculiar cisão na relação causal, presente na noção da dupla causalidade, propicia a
Deleuze a oportunidade de efetuar tanto a crítica à tradição como também seu
projeto de filosofia.
2.1) Relação causal: cisão
A questão da causalidade sempre desempenhou um papel fundamental à
filosofia desde o seu proêmio como uma espécie de razão da produção de algo, lei
que rege os acontecimentos da mesma espécie ou transmissão de propriedades de
uma coisa à outra segundo um certo princípio. A maioria dos pré-socráticos teoriza
sobre princípios e causas de natureza material, a exemplo de Tales, fundador deste
26 Deleuze, LS, p.182 ; orig. p.207 : « Plus rien ne subsiste que l’Événement, l’Événement
seul, Eventum tantum pour tous les contraires, qui communique avec soi par sa propre
distance, résonant à travers toutes ses disjonctions ».
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tipo de filosofia, que afirma ser a água o princípio do qual origina todas as coisas27.
Trata-se de realidades materiais e sensíveis que Platão, por seu turno, entende como
sendo apenas causas segundas e subordinadas às causas primeiras de natureza
inteligível (Idéias)28. Conforme Deleuze, “as asas da alma platônica” opuseram-se
aos “pré-socráticos” que “instalaram o pensamento nas cavernas, a vida na
profundidade; eles sondaram a água e o fogo”29. Mas, a inspiração deleuzeana para
o pensamento da diferença vem dos Estóicos que inovam ao operar uma inusitada
cisão na relação causal e ao vislumbrar, com isso, uma “dupla causalidade”. Além
de funcionar como crítica dobrada e simultânea contra os pré-socráticos e o
platonismo, a dupla causalidade leva à descoberta da superfície, o que auxilia na
tarefa de realizar o pensamento da diferença, mostrando que seu “âmbito” próprio é
a fronteira, os interstícios. Para os Estóicos, causa e efeito são de naturezas
distintas: os corpos são considerados causas cujas misturas produzem efeitos
incorporais, inexistentes, puros acontecimentos. Estes acontecimentos são como um
tênue ‘vapor’ incorporal, uma superfície ideal. Diz Deleuze: “é seguindo a fronteira,
margeando a superfície, que passamos dos corpos ao incorporal”30. Veremos que é
nessa instância do efeito incorporal que Deleuze considerará como sendo da
diferença. Por um lado, há os corpos com suas qualidades físicas, ações e paixões e
estados de coisas, em que o único tempo é o presente vivo, tido como extensão
temporal que acompanha o ato, exprime e mede a ação do agente e a paixão do
paciente; assim, só os corpos existem no espaço e só o presente no tempo. Por outro
lado, há os incorporais, efeitos produzidos pelas misturas dos corpos, que são
atributos lógicos das coisas e não qualidades físicas; eles são acontecimentos e não
estados de coisas, portanto, não existem, mas insistem ou subsistem na linguagem,
tendo um mínimo de ser próprio daquilo que não é uma coisa. Destarte, dessa
ruptura causal surge também uma nova ontologia, dos seres incorporais ou do extra-
ser. Em relação à proposição, os incorporais não são substantivos ou adjetivos, mas
27 Cf. Aristóteles, M, I, 3. 983b 5 – 20, p.42. 28 Cf. Platão, Timeu, 46e, p.63. 29 Deleuze, LS, p.132 ; orig. p.153 : « Les Présocratiques ont installé la pensée dans les
cavernes, la vie dans la profondeur. Ils ont sondé l’eau et le feu ». 30 Deleuze, LS, p.11; orig., p.20 : « c’est en suivant la frontière, en longeant la surface,
qu’on passe des corps à l’incorporel ».
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verbos; concernente aos corpos, não são agentes nem pacientes, porém, resultados
impassíveis de suas ações e paixões. Não são presentes vivos, mas infinitivos, Aion
ilimitado, devir que se divide ao infinito em passado e em futuro, sem ser jamais
presente, como veremos.
Para explicar o acontecimento, ou seja, o efeito incorporal produzido pelos
corpos, Deleuze, tanto quanto o fazemos, vale-se da reconstituição do pensamento
estóico feita por Émile Bréhier no livro La théorie des incorporels dans l’ancien
stöicisme. Bréhier esclarece que “quando o escalpelo corta a carne, o primeiro corpo
produz sobre o segundo não uma propriedade nova, mas um atributo novo, o de ser
cortado. O atributo não designa nenhuma qualidade real”, “é sempre, ao contrário,
expresso por um verbo, o que quer dizer que é não um ser, mas uma maneira de
ser”. “Esta maneira de ser se encontra de alguma forma no limite, na superfície do
ser e não pode mudar sua natureza: ela não é a bem dizer nem ativa nem passiva,
pois a passividade suporia uma natureza corporal que sofre uma ação. Ela é pura e
simplesmente um resultado, um efeito não classificável entre os seres. Esses
resultados da ação dos seres, que os Estóicos foram os primeiros a observar sob essa
forma, é o que nós chamaríamos hoje de fatos ou acontecimentos: conceito bastardo
que não é o de um ser, nem de uma de suas propriedades, mas o que é dito ou
afirmado do ser. É o caráter singular do fato que os Estóicos colocavam luz dizendo
que era incorporal”. “A importância dessa idéia para eles se faz ver pelo cuidado
que têm de exprimir sempre na linguagem o efeito por um verbo”. “Eles
possibilitam uma tal concepção distinguindo radicalmente o que ninguém tinha feito
antes deles, dois planos de ser: de um lado, o ser profundo e real, a força; de outro,
o plano dos fatos que se produzem na superfície do ser e instituem uma
multiplicidade infinita de seres incorporais”31. 31 Bréhier, TI, pp.11 a 13 (grifos nossos) e citação parcial em Deleuze, LS, p.6; orig. LS,
p.14 e tradução complementar nossa: « Lorsque le scapel tranche la chair, le premier corps
produit sur le second non pas une propriété nouvelle mais un attribut nouveau, celui d’être
coupé. L’attribut, à proprement parler, ne désigne aucune qualité réelle ». « L’attribut est
toujours au contraire exprimé par un verbe, ce qui veut dire qu’il est non un être, mais une
manière d’être ». « Cette manière d’être se trouve en quelque sorte à la limite, à la
superficie de l’être, et elle ne peut en changer la nature : elle n’est à vrai dire ni active ni
passive, car la passivité supposerait une nature corporalle qui subit une action. Elle est
purement et simplement un résultat, un effet qui n’est pas à classer parmi les êtres. Ces
16
Segundo Deleuze, os Estóicos foram os primeiros a tornar independentes,
heterogêneos as causas e os efeitos, colocando de um lado as ações e paixões dos
corpos e do outro, os atos incorpóreos. Há a trama dos corpos (forma de conteúdo) e
há o encadeamento dos expressos (forma de expressão). Ele explica que “quando o
punhal entra na carne, quando o alimento ou o veneno se espalha pelo corpo,
quando a gota de vinho é vertida na água, há mistura de corpos; mas os enunciados
«o punhal corta a carne», «eu como», «a água se torna vermelha», exprimem
transformações incorpóreas de natureza completamente diferente
(acontecimentos)”32. A independência da forma da expressão (incorpóreo) e da
forma do conteúdo (corpos), enfatiza Deleuze, não funda qualquer paralelismo entre
elas, nem uma representação de uma à outra, inversamente, um esfacelamento das
duas, já que as expressões se inserem nos conteúdos e os conteúdos, nas expressões,
“os signos trabalham as próprias coisas, ao mesmo tempo em que as coisas se
estendem ou se desenrolam através dos signos”33. Conforme Deleuze, o conteúdo e
a expressão formam um agenciamento de eixo horizontal: “por um lado, ele é
agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos
reagindo uns sobre os outros; por outro lado, agenciamento coletivo de enunciação,
resultats de l’action des êtres, que les Stoïciens ont été peut-être premiers à remarquer sous
cette forme, c’est ce que nous appellerions aujourd’hui des faits ou des événements :
concept bâtard qui n’est ni celui d’un être, ni d’une de ses propriétés, mais ce qui est dit ou
affirmé de l’être. C’est ce caractère singulier du fait que les Stoïciens mettaient en lumière
en disant qu’il était incorporel ». « L’importance de cette idée pour eux se fait voir par le
souci qu’ils ont d’exprimer toujours dans le langage, l’effet par un verbe ». « Ils rendent
possible une telle conception en séparant radicalement, ce que personne n’avait fait avant
eux, deux plans d’être : d’une part, l’être profond et réel, la force ; d’autre part, le plan des
faits, qui se jouent à la surface de l’être, et qui constituent une multiplicité sans lien et sans
fin d’êtres incorporels ». 32 Deleuze, MP, pp.26 a 27; orig. p.109: « quand le couteau entre dans la chair, quand
l’aliment ou le poison se répand dans le corps, quand la goutte de vin est versée dans l’eau,
il y a mélange de corps ; mais les énoncés « le couteau coupe la chair », « je mange », «
l’eau rougit », exprime des transformations incorporelles d’une toute autre nature
(événements) ». 33 Deleuze, MP, pp.27 a 28; orig. p.110: « les signes travaillent les choses elles-mêmes, en
même temps que les choses s’étendent ou se déploient à travers les signes ».
17
de atos e de enunciados, transformações incorpóreas sendo atribuídas aos corpos”34.
Segundo Philippe Mengue, há uma “pressuposição recíproca” (présupposition
réciproque), implicando uma isomorfia entre conteúdo e expressão. “Conteúdo e
expressão constituem, pois, as duas faces inseparáveis de um mesmo
agenciamento”35.
A relação causal apresenta-se, portanto, como um corte entre causa e efeito
que são de naturezas totalmente distintas, conforme vimos. Assim, os Estóicos
inovam porque desmembram esta relação, fazendo uma unidade de cada lado: a da
relação das causas entre si (dos corpos) e a da relação dos efeitos incorporais entre
si (dos acontecimentos). Em outras palavras, entre os corpos, elementos de mesma
natureza, não há relação de causa e efeito e sim relação das causas entre si, sendo o
Destino considerado sua unidade, na extensão do presente cósmico. Entre os efeitos,
elementos de mesma natureza, há uma quase-causalidade: uns são quase-causas em
relação aos outros e em relação a um ponto aleatório de superfície, como veremos
mais adiante. Então, esse vínculo dobrado não ocorre da mesma maneira, pois os
efeitos incorporais não são jamais causas uns dos outros (como entre os corpos),
mas somente “quase-causas”, segundo leis que exprimem a mistura corporal, que é
sua causa real. Logo, os Estóicos não estabelecem “tipos de causalidade”36 tal como
o inventário de Aristóteles e, posteriormente, de Kant, mas uma dupla causalidade
que leva a essa dissociação causal. Em suma, a causa corporal produz um efeito
incorporal que resulta em duas unidades, uma de cada lado, ou seja, duas espécies
de absolutos ou de diferentes, permitindo que se fale em relação (afirmativa) entre
diferentes positivos, atingindo assim, parcialmente, o propósito deleuzeano. A
descoberta estóica dos incorporais, no nosso entender, abre a possibilidade de se
considerar a diferença em si mesma, pois, dada a sua natureza evanescente e
paradoxal, eles não se submetem à lógica do princípio de não-contradição. Ao que
parece, a segunda unidade da relação causal estóica – a relação entre os efeitos – 34 Deleuze, MP, p.29; orig. p.112: « d’une part il est agencement machinique de corps,
d’actions et de passions, mélange de corps réagissant les uns sur les autres ; d’autre part,
agencement collectif d’énonciation, d’actes et d’énoncés, transformations incorporelles
s’attribuant aux corps ». 35 Mengue, SM, p.202 : « contenu et expression constituent donc les deux faces inséparables
d’un même agencement ». 36 Cf. Deleuze, LS, p.7; orig. pp.15 a 16.
18
permite a Deleuze mostrar que a diferença não se reduz à menor partícula
distinguível material ou ideal, mas sim como sendo a articulação entre elas, ou seja,
a fronteira que se forma e se afirma entre as coisas e as proposições sem pertencer a
nenhum delas. A fronteira, então, afigura-se como a instância da diferença em si
mesma.
A heterogeneidade da relação causal tem como peculiaridade a articulação
pela diferença – e é isso que interessa a Deleuze pois, veremos, a fronteira é um
“âmbito” paradoxal já que é um “não-lugar” (atopon). O fato de o efeito ser de uma
outra natureza que sua causa – o atributo lógico distinto das qualidades corporais ou
o acontecimento de natureza desigual das ações e paixões do corpo –, não altera sua
realidade: o efeito é o resultado das causas corporais e de suas misturas, portanto,
ele pode ser tragado por suas causas. No entanto, enfatiza Deleuze, ele se salva,
consegue afirmar sua irredutibilidade devido à natureza heterogênea entre causa e
efeito que permite, de um lado, a relação das causas entre si e de outro, a relação
dos efeitos entre si. Então, o sentido, como efeito incorporal, resultado das ações e
paixões do corpo, só preserva sua diferença em relação à causa corporal porque se
prende em superfície a uma quase-causa também incorporal. É porque há uma
segunda causalidade que os efeitos mantêm sua diferença e autonomia em relação à
causa. Em outras palavras, o acontecimento, submete-se a uma dupla causalidade:
remete, de um lado, às misturas de corpos que são a sua causa (real) e de outro lado,
remete a outros acontecimentos que são a sua quase-causa (ideal), noção esta
captada por Deleuze nos dizeres de Clemente de Alexandria sobre a distinção
estóica entre o corpo como sendo causa no sentido próprio e o incorporal, como
uma metáfora à maneira de uma causa37. Enquanto a primeira causalidade diz
respeito aos corpos e suas misturas, essa segunda causalidade convém ao caráter
incorporal da superfície e do acontecimento. Na concepção deleuzeana, o
acontecimento, isto é, o sentido, relaciona-se a um elemento paradoxal que
intervém como não-senso ou ponto aleatório que opera como quase-causa e
assegura a autonomia do efeito38, como veremos.
37 Cf. Deleuze, LS, p.98; orig. p.115; nota de rodapé nº 1 sobre Clemente de Alexandria,
Stromates VIII 9: “Os estóicos dizem que o corpo é causa no sentido próprio, mas o
incorporal de um modo metafórico e à maneira de uma causa”. 38 Cf. Deleuze, LS, p.98; orig. p.116.
19
Essa inovadora dualidade estabelecida pelos Estóicos entre corpos ou
estados de coisas, por um lado, e os efeitos ou acontecimentos, por outro, segundo
Deleuze, leva a uma subversão filosófica que lhe interessa muitíssimo porque
descobre os incorporais e redefine a própria ontologia fundamentada nas bases do
pensamento da representação, o que lhe serve para analisar (e criticar) a história da
filosofia pela perspectiva da diferença, como acontece implicitamente no Lógica do
sentido e explicitamente no Diferença e repetição39. Conforme Aristóteles, todas as
categorias se dizem em função do Ser, no interior do qual ocorre a diferença entre a
substância como sentido primeiro e as outras categorias, tidas como seus acidentes.
No entanto, para os Estóicos, compara Deleuze, os estados de coisas, as quantidades
e as qualidades têm o mesmo estatuto ontológico que a substância (todos são
considerados causas corporais), colocados em oposição a um inusitado “extra-ser”
que constitui o incorporal como entidade não-existente (efeito). Por conseguinte, o
Ser não é o termo mais alto no estoicismo, mas Alguma Coisa, aliquid, que
subsume o ser (corporal) e o não-ser (incorporal), as existências e as insistências40.
2.1.1) Subversão pré-socrática e reversão do platonismo: perversão
A noção estóica da dupla causalidade opõe-se em simultâneo à pré-socrática
e ao platonismo, dado que reinterpreta, respectivamente, a questão dos corpos
materiais e a teoria das Idéias, esta última responsável pelo desdobramento do
pensamento da representação41, o que possibilita à contemporaneidade criticá-lo ou
mesmo ignorá-lo. O mundo pré-socrático é totalmente reavaliado pelo estoicismo
como uma física das misturas em profundidade, um devir-louco que sobe à
superfície como acontecimento incorporal e muda de natureza. E o platonismo é
revertido. Destituída de sua altura (do mundo das Essências), a Idéia recai na
superfície dos corpos como simples efeito incorporal. Então, o grande mérito da
teoria da dupla causalidade consiste na descoberta da superfície como dimensão 39 O Diferença e repetição, por ser um livro teórico, ao nosso ver, poderia ser considerado a
“causa” do Lógica do sentido que seria seu “efeito incorporal” e paradoxal (já que o livro
trata de paradoxos), o seu acontecimento ou extra-ser. 40 Cf. Deleuze, LS, p.8; orig., pp.16 a 17. 41 Cf. Deleuze, DR, p.420; orig. p.341.
20
sem espessura que tanto faz subir as misturas corporais da profundidade pré-
socrática como também faz cair as Idéias platônicas do céu metafísico. Os Estóicos
conferem autonomia à superfície, independentemente da altura e da profundidade,
ou mesmo contra elas, pois descobrem os acontecimentos incorporais, sentidos ou
efeitos, irredutíveis tanto aos “corpos profundos” dos pré-socráticos como às
“Idéias altas” platônicas. É a linguagem que torna “visível” essa superfície e seus
acontecimentos incorporais, já que não se trata de qualidade sensível, mas de
atributo lógico. Deleuze salienta que, desse modo, “tudo o que acontece e tudo o
que se diz, acontece e se diz na superfície”42.
Destarte, a operação filosófica promovida pelos Estóicos opõe-se ao mesmo
tempo à conversão (conversion) platônica e à subversão (subversion) pré-socrática
e é nomeada por Deleuze como perversão (perversion), se se admitir, diz ele, que
tal termo implique numa arte de superfícies ou que ao menos convenha ao sistema
de provocações deste novo tipo de filósofos43. Segundo ele, “os Estóicos procedem
à grande reviravolta do platonismo, à reviravolta radical. Pois se os corpos, com
seus estados, qualidades e quantidades, assumem todos os caracteres da substância e
da causa, inversamente, os caracteres da Idéia caem do outro lado, neste extra-ser
impassível, estéril, ineficaz, à superfície das coisas: o ideal, o incorporal não pode
ser mais do que um «efeito»”44. Em outras palavras: trata-se de uma inversão total
do mundo platônico em que as Idéias deixam de ser causas primeiras para se
tornarem no estoicismo efeitos incorporais produzidos pelos corpos (mundo
sensível), suas causas. A reversão do ideário de Platão realizada pelos Estóicos
assume uma maior importância, na análise deleuzeana, por viabilizar o surgimento
da filosofia da diferença, se considerarmos os incorporais como sendo os diferentes.
As Idéias deixam de ser modelo de verdade ou fundamento e de submeter o 42 Cf. Deleuze, LS, p.136 (grifos nossos); orig. p.158 : « Tout ce qui arrive, et tout ce qui se
dit, arrive et se dit à la surface ». 43 Cf. Deleuze, LS, p.136 ; orig. p.158. 44 Deleuze, LS, p.8 ; orig. pp.16 a 17 : « Les Stoïciens procèdent au premier grand
renversement du platonisme, au renversement radical. Car si les corps, avec leurs états,
qualités et quantités, assument tous les caractères de la substance et de la cause,
inversement les caractères de l’Idée tombent de l’autre côté, dans cet extra-être impassible,
stérile, inefficace, à la surface des choses : l’idéel, l’incorporel ne peut plus être qu’un
«effet» ».
21
diferente a seu jugo; em suma, a partir da inversão platônica, é possível iniciar um
novo pensamento, desta vez, sem fundamento (a-fundado) em que a diferença (ou
simulacro) passa a ser considerada em si mesma, na superfície. Trata-se da reversão
contemporânea do platonismo feita por Deleuze. Ressalta ele: “a tarefa da filosofia
moderna foi definida: reversão do platonismo”45.
Além do “achatamento” da Idéia à superfície, a inversão do platonismo dá-
se em outro plano, tão-somente no mundo sensível, entre a dimensão das coisas
limitadas e medidas e a do puro devir das profundidades, ou seja, dos simulacros.
Trata-se de uma dualidade mais profunda, secreta, oculta nos corpos sensíveis e
materiais, “dualidade subterrânea entre o que recebe a ação da Idéia e o que se
subtrai a esta ação”46, a saber, a cópia e o simulacro, os estados de coisas e o devir-
louco. O que importa, portanto, “não é a distinção do Modelo e da cópia, mas a das
cópias e dos simulacros”47. Tal deslocamento promovido por Deleuze das
dualidades platônicas parece-nos uma recusa do fundamento (Idéia) e de uma de
suas determinações, o Mesmo ou o Idêntico que pretende a imagem ou a cópia bem
fundada48. Esse tema, que contrapõe devir e estados de coisas, está presente em
alguns textos platônicos. Ele é encontrado no diálogo Filebo, por exemplo, em que
Sócrates, em conversa com Protarco sobre a participação do infinito no mais e no
menos, afirma que o mais quente e o mais frio estão sempre avançando e nunca
param, enquanto a quantidade definida é ponto de parada e não avança sem deixar
de ser49. E no Parmênides, uma questão semelhante é discutida na abordagem do
mais velho e do mais jovem, com a conclusão: se houvesse um fim nesse devir, eles
45 Deleuze, DR, p.110; orig. p.82: « La tâche de la philosophie moderne a été définie :
renversement du platonisme ». 46 Deleuze, LS, p.2 ; orig. p.10 : « dualité souterraine entre ce qui reçoit l’action de l’Idée et
ce qui se dérobe à cette action ». 47 Deleuze, LS, p.2 ; orig. p.10 : « Ce n’est pas la distinction du Modèle et de la copie, mais
celle des copies et des simulacres ». 48 Cf. Deleuze, DR, p.429; orig. p.349. Além dessa, Deleuze enumera mais duas
determinações do fundamento: 2) como representação e sua pretensão de conquistar o
infinito e 3) como dobra, recurva, organização numa lógica circular, em que fundar é
representar o presente. Cf. DR, pp. 430 a 431; orig. pp.350 a 351. 49 Cf. Platão, Filebo, 24, p.356 e Deleuze, LS, p.2; orig. pp.9 a 10.
22
seriam e não mais viriam a ser50. No Crátilo, conforme análise deleuzeana, o que
importa não é exatamente a possibilidade ou não do conhecimento, mas sim a
relação muito particular da linguagem com o puro devir. Sob as Idéias, estão as
coisas medidas, porém, sob as próprias coisas subsiste ou “sub-vem” esse devir-
louco, aquém da ordem imposta pelas Idéias e recebida pelas coisas. “O puro devir,
o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que contesta ao mesmo tempo
tanto o modelo como a cópia”51. Então, esse obscuro debate platônico na
profundidade das coisas entre o que se submete à ação da Idéia (cópias, estado de
coisas) e o que escapa a ela (simulacros, devir) também é revertido pelos Estóicos:
com a produção do efeito incorporal, “eis que agora tudo sobe à superfície”52. O
devir-louco e ilimitado, que murmurava na profundidade dos corpos, emerge à
superfície das coisas e muda de natureza, ele torna-se um devir impassível. “O que
se furtava à Idéia subiu à superfície, limite incorporal, e representa agora toda a
idealidade possível, destituída esta de sua eficácia causal e espiritual. Os Estóicos
descobriram os efeitos de superfície. Os simulacros deixam de ser estes rebeldes
subterrâneos, fazem valer seus efeitos”. “O mais encoberto tornou-se o mais
manifesto, todos os velhos paradoxos do devir reaparecerão numa nova juventude –
transmutação”53; os simulacros saem das profundezas e mostram-se na superfície
totalmente transfigurado, ou seja, transmutados de natureza. Segundo Deleuze, “há
no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado como o do Filebo em que «o mais
e o menos vão sempre à frente», um devir sempre outro, um devir subversivo das
profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre
mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual. Impor um limite a este devir,
ordená-lo ao mesmo, torná-lo semelhante – e, para a parte que permaneceria
50 Cf. Platão, Parmênides, 154-155, pp.122 a 124 e Deleuze, LS, p.2; orig. p.10. 51 Deleuze, LS, p.2 ; orig. p.10: « Le pur devenir, l’illimité, est la matière du simulacre en
tant qu’il esquive l’action de l’Idée, en tant qu’il conteste à la fois et le modèle et la copie ». 52 Deleuze, LS, p.8 ; orig. p.17 : « Voilà maintenant que tout remonte à la surface ». 53 Deleuze, LS, p.8 (grifos nossos); orig. p.17 : « Ce qui se dérobait à l’Idée est monté à la
surface, limite incorporelle, et représente maintenant toute l’idéalité possible, celle-ci
destituée de son efficacité causale et spirituelle. Les Stoïciens ont découvert les effets de
surface. Les simulacres cessent d’être ces rebelles souterrains, ils font valoir leurs effets ».
« Le plus enfoui est devenu le plus manifeste, tous le vieux paradoxes de devenir doivent
reprendre figure dans une nouvelle jeunesse – transmutation ».
23
rebelde, recalcá-la o mais profundo possível, encerrá-la numa caverna no fundo do
Oceano: tal é o objetivo do platonismo em sua vontade de fazer triunfar os ícones
sobre os simulacros”54.
De acordo com Deleuze, o devir poderia ser expresso por um “fluxo” de
palavras, um discurso enlouquecido que deslize sem cessar e sem se deter àquilo
que remete. Ou talvez haja duas espécies de linguagens ou “nomes”: uma que
designa as paradas e os repousos e recolhe a ação da Idéia e outra que exprime os
movimentos ou os devires. Ou ainda duas dimensões das linguagens, uma recoberta
pela outra, que “sub-vem” à outra55. Deleuze revela que quis escrever o Diferença e
repetição e o Lógica do sentido num modo “vagabundo”, vago e não-discursivo,
tratando “a escrita como um fluxo, não como um código”56, fugindo do
academicismo; mas admite apenas parcial sucesso57, pois ambos ainda estão cheios
do que ele chama de “aparato universitário” (appareil universitaire). Com o livro O
anti-Édipo (L’anti-Œdipe), em co-autoria com Félix Guattari, ocorreu um fluxo
criativo: “escrevemos o anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era
muita gente”58. “Não colaboramos como duas pessoas. Éramos, sobretudo, como
dois riachos que se juntam para fazer «um» terceiro, que teria sido nós”59.
Entretanto, O anti-Édipo foi uma tentativa um tanto frustrada, admite ele, de fazer
54 Deleuze, LS, p.264 ; orig. p.298 : « Il y a dans le simulacre un devenir-fou, un devenir
illimité comme celui du Philèbe où «le plus et le moins vont toujours de l’avant», un
devenir toujours autre, un devenir subversif des profondeurs, habile à esquiver l’égal, la
limite, le Même ou le Semblable : toujours plus et moins à la fois, mais jamais égal.
Imposer une limite à ce devenir, l’ordonner au même, le rendre semblable – et, pour la part
qui resterait rebelle, la refouler le plus profond possible, l’enfermer dans une caverne au
fond de l’Ocean : tel est le but du platonisme dans sa volonté de faire triompher les icônes
sur les simulacres ». 55 Cf. Deleuze, LS, p.2 ; orig. p.10. 56 Deleuze, C, p.15; orig. P, p.16: “l’écriture comme un flux, pas comme un code.”. 57 Cf. Deleuze, C, p.14; orig. P, pp.14 a 15. 58 Deleuze (com Guattari), MP, p.11 (sic); orig. MP, p.9: “Nous avons écrit l’Anti-Œdipe à
deux. Comme chacun de nous était plusieurs, ça faisait déjà beaucoup de monde.”. 59 Deleuze, C, p.171; orig. P, p.187: “Nous n’avons pas collaboré comme deux personnes.
Nous étions plutôt comme deux ruisseaux que se rejoignent pour faire «un» troisième qui
aurait été nous.”.
24
“a pop’filosofia ou a pop-análise sonhadas”60, conquista realizada por Hume que,
em sua opinião, produziu “uma espécie de filosofia popular e científica, uma
pop’filosofia”61. Ao que parece, o fluxo criativo e na escrita significa captar na
linguagem o seu devir, dizê-lo; e os códigos, os conceitos e as paradas, ao contrário,
exprimem a escrita (ou o tempo) dos corpos. Captar o devir da profundidade e
trazê-lo à superfície da escrita é a realização da reversão do platonismo.
2.1.2) Autotraição de Platão: simulacro de superfície
Contudo, na concepção deleuzeana, o próprio Platão, numa espécie de
autotraição, promove a primeira reversão do platonismo especificamente no diálogo
Sofista. Conforme tal interpretação, nesse diálogo, o simulacro ou o Diferente
liberta-se do jugo da identidade e passa a ser autônomo, tido em si mesmo,
afirmativamente. O simulacro sai da profundidade para se tornar devir de superfície.
Tendo descoberto em vários diálogos a potência da linguagem, Platão,
paradoxalmente, tenta definir o ser do sofista, portador do discurso falso e que
deveria ser entendido como não-ser. De forma geral, o ideário platônico está
circunscrito ao círculo das dimensões ordinárias da proposição em sua tentativa de
dizer o ser do verdadeiro, ou seja, do filósofo. Contudo, ao tentar dizer o que é o
sofista, há uma evasão do circuito proposicional. O sofista detém a mesma arte do
simulacro que é imitar e provocar ilusões, ele possui um discurso dotado de “uma
falsa aparência de ciência universal”62 e o simulacro é considerado uma falsa
cópia63. Contudo, nesse diálogo, o Estrangeiro de Eléia e Teeteto estabelecem em
seus argumentos uma união lógica do ser com o não-ser, do discurso em si (prática
do filósofo) e da opinião falsa (do sofista)64. Ao contrário de outros diálogos como
Político e Fedro que também apresentam o método da divisão para expor seus
temas, ressalta Deleuze, o propósito platônico no Sofista não é o de selecionar ou 60 Deleuze, C, p.16; orig. P, p.16: “la pop’philosophie ou la pop’analyse rêvées”. 61 Deleuze, H, p.69; orig. H, p.237: “Une sorte de philosophie populaire et scientifique, une
pop’philosophie.”. 62 Platão, S, 233 c, p.151. 63 Platão, S, 236 b, p.153. 64 Cf. Platão, S, 241b, p.160.
25
avaliar os justos pretendentes, e sim o de isolar o falso pretendente, aquele que tudo
pretende sem qualquer direito. Esse diálogo é sui generis porque Platão empenha-se
em dizer o ser do sofista, o que o faz tomar o falso positivamente. “É o triunfo do
falso pretendente”65, que só pode ainda ser dito falso sem qualquer remissão a um
modelo, como uma potência afirmativa do Falso ou do Pseudos. Isso porque, no
pensamento do simulacro ou da diferença, não há como haver fundamento
(fondement), mas sim um a-fundamento (effondement) ou um desabamento
(effondrement) como acontecimento positivo66. Sem fundamento, o simulacro
abandona a profundidade e ganha a superfície.
No Sofista, as questões sobre o ser e o não-ser são resolvidas na linguagem
de maneira paradoxal. O Estrangeiro indaga: se o não-ser em si mesmo é
impronunciável e impensável, como é que estamos pensando e falando sobre ele?
Ao afirmar o não-ser, eu o disse uno, eu disse o não-ser; ao afirmar que o não ser é
inefável, apliquei o “é” que lhe faz ser e lhe confere unidade; assim sendo, eu disse
o que o não-ser é67. O Estrangeiro infere que o falso é real, supõe o não-ser como
ser e, por fim, conclui que “em certo sentido, o não-ser é e que, por sua vez, o ser,
de certa forma, não é”68, cometendo assim um admitido “parricídio” já que ele é
discípulo de Parmênides. Ao nosso ver, o uso de paradoxos provoca uma ruptura
com a própria lógica do Mesmo (com o círculo da proposição), pois o não-ser perde
o caráter negativo e se torna afirmativo. Ou seja, não é que o simulacro (não-ser) se
transforme em modelo (ser), mas sim que ele se liberta do modelo que é extinto,
deixa de ser seu negativo e se torna autônomo. Assim sendo, observa Deleuze, o
“não” do “não-ser” exprime alguma coisa distinta do negativo. Não significa cair
na alternativa: ou não há não-ser e a negação é ilusória e não fundada, ou há não-
ser, que põe o negativo no ser e funda a negação. Ao contrário, diz ele, o não-ser do 65 Deleuze, LS, p.268; orig. p.303 : « C’est le triomphe du faux prétendant ». 66 Cf. Deleuze, LS, p.268; orig. pp.303 a 304. 67 Cf. Platão, S, 238d a 239d, p.157. Ao estabelecer a natureza do outro como não-ser, o
Estrangeiro afirma que o não-ser é. Diz ele (em S, 259b, p.184): “Há uma associação mútua
dos seres. O ser e o outro penetram através de todos e se penetram mutuamente”, “de sorte
que o ser, incontestavelmente, milhares e milhares de vezes não-é, e os outros, seja
individualmente, seja em sua totalidade, são sob múltiplas relações, e, sob múltiplas
relações não são”. 68 Platão, S, 241d, p.160.
26
diálogo Sofista significa uma nova proposta: “ao mesmo tempo, que há não-ser e
que o negativo é ilusório”69. Pelo que se afigura, não estamos mais no interior da
proposição, submissa ao princípio de contradição, e sim em sua exterioridade, no
devir de superfície, pois, somente no âmbito da diferença, sem um princípio que
sirva de fundamento, é possível dizer que o não-ser não é negativo ou que o
simulacro é afirmativo.
Na concepção deleuzeana, a diferença só pode ser tida em si mesma quando
o Modelo platônico, ao qual ela se submete, é destruído, dado que exige uma
relação de semelhança interna que somente a cópia detém. Segundo ele, Platão
distingue, ou antes, opõe o modelo e a cópia para obter um critério seletivo entre as
cópias e os simulacros, pois as cópias são bem fundadas em relação ao modelo e os
simulacros, ao contrário, não suportam a prova da cópia e a exigência do modelo.
Deleuze explica que para submeter a diferença a um princípio, Platão precisou
desenvolver um método em que o modelo tem a identidade como essência do
Mesmo, fazendo da cópia uma afecção de semelhança interna como qualidade do
Semelhante. Sendo a semelhança intrínseca, a cópia tem de manter uma relação
interior com o ser e a verdade, análoga à do modelo. Finalmente, diz ele, a cópia
precisa ser construída por meio de um método que lhe atribua, de dois predicados
opostos, aquele que convém ao modelo. Assim, enfatiza Deleuze, a cópia só é
distinguida do simulacro se a diferença for subordinada às instâncias do Mesmo, do
Semelhante, do Análogo e do Oposto. Instâncias estas que serão desenvolvidas a
partir de Aristóteles num mundo desdobrado da representação, apenas inauguradas
numa teoria platônica das Idéias70.
Contudo, o platonismo (e o método da divisão) funda o domínio da
representação71 somente quando a distinção se concentra entre Idéia (ou modelo) e
cópia. Para estabelecer a produção da diferença, um deslocamento lógico se faz
necessário: a distinção agora recai sobre duas espécies de imagens, a cópia e o
simulacro. Trata-se de duas leituras do mundo: uma pensa a similitude e a outra a
diferença. No primeiro caso, as cópias bem fundadas ou os pretendentes verdadeiros
69 Deleuze, DR, p.117; orig. p.89: « à la fois qu’il y a du non-être, et que le négatif est
illusoire ». 70 Cf. Deleuze, DR, pp.419 a 420; orig. pp.340 a 341. 71 Cf. Deleuze, LS, p.264 ; orig. p.298.
27
mantêm uma relação intrínseca com o modelo ou o fundamento. No segundo caso, a
relação do simulacro com o modelo é exterior. Ao que parece, é a tríade
neoplatônica das três formas de participação que viabiliza esse deslocamento do
motivo platônico para as imagens. As três formas de participação presentes na
tríade são: o imparticipável (como sendo o fundamento), o participado (como o
objeto da pretensão) e o participante (como o pretendente). Seria como o pai, a
noiva e o pretendente. Então, a rivalidade acontece entre os pretendentes, ou seja,
entre as imagens, e não entre modelo (que é o imparticipável) e cópia (participante).
E quem detém o objeto da pretensão dos pretendentes é o fundamento. No método
da divisão, ele aparece como aquele que possui alguma coisa em primeiro lugar e dá
a participar aos pretendentes que conseguiram passar pela prova do fundamento.
Conforme Deleuze, “o fundamento é uma prova que dá aos pretendentes
uma participação maior ou menor no objeto da pretensão; é nesse sentido que o
fundamento mede e estabelece a diferença. Deve-se distinguir: a Justiça, como
fundamento; a qualidade de justo, como objeto da pretensão possuído pelo que
funda; e os justos, como pretendentes que participam desigualmente do objeto”72.
Assim sendo, a justiça como fundamento dá a participar a qualidade de justo aos
pretendentes que rivalizam entre si em sua pretensão de serem justos ou o mais
justo. Só a justiça é justa, portanto, ela, como fundamento, é possuidora em
primeiro lugar. “Participar é ter parte, ter após, ter em segundo lugar; os justos são
aqueles que possuem em segundo, terceiro ou quarto lugar” e assim por diante73,
formando graus de distinção de sua participação eletiva. Na concepção deleuzeana,
a tríade se reproduz ao longo de uma série de participações e os pretendentes
participam numa ordem e em graus que representam a diferença em ato74. Então,
todo o movimento dessa tríade produzirá graus de diferença. Para ele, o único
problema que atravessa a filosofia de Platão é “o de avaliar os rivais, de selecionar
os pretendentes e de distinguir a coisa e seus simulacros”. Avaliar, selecionar e 72 Deleuze, DR, p.116; orig. p.87 : « le fondement est une épreuve qui donne, aux
prétendants, plus ou moins à participer de l’objet de la prétention ; c’est en ce sens que le
fondement mesure et fait la différence. On doit donc distinguer : la Justice, comme
fondement ; la qualité de juste, comme objet de la prétention possédé par ce qui fonde ; les
justes, comme pretendants qui participent inégalement à l’objet ». 73 Cf. Deleuze, DR, p.115; orig. p.87. 74 Cf. Deleuze, DR, p.116 ; orig. p.87.
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distinguir são verbos que exprimem a produção da diferença, porém, ao nosso ver,
não da diferença em si mesma.
Por um lado, explica Deleuze, quando Platão afirma que a Justiça não é nada
mais além de justa, ele estabelece como modelo o “Mesmo” e imprime uma
“determinação abstrata no fundamento como aquilo que possui em primeiro lugar.
A cópia platônica é o Semelhante: o pretendente que recebe em segundo lugar”75.
Portanto, em sua concepção, é um erro entender a semelhança como uma relação
exterior, pois “ela vai menos de uma coisa a outra do que de uma coisa a uma Idéia,
uma vez que é a Idéia que compreende as relações e proporções constitutivas da
essência interna”76. Para Deleuze, a semelhança é interior e espiritual e funciona
como a medida de uma pretensão. Assim sendo, observa ele, “a cópia não parece
verdadeiramente a alguma coisa senão na medida em que parece à Idéia da coisa”77.
Por outro lado, “o pretendente não é conforme ao objeto senão na medida em que se
modela (interiormente e espiritualmente) sobre a Idéia”78. Então, tudo passa pela
Idéia que é fundada por uma semelhança interna: o pretendente ou rival (a cópia)
recebe a qualidade de justo porque esta se funda sobre a essência, a saber, a justiça.
Deleuze resume essa questão: “é a identidade superior da Idéia que funda a boa
pretensão das cópias e funda-a sobre uma semelhança interna ou derivada”79. Se a
cópia-ícone ou o pretendente bem fundado mantêm uma relação intrínseca com o
modelo, o mesmo não acontece com o simulacro. O simulacro só pode ser dito
preservar alguma relação longínqua de semelhança com o fundamento se ela for
exterior, produzida como um efeito por uma dessemelhança constitutiva. Todavia,
75 Deleuze, LS, p.264 ; orig. p.299 : « détermination abstraite du fondement comme ce qui
possède en premier. La copie platonicienne, c’est le Semblable : le prétendant qui reçoit en
second ». 76 Deleuze, LS, p.262 ; orig. p.296 : « elle va moins d’une chose à une autre que d’une
chose à une Idée, puisque c’est l’Idée qui comprend les relations et proportions
constitutives de l’essence interne ». 77 Deleuze, LS, p.262 ; orig. p.296 : « la copie ne ressemble vraiment à quelque chose que
dans la mesure où elle ressemble à l’Idée de la chose ». 78 Deleuze, LS, p.262 ; orig. p.296 : « Le prétendant n’est conforme à l’objet que pour
autant qu’il se modèle (interieurement et spirituellement) sur l’Idée ». 79 Deleuze, LS, p.262 ; orig. p.296 : « c’est l’identité supérieure de l’Idée qui fonde la bonne
prétention des copies, et la fonde sur une ressemblance interne ou derivée ».
29
julgado em si mesmo, o simulacro revela sua verdadeira natureza, a saber, uma
disparidade interior que lhe é definidora. De acordo com Deleuze, no caso do
simulacro, “a semelhança não pode ser pensada senão como o produto desta
diferença interna”80. Esta é a peculiar maneira de considerar a diferença ou o
simulacro em si mesmo, o que leva Platão a reverter o platonismo. Deleuze
esclarece que “na reversão do platonismo, é a semelhança que se diz da diferença
interiorizada, e a identidade se diz do Diferente como potência primeira. O mesmo e
o semelhante não têm mais por essência senão ser simulados, isto é, exprimir o
funcionamento do simulacro. Não há mais seleção possível”81. Isso porque, ao
nosso ver, toda seleção já foi feita pelo método da divisão.
No Sofista, Platão rompe o círculo da proposição e do pensamento
representativo ao fazer o simulacro emergir em sua superfície. Em sua tentativa de
dizer o ser do sofista, observa Deleuze, ele debruça-se sobre um abismo82, ou seja,
realiza um pensamento sem fundamento, e acaba por descobrir que o simulacro não
é simplesmente uma falsa cópia, pondo em questão as próprias noções de cópia e
modelo e a separação entre o verdadeiro e o falso, o que impossibilita a distinção
entre Sócrates e o sofista. Isso porque, ao deter-se não ao verdadeiro, mas ao falso,
não à cópia, mas ao simulacro, não ao filósofo, mas ao sofista, ele acaba por
considerar o falso, o simulacro e o sofista em si mesmos. No ideário platônico, o
simulacro é identificado ao próprio sofista, tido como falso pretendente, sempre
disfarçado e deslocado83. Falar em ser do simulacro é pensar o falso e o não-ser
positivamente, saídos da profundidade e emersos na superfície. No Sofista, sem se
reportar a um mito fundador como em outros diálogos (a exemplo de Fedro e
Político), “o método da divisão é paradoxalmente empregado não para avaliar os
justos pretendentes, mas, ao contrário, para encurralar o falso pretendente como tal, 80 Cf. Deleuze, LS, p.267 ; orig. p.302 : « la ressemblance ne peut être pensée que comme le
produit de cette différence interne ». 81 Deleuze, LS, p.268 (grifos nossos); orig. p.303 : « Dans le renversement du platonisme,
c’est la ressemblance qui se dit de la différence interiorisée, et l’identité, du Différent
comme puissance première. Le même et le semblable n’ont plus pour essence que d’être
simulés, c’est-à-dire d’exprimer le fonctionnement du simulacre. Il n’y a plus de sélection
possible ». 82 Cf. Deleuze, LS, p.261; orig. p.295. 83 Cf. Deleuze, DR, pp.210 a 211; orig. p. 166.
30
para definir o ser (ou antes o não-ser) do simulacro”84. Segundo Deleuze, “o sofista
não é o ser (ou o não-ser) da contradição, mas aquele que conduz todas as coisas ao
estado de simulacro e as suporta todas neste estado”85, ou melhor, “o sofista é o ser
do simulacro”86.
Para Deleuze, o método da divisão utilizado por Platão é dotado de um
critério seletivo que produz a diferença, o que o leva a recusar como definição desse
pensamento tanto a dialética da contradição como a dialética da contrariedade que
articulam o negativo e atendem as exigências apenas dos termos ordinários da
proposição. Em busca de uma dialética capaz, paradoxalmente, de estabelecer a
diferença, ele inventa para Platão a dialética da rivalidade ou αμφισβήτησις
(amphisbetesis) que não opera pelo negativo e está em acordo com o método da
divisão, quer seja ele guiado por um mito fundador como no Fedro e no Político,
quer prescinda dele, no caso do Sofista. A dialética da contradição é rejeitada por
Deleuze porque apresenta uma negação interna em que dois predicados
contraditórios do mesmo sujeito só existem negando um ao outro87. Ao nosso ver,
nesse caso, teríamos que contrapor não dois termos positivos como original e cópia,
mas sim dois elementos contrários do mesmo sujeito negando um ao outro, como
original e não-original e cópia e não-cópia etc. Então, na dialética da contradição,
“A” contradiz-se a si mesmo e nega-se a si próprio. Pela definição de Gérard
Lebrun, no livro La patience du concept, na dialética da contradição “a oposição é
absoluta”, “o oposto é a negação sem reserva do posto”88 e ela caracteriza o
84 Deleuze, LS, p.261; orig., p.295: « La méthode de division est paradoxalement employée
non pas pour évaluer les justes prétendants mais au contraire pour traquer le faux
prétendant comme tel, pour définir l’être (ou plutôt le non-être) du simulacre ». 85 Deleuze, DR, pp.122 a 123; orig. p.93: « Le sophiste n’est pas l’être (ou le non-être) de la
contradiction, mais celui qui porte toutes choses à l’état de simulacre, et les porte toutes
dans cet état ». 86 Deleuze, LS, p.261; orig., p.295 : « Le sophiste lui-même est l’être du simulacre ». 87 Por exemplo, no lugar de dizer quente-frio, será preciso dizer, quente-não quente e frio-
não frio. A contradição dialética mostra um sujeito que se manifesta e se transforma com a
contradição de seus predicados: ele torna-se outro do que ele era pela negação interna de
seus predicados. 88 Lebrun, PC, cap. VI., La négation de la négation, pp.268 (tradução nossa) :
« l’opposition est absolue, «l’opposé est la négation sans réserve du posé» ».
31
pensamento de Hegel, mas não o de Platão. Deleuze também rejeita a dialética da
contrariedade como sendo platônica que, diferentemente da outra, a negação é
externa, em que “A” nega “B”. Lebrun ressalta que na dialética da contrariedade,
“os dois termos, extremos do mesmo gênero, não se negam inteiramente um ao
outro: o ponto e o intervalo são todos os dois alguma coisa de espacial, o Uno e o
Múltiplo, todos os dois, alguma coisa de numérico”89. Deleuze recusa tal dialética,
pois, ao que parece, se a motivação platônica ocorresse pela dialética da
contrariedade, a negação levaria a uma distinção entre opostos positivos tal como “a
essência e a aparência, o inteligível e o sensível, a Idéia e a imagem e o original e a
cópia”90, revelando uma negação mesmo que exterior a cada elemento. Portanto,
ambas as dialéticas são rejeitadas porque atendem apenas as exigências da lógica
circular da proposição e passam pelo negativo, o que inviabiliza o seu projeto de
uma produção da diferença. Porém, na dialética da rivalidade, proposta por
Deleuze, ao nosso ver, a negação é expulsa da relação, seja interna ou
externamente: trata-se de uma relação puramente afirmativa. Para vislumbrá-la, ele
realiza um deslocamento do motivo platônico: ao invés de uma distinção entre
essência e aparência, inteligível e sensível, Idéia e imagem, original e cópia, como
ocorre na dialética da contrariedade, a distinção, na dialética da rivalidade, como
vimos, ocorre entre duas espécies de imagens, a saber, entre as “cópias” e os
“simulacros”, relação essa que não passa pelo negativo. O negativo só surgiria, por
exemplo, se reportássemos o simulacro ao fundamento. Deleuze diz que a dualidade
entre Idéia e imagem tem o único objetivo de “assegurar a distinção latente entre as
duas espécies de imagens, dando-lhe um critério concreto”91. No Fedro e no
Político, o método da divisão combina o mito fundador com a dialética da
rivalidade, para distinguir o verdadeiro pretendente dos falsos (por exemplo, o
pretendente ao título de pastor dos homens) e filtrar suas pretensões. Assim, os 89 Lebrun, PC, cap. VI., La négation de la négation, pp.268 (tradução nossa) : « les deux
termes, extrêmes d’un même genre, ne se nient pas entièrement l’un l’autre : le point et
l’intervalle sont tous deux quelque chose de spatial, l’Un et le Multiple tous deux sont
quelque chose de numérique ». 90 Deleuze, LS, p.262 ; orig. p.295 : « L’essence et l’apparence, l’intelligible et le sensible,
l’Idée et l’image, l’original et la copie». 91 Deleuze, LS, p.262 ; orig. p.296 : « assurer la distinction latente entre les deux sortes
d’images, donner un critère concret ».
32
pretendentes rivalizam entre si o objeto da pretensão que pertence ao fundamento,
sem passar pelo negativo, todavia, submetendo-se a um fundamento. Por
conseguinte, na dialética da rivalidade, não há negação de coisa alguma: os rivais
não negam um ao outro, como ocorreria na dialética da contrariedade e nem a si
próprios para que o verdadeiro pretendente se afirme, como seria o caso da dialética
da contradição; pelo contrário, no nosso entender, todos eles se afirmam na
pretensão de ser a cópia, de ser o pretendente ou rival verdadeiro. Quando o método
da divisão movimentado por essa dialética prescinde de um fundamento, surge a
possibilidade de considerar o simulacro ou o “falso pretendente” em si mesmo,
como acontece no Sofista. “Os simulacros são como os falsos pretendentes,
construídos”, não pelo negativo, mas “a partir de uma dissimilitude” interna,
“implicando uma perversão, um desvio essenciais”92. Com sua libertação da
profundidade e sem remissão mesmo longínqua a um modelo, o simulacro passa a
afirmar sua disparidade interna. Platão realiza, pois, por suas próprias mãos, a reversão do platonismo,
manifesta um antiplatonismo no âmago do platonismo. “Reverter o platonismo
significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as
cópias”93. Para tanto, é preciso subverter a distinção Essência-Aparência ou
Modelo-cópia que opera no mundo da representação e deter-se no simulacro (ou no
sofista), como fez Platão, que “encerra uma potência positiva que nega tanto o
original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução”94. O simulacro não é
cópia degradada e nem permite “invocar um modelo do Outro, pois nenhum modelo
resiste à vertigem do simulacro”95. E assim, considerando apenas o diálogo Sofista,
Platão torna-se o “primeiro” filósofo da diferença visto que consegue estabelecer,
mesmo que em germe, as bases desse pensamento, ao se deter no simulacro (ou 92 Deleuze, LS, p.262 ; orig. pp.295 a 296 : « Les simulacres sont comme les faux
prétendants, construits sur une dissimilitude, impliquant une perversion, un détournement
essentiels ». 93 Deleuze, LS, p.267; orig., p.302: « Renverser le platonisme signifie dès lors : faire monter
les simulacres, affirmer leurs droits entre les icônes ou les copies ». 94 Deleuze, LS, p.267; orig., p.302 : « il recèle une puissance positive qui nie et l’original et
la copie, et le modèle et la reproduction ». 95 Deleuze, LS, pp.267 a 268; orig., p.303: « invoquer un modèle de l’Autre, car aucun
modèle ne résiste au vertige du simulacre ».
33
diferença) em si mesmo, ao dizer o ser do sofista, portador do discurso falso, do
simulacro. Com a identificação do sofista a Sócrates no final do diálogo, “a
diferença é deslocada”, observa Deleuze, pois “a divisão se volta contra si mesma,
funciona ao revés e, à força de aprofundar o simulacro”, “demonstra a
impossibilidade de distingui-lo do original ou do modelo. Assim, o modelo é
destruído e se abisma na diferença e as cópias, sem o referencial com o qual
mantêm uma relação intrínseca, se afundam na dissimilitude. O Estrangeiro dá uma
definição do sofista que não pode mais se distinguir do próprio Sócrates: o imitador
irônico, procedendo por argumentos breves”96, em que “ironia” e “argumentação
breve” são aspectos da prática do filósofo. Platão, na última passagem desse
diálogo, afirma que o sofista, produtor de simulacros, pratica a arte da contradição
“em reuniões particulares, dividindo seu discurso em argumentos breves, obrigando
seu interlocutor a se contradizer”97, tanto quanto Sócrates o faz. Inclinado sobre seu
abismo, Platão, no clarão de um instante, descobre que o simulacro não é
exatamente uma falsa cópia e sim que põe em xeque as próprias noções de cópia e
de modelo98. ‘É este o final do Sofista: a possibilidade do triunfo dos simulacros,
pois Sócrates se distingue do sofista, mas o sofista não se distingue de Sócrates,
pondo em questão a legitimidade de tal distinção”99. Na tentativa de disciplinar o
eterno retorno fazendo dele um efeito ou cópia degradada das Idéias, argúi Deleuze,
Platão acaba por reverter o platonismo e o simulacro passa e repassar a funcionar
sobre si mesmo, centro descentrado do eterno retorno. Isso porque, de cópia em
cópia, o movimento infinito da semelhança degradada atinge um tal ponto “em que
96 Deleuze, DR, p.123; orig. p.93: « La différence est déplacée, la division se retourne
contre elle-même, fonctionne à rebours, et, à force d’approfondir le simulacre », « démontre
l’impossibilité de le distinguer de l’original ou du modèle. L’Étranger donne une définiton
du sophiste qui ne peut plus se distinguer de Socrate lui-même : l’imitateur ironique,
procédant par arguments brefs ». 97 Platão, S, 268b, p.195. 98 Cf. Deleuze, LS, p.261; orig., p.295. 99 Deleuze, DR, p.213 ; orig. p.168 : « Telle est la fin du Sophiste : la possibilité du
triomphe des simulacres, car Socrate se distingue du sophiste, mais le sophiste ne se
distingue pas de Socrate, et met en question la légitimité d’une telle distinction ».
34
tudo muda de natureza, em que a própria cópia se reverte em simulacro, em que a
semelhança, em que a imitação espiritual, enfim, da lugar à repetição”100.
Dessa maneira, o simulacro abandona as profundidades dos corpos e emerge
à superfície; no entanto, tudo muda de natureza ao subir à superfície: de negativo, o
simulacro passa a ser afirmativo. Enfatiza Deleuze: “tudo se tornou simulacro. Com
efeito, por simulacro não devemos entender uma simples imitação, mas, sobretudo o
ato pelo qual a própria idéia de um modelo ou de uma posição privilegiada é
contestada, revertida. O simulacro, emerso à superfície, é a instância que
compreende a diferença em si”, “toda semelhança tendo sido abolida, sem que se
possa, por conseguinte, indicar a existência de um original e de uma cópia”101. Em
suma, “o simulacro é o sistema em que o diferente se refere ao diferente por meio
da própria diferença”102, é a realização do pensamento da diferença propiciada e
inaugurada por Platão. Não por acaso, Deleuze declara: “definimos a modernidade
pela potência do simulacro”103. Segundo Roberto Machado, a glorificação
deleuzeana dos simulacros define seu antiplatonismo como “uma maquinaria
dionisíaca, uma potência positiva, « potência primeira » que, quando não é mais
recalcada pela idéia, é a própria coisa; pois, se no platonismo a idéia é a coisa, na
subversão do platonismo cada coisa é elevada ao estado de simulacro”104. Para ele,
valorizar o simulacro é o mesmo que tematizar o projeto geral deleuzeano de pensar
100 Deleuze, DR, p.213 (grifos nossos); orig. p.168: « où tout change de nature, où la copie
elle-même se renverse en simulacre, où la ressemblance enfin, l’imitation spirituelle, fait
place à la répétition ». 101 Deleuze, DR, p.124 (grifos nossos); orig. p.95: « Tout est devenu simulacre. Car, par
simulacre, nous ne devons pas entendre une simple imitation, mais bien plutôt l’acte par
lequel l’idée même d’un modèle ou d’une position privilégiée se trouve contestée,
renversée. Le simulacre est l’instance qui comprend une différence en soi », « toute
ressemblance abolie, sans qu’on puisse dès lors indiquer l’existence d’un original et d’une
copie ». 102 Deleuze, DR, p.437; orig. DR, p.355: « Le simulacre est ce système où le différent se
rapporte au différent par la différence elle-même ». 103 Deleuze, LS, p.270; orig., p.306 : « On définit la modernité par la puissance du
simulacre ». 104 Machado, DF, p.34.
35
a diferença em si mesma e não mediatizada pela representação ou submetida à
Identidade. O simulacro, então, coloca-nos no âmago da filosofia de Deleuze.
--- *** ---
Destarte, os dois momentos da reversão do platonismo, a saber, 1) os
mundos inteligível e sensível se reúnem na superfície sem espessura, e 2) o
simulacro ou o devir da profundidade (das misturas corporais) sobe à superfície e
muda de natureza para tornar-se devir de superfície (dos incorporais), ambos
antevistos pelos Estóicos, no nosso entender, são as bases para o projeto deleuzeano
de realizar o pensamento da diferença. Com a reversão, o princípio de identidade,
como modelo de verdade, é abolido e o simulacro ou o diferente se torna autônomo
e pode ser tido em si mesmo. A rejeição da dualidade Modelo-cópia dá condições
para que haja um pensamento a-fundado, para que a diferença seja pensada em si
mesma. O primeiro passo, pois, em direção ao pensamento da diferença é reverter o
platonismo, destruindo com ele a possibilidade de haver um pensamento fundado e
entendido como representação. Reverter para colocar em seu lugar uma relação
causal cindida e heterogênea entre corpos e incorporais. Sem a reversão, a lógica
paradoxal não pode atuar e a diferença continuará sob o jugo da representação e da
lógica do Mesmo.
2.1.3) As três dualidades
A primeira grande dualidade estóica, manifestada na heterogeneidade entre
causa e efeito, consiste na relação entre coisas corporais e acontecimentos
incorporais, respectivamente. Segundo Véronique Bergen, tal dualidade pressupõe
uma distinção na modalidade de ser (existência atual versus insistência) bem como
na temporalidade (presente vivo versus devir ilimitado dividido entre futuro e
passado), que “compõem um jogo do mundo alongado no contínuo de uma
surperfície de Moebius passando dos seres corporais aos extra-seres incorporais”105.
105 Bergen, Véronique, OGD, p.115 : « composent un jeu du monde étiré dans le continu
d’une surface de Moebius passant des êtres corporels aux extra-êtres événementiels ».
36
A primeira leva a uma segunda dualidade que se justifica pelo fato dos
acontecimentos-efeitos não existirem fora das proposições que os exprimem. É a
dualidade das coisas e das proposições, dos corpos e da linguagem, ou do comer e
do falar como prefere Carroll. As coisas e as proposições, entretanto, não se
encontram numa dualidade radical e sim de um lado e de outro de uma fronteira
‘representada’ pelo sentido ou acontecimento. Sentido este que não existe fora da
proposição que o exprime, embora seja atributo de estados de coisas e não da
proposição; ou acontecimento este que, conquanto subsista na linguagem, acontece
às coisas. Segundo Deleuze, “esta fronteira não os mistura, não os reúne (não há
monismo tanto quanto não há dualismo), ela é, antes, a articulação de sua diferença:
corpo-linguagem. Se compararmos o acontecimento a um vapor nos prados, este
vapor se eleva precisamente na fronteira, na dobradiça das coisas e das
proposições”106.
Esse deslocamento à “fronteira” é outro fator que dá condições à
contemporaneidade de pensar a diferença em si mesma, tanto quanto a cisão da
relação causal e da reversão do platonismo. A dualidade, observa Deleuze, reflete-
se dos dois lados, em cada um dos dois termos. No que diz respeito à coisa, há as
qualidades físicas e relações reais constitutivas dos estados de coisas, mas há
igualmente os atributos lógicos ideais que são os acontecimentos incorporais. No
que tange à proposição, há os nomes (substantivos) e os adjetivos que designam o
estado de coisas e, outrossim, há os verbos que exprimem os acontecimentos ou os
atributos lógicos. Então, na proposição há os nomes próprios singulares, os
substantivos e os adjetivos gerais que marcam as medidas, paradas e as presenças
tanto quanto se acham os verbos que exprimem o devir e os acontecimentos
reversíveis, cujo presente se divide infinitamente em passado e futuro107. Há,
portanto, uma oposição entre a impassibilidade dos acontecimentos e as ações e
paixões dos corpos, entre a incomunicabilidade do sentido e a comestibilidade das
106 Deleuze, LS, p.26 (grifos nossos); orig., p.37 : « Cette frontière ne les mélange pas, ne
les réunit pas (il n’y a pas plus monisme que dualisme), elle est plutôt comme l’articulation
de leurs différence : corps/langage. Quitte à comparer l’événement à une vapeur dans la
prairie, cette vapeur s’élève précisément à la frontière, à la charnière des choses et des
propositions ». 107 Cf. Deleuze, LS, p.26; orig., p.37.
37
coisas, entre a impenetrabilidade dos incorporais sem espessura e as misturas e
penetrações recíprocas das substâncias. Conforme Deleuze, impenetrabilidade
significa também “fronteira entre os dois”, o que dispõe dos dois, tal como o
personagem carrolliano Humpty Dumpty, sentado sobre o seu muro estreito, “senhor
impenetrável da articulação de sua diferença”108.
Resta ainda uma terceira dualidade restrita à proposição, entre duas de suas
próprias dimensões: a designação e a expressão, ou melhor, a designação de coisas
e a expressão de sentido, ou o designado (termo ordinário da proposição) e o
sentido (termo extraproposicional). Assim, toda a discussão sobre a fronteira (e a
diferença) transfere-se para o território da linguagem. Deleuze explica que “passar
do outro lado do espelho é passar da relação de designação à relação de expressão –
sem se deter nos intermediários, manifestação, significação. É chegar a uma
dimensão em que a linguagem não tem mais relação com designados, mas somente
com expressos, isto é, com o sentido. Tal é o último deslocamento da dualidade: ela
passa agora para o interior da proposição”109, já que tudo passa na e pela
linguagem. Contudo, antes de mais nada, será preciso compreender cada termo
interior à proposição e, por fim, seu termo extraproposicional.
2.2) Lógica circular: representação
Os princípios e conceitos do pensamento representativo são validados pela
lógica circular que rege os três termos ordinários da proposição (designação,
manifestação e significação), um remetendo ao outro. A designação ou indicação “é
a relação da proposição a um estado de coisas exteriores (datum)”110, que é
108 Deleuze, LS, p.27; orig., p.38 : « maître impénétrable de l’articulation de leur
différence ». 109 Deleuze, LS, p.27; orig., p.38 : « passer de l’autre côté du miroir, c’est passer du rapport
de désignation au rapport d’expression – sans s’arrêter aux intermédiaires, manifestation,
signification. C’est arriver dans une région où le langage n’a plus de rapport avec des
désignés, mais seulement avec des exprimés, c’est-à-dire avec le sens. Tel est le dernier
déplacement de la dualité : elle passe maintenant à l’intérieur de la proposition ». 110 Deleuze, LS, p.13 ; orig. p. 22 : « c’est le rapport de la proposition à un état de choses
extérieur (datum) ».
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individual, comporta este ou este corpo e diz (ou designa) a coisa. Por isso, a
intuição designadora indica “é isto”, “não é isto”. A designação tem por critério
lógico o verdadeiro e o falso, caso seja ou não preenchida por um estado de coisas.
O segundo termo, a manifestação, é “a relação da proposição ao sujeito que
fala e que se exprime”111, é o enunciado dos desejos e das crenças, que são
inferências causais, como atesta Hume. O Eu é o manifestante de base e constitui o
domínio do pessoal. Conforme Deleuze, o cartesianismo é construído com base na
“manifestação”, o que leva o Cogito cartesiano a representar um deslocamento dos
valores lógicos do verdadeiro e do falso (designação) para a veracidade e o engano
(manifestação). “Na análise célebre do pedaço de cera”, explica ele, “Descartes não
busca de forma nenhuma o que permanece na cera”, “mas mostra como o Eu
manifestado no Cogito fundamenta o juízo de designação segundo o qual a cera é
identificada”112. Do ponto de vista da fala, o Eu começa em termos absolutos, com
o primado da manifestação sobre a designação e a significação, mas somente
porque as significações conceituais estão subentendidas (e não desenvolvidas por si
mesmas) pelo Eu, que se apresenta, ele mesmo, dotado de uma significação
imediatamente compreendida e idêntica à sua própria manifestação.
É isso que permite a Descartes opor sua determinação como Cogito à
definição do homem como animal racional: este requer um desenvolvimento
explícito dos conceitos significados (o que são “animal” e “racional”?) e aquele é
compreensível imediatamente no momento mesmo em que a definição é
proferida113. Contudo, reitera Deleuze, esse primado da manifestação em relação à
designação e à significação só cabe na ordem da fala em que as significações estão
implícitas, que faz com que o Eu seja primeiro em relação aos conceitos, em relação
ao mundo e a Deus. Porém, na ordem da língua, atenta ele, as significações, que
correspondem ao terceiro termo proposicional, desenvolvem-se por si mesmas, são
explícitas, e a proposição aparece sempre como premissa ou conclusão e como 111 Deleuze, LS, p.14; orig. p.23 : « rapport de la proposition au sujet qui parle et qui
s’exprime ». 112 Deleuze, LS, p.15 (grifos nossos); orig. p.24: «Dans l’analyse célèbre du morceau de
cire, Descartes ne cherche nullement ce qui demeure dans la cire », « mais montre comment
le Je manifesté dans le cogito fonde le jugement de désignation d’après lequel la cire est
identifée ». 113 Cf. Deleuze, LS, p.16; orig., p.25 e também Descartes, Princípios, I, 10.
39
significante dos conceitos antes de manifestar um sujeito ou designar um estado de
coisas. Nesse caso, conceitos significados como Deus ou mundo são primeiros em
relação ao Eu como pessoa manifestada e às coisas como objetos designados114.
Por fim, então, a significação ou a demonstração, que é a “relação da palavra
com conceitos universais e gerais, e das ligações sintáticas com implicações de
conceito”115. Os elementos da proposição são como “significantes” de uma ordem
de implicações conceituais, remissíveis a outras proposições consideradas como
premissas à primeira ou sua conclusão. À primeira vista, a significação tem como
valor lógico não a verdade (como a designação), porém, a condição de verdade, que
significa estar acima do verdadeiro e do falso, ou o conjunto das condições sob as
quais uma proposição “seria” verdadeira, já que a proposição condicionada também
pode ser falsa. Porém, ao fundamentar a verdade, a significação torna ao mesmo
tempo o erro possível, o que faz a condição de verdade se opor não ao falso, mas ao
absurdo que é sem significação e não pode ser verdadeiro nem falso116. Assim
sendo, a possibilidade para uma proposição ser verdadeira não é exatamente a
condição de verdade, mas somente a forma de possibilidade do verdadeiro da
proposição mesma117.
114 Cf. Deleuze, LS, pp.17 a 19; orig. pp.28 a 29. 115 Deleuze, LS, p.15; orig., p.24 : « rapport du mot avec des concepts universels ou
généraux, et des liaisons syntaxiques avec des implications de concept ». 116 Cf. Deleuze, LS, p.15; orig. p.25. 117 Cf. Deleuze, LS, p.19; orig., p.29.
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Designação: Estado de coisas(Individual)
Manifestação: Sujeito que fala (Pessoal)
Significação: Conceitos gerais (Forma de possibilidade da verdade)
Círculo da Proposição (Representação)
Observa-se, pois, uma circularidade entre os três termos ordinários
proposicionais por meio de uma remissão recíproca em que toda a tradição
filosófica se insere suscitando questões sobre o eu, o mundo, Deus, as coisas. Para
que sirva aos propósitos deleuzeanos, o círculo da proposição precisa ser rompido
porque seus termos submetem a diferença ao jugo das instâncias do Mesmo, do
Semelhante, do Análogo e do Oposto118, que a transformam em negativo, tal como
nos opostos: verdadeiro e falso (designação), veracidade e engano (manifestação) e
forma de possibilidade da verdade e do absurdo (significação). Pelo que se afigura,
o paradoxo é o único meio para escapar do círculo vicioso e situar a diferença na
exterioridade proposicional, que é seu âmbito próprio (em que ela é afirmativa),
podendo enfim ser considerada em si mesma. Dessa maneira, Deleuze aponta um
paradoxo no âmago da lógica que nos leva à quarta dimensão da proposição: ele não
permite à significação exercer seu papel de fundamento último, pois pressupõe uma
designação irredutível, o que destrói qualquer suposição de primado da significação
sobre a designação. O paradoxo de Lewis Carroll, no célebre texto “O que a
118 Cf. Deleuze, DR, p.420; orig. p.341.
41
tartaruga disse a Aquiles” (What the tortoise said to Achilles)119, aponta para a
impossibilidade de destacar a conclusão das premissas independentemente de sua
implicação a não ser com a condição de se acrescentar sempre outras premissas, das
quais a conclusão não é destacável, e assim ao infinito. Por isso, mesmo supondo
como verdadeiras as premissas A e B, não se pode concluir daí a proposição Z,
destacá-la de suas premissas e afirmá-la independentemente da implicação a não ser
admitindo que ela é, por sua vez, verdadeira se A e B forem verdadeiras, o que
constitui uma proposição C que permanece na ordem de implicação sem sair dela,
visto que remete a uma proposição D que diz ser Z verdadeira se A, B e C forem
verdadeiras, e assim ao infinito120. Assim sendo, a implicação não fundamenta a
119 Cf. Carroll, O que a tartaruga disse a Aquiles (What the tortoise said to Achilles,
pp.1104 a 1108), pp.251 a 254. O diálogo inicia-se no momento em que Aquiles se senta no
dorso da Tartaruga após tê-la finalmente alcançado na corrida travada entre os dois, numa
referência direta, bem humorada e crítica de Carroll a um dos paradoxos de Zenão que
procurava provar ser impossível a Aquiles alcançar a tartaruga que saíra com vantagem a
partir do critério lógico da divisão infinita da distância (Cf. Aristóteles, Física VI, 9. 239 b
14 (DK 29 A 26; e Os Pré-Socráticos, in col. Os Pensadores, p. 201). No diálogo, a
Tartaruga predispõe-se a provar logicamente a Aquiles que uma corrida consiste num
número infinito de distâncias, cada uma mais longa que a anterior, valendo-se para isso,
conforme ela anuncia, das duas partes iniciais e da conclusão do argumento da primeira
proposição de Euclides, chamadas por Carroll de A, B e Z: “(A) Duas coisas que são iguais
a uma terceira são iguais entre si. (B) Os dois lados deste triângulo são iguais a um terceiro.
(Z) Os dois lados deste triângulo são iguais entre si”. Logo se vê a necessidade de mais uma
proposição para que estas sejam aceitas sem contestação: “(C) Se A e B são verdadeiros, Z
deve ser verdadeiro”, o que leva a uma reformulação das proposições: “(A) As coisas que
são iguais a uma terceira são iguais entre si. (B) Os dois lados deste triângulo são coisas
que são iguais a uma terceira. (C) Se A e B são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro. (Z) Os
dois lados deste triângulo são iguais entre si”. Mas, há exigência lógica de uma nova
proposição para que todas essas afirmações sejam aceitas de forma inconteste. Assim: “(D)
Se A e B e C são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro”. Aquiles, entretanto, considera que, se
se aceitou A e B e C e D, tem-se que aceitar Z, o que leva a mais uma proposição: “(E) Se
A e B e C e D são verdadeiros, Z deve ser verdadeiro”. Assim, incansavelmente, na
milésima primeira etapa, a Tartaruga prevê ainda vários milhões pela frente, o que leva
Aquiles a alcunhá-la de “Torturuga”. 120 Cf. Deleuze, LS, p.17 ; orig. p.27.
42
designação a não ser se ela for dada pronta, uma vez nas premissas e outra na
conclusão. Para que as premissas sejam postas como verdadeiras, é preciso sair da
ordem da implicação para relacioná-las a um estado de coisas designado
pressuposto.
Destarte, o paradoxo de Carroll desempenha o importante papel de romper o
círculo da proposição, evidenciar a impossibilidade da significação de exercer o
papel de fundamento último, fazer emergir uma exigência interna de uma quarta
dimensão, desta vez, extraproposicional, além de denunciar um equívoco: não é a
significação, mas o sentido que deve ser considerado como condição de verdade, ou
seja, como aquilo que está acima do verdadeiro e do falso, dado que também a
proposição falsa está condicionada. Coincidir a significação com o sentido, segundo
Deleuze, é “um estranho empreendimento, que consiste em nos elevarmos do
condicionado à condição para conceber a condição como simples possibilidade do
condicionado”121. Em outras palavras, “eis que nos elevamos a um fundamento,
mas o fundado continua a ser o que era, independentemente da operação que o
funda, não afetado por ela”122. Então, a designação permanece exterior ao que a
condiciona, o que faz com que o verdadeiro e o falso restem indiferentes ao
princípio condicionante e assim haja uma remissão perpétua e recíproca entre
condicionado e condição. Para escapar a tal “defeito” lógico, explica Deleuze, a
condição de verdade não pode se limitar à forma do condicionado, como ocorre na
significação. Será preciso buscar no sentido o fundamento a-fundado, de caráter
paradoxal, que é exterior ao círculo da proposição, de natureza outra que o seu
fundado. De acordo com ele, “para que a condição de verdade escape a esse defeito,
será preciso que ela disponha de um elemento próprio distinto da forma do
condicionado, seria preciso que ela tivesse alguma coisa de incondicionado, capaz
de assegurar uma gênese real da designação e das outras dimensões da proposição:
então a condição de verdade seria definida não mais como forma de possibilidade
121 Deleuze, LS, p.19; orig. p.30 : «Une étrange démarche, qui consiste à s’élève du
conditionné à la condition pour concevoir la condition comme simples possibilité du
conditionné ». 122 Deleuze, LS, p.19; orig. p.30 : « Voilà qu’on s’élève à un fondement, mais le fondé reste
ce qu’il était, indépendamment de l’opération qui le fonde, non affecté par elle ».
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conceitual, mas como matéria ou «camada» ideal, isto é, não mais como
significação, mas como sentido”123.
- *** -
Vimos que o primado de cada um dos termos da proposição (designação,
manifestação e significação) sobre o outro é sempre efêmero e circunstancial. Nesse
contexto em que se observa uma circularidade em que um reenvia ao outro, é
impossível estabelecer entre os três termos ordinários proposicionais aquele que é
primeiro com relação aos outros e bem como aquele que exerce o papel de
fundamento último. O círculo da proposição vai da designação à manifestação e
depois à significação, mas também no movimento inverso: da significação à
manifestação e à designação124, ou seja, um termo remete ao outro, exige o outro, o
que encerra a proposição em si mesma numa evidente circularidade lógica. Segundo
Deleuze, sempre “somos conduzidos em um círculo que é o círculo da proposição.
A questão de saber se devemos nos contentar com estas três dimensões ou se é
preciso acrescentar a elas uma quarta que seria o sentido, é uma questão econômica
ou estratégica”. “O próprio modelo deve estar apto do interior a funcionar a priori,
ainda que introduzisse uma dimensão suplementar que não tivesse podido, em razão
de sua evanescência, ser reconhecida na experiência. Trata-se pois de uma questão
de direito e não somente de fato”125. Por conseguinte, a dimensão da diferença
123 Deleuze, LS, p.20 (grifos nossos); orig. p.30: « Pour que la condition de vérité échappe à
ce défaut, il faudrait qu’elle dispose d’un élément propre distinct de la forme du
conditionné, il faudrait qu’elle ait quelque chose d’inconditionné capable d’assurer une
genèse réelle de la désignation et des autres dimensions de la proposition : alors la
condition de vérité serait définie, non plus comme forme de possibilité conceptuelle, mais
comme matière ou «couche» idéelle, c’est-à-dire non plus comme signification, mais
comme sens ». 124 Cf. Deleuze, LS, p.17; orig. p.27. 125 Deleuze, LS, p.18; orig. pp.27 a 28 : « Nous sommes entraînés dans un cercle qui est le
cercle de la proposition. La question de savoir si nous devons nous contenter de ces trois
dimensions, ou s’il faut en adjoindre une quatrième qui serait le sens, est une question
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(extraproposicional) impõe-se, de direito, de maneira apriorística, por exigência
genética da proposição, provocando uma ruptura no círculo do pensamento
representativo. Como vimos, esse procedimento revela outrossim uma anterioridade
lógica da diferença em relação à representação, ou seja, da lógica paradoxal do anel
de Moebius sobre a lógica circular do Mesmo, além de uma anterioridade
ontológica, como veremos. Sendo condição incondicionada da verdade,
paradoxalmente falando, o sentido não pode ser confundido com nenhum dos
termos ordinários da proposição porque, para condicioná-los e desempenhar o papel
de fundamento a-fundado, ele necessariamente deve ser transcendente ao seu
círculo, deve rompê-lo.
Então, tudo o que diz respeito ao pensamento representativo e à lógica
circular da proposição e de sua interioridade é da ordem do fundado ou do
condicionado, ou seja, daquilo que foi gerado. E o que concerne ao pensamento da
diferença (e à lógica do anel de Moebius) rege a exterioridade proposicional que
abarca tudo em seu limite, já que é fronteira entre proposições e coisas, e é tido
como fundamento, de natureza completamente distinta do fundado; ele é a-fundado,
incondicionado e com poder de gênese. Conforme tal concepção, nada de novo
poderia surgir se condição e condicionado fossem um dos termos ordinários da
proposição, se fossem de mesma natureza; somente o caráter paradoxal da condição
incondicionada possibilita a gênese. A lógica circular da proposição não tem, pois,
poder genético e não comporta seu fundamento, papel este assumido pela lógica do
sentido; que é o mesmo que dizer, pelo que se afigura, que o pensamento
representativo é estéril e originado a partir da diferença a-fundada.
Assim sendo, há uma dimensão paradoxal e extraproposicional que, por ser
exterior ao circuito fechado da proposição, além de ter outra natureza, tem o poder
de gerar. Essa anterioridade da diferença em relação à representação é de direito,
mas, de fato, há uma coexistência. O paradoxo de Carroll rompe com o círculo da
proposição na medida em que mostra a impossibilidade da significação de exercer o
papel de fundamento último da proposição. E a lógica paradoxal do anel de
économique ou stratégique ». « Le modèle lui-même doit être apte de l’interieur à
fonctionner a priori, dût-il introduire une dimension supplémentaire qui n’aurait pas pu, en
raison de son évanescence, être reconnu du dehors dans l’expérience. C’est donc une
question de droit, et non pas seulement de fait ».
45
Moebius, ao mesmo tempo em que nos livra do círculo vicioso da proposição e das
malhas conceituais do pensamento representativo, privilegia a dimensão
extraproposicional do sentido como sendo o incondicionado da condição de
verdade, geradora de todas as dimensões internas da proposição. Tais paradoxos
possibilitam, pois, romper o círculo proposicional e emergir o sentido como
entidade inexistente, exterior à proposição, que independe da verdade ou da
falsidade de seus termos ou mesmo de sua absurdidade. Eles fazem aparecer a
dimensão da diferença para que ela seja pensada, pois levam tudo a seu limite.
Apenas no contexto em que o fundado não se assemelha ao seu fundamento a-
fundado, que é de outra natureza, pode haver gênese real de todas as três dimensões
internas da proposição.
2.3) Lógica do anel de Moebius: diferença
Somente a evasão do círculo da proposição nos possibilita escapar aos
preceitos da representação ao mesmo tempo em que nos instala no âmbito da
diferença. Permite-nos, pois, alcançar a exterioridade do sentido tornado visível
com o círculo rompido, agora em linha reta, que funciona como uma fronteira de
duas faces ímpares, uma voltada às coisas e outra às proposições. O sentido é o
termo paradoxal da proposição que se assume como sua quarta dimensão totalmente
exterior a ela, descoberto pelos Estóicos a partir do acontecimento. Com a ruptura
do círculo, os temas regidos pelo princípio de não-contradição são dissipados e
agora substituídos pelos paradoxos do sentido, próprios à diferença. Segundo
Deleuze, a potência do paradoxo distingue dois estados do sentido, de fato e de
direito, a posteriori e a priori: um que permite inferência indireta do sentido a partir
do círculo da proposição e outro que o faz aparecer por si mesmo, diretamente, ao
desdobrar o círculo ao longo da fronteira entre as proposições e as coisas126. Ao que
parece, o paradoxo de Carroll desempenha o primeiro papel, o da inferência indireta
do sentido, e o paradoxo do anel de Moebius exerce o segundo, da aparição direta
do sentido.
Muito já se teorizou em filosofia sobre as proposições e as coisas, mas não
sobre o que há entre elas, para onde Deleuze, inspirado nos Estóicos, deslocou toda 126 Cf. Deleuze, LS, p.23; orig. p.35.
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a reflexão com o intuito de dar azo à diferença. Assim, a diferença pode ser
concebida como filosofia da fronteira, dos interstícios, do “entre” que articula o
mundo sensível e o mundo das idéias sem pertencer a nenhum deles. A fronteira
não é conjunção, mas sim síntese disjuntiva que separa e articula ambas dimensões
e é o que torna possível a linguagem e até mesmo o pensamento, mas de forma
alguma se confunde com eles, como veremos. E seu procedimento, tal como
Deleuze admite, é análogo à lógica paradoxal do anel de Moebius, conservando
todas as suas características, mesmo após sua cisão e distorção. A fronteira (e
também o anel) une o interior ao exterior, colocando-os paradoxalmente na mesma
superfície. Basta seguir a fronteira, diz ele, margear a superfície, para passar dos
corpos ao incorporal127. O incorporal, no caso, é o sentido, o Acontecimento, efeito
produzido pela causa corporal, de outra natureza que ela, como vimos, apreendido
por inferência direta a partir do círculo proposicional ou diretamente por meio do
rompimento do círculo que se transforma em pura superfície ou fronteira, a
exemplo do que ocorre após a cisão do anel de Moebius. Assim, ao nosso ver,
assimilar essa lógica pela perspectiva deleuzeana torna-se tarefa fundamental para
compreender o próprio pensamento da diferença. Em outras palavras, sua aplicação
permite-nos entender, para além do livro Lógica do sentido, a articulação mesma da
filosofia da diferença. Então, a exemplo do que Deleuze faz com a lógica do
sentido, realizaremos diversas intervenções na superfície do anel, inclusive sua
ruptura, para conseguir todo o seu alcance lógico.
Obtém-se a figura do anel de Moebius ao unir as duas extremidades de uma
banda torcida uma vez sobre si mesma128, ensina Albert Lautman, tanto quanto o
faz Carroll em Sílvia e Bruno (Sylvie and Brune) ao afirmar que os lenços da bolsa
de Fortunatus são costurados in the wrong way129, “de tal forma que sua superfície
exterior está em continuidade com sua superfície interna” 130. Assim, o
deslizamento pela superfície do anel faz com que o dentro esteja fora e vice-versa, e
abrace o mundo todo. Ao que nos parece, o uso do anel de Moebius permite a
127 Cf. Deleuze, LS, p.11; orig. p.20. 128 Cf. Lautman, SEM, p.51. 129 Cf. Carroll, SBC, cap. VII, p.521 e Deleuze, LS, p.11; orig. p.21. 130 Deleuze, LS, pp.11 a 12; orig. p.21 : « de telle façon que sa surface extérieure est en
continuité avec sa surface interne ».
47
Deleuze conferir visibilidade ao que é invisível e inexistente, a saber, a fronteira
entre as proposições e as coisas. Tal qual o anel, a fronteira é superfície ilimitada,
sem começo nem fim, dotada de duas faces ímpares, seu ponto de viragem ou
torção exprime a produção da diferença, e ao cindir-se, resta-se uma linha reta que
põe em continuidade o interior e o exterior. Lautman sugere algumas intervenções
(propriedades de situação) no corpo do anel que dão prova de sua paradoxal
estrutura (propriedades intrínsecas) e a redução daquelas nesta, às quais Deleuze
não é indiferente. Mais do que isso: ao nosso ver, ele as aproveita profundamente
em sua análise sobre o sentido e na concepção do pensamento da diferença,
revelando seu caráter paradoxal, tanto quanto ele mesmo admite; não por acaso, os
livros de Lautman aparecem como referência em pelo menos duas obras
importantes: Lógica do sentido e Diferença e repetição.
Em uma dessas intervenções, Lautman mostra que a continuidade entre
exterioridade e interioridade é facilmente demonstrada quando se traça uma linha
sobre a superfície do anel até se chegar novamente ao ponto de partida. Percebe-se,
pois, que o traço percorre uma superfície única que é a sua totalidade, colocando no
mesmo plano o dentro e o fora. Essa é a exata noção transmitida por Deleuze ao
discorrer sobre o sentido “inverso” da fronteira entre as proposições e as coisas: de
tanto deslizar ao longo dela, passa-se para o outro lado. Ele esclarece que é
contornando a superfície fronteiriça que se vai para o lado inverso, pela eficácia de
um anel que coloca em continuidade o direito e o avesso e também os efeitos em
um só e mesmo Acontecimento131. E se não há nada por trás dessa superfície, diz
ele, é porque todo o visível, ou melhor, toda a ciência possível está ao longo dela,
bastando segui-la o mais superficialmente possível para fazer com que a direita se
torne esquerda e inversamente. Ou seja, o movimento de escorregar pela fronteira
(ou pela superfície única do anel) permite-nos ir de uma dimensão à outra, sem cair
na interioridade do círculo da proposição ou na profundidade dos corpos. No nosso
entender, o potencial lógico do anel de Moebius nos faz situar no âmbito próprio da
diferença e nos permite considerá-la em si mesma, fora do jugo da representação ou
do círculo da proposição. Portanto, é ela que viabiliza o projeto deleuzeano de
realizar a filosofia da diferença. Segundo Deleuze, é preciso ascender à superfície,
131 Cf. Deleuze, LS, p.12 ; orig. p.21.
48
desmistificar a falsa profundidade e descobrir que tudo é articulado pela
fronteira132.
Outra intervenção proposta por Lautman, e utilizada por Deleuze na
concepção da diferença como fronteira ou superfície entre as proposições e as
coisas, é a de fender o anel para desdobrá-lo em seu comprimento e obter uma
banda cujos dois lados são percorridos pelo mesmo traço reto, o que, mais uma vez,
comprova a paradoxalidade da superfície única da qual participam exterior e
interior em continuidade, sem a perda de suas características iniciais, anteriores à
fenda. Ele também sugere colorir paulatinamente a superfície do anel para se
aperceber que, ao desdobrá-lo no espaço, estarão coloridos os dois lados da banda
obtida. Sem contra-senso, observa Lautman, pode-se entender a unilateralidade do
anel como uma propriedade extrínseca caracterizada por uma propriedade
intrínseca. Ele explica que “o anel de Moebius não tem senão um único lado, e essa
é uma propriedade essencialmente extrínseca, pois, para se dar conta disso, é
necessário fender o anel e distorcê-lo, o que supõe uma rotação em torno de um
eixo exterior à superfície do anel. É, portanto, possível caracterizar essa
«unilateralidade» por uma propriedade puramente intrínseca”133.
Lautman prova, pois, o caráter paradoxal do anel que transforma a
propriedade extrínseca em propriedade intrínseca, tanto quanto Deleuze o faz a
respeito da fronteira. A exemplo de Lautman, ele propõe o rompimento do círculo
da proposição formado por suas três dimensões ordinárias – designação,
manifestação e significação –, para que a quarta dimensão, do sentido, apareça. Diz
ele: “é somente rompendo o círculo, como fazemos para o anel de Moebius,
desdobrando-o no seu comprimento, revirando-o, que a dimensão do sentido
aparece por si mesma e na sua irredutibilidade, mas também em seu poder de
gênese, animando então um modelo interior a priori da proposição”134. 132 Deleuze, LS, p.10 ; orig. p.19. 133 Lautman, SE, p.51 (tradução nossa): “L’anneau de Möbius n’a donc lui, qu’un seul côté,
et c’est là une propriété essentiellement extrinsèque puisque pour s’en rendre compte il faut
fendre l’anneau et le détordre, ce qui suppose une rotation autour d’un axe extérieur à la
surface de l’anneau. Il est pourtant possible de caractériser cette «unilatéralité» par une
propriété purement intrinsèque”. 134 Deleuze, LS, p.21 ; orig. p.31 : « C’est seulement en fendant le cercle comme on fait
pour l’anneau de Moebius, en le dépliant dans sa longueur, en le détordant, que la
49
Lógica do sentido (âmbito da diferença)
Anel de Moebius Anel de Moebius rompido
∞ _____
Um outro teste de Lautman é análogo a este da ruptura do anel, pois leva às
mesmas constatações sem precisar cindi-lo e distorcê-lo. Ele sugere desenhar uma
flecha perpendicular à linha traçada sobre o anel e deslocar essa flecha ao longo
dessa linha, sempre num tracejamento perpendicular, de tal sorte que ela permaneça
constantemente situada sobre a superfície. “Supondo a superfície assaz
transparente”, pondera ele, “dá-se conta que a flecha chega num ponto a cobrir sua
posição de partida com uma orientação inversa”135. Lautman esclarece que “a
superfície é dita não-orientável e essa propriedade poderia ser examinada por um
observador junto à superfície que não teria por isso nem de fender o anel nem de
distorcê-lo”136.
dimension du sens apparaît pour elle-même et dans son irréductibilité, mais aussi dans son
pouvoir de genèse, animant alors un modèle intérieur a priori de la proposition ». 135 Lautman, SE, p.51 (tradução nossa): “En supposant la surface assez transparente on se
rend compte que la flèche arrive en un point à couvrir sa position de départ avec une
orientation inverse”. 136 Lautman, SE, p.51 (tradução nossa): “La surface est dite non-orientable et cette propriété
pourrait être observée par un observateur lié à la surface, qui n’aurait pour cela ni à fendre
l’anneau, ni à le détordre”.
50
Desenho do anel de moebius (só na versão em papel)
51
Se, como vimos, “o sentido não existe fora da proposição”137 mas também
não pertence a suas dimensões ordinárias, para apreendê-lo, torna-se imprescindível
aplicar não a lógica do círculo, mas a do anel de Moebius, para que ele surja em sua
superfície rompida ou que seja inferido de dentro da proposição. Vimos também
que ao cindir o círculo da proposição, abandonamos os temas caros à filosofia que
caracterizam o pensamento da representação (regido pelo princípio de identidade), a
saber, mundo, eu e Deus, e que Deleuze faz corresponder respectivamente às três
dimensões da proposição: designação, manifestação e significação, além das
questões que implicam contradição como afirmação e negação, verdade e falsidade
etc. E renunciando à lógica do círculo em prol da lógica paradoxal do anel de
Moebius, alcançamos a quarta dimensão da proposição, o sentido, que, no nosso
entender, é o âmbito da diferença por excelência já que se traduz numa fronteira
invisível e inexistente entre as proposições e as coisas que, paradoxalmente, pode
ser considerada em si mesma como diferença afirmativa, distância, disjunção,
articulação etc., tanto quanto o faz Lautman com o anel de Moebius. Se
permanecermos restritos à lógica do círculo, a dimensão da diferença não será
posta. Segundo ele, “enquanto a diferença é submetida às exigências da
representação, ela não é nem pode ser pensada em si mesma”138. Não se pode
submeter a diferença a nenhum dos princípios correspondentes às dimensões
ordinárias da proposição, a saber, mundo, eu e Deus, visto que a diferença opera
com as singularidades pré-individuais e impessoais, não efetuadas numa
individualidade originária (Deus), nem numa Pessoa (eu) e sequer no mundo que é
elemento do eu e produto de Deus139. Submeter a diferença a tais noções é
determiná-la como relativa e negativa e é confiná-la no círculo da proposição. Por
isso, Deleuze promove o deslocamento reflexivo à fronteira: para considerá-la em si
mesma.
Em suma, a chave para compreender a fronteira proposta por Deleuze como
âmbito da diferença é a lógica do anel de Moebius. Compara ele: “o forro é a
continuidade do avesso e do direito, a arte de instaurar esta continuidade, de tal
137 Cf. Deleuze, LS, p.23 ; orig. p.33. 138 Deleuze, DR, pp.415 e 416; orig. p.337 : « Tant que la différence est soumise aux
exigences de la représentation, elle n’est pas pensée en elle-même, et ne peut pas l’être ». 139 Cf. Deleuze, LS, p.182 ; orig. p.206.
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maneira que o sentido na superfície se distribui dos dois lados ao mesmo tempo,
como expresso subsistindo nas proposições e como acontecimento sobrevindo aos
estados de corpos”140. A lógica do anel de Moebius revela um âmbito da diferença,
entendido como fronteira, paradoxal, ao colocar no mesmo plano o interior e o
exterior, e outrossim nos dá a conhecer sua natureza incorporal.
2.4) Lógica paradoxal
A teoria do sentido é inseparável de paradoxos, já que o sentido é um
elemento não-existente das proposições com relações estreitas com o não-senso.
Deleuze concede, pois, aos Estóicos um lugar privilegiado dentro da história da
filosofia que, em ruptura com os pré-socráticos, o socratismo e o platonismo,
constroem sua imagem ligada à constituição paradoxal da teoria do sentido141.
Amantes e inventores de paradoxos, eles utilizam-nos de maneira inteiramente
nova: “ao mesmo tempo como instrumento de análise para a linguagem e como
meio de síntese para os acontecimentos”142. Como vimos, o sentido é sempre duplo
sentido. Às perguntas do estóico Crisipo de “quando é que se fica careca [ou
calvo]? ou quando é que existe uma porção?”143 (e mesmo quando eu digo “eu
minto”), são impossíveis de ser respondidas, pois seria uma tentativa vã de
enclausurar o devir que avança nas duas direções ao mesmo tempo, para o mais e
para o menos da quantidade de fio de cabelos e de grãos de uma porção. Está-se no
campo móvel do “tornar-se” (do passado e do futuro simultâneos) e não na fixidez
do “ser” (do presente).
140 Deleuze, LS, p.130; orig. p.151: «La doublure est la continuité de l’envers et de
l’endroit, l’art d’instaurer cette continuité, de telle manière que le sens à la surface se
distribue des deux côtes à la fois, comme exprimé subsistant dans les propositions et
comme événement survenant aux états de corps ». 141 Cf. Deleuze, LS, prólogo, 1ª pág.; orig. p.7. 142 Deleuze, LS, p.9; orig. p.18 : « à la fois comme instrument d’analyse pour le langage, et
comme moyen de synthèse pour les événements ». 143 Cf. Deleuze, LS, p.82; orig. p.98 : « Quand devient-on chauve ? ou quand y a-t-il un
tas ? ».
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Dizer o presente de alguma coisa é fixar o sentido numa única direção (bom
senso) e remeter a um ponto de identificação (senso comum); seria afirmar algo
como: ‘careca é aquele que tem X cabelos’ ou ‘uma porção é aquela que tem X
grãos’. Destarte, o pensamento da diferença é inseparável de uma lógica paradoxal
que faz aparecer o sentido ou o acontecimento: tal como o acontecimento do calvar,
devir calvo ou careca, ou então o acontecimento do ‘porcionar’ (ou fracionar),
devir porção. Para Deleuze, “o paradoxo aparece como destituição da profundidade,
exibição dos acontecimentos na superfície, desdobramento da linguagem ao longo
deste limite”. E enfatiza: “o humor é esta arte da superfície, contra a velha ironia,
arte das profundidades ou das alturas”144. Além disso, o acontecimento revela-se
coextensivo ao devir e este à linguagem. Quando o Crisipo afirma “se dizes alguma
coisa, esta coisa passa pela boca; ora tu dizes uma carroça, logo, uma carroça passa
por tua boca”145, há um uso do paradoxo em que o mais profundo se torna o
imediato e o imediato aparece na linguagem, num jogo sobre o que existe fora e
dentro dela. O paradoxo torna evidente, de acordo com Deleuze, que “tudo se passa
na fronteira entre as coisas e as proposições”146.
Os paradoxos de Carroll e de Moebius, como vimos, rompem o círculo da
proposição e da representação, bem como nos situa na superfície inexistente do
sentido e da diferença. Dado que o sentido é “a fronteira, o corte ou a articulação da
diferença”147 entre os dois termos de uma dualidade que opõe coisas e proposições,
substantivos e verbos, designações e expressões, e que dispõe de uma
impenetrabilidade que lhe é própria e na qual se reflete, ele somente se desenvolve
numa série de paradoxos interiores. Ao nosso ver, essas séries de paradoxos
evidenciam a maneira de retirar a diferença da égide da representação. Somente tais
144 Deleuze, LS, pp.9 a 10; orig. p.18 : « Le paradoxe apparaît comme destitution de la
profondeurs, étalement des événements à la surface, déploiement du langage le long de
cette limite. L’humour est cet art de la surface, contre la vieille ironie, art des profondeurs
ou des hauteurs ». 145 Deleuze, LS, p.9; orig. p.18 : « si tu dis quelque chose, cela passe par la bouche; or tu dis
un chariot, donc un chariot passe par ta bouche ». 146 Deleuze, LS, p.9 (grifo nosso); orig. p.18 : « tout se passe à la frontière des choses et des
propositions ». 147 Deleuze, LS, p. 31; orig. p.41 : « la frontière, le tranchant ou l’articulation de la
différence ».
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paradoxos conseguem extrair da proposição o sentido, tirar dos corpos o incorporal,
arrancar do círculo da proposição (ou da representação) a dimensão da diferença
para que seja considerada em si mesma, de maneira autônoma e afirmativa. Não por
acaso, os Estóicos tanto quanto Carroll são considerados os mestres dos paradoxos.
Uma das maneiras de dizer o sentido das coisas é pela regressão infinita (o
paradoxo de Frege), considerada o paradoxo dos paradoxos, do qual todos os outros
derivam, e tem necessariamente a forma serial, pois uma proposição remete à outra
na tentativa de dizer o seu sentido. Isso porque “nunca digo o sentido daquilo que
digo”148, embora o sentido sempre esteja pressuposto desde que o eu começa a
falar, pois não se poderia começar sem esta pressuposição149. Para dizê-lo, preciso
tomar o sentido do que digo como objeto ou designado de uma outra proposição, da
qual, por sua vez, também não digo o sentido.
Segundo Deleuze, “entro numa regressão infinita do pressuposto que dá
testemunho, ao mesmo tempo, da maior impotência daquele que fala e da mais alta
potência da linguagem: minha impotência em dizer o sentido do que digo, em dizer
ao mesmo tempo alguma coisa e seu sentido, mas também o poder infinito da
linguagem de falar sobre as palavras”150. Ele resume a lógica paradoxal da
regressão infinita: “sendo dada uma proposição que designa um estado de coisas,
podemos sempre tomar seu sentido como o designado de uma outra proposição”151.
Em outras palavras, quando se profere uma proposição, cria-se uma outra para dizer
o sentido da primeira e que, ao proferi-lo, este assumirá o papel de designado da
segunda e assim ao infinito. Dessa maneira, ao dizer o sentido da proposição
anterior e atingir sua quarta dimensão, estamos na exterioridade da primeira
148 Deleuze, LS, p.31; orig. p.41 : « je ne dis jamais le sens de ce que je dis ». 149 Deleuze esclarece que somente as ‘palavras-valises’ e a palavra não-senso conseguem
dizer o seu próprio sentido. Cf. Deleuze, LS, ver sétima série: Das palavras esotéricas, das
pp.45 a 50; orig. pp.57 a 62. 150 Deleuze, LS, p.31; orig. p.41 : « J’entre alors dans la régression infinie du presupposé.
Cette régression témoigne à la fois de la plus grande impuissance de celui qui parle, et de la
plus haute puissance du langage : mon impuissance à dire le sens de ce que je dis, à dire à la
fois quelque chose et son sens, mais aussi le pouvoir infini du langage de parler sur les
mots ». 151 Deleuze, LS, p.31; orig. p.41 : « étant donné une proposition qui désigne un état de
choses, on peut toujours prendre son sens comme le désigné d’une autre proposition ».
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proposição (rompemos o círculo), mas na interioridade da segunda (caímos em seu
círculo novamente), pois, ao proferi-lo, transformamos o sentido da primeira em
designado da segunda, e daí por diante. Permanecemos sempre dentro do jogo dual
entre expresso e designado. Deleuze explica que “a regressão tem necessariamente a
forma serial: cada nome designador tem um sentido que deve ser designado por um
outro nome, n1 n2 n3 n4 ...”152, que se realiza na simultaneidade de duas
séries pelo menos que diferem em natureza, por exemplo, cada nome é tomado
primeiro na designação que opera e depois no sentido que exprime, já que o sentido
serve de designado ao outro nome. E conclui: “a forma serial é, pois,
essencialmente multisserial”153, o que levará Deleuze a entender cada âmbito
separado pela fronteira como séries. Assim, as coisas formam uma série e as
proposições, outra série; os corpos são uma série e os incorporais, outra; os
expressos e os designados também o são etc.
O paradoxo estóico do desdobramento estéril ou da reiteração seca consegue
evitar essa regressão infinita, imobilizando a proposição no momento de extrair dela
o sentido, e, com isso, ele revela a esterilidade do sentido e sua independência em
relação à afirmação e negação da proposição. Os Estóicos mostraram que, “como
expresso da proposição, o sentido não existe, mas insiste ou subsiste na
proposição”154, ou seja, “somente os corpos agem e padecem, mas não os
incorporais, que resultam das ações e das paixões”155. Ao ser extraído da
proposição, o sentido mostra-se independente, suspendendo dela a afirmação e a
negação. Podemos traduzir esse paradoxo como sendo da neutralidade e
impenetrabilidade (secura) do sentido, o que denota que nenhum modo da
proposição pode afetá-lo, permanecendo sempre o mesmo para as proposições que
se opõem do ponto de vista da qualidade, quantidade e modalidade concernente à 152 Deleuze, LS, p.39; orig. p.50: « La régression a nécessairement une forme sérielle :
chaque nom désignateur a un sens qui doit être désigné par un autre nom, n1 n2 n3
n4 ...” ». 153 Deleuze, LS, p.39; orig. p.50: « la forme sérielle est donc essentiellement multi-
sérielle ». 154 Deleuze, LS, p.34; orig., p.45 : « comme exprimé de la proposition, le sens n’existe pas,
mais insiste ou subsiste dans la proposition ». 155 Deleuze, LS, p.34; orig., p.45 : « seuls les corps agissent et pâtissent, mais non pas les
incorporels, qui résultent seulement des actions et des passions ».
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designação e aos aspectos de sua efetuação. Então, por exemplo, no que tange à
qualidade, ou seja, a afirmação e a negação das proposições “Deus é” e “Deus não
é”, elas têm o mesmo sentido, em função de sua autonomia em relação ao
designado156. Deste paradoxo decorre um outro denominado paradoxo do absurdo
ou dos objetos impossíveis, em que “as proposições que designam objetos
contraditórios têm um sentido”157, embora não possam ser efetuadas e nem tenham
significação, por isso, são consideradas absurdas. Destarte, objetos impossíveis
como quadrado redondo, matéria inextensa, perpetuum mobile, montanha sem vale
etc. (paradoxos de Meinong) são objetos «sem pátria», situados na exterioridade do
ser; eles são, portanto, «extra-ser», ou seja, puros acontecimentos ideais que não se
efetuam num estado de coisas.
A esterilidade, neutralidade e independência do sentido em relação à
proposição evidenciam a autonomia do âmbito extraproposicional, apesar de sua
evanescência, em relação aos modos proposicionais e uma ruptura com o princípio
de contradição que os subordina, aplicável apenas ao que é real (designados) e
possível (significação), mas não ao impossível que é destituído de significação,
porém, não de sentido. Somente a lógica do sentido, com seus paradoxos, consegue
dar conta do que extrapola a interioridade da proposição – por ser fronteira,
interstícios, articulação, superfície, ela abarca o ser e o não-ser; o real, o possível e
o impossível. Segundo Deleuze, “se distinguimos duas espécies de ser, o ser do real
como matéria das designações e o ser do possível como forma das significações,
devemos ainda acrescentar este extra-ser que define um mínimo comum ao real, ao
possível e ao impossível. Pois o princípio de contradição se aplica ao real e ao
possível, mas não ao impossível: os impossíveis são extra-existentes, reduzidos a
este mínimo e, enquanto tais, insistem na proposição”158. Logo, a diferença está 156 Cf. Deleuze, LS, p.35; orig., p.46. 157 Deleuze, LS, p.37; orig., p.49 : « les propositions qui désignent des objets contradictoires
ont elles-mêmes un sens ». 158 Deleuze, LS, p.38; orig. p.49 : « si nous distinguons deux sortes d’êtres, l’être du réel
comme matière des désignations, et l’être du possible comme forme des significations, nous
devons encore ajouter cet extra-être qui définit un minimum commun au réel, au possible et
à l’impossible. Car le principe de contradiction s’applique au possible et au réel, mais non
pas à l’impossible : les impossibles sont des extra-existants, réduits à ce minimum, et qui
comme tels insistent dans la proposition ».
57
intrinsecamente ligada à produção de paradoxos que cindem o círculo da proposição
e superam o princípio de contradição que o rege. Entretanto, há uma relação
genética entre a contradição, que subordina o real e o possível, e o paradoxo, que dá
conta também do impossível. Deleuze explica que “a força dos paradoxos reside em
que eles não são contraditórios, mas nos fazem assistir à gênese da contradição. O
princípio de contradição se aplica ao real e ao possível, mas não ao impossível do
qual deriva, isto é, aos paradoxos, ou antes, ao que representam os paradoxos”159.
Ao evidenciar, com esses paradoxos, a independência e a neutralidade do
sentido em relação aos termos ordinários da proposição, Deleuze mostra, ao mesmo
tempo e na prática, o que era, de início, apenas uma possibilidade: a diferença em si
mesma, em seu âmbito próprio, fora do jugo da representação que a torna negativa e
a transforma em não-ser. Vimos que o sentido pode ser extraído da proposição pelo
uso paradoxal, considerado impassível em relação aos modos proposicionais, a
ponto de ser encontrado em frases contraditórias ou mesmo absurdas. Ele denota
também a limitação da contradição enquanto princípio que rege o círculo da
proposição ou o pensamento da representação. A contradição dá conta do real e do
possível, que correspondem aos termos ordinários da proposição, mas não do
impossível, alcançado apenas pelo sentido, em sua autonomia, exterioridade (por
ser fronteira) e diferença. Ao que nos parece, além da independência do termo
extraproposicional, esses paradoxos indicam a maneira de romper o círculo da
proposição, em que a diferença subsiste por si mesma em relação à lógica do
Mesmo. Trata-se, ao nosso ver, da reversão do platonismo realizada no âmbito
proposicional em que o simulacro ou o diferente se liberta da profundidade, deixa
de ser entendido como não-ser ou negação e sobe à superfície, ganha autonomia e
muda de natureza. O mais profundo torna-se o mais superficial, “o mais profundo é
a pele” (le plus profond, c’est la peau), retomando a paráfrase deleuzeana da
‘profunda’ frase de Paul Valéry160. Todos esses paradoxos, e em especial o da
regressão infinita que é serial, evidenciam a lógica do anel de Moebius ou a lógica
159 Deleuze, LS, p.77; orig. p.92 : « La force des paradoxes réside en ceci, qu’ils ne sont pas
contradictoires, mais nous font assister à la genèse de la contradiction. Le principe de
contradiction s’applique au réel et au possible, mais non pas à l’impossible dont il dérive,
c’est-à-dire aux paradoxes ou plutôt à ce que représentent les paradoxes ». 160 Cf. Deleuze, LS, p.11 ; orig. p.20.
58
do sentido, em que exterioridade e interioridade encontram-se em continuidade na
mesma superfície que, assim sendo, consegue envolver o mundo inteiro161.
2.4.1) Paradoxo versus ‘doxa’
Os paradoxos do sentido são dotados de duplo sentido simultâneo,
simultaneidade esta que os faz escapar ao círculo da proposição e a seu princípio de
contradição. Eles restringem-se a dois: promovem uma subdivisão infinita do
sentido em passado e futuro, jamais presente, e também uma distribuição nômade
que se reparte sempre num espaço aberto e não fechado. Esses paradoxos do sentido
caracterizam-se por ir nos dois sentidos ao mesmo tempo, tornando impossível uma
identificação162 ou fixidez, dada a impossibilidade de se delimitar o devir. Os
paradoxos da significação distinguem-se radicalmente dos paradoxos do sentido,
pois eles manifestam as questões da doxa, presentes basicamente no “conjunto
anormal” (o conjunto que se compreende como elemento ou que compreende
elementos de diferentes tipos) e no “elemento rebelde” (o que participa de um
conjunto cuja existência pressupõe e pertence aos dois subconjuntos que
determina). Deleuze esclarece a distinção entre eles: “é que o paradoxo se opõe à
doxa, aos dois aspectos da doxa, do bom senso e senso comum”163. Pelo que se
afigura, os paradoxos do sentido parecem ter uma maior legitimidade que os da
significação porque não se restringem ao real e ao possível, mas atingem também o
impossível. Para Peter Pál Pelbart, o paradoxo é algo como um “arrombamento e
violentação, a paixão do encontro fortuito, sua perturbação irresoluta”164. Ele nos
provoca uma perda de nós mesmos bem como do mundo porque desfaz a
tranqüilidade de nos reconhecermos em meio às coisas, ao mesmo tempo em que as
reconhecemos.
Nesse contexto, a doxa e seus dois aspectos são manifestações do
pensamento da representação que, num sentido estrito (deleuzeano) também é
161 Cf. Deleuze, LS, p.12; orig. p.21. 162 Cf. Deleuze, LS, pp.77 a 78; orig. pp.92 a 93. 163 Deleuze, LS, p.78; orig. p.93 : « c’est que le paradoxe s’oppose à la doxa, aux deux
aspects de la doxa, bon sens et sens commun ». 164 Pelbart, TNR, p.63.
59
paradoxal. Segundo Deleuze, no limite, toda filosofia é paradoxal, ou seja, está
além da doxa, posto que “se serve das frases de uma língua standard, para exprimir
algo que não é da ordem da opinião, nem mesmo da proposição”165. Vimos que a
filosofia da diferença é extraproposicional e a opinião ou doxa é a afirmação de um
sentido único, jamais duplo sentido, como no caso do paradoxo. Outrossim as
ciências do homem são consideradas uma “vasta doxologia” e as coisas mesmas,
opiniões genéricas166. Conforme ele, a ciência vai do virtual ao estado de coisas
(movimento descendente167) ao ocupar-se do que está no campo empírico, seus
objetos, corpos individuados, estados de coisas, entre outros, com argumentos,
percepções e afecções constituídos na doxa, em opiniões sobre qualquer coisa
percebida ou que nos afeta. Em contrapartida, a filosofia vai do estado de coisas ao
virtual (movimento ascendente) ao atrelar-se a um virtual que não é o mesmo
daquele do ponto de partida da ciência. Ao retraçar a linha na direção contrária, a
filosofia estabelece um plano de imanência que corta o caos e confere uma
consistência à virtualidade, que deixa de ser caótica; portanto, paradoxo não pode
ser entendido como absurdo ou contradição – ele é, simultaneamente, duas direções,
sem implicar em escolhas. Segundo Deleuze, “o paradoxo é, em primeiro lugar, o
que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso
comum como designação de identidades fixas”168.
165 Deleuze, OF, p.105 (grifos nossos); orig. QP, p.78: “elle se sert des phrases d’une
langue standard pour exprimer quelque chose qui n’est pas de l’ordre de l’opinion ni même
de la proposition.”. Cf. também OF, 108; orig. QP, p.80. 166 Cf. Deleuze, OF, pp.200 e 201; orig. QP, p.146 e 147. 167 Conforme explica Deleuze, em OF, p.201: “a ciência desce da virtualidade caótica aos
estados de coisas e corpos que a atualizam”; orig. QP, p.147: “la science descend de la
virtualité chaotique aux états de choses et corps qui l’actualisent”. 168 Deleuze, LS, p.3 (grifos nossos); orig. p.12 : « le paradoxe est d’abord ce qui détruit le
bon sens comme sens unique, mais ensuite ce qui détruit le sens commun comme
assignation d’identités fixes ».
60
2.4.1.1) Paradoxo contra bom senso e senso comum
Um dos aspectos da doxa, o “bom senso” é sentido único, diz-se apenas de
uma direção e exprime uma ordem para uma escolha somente. Sua função é prever,
pois sua direção vai do mais diferenciado ao menos diferenciado, do passado ao
futuro, o que orienta a flecha do tempo para um fim e tem o presente no papel
diretor, fase determinada do tempo no sistema individual e repartição sedentária, em
que todos os caracteres precedentes se reúnem169. O paradoxo opõe-se ao bom
senso, ressalta Deleuze, porque “a diferença é posta no começo, tomada em um
movimento dirigido incumbido de cumulá-la, igualá-la, anulá-la, compensá-la”170.
Conforme ele, o bom senso desempenha papel capital na determinação da
significação, mas não na doação de sentido. Isso porque o bom senso determina o
princípio de um sentido único em geral que nos força a escolher uma direção de
preferência à outra, ao contrário do sentido que é afirmação de duas direções ao
mesmo tempo.
Em outro aspecto da doxa, “no senso comum”, o sentido é “comum porque é
um órgão, uma função, uma faculdade de identificação que relaciona uma
diversidade qualquer à forma do Mesmo”171; ele identifica e reconhece. Segundo
Deleuze, quer subjetivamente quer objetivamente, o senso comum opera por
subsunção: 1) subsume as várias faculdades da alma ou órgãos do corpo e os refere
à unidade do Eu, pois “é um só e mesmo eu que percebe, imagina, lembra-se, sabe
etc.; e que respira, que dorme, que anda, que come ...”172, o que faz a linguagem
parecer impossível sem esse sujeito que se exprime ou se manifesta nela e que diz o
que ele faz, e que tem como sua maior expressão a filosofia cartesiana; 2) subsume
a diversidade dada que é referida à unidade de uma forma particular de objeto ou
individualizada de mundo: “é o mesmo objeto que eu vejo, cheiro, saboreio, toco, o 169 Cf. Deleuze, LS, 78; orig. p.93. 170 Deleuze, LS, p.78; orig. p.93 : « la différence est mise au début, prise dans un
mouvement dirigé qui est censé la combler, l’égaliser, l’annuler, la compenser ». 171 Deleuze, LS, p.80; orig. pp.95 a 96 : « commum, parce que c’est un organe, une
fonction, une faculté d’identification, qui rapporte une diversité quelqueconque à la forme
du Même ». 172 Deleuze, LS, p.80; orig. p.96 : « c’est un seul et même moi qui perçoit, imagine, se
souvient, sait, etc. ; et qui respire, qui dort, qui marche, qui mange ... ».
61
mesmo que percebo, imagino e do qual me lembro ... e é o mesmo mundo que
respiro, ando, fico em vigília ou durmo, indo de um objeto para outro segundo as
leis de um sistema determinado”173. A linguagem também aí é aparentemente
impossível fora das identidades que designa.
Ambas as forças, a do bom senso e a do senso comum, são complementares,
pois a primeira é pensamento de uma só direção que remete à segunda que é uma
unidade de identificação e vice-versa. O bom senso não poderia fixar nenhum
começo ou fim, nenhuma direção ou mesmo distribuir a diversidade se não se
superasse em direção a uma instância, a do senso comum, capaz de referir a
diversidade à forma de identidade de um sujeito e de permanência de um objeto ou
mundo, supostos presentes do começo ao fim. Inversamente, tal identidade no senso
comum restaria vazia se não se superasse em direção a uma instância, a do bom
senso, capaz de determiná-la por esta ou aquela diversidade, com começo e fim, e
que, supostamente, dura todo o tempo necessário para a igualação de suas partes.
Deleuze observa que esta complementaridade do bom senso e do senso comum
estabelece uma aliança entre o eu, o mundo e Deus, este como direção última e
princípio supremo da identidade174, não por acaso, três elementos articuladores da
filosofia tradicional e que funcionam como princípios para os termos ordinários da
proposição: manifestação, designação e significação, respectivamente.
O paradoxo, próprio à dimensão extraproposicional, é a subversão
simultânea do bom senso e do senso comum. “O paradoxo”, explica Deleuze, “é a
afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”175. Mas essa também é a definição
do sentido ou do acontecimento bem como do devir puro, o que revela uma
tradução mútua entre paradoxo, devir, sentido e acontecimento, que nos fornece
indícios do âmbito da diferença em si mesma. Conforme ele, a proposição “Alice
cresce” (Alice grandit) exprime o devir de Alice: “é ao mesmo tempo em que ela se
torna um e outro”176, ou seja, é simultaneamente e no mesmo lance que ela se torna 173 Deleuze, LS, p.80; orig. p.96 : « c’est le même objet que je vois, que je flaire, que je
goûte, que je touche, le même que je perçois, que j’imagine et dont je me souviens ... et
c’est dans le même monde que je respire, je marche, je veille ou dors, allant d’un objet à
l’autre suivant les lois d’un système déterminé ». 174 Cf. Deleuze, LS, pp.80 a 81; orig. pp.96 a 97. 175 Deleuze, LS, p.1; orig., p.9: « Le paradoxe est l’affirmation des deux sens à la fois ». 176 Deleuze, LS, p.1 (grifo nosso); orig. p.9 : «C’est en même temps qu’elle le devient ».
62
maior do que era e menor do que se torna. Mas não exprime o seu Ser, pois não é
concomitantemente que ela é um e outro; se assim fosse, a proposição seria: “Alice
é maior e menor ao mesmo tempo”. Trata-se do devir de Alice, seu acontecimento,
que não concerne ao existente (corporal), mas ao extra-existente (incorporal), que
não é exatamente ser e sim extra-ser. “Tal é a simultaneidade de um devir cuja
propriedade é furtar-se ao presente” e “o devir não suporta a separação nem a
distinção do antes e do depois, do passado e do futuro”, esclarece Deleuze, pois
“pertence à essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo:
Alice não cresce sem ficar menor e inversamente”177.
Então, o paradoxo apresenta-se, ao mesmo tempo, como os dois sentidos do
devir, imprevisível, e também como o não-senso da identidade perdida,
irreconhecível. Deleuze enfatiza que o paradoxo não é o sentido oposto do bom
senso, mas os dois sentidos. Em outras palavras, “a potência do paradoxo não
consiste absolutamente em seguir a outra direção, mas em mostrar que o sentido
toma sempre os dois sentidos ao mesmo tempo, as duas direções ao mesmo tempo.
O contrário do bom senso não é o outro sentido; o outro sentido é somente a
recreação do espírito, sua iniciativa amena. Mas o paradoxo como paixão descobre
que não podemos separar as duas direções, que não podemos instaurar um sentido
único”. “É próprio do sentido não ter direção, não ter «bom sentido», mas sempre as
duas ao mesmo tempo, em um passado-futuro infinitamente subdividido e
alongado”178. Por conseguinte, ao avançar nos dois sentidos ao mesmo tempo, o
paradoxo impede que se exerçam os dois aspectos da doxa, bom senso e senso
177 Deleuze, LS, p.1; orig. p.9 : « Telle est la simultanéité d’un devenir dont le propre est
d’esquiver le présent » et « le devenir ne supporte pas la séparation ni la distinction de
l’avant et de l’après, du passé et du futur ». « Il appartient à l’essence du devenir d’aller, de
tirer dans les deux sens à la fois : Alice ne grandit pas sans rapetisser, et inversement ». 178 Deleuze, LS, pp.79 a 80 (grifos nossos); orig. p.94 a 95: « la puissance du paradoxe ne
consiste pas du tout à suivre l’autre direction, mais à montrer que le sens prend toujours les
deux sens à la fois, les deux directions à la fois. Le contraire du bon sens n’est pas l’autre
sens; l’autre sens, c’est seulement la récréation de l’esprit, son initiative amusante. Mais le
paradoxe comme passion découvre qu’on ne peut pas séparer deux directions, qu’on ne
peut pas instaurer un sens unique». « C’est le propre du sens de ne pas avoir de direction,
de ne pas avoir de «bon sens», mais toujours les deux à la fois, dans un passé-futur
infiniment subdivisé et allongé ».
63
comum, e, por decorrência, obsta toda a filosofia tradicional que se desenvolveu
tomando com base os pressupostos da identidade e do senso único.
Deleuze explica que, no contexto paradoxal, “a linguagem parece, de
qualquer maneira impossível, não tendo mais sujeito que se exprima ou se
manifeste nela, nem objeto a designar, nem classes e propriedades a significar
segundo uma ordem fixa”179. Ou seja, os paradoxos do sentido parecem arruinar os
modos proposicionais, impossibilitar o bom senso e o senso comum e cindir o
círculo da proposição, para que uma outra organização apareça. O paradoxo,
portanto, é o devir das coisas que afirma simultaneamente o duplo sentido do
tornar-se; vimos que ele se opõe conjuntamente ao bom senso, em que só há um
sentido determinável e ao senso comum, que remete a uma identidade fixa.
Entretanto, paradoxalmente, é nesse território de uma linguagem aparentemente
impossível que se opera a “doação de sentido” (donation de sens), que precede o
bom senso e o senso comum, pois é com a “paixão do paradoxo” (passion du
paradoxe) que a linguagem atinge sua mais alta potência180. Segundo Deleuze, a
infinita subdivisão do devir nos dois sentidos em simultâneo torna impossível a
medida e o exercício do bom senso, e a doação de sentido destrói o senso comum e
distribui as diferenças de tal maneira que nenhuma qualidade fixa ou tempo medido
se remetem a um objeto identificável ou reconhecível. Enfatiza ele: “na
singularidade dos paradoxos, nada começa ou acaba, tudo vai no sentido do futuro e
do passado ao mesmo tempo”181, sem se deter jamais num presente, portanto, sem
tomada de consciência. Assim, “não é de surpreender que o paradoxo seja a
potência do inconsciente: ele se passa sempre no entre-dois das consciências, contra
o bom senso ou às costas da consciência, contra o senso comum”182.
179 Deleuze, LS, p.81; orig. p.97 : « le langage semble de toute manière impossible, n’ayant
pas de sujet qui s’exprime ou se manifeste en lui, pas d’objet à désigner, pas de classes et
de propriétés à signifier suivant un ordre fixe ». 180 Cf. Deleuze, LS, p.81; orig. p.97. 181 Deleuze, LS, p.82; orig. p.98: « dans la singularité des paradoxes rien ne commence ou
ne finit, tout va dans le sens du futur et du passé à la fois ». 182 Deleuze, LS, p.82 (grifos nossos); orig. p.98: « Rien d’étonnant si le paradoxe est la
puissance de l’inconscient: il se passe toujours dans l’entre-deux des consciences, contre le
bon sens, ou derrière le dos de la conscience, contre le sens commun ».
64
Ao que parece, Deleuze demonstra, pois, que as filosofias da consciência, a
começar pela cartesiana, ocuparam-se apenas com o tempo do presente vivo (que
absorve o passado e o futuro) e restringiram-se às questões do bom senso e do senso
comum, capturadas pelo movimento centrípeto da circularidade da proposição. O
pensamento da diferença, ao contrário, consegue superar tais parâmetros na medida
em que opera com a potência do paradoxo e a situa no âmbito extraproposicional,
ou seja, numa superfície metafísica que, como veremos mais adiante, é o próprio
inconsciente, entendido como campo transcendental ou mente.
2.4.2) Autonomia do efeito = Diferença em si mesma
A relação causal estóica, como vimos, apresenta uma inusitada ruptura entre
causa e efeito que faz uma unidade de cada lado e possibilita a Deleuze pensar a
diferença em si mesma. Ao supor a causa corporal e o efeito incorporal, portanto,
com naturezas diferentes, uma peculiar autonomia é conferida ao efeito que opera
de maneira distinta de sua causa. No nosso entender, essa peculiaridade é assimilada
ao projeto deleuzeano de filosofia, já que o âmbito dos efeitos escapa à lógica do
Mesmo e se articula por uma lógica paradoxal. Assim, ao que tudo indica, há uma
verdadeira tradução entre o âmbito dos efeitos e o âmbito da diferença, e toda a
justificativa lógica e ontológica utilizada para o primeiro, pode também ser usada
para o segundo. Além disso, a autonomia conferida ao efeito parece ser a chave de
compreensão para entendermos a Diferença no Lógica do sentido: o efeito é
impassível ao mesmo tempo que dotado de poder genético, resulta da profundidade
dos corpos, mas está ligado a uma quase-causa ideal de superfície que o torna um
produzido produtor. Segundo Deleuze, a autonomia do efeito se dá, em primeiro
lugar, por sua diferença de natureza com relação à causa e, em segundo lugar, por
sua relação com a quase-causa: observando o primeiro aspecto, o efeito é
impassível e produzido, observando o segundo, ele é produtor. Contudo, resta saber
como o sentido, considerado efeito produzido por causas corporais, impassível e
estéril, pode também produzir os estados de coisas em que se encarna ao mesmo
tempo em que é produzido por estes estados de coisas, ações e paixões dos
corpos183. Será preciso explicar como o efeito desempenha esses dois papéis 183 Cf. Deleuze, LS, p.128; orig. p.149.
65
aparentemente opostos. Há, pois, a gênese estática que vai dos acontecimentos
(efeitos) às coisas (causas), porém, há também a gênese dinâmica que vai das coisas
aos acontecimentos, sem que uma implique na outra, embora haja, ao nosso ver,
uma reversibilidade entre elas, tal como na lógica do anel de Moebius (e da
Diferença), em que o dentro e fora são reversíveis, colocados na mesma superfície.
Vimos que “o acontecimento é submetido a uma dupla causalidade,
remetendo de um lado às misturas de corpos que são a sua causa, de outro lado, a
outros acontecimentos que são a sua quase-causa”184. Deleuze explica que os
corpos produzem efeitos incorporais, o sentido ou o acontecimento, não como
individuados, mas sim em sua profundidade indiferenciada, em sua pulsação
desmedida. “E esta profundidade age de uma maneira original: por seu poder de
organizar superfícies, de se envolver em superfícies”185. “Trata-se de uma gênese
dinâmica que vai diretamente dos estados de coisas aos acontecimentos, das
misturas às linhas puras, da profundidade à produção das superfícies”186. A
superfície é o produto das ações e paixões dos corpos, de suas misturas, mas, ela
mesma, sendo incorporal, não é ativa nem passiva, na realidade, é impassível,
impenetrável, estéril. A impassibilidade do sentido ou do acontecimento marca não
somente sua diferença com relação aos estados de coisas designados, mas, sob o
nome de neutralidade, marca também sua diferença relativamente às proposições
que o exprimem. Entendida como dobra extraída da proposição, ela é a suspensão
das modalidades ordinárias da proposição, é a ruptura e o desdobramento do círculo
da proposição. Sendo puro efeito, a superfície torna-se o lugar de uma quase-causa
ideal, que é uma espécie de tensão superficial fictícia, ou seja, uma energia
superficial sem ser da superfície mesma, mas que é devida a toda formação de
superfície. Deleuze esclarece que “há pois toda uma física das superfícies enquanto
efeitos das misturas em profundidade, que recolhe sem cessar as variações, as 184 Deleuze, LS, p.97; orig. p.115 : « l’événement est soumis à une double causalité,
renvoyant d’une part aux mélanges de corps qui en sont la cause, d’autre part à d’autres
événements qui en sont la quasi-cause ». 185 Deleuze, LS, p.129 (grifos nossos); orig. p.150 : « et cette profondeur agit d’une manière
originale : par son pouvoir d’organiser des surfaces, de s’envelopper dans des surfaces ». 186 Deleuze, LS, p.191 (grifos nossos); orig. p.217: « il s’agit d’une genèse dynamique qui
va directement des états de choses aux événements, des mélanges aux lignes pures, de la
profondeur à la production des surfaces ».
66
pulsações do universo inteiro e as envolve nestes limites móveis. Mas à física das
superfícies corresponde necessariamente uma superfície metafísica”. Ele elucida:
“chamaremos de superfície metafísica (campo transcendental) a fronteira que se
instaura entre os corpos tomados juntos e nos limites que os envolvem, de um lado e
as proposições quaisquer, de outro lado”187.
Pelo que se afigura, podemos abordar a superfície de duas maneiras. Por um
lado, como efeito incorporal dos corpos, ela apresenta uma física própria às
superfícies, resultado do poder de organização (ou desorganização) da profundidade
dos corpos. Por outro lado, também é tida como fronteira incorporal entre os corpos
(ou as coisas) e a linguagem (ou as proposições) que, paradoxalmente, foi tornada
possível pelo próprio sentido que a extraiu dos ruídos corporais. A superfície entre
as coisas e as proposições é chamada de superfície metafísica ou campo
transcendental. É por isso que Deleuze afirmará que o campo transcendental não
possui nenhum elemento de individuação ou de pessoa, nenhum ego ou consciência:
entendido dessa maneira, ele só pode abrigar singularidades impessoais e pré-
individuais que preside a gênese do indivíduo e da pessoa, constituídos no campo
empírico. Diz ele: “de todas estas maneiras, a superfície é o campo transcendental,
ele próprio, e o lugar do sentido ou da expressão. O sentido é o que se forma e se
desdobra na superfície”188.
Segundo Deleuze, o indivíduo deriva daí para fora do campo transcendental.
Habitado por singularidades nômades, impessoais e pré-individuais, ele é formado
de uma topologia de superfície, que constitui a primeira etapa da gênese estática
ontológica com a exteriorização ou efetuação do indivíduo a partir dessas
singularidades pré-individuais. Ele observa que o complexo indivíduo-mundo-
187 Deleuze, LS, p.129 (itálicos e grifos nossos); orig. p.150: « il y a donc toute une
physique des surfaces en tant qu’effet des mélanges en profondeur, qui recueille sans cesse
les variations, les pulsations de l’univers entier, et les enveloppe dans ces limites mobiles.
Mais à la physique des surfaces correspond nécessairement une surface métaphysique. On
appellera surface métaphysique (champ transcendantal) la frontière qui s’instaure entre les
corps pris ensemble et dans les limites qui les enveloppent, d’un côté, et les propositions
quelconques, d’un autre côté ». 188 Deleuze, LS, pp.129 a 130; orig. p.151: « de toutes ces façons la surface est le champ
transcendantal lui-même, et le lieu du sens ou de l’expression. Le sens, c’est ce qui se
forme et se déploie à la surface ».
67
interindividualidade define o nível inicial de efetuação pela perspectiva da gênese
estática. “Nesse primeiro nível, singularidades se efetuam, ao mesmo tempo, em um
mundo e nos indivíduos que fazem parte deste mundo”. E “efetuar-se é também ser
expresso” 189.
A segunda etapa da gênese estática ontológica é a resposta à questão: o que é
que dá ao mundo um sentido de transcendência objetiva, distinta da “transcendência
imanente” do primeiro nível? Ou o que é que no Ego ultrapassa a mônada, suas
pertinências e seus predicados? Deleuze responde que “é somente quando alguma
coisa é identificada entre séries divergentes, entre mundos incompossíveis, que um
objeto = X aparece, transcendendo os mundos individuados ao mesmo tempo em
que o Ego que o pensa transcende os indivíduos mundanos, dando desde então ao
mundo um novo valor em face do novo valor do sujeito que se funda”190. Assim
sendo, complementa ele, o “indivíduo e a pessoa, o bom senso e o senso comum são
produzidos pela gênese passiva, mas a partir do sentido e do não-senso que não lhes
parecem e dos quais vimos o jogo transcendental pré-individual e impessoal. Da
mesma forma o bom senso e o senso comum são minados pelo princípio de sua
produção e derrubados de dentro pelo paradoxo”191. Contudo, o ponto de partida
tanto para os indivíduos e as pessoas (mundo) como às proposições ontológicas e
lógicas é o campo transcendental formado pela superfície em que se desdobra o
sentido e que é habitado por singularidades impessoais e pré-individuais. Vimos que
o campo transcendental é a própria superfície metafísica que se estabelece entre as
189 Deleuze, LS, p.114 (grifos nossos); orig. p.134 : « a ce premier niveau, des singularités
s’effectuent à la fois dans un monde et dans les individus qui font partie de ce monde ».
« S’effectuer, c’est aussi être exprimé ». 190 Deleuze, LS, p.117 (grifos nossos); orig. p.137 : « c’est seulement lorsque quelque chose
est identifié entre séries divergentes, entre mondes incompossibles, qu’un objet = x
apparaît, transcendant les mondes individués en même temps que l’Ego qui le pense
transcende les individus mondains, donnant dès lors au monde une nouvelle valeur en face
de la nouvelle valeur du sujet qui se fonde ». 191 Deleuze, LS, p.120 (grifos nossos); orig. p.142 : « l’individu et la personne, le bon sens
et e sens commun sont produits par la gènese passive, mais à partir du sens et du non-sens
qui ne leur ressemblent pas, et dont nous avons vu le jeu transcendantal pré-individuel et
impersonnel. Aussi bien le bon sens et sens commun sont-ils minés par le principe de leur
production, et renversés du dedans par le paradoxe ».
68
séries divergentes afiguradas pelo conjunto dos corpos, de um lado, e pelas
proposições quaisquer, de outro lado.
A resposta deleuzeana resvala, pois, por esse “objeto = X” entre os mundos
incompossíveis de Leibniz, tidos como séries divergentes, que transcende os
mundos individuados192. Contudo, Deleuze esclarece que “os mundos
incompossíveis, apesar de sua incompossibilidade, comportam alguma coisa em
comum e de objetivamente comum que representa o signo ambíguo do elemento
genético com relação ao qual vários mundos aparecem como casos de solução para
um mesmo problema (todos os lances, resultados para um mesmo lance)”193. Esse
algo em comum pode ser expresso como qualquer coisa = X (aliquid), em que o X,
muito além de ser somente uma forma de identificação produzida, é sobretudo não-
senso produtor que anima o campo transcendental impessoal194, confere uma co-
presença entre sentido e não-senso e, por conta disso, contraria certos aspectos da
própria teoria leibniziana. Segundo Deleuze, o não-senso é co-presente ao sentido a
partir de “alguma coisa” comum a vários mundos. Ao que nos parece, é não-senso
produtor porque se impõe como distância entre os mundos ao mesmo tempo em que
doa sentido a eles, ou seja, às séries divergentes que articula. Se não fosse tal
elemento = X com seu poder genético, não haveria o mundo como transcendência
objetiva, tida em si mesma. Como poderia haver proposições sem a articulação do
sentido (ou sua doação) feita por esse não-senso produtor?
Portanto, os princípios do senso comum e do bom senso, que organizam o
mundo (Welt) dos predicados sintéticos e o mundo interior (Umwelt) dos predicados
analíticos195, respectivamente, são animados de dentro pelo paradoxo. E por mais
semelhantes que sejam duas séries, enfatiza ele, elas ressoam não por sua
semelhança, mas por sua diferença, “sendo a diferença cada vez regulada pelo
deslocamento relativo dos termos e este deslocamento sendo regulado pelo 192 Cf. Deleuze, LS, p.117; orig. p.137. 193 Deleuze, LS, p.118 (grifos nossos); orig. p.138 : « Les mondes incompossibles, malgré
leur incompossibilité comportent quelque chose de commun, et d’objectivement commun,
qui représente le sine ambigu de l’élément génétique par rapport auquel plusieurs mondes
apparaissent comme des cas de solution pour un même problème (tous les coups, des
résultats pour un même lancer) ». 194 Cf. Deleuze, LS, p.120; orig. p.141. 195 Cf. Deleuze, LS, pp.117 a 121; orig. pp.140 a 142.
69
deslocamento absoluto do objeto = X nas duas séries”196; a regulação entre elas
ocorre, pois, por síntese disjuntiva, ou seja, por alternativas não-excludentes.
Deleuze explica que “não nos encontramos mais diante de um mundo individuado
em séries convergentes, nem diante de indivíduos determinados que exprimem este
mundo. Encontramo-nos agora diante do ponto aleatório dos pontos singulares,
diante do signo ambíguo das singularidades, ou antes, diante do que representa este
signo e que vale para vários desses mundos e, no limite, para todos, para além de
suas divergências e dos indivíduos que os povoam. Há, pois, um «Adão vago», isto
é, vagabundo, nômade, um Adão = X, comum a vários mundos. Um Sextus = X, um
Fang = X. No limite, uma qualquer coisa = X comum a todos os mundos”197.
A gênese ontológica, que mostra a constituição do indivíduo e do mundo
bem como o objeto = X identificado entre eles, diz respeito às coisas. Contudo, é
possível abordar essa mesma gênese a partir das proposições. Deleuze esclarece que
os indivíduos são proposições analíticas infinitas e as pessoas, proposições
sintéticas finitas, sendo os indivíduos e as pessoas, em si mesmos, proposições
ontológicas. “Todavia”, elucida ele, “o terceiro elemento da gênese ontológica, isto
é, as classes múltiplas e as propriedades variáveis que dependem por sua vez das
pessoas, não se encarna em uma terceira proposição ela própria ontológica”198. Este
elemento tem como característica a passagem a uma outra ordem de proposição,
196 Deleuze, LS, pp.235 a 236; orig. p.266: « La différence étant chaque fois réglée par le
déplacement relatif des termes, et ce déplacement lui-même étant réglé par le déplacement
absolu de l’objet = x dans les deux séries ». 197 Deleuze, LS, p.118 (grifos nossos); orig. p.139 : « nous ne nous trouvons plus du tout
devant un monde individué constitué par des singularités déjà fixes et organisées en séries
convergentes, ni devant des individus déterminés qui expriment ce monde. Nous nous
trouvons maintenant devant le point aléatoire des points singuliers, devant le signe ambigu
des singularités, ou plutôt devant ce qui représente ce signe, et qui vaut pour plusieurs de
ces mondes, et à la limite pour tous, au-delà de leurs divergences et des individus qui les
peuplent. Il y a donc un « Adam vague », c’est-à-dire vagabond, nomade, un Adam = x,
commun à plusieurs mondes. Un Sextus = x, un Fang = x. A la limite, un quelque chose = x
commun à tous les mondes ». 198 Deleuze, LS, p.123; orig. p.143 : « toutefois, le troisième élément de genèse ontologique,
c’est-à-dire les classes multiples et les propriétés variables qui dépendent à leur tour des
personnes, ne s’incarne pas dans une troisième proposition elle-même ontologique ».
70
que constitui a condição ou a forma de possibilidade da proposição lógica em geral.
Na concepção deleuzeana, “os indivíduos e as pessoas desempenham agora o papel
não mais de proposições ontológicas, mas de instâncias materiais que efetuam a
possibilidade e que determinam na proposição lógica as relações necessárias à
existência do condicionado: a relação de designação como relação com o individual
(o mundo, o estado de coisas, o agregado, corpos individuados), a relação de
manifestação como relação com o pessoal, a forma de possibilidade definindo, de
seu lado, a relação de significação”199. Em outras palavras, o indivíduo corresponde
à designação, a pessoa à manifestação, e as classes múltiplas ou propriedades
variáveis à significação200. Isso mostra que o sentido, na sua organização de pontos
aleatórios e singulares, de séries e de deslocamentos, é duplamente gerador: ele
engendra a proposição lógica com suas dimensões determinadas (designação,
manifestação, significação) e também os correlatos objetivos desta proposição que
foram primeiramente produzidos como proposições ontológicas (o designado, o
manifestado, o significado)201.
Como se pode notar, a segunda causalidade, da quase-causa, é de suma
importância para o projeto deleuzeano porque torna a diferença pensável ao lidar
afirmativamente com o não-senso, além de validar a coexistência entre sentido e
não-senso bem como torna produtor o produzido, conferindo-lhe poder genético. Se
a diferença de natureza entre causa corporal e efeito incorporal outorga autonomia
ao efeito, a quase-causa garante essa autonomia porque o ‘prende’ à superfície.
Portanto, a segunda causalidade convém ao caráter incorporal da superfície, em que
o acontecimento-sentido relaciona-se a um elemento paradoxal que intervém como
não-senso ou ponto aleatório e que opera como quase-causa “assegurando” a
199 Deleuze, LS, p.123; orig. p.143 : « les individus et les personnes jouent maintenant le
rôle, non plus de propositions ontologiques, mais d’instances matérielles qui effectuent la
possibilité, et qui déterminent dans la proposition logique les rapports nécessaires à
l’existence du conditionné : le rapport de désignation comme rapport avec l’individuel (le
monde, l’état de choses, l’agrégat, les corps individués), le rapport de manifestation comme
rapport avec personnel – la forme de possibilité définissant de son côté le rapport de
signification ». 200 Cf. Deleuze, LS, p.124; orig. p.144. 201 Cf. Deleuze, LS, p.125; orig. p.145.
71
autonomia do efeito202. A quase-causa representa o estado de organização ou de
desorganização da superfície incorporal203. Sendo o sentido captado na sua relação
com a quase-causa que o produz e o distribui na superfície, pondera Deleuze, ele
herda, participa, mais ainda, envolve e possui a potência desta causa ideal que não é
nada fora de seu efeito. Esta o traga e mantém com ele uma relação imanente que
faz do produto alguma coisa de produtor, ao mesmo tempo em que é produzido,
embora o caráter essencial do sentido é o de ser produzido: jamais originário, mas
sempre causado, derivado. Contudo, esclarece ele, esta derivação do sentido,
relativamente à imanência da quase-causa, assegura-lhe um poder genético a ser
compreendido de duas formas: 1) em relação à própria proposição, na medida em
que o sentido expresso engendra as outras dimensões proposicionais (significação,
manifestação, designação), e 2) em relação “à maneira pela qual estas dimensões se
acham preenchidas e até mesmo com relação ao que preenche estas dimensões, a tal
ou tal grau ou de tal ou tal maneira: isto é, com relação aos estados de coisas
designadas, aos estados do sujeito manifestados, aos conceitos, propriedades e
classes significadas”204, que são os correlatos objetivos da proposição. Devido à sua
produtividade genética, o sentido transforma-se na grande descoberta da filosofia
transcendental, pois substitui e rompe com as velhas Essências metafísicas, embora,
primeiramente, em sua neutralidade impassível, ele tenha sido descoberto por uma
lógica empírica205.
Se a produção da superfície incorporal falhar, supõe Deleuze, os corpos
recaem em sua profundidade e as próprias palavras se tornam afecções corporais.
Mas, mantida a produção da superfície, o sentido se desdobra como efeito e
participa da quase-causa à qual ele está ligado, além de produzir a individuação e
toda a determinação dos corpos, e também a significação e a toda determinação das
202 Cf. Deleuze, LS, p.98 (grifos nossos); orig. pp.115 a 116. 203 Cf. Deleuze, LS, p.111; orig. p.131. 204 Deleuze, LS, pp.98 a 99 (grifos nossos); orig. p.117 : « par rapport à la manière dont ces
dimensions se trouvent remplies, et finalement même par rapport à ce qui remplit ces
dimensions, à tel ou tel degré et de telle ou telle manière : c’est-à-dire par rapport aux états
de choses désignés, aux états du sujet manifestés, aux concepts, propriétés et classes
signifiés ». 205 Cf. Deleuze, LS, p.108; orig. p.128.
72
proposições206. Nesse caso, há a vitória do cérebro sobre a boca que veremos mais
adiante. Deleuze observa que “a fronteira não é uma separação, mas o elemento de
uma articulação tal que o sentido se apresenta ao mesmo tempo como o que ocorre
aos corpos e o que insiste nas proposições”. “A dobra é a continuidade do avesso e
do direito, a arte de instaurar esta continuidade, de tal maneira que o sentido na
superfície se distribui dos dois lados ao mesmo tempo, como expresso subsistindo
nas proposições e como acontecimento sobrevindo aos estados de corpos”207.
Vimos que na estrutura da proposição lógica, cada uma das três relações é
primeira por sua vez, formando a ordenação terciária da linguagem, produzida pela
gênese ontológica e lógica. Ela depende do sentido que constitui por si mesmo uma
organização secundária, muito diferente e diversamente distribuída, que justifica a
distinção entre dois X: o X do elemento paradoxal informal sem identidade, que
falta à sua própria identidade no sentido e o X do objeto qualquer, com identidade,
que caracteriza a forma de identidade produzida no senso comum. Nesta estrutura
complexa da ordenação terciária, em que cada relação da proposição se apóia nas
outras em uma espécie de circularidade, o conjunto e cada uma de suas partes
podem se desmoronar se perderem esta complementaridade. “Não somente porque
o circuito da proposição lógica pode sempre ser desfeito, assim como se fende um
anel, para fazer aparecer o sentido organizado de outra forma, mas também e
sobretudo porque o sentido, tendo ele próprio uma fragilidade que pode fazê-lo
oscilar em direção ao não-senso, as relações da proposição lógica correm o risco de
perder toda medida e a significação, a manifestação, a designação se desmoronarem
no abismo indiferenciado de um sem-fundo que não comporta mais do que a
pulsação de um corpo monstruoso. Eis por que, para além da ordenação terciária da
206 Cf. Deleuze, LS, p.130; orig. p.151. 207 Deleuze, LS, p.130 (grifos nossos); orig. p.151 : « la frontière n’est pas une séparation,
mais l’élément d’une articulation telle que le sens se présente à la fois comme ce qui arrive
aux corps et ce qui insiste dans les propositions ». « La doublure est la continuité de
l’envers et de l’endroit, l’art d’instaurer cette continuité, de telle manière que le sens à la
surface se distribue des deux côtés à la fois, comme exprimé subsistant dans les
propositions et comme événement survenant aux états de corps ».
73
proposição e mesmo da organização secundária do sentido, pressentíamos terrível
ordem primária onde toda a linguagem involui”208.
Segundo Deleuze, a descoberta do elemento genético implica em transferir
as noções de verdadeiro e de falso das proposições para o problema que elas estão
supostamente encarregadas de resolver, mudando completamente de sentido nesta
transferência. “Ou antes é a categoria de sentido que substitui a de verdade, quando
o verdadeiro e o falso, eles próprios, qualificam o problema e não mais as
proposições que a ele respondem” 209. Assim sendo, elucida ele, o problema, nada
tem a ver com um estado subjetivo e provisório do conhecimento empírico; ao
contrário, ele leva a uma “objetividade ideal” (objectivité idéelle), constitutiva do
sentido, que funda, simultaneamente, o conhecimento e o conhecido, a proposição e
seus correlatos. O que define, então, o sentido como verdade do problema é a
relação do problema com suas condições. Na concepção deleuzeana, “a
determinação das condições implica de um lado um espaço de distribuição nômade
em que se repartem singularidades (Topos); de outro lado, um tempo de
decomposição pelo qual este espaço se subdivide em subespaços, cada um
sucessivamente definido pela adjunção de novos pontos que asseguram a
determinação progressiva e completa do domínio considerado (Aion)”210. O
208 Deleuze, LS, pp.124 a 125; orig. pp.144 a 145 : « non seulement parce que le circuit de
la proposition logique peut toujours être défait, comme on fend un anneau, pour faire
apparaître le sens autrement organisé, mais aussi et surtout parce que, le sens ayant lui-
même une fragilité qui peut le faire basculer dans le non-sens, les rapports de la proposition
logique risquent de perdre toute mesure, et la signification, la manifestation, la désignation
s’effonfrer dans l’abîme indifférencié d’un sans-fond qui ne comporte plus que la pulsation
d’un corps monstrueux. C’est pourquoi, au-delà de l’ordonnance tertiaire de la proposition
et même de l’organisation secondaire du sens, nous pressentions un terrible ordre primaire
où tout le lagange involue ». 209 Deleuze, LS, p.125 (grifos nossos); orig. p.145: « ou plutôt c’est la catégorie de sens qui
remplace celle de vérité, quand le vrai et le faux eux-mêmes qualifient le problème et non
plus les propositions qui y répondent ». 210 Deleuze, LS, p.125; orig. p.146: « la détermination des conditions implique d’une part
un espace de distribution nomade où se répartissent des singularités (Topos) ; d’autre part
un temps de décomposition par lequel cet espace se subdivise en sous-espaces, chacun
74
problema, embora dotado de positividade que corresponde à sua posição como tal,
independe do negativo e do afirmativo; e é a síntese do problema com suas
condições que engendra tanto as proposições, como as dimensões e seus correlatos,
e que constitui alguma coisa ideal ou de incondicionado, determinando ao mesmo
tempo a condição e o condicionado, ou seja, o domínio de resolubilidade e as
soluções neste domínio. Embora não exista fora das proposições (tal como o
sentido), o problema não é proposicional e nunca se assemelha às proposições que
ele subsume211.
Deleuze explica que “o sentido não é, pois, separável de um novo gênero de
paradoxos, que marca a presença do não-senso no sentido”212. Segundo ele, o
sentido não pertence a nenhuma altura ou profundidade, mas é efeito de superfície,
que é sua dimensão própria e da qual é inseparável213. “São os paradoxos da
subdivisão ao infinito, de um lado e, de outro, da repartição de singularidades”214,
implicando, ao nosso ver, em uma distinção entre atopon e topos, respectivamente.
Deleuze esclarece que cada termo da série só tem sentido por sua posição relativa a
todos os outros termos, posição esta que depende da posição absoluta de cada termo
em função da instância = X determinada como não-senso e que circula
incessantemente através das séries. É a circulação do não-senso nas séries que
produz o sentido, que volta ao significante e também ao significado. É dessa
maneira que ocorre a doação de sentido: pela circulação do não-senso das séries.
Assim sendo, “o sentido é sempre um efeito”215, um produto que se estende na
superfície e “é estritamente co-presente, coextensivo à sua própria causa e que
determina esta causa como causa imanente, inseparável de seus efeitos, puro nihil
successivement défini par l’adjonction de nouveaux points qui assurent la détermination
progressive et complète du domaine consideré (Aiôn) ». 211 Cf. Deleuze, LS, pp. 126, 127 e 128; orig. pp. 146, 147 e 148. 212 Deleuze, LS, p.73 (grifos nossos); orig. p.87 : « le sens n’est donc pas séparable d’un
nouveau genre de paradoxes, qui marquent la présence du non-sens dans le sens ». 213 Cf. Deleuze, LS, p.75; orig. p.90. 214 Deleuze, LS, p.73 (grifos nossos); orig. p.87 : « ce sont les paradoxes de la subdivision à
l’infini d’une part, et d’autre part de la répartition de singularités ». 215 Deleuze, LS, p.73; orig. p.87 : « le sens est toujours un effet ».
75
ou x fora de seus efeitos”216. Trata-se, pois, da descoberta do sentido como efeito
incorporal, sempre produzido pela circulação do elemento = x nas séries de termos
que percorre. Em outras palavras, o não-senso, ao mesmo tempo em que não tem
sentido, opõe-se à ausência de sentido operando a doação de sentido.
Além da doação de sentido, em que coexiste com o sentido, o não-senso
funciona também como quase-causa dos acontecimentos que os “prende” à
superfície de Aion, à fronteira, para que eles não sejam tragados pela causa
corporal, pelos corpos, pelas misturas do devir da profundidade, voltando a ser
ruídos corporais. É o não-senso que confere ao sentido uma autonomia na
superfície. Ao nosso ver, se fosse um ponto fixo e determinado, ao invés de
deslocado e aleatório, tal elemento seria identificável e serviria como Modelo para
classificar o que é ou não idêntico, além de nem poder ser chamado de não-senso.
Perder-se-ia assim os pressupostos aproveitados pelo pensamento da diferença para
que sentido e não-senso coexistam, justamente por não haver qualquer critério para
tê-los em oposição simples, dada a ‘falta’ do ponto fixo.
Considerando que o sentido é neutro e jamais o duplo das proposições que o
exprimem, bem como dos estados de coisas aos quais ele ocorre que são os
designados pelas proposições, só inferimos o sentido indiretamente se
permanecermos no círculo da proposição. Para captarmos o sentido diretamente, é
preciso quebrar o circuito, “em uma operação análoga àquela que fende e desdobra
o anel de Moebius”217, para vislumbrarmos o campo transcendental formado por
uma topologia de superfície em que o sentido se desdobra. Deleuze enfatiza que
“não podemos conceber a condição à imagem do condicionado; purgar o campo
transcendental de toda semelhança permanece a tarefa de uma filosofia que não
quer cair nas armadilhas da consciência ou do cogito”. Para atender a essa
exigência, pondera ele, “é preciso dispor de um incondicionado como síntese
216 Deleuze, LS, p.73; orig. p.88 : « est strictement coprésent, coextensif à sa propre cause,
et qui détermine cette cause comme cause immanente, inséparable de ses effets, pur nihil ou
x hors des effets eux-mêmes ». 217 Deleuze, LS, p.128 (grifos nossos); orig. p.149 : « dans une opération analogue à celle
qui fend et déploie l’anneau de Moebius ».
76
heterogênea da condição em uma figura autônoma, que reúne em si a neutralidade e
a potência genética”218.
Há, pois, dois momentos do sentido, impassibilidade e gênese, neutralidade
e produtividade, e um não pode passar sem o outro. É a mesma coisa que é captada
como efeito neutro de superfície e como princípio de produção fecundo
relativamente às modificações do ser e às modalidades da proposição, segundo o
desdobramento e a conjunção das duas causalidades e não conforme uma disjunção
da consciência219. Contudo, é a neutralidade, a impassibilidade do acontecimento e
sua indiferença às determinações do particular e do geral etc., que conferem um
caráter constante sem o qual “o acontecimento não teria verdade eterna e não se
distinguiria de suas efetuações temporais”220. Segundo Deleuze, “o não-senso opera
uma doação de sentido. Do ponto de vista do sentido, a lei regressiva não relaciona
mais ou menos os nomes de graus diferentes a classes ou a propriedades, mas os
reparte em séries heterogêneas de acontecimentos”221. Embora estas séries sejam
determinadas, uma como significante e a outra como significada, a distribuição do
sentido, em uma e na outra, apresenta-se completamente independente da relação de
significação. Ao que nos parece, é a doação de sentido que determina a gênese ao
efetivar-se nas séries em conjunto com o não-senso que preside esta doação, agindo
como quase-causa. “Em verdade”, pondera ele, “a doação do sentido a partir da
quase-causa imanente e a gênese estática que se segue para as outras dimensões da
proposição não podem se realizar senão em um campo transcendental que
responderia às condições que Sartre punha em seu artigo decisivo de 1937: um
218 Deleuze, LS, p.128 (grifos nossos); orig. p.149 : « on ne peut pas concevoir la condition
à l’image du conditionné ; purger le champ transcendantal de toute ressemblance reste la
tâche d’une philosophie qui ne veut pas tomber dans les pièges de la conscience ou du
cogito ». ; « il faut disposer d’un inconditionné comme synthèse hétérogène de la condition
dans une figure autonome, qui reúnit en soi la neutralité et la puissance génétique ». 219 Cf. Deleuze, LS, p.105; orig. p.124. 220 Deleuze, LS, p.103 (grifos nossos); orig. p.122: « l’événement n’aurait pas de vérité
éternelle et ne se distinguerait pas de ses effectuations temporelles ». 221 Deleuze, LS, p.72 (grifos nossos); orig. p.87: « le non-sens opère une donation de sens.
Mais ce n’est pas du tout de la même façon. Car, du point de vue du sens, la loi régressive
ne rapporte plus les noms de degrés différents à des classes ou à des propriétés, mais les
répartit dans les séries hétérogènes d’événements ».
77
campo transcendental impessoal não tendo a forma de uma consciência pessoal
sintética ou de uma identidade subjetiva – o sujeito ao contrário sendo sempre
constituído, nunca o fundamento pode se parecer com o que funda”222.
Contudo, Deleuze discorda de Sartre por conservar a consciência como meio
e manter a forma da pessoa e o ponto de vista da individuação, ao depender de uma
consciência que necessita de síntese de unificação e que só pode ocorrer pela forma
do Eu ou da pessoa e pelo ponto de vista da individualidade (Ego). Esclarece ele:
“procuramos determinar um campo transcendental impessoal e pré-individual, que
não se confunde, entretanto, com uma profundidade indiferenciada”223. “O que não
é nem individual nem pessoal, ao contrário, são as emissões de singularidades
enquanto se fazem sobre uma superfície inconsciente e gozam de um princípio
móvel imanente de auto-unificação por distribuição nômade, que se distingue
radicalmente das distribuições fixas e sedentárias como condições das sínteses de
consciência”224. O campo transcendental não é, portanto, abismo indiferenciado; ele
possui uma organização de superfície por singularidades, logo, antigeneralidades,
que são impessoais e pré-individuais e que contribuem para sua determinação e
potência genética225. Deleuze explica que, “longe de serem individuais ou pessoais,
as singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas: elas se repartem
em um «potencial» que não comporta por si mesmo nem Ego (Moi) individual, nem
222 Deleuze, LS, pp.101 a 102; orig. p.120: « en verité, la gènese statique qui s’ensuit pour
les autres dimensions de la proposition ne peuvent se faire que dans un champ
transcendantal qui répondrait aux conditions que Sartre posait dans son article décisif de
1937 : un champ transcendantal impersonnel, n’ayant pas la forme d’une conscience
personelle synthétique ou d’une identité subjective – le sujet au contraire étant toujours
constitué ». 223 Deleuze, LS, p.105; orig. p.124 : « nous cherchons à déterminer un champ
transcendantal impersonnel et pré-individuel, qui ne resemble pas aux champs empiriques
correspondants et qui ne se confond pas pourtant avec une profondeur indifférenciée ». 224 Deleuze, LS, p.105 (grifos nossos); orig. pp.124 a 125: « ce qui n’est ni individuel ni
personnel, au contraire, ce sont les émissions de singularités en tant qu’elles se font sur une
surface inconsciente et qu’elles jouissent d’une principe mobile immanent d’auto-
unification par distribution nomade, qui se distingue radicalement des distributions fixes et
sédentaires comme conditions des synthèses de conscience ». 225 Cf. Deleuze, LS, p.102; orig. p.121.
78
Eu (Je) pessoal, mas que os produz atualizando-se, efetuando-se, as figuras desta
atualização não se parecendo em nada ao potencial efetuado”. E complementa: “é
somente uma teoria dos pontos singulares que se acha apta a ultrapassar a síntese da
pessoa e a análise do indivíduo tais como elas são (ou se fazem) na consciência” 226.
Na concepção deleuzeana, só vislumbramos o campo transcendental da diferença
quando suposto habitado por singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-
individuais, enfim, por diferentes. Mas, falta responder a uma questão: como ocorre
a articulação do pensamento ou como o cérebro se põe a pensar?
2.4.3) Cérebro versus boca
O paradoxo é uma espécie de violência contra o próprio pensamento que, no
entanto, nos leva a pensar. Para Bento Prado Júnior, somente quando provocados
pela vida ou pelo mundo que pensamos e “esse tipo de violência requer uma
resposta que é um tipo de « clínica de si próprio »”227. Essa violência que nos leva a
pensar, pondera Júlia Almeida, é o fora, o desconhecido, “um estrangeirismo
absoluto em que o pensamento só pensa aquilo que ele não conhece”228. Na
realidade, argúe Luiz Orlandi, “há uma tensão entre um paradoxo, aquele que
consiste em instalar-se construtivamente num plano de imanência, e uma
motivação, aquela que consiste na tendência de liberar o próprio pensamento no
sentido da liberação das diferenças internas daquilo que dá o que pensar”229. Mas 226 Deleuze, LS, pp.105 a 106 (grifos nossos); orig. p.125 : « loin que les singularités soient
individuelles ou personnelles, elles président à la genèse des individus et des personnelles,
elles se répartissent dans un «potentiel» qui ne comporte par lui-même ni Moi ni Je, mais
qui les produit en s’actualisant, en s’effectuant, les figures de cetter actualisation ne
ressemblant pas du tout au potentiel effectué. C’est seulement une théorie du points
singuliers qui se trouve apte à dépasser la synthèse de la personne et l’analyse de l’individu
telles qu’elles sont (ou se font) dans la conscience ». « Quand s’ouvre le monde fourmillant
des singularités anonymes et nomades, impersonnelles, pré-indivduelles, nous foulons enfin
le champ du trancendantal ». 227 Prado, The plane of immanence and life, p.23 (tradução nossa): “this kind of violence
requires an answer which is a kind of “clinic of the self”. 228 Almeida, Júlia, EDL, p.185. 229 Orlandi, Luiz B.L., Linhas de ação da diferença, p.55.
79
pensar paradoxalmente também é nos colocar fora do jugo da representação e na
imanência da diferença. Segundo Deleuze, somente ao se deparar com seu pathos,
ou seja, com o caráter paradoxal que lhe é inerente, a filosofia consegue pensar a
diferença em si mesma, sem cair no abismo indiferenciado ou transformá-la em
não-ser. E como definir a não ser como paradoxal os seguintes aspectos do sentido:
avança simultaneamente nos dois sentidos, torna possível a linguagem, embora não
sobreviva sem ela, sobrevém às coisas e insiste nas proposições, mas não lhes
pertence, é efeito incorporal de natureza diferente de sua causa corporal, é
produzido, mas herda o caráter produtor na relação com a quase-causa de superfície,
portanto, é impassível, mas também detém poder genético. A fronteira, concebida
dessa maneira, impede que a linguagem “caia” sobre as coisas e volte a ser ruído
corporal. É preciso, pois, pensar o limite das coisas, por paradoxos do sentido, para
que a instância da diferença apareça.
Na realidade, a lógica do sentido possibilita a “vitória” do cérebro sobre a
boca, ou seja, da linguagem sobre o ruído corporal. A boca deixa de emitir ruídos
(inerentes à profundidade dos corpos) e passa a falar, a produzir uma linguagem,
quando o pensamento ou a superfície metafísica (cérebro como indutor da
superfície incorporal) vence a boca, tida como órgão das profundidades. Essa
vitória do cérebro é animada pela lógica do sentido que nos permite falar em
fronteira entre as proposições e as coisas, que torna possível a própria linguagem.
Conforme Deleuze, o sentido assume o papel de um dos termos da dualidade
quando os consideramos na interioridade da linguagem, a saber, o expresso
(extraproposicional) que dualiza com o designado (modo da proposição) formando,
portanto, duas séries heterogêneas: designação (coisas, estados de coisas, qualidade,
comer) e expressão (sentido, acontecimento, falar). Então, tudo se reduz às funções
da boca, como defende Carroll: podemos tanto falar palavras (vitória do devir de
superfície ou do cérebro) quanto comer palavras (vitória do devir da profundidade
ou da boca). A dualidade resume-se a comer-falar.
Mas, como o pensamento se põe a pensar? Como o cérebro vence?
Paradoxalmente, responde Deleuze, a diferença é o que mais se opõe ao pensamento
e, no entanto, é o que nos força a pensar. Não há, então, segundo ele, uma
predisposição natural nossa para o pensamento tal como Aristóteles afirmava ao
entendê-lo como conhecimento. Dizia Aristóteles: “todos os homens, por natureza,
80
desejam conhecer”230; por isso, se poriam a pensar. Na realidade, a proposta
deleuzeana inverte radicalmente – e principalmente – Descartes devido ao
“equívoco” de sua pressuposição de que pensar seja um exercício natural de uma
faculdade dotada de boa natureza e boa vontade. “«Todo mundo» bem sabe”,
observa Deleuze, “que, de fato, os homens pensam raramente e o fazem mais sob
um choque do que no elã de um gosto”231. Então, a célebre frase cartesiana de que o
bom senso, tido uma potência de pensar, é a coisa melhor repartida entre os
homens, revela algo de direito, mas não de fato: “a boa natureza e a afinidade com o
verdadeiro pertenceriam, de direito, ao pensamento, qualquer que fosse a
dificuldade de traduzir o direito nos fatos ou de reencontrar o direito para além dos
fatos. O bom senso ou o senso comum naturais são, pois, tomados como a
determinação do pensamento puro”232.
Entretanto, Heidegger já afirmava que, enquanto se supor o pensamento
dotado de uma boa natureza e de uma boa vontade, submisso à forma de um senso
comum e de uma ratio, tal pensamento, paradoxalmente, nada pensa, pois está preso
à opinião, atado a uma possibilidade abstrata. Conforme Deleuze, cada faculdade,
inclusive o pensamento, não tem outra utilização a não ser involuntária, dado que o
uso voluntário encontra-se “a-fundado” no âmbito empírico. É possível dizer,
segundo ele, que o uso transcendente das faculdades é paradoxal, visto que seu
exercício não se pode dar sob a regra de um senso comum233: “o acordo das
faculdades só pode ser produzido como um «acordo discordante», pois cada uma só
comunica à outra a violência que a coloca em presença de sua diferença e de sua
divergência com todas”234. Essa é uma crítica direta a Kant, cujo sentido da filosofia
transcendental e de sua definição como consciência originária é garantido por uma
230 Aristóteles, M, livro I, 980a, p.36. 231 Deleuze, DR, p.220; orig. p.173: « « Tout le monde » sait bien qu’en fait les hommes
pensent rarement, et plutôt sous le coup d’un choc que dans l’élan d’un goût ». 232 Deleuze, DR, p.221; orig. p.173: « la bonne nature et l’affinité avec le vrai
appartiendraient à la pensée en droit, quelle que soit la difficulté de traduire le droit dans les
faits, ou de retrouver le droit par-delà les faits ». 233 Cf. Deleuze, DR, p.240; orig. pp.189 a 190. 234 Deleuze, DR, p.240; orig.DR, p.190: « L’accord des facultés ne peut-il être produit que
comme un accord discordant, puisque chacune ne communique à l’autre que la violence
qui la met en présence de sa différence et de sa divergence avec toutes ».
81
“cláusula”, que ordena que “as condições dos objetos reais do conhecimento devem
ser as mesmas que as condições do conhecimento”235, o que põe o pensamento a
pensar; caso contrário, os objetos teriam condições autônomas que poderiam
ressuscitar as Essências e o Ser divino da antiga metafísica. Então, a filosofia
transcendental funda-se numa instância originária de maneira contratual e pré-
estabelecida, que retém a forma pura da objetividade e também da consciência, e
constitui aquela a partir desta; é nessa instância originária que se funda a
consciência empírica e seus objetos236.
Ao “desnaturar” o transcendental e supô-lo como redobramento do empírico,
censura Deleuze, Kant deformou a imanência, colocando-a como contida no
transcendente, ou seja, no Eu, transformado em sujeito universal237. Para ele, a
filosofia transcendental clássica e a metafísica pecam por não conseguirem
conceber singularidades determináveis a não ser “já aprisionadas em um Ego
individual (Moi) supremo ou um Eu pessoal (Je) superior”238. Assim, a metafísica
determina um Eu Supremo e a filosofia transcendental concebe uma forma sintética
finita da Pessoa, sem vislumbrar o âmbito das singularidades impessoais e pré-
individuais239. Na concepção deleuzeana, como vimos, o campo transcendental é
constituído por singularidades nômades que não estão presas à individualidade fixa
do Ser infinito (a imutabilidade de Deus), nem nos limites do sujeito finito (as
limitações do conhecimento) e tampouco numa consciência absoluta, mas não é
abismo indiferenciado240. Destarte, Deleuze não aceita o campo transcendental
como consciência ou dotado de qualquer estrutura egológica porque isso significa
confundir o constituinte com o constituído, o fundante com o fundado, tal como o
faz o método transcendental. Ele denuncia que “o erro de todas as determinações do
transcendental como consciência é de conceber o transcendental à imagem e à
235 Deleuze, LS, p.108; orig. LS, p.128: « les conditions des objets réels de la connaissance
doivent être les mêmes que les conditions de la connaissance ». 236 Cf. Deleuze, LS, p.108; orig. LS, p.128. 237 Cf. Deleuze, IV in Philosophie nº 47, p.4. 238 Deleuze, LS, p.109; orig. LS, p.129: « dejà emprisonnées dans un Moi suprême ou un Je
supérieur ». 239 Cf. Deleuze, LS, p.110; orig. LS, p.129. 240 Cf. Deleuze, LS, p.110; orig. LS, p.130.
82
semelhança daquilo que está incumbido de fundar”241. A filosofia, em geral, opera
com apenas duas alternativas: conceber o transcendental originário, pertencente à
consciência constituinte ou entendê-lo como mero condicionamento transcendental,
a exemplo de Kant, renunciando à gênese ou à constituição. Essas alternativas,
esclarece Deleuze, nos coloca num “círculo vicioso” em que a condição remete ao
condicionado, do qual ela decalca ou copia a imagem242. Para ele, somente quando
as singularidades são supostas, que o transcendental é vislumbrado.
Outro “engano” de Kant, segundo Deleuze, é o de supor uma harmonia entre
as faculdades que as confina no domínio do senso comum, pois elas se atêm apenas
ao que é apreensível no empírico, mas não ao que lhe é inapreensível. Todavia, na
concepção deleuzeana, o que é inapreensível empiricamente, pode ser apreendido
pelo exercício transcendente ou pela forma transcendental de uma faculdade.
Transcendente é um ato direcionado ao mundo no sentido de apreendê-lo, portanto,
não quer dizer um ato da faculdade em direção a objetos fora do mundo. Deleuze
propõe uma inversão do kantismo, em que o exercício transcendente, não sendo um
decalque do empírico, libera-se à apreensão do inapreensível do ponto de vista do
senso comum, posto que o exercício empírico, ao contrário, “mede o uso empírico
de todas as faculdades de acordo com o que cabe a cada uma sob a forma de sua
colaboração”243. Para ele, a forma transcendental de uma faculdade realiza “seu
exercício disjunto, superior ou transcendente”244 e “apreende no mundo o que a
concerne exclusivamente e que a faz nascer para o mundo”245.
Faltou a Kant, segundo Deleuze, vislumbrar um “empirismo propriamente
transcendental”246 que, paradoxalmente, permite apreender o inapreensível
241 Deleuze, LS, p.108; orig. LS, p.128: « le tort de toutes les déterminations du
transcendantal comme conscience, c’est de concevoir le transcendantal à l’image et à la
ressemblance de ce qu’il est censé fonder ». 242 Cf. Deleuze, LS, p.108; orig. LS, p.128. 243 Deleuze, DR, p.236; orig. DR, p.186: « mesure l’usage empirique de toutes les facultés
d’après ce qui revient à chacune sous la forme de leur collaboration ». 244 Deleuze, DR, p.236; orig.DR, p.186: « son exercice disjoint, supérieur ou transcendant ». 245 Deleuze, DR, p.236; orig. DR, p.186: « saisit dans le monde ce qui la concerne
exclusivement, et qui la fait naître au monde ». 246 Cf. Loturco, Valéria, O empirismo transcendental na filosofia de Gilles Deleuze
(dissertação de mestrado), passim.
83
empiricamente. Deve-se evitar, portanto, o “erro” kantiano que copiou o
transcendental das figuras do empírico, em acordo com o senso comum. Para ele, “o
empirismo transcendental é o único meio de não decalcar o transcendental sobre as
figuras do empírico”247. E acrescenta: “o transcendental está sujeito a um
empirismo superior, único capaz de explorar seu domínio e suas regiões, pois,
contrariamente ao que acreditava Kant, ele não pode ser induzido das formas
empíricas ordinárias tais como elas aparecem sob a determinação do senso
comum”248. A determinação das faculdades pelo senso comum ou bom senso é
inapropriada porque o transcendental detém uma potência paradoxal. No entender
deleuzeano, entre as faculdades só pode haver, paradoxalmente, um acordo
discordante, uma desarmonia, pois “cada uma só comunica à outra a violência que a
coloca em presença de sua diferença e de sua divergência com todas”249. O uso
transcendente das faculdades, por conseguinte, é paradoxal, tendo em vista que seu
exercício está além-da-doxa e não se dá sob a regra de um senso comum (ou da
doxa).
Considerar a filosofia como sendo paradoxal permite a Deleuze inverter o
kantismo em que o entendimento preside a harmonia das faculdades conforme o
interesse especulativo da razão250. Para Deleuze, a paixão (ou o paradoxo) como
diferença no âmago das faculdades provoca seu total desacordo ou desarmonia
entre elas. Há, pois, uma tríplice violência que leva à descoberta da paixão, ou seja,
da potência própria da diferença e da repetição251, a saber, “violência daquilo que a
força exercer-se, daquilo que ela é forçada a apreender e daquilo que ela tem o
poder de apreender, todavia também o inapreensível (do ponto de vista do exercício
empírico). Tríplice limite da última potência. Cada faculdade descobre, então, a
247 Deleuze, DR, p.236; orig. DR, p.187: « l’empirisme transcendantal est au contraire le
seul moyen de ne pas décalquer le transcendantal sur les figures de l’empirique ». 248 Deleuze, DR, p.236; orig. DR, p.186: « le transcendantal pour son compte est justiciable
d’un empirisme supérieur, seul capable d’en explorer le domaine et les régions, puisque,
contrairement à ce que croyait Kant, il ne peut pas être induit des formes empiriques
ordinaires telles qu’elles apparaissent sous la détermination du sens commun ». 249 Deleuze, DR, p.240; orig. DR, p.190: « chacune ne communique à l’autre que la
violence qui la met en présence de sa différence et de sa divergence avec toutes ». 250 Cf. Deleuze, FCK, p.30; orig. PCK, p.36. 251 Cf. Deleuze, DR, p.236; orig. DR, p.186.
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paixão que lhe é própria, isto é, sua diferença radical e sua eterna repetição, seu
elemento diferencial e repetidor”252. Isso justifica também o caráter paradoxal do
sentido que se desdobra na superfície do campo transcendental e se distingue tanto
dos corpos (sua causa) quanto da proposição (sua expressão) que opera pelo senso
comum e o bom senso. Ignorar isso é perder o essencial: “ a gênese do ato de
pensar, o uso das faculdades”253.
Para Deleuze, o paradoxo desempenha um duplo papel: “subjetivamente, o
paradoxo quebra o exercício comum e leva cada faculdade diante de seu próprio
limite, diante de seu incomparável, o pensamento diante do impensável que,
todavia, só ele pode pensar, a memória diante do esquecimento, que é também seu
imemorial, a sensibilidade diante do insensível, que se confunde com seu
intensivo... Mas, ao mesmo tempo, o paradoxo comunica às faculdades
despedaçadas esta relação que não é de bom senso, situando-as na linha vulcânica
que queima uma chama na outra, saltando de um limite a outro. E, objetivamente, o
paradoxo faz valer o elemento que não se deixa totalizar num conjunto comum, mas
também a diferença que não se deixa igualizar ou anular na direção de um bom
senso”254. Somos então forçados a sentir e pensar a diferença, pois sentimos alguma
coisa contrária às leis da natureza e pensamos algo contrário aos princípios do
pensamento. Deleuze indaga: “e mesmo que a produção da diferença seja, por
252 Deleuze, DR, p.236; orig. DR, p.186: “violence de ce qui la force à s’exercer, de ce
qu’elle est forcée de saisir et qu’elle est seule à pouvoir saisir, pourtant l’insaissable aussi
(du point de vue de l’exercice empirique). Triple limite de la dernière puissance. Chaque
faculté découvre alors la passion qui lui est propre, c’est-à-dire sa différence radicale et son
éternelle répétition, son élément différentiel et répétiteur”. 253 Deleuze, DR, p.258; orig. p.204: « la genèse de l’acte de penser, l’usage des facultés ». 254 Deleuze, DR, p.364 (grifos nossos); orig. p.293 : « Subjectivement le paradoxe brise
l’exercice commun et porte chaque faculté devant sa limite propre, devant son
incomparable, la pensée devant l’impensable qu’elle est pourtant seule à pouvoir penser, la
mémoire devant l’oubli qui est aussi son immémorial, la sensibilité devant l’insensible qui
se confond avec son intensif ... Mais en même temps, le paradoxe communique aux facultés
brisées ce rapport qui n’est pas de bon sens, les situant sur la ligne vulcanique qui fait
flamber l’une à l’étincelle de l’autre, sautant d’une limite à l’autre. Et objectivement, le
paradoxe fait valoir l’élément qui ne se laisse pas totaliser dans un ensemble commun, mais
aussi la différence qui ne se laisse pas égaliser ou annuler dans la direction d’un bon sens».
85
definição, «inexplicável», como evitar implicar o inexplicável no seio do próprio
pensamento? Como o impensável não estaria no âmago do próprio pensamento? E o
delírio, no âmago do bom senso?”255. Conforme ele, explicar a diferença significa
anulá-la num sistema de explicação, pois essencialmente ela é implicada, ou seja, “o
ser da diferença é a implicação”256. Assim, afirma Deleuze, nem o encontro da
sensibilidade com o que a força sentir se dá por afinidade, acordo ou amizade, mas
sim ao acaso, fortuitamente. Ou antes, o pensamento só pensa sob coação e força,
diante do que “dá a pensar”, do que existe para ser pensado, que é o impensável ou
o não-pensado e a sensibilidade revela-se como o ponto de partida na trajetória que
leva ao que existe para ser pensado257. Quando se abole toda semelhança possível
no pensamento, impedindo se falar em original e cópia, o pensamento torna-se uma
agressão e a diferença transforma-se em objeto de uma afirmação
correspondente258. Ele indaga: “não se tem no diferente” “o mais elevado
pensamento, mas que não se pode pensar?”259, ao contrário do idêntico que pensa-
se sem
ter o menor pensamento.
É, pois, dessa maneira paradoxal, por sua paixão e diferença, que o cérebro
“vence” a boca, que a superfície metafísica e incorporal torna possível o
pensamento e a linguagem. Essa é a vitória da linguagem sobre os ruídos dos
corpos, do falar sobre o comer, do devir de superfície (incorporal) sobre o devir das
profundidades corporais e, de maneira mais ampla, do pensamento da Diferença
sobre o pensamento da Identidade. Pensar uma fronteira entre as proposições e as
coisas, essa entidade extraproposicional, paradoxal e inexistente, inapreensível
empiricamente é, portanto, pensar a diferença em si mesma e abandonar os
preceitos da representação, circunscritos ao círculo interno da proposição,
orientados pelo bom senso e pelo senso comum. E isso significa recuperar o que, na
255 Deleuze, DR, p.363 ; orig. p.293 : « Et même si la production de la différence est par
définition «inexplicable», comment éviter d’impliquer l’inexplicable au sein de la pensée
même ? Comment l’impensable ne serait-il pas au cœur de la pensée ? Et le délire, au cœur
du bon sens ? ». 256 Deleuze, DR, p.364 ; orig. p.293 : « l’être de la différence est l’implication ». 257 Cf. Deleuze, DR, pp.237 a 239; orig.DR, pp.187 a 189. 258 Cf. Deleuze, DR, p. 17; orig. DR, p.2. 259 Deleuze, DR, p.362; orig. p.292: « N’a-t-on pas dans le différent », « la plus haute
pensée ; mais qu’on ne peut pas penser ?».
86
concepção deleuzeana, é propriamente filosófico. Conforme vimos, a Filosofia
manifesta-se não pelo bom senso, mas pelo paradoxo que é o seu pathos ou sua
paixão260, contrariando toda a linhagem do pensamento da representação desde
Aristóteles. Portanto, “é preciso que o pensamento pense a diferença, este
absolutamente diferente do pensamento que, todavia, faz pensar, lhe dá um
ensamento”261.
2.4.4) Inconsciente: âmbito da Diferença
p
Vimos que os paradoxos são exigidos do interior da proposição ou da
linguagem, já que a significação, um de seus termos ordinários, não dispõe de sua
condição de verdade, tão-somente encontrada na dimensão extraproposicional do
sentido (ou da diferença). Outrossim vimos que há uma justificativa apriorística de
sua aplicação ao ato mesmo de pensar, que leva ao abandono das ilusões cultivadas
pela filosofia tradicional. Por exemplo, a ilusão de entender o pensamento como um
ato simples e claro para si mesmo e os paradoxos como meras recreações de sua
iniciativa. Conforme Deleuze, o pensamento, longe de ser simples, claro e
totalmente consciente, “põe em jogo todas as potências do inconsciente e do não-
senso no inconsciente”262 e os paradoxos são “como a «Paixão do pensamento» («
la Passion de la pensée ») descobrindo o que não pode ser senão pensado, o que não
pode ser senão falado, que é também o inefável, o impensável, Vazio mental,
Aion”2
63.
Entender o paradoxo como força imanente e inconsciente do pensamento
permite a ele instaurar o âmbito da diferença no próprio campo transcendental, que
passa a ser uma espécie de inconsciente produtor, que abriga as singularidades (ou
260 Cf. Deleuze, DR, p.364; orig. p.293. 261 Deleuze, DR, p.363; orig. p.292 : « Il faut que la pensée pense la différence, cet
absolument différent de la pensée, qui pourtant donne à penser, lui donne une pensée». 262 Deleuze, LS, p.77 (grifos nossos); orig. p.92 : «en jeu toutes les puissances de
l’inconscient, et du non-sens dans l’inconscient ». 263 Deleuze, LS, p.77; orig. p.92 : « comme «la Passion de la pensée», découvrant ce qui ne
peut être que pensé, ce qui ne peut être que parlé, qui est aussi bien l’ineffable et
l’impensable, Vide mental, Aiôn ».
87
virtualidades) e não as individuações empíricas. O inconsciente é vislumbrado
como Aion, tempo vazio, porém, não inerte, já que é potência do inconsciente.
Considerando que o campo empírico é o mundo individuado, portanto, o cosmos, o
inconsciente pode ser considerado o caos transcendental, contudo, “o caos não é um
estado inerte ou estacionário, não é uma mistura ao acaso. O caos caotiza”264.
Deleuze esclarece que, “contrariamente ao que enuncia a trivial proposição da
consciência, o pensamento só pensa a partir de um inconsciente e pensa esse
inconsciente no exercício transcendente”265. A filosofia não pode começar numa
primeira proposição da consciência, o Cogito, porque “toda proposição da
consciência implica um inconsciente do pensamento puro, que constitui a esfera do
sentido
, onde se regressa ao infinito”266.
O inconsciente é o campo transcendental, é o âmbito extraproposicional
povoado por singularidades que presidem a gênese dos indivíduos267. Manter o Eu e
a consciência no campo transcendental seria o mesmo que admitir a representação
na origem, subordinando a diferença. Deleuze realiza, dessa maneira, uma filosofia
do inconsciente transcendental, que abandona problemas clássicos como a cisão
sujeito-objeto ao concentrar suas investigações num plano em que a pessoa e o
indivíduo não estão constituídos. Como vimos, ele define inovadoramente o
inconsciente (campo transcendental) como uma “superfície” (surface) ou uma
“topologia de superfície” (topologie de surface), povoada por singularidades
nômades, impessoais e pré-individuais268, que funciona como uma usina (produção)
e não um teatro (representação)269, provocando uma ruptura com o significado de
inconsciente conferido pela psicologia, como sendo as profundezas do ser,
264 Deleuze, OF, p.59 (grifos nossos); orig. QP, p.45: « Le chaos n’est pas un état inerte ou
stationnaire, ce n’est pas un mélange au hasard. Le chaos chaotise”. Com sua frase, « o caos
caotiza », ele diz o acontecimento tanto quanto Heidegger ao afirmar que “o nada nadifica”. 265 Deleuze, DR, p.322; orig. DR, p.258: “contrairement à ce qu’énonce la plate proposition
de la conscience, la pensée ne pense qu’à partir d’un inconscient, et pense cet inconscient
dans l’exercice transcendant.”. 266 Deleuze, DR, p.254 ; orig. p.202 : « toute proposition de la conscience implique un
inconscient de la pensée pure, qui constitue la sphère du sens où l’on régresse à l’infini ». 267 Cf. Deleuze, LS, p.105; orig. LS, p.125. 268 Cf. Deleuze, LS, p.113; orig. LS, p.133. 269 Cf. Deleuze (com Guattari), MP, p.7 (prefácio à edição brasileira e italiana).
88
constituído por energias que podem aflorar à consciência involuntariamente. Afirma
ele: “quando se abre o mundo pululante das singularidades anônimas e nômades,
pessim oais, pré-individuais, pisamos, afinal, o campo transcendental”270.
Deleuze admite que, antes dele, Espinosa já havia mergulhado a consciência
no inconsciente271. Espinosa propôs um inconsciente que é a própria imanência272 e
um modelo do corpo que representa a desvalorização da consciência em relação ao
pensamento, além de ser uma descoberta do inconsciente do pensamento273. No
escólio da proposição 2 da parte III da Ética, Espinosa discorre sobre o poder e a
natureza própria do corpo, como se um inconsciente do pensamento comandasse o
indivíduo na falta da determinação da consciência, a exemplo do que ocorre com o
sonâmbulo ou o embriagado, que realizam uma série de atos sem se darem conta
disso, por vezes, não conseguindo repeti-los em sã consciência, ou seja, quando
acordado ou sóbrio. Ele conclui que “ninguém, na verdade, até o presente,
determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o
presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o corpo
270 Deleuze, LS, p.106; orig. LS, p.125: “Quand s’ouvre le monde fourmillant des
singularités anonymes et nomades, impersonelles, pré-individuelles, nous foulons enfin le
conscience qui expriment l’effet des corps
champ du transcendantal.”. 271 Cf. Deleuze, LS, p.105; orig. LS, p.125. Para Deleuze, EeS, p.65, há, em Espinosa, “a
consciência mergulha por todo lado no inconsciente”. “Nós apenas somos conscientes das
idéias que temos, nas condições em que as temos. Escapam-nos essencialmente todas as
idéias que Deus tem, enquanto não constitui simplesmente o nosso espírito, mas também é
afetado por uma infinidade de outras idéias: assim, não temos consciência das idéias que
compõem a nossa alma, nem de nós mesmos e da nossa duração; não temos consciência
senão das idéias que exprimem o efeito dos corpos exteriores sobre o nosso, idéias de
afecções”. Orig. SPP, pp.82 a 83: “la conscience baigne de toutes parts dans
l’inconscient”.“Nous ne sommes conscients que des idées que nous avons, dans les
conditions où nous les avons. Nous échappent essentiellement toutes les idées que Dieu a,
en tant qu’il ne constitue pas simplement notre esprit mais est affecté d’une infinité d’autres
idées: ainsi, nous n’avons pas conscience des idées qui composent notre âme, ni de nous-
mêmes et de notre durée; nous n’avons
extérieurs sur le nôtre, idées d’affections”. 272 Cf. Deleuze, EeS, p.42; orig. SPP, p.43. 273 Cf. Deleuze, EeS, p.27; orig. SPP, p.29.
89
pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado pela mente”274.
Na concepção deleuzeana (de inspiração espinosana), “o corpo não é mais o
obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para
conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar,
para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém, obstinado,
teimoso, ele força a pensar, e força a pensar o que escapa ao pensamento, a vida.
Não mais se fará a vida comparecer perante as categorias do pensamento, lograr-se-
á o pensamento nas categorias da vida. As categorias da vida são precisamente as
atitudes do corpo, suas posturas. ‘Não sabemos sequer o que um corpo pode’: no
sono, na embriaguez, nos esforços e resistências. Pensar é aprender o que pode um
corpo não-pensante, sua capacidade, suas atitudes ou posturas”275. Ele conclui que
“esta é a fórmula da reversão filosófica: “«dê-me, portanto, um corpo»”276. Para
Deleuze, há no mundo algo que força a pensar que é objeto não de uma recognição,
mas sim de um encontro fundamental – e esse algo é sensível, só pode ser
sentido277.
No aforismo 354 de A gaia ciência, Friedrich Nietzsche (1844-1900)
apresenta um corpo que é um eu que pensa, sente, quer e age, de maneira ativa,
espontânea e inconsciente. Segundo ele, a consciência só é constituída a partir de
uma carência como reação, ou seja, quando o indivíduo, sentindo-se fraco e
ameaçado e querendo proteção e ajuda, necessita comunicar-se com o outro. Para
estabelecer a comunicação, ele precisa antes saber de si próprio o que pensa, o que
sente, o que quer, desenvolvendo assim uma espécie de espelho de si que é a
consciência. Ela é um redobramento: o pensamento do pensamento. Mas o primeiro
pensamento dá-se de forma espontânea, ativa, afirmativa, imediata e inconsciente.
A consciência, por seu turno, é de outra natureza: é força reativa, mediata e
negativa, pois ela nega a espontaneidade da força ativa278. Conforme Nietzsche, “o
problema da consciência (ou, mais precisamente, do tornar-se consciente) só nos
274 Espinosa, E III, P2, escólio, p.178 (grifos nossos). 275 Deleuze, IT, p. 227 (grifos nossos). 276 Deleuze, IT, p.227. 277 Cf. Deleuze, DR, p.231; orig. p.182. 278 Encontra-se plenamente justificada conceitualmente, portanto, a célebre frase
nietzscheana: protejam os fortes dos fracos.
90
aparece quando começamos a entender em que medida poderíamos passar sem
ela”279. E acrescenta: “meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz
parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele
é natureza comunitária e gregária”; “que nosso pensamento mesmo é continuamente
suplantado, digamos, pelo caráter da consciência”280.
Na análise deleuzeana, não sabemos o que pode um corpo, ou seja, de que
atividade é capaz, porque, para Nietzsche, a consciência é reativa. “A atividade das
forças necessariamente inconsciente, eis o que faz do corpo qualquer coisa de
superior a todas as reações, e em particular a esta reação do eu que se chama
consciência”281. Ele considera que o corpo é uma “grande razão” e o espírito, que é
o instrumento do corpo, sua “pequena razão”. O espírito, então, nada mais é do que
uma invenção do “corpo criador”, na tentativa de “criar para além de si” e perecer
ao desprezar o corpo282. Apropriando-se das afirmações espinosanas e
nietzscheanas sobre a potência do inconsciente, Deleuze a atribui à diferença,
definindo-a como sendo pensamento da pura afirmação, do imediato e da atividade.
À filosofia da consciência, ele relega os aspectos pejorativos da reação, mediação e
negação, que, por inspiração nietzscheana, alcançam também a noção de homem, a
cultura
, a ciência e todas as áreas do conhecimento oriundas dos dados da
consciência.
Assim, a filosofia da consciência pode ser comparada aos jogos conhecidos,
que respondem a um determinado número de princípios e podem ser objeto de uma
teoria. Eles têm regras predeterminadas, com hipóteses que, por um lado, dividem o
acaso em ganho e perda e que, por outro, organizam o exercício do jogo numa
pluralidade de jogadas, reais e numericamente distintas, e cujas conseqüências
dessas jogadas se alternam entre vitória ou derrota. Para Deleuze, eles são jogos
parciais porque não ocupam a totalidade da atividade dos homens e, mesmo
elevados ao absoluto, só retêm o acaso em certos pontos, estando o resto ao encargo
279 Nietzsche, GC, aforismo 354, p.247. 280 Nietzsche, GC, aforismo 354, p.249. 281 Deleuze, NF, p.65 (grifos nossos); orig. NP, p.47: « l’activité des forces nécessairement
inconsciente, voilà ce qui fait du corps quelque chose de supérieur à toutes les réactions, et
en particulier à cette réaction du moi qu’on appelle conscience ». 282 Nietzsche, AFZ, I, Dos desprezadores do corpo, p.52.
91
do desenvolvimento mecânico das conseqüências ou da destreza da arte da
causalidade. “Seja o homem que faz a aposta de Pascal, seja Deus que joga o xadrez
de Leibniz, o jogo não é tomado explicitamente como modelo a não ser porque ele
próprio tem modelos implícitos que não são jogos: modelo moral do Bem ou do
Melhor, modelo econômico das causas e dos efeitos, dos meios e dos fins”283. Não
obstante, na concepção deleuzeana, há um jogo ideal, desconhecido, puro, que
podemos aproximar do pensamento da diferença, em que não há regras
preexistentes, pois cada lance inventa suas regras, sendo o acaso afirmado por um
conjunto de jogadas que não cessa de ramificá-lo em cada uma delas,
qualitativamente distintas (e não numericamente), jogadas estas que são formas
qualitativas de um só e mesmo lançar.
Conforme Deleuze, os lances são sucessivos, todavia, simultâneos em
relação a um ponto aleatório que compreende o conjunto dos lances, um único
lançar que continuamente se desloca através de todas as séries, que muda sempre a
regra, que coordena e ramifica as séries correspondentes, insuflando o acaso em
toda a extensão de cada uma delas. “O único lançar é um caos, de que cada lance é
um fragmento”284, resume ele. Não mais hipóteses que se repartem num espaço
fechado de resultados fixos, mas sim distribuição nômade e não sedentária, ou seja,
resultados móveis que se repartem em espaço aberto do lançar único e não
repartido285. Portanto, é um jogo sem regras, sem vencedores ou vencidos. Mas este
jogo é real? Não, ele é um jogo ideal que se assume como a própria realidade do
pensamento. Portanto, nem homem nem Deus conseguem realizá-lo; ele só pode ser
pensado, pensado como não-senso. Ele “é o inconsciente do pensamento puro”.
“Pois só o pensamento pode afirmar todo o acaso, fazer do acaso um objeto de
283 Deleuze, LS, p.62; orig. p.75 : « que ce soit l’homme qui parie de Pascal, ou le Dieu qui
mplicites qui ne sont pas de jeux : modèle moral du Bien ou du
des effets, des moyens et des buts ».
eleuze, LS, p.62; orig. pp.75 a 76.
joue aux échecs de Leibniz, le jeu n’est pris explicitement comme modèle que parce qu’il a
lui-même des modèles i
Meilleur, modèle économique des causes et284 Deleuze, LS, p.62 (grifo nosso) ; orig. p.75 : « l’unique lancer est un chaos, dont chaque
coup est un fragment ». 285 Cf. D
92
afirmação”286. Deleuze esclarece que é um jogo reservado apenas ao pensamento e
à arte, pois só tem existência no pensamento e não tem outro resultado que a obra
de arte. Pelo jogo ideal, pensamento e arte são reais. Mesmo a origem das Idéias é
explicada como lances de dados, imperativos e questões do acaso, em vez de um
princípio apodítico; um ponto aleatório em que tudo se a-funda, em vez de um
fundamento sólido287.
É como a loteria em Babilônia, descrita por Jorge Luis Borges, que sugere
insuflar acaso em todas as etapas dessa loteria e não apenas em uma como prevê as
regras do jogo conhecido que só aceitam infundir periodicamente caos no cosmos.
Seria como se alguém, num jogo de roleta, assoprasse a bola lançada para insuflar
mais acaso, o que seria inadmissível nos jogos conhecidos e realizáveis, em que o
acaso é fixado em certos pontos de encontro como entre o movimento da roleta e o
da bola lançada, sem acolher novas intervenções288. Borges indaga: “se a loteria é
uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não
conviria que o acaso interviesse em todas as etapas do sorteio e não em uma só?”.
Acrescenta ele: “na realidade, o número de sorteios é infinito. Os ignorantes
dispõem que infinitos sorteios requerem um tempo infinito; na realidade, basta que
o tempo seja infinitamente subdivisível como ensina a famosa parábola da
Competição com a Tartaruga”289. Borges alude ao paradoxo de Zenão290 como
: « il est l’inconscient de la pensée pure ».
sard un objet d’affirmation, seule la pensée le
se ramifican en
A 26) discorre sobre o paradoxo de Zenão a
a disputa entre a Tartaruga e Aquiles: “o mais lento na
286 Deleuze, LS, p.63 (grifos nossos); orig. p.76
« Car affirmer tout le hasard, faire du ha
peut ». 287 Cf. Deleuze, DR, pp.322 a 323; orig. p.258. 288 Cf. Deleuze, LS, pp.63 a 64; orig. p.77. 289 Borges, La lotería en Babilonia, in Ficciones, pp.62 e 63 (tradução e grifos nossos): « Si
la lotería es una intensificacíon del azar, una periódica infusíon del caos en el cosmos ¿no
convendría que el azar interviniera en todas las etapas del sorteo y no en una sola?” “En
realidad el número de sorteos es infinito. Ninguna decisión es final, todas
otras. Los ignorantes suponen que infinitos sorteos requieren un tiempo infinito; en realidad
basta que el tiempo sea infinitamente subdivisible, como lo enseña la famosa parábola del
Certamen con a Tortuga”. Cf. também, Deleuze, LS, pp.63 a 64; orig. p.77. 290 Aristóteles, Física, VI, 9. 239 b 14 (DK 29
respeito do movimento, por meio d
93
também ao de Carroll291 que discorrem sobre uma questão fundamental: um tempo
que não necessita ser infinito, mas somente “infinitamente divisível”. Segundo
Deleuze, este não é o tempo medido (corporal) de Cronos que é infinito em sua
circularidade e limitado em seu presente vivo; todavia, é o tempo incorporal e vazio
de Aion que, em linha reta, se divide ilimitadamente em passado e futuro, furtando-
se sempre ao presente. Para Zenão, a divisão infinita torna o tempo também infinito
e denota a impossibilidade do movimento, se considerarmos que “o móvel
transportado deve chegar primeiro à metade antes de alcançar o termo”292, ou seja,
antes de qualquer esboço de movimento, entramos e não saímos mais da tortuosa e
infinita divisão e subdivisão. Entretanto, como afirma Deleuze, o ponto (aleatório,
o de superfície) em que recai a subdivisão sem espessura, não assinalável, não-sens
infinita ou ilimitada, o “instante”, é finito.
2.5) Não-senso de superfície
O não-senso é ponto aleatório e elemento paradoxal em perpétuo
deslocamento sobre a linha reta do Aion, que é deslocado em relação a si mesmo;
ele é perpetuum mobile. O não-senso percorre as séries, por exemplo, das
proposições e das coisas, por um lado, coordenando-as, fazendo-as convergir e, por
outro, ramificando-as, introduzindo em cada uma disjunções múltiplas. O ponto
aleatório falta sempre a seu próprio lugar, é atopon, sem lugar. Segundo Deleuze,
“ele é, ao mesmo tempo, palavra = X e coisa = X. Ele tem duas faces, já que
pertence simultaneamente às duas séries, mas que não se equilibram, não se juntam
não se emparelham nunca, uma vez que ele se acha sempre em desequilíbrio com
relação a si mesmo”293. Essa correlação e dissimetria estão expressas em pares de
termos como “excesso e falta” (excès et défaut), “casa vazia e objeto
corrida jamais será alcançado pelo mais rápido; pois o que persegue deve sempre começar
por atingir o ponto donde partiu o que foge”. 291 Veja nota de rodapé de nº 119. 292 Aristóteles, F, VI, 9. 239 b 9 (DK 29 A 25) e 2. 233 a 21 e Zenão de Eléia, in “Pré-
socráticos”, p.201. 293 Deleuze, LS, p.69; orig. p.83 : « il est à la fois mot = x et chose = x. Il a deux faces,
puisqu’il appartient simultanément aux deux séries, mais qui ne s’équilibrent, ne se joignent
ou ne s’apparient jamais, puisqu’il est toujours en déséquilibre par rapport à lui-même ».
94
supranumerário” (case vide et objet surnuméraire), “lugar sem ocupante e ocupante
sem lugar” (place sans occupant et occupant san place), “palavra esotérica e coisa
exotérica” (mot ésotérique et chose exotérique). Neste último caso, o ponto
aleatório é palavra = X em uma série, ao mesmo tempo que coisa = X em outra série
e, poder-se-ia acrescentar ação = X, posto que as séries se comunicam e ressoam.
Em suma, o elemento paradoxal é “não-senso” (non-sens) de superfície. Por que?
Deleuze explica que ele é, ao mesmo tempo, palavra e coisa, uma espécie de
palavra em branco que o designa (ou uma palavra esotérica que designa esta palavra
em branco) que tem também como propriedade exprimir a coisa. Portanto, na
concepção deleuzeana, “é uma palavra que designa exatamente o que exprime e
exprime o que designa. Ela exprime seu designado, assim como designa seu próprio
sentido. Em uma só e mesma vez, ela diz alguma coisa e diz o sentido do que diz:
ela diz seu próprio sentido”294. Considerando que a lei normal de todos os nomes
dotado
pretende-se uma superação da relação entre o verdadeiro e o falso da proposição.
Vimos no capítulo sobre o círculo da proposição (representação), que a condição
não pode ser concebida à imagem e semelhança do condicionado, como simples
s de sentido é não conseguir dizer ou designar seu próprio sentido a não ser
por meio de um outro nome (n1 n2 n3 ...), então, “o nome que diz seu próprio
sentido só pode ser um não-senso (Nn). O não-senso não faz senão uma só coisa
com a palavra «não-senso» e a palavra «não-senso» confunde-se com as palavras
que não têm sentido, isto é, as palavras convencionais de que nos servimos para
designá-lo”295.
Parece até contra-senso afirmar que o não-senso é o único termo a dizer seu
próprio sentido ou senso. Não se trata de um mero jogo de palavras, mas sim da
adoção de uma lógica paradoxal que abandona o modelo da Identidade e estabelece
uma relação entre sentido e não-senso como não-excludentes entre si, já que ela
294 Deleuze, LS, p.70 (grifos nossos); orig. p.84 : « c’est un mot qui désigne exactement ce
qu’il exprime, et qui exprime ce qu’il désigne. Il exprime son désigné, aussi bien qu’il
désigne son propre sens. En une seule et même fois, il dit quelque chose et dit le sens de ce
qu’il dit ; il dit son propre sens». 295 Deleuze, LS, p.70; orig. p.84 : « le nom qui dit son propre sens ne peut être que non-sens
(Nn). Le non-sens ne fait qu’un avec le mot «non-sens», et le mot «non-sens» ne fait qu’un
avec le mots qui n’ont pas de sens, c’est-à-dire les mots conventionnels dont on se sert pour
le désigner».
95
forma de possibilidade, mas precisa sim ter algo de incondicionado ou, em outras
palavras, a condição não pode ter com seu negativo uma relação do mesmo tipo que
o condicionado com o seu. Assim, afirma Deleuze, “a lógica do sentido vê-se
necessariamente determinada a colocar entre o sentido e o não-senso um tipo
original de relação intrínseca, um modo de co-presença”296.
Portanto, o não-senso, ao dizer ou designar o seu próprio sentido, coloca-os
em co-presença e realiza em si mesmo tanto uma “síntese regressiva” que, pela lei
normal, só é possível numa regressão infinita de nomes ou de proposições, como
também uma “síntese disjuntiva”. A palavra, denominada por Deleuze de “palavra-
valise” (mot-valise), também diz seu próprio sentido e é o princípio de uma
alternativa entre dois termos que é uma espécie de ‘disjunção conjuntiva’. Por
exemplo, a palavra-valise “fumioso” determina uma alternativa não excludente,
que, portanto, assume-se como síntese disjuntiva: fumante e furioso ou furioso e
fumante (frumieux = fumant-et-furieux ou furieux-et-fumant)297. Isso porque cada
parte virtual da palavra designa o sentido da outra ou exprime a outra parte que o
designa
princípios de não-contradição e de terceiro excluído, ao invés de dá-los já feitos”;
, como numa síntese por disjunção. Portanto, o não-senso opera por meio de
síntese regressiva e síntese disjuntiva, substituindo, pois, a lógica do terceiro
excluído.
Fora do contexto paradoxal do não-senso e, portanto, dentro dos parâmetros
da representação e da proposição, a lei regressiva e a lei disjuntiva, longe de serem
sínteses, recebem determinações de significação. Elas enunciam a propriedade ou o
termo com que se faz uma classificação que evita os paradoxos, as contradições e os
absurdos, destituídos de significado. O absurdo é considerado uma confusão de
níveis formais na síntese regressiva ou círculo vicioso na síntese disjuntiva. Deleuze
explica que “o interesse das determinações de significação é o de engendrar os
296 Deleuze, LS, p.71 (grifos nossos; orig. p.85 : « la logique du sens est nécessairement
déterminée à poser entre le sens et le non-sens un type original de rapport intrinsèque, un
mode de coprésence ». 297 Deleuze, LS, p.70 ; orig. p.84.
96
mas “os próprios paradoxos operam a gênese da contradição ou da inclusão nas
proposições desprovidas de significação”298.
Por conseguinte, o não-senso opera uma doação de sentido radicalmente
diferente de uma determinação de significação, pois no lugar de classes ou
propriedades, como vimos, há uma repartição em séries heterogêneas de
acontecimentos, a exemplo da série das proposições e da série das coisas. Embora
as séries sejam determinadas como significante e significada, observa ele, a doação
ou distribuição do sentido numa e noutra é completamente independente da relação
de significação, como vimos. Por isso que um termo desprovido de significação,
uma proposição absurda, não deixa de ter um sentido e que o sentido (ou o
acontecimento) independe das modalidades da proposição (designação,
manifestação, significação), dado o seu caráter paradoxal. Para Deleuze a presença
do não-senso no sentido demarca um novo gênero de paradoxos, denominado de
paradoxos do sentido, bem diferentes daqueles marcam a presença do não-senso na
significação. Trata-se dos paradoxos da subdivisão ao infinito (paradoxes de la
subdivision à l’infini) e da repartição de singularidades (répartition de
singularités)299. O sentido de cada termo da série é atribuído por sua posição
relativamente aos outros termos que, por sua vez, depende da posição absoluta de
cada termo em função da instância = X determinada como não-senso, que circula
perpetuamente pelas séries. A circulação do não-senso nas séries produz o sentido
bem como a doação de sentido. Logo, o sentido é sempre produzido, um efeito co-
presente e coextensivo à sua causa, determinada como imanente e inseparável de
seus efeitos300. Paradoxalmente, o não-senso, desprovido de sentido, faz a doação
de sentido, possibilitado pela coexistência entre não-senso e sentido.
Tanto quanto à filosofia transcendental, Deleuze atribui ao estruturalismo
esse novo deslocamento das fronteiras filosóficas, em que o sentido substitui em
filosofia às Essências. Segundo ele, o estruturalismo impede que o sentido seja uma
298 Deleuze, LS, p.72; orig. p.86 : « l’intérêt des déterminations de signification, c’est
d’engendrer les principes de non-contradiction e de tiers exclu, au lieu de se les donner tout
faits ; les paradoxes eux-mêmes opèrent la genèse de la contradiction ou de l’inclusion dans
les propositions dénuées de signification ». 299 Cf. Deleuze, LS, p.73 (grifos nossos); orig. p.87. 300 Cf. Deleuze, LS, p.73; orig. pp.87 a 88.
97
nova transcendência, novo avatar de Deus ou do homem (Deus-homem ou Homem-
Deus), ou seja, proíbe que se indague sobre um “sentido originário” da religião, se
está ou não em um Deus traído pelos homens ou em um homem alienado na
imagem divina. Hoje, declara ele, ressoa uma boa nova: “o sentido não é nunca
princípio ou origem, ele é produzido” 301. Nem altura e nem profundidade, porém,
efeito de superfície. Conforme tal concepção, a importância de Freud não se
justifica pela exploração da profundidade humana e do sentido originário, mas pela
descoberta da “maquinaria do inconsciente por meio do qual o sentido é produzido,
sempre produzido em função do não-senso”302. Segundo Deleuze, o não-senso é
uma “casa vazia”, que não é para o homem ou para Deus; as singularidades não são
da ordem do geral nem do individual e sequer do pessoal ou universal. È preciso se
instalar na fronteira, na superfície de Aion, âmbito este que independe das questões
da representação, só consideradas na interioridade dos modos proposicionais. Na
concepção deleuzeana, “fazer circular a casa vazia e fazer falar as singularidades
pré-individuais e não pessoais, em suma produzir o sentido, é a tarefa de hoje”303.
Ao nosso ver, o papel do sentido para o projeto deleuzeano ganha importância na
medida em que ele faz, por si mesmo, a crítica à metafísica e à filosofia da
consciência (extensível a todo pensamento da representação), bem como permite
introduzir questões próprias ao pensamento da diferença como não-senso
afirmat
ivo, o jogo entre opostos, que é substituído pela co-presença entre sentido e
não-senso, síntese disjuntiva (ou conjunção disjuntiva) etc. É claro que o não-senso,
como ponto aleatório sempre deslocado contribui decisivamente para a
compreensão da diferença.
O ponto aleatório separa ao mesmo tempo que articula duas séries
heterogêneas. Dotado de duas faces ímpares em perpétuo desequilíbrio, ele é,
simultaneamente, palavra e coisa. Mas é também o que promove a comunicação
entre os acontecimentos, ou seja, a relação entre diferentes, que também interessa a
301 Deleuze, LS, p.75 (grifos nossos); orig. pp.89 a 90 : « le sens n’est jamais principe ou
origine, il est produit ». 302 Deleuze, LS, p.75; orig. p.90 (grifos nossos): « machinerie de l’inconscient par lequel le
sens est produit, toujours produit en fonction du non-sens ». 303 Deleuze, LS, p.76; orig. p.91 : « faire circuler la case vide, et faire parler les singularités
pré-individualles et non personnelles, bref produire le sens, est la tâche aujourd’hui ».
98
Deleuze, transformando Aion (superfície) num único e mesmo Acontecimento. O
Acontecimento único, veremos, conferirá um caráter unívoco ao ser (ou extra-ser),
pois os acontecimentos que se comunicam são séries distintas (proposições e coisas;
acontecimentos diversos etc.) dotadas do mesmo sentido. Segundo Peter Pál
Pelbart, o acontecimento, no pensamento deleuzeano, “passa-se num tempo liso,
não pulsado, flutuante, aiônico”, “coextensivo aos devires, ao meio, ao
intempestivo, de certo modo, à cesura”304. Não tem, pois, nada a ver com o
subjetivo e o objetivo, o temporal e o imtemporal, o histórico e o eterno, ao
presente, passado e futuro, ao abstrato e ao concreto etc. Portanto, o ser da
e, inversamente, a Diferença é
Acontecimento. Ou antes: filosofia da Diferença = filosofia do Acontecimento.
Diferença é unívoco, é Acontecimento
2.6) Aion: campo transcendental
O sentido, como abordamos, tem uma neutralidade que é uma dobra, um
efeito de superfície, impassível e estéril, produzido por causas corporais ao mesmo
tempo que dispõe de um poder genético herdado da quase-causa305. Quase-causa
esta que é o não-senso de superfície, instante como ponto aleatório, sem fixidez,
elemento paradoxal de subdivisão simultânea e ilimitada da reta de Aion, inspirada
na divisão infinita exposta nos paradoxos de Zenão e de Carroll sobre o impasse
entre Aquiles e a tartaruga. Deleuze explica que “a individuação dos corpos, a
medida nas suas misturas”, “toda essa ordenação supõe o sentido e o campo neutro,
pré-individual e impessoal em que ele se desdobra”306. Todavia, como vimos, os
corpos e as misturas produzem sentido somente quando considerados em sua
profundidade indiferenciada que é dotada de um poder de organizar superfícies que
promove uma física das superfícies, enquanto efeito das misturas de profundidade,
que corresponde necessariamente uma superfície metafísica, ou campo
transcendental. Tal campo afigura-se, pois como a fronteira constituída entre todos
nce suppose le sens et le champ neutre, pré-
304 Pelbart, TNR, p.61. 305 Cf. Deleuze, LS, p.128 ; orig. p.149. 306 Deleuze, LS, p.129 (grifo nosso); orig. p.150 : « l’individuation dans les corps, la mesure
dans leurs mélanges », « toute cette ordonna
individuel et impersonnel où il se déploie ».
99
os corpos e as proposições quaisquer que separa tanto quanto articula a ponto do
sentido ocorrer aos corpos ao mesmo tempo que insiste nas proposições307. É ela
que possibilita a repartição distinta da linguagem e dos corpos, da profundidade
corporal e do continuum sonoro, assumindo-se como campo transcendental, ‘lugar’
do sentido ou da expressão. Essa concepção possibilita purgar o campo
transcendental da consciência e do cogito que concebem a condição à imagem do
condicionado, ambos substituídos pelo sentido, ao mesmo tempo, neutro e com
poder genético, incondicionado que opera por síntese heterogênea da condição308 –
e o incondicionado é paradoxalmente a condição para que algo seja dado309.
Finalmente, Deleuze chega onde queria: purgado de qualquer elemento de
individuação, da consciência e do cogito, o campo transcendental torna-se o âmbito
de Aion, pois é definido agora como vazio mental310, inconsciente produtor
(potência do inconsciente), campo neutro, pré-individual e impessoal311 e topologia
de superfície312. Essa tradução entre campo transcendental e Aion é de suma
importância, pois Aion “é a forma vazia do tempo que introduz, que constitui a
Diferença no pensamento, a partir da qual ele pensa, como diferença do
indeterminado e da determinação”313. A tal ‘purificação’ não conseguiu chegar
Descartes que não vislumbrou a “forma do determinável”, ou seja, uma forma pura
e vazia do tempo que leva o pensamento a pensar. Deleuze explica que o cogito
cartesiano é necessariamente um não-senso na medida em que é uma proposição
que pretende dizer o seu próprio sentido, mas é também um contra-senso,
considerando que a determinação Eu penso aspira incorrer de maneira imediata
sobre a existência indeterminada existo, sem, entretanto, apontar a forma sob a qual
307 Cf. Deleuze, LS, p.129 a 130; orig. p.149 a 151. 308 Cf. Deleuze, LS, p.128; orig. p.149. 309 Cf. Deleuze, DR, p.355 a p.414; orig. de p.286 a p.335; notadamente a p.355; orig.
p.286. 310 Cf. Deleuze, LS, p.77; orig. p.92 : « Vide mental, Aiôn ». 311 Cf. Deleuze, LS, p.129 (grifo nosso); orig. p.150 : « le champ neutre, pré-individuel et
impersonnel». 312 Cf. Deleuze, LS, p.113; orig. LS, p.133. 313 Deleuze, DR, p.435 (grifos nossos); orig. p.354 : « c’est la forme vide du temps qui
introduit, qui constitue la Différence dans la pensée, à partir de laquelle elle pense, comme
différence de l’indeterminé et de la détermination ».
100
o indeterminado é determinável. Assim, conclui ele, “o sujeito do cogito cartesiano
não pensa; ele tem apenas a possibilidade de pensar e se mantém estúpido no seio
dessa possibilidade. Falta-lhe a forma do determinável; não uma especificidade, não
uma forma específica informando uma matéria, não uma memória informando um
presente, mas a forma pura e vazia do tempo”314.
Sem a forma vazia do tempo (Aion) e sem a constituição da diferença,
pondera Deleuze, o pensamento não pensa, o que justifica a estultícia do sujeito
cartesiano. “É a Diferença que engendra pensar no pensamento, pois o pensamento
só pensa com a diferença, em torno desse ponto de a-fundamento. É a diferença, ou
a forma do determinável, que faz com que o pensamento funcione, isto é, que faz
com que funcione a máquina inteira do indeterminado e da determinação”315. Na
concepção deleuzeana, foi isso que o pensamento da representação não conseguiu
enxergar por ter associado, desde o início, a individuação à forma do Eu (e matéria
do eu) como princípio de recognição e de identificação para todo juízo de
individualidade que incida sobre as coisas. No campo representativo, ao parar de
dizer Eu, cessa também a individuação e, por decorrência, toda a singularidade
possível. Nesse contexto, conclui ele, o sem-fundo (a-fundado) é representado
como desprovido de diferença por não apresentar individualidade nem
singularidade. Com a diferença, entretanto, surge um mundo de “individuações
impess
simultaneamente para o passado e o futuro, sem ser jamais presente, é o que
oais” (individuations impersonnelles) e de “singularidades pré-individuais”
(singularités préindividuelles), em que o profundo e o sem-fundo fazem transbordar
a representação e emergir os simulacros316, que alcançam à superfície.
Esse tempo vazio, Aion, infinitamente subdivisível, que avança
314 Deleuze, DR, p.435; orig. pp.353 a 354 : « le sujet du cogito cartésien ne pense pas, il a
seulement la possibilité de penser, et se tient de stupide au sein de cette possibilité. Il lui
manque la forme du ddéterminable : non pas une spécificité, non pas une forme spécifique
informant une matière, non pas une mémoire informant un présent, mais la forme pure et
vide du temps ». 315 Deleuze, DR, p.435; orig. p.354 : « c’est la différence qui engendre penser dans la
pensée, car la pensée ne pense qu’avec la différence, autour de ce point d’effondement.
C’est la différence, ou la forme du déterminable, qui fait fonctionner la pensée, c’est-à-dire
la machine entière de l’indéterminé et de la détermination ». 316 Cf. Deleuze, DR, pp.435 a 436; orig. pp.354 a 355.
101
constitui a diferença, que determina o pensamento, que passa a pensar. A inspiração
deleuzeana, como vimos, vem do estoicismo, que entendeu o passado, o presente e
o futuro não como três modos de uma mesma temporalidade, porém, formando duas
formas temporais, Cronos e Aion.
2.6.1)
” ideal ou ponto matemático sem espessura. Em contrapartida, Cronos
(�����
Aion e Cronos: instante e agora
Vimos que a cisão causal promovida pelos Estóicos permitiu duas leituras
do tempo: das causas, que é o tempo medido e preenchido pelos corpos (Cronos) e
dos efeitos, que é o tempo vazio dos incorporais (Aion); ambas completas e
excludentes entre si, mas também complementares. “De um lado, o presente sempre
limitado, que mede a ação dos corpos como causas e o estado de suas misturas em
profundidade (Cronos); de outro, o passado e o futuro essencialmente ilimitados,
que recolhem à superfície os acontecimentos incorporais enquanto efeitos
(Aion)”317. Aion (����) é devir de superfície que avança em simultâneo para o
passado e para o futuro, subdividindo infinitamente seu presente enquanto
“instante
�) é tempo do presente vivo entendido como “agora” que absorve passado e
futuro.
Mas há um duplo Cronos, de inspiração platônica: além do bom Cronos (bon
Chronos), que é o tempo da medida, do presente, dos corpos limitados e dos
repousos, também há o mau Cronos (mauvais Chronos), que é o devir-louco
(devenir-fou) das profundidades, desmesurado, que ameaça de dentro a ordem dos
corpos qualificados, sensíveis e materiais. O mau Cronos é a subversão interna do
presente no tempo que faz coincidir passado e futuro, promovendo uma identidade
infinita dos contrários: passado e futuro, o demasiado e o insuficiente, o mais e o
menos, o ativo e o passivo, a causa e o efeito etc. Há sempre uma contrapartida de
Aion em relação à dimensão de Cronos dado que este é a causa e aquele, o efeito.
Cronos manifesta a ação dos corpos e a criação das qualidades corporais e Aion é o
317 Deleuze, LS, p.64; orig. p.77 : « d’une part le présent toujours limité, qui mesure l’action
des corps comme causes, et l’état de leurs mélanges en profondeur (Chronos) ; d’autre part
le passé et le futur essentiellement illimités, qui recueillent à la surface les événements
incorporels en tant qu’effets (Aiôn) ».
102
âmbito dos acontecimentos incorporais e dos atributos lógicos, elementos, portanto,
insensíveis, ou seja, que não são qualidades sensíveis; aquele é ligado
intrinse
o é incorporal senão esse
tempo-
camente aos corpos que o preenchem como causas e matérias, e este é
habitado por efeitos que nunca efetuam seu preenchimento.
Cronos é limitado como presente, mas infinito em seu encadeamento cíclico,
ao contrário de Aion que é ilimitado em seu avançar simultâneo para o futuro e para
o passado, porém, finito como instante. Há, pois, uma circularidade em Cronos
inseparável dos acidentes, enquanto em Aion, observa-se uma linha reta. Diógenes
Laércio relata que, para os Estóicos, o passado e o futuro são infinitos (Aion), mas o
presente é limitado (Cronos) e que o mundo (Cronos) é finito e o vazio (Aion),
infinito318. Igualmente, Victor Goldschmidt observa que os Estóicos consideravam
o passado e o futuro jamais como atuais e o presente como existente e atual, de
sorte que a teoria do tempo é análoga à de espaço. Tanto quanto o vazio, tido
infinito, e o lugar, considerado limitado, o tempo é concebido como infinito em
cada uma de suas extremidades, a saber, passado e futuro, e como limitado no que
concerne ao presente. Ele explica que Crisipo distinguiu duas acepções de tempo,
presente, de um lado, e passado e futuro, de outro, sem destinar-lhes uma
terminologia mais específica, negligência esta “reparada por Marco Aurélio em que
o tempo infinito, correspondente ao vazio, toma um nome preciso, este que se
costuma traduzir por: eternidade (����)”319. “Assim, nã
aion, tempo infinito em passado e em futuro, e esse instante matemático que,
ele mesmo, divide-se ao infinito em passado e futuro”320.
Para explicar a dualidade Cronos (bom e mau) – Aion, Deleuze recorre às
segunda e terceira hipóteses do diálogo Parmênides, em que Platão discorre sobre
tais temas. No nosso entender, a interpretação deleuzeana conferida às noções de
“agora” (maintenant) e “instante” (instant) revela uma outra reversão do platonismo
318 Láercio, Diógenes, VFI, livro VII, par. 98, p.1301. Veja também Goldschmidt, Victor,
Le système stoïcien et l’idée de temps, pp.36 a 37. 319 Goldschmidt, SS, p.39 (tradução nossa): « réparée chez Marc-Aurèle, chez qui le temps
infini, correspondant au vide, prend un nom précis, celui qu’on a coutume de traduire par :
éternité (����) ». Ele cita Marco Aurélio, IV, 3,7. 320 Goldschmidt, SS, p.40 (tradução nossa): « ainsi n’est incorporel que ce temps-aiôn,
temps infini en passé et en avenir, et cet instant mathématique qui, lui-même, se divise à
l’infini en passé et futur ».
103
realizada pelo próprio Platão, além daquela observada por Deleuze (e já elucidada)
no Sofista. Conforme tal análise, o reincidente Platão, em mais uma autotraição, em
outra auto-infidelidade, concebe o “instante” como elemento paradoxal ou não-
senso, perpetuamente deslocado, que não se reporta a nenhum Modelo de
Identidade e que nos dá subsídios para pensar a diferença em si mesma. Se
houvesse centro fixo ou modelo ou princípio primeiro, seria a lógica do Mesmo ou
da doxa (bom senso e senso comum), contudo, se trata da lógica da diferença que,
na análise deleuzeana, tem ligações intrínsecas com o paradoxo. A noção de
“agora”, por seu turno, serve a Deleuze como instrumento de crítica ao pensamento
subordinado à lógica do terceiro excluído, já que reduz tudo a um jogo entre
opostos.
Na concepção estóica, só o presente existe no tempo, ele o preenche, sendo o
passado e o futuro suas duas dimensões relativas. Há um vasto presente que absorve
o passado e o futuro, e o bom Cronos é, pois, um encaixamento, um enrolamento
circular de presentes relativos. O presente é o tempo corporal dado que mede a ação
dos corpos ou das causas, sendo o futuro e o passado o que resta de paixão em um
corpo. Pertence ao presente delimitar, ser o limite ou a medida da ação dos corpos,
mesmo quando considerada a unidade de todas as causas, a saber, o Cosmos.
Segundo Deleuze, o fato do presente ser um limite não impede que Cronos tenha
um movimento infinito circular que engloba todo o presente, ou seja, ele recomeça
e mede um novo período cósmico idêntico ao precedente, estabelecendo, como
veremos, o eterno retorno físico do mesmo.
O acaso é possível nesse vasto presente vivo graças à ação subterrânea do
mau Cronos. Com ele, há uma perturbação fundamental do presente, perceptível
não ao nível cósmico, mas nos corpos tomados local e parcialmente, “um fundo que
derruba e subverte toda medida, um devir-louco das profundidades que se furta ao
presente”321. Deleuze explica que o devir do fundo “é, pois, um mau Cronos que se
opõe ao presente vivo do bom Cronos”. “O devir puro e desmesurado das
qualidades ameaça de dentro a ordem dos corpos qualificados. Os corpos perderam
sua medida e não são mais do que simulacros. O passado e o futuro, como forças
desencadeadas, se vingam em um só e mesmo abismo que ameaça o presente e tudo
321 Deleuze, LS, p.168; orig. p.191: «un fond qui renverse et subvertit toute mesure, un
devenir-fou des profondeurs qui se dérobe au présent ».
104
o que existe”322. Vimos que o devir-louco do mau Cronos, ou seja, o simulacro da
profundidade, na filosofia platônica, é o que se furta à Idéia (ao Modelo) e o
presente vivo do bom Cronos, isto é, da medida, da cópia, é o que se submete a ela.
No fim da segunda hipótese em Parmênides, Platão define o devir
(��������), do mau Cronos, como dotado do poder de esquivar o presente, pois lhe
é próprio não ser presente. Todavia, ao tentar esquivar-se do presente, o devir da
profundidade se torna “agora” (���), sem conseguir saltar por cima dele. Isso
porque, esclarece Platão, o “agora” é intermédio entre o “era” e o “será” e no
proceder do antes ao depois (no tornar-se), passa necessariamente pelo agora, sem
poder saltá-lo323, ou seja, tudo o que devém não pode passar lateralmente ao agora e
sempre se detém nele324. Assim sendo, a subversão interna do presente no tempo só
pode ser expressa em termos de presente. Mas, se trata de um “presente terrificante”
(présent terrifiant), esclarece Deleuze, que é desmesurado, se esquiva e subverte o
outro presente, o “bom presente” (bon présent)325. Portanto, ao mesmo tempo em
que o devir-louco das profundidades (mau Cronos) ameaça de dentro o bom
Cronos, da medida corporal, ele não consegue vencer a irredutibilidade de seu
tempo presente, do agora, ponto de divisão de seu avanço simultâneo nos dois
sentidos (passado e futuro), que demarca uma identidade infinita dos contrários. O
ponto fixo dessa leitura do tempo é sempre o Mesmo: o presente que funciona como
o ponto de identidade dos contrários.
A circularidade de Cronos imprime um caráter infinito a esse processo
temporal em que o presente absorve ou contrai o passado e o futuro num grande
ciclo cósmico de contração e descontração. Portanto, sem a suposição de Aion,
tempo dos incorporais, apenas a lógica do Mesmo de Cronos prevaleceria. Com
Aion e o “instante” como ponto de subdivisão infinita, o mundo da diferença se
abre e uma nova lógica pode ser proposta, ou, como o próprio Deleuze afirma, “um 322 Deleuze, LS, pp.168 a 169 (grifo nosso); orig. p.192 : « est donc un mauvais Chronos,
qui s’oppose au présent vivant du bon Chronos ». « Le devenir pur et démesuré des qualités
menace du dedans l’ordre des corps qualifiés. Les corps ont perdu leur mesure et ne sont
plus que des simulacres. Le passé et le futur comme forces déchaînées prennent leur
revanche, en un seul et même abîme qui menace le présent et tout ce qui existe ». 323 Cf. Platão, P, 152 b. 324 Cf. Platão, P, 152 c. 325 Cf. Deleuze, LS, p.169; orig. p.192.
105
novo gênero de paradoxos” que permite a co-presença entre não-senso e sentido, o
que era inconcebível no campo da representação em que são opostos e excludentes
entre si. Daí a crucial importância para o pensamento da diferença da cisão causal
estóica que promove uma distinção de natureza entre causa e efeito e antevê a
dimensão incorporal. Sem tal cisão, não haveria como entender o âmbito de Aion,
dos efeitos (e da diferença) de maneira independente, em si mesmo.
Aion é o tempo vazio e, como tal, não pode existir mas insistir: sempre já
passado e ainda por vir, ele é a “verdade eterna do tempo” (verité éternelle du
temps)326. Em Aion, não é mais o futuro e o passado que subvertem o presente
existente, mas é sim o instante que perverte o presente em futuro e passado
insistentes327. Devir de superfície, Aion, tanto quanto o mau Cronos do devir da
profundidade, também se esquiva ao presente, explica Deleuze, mas com a potência
de um “instante” que se difere radicalmente do “agora” do bom Cronos. Enquanto
neste, o presente absorve o passado e o futuro, naquele, um futuro e um passado
dividem a cada instante o presente numa subdivisão infinita, nos dois sentidos ao
mesmo tempo. Ao contrário do “agora”, presente vivo no tempo, o instante
platônico é atopon328, atópico, instância paradoxal, que falta sempre a seu próprio
lugar.
Sendo atopon, sem lugar, sempre deslocado em relação a si mesmo, o
instante não pode ser considerado o ponto fixo de origem para o duplo avanço da
linha de Aion. Ele é sim ponto aleatório instantâneo e descentrado que extrai do
presente, bem como dos indivíduos e das pessoas que o ocupam, as singularidades
dobradamente projetadas, uma vez no futuro e outra no passado. O instante pode ser
assim suposto, de maneira paradoxal, pelo simples motivo de ser ele inexistente,
ideal, incorporal. Conforme a terceira hipótese platônica no diálogo Parmênides, o
instante (������) é o intermédio do movimento (��������) e da imobilidade
(�������), sem ser em nenhum tempo329, portanto, jamais se torna presente ou
agora. Considerando o instante como a expressão do uno (��), pode-se dizer,
segundo Platão, que é próprio do uno ser ilimitado, não ter princípio, nem meio e
326 Cf. Deleuze, LS, p.170; orig. p.194. 327 Cf. Deleuze, LS, p.170; orig. p.194. 328 Cf. Deleuze, LS, p.171, orig. p.195. 329 Cf. Platão, P, 156 d.
106
nem fim e não ter figura (não ser círculo nem reta), portanto, não pode ter partes
(senão o uno seria muitos) e nem estar em algum lugar, seja em outro seja em si
mesmo, já que não tem nem participa de figura nenhuma. Então, o uno é sempre
deslocado, nunca está no mesmo lugar: ele é atópico. Sem ser referência ou se
referir a algo, o uno é incapaz de ser mais moço ou mais velho ou mesmo coevo a si
próprio ou a outro. Ele é impassível no tempo. Outrossim o ser do uno não pode ser
idêntico ao uno, caso contrário, este não seria uno. Da mesma forma, o uno não é
idêntico a outro nem a si mesmo e igualmente não é diferente nem de si próprio
nem de outro – se assim fosse, ele seria em relação (em comparação) a algo, a
saber, outro uno, o que é impossível; ele seria, pois, redobrado e não um ou
único330. Assim é o uno, assim é o instante: paradoxal.
Quiçá Platão tenha chegado à conclusão de um perpétuo deslocamento e
falta de lugar do uno (instante), tendo em vista a aporia proposta por Zenão de Eléia
de que “se o lugar é alguma coisa, ele está em alguma coisa”, ou seja, como sugere
Aristóteles, “se todo ser está num lugar, é claro que haverá também um lugar do
lugar, e isto vai ao infinito”. Então, para Zenão, o lugar é dos seres e, por
decorrência, o não-lugar é dos não-seres (dos incorporais), logo, o uno (que não é
ser) é sem lugar, como define Platão. Por outro lado, tal qual conclui Aristóteles, o
lugar é próprio do corporal: “ninguém diria que saúde, coragem e outras coisas mil
estão num lugar” ; “ora, o limite do corpo é o onde do corpo; pois é o extremo”331.
Pelo que se afigura, com essa noção atópica (e atípica) de “instante”, o incorrigível
Platão, mais uma vez, trai a si próprio ao reverter o ideário platônico do pensamento
da Identidade e do Modelo fixo e possibilitar a instauração da Diferença,
descentrada por definição. Talvez tenha faltado a ele apenas afirmar que a
impossibilidade de o uno ou o instante ser idêntico tanto quanto diferente em
relação a algo de fixo não impede que o instante seja tido em si mesmo, como
diferença.
No nosso entender, considerar os aspectos paradoxais do “instante” é o
mesmo que estabelecer as bases conceituais necessárias para pensar a diferença em
si mesma. Em outras palavras: sendo atópico, descentrado, agênito, aleatório e
330 Cf. Platão, P, 137 c até 141 a. 331 Aristóteles, F, IV, 3. 210 b 22 (DK 29 A 24) e Zenão de Eléia, in “Pré-Socráticos”,
p.201.
107
paradoxal, o instante é a realização das premissas iniciais do pensamento
deleuzeano que tem na diferença sua chave de compreensão, porém, não seu
fundamento, pois se trata de uma filosofia a-fundada, em que fundar significa
realizar a lógica do Mesmo. Seu caráter aleatório é imprescindível porque caso
tivesse uma ordem, unidade ou única direção, não seria não-senso, mas bom senso
ou senso comum. Tanto quanto a noção platônica de instante, o pensamento sem
fundamento da diferença vira do avesso determinadas concepções filosóficas.
Então, retirar o fundo do pensamento (um Modelo ao qual se reportar), deslocá-lo, é
o mesmo que levar tudo à superfície (virar do avesso, ou antes, por no mesmo plano
verso e anverso), em que o diferente afirma-se enquanto diferente. Segundo
Deleuze, “fundar é determinar” e “o fundamento é a operação do logos ou da razão
suficiente”332, é a representação ou o Idêntico que pensa a diferença sob o princípio
do Mesmo e a condição da semelhança. Pelo contrário, a-fundar é projetar o
pensamento num profundo sem fundo (Ungrund)333; é sem referenciais, fixidez ou
bom sentido, cuja melhor tradução é a irredutível superfície.
Deleuze esclarece que “se a profundidade esquiva o presente, é com toda a
força de um «agora» que opõe seu presente tresloucado ao sábio presente da
medida; e se a superfície esquiva o presente, é com toda a potência de um
«instante» que distingue seu momento de todo presente assinalável sobre o qual cai
e recai a divisão”. E supondo o emergir do devir da profundidade, ele acrescenta:
“nada sobe à superfície sem mudar de natureza”334, posto que de causa se torna
efeito, de corporal transforma-se em incorporal, de circular vira retilíneo, ou seja, o
circuito se rompe. Platão define o círculo como aquilo cujo extremo está em
qualquer parte eqüidistante do centro e o retilíneo como isto em que o meio está
interposto aos dois extremos335. No nosso entender, o que Platão não consegue 332 Deleuze, DR, p.429 ; orig. p.349 : « fonder, c’est déterminer », « le fondement est
l’opération du logos ou de la raison suffisante ». 333 Cf. Deleuze, DR, p.367 ; orig. p.296. 334 Deleuze, LS, p.170 ; orig. p.193 (grifos nossos): « si la profondeur esquive le présent,
c’est avec toute la force d’un «maintenant» qui oppose son présent affolé au sage présent de
la mesure ; et si la surface esquive le présent, c’est de toute la puissance d’un «instant», qui
distingue son moment de tout présent assignable sur lequel porte et reporte la division ».
« Rien ne monte à la surface sans changer de nature ». 335 Cf. Platão, P, 137 d.
108
vislumbrar é a reversibilidade do círculo na reta, de Cronos em Aion, por meio de
uma cisão em sua superfície que deixa aparecer o incorporal onde só havia corpos
circularmente inclusos. Cisão significa o desprendimento das questões corporais
para se situar na superfície reta, ou seja, num âmbito alcançado apenas pelo
pensamento já que Aion é o campo transcendental. Outrossim faltou a Platão, em
nossa concepção, supor a reta avançando infinitamente na dupla direção, portanto,
sem extremos e, dessa maneira, também sem meio, já que dotada de extremidades
ilimitadas. Como determinar o meio ou centro do infinito? Por isso, só se pode falar
em descentramento ou deslocamento perpétuo do instante, ponto sem espessura
onde recai a subdivisão infinita. O instante platônico ou uno realiza, pois, essa
tarefa.
Ao nosso ver, essa idéia é incorporada pela filosofia da diferença
deleuzeana, fazendo dela um pensamento da multiplicidade, destituído de
fundamento. Conforme Deleuze, Aion é “pura forma vazia do tempo que se liberou
de seu conteúdo corporal presente e por aí desenrolou seu círculo, se alonga em
uma reta, talvez tanto mais perigosa, mais labiríntica, mais tortuosa por essa
razão”336. Então, a linha reta de Aion é o círculo de Cronos desenrolado, rompido, é
o tempo corporal desdobrado em incorporal, em que não há mais dentro e fora, mas
somente a unilateralidade da superfície reta, que possui as mesmas características
paradoxais do anel de Moebius cindido, vertidas na lógica da diferença. Cronos e
Aion são, então, duas leituras do tempo, completos e excludentes entre si, mas
paradoxalmente, reversíveis. De acordo com Deleuze, “é o Aion incorporal que se
desenrolou, tornou-se autônomo, desembaraçando-se de sua matéria, fugindo nos
dois sentidos ao mesmo tempo do passado e do futuro, e onde mesmo a chuva é
horizontal, segundo hipótese de Sílvia e Bruno. Ora, o Aion em linha reta e forma
vazia é o tempo dos acontecimentos-efeitos”337. 336 Deleuze, LS, p.170 (grifos nossos); orig. p.194 : « pure forme vide du temps, qui s’est
libérée de son contenu corporel présent, et par là a déroulé son cercle, s’allonge en une
droite, peut-être d’autant plus dangereuse, plus labyrinthique, plus tortueuse pour cette
raison ». 337 Deleuze, LS, p.65 (grifos nossos); orig. p.79 : « c’est l’Aiôn incorporel qui s’est déroulé,
devenu autonome en se débarrassant de sa matière, fuyant dans les deux sens à la fois du
passé et du futur, et où même la pluie est horizontale suivant l’hypothèse de Sylvie et
Bruno. Or cet Aiôn en ligne droite et forme vide, c’est le temps des événements-effets ».
109
A primazia conferida por Deleuze à linha reta é uma clara inversão do
pensamento representativo desde Aristóteles, passando por Hegel, em que ambos
discutiam o papel do télos nas entranhas de uma lógica circular. Para Aristóteles, o
círculo é primaz porque é algo de acabado, sendo a reta, o contrário disso. Diz ele
que “o círculo pertence às coisas realizadas, o que não é o caso de nenhuma linha
reta: nem a reta infinita (pois, então, ela teria limite e termo) nem nenhuma das retas
limitadas, pois há alguma coisa fora de cada uma delas, já que é possível alongá-las
o quanto quisermos”338. Segundo Lebrun, as noções de círculo e reta levam-nos a
(re)definir o significado de télos, pois quando entendido de maneira restrita, ou seja,
dotado de um sentido de limite ou termo, o conceito marca que não há processo
infinito, tornando-o incompatível com qualquer desenvolvimento em linha reta339.
Conforme ele, a prioridade que Aristóteles confere ao Círculo e ao processo cíclico
confirma a idéia de que o processo é progressão para um fim e não a realização do
fim, portanto, é um equívoco considerar o télos como um ponto final, uma limitação
ou interrupção340.
Apontando nessa direção está a ênfase de Aristóteles de que “todas as ações
que têm um limite não constituem elas próprias um fim, mas tendem a um fim”341.
Para Lebrun, na concepção aristotélica, a linha reta é considerada uma realização
por sucessão342 e em Hegel, ao contrário do movimento do círculo que ruma para
338 Aristóteles, De Caelo, livro I. 2, 269 a 22 (grifos nossos), trad. em Lebrun, AD, p.222,
versão em inglês: “further, this circular motion is necessarily primary. For the perfect is
naturally prior to the imperfect, and the circle is a perfect thing. This cannot be said of any
straight line: – not of an infinite line; for, if it were perfect, it would have a limit and an
end: nor of any finite line; for in every case there is something beyond it, since any finite
line can be extended”. 339 Cf. Lebrun, AD, p.222. 340 Cf. Lebrun, AD, p.223. 341 Aristóteles, M, livro IX, 1048 b 18. 342 Cf. Lebrun, AD, p.224 que traduz passagem de Aristóteles, De Generatione, 338 b 5 –
11: “teve de chover para que houvesse uma nuvem, e tem de haver nuvem para que possa
chover, ao passo que os homens e animais não voltam sobre si mesmos para se tornarem
novamente o mesmo [indivíduo] [...] é uma geração que parece fazer-se em linha reta”.
Versão em inglês: “then why do some things manifestly come-to-be in this cyclical fashion
(as. E.g., showers and air, so that it must rain if there is to be a cloud and, conversely, there
110
um fim, o movimento infinito em linha reta é uma ficção vazia. Dessa maneira,
ressalta Lebrun, “o télos pode então aparecer como um retorno-em-si, e sua
realização não será mais confundida com uma passagem no Outro. É verdade que
sempre podemos ir mais além na circunferência, porém, apenas se tornamos a
passar pelos mesmos pontos, de modo que a alteridade não tem mais o sentido de
uma inovação incessante”343. Segundo François Zourabichvili, “o fim é a sombra
reativa de uma emergência, o contra-senso por excelência sobre o
acontecimento”344, ou seja, o fim pressupõe a perda do próprio acontecimento.
O que nos leva facilmente a concluir que o movimento circular é o eterno
Retorno do Mesmo e a entender o porquê Deleuze adota a reta como expressão do
pensamento da Diferença: a reta possibilita inverter o pensamento representativo e a
descartar a idéia de télos em sua lógica, como também faz aparecer o âmbito da
diferença. No nosso entender, a linha reta afigura o eterno Retorno do Diferente
caso a definição aristotélica seja abandonada para se adotar a redefinição de
Deleuze, Borges e também Nietzsche : uma tortuosa linha reta formada por um
círculo desenrolado, ou, antes, pelo anel de Moebius cindido preservada suas
características paradoxais.
2.6.2) Cronos e Aion : eterno retorno do Mesmo e do Diferente
Há, nós o vimos, duas leituras do tempo: Cronos do presente vivo que
absorve passado e futuro e Aion, do presente sem espessura, que se subdivide
infinitamente em passado e futuro. Cronos compõe-se de presentes encaixados e
Aion decompõe-se em passado e futuro alongados. O primeiro é sempre ativo ou
passivo e o segundo, eternamente Infinitivo, neutro, impassível. Aquele é cíclico e
mede o movimento dos corpos, portanto, depende da matéria para limitá-lo e
must be a cloud if it is to rain), while men and animals do not ‘return upon themselves’ do
that the same individual comes-to-be a second time (for though your coming-to-be
presupposes your father’s, his coming-to-be does not presuppose yours)? Why, on the
contrary, does this coming-to-be seem to constitute a rectilinear sequence?”. 343 Lebrun, AD, p.224 (grifos nossos). 344 Zourabichvili, François, DPE, p.19 : « la fin est l’ombre réactive d’une émergence, le
contresens par excellence sur l’événement ».
111
preenchê-lo. Este é pura linha reta na superfície, forma vazia do tempo, incorporal,
ilimitado, que independe de toda matéria. Então, só existe o presente de Cronos que
contrai o passado e o futuro até se tornar um presente Vivo cósmico, para depois,
ciclicamente, descontrair e recomeçar, restituindo os presentes. É o tempo das
causas corporais. Trata-se do bom Cronos – o devir da profundidade, ou seja, o mau
Cronos, abordaremos mais adiante.
Deleuze esclarece que “o tempo do presente é, pois, sempre um tempo
limitado”, medido, existente, “mas infinito porque é cíclico, animando um eterno
retorno físico como retorno do Mesmo”345, o que nos remete à noção de “eterno
retorno” de Nietzsche. Ele efetua um movimento circular cósmico, totalmente
preenchido pelos corpos e suas qualidades. Ao nosso ver, é possível realizar três
tipos de interpretação da definição deleuzeana do eterno retorno físico de Cronos
como retorno do Mesmo: duas conduzem-nos a compreensão do círculo de Cronos
como sendo expressão de um pensamento fundado e a outra não; em duas, o Mesmo
retorna, noutra, o Mesmo é o retornar. O próprio Deleuze explica que “fundar, com
efeito, é sempre dobrar, encurvar, recurvar”346, formando um círculo como o da
lógica do Mesmo que afigura a filosofia hegeliana, mas não a nietzscheana. “Em
Hegel, todos os começos possíveis, todos os presentes se repartem no círculo único
incessante de um princípio que funda e que os compreende em seu centro assim
como os distribui sobre sua circunferência”. Destarte, “fundar é representar o
presente, isto é, fazer com que o presente advenha à representação (finita ou
infinita) e nela se instale”347.
Como vimos, na análise lebruniana, Hegel reconhece em Aristóteles uma
imagem do Círculo cujo movimento implica a idéia de télos, expresso pela
345 Deleuze, LS, p.64 (grifos nossos); orig. p.78 : « le temps du présent est donc toujours un
temps limité, mais infini parce que cyclique, animant un éternel retour physique comme
retour du Même ». 346 Deleuze, DR, p.431; orig. p..350: « fonder, en effet, c’est toujours ployer, courber,
recourber ». 347 Deleuze, DR, p.431 (grifos nossos); orig. p..351 : « Chez Hegel encore, tous les
commencements possibles, tous les présents se répartissent dans le cercle unique incessant
d’un principe qui fonde, et qui les comprend dans son centre comme il les distribue sur sa
circonférence ». « Fonder » « c’est répresenter le présent, c’est-à-dire faire advenir et passer
le présent dans la représentation (finie ou infinie) ».
112
proposição: “teve de chover para que houvesse nuvem, e tem de haver nuvem para
que possa chover”. Isso contraria o movimento infinito em linha reta, que passa a
idéia de sucessão sem retorno, expressa pela proposição:” os homens e os animais
não voltam sobre si mesmos para se tornarem novamente o mesmo indivíduo”. Para
Hegel, “o que o Círculo exclui é a assimilação errônea de todo télos a um final de
percurso”348; seu movimento de retorno-em-si não passa no Outro. Na visão
hegeliana, o ciclo aristotélico realiza o movimento da infinidade, que não pode ser
interpretado como passagem. Então, a reta, que prossegue sempre mais adiante,
designa “a má infinidade” meramente negativa, visto que, inversamente à autêntica
infinidade, não permite retorno em si mesma349. Cronos, então, realizaria o
movimento da boa infinidade hegeliana, justificada por sua circularidade.
A definição aristotélica, atenta Lebrun, já antevia que o movimento cíclico é
destituído de origem, limite ou meio: quanto ao tempo, ele é eterno, e em relação ao
comprimento, retorna sobre si mesmo sem cortes. Dessa maneira, enfatiza ele, a
coisa movida está sempre em sua origem e em seu télos, não devendo mais ser
considerada quanto ao seu percurso. Diz ele: “somente depois de descartar toda
imagem de uma alteridade indefinida é que se pode visar algo como uma atividade
fechada, totalmente presente (ganz gegenwärtig) a si mesma”350. A excelência
atribuída por Aristóteles e Hegel ao círculo, Deleuze inversamente confere à linha
reta. Ele descarta a lógica circular pelo mesmo motivo que eles a adotam: por
abrigar em si a idéia de limite, de télos e permitir um retorno sobre si mesmo, um
retorno do mesmo. E adota a lógica da linha reta também pelas mesmas razões que
eles a rejeitam: por ser ilimitada e não permitir o retorno do mesmo ou sobre si
mesmo, e possibilitar o diferente. Contudo, já o vimos, não se trata de entender a
reta à maneira aristotélica, como sucessão infinita de momentos irreversíveis que
não se repetem, como um alinhamento de passado, presente e futuro, porém, de
compreendê-la à maneira do paradoxo de Zenão e de Carroll que implica numa
divisão infinita, em que as duas direções avançam ao mesmo tempo.
Discordando da afirmação de Deleuze, Lebrun, entretanto, nota que a idéia
hegeliana do círculo como repetição ou retorno não elimina do processo a
348 Lebrun, AD, p.224. 349 Cf. Lebrun, AD, pp.224 a 225. 350 Lebrun, AD, p.225.
113
Diferença, pois a repetição infinita apresenta a unidade como igualdade do repetido,
mas não está nele, está fora dele. A questão é a seguinte: o repetido é indiferente
àquilo que ele repete, assim sendo, para-si, não é um repetido. Será preciso, observa
ele, redefinir o termo “identidade”, adaptando-o ao pensamento hegeliano. Por um
lado, no registro repetitivo, a identidade só se desdobra através da iteração, em que
uma diferença numérica é dominada, ou seja, só há uma mesma essência quando o
mesmo conteúdo torna a inscrever-se num exemplar distinto para um observador
externo – a identidade resulta da familiaridade devido à freqüência das ocorrências.
Por outro lado, na identidade consumada, o para-si realiza, ou seja, o mesmo
Sujeito, que se afirma como para-si, não é mais “o mesmo”, ou melhor, o princípio
é o mesmo porque reaparece constantemente em estases sempre dessemelhantes.
Ou, como Lebrun prefere, “o idêntico não é mais obtido reduzindo-se a novidade
trazida pela diferença: ele só está, agora, na proliferação da novidade. Não precisa
mais ser conquistado através de distintas instâncias: ele é o ato que não somente
deixa surgir a Diferença com toda a segurança, mas também chega a produzir a
própria Diferença”351. Destarte, entramos num impasse. Observada a leitura
lebruniana do círculo de Hegel como aquele que carrega a diferença, Cronos
realizaria o movimento do eterno retorno do diferente. Contudo, se considerarmos a
análise deleuzeana sobre o círculo hegeliano, Cronos efetua o retorno eterno do
Mesmo, já que permanece no domínio do pensamento fundado pelo princípio de
Identidade.
A interpretação de Lebrun é, na realidade, uma contra-crítica à análise
deleuzeana que aponta Hegel como filósofo que anula a diferença dentro do
processo global da identidade. Para Deleuze, todavia, “o círculo de Hegel não é o
eterno retorno, mas somente a circulação infinita do idêntico através da
negatividade. A audácia hegeliana é a última e a mais poderosa homenagem
prestada ao velho princípio”. “A diferença permanece subordinada à identidade,
reduzida ao negativo, encarcerada na similitude e na analogia. Eis por que, na
representação infinita, o delírio é apenas um falso delírio pré-formado, que em nada
perturba o repouso ou a serenidade do idêntico”352. Ao invés de considerar a
351 Lebrun, AD, pp. 253 a 254. 352 Deleuze, DR, p.97; orig. p. 71: “Le cercle de Hegel n’est pas l’éternel retour, mais
seulement la circulation infinie de l’identique à travers la négativité. L’audace hégélienne
114
diferença em si mesma, ela é “resolvida” numa identidade, conduzida a um
fundamento e suposta por uma oposição que desnatura e trai a diferença353.
Conforme ele, a diferença só se torna afirmativa com a ultrapassagem do
fundamento “em direção a um sem-fundo, a-fundamento universal que gira em si
mesmo e só faz retornar o por-vir”354, isto é, o devir, o diferente; trata-se do
profundo sem fundo que é a natureza mesma da diferença355. Sem o fundamento, já
o vimos, não há um referencial para transformar o diferente em negativo. De acordo
com Deleuze, “a contradição hegeliana dá a impressão de levar a diferença até o
fim: mas este é o caminho sem saída que a reduz à identidade e torna a identidade
suficiente para fazê-la ser e ser pensada. É somente em relação ao idêntico, em
função do idêntico, que a contradição é a maior diferença”356. Por isso, Hegel
mereceu o tratamento conferido aos inimigos. Para Deleuze, portanto, aproximado o
movimento de Cronos ao círculo hegeliano, ele só pode ser definido como eterno
retorno do Mesmo. Mas, se adotada a leitura lebruniana do círculo de Hegel, Crono
será entendido como o retorno eterno que traz a diferença.
Uma segunda interpretação confirma Cronos como sendo o eterno retorno
do Mesmo, o retornar do Mesmo não mais hegeliano, mas nietzscheano, ou, se
preferir, ‘pseudo-nietzscheano’, já que são os animais e não Zaratustra que o
reconhece assim. Deleuze mesmo admite que há passagens em Nietzsche que
considera o eterno Retorno como um ciclo em que tudo volta, o Mesmo retorna e
que volta ao mesmo. Segundo ele, o eterno Retorno recebe de Nietzsche dois tipos
est le dernier hommage, et le plus puissant, rendu au vieux principe ». « La différence reste
subordonnée à l’identité, réduite au négatif, incarcérée dans la similitude et dans l’analogie.
C’est pourquoi, dans la représentation infinie, le délire n’est qu’un faux délire préformé, qui
ne trouble en rien le repos ou la sérénité de l’identique ». 353 Cf. Deleuze, DR, p.99; orig. p.73. 354 Deleuze, DR, p.159; orig. p.123: « vers un sans-fond, universel effondement qui tourne
en lui-même et ne fait revenir que l’à-venir ». 355 Cf. Deleuze, DR, p.367; orig. p.296. 356 Deleuze, DR, p.417; orig. p.338: « la contradiction hégélienne a l’air de pousser la
différence jusqu’au bout ; mais ce chemin, c’est le chemin sans issue qui la ramène à
l’identité, et qui rend l’identité suffisante pour la faire être et être pensée. C’est seulement
par rapport à l’identique, en fonction de l’identique, que la contradiction est la plus grande
différence ».
115
de exposições em Assim falou Zaratustra (Also sprach Zarathustra): um que se
refere ao Zaratustra doente e outro ao Zaratustra convalescente e quase curado;
naquele, confirma-se a lógica do Mesmo e neste, do Diferente. Nietzsche reconhece
em Ecce Homo que o pensamento do eterno retorno é concepção fundamental de
seu Zaratustra, considerado por ele “a mais elevada forma de afirmação que se
pode em absoluto alcançar”357. Na análise deleuzeana, o que provoca sua doença é a
idéia do ciclo, de que tudo volte, o Mesmo retorne, e tudo volte ao mesmo. Nesse
caso, o eterno Retorno é redutível a uma hipótese considerada banal, pois equivale a
uma certeza natural, animal e imediata, ao mesmo tempo que aterrorizante já que a
volta de tudo ao mesmo implica no retorno até do homem mesquinho e pequeno, do
niilismo e da reação. Por isso, Zaratustra não pode, não ousa e nem quer dizer o
eterno Retorno358. Em outras palavras, o que o torna doente, pondera Deleuze, é a
idéia de vislumbrá-lo como ciclo, retorno do Mesmo e ao mesmo, como uma
evidência natural plana para uso dos animais ou como um triste castigo moral para
uso dos homens.
Na realidade, são os animais que anunciam o eterno Retorno como um ciclo
(ou um círculo) do Mesmo. ‘Dizem’ os animais a Zaratustra: “tudo vai, tudo volta;
eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre
o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa
do ser. Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo
permanece o anel do ser. Em cada instante começa o ser”. “O meio está em toda a
parte. Curvo é o caminho da eternidade”359. E declaram: “és o mestre do eterno
retorno – este, agora, é o teu destino!”. “Nós sabemos o que ensinas: que
eternamente retornam todas as coisas e nós mesmos com elas e que infinitas vezes
já existimos e todas as coisas conosco”360. E ‘falando’ como se fossem Zaratustra,
os animais afirmam: “eternamente retornarei para esta mesma e idêntica vida, nas
coisas maiores como nas coisas menores, para que eu volte a ensinar o eterno
retorno de todas as coisas”. “Para que eu volte a anunciar aos homens o além-do-
357 Nietzsche, Ecce Homo, cap. Assim falou Zaratustra, par. 1, p.82. 358 Cf. Deleuze, N, pp.32 a 33 ; orig. pp.38 a 39. 359 Nietzsche, AFZ, III, “O convalescente”, 2, p.224. 360 Nietzsche, AFZ, III, “O convalescente”, 2, p.226.
116
homem”361. O próprio Nietzsche parece confirmar a idéia de um eterno retorno do
Mesmo no plano físico ou cosmológico quando afirma que a força é constantemente
igual e “eternamente ativa, mas não pode mais criar infinitos casos, tem de se
repetir: essa é a minha conclusão”. E acrescenta: “se todas as possibilidades na
ordem e relação de forças já não estivessem esgotadas, não teria passado ainda
nenhuma infinidade. Justamente porque isto tem de ser, não há mais nenhuma
possibilidade nova e é necessário que tudo já tenha estado aí, inúmeras vezes”362.
Entretanto, para Nietzsche, o curso circular não é nada que veio a ser, mas
sim uma lei originária, tanto quanto a quantidade de força, e que todo vir-a-ser está
em seu interior. E essa sua circularidade não está em contradição com o “caos do
todo” que exclui toda atividade finalista; segundo ele, o curso circular é uma
necessidade irracional, sem qualquer consideração formal, ética ou estética363.
Talvez dessa conjugação entre necessidade da lei originária e caos ou devir, seja
possível, ao nosso ver, uma terceira interpretação do retorno de Cronos à maneira
deleuzeana, como sendo o primeiro aspecto do eterno retorno nietzscheano, a saber,
como “doutrina cosmológica e física”, em que o Mesmo é o retornar do diverso e do
que difere. Portanto, não é o mesmo ou o uno que regressam, mas “o eterno retorno
é ele próprio o uno que se diz apenas do diverso e do que difere”364. Segundo
Deleuze, o pensamento do puro devir funda o eterno retorno na medida em que ser e
devir deixam de estar em oposição e passa-se a buscar o ser do próprio devir.
Retornar é o ser do devir; ao dizer que tudo retorna, estende-se, ao máximo, o
mundo do devir e do ser.
Como doutrina cosmológica e física (doctrine cosmologique et physique),
primeiro aspecto do eterno retorno, Cronos aparece como um tempo infinito, porque
circular, de um presente vivo que absorve o passado e o futuro. A grande questão
Crono(s)lógica é: como o presente pode passar? De acordo com Deleuze, o instante
que passa jamais poderia passar se já não fosse ao mesmo tempo passado e presente
e também futuro e presente; se o presente não passasse por si mesmo e tivesse que
361 Nietzsche, AFZ, III, “O convalescente”, 2, p.227. 362 Nietzsche, O eterno retorno, pars. 2 e 7, in Os Pensadores, p.387. 363 Cf. Nietzsche, O eterno retorno, pars. 20 e 21, in Os Pensadores, p.389. 364 Deleuze, NF, p.72 ; orig. NP, p.53: « le retour est lui-même l’un qui se dit seulement du
divers et de ce qui diffère ».
117
esperar um novo presente para se tornar passado, nunca o presente passaria, nunca o
passado se constituiria no tempo. Deleuze explica que “é necessário que o presente
coexista consigo como passado e como futuro. É a relação sintética do instante
consigo como presente, passado e futuro, que funda a sua relação com os outros
instantes”. E enfatiza: “o eterno retorno é, portanto, resposta ao problema da
passagem”365, uma das maneiras, no âmbito de Cronos, de entender o portal
chamado ‘momento’ ou ‘instante” apresentado no Zaratustra366 como presente que
passa; a outra diz respeito à dimensão de Aion, como o instante sem espessura de
subdivisão infinita, que veremos adiante.
Portanto, em nossa análise, quando Deleuze afirma que Cronos é o retorno
do Mesmo pode querer dizer que não é o mesmo que retorna, mas mesmo é o
retornar, ou seja, mesmo é tempo que passa, o seu movimento circular, o seu passar.
Então, não é o ser ou o uno que retornam, mas sim o próprio retornar é o ser ou o
uno que se afirmam do diverso ou do múltiplo. Em outras palavras, no eterno
retorno, a identidade designa o retornar para o que difere e não a natureza daquilo
que retorna. Na concepção deleuzeana, não há, pois, um mecanicismo em seu
retornar que implicaria na postulação de um estado final idêntico ao inicial, já que o
eterno retorno é dotado de um princípio que constitui a razão do diverso e explica o
porquê do processo sair do estado inicial ou do final e que Nietzsche chama de
“vontade de potência”, que é uma síntese de forças, determinando a relação da força
com a força367. Diz Deleuze: “é por isso que o eterno retorno deve ser pensado
como uma síntese; síntese do tempo e das dimensões, síntese do diverso e da sua
reprodução, síntese do devir e do ser que se afirma do devir, síntese da dupla
afirmação”368.
365 Deleuze, NF, pp.74 a 75 ; orig. NP, p.54: « il faut que le présent coexiste avec soi
comme passé et comme à venir. C’est le rapport synthétique de l’instant avec soi comme
présent, passé et à venir, qui fonde son rapport avec les autres instants. L’éternel retour est
donc réponse au problème du passage ». 366 Cf. Nietzsche, AFZ, III, Da visão e do enigma, 2, p.166. 367 Cf. Deleuze, NF, pp.75 a 77; orig. NP, pp.55 a 56. 368 Deleuze, NF, p.75 ; orig. NP, p.55: « c’est pourquoi l’éternel retour doit être pensé
comme une sythèse : synthèse du temps et de ses dimensions, synthèse du divers et de sa
reproduction, synthèse du devenir et de l’être qui s’affirme du devenir, synthèse de la
double affirmation ».
118
Destarte, para Deleuze, fazer do eterno Retorno nietzscheano um retorno do
Mesmo é perder o acaso ou o devir em prol da necessidade, além de ser uma traição
a Nietzsche cujo pensamento não implica em escolha, já que afirma a necessidade
do acaso. Entrementes, entendê-lo como eterno Retorno do Diferente (e não do
Mesmo), em sua concepção, é confirmar a afirmação nietzscheana, é conceber o
retornar como necessidade e o acaso ou o diferente ou o devir como aquilo que
retorna. Ele explica sua análise do Retornar ou da Repetição do Diferente: “o eterno
retorno, segundo Nietzsche, não é de modo algum um pensamento do idêntico, mas
um pensamento sintético, pensamento do absolutamente diferente que reclama fora
da ciência um princípio novo. Esse princípio novo é o da reprodução do diverso
enquanto tal, o da repetição da diferença: o contrário da «adiaforia». E com efeito,
não compreendemos o eterno retorno enquanto não o opusermos de uma certa
maneira à identidade.
O eterno retorno não é a permanência do mesmo, o estado de equilíbrio nem
a permanência do idêntico. No eterno retorno, não é o mesmo ou o uno que
regressam, mas o eterno retorno é ele próprio o uno que se diz apenas do diverso e
do que difere”369. Assegura Deleuze: “não é o Mesmo que volta, já que o voltar é a
forma original do Mesmo, que apenas se diz do diverso, do múltiplo, do devir. O
Mesmo não volta, é o voltar apenas que é o Mesmo daquilo que devém”370. A
afirmação de que o Mesmo se diz do diverso, no nosso entender, indica que a
369 Deleuze, NF, p.72 (grifos nossos); orig. NP, pp.52 a 53: « l’éternel retour, selon
Nietzsche, n’est pas du tout une pensée de l’identique, mais une pensée synthétique, pensée
de l’absolument différent qui réclame hors de la science un principe nouveau. Ce principe
est celui de la reproduction du divers en tant que tel de la répétition de la différence : le
contraire de «l’adiaphorie». Et, en effet, nous ne comprenons pas l’éternel retour tant que
nous en faisons une conséquence ou une application de l’identité. Nous ne comprenons pas
l’éternel retour tant que nous ne l’opposons pas d’une certaine manière à l’identité.
L’éternel retour n’est pas la permanence du même, l’état de l’équilibre ni la demeure de
l’identique. Dans l’éternel retour, ce n’est pas le même ou l’un qui reviennent, mais le
retour est lui-même l’un qui se dit seulement du divers et de ce qui diffère ». 370 Deleuze, N, p.30 (grifos nossos); orig. p.36: « ce n’est pas le Même qui revient, puisque
le revenir est la forme originale du Même, qui se dit seulement du divers, du multiple, du
devenir. Le Même ne revient pas, c’est le revenir seulement qui est le Même de ce qui
devient ».
119
repetição nada designa, ela não diz a coisa. No âmbito proposicional, a repetição se
diz da coisa na proposição como um atributo lógico do diverso na linguagem. Ao
nosso ver, a lógica do Mesmo ou da Identidade rege as dimensões internas da
proposição que manifesta uma circularidade entre os seus três termos ordinários
numa remissão recíproca e infinita. Entretanto, dessa circularidade (ou mesmidade)
proposicional, é possível sempre romper o círculo e extrair a diferença, sua
dimensão extraproposicional e, assim, entrever o retorno eterno do diferente.
Na concepção deleuzeana, porém, não é Cronos e sim Aion que melhor
traduz a noção nietzscheana de eterno Retorno, que retorna sempre com o Diferente
tal como a lógica do anel de Moebius, quer esteja ele atado e torcido ou cindido, em
linha reta. Deleuze ressalta que “o eterno retorno é o ilimitado do próprio acabado,
o ser unívoco que se diz da diferença”. E se considerá-lo de forma circular, “o
círculo do eterno retorno, o da diferença e da repetição (que desfaz o do idêntico e
do contraditório) é um círculo tortuoso que só diz o Mesmo daquilo que difere”. “O
mesmo só retorna para trazer o diferente”371. Ao que tudo indica, a plena afirmação
resultante do movimento violento do eterno retorno é a filosofia da diferença.
Entretanto, a reta parece ser a melhor figuração do eterno retorno do diferente.
Aion é o tempo dos efeitos incorporais. O passado e o futuro de Aion
avançam em simultâneo, mas não têm existência, pois só o presente de Cronos
existe. O passado e o futuro subsistem e subdividem ao infinito cada presente,
alongando-o sobre sua linha vazia. “Um tal tempo não é infinito, já que não volta
jamais sobre si, mas é ilimitado, porque pura linha reta cujas extremidades não
cessam de se distanciar no passado, de se distanciar no futuro”372. Trata-se de um
outro eterno retorno, que em nada se assemelha ao ciclo do Mesmo de Cronos, e
que se afigura como o eterno retorno do Diferente, já que a Diferença, para
371 Deleuze, DR, p.108; orig. pp.80 a 81: « l’éternel retour est l’illimité de l’achevé lui-
même, l’être univoque qui se dit de la différence ». « Le cercle de l’éternel retour, celui de
la différence et de la répétition (qui défait celui de l’identique et du contradictoire), est-il un
cercle tortueux, qui ne dit le Même que de ce qui diffère ». « Le même ne revient que pour
apporter du différent ». 372 Deleuze, LS, p.64; orig. p.78 : « un tel temps n’est pas infini, puisqu’il ne revient jamais
sur soi, mais il est illimité, parce que pure ligne droite dont les deux extrémités ne cessent
de s’éloigner dans le passé, de s’éloigner dans l’avenir ».
120
Deleuze, é constituída no pensamento pela forma vazia do tempo373. Aion, como
vimos, é linha reta que guarda todas as características paradoxais do anel de
Moebius cindido.
São apresentados, pois, dois tipos de “eterno retorno”, a saber, de Cronos,
que pode ser compreender sobretudo como eterno do Mesmo, mas também do
Diferente, e de Aion, considerado eterno retorno do Diferente. Cronos é tempo dos
corpos e Aion, do incorporal, o primeiro é presente existente e o segundo, passado e
futuro insistentes. Deleuze mostra que entender a noção nietzscheana de Eterno
Retorno como sendo do Mesmo, é conformá-lo a uma lógica do pensamento
representativo que tem fundamento no Idêntico. Indaga ele sobre Aion: “sentimos
então a aproximação de um eterno retorno que não tem mais nada a ver com ciclo
ou já a entrada de um labirinto, tanto mais terrível quanto mais ele é o da linha
única, reta e sem espessura?”374. Por conseguinte, Deleuze conclui que Aion é “um
labirinto bem diferente do de Cronos, ainda mais terrível e que comanda um outro
eterno retorno e uma outra ética (ética dos Efeitos)”375. Aion, admite ele, é como o
tortuoso labirinto da linha reta, descrito por Borges: “conheço um labirinto grego
que é uma linha única, reta. Nessa linha perderam-se tantos filósofos”... “Prometo-
lhe este labirinto que se compõe de uma só linha reta e que é invisível,
incessante”376. Se Cronos, é o eterno retorno físico, Aion pode ser interpretado
como o eterno retorno metafísico ou antes transcendental.
Nietzsche parece confirmar a tese deleuzeana do eterno retorno do Diferente
em sua explicação sobre a falta de equilíbrio da força. Diz ele: “se um equilíbrio de
força tivesse sido alcançado alguma vez, duraria ainda: portanto, nunca ocorreu”.
373 Cf. Deleuze, DR, p.435; orig. p.354. 374 Deleuze, LS, p.66 (grifos nossos); orig., p.80 : « sentons-nous alors l’approche d’un
éternel retour qui n’a plus rien à voir avec le cycle, ou déjà l’entrée d’un labyrinthe,
d’autant plus terrible qu’il est celui de la ligne unique, droite et sans épaisseur ? ». 375 Deleuze, LS, p.64; orig. p.78 : « un labyrinthe tout autre que celui de Chronos, encore
plus terrible, et qui commande un autre éternel retour et une autre éthique (éthique des
Effets) ». 376 Borges, La muerte y la brújula in Ficciones, p.148: “Yo sé de un laberinto griego que es
una línea única, recta. En esa línea se han perdido tantos filósofos”… “Le prometo ese
laberinto, que consta de una sola línea recta y que es invisible, incesante”. E traduzido
parcialmente em Deleuze, LS, p.65; orig. p.78.
121
Por conseguinte, “a cessação das forças, seu equilíbrio, é um caso pensável: mas
não ocorreu, conseqüentemente o número das possibilidades é maior que o das
efetividades”. Todavia, Nietzsche afirma que pressupor que nada de igual retorne, é
imaginar “uma descomunal massa de casos”, porém, “o alcançamento casual do
mesmo lance de dados é mais verossímil do que a absoluta nunca-igualdade”377.
Apesar da aparente contradição, a diferença parece, pois, ser obtida em uma força
eternamente igual e ativa, e em desequilíbrio com sua efetuação, embora seja
determinada e finita a medição da força total.
Na concepção deleuzeana, a força tem por essência sua diferença de
quantidade em relação a outras forças, essência esta que é a própria qualidade da
força, o que faz do desequilíbrio entre elas algo de primordial378. Portanto, ainda
que a situação global de todas as forças sempre retorne, Nietzsche afirma que é
indemonstrável que algo de igual estivesse aí. Ressalta ele: “parece que a situação
global forma as propriedades de modo novo, até nas mínimas coisas, de modo que
duas situações globais diferentes não podem ter nada de igual. Se em uma situação
global pode haver algo de igual, por exemplo, duas folhas? Duvido: isso pressuporia
que, até em toda a eternidade para trás, subsistiu algo de igual, a despeito de todas
as alterações de situações globais e de toda criação de novas propriedades – uma
admissão impossível!”379.
Por um lado, o eterno Retorno do Mesmo, ou seja, o regressar do Mesmo,
que manifesta a lógica do pensamento representativo regente das dimensões
internas da proposição, é anunciado, em Nietzsche, pelos animais como um ciclo,
ou antes, um movimento circular infinito, podemos interpretá-lo como sendo o
tempo de Cronos, o tempo de tudo aquilo que existe, o plano natural ou cósmico.
Por outro lado, o eterno retorno do Diferente diz respeito à lógica da Diferença e
permite-nos explicar o tempo vazio de Aion. Na obra-prima nietzscheana, diante da
tentativa de consolo da águia e da serpente, Zaratustra entende como uma
“omissão” o eterno retorno descrito pelos animais, visto que reduziram-no a uma
fórmula demasiado conhecida380. Segundo Deleuze, o período da convalescença
377 Nietzsche, O eterno retorno, par. 14, (grifos nossos) in Os Pensadores, p.388. 378 Cf. Deleuze, NF, p.77; orig. NP, p.56. 379 Nietzsche, O eterno retorno, par. 1, in Os Pensadores, p.387. 380 Cf. Deleuze, N, p.32 ; orig. p.39 e Nietzsche, AFZ, “O convalescente”, par.2.
122
leva Zaratustra a uma nova compreensão e significação do eterno Retorno. Ao
nosso ver, o eterno retorno descrito pelo próprio Zaratustra como uma linha reta,
remete-nos a Aion, tempo vazio ou devir, em que passado e futuro avançam
ilimitados e simultaneamente.
Diante de um portal, Zaratustra ‘mostra’ ao anão dois caminhos que formam
uma linha reta que avançam pela eternidade, como sendo a figuração do eterno
retorno: “Olha esse portal, anão!”, “ele tem duas faces. Dois caminhos aqui se
juntam; ninguém ainda os percorreu até o fim. Essa longa rua que leva para trás:
dura uma eternidade. E aquela longa rua que leva para a frente – é outra eternidade.
Contradizem-se, esses caminhos, dão com a cabeça um no outro; e aqui, neste
portal, é onde se juntam. Mas o nome do portal está escrito no alto: ‘momento’ ”. O
anão, afeito à lógica circular, do retorno do mesmo, objeta sobre a linha reta: “tudo
o que é reto mente”. “Toda verdade é torta, o próprio tempo é um círculo”. Ao que
nos parece, Zaratustra, então, explica-lhe sobre uma nova leitura do tempo do
eterno Retorno, pressupostamente Aion e não Cronos (que é o tempo circular dos
corpos, a qual se refere o anão), em que passado e futuro subsistem avançando em
simultâneo na dupla direção, sem jamais existir como presente. E o próprio portal,
denominado “momento”, é o instante sem espessura onde recai a subdivisão
infinita. Afirma ele: “deste portal chamado momento, uma longa, eterna rua leva
para trás: às nossas costas há uma eternidade”. “E não estão as coisas tão
firmemente encadeadas, que este momento arrasta consigo todas as coisas
vindouras? Portanto – também a si mesmo? Porque aquilo, de todas as coisas, que
pode caminhar, deverá ainda, uma vez, percorrer – também esta longa rua que leva
para a frente!”381. Indaga Zaratustra: “não devemos, todos, já ter estado aqui? E
voltar a estar e percorrer essa outra rua que leva para a frente, diante de nós, essa
longa, temerosa rua – não devemos retornar eternamente?”382. Considerando que o
eterno retorno é apresentado por Zaratustra como uma linha reta infinita e não da
maneira dos animais, como um círculo, e dadas as características da reta de avançar
perpetuamente sem jamais se voltar sobre si, podemos inferir que o Retorno, a
Repetição, ou antes, a volta é da ordem do Mesmo, porém, aquilo que retorna,
381 Nietzsche, AFZ, III, “Da visão e do enigma”, 2, p.166 (grifos nossos). 382 Nietzsche, AFZ, III, “Da visão e do enigma”, 2, p.167 (grifos nossos).
123
repete, volta é o Diferente. Mesmo é o retornar do diferente, mas não o que retorna,
confirmando assim a tese deleuzeana do eterno Retorno do Diferente.
Mas há um segundo aspecto do eterno retorno, salienta Deleuze, que
consiste num “pensamento ético e seletivo” (pensée éthique et sélective). O eterno
retorno como doutrina física (primeiro aspecto) pode ser dito o tempo de Cronos e
entendido como uma nova formulação da síntese especulativa; contudo, “como
pensamento ético, o eterno retorno constitui a nova formulação da síntese prática: o
que quiseres, quere-o de tal maneira que também queiras o eterno retorno”383. O
eterno retorno fornece, pois, à vontade ou ao querer uma regra rigorosa. Deleuze
revela que, relativo a esse segundo aspecto, “o segredo de Nietzsche é que o eterno
Retorno é seletivo. E duplamente seletivo. Primeiro, como pensamento. Porque nos
dá uma lei para a autonomia da vontade degradada de toda a moral: o que quer que
eu queira”, “devo” querê-lo de tal maneira que lhe queira o eterno Retorno”.
“Mesmo uma covardia, uma preguiça que quisesse o seu eterno Retorno, tornar-se-
ia outra coisa diferente de uma preguiça, de uma covardia: tornar-se-iam ativas e
potências de afirmação”. “E o eterno Retorno não é só o pensamento seletivo, mas
também o Ser seletivo. Só volta a afirmação, só volta aquilo que pode ser afirmado,
só a alegria volta. Tudo o que pode ser negado, tudo o que é negação é expulso pelo
próprio movimento do eterno Retorno”. “O Ser se afirma do devir, ele expulsa de si
tudo o que contradiz a afirmação, todas as formas do niilismo e da reação: má
consciência, ressentimento ..., só o veremos uma vez”384.
383 Deleuze, NF, p.104; orig. NP, p.77 : « comme pensée éthique, l’éternel retour est la
nouvelle formulation de la synthèse pratique : ce que tu veux, veuille-le de telle manière
que tu en veuilles aussi l’éternel retour ». 384 Deleuze, N, pp.31 a 32 (grifos nossos); orig. pp.37 a 38: « le secret de Nietzsche, c’est
que l’éternel Retour est sélectif. Et doublement sélectif. D’abord comme pensée. Car il
nous donne une loi pour l’autonomie de la volonté dégagée de toute moral : quoi que je
veuille», « je «dois» le vouloir de telle manière que j’en veuille aussi l’éternel Retour ».
« Même une lâcheté, une paresse qui voudraient leur éternel Retour deviendraient autre
chose qu’une paresse, une lâcheté : elles deviendraient actives, et puissances d’affirmation.
Et l’éternel Retour n’est pas seulement la pensée sélective, mais aussi l’Être sélectif. Seule
revient l’affirmation, seul revient ce qui peut être affirmé, seule la joie retourne. Tout ce qui
peut être nié, tout ce qui est négation, est expulsé par le mouvement même de l’éternel
Retour. Nous pouvions craindre que les combinaisons du nihilisme et de la réaction ne
124
Dessa maneira, o pensamento do eterno retorno opera uma seleção, a
primeira, e faz do querer algo de inteiro, ele elimina do querer tudo o que cai fora
do eterno retorno e faz do querer uma criação, em que querer é sinônimo de criar385.
O eterno retornar do diferente é devido ao seu caráter seletivo. Mesmo nessa
primeira seleção, Pierre Klossowski discorda de Deleuze e a entende como o
pensamento do eterno retorno do Mesmo já que pressupõe um “movimento circular
necessário, ao qual me entrego, ao me livrar de mim mesmo”, como numa espécie
de esquecimento que “esconde o eterno devir e a absorção de todas as identidades
no ser”. Diz ele: “de fato, já não estou mais no instante em que a brusca revelação
[do eterno retorno] tenha um sentido, seria preciso que eu perde-se à consciência de
mim mesmo e que o movimento circular do retorno se confundisse com meu
inconsciente, até que o movimento me trouxesse de volta ao instante em que me foi
revelada a necessidade de percorrer toda a série das minhas possibilidades. Só me
resta, então, querer a mim mesmo outra vez”, “como um momento fortuito, cuja
casualidade em si implica a necessidade do retorno integral de toda da série”386.
Para ele, trata-se do querer do Mesmo e para Deleuze, o querer consiste apenas na
primeira fase seletiva do eterno retorno que tira fora do retorno aquilo que não se
quer.
Na concepção deleuzeana, entretanto, há uma segunda seleção promovida
pelo eterno retorno. Se na primeira, o pensamento do eterno retorno elimina pelo
querer o que sai fora deste pensamento, na segunda, trata-se de fazer entrar no ser
pelo eterno retorno aquilo que muda de natureza. Não é mais um pensamento
seletivo, mas sim um ser seletivo. Assim sendo, o eterno retorno é entendido como
o ser, e o ser é seleção387. Conforme Deleuze, “o eterno retorno como doutrina
física afirma o ser do devir. Mas, enquanto ontologia seletiva, afirma este ser do
reviennent éternellement». « L’Être s’affirme du devenir, il expulse de soi tout ce qui
contredit l’affirmation, toutes les formes du nihilisme et de la réaction : mauvaise
conscience, ressentiment ..., on ne les verra qu’une fois ». 385 Cf. Deleuze, NF, p.105; orig. NP, p.78. 386 Klossowski, Pierre, Nietzsche e o círculo vicioso, pp.77 e 78. 387 Cf. Deleuze, NF, pp.107 a 108 ; orig. NP, p.80.
125
devir como «afirmando-se» do devir-ativo”388. Ele explica que o eterno retorno é o
ser universal do devir que se diz de um só devir, em que só o devir-ativo possui um
ser, que é o ser do devir na sua totalidade, mas o todo diz-se de um só momento ou
instante389, a saber, do instante sem espessura de Aion em que recai a subdivisão
infinita.
Para Deleuze, Zaratustra, como convalescente, compreende a identidade
«eterno Retorno = Ser seletivo» («éternel Retour = Être sélectif»). Conforme ele,
“o eterno Retorno é a Repetição; mas é a Repetição que seleciona, a Repetição que
salva. Segredo prodigioso de uma repetição libertadora e selecionante”390, já que
expulsa de si todo o negativo. Ademais, o eterno Retorno provoca uma
transmutação no homem, rejeitado como ser reativo que combina forças com o
niilismo, para realizar uma conversão radical de essência, que se produz no homem
para gerar o além-do-homem (Übermensch). Ele pode ser entendido como o
surgimento do novo, do acaso, do devir, do Diferente. Para Deleuze, o além-do-
homem é o recolhimento de tudo o que pode ser afirmado, a forma superior do que
é, o Ser seletivo, e é a interseção de duas linhas genéticas. “Por um lado, é
produzido no homem, por intermédio do último dos homens e do homem que quer
morrer, mas para além deles, como uma dilaceração e uma transformação da
essência humana. Porém, por outro lado, produzido no homem, não é produzido
pelo homem: é o fruto de Dioniso e de Ariadne”. “Assim, culminam as figuras da
transmutação: Dioniso ou a afirmação; Dioniso-Ariadne ou a afirmação desdobrada;
o eterno Retorno ou a afirmação redobrada; o além-do-homem ou o tipo e o produto
da afirmação”391.
388 Deleuze, NF, p.109 ; orig. NP, p.81: « l’éternel retour comme doctrine physique affirme
l’être du devenir. Mais, en tant qu’ontologie sélective, il affirme cet être du devenir comme
«s’affirmant» du devenir-actif ». 389 Cf. Deleuze, NF, p.109 ; orig. NP, pp.81 e 82. 390 Deleuze, N, p.33 ; orig. p.40: « l’éternel Retour est la Repétition ; mais c’est la
Répétition qui sélectionne, la Répétition qui sauve. Prodigieux secret d’une répétition
libératrice et sélectionnante ». 391 Deleuze, N, pp.33 a 34; orig. pp.40 a 41: « D’une part il est produit dans l’homme, par
l’intermédiaire du dernier des hommes et de l’homme qui veut périr, mais au-delà d’eux,
comme un déchirement et une transformation de l’essence humaine. Mais d’autre part,
produit dans l’homme, il n’est pas produit par l’homme : il est le fruit de Dionysos et
126
Embora o eterno retorno dependa da transmutação do ponto de vista do
princípio que o condiciona, explica Deleuze, a transmutação depende mais
profundamente do eterno retorno pela perspectiva do seu princípio incondicionado,
em que a condição é Zaratustra, como a lei do eterno retorno, ou antes, o Retornar, e
o incondicionado é Dioniso, isto é, o devir, o acaso, o diferente. “Em verdade, o
eterno retorno e o além-do-homem estão no cruzamento de duas genealogias, de
duas linhas genéticas desiguais. Por um lado, remetem para Zaratustra como
princípio condicionante que os «postula» de maneira hipotética. Por outro lado,
remetem para Dioniso como para o princípio incondicionado que funda o seu
caráter apodítico e absoluto”392. Segundo Deleuze, “tudo o que é afirmativo
encontra em Zaratustra a sua condição mas encontra em Dioniso o seu princípio
incondicionado. Zaratustra determina o eterno retorno: mais ainda, determina o
eterno retorno a produzir o seu efeito, o além-do-homem”393. No nosso entender,
Zaratustra ‘funciona’ como a lei do eterno retorno, o retornar propriamente dito,
Dioniso é aquilo que retorna, ou seja, o devir e o além-do-homem é a diferença em
si mesma, tida sempre de maneira afirmativa; em outras palavras, ele é o
Acontecimento.
2.6.3) Eterno Retorno: afirmação
A noção de eterno Retorno nietzscheana, como vimos, explica os
movimentos de Cronos e Aion, entretanto, não sem esbarrar numa questão d’Ariane ». « Ainsi s’achèvent les figures de la transmutation : Dionysos ou l’affirmation ;
Dionysos-Ariane, ou l’affirmation dédoublée ; l’éternel Retour, ou l’affirmation redoublée ;
le surhomme, ou le type et le produit de l’affirmation ». 392 Deleuze, NF, p.286 ; orig. NP, p.221: « En verité, l’éternel retour et le surhomme sont à
la croisée de deux généalogies, de deux lignées génétiques inégales. D’une part, ils
renvoient à Zarathoustra comme au principe conditionnant qui les «pose» de manière
seulement hypothétique. D’autre part, à Dionysos comme au principe inconditionné qui
fonde leur caractère apodictique et absolu ». 393 Deleuze, NF, p.287 (grifos nossos); orig. NP, p.221: « tout ce qui est affimation trouve
en Zarathoustra sa condition, mais en Dionysos son principe inconditionné. Zarathoustra
détermine l’éternel retour ; bien plus, il détermine l’éternel retour à produire son effet, le
surhomme ».
127
fundamental. Se Aion é a fronteira, âmbito da diferença afirmativa e a expressão do
eterno retorno do diferente, portanto, aquilo que passou pelo crivo seletivo, como
então ocorre a mudança de natureza da força que se transforma de negativa ou
reativa em afirmativa ou ativa? Em outras palavras, dado que Deleuze enfatiza que
nada sobe à superfície de Aion sem mudar de natureza, essa ‘subida’, em nossa
concepção, é o mesmo que passar pelo crivo do eterno retorno, e transpô-lo é o
mesmo que dizer que o devir louco da profundidade emerge à superfície de Aion e
altera sua natureza, de Cronos mau se torna Aion. Ou antes, o crivo do eterno
retorno nietzscheano nos parece um correlato da reversão do platonismo em que o
simulacro sai da profundidade sobe à superfície, muda de natureza e de negativo se
torna afirmativo, sem se submeter à Idéia ou Modelo, como vimos.
Sabemos que, para Deleuze, o eterno Retorno nietzscheano “resolve” a
negação posta como articulação do pensamento e do ser pela dialética da
contradição hegeliana. Ele retira-a de seu âmago, ou antes, expulsa-a ao transformá-
la em afirmativa. Nietzsche, tanto quanto Hegel, efetua um movimento em seu
pensamento que consiste na negação da negação, contudo, ao redobrar a negação, o
eterno retorno produz não a identidade, mas a diferença, o novo, o que impede o fim
do processo, num retornar infinito do diferente. A negação da negação torna-se
afirmação. Assim sendo, na concepção deleuzeana, o pensamento nietzscheano
posiciona-se contra o hegeliano e, por muitas vezes, inverte-o.
Na dialética da contradição de Hegel, a negação interna, transformada em
contradição, é o que movimenta e transforma o sujeito em síntese ativa dos
predicados que ele põe e nega até sua afirmação numa identidade final. Entretanto,
ao que parece, no eterno retorno de Nietzsche ocorre não a negação do outro, mas a
negação de si mesma da força reativa que se auto-destrói por completo; e essa auto-
aniquilação tem uma potência afirmativa porque possibilita a mudança de natureza
da força que se transformará em ativa. Fora do circuito do eterno retorno, explica
Deleuze, a força reativa não consegue trocar de natureza sozinha, ela apenas ganha
ou perde o embate contra outra força, consoante a quantidade de força que cada
uma possui: a que tiver maior quantidade vencerá, seja ela ativa ou reativa. E, por
seu lado, a força ativa, quando perde o embate e é separada daquilo que pode (de
sua vontade de potência), torna-se reativa. Vontade de potência é, nesse contexto, o
128
querer interno da força que é afirmativa ou negativa, dependendo da força ser ativa
ou reativa394.
Portanto, a mudança de natureza da força reativa para ativa, na concepção
deleuzeana, só é possível dentro do eterno retorno, ao enfrentar suas duas etapas
seletivas, sobretudo, a segunda que funciona como um crivo. Contudo, se toda
cultura passa pela consciência que é reativa (redobramento do pensamento,
constituída num momento de fraqueza e de necessidade de comunicação, sendo
ativo apenas o pensamento inconsciente, como vimos), tal qual a afirmação
nietzscheana em Gaia Ciência (Die fröhliche Wissenschaft), haveria forças ativas?
Pois, assim sendo, sentimos e conhecemos apenas o devir-reativo, dado que o
homem é essencialmente reativo porque o devir-reativo lhe é constitutivo. Deleuze
explica que, em Nietzsche, “o ressentimento, a má consciência, o niilismo não são
traços da psicologia, mas como que o fundamento da humanidade no homem. São o
princípio do ser humano como tal”395.
Então, se nossa cultura é força reativa, toda ela precisa passar pelo eterno
retorno para mudar de natureza e produzir o novo, ou seja, o homem que concentra
a cultura deverá ser eliminado para que possa surgir o além-do-homem (o novo). Ao
nosso ver, a noção de progresso hegeliana aqui é trocada por essa produção do novo
do eterno retorno. Além disso, sendo toda nossa cultura mediatizada pela
consciência, considerada reativa (negativa) por natureza, o crivo do eterno retorno
assume um importante papel para os propósitos deleuzeanos de mostrar a
possibilidade de um pensamento inconsciente, ativo, afirmativo e imediato, próprio
da diferença. No nosso entender, a intenção é passar toda filosofia produzida até
agora, em especial o pensamento da consciência, pelo crivo do eterno retorno,
extraindo-lhe o negativo e as mediações, tornando-a filosofia da Diferença
afirmativa ou do Acontecimento. Em vez de um mundo de indivíduos e pessoas
constituídos por intermédio de uma consciência, aparece uma multiplicidade de
singularidades pré-individuais, impessoais e inconscientes: os diferentes. Nesse
sentido, o eterno retorno encontra uma tradução perfeita na lógica do anel de
394 Cf. Deleuze, NF, cap. III “Ativo e reativo”, de pp.61 a 109; orig. NP, cap. «Actif et
réactif», de pp.44 a 82. 395 Deleuze, NF, p.98; orig. NP, p.73 : « le ressentiment, la mauvaise conscience, le
fondement de l’humanité dans l’homme. Ils sont le principe de l’être humain comme tel ».
129
Moebius, que rompe com a contraposição dual do dentro e do fora, colocando-os na
mesma superfície. Lógica esta que está em oposição direta ao círculo da dialética
(cercle de la dialectique) hegeliana, infinito e dotado de um único centro, que
realiza “uma seleção circular, mas sempre em proveito do que se conserva na
representação infinita”; “a seleção funciona ao avesso e elimina impiedosamente o
que tornaria o círculo tortuoso”396.
Para tanto, Deleuze parece considerar a força no eterno retorno de Nietzsche
não mais no embate com outra força, mas numa relação consigo mesma, ou seja,
com sua vontade de potência, em que seu poder de afirmar ou negar será voltado
para si própria (ou contra si mesma). Deleuze vislumbra nele duas etapas seletivas:
numa se dá a afirmação do devir (pensamento seletivo) e na outra, a afirmação do
ser (ontologia seletiva). Segundo ele, as forças reativas resistem à primeira seleção:
por ir ao limite daquilo que pode, “encontram na vontade niilista um motor
poderoso” e, “longe de cair fora do eterno retorno”, “entram no eterno retorno e
parecem retornar com ele”397, posto que é possível querer o negativo, por exemplo,
querer a obediência ou a escravidão. Nesse primeiro movimento, aparentemente, a
afirmação do devir confere à força reativa uma confirmação de sua negação.
“É necessário esperar por uma segunda seleção, muito diferente da
primeira”398, avisa Deleuze. O segundo movimento é o retornar propriamente dito,
em que a primeira afirmação é afirmada por uma segunda afirmação, tornando-se
objeto da segunda. Ele esclarece que o retornar é o redobramento da afirmação que
dá a ele um caráter necessário e torna possível se falar em ser do devir. Então, qual
é o ser do devir, ou antes, o que é o devir? É a afirmação da afirmação. Em outras
palavras: porque a primeira afirmação se tornou objeto da segunda, possibilitado
pelo retornar, é que se pode falar em ser do devir, dizer o que é o devir. Nessa
segunda etapa, o retornar, ou melhor, a duplicação da afirmação, transforma-se em
396 Deleuze, DR, p.103; orig. p.76 : « une sélection circulaire dialectique, mais toujours à
l’avantage de ce qui se conserve dans la représentation infinie » ; « la sélection fonctionne à
rebours, et élimine impitoyablement ce qui rendrait le cercle tortueux ». 397 Deleuze, NF, p.105 ; orig. NP, p.78 : « loin de tomber hors de l’éternel retourn, elles
entrent dans l’éternel retour et semblent revenir avec lui ». 398 Deleuze, NF, p.105; orig. NP, p.78: « faut-il s’attendre à une seconde sélection, très
différente de la première ».
130
crivo seletivo e faz com que a força reativa se negue, redobradamente, ao máximo
de sua potência até a autodestruição.
No primeiro movimento, Deleuze entende que a negação da força reativa
perdura porque o pensamento seletivo não consegue alterar a qualidade negativa da
força somente pela afirmação do devir. Ao nosso ver, tal afirmação é uma espécie
de equivalente da negação: afirmação = negação, ou seja, +1 = -1. Porém, no
segundo movimento, a afirmação é intensificada, seu redobramento confere um
caráter necessário ao devir e permite que o ser se constitua. O ser é o próprio
retornar (o mesmo, a repetição) daquilo que retorna, isto é, do diferente, do devir,
do acaso. Em outras palavras, o âmbito de Aion só se torna verdade eterna quando
estabelecidos os três movimentos do presente: subversão, efetuação e contra-
efetuação (como veremos), ou antes, o Acontecimento como efeito incorporal tem
dimensão própria e não é tragado pela profundidade dos corpos (sua causa) devido à
conjugação entre impassibilidade e poder de gênese, como vimos.
No eterno retorno, a duplicação da afirmação funciona como um
redobramento da negação no caso da força reativa. Isso porque, no nosso entender,
não há diferença entre dizer « a afirmação da negação » e « a negação da negação »;
em ambos os casos, a negação interna da força é elevada à máxima potência até o
seu auto-aniquilamento que tem potência afirmativa. Vontade de potência negativa
é igual à vontade de nada e ao niilismo. Deleuze questiona: “o que é que acontece
quando a vontade de nada se relaciona com o eterno retorno? É apenas aí que ela
desmancha a sua aliança com as forças reativas. É apenas o eterno retorno que faz
do niilismo um niilismo completo, na medida em que faz da negação uma negação
das próprias forças reativas. O niilismo, pelo e no eterno retorno, já não se exprime
como a conservação e a vitória dos fracos, mas como a destruição dos fracos, a sua
auto-destruição”399.
399 Deleuze, NF, p.106; orig. NP, p.79: « que se passe-t-il quand la volonté de néant est
rapportée à l’éternel retour ? C’est là seulement qu’elle brise son alliance avec les forces
réactives. C’est seulement l’éternel retour qui fait du nihilisme un nihilisme complet, parce
qu’il fait de la négation une négation des forces réactives elles-mêmes. Le nihilisme, par et
dans l’éternel retour, ne s’exprime plus comme la conservation et la victorie des faibles,
mais comme la destruction des faibles, leur auto-destruction ».
131
Nesse ‘suicídio’ das forças reativas, explica Deleuze, elas próprias negam-se
e conduzem-se ao nada. “É por isso que a auto-destruição é dita operação ativa, uma
destruição ativa. É ela, e apenas ela, que exprime o devir-ativo das forças: as forças
tornam-se ativas na medida em que as forças reativas se negam, se suprimem”400.
Tal como ocorre em Aion, em que nada sobe à superfície sem mudar de natureza, é
assim que se dá a troca de natureza da força reativa para ativa, da vontade de
potência negativa para afirmativa, ou seja, o que permanece de sua auto-destruição
é somente a potência afirmativa, o devir ativo após passar pelo crivo do eterno
retorno. Tal como no eterno retorno, em Aion, é impossível contrapor afirmativo e
negativo, verdadeiro e falso, pois se está no âmbito do incondicionado, das
singularidades, dos Acontecimentos e não dos individuados. Deleuze enfatiza que
“esta é a única maneira de as forças reativas se tornarem ativas”401; negando-se,
elas são transformadas, pois, só a segunda seleção faz o eterno retorno produzir “o
devir-ativo” (devenir-actif). De acordo com ele, na primeira seleção, o pensamento
do eterno retorno seleciona, faz do querer qualquer coisa de inteiro e elimina desse
querer tudo o que cai fora do eterno retorno. Assim, ele faz do querer uma criação,
efetuando a equação: “querer = criar”, como vimos402.
Contudo, na segunda seleção, pelo eterno retorno, faz-se “entrar no ser
aquilo que aí não pode entrar sem mudar de natureza”. Assim, “já não se trata de
um pensamento seletivo, mas do ser seletivo; porque o eterno retorno é o ser, e o ser
é seleção (seleção = hierarquia)”403. Hierarquia aqui significa a superioridade das
forças ativas sobre as reativas. Segundo Deleuze, para afirmar plenamente o ser do
devir é preciso afirmar também a existência do devir-ativo, ou seja, é necessário
afirmar dobrado. Ele resume a questão: “o eterno retorno como doutrina física
afirma o ser do devir. Mas, enquanto ontologia seletiva, afirma este ser do devir 400 Deleuze, NF, p.106; orig. NP, pp.79 a 80: « c’est pourquoi l’auto-destruction est dite une
opération active, une «destruction active». C’est elle, et elle seulement, qui exprime le
devenir-actif des forces : les forces deviennent actives dans la mesure où les forces
réactives se nient, se suppriment ». 401 Cf. Deleuze, NF, p.107; orig. NP, p.80. 402 Deleuze, NF, p.105; orig. NP, p.78: « l’équation vouloir = créer ». 403 Deleuze, NF, pp.107 a 108; orig. NP, p.80: « il ne s’agit plus d’une pensée sélective,
mais de l’être sélectif ; car l’éternel retour est l’être, et l’être est sélection. (Sélection =
hiérarchie.) ».
132
como «afirmando-se» do devir-ativo”404. Então, somente após a segunda seleção,
podemos falar de “um outro devir, uma outra sensibilidade: o além-do-homem”405.
Na concepção deleuzeana, o eterno retorno, em Nietzsche, é a única maneira
de trocar a natureza da força reativa para ativa, ao fazer subir as misturas corporais
do mau Cronos, devir da profundidade, à linha de Aion, devir de superfície,
tornando-as incorporais. Segundo Deleuze, ele consegue destruir a primazia da
negação hegeliana e livrar a diferença do sinal negativo, logo, do jugo do idêntico.
Assim o estado terminal ou de equilíbrio do processo dialético hegeliano é criticado
no próprio enunciado do eterno retorno, pois, explica ele, “se o devir tivesse uma
meta ou um estado final, já o teria atingido. Ora, o instante atual, como instante que
passa, prova que não é atingido: portanto, o equilíbrio das forças não é possível”406.
Há sempre uma disparidade, um desequilíbrio, um excesso que impede qualquer
fim. Deleuze mostra como o eterno retorno, elevando as forças ao extremo, produz
tanto o novo, uma forma superior (o além-do-homem), o ser do diferente como
também a destruição da pressuposição hegeliana da identidade dos contrários que se
assemelha, em certa medida, ao devir do mau Cronos, e não ao de Aion.
O eterno retorno, pois, opera a verdadeira seleção (vraie sélection) que
contesta Hegel, pois “ele elimina as formas médias e extrai «a forma superior de
tudo o que é»”407. Longe de ser a identidade dos contrários, o extremo é “a
univocidade do diferente” (univocité du differente); contrária à forma infinita, a
forma superior é, antes, “o eterno informal do próprio eterno retorno” (l’éternel
informal de l’éternel retour lui-même) por meio das transformações. Deleuze
explica que “o eterno retorno «estabelece» a diferença, porque cria a forma
superior. O eterno retorno serve-se da negação como nachfolge” [imitação] “e
404 Deleuze, NF, p.109; orig. NP, p.81: « l’éternel retour comme doctrine physique affirme
l’être du devenir. Mais, en tant qu’ontologie sélective, il affirme cet être du devenir comme
«s’affirmant» du devenir-actif ». 405 Deleuze, NF, p.99; orig. NP, p.74: « un autre devenir, une autre sensibilité: le
surhomme ». 406 Deleuze, NF, p.73; orig. NP, p.53: « si le devenir avait un but ou un état final, il l’aurait
déjà atteint. Or, l’instant actuel, comme instant qui passe, prouve qu’il n’est pas atteint :
donc l’équilibre des forces n’est pas possible ». 407 Deleuze, DR, p.104; orig. p.77 : « il élimine au contraire les formes moyennes et dégage
«la forme supérieure de toute ce qui est » ».
133
inventa uma nova fórmula da negação da negação: é negado, deve ser negado tudo
o que pode ser negado. O gênio do eterno retorno não está na memória, mas no
desperdício, no esquecimento tornado ativo. Tudo o que é negativo e tudo o que
nega, todas estas afirmações médias que carregam o negativo, todos estes pálidos
Sim mal vindos que saem do não, tudo o que não suporta a prova do eterno
retorno, tudo isto deve ser negado. Se o eterno retorno é uma roda, é preciso ainda
dotá-la de um movimento centrífugo violento que expulsa tudo o que «pode» ser
negado, o que não suporta a prova”. “Assim a negação como conseqüência resulta
da plena afirmação, consome tudo o que é negativo e consome a si própria no centro
móvel do eterno retorno. Se o eterno retorno é um círculo, é a Diferença que está no
centro, estando o Mesmo somente na circunferência – centro descentrado a cada
instante, constantemente tortuoso, que gira apenas em torno do desigual”408.
Contudo, vimos que a melhor figura para o eterno retorno é a linha reta, resultado
da ruptura do anel de Moebius. Entendida dessa forma, a reta ganha uma
paradoxalidade intrínseca que dá conta do retornar do diferente, do devir de duplo
sentido, do Acontecimento. Dessa maneira, avançando ao mesmo tempo para o
passado e futuro sem jamais se deter no presente, pondera Zourabichvili, “o
acontecimento põe em crise a idéia de história”409, considerando “história” como
constituída por presentes ou efetuações. Ou, pelo menos, exige uma redefinição da
408 Deleuze, DR, pp.104 a 105 (grifos nossos); orig., pp.77 a 78: « l’éternel retour «fait» la
différence, parce qu’il crée la forme supérieure. L’éternel retour se sert de la négation
comme nachfolge, et invente une nouvelle formule de la négation de la négation : est nié,
doit être nié tout ce qui peut être nié. Le génie de l’éternel retour n’est pas dans la mémoire,
mains dans le gaspillage, dans l’oubli devenu actif. Tout ce qui est négatif et tout ce qui nie,
toutes ces affirmations moyennes qui portent le négatif, tous ces pâles Oui mal venus qui
sortent du non, tout ce qui ne supporte pas l’épreuve de l’éternel retour, tout cela doit être
nié. Si l’éternel retour est une roue, encore faut-il doter celle-ci d’un mouvement centrifuge
violent, qui expulse toute ce qui «peut» etrê nié, ce qui ne supporte pas l’épreuve ». « Ainsi
la négation comme conséquence résulte de la pleine affirmation, consume tout ce qui est
néagtif, et se consume elle-même au centre mobile de l’éternel retour. Car si l’éternel retour
est un cercle, c’est la Différence qui est au centre, et le Même seulement au pourtour –
cercle à chaque instant décentré, constamment tortueux, qui ne tourne qu’autour de
l’inégal ». 409 Zourabichvili, DPE, p.19: « l’événement met donc en crise l’idée d’histoire ».
134
história em função do acontecimento, tal como fez Michel Foucault que propôs uma
história da descontinuidade observando as rupturas, as irrupções dos
acontecimentos410.
2.6.4) Eterno Retorno: além-do-homem
“O prólogo de Zaratustra contém como que o segredo do eterno
retorno”411, assevera Deleuze, referindo-se ao niilismo do personagem, a sua
vontade de se destruir, já que ele quer seu próprio declínio, quer perecer412. Ao
nosso ver, outrossim no preâmbulo de seu Assim falou Zaratustra (Also sprach
Zarathustra), Nietzsche descreve a descida de Zaratustra da montanha como um
jogo entre “excesso” e “falta” que Deleuze apresenta-nos no Lógica do sentido
como sendo próprio da superfície incorporal, portanto, da diferença. Também
podemos compreender sua decisão de descer como a expressão de um querer
intenso, seletivo, próprio da primeira etapa do eterno retorno. No nosso entender, é
o excesso de querer e de saber que leva Zaratustra a agir, que o impele a descer a
montanha: ele está transbordante de idéias como uma taça que precisa esvaziar. Não
fosse esse excesso, ele não agiria, portanto, ele desce sem a opção de escolha de
fazer o contrário disso.
Tal excesso traduz-se no anúncio filosófico (conceitual) do além-do-homem
(Übermensch), bem como da morte de Deus. Porém, esse excesso de saber e querer
é, paradoxalmente, também uma falta já que Zaratustra não é o além-do-homem, é
somente o seu anunciador. Na concepção deleuzeana, Zaratustra é o porta-voz do
eterno retorno, quem “o determina a produzir um efeito: o além-do-homem”413. Na
“odisséia filosófica” nietzscheana, Zaratustra, em sua “conversa” com o sol,
pondera sobre um querer que, longe de significar uma vontade subjetiva, exprime o
inevitável, o destino. O próprio Nietzsche admite em outra passagem do livro que
410 Foucault, A arqueologia do saber, p.6; orig.L’archéologie du savoir, p.12. 411 Deleuze, NF, p.106; orig. NP, p.79: « le prologue de Zarathoustra contient comme le
secret prématuré de l’éternel retour ». 412 Cf. Nietzsche, AFZ, prólogo, 4. 413 Deleuze, NF, p.287 (grifos nossos); orig. NP, p.221: « Zarathoustra détermine l’éternel
retour ; bien plus, il détermine l’éternel retour à produire son effet, le surhomme ».
135
“vontade” (Wille) é sinônimo (e transmutação) de “necessidade”
(Not/Notwendigkeit) entendida como “destino” (Schicksal)414. Zaratustra desabafa:
“Vê! Aborreci-me da minha sabedoria, como a abelha do mel que juntou em
excesso; preciso de mãos que para mim se estendam”. “Abençoa a taça que quer
transbordar, a fim de que sua água escorra dourada, levando por toda a parte o
reflexo da tua bem-aventurança! Vê! Esta taça quer voltar a esvaziar-se e Zaratustra
quer voltar a ser homem”415. Assim, Zaratustra experiencia o seu próprio ocaso,
posto que abandona sua caverna no alto da montanha para anunciar o “além-do-
homem”, tido como uma superação do homem, um excesso em relação a Zaratustra,
portanto, inversamente, Zaratustra é uma falta no que concerne ao além-do-homem.
Em nossa concepção, ao descer a montanha, Zaratustra realiza as duas
provas seletivas do eterno retorno descritas por Deleuze em Nietzsche e a filosofia
(Nietzsche et la philosophie). Vimos que a primeira prova consiste num querer
seletivo que elimina do eterno retorno tudo o que não é da ordem desse querer.
Descer a montanha é manifestação desse querer, como uma taça que quer
transbordar e não pode deixar de fazê-lo, provocado por enjôo e aborrecimento a
um excesso de saber. A segunda prova seletiva é determinada por Zaratustra ao
produzir (ou anunciar) o além-do-homem416, embora ele mesmo não retorne.
Deleuze explica que “só retorna o que é extremo, excessivo, o que passa no outro e
se torna idêntico”. “O eterno retorno, o retornar, exprime o ser comum de todas as
metamorfoses, a medida e o ser comum de tudo o que é extremo”. “É o ser-igual de
tudo o que é desigual e que soube realizar plenamente sua desigualdade. Tudo o que
é extremo, tornando-se o mesmo, entra em comunicação num Ser igual e comum
414 Cf. Nietzsche, AFZ, 3ª parte, p.221. 415 Nietzsche, AFZ, 1ª parte, p.27; orig., pp. 5 a 6: “Siehe! Ich bin meiner Weisheit
überdrüssing, wie die Biene, die des Honigs zu viel gesammelt hat, ich bedarf der Hände,
die sich ausstrecken”. “Siehe! Dieser Becher will wieder leer werden, und Zarathustra will
wieder Mensch werden”. Note que a idéia de “excesso” está expressa nas palavras “zu viel
gesammelt” (concentrado em demasia) e “überflieBen” (transbordar), mas também em
“überdrüssing” (aborrecer) e a de “necessidade” está no termo “bedarf” . 416 Cf. Deleuze, NF, p.287 (grifos nossos); orig. NP, p.221.
136
que determina o retorno. Eis por que o além-do-homem é definido pela forma
superior de tudo o que «é»”417.
As noções de excesso e falta encontradas em Nietzsche também são
articuladas por Carroll em Através do espelho e o que Alice encontrou lá (Through
the looking-glass), que mostra uma combinação da casa vazia e ocupante sem lugar,
por meio do deslocamento perpétuo de uma peça brilhante na loja da ovelha,
perseguida com olhos por Alice sem nunca conseguir alcançá-la. Vimos que casa
vazia significa não-senso de superfície, elemento aleatório e sempre deslocado,
responsável pela comunicação entre as séries disjuntas, tidas como expressão da
própria diferença. Conta Carroll, por meio da personagem Alice: “a loja parecia
cheia de coisas curiosas ... mas, o mais estranho de tudo era o seguinte: cada vez
que olhava mais demoradamente uma prateleira, para ver o que continha
exatamente, esta parecia sempre vazia, enquanto as outras em volta transbordavam
de coisas, além de sua capacidade”. “— Vou persegui-lo até a prateleira mais alta
de todas”. “Mas, até esse plano falhou: a «coisa» atravessou o teto com a maior
tranqüilidade, como se estivesse ali para isso”418.
Segundo análise de Deleuze, “Alice comprova aí a complementaridade da
«prateleira vazia» e da «coisa brilhante que se acha sempre acima», do lugar sem
417 Deleuze, DR, p.84 (grifos nossos); orig. p.60: « seul revient ce qui est extrême, excessif,
ce qui passe dans l’autre et devient identique ». « L’éternel retour, le revenir, exprime l’être
commun de toutes les métamorphoses, la mesure et l’être cmmun de tout ce qui est
extrême ». « C’est l’être-égal de tout ce qui est inégal, et qui a su réaliser pleinement son
inégalité. Tout ce qui est extrême devenant le même communique dans un Être égal et
commun qui en détermine le retour. C’est pourquoi le surhomme est défini par la forme
supérieure de tout ce qui «est» ». 418 Carroll, AE, cap. 5: “Lã e água”, pp.185 a 186 ; orig. Through the looking-glass, cap. 5:
“Wool and Water”, pp. 185 a 186: “the shop seemed to be full of all manner of curious
things – but the oddest part of it all was that, whenever she looked hard at any shelf, to
make out exactly what it had on it, that particular shelf was always quite empty, though the
others round it were crowded as full as they could hold”. “I’ll follow it up to the very top
shelf of all”. “But even this plan failed: the «thing» went through the ceiling as quietly as
possible, as if it were quite used to it”.
137
ocupante e do ocupante sem lugar”419. Essa circunstância inventada por Carroll é
traduzida por ele, conceitualmente, como sendo uma instância (ou fronteira) dotada
de duas faces ímpares, em desequilíbrio, uma em excesso (significante) e outra em
falta (significada). Diz Deleuze sobre a “dupla face”, que são as “duas metades
desiguais ou ímpares”420 da fronteira: “seu excesso remete sempre a sua própria
falta e inversamente. De tal forma que estas determinações são ainda relativas. Pois
o que é em excesso de um lado, senão um lugar vazio extremamente móvel? E o
que está em falta do outro lado não é um objeto muito móvel, ocupante sem lugar,
sempre extranumerário e sempre deslocado?”421.
Esse jogo entre excesso e falta faz a Diferença, além de revelar, ao nosso
ver, uma lógica paradoxal ao mesmo tempo que uma crítica ao pensamento da
Identidade que se articula não pelo querer seletivo ou pelo destino, mas por
economia e escolha, regidas pela lógica do terceiro excluído. No nosso entender, a
intensidade desse querer é um excesso tal como um extravasamento, uma enchente,
um inchaço, uma intumescência, um derramamento em que o continente não
consegue reter o conteúdo excedente que transborda. Contudo, também é uma falta
posto que tudo o que cai fora dele não retorna. Nesse tipo de pensamento e ação, a
“exata medida” ou o equilíbrio próprio do pensamento da Identidade é sinônimo de
inação: nada aconteceria se ele não apresentasse esse enjôo, esse transbordamento; é
o excesso que o leva para além de si próprio, para a superação de si e a descer a
montanha. Inversamente, durante uma escalada, em conversa consigo mesmo,
Zaratustra só consegue chegar ao cume do monte através da superação de si, ou
seja, subindo em “sua própria cabeça” e fazendo-se de escada para si, para ir além
de si mesmo, o que significa se superar, obter um excesso em relação a si próprio.
Diz ele para si próprio: “Mas tu, Zaratustra, quiseste olhar a razão e o fundo de 419 Deleuze, LS, p.44; orig. p.56 : « Alice y éprouve la complémentarité de «l’étagère vide»
et de «la chose brillante qui se trouve toujours au-dessus», de la place sans occupant et de
l’occupant sans place ». 420 Deleuze, LS, p.44; orig. p.56 : « double face », « deux moitiés inégales ou impaires ». 421 Deleuze, LS, p.44; orig. P.56 : « son excès renvoie toujours à son propre défaut, et
inversement. Si bien que ces déterminations sont encore relatives. Car ce qui est en excès
d’un côté, qu’est-ce d’autre sinon une place vide extrêmement mobile ? Et ce qui en défaut
de l’autre côté, n’est-ce pas un objet très mouvant, occupant sans place, toujours
surnumérarie, et toujours déplacé ? ».
138
todas as coisas; assim, deves subir para além de ti mesmo – para cima, para o alto,
até teres as tuas próprias estrelas debaixo de ti!”422.
Somente o excesso consegue produzir a novidade do além-do-homem que
Zaratustra precisa anunciar, ele mesmo uma falta em relação ao que anuncia, o que
seria impossível regido que fosse pela exata medida e pelo equilíbrio da razão. O
que quer dizer que o excedente e o faltante produzem um descentramento, um
desequilíbrio, uma ação e uma novidade. O excesso do pensamento só é possível
quando falta um fundamento. Essa falta invalida a hipótese da harmonia entre os
opostos, contemplada pela dialética, e a própria admissão de haver oposição,
observável desde os pré-socráticos, passando por Hegel, atravessando toda a
história da filosofia. Na falta do ponto fixo de um princípio fundador, o excesso
necessariamente conduz o pensar e o agir. Ao nosso ver, essa é a tarefa do crivo do
eterno retorno: extirpar o fundamento de toda filosofia para provocar-lhe a vertigem
do a-fundamento ou do desabamento e impor-lhe a mudança de natureza. E o
“profundo sem fundo” é a superfície, “o mais profundo é a pele”: tudo muda de
natureza ao subir à superfície. Nesse sentido, ao dizer que o homem, a ser superado,
é uma corda estendida sobre o abismo entre o animal e o além-do-homem423, em
nossa concepção, reproduz esse jogo entre excesso (além-do-homem) e falta
(animal, homem). O próprio Zaratustra afirma: “cume e abismo – resolveram-se
numa única coisa!”424. O denominador comum entre cume e abismo, ao nosso ver, é
a superfície.
A noção de homem precisa ser eliminada para que surja a de além-do-
homem, em que o universo do primeiro é articulado por escolhas, mas o do segundo
é pelo destino. No nosso entender, o pensamento ante-crivo do eterno retorno, por
economia, opera de maneira assemelhada à matemática, a exemplo do raciocínio
geométrico em que a reta é tida a mais curta distância entre dois pontos, a trajetória 422 Nietzsche, AFZ, 3ª parte, p.162: “Du aber, o Zarathustra, wolltest aller Dinge Grund
schaun und Hintergrund: so muBt du schon über dich selber steigen, – hinan, hinauf, bis du
auch deine Sterne noch unter dir hast!”. 423 Cf. Nietzsche, AFZ, 1ª parte, p.31: “O homem é uma corda estendida entre o animal e o
além-do-homem – uma corda sobre um abismo”. Orig. p.11: “Der Mensch ist ein Seil,
geknüpft zwischen Tier und Übermensch, – ein Seil über einem Abgrunde”. 424 Nietzsche, AFZ, 3ª parte, p.161; orig. p.168: “Gipfel und Abgrund – das ist jetzt in Eins
beschlossen!”.
139
mais econômica para uni-los, que caracteriza, em linhas gerais, a filosofia da
representação. O pensamento pós-crivo do eterno retorno parece ter dupla
inspiração na física, se considerarmos como exemplo, a motivação de Zaratustra
para sua descida, ou seja, o excesso de querer e de saber: primeiramente, manifesta
uma situação de ambivalência (posto que não há escolhas), como a indefinição
quântica entre onda e partícula; em segundo lugar, outrossim expressa uma relação
de desequilíbrio de forças, como na área de hidrostática, em que o conteúdo
ultrapassa o continente, como a água de um copo que, excedente, necessariamente
entorna – nessa relação, a água (conteúdo) é um excesso e o copo (continente) é
uma falta. Outrossim em sua análise sobre Os trabalhos e os dias de Hesíodo
(século VIII a.C.), Nietzsche, em nossa concepção, vislumbra a dinâmica entre
excesso e falta por meio da apresentação de duas deusas: a Éris boa e a Éris má. A
segunda pode ser considerada um excesso em relação à primeira, que, inversamente,
é uma falta. A Éris boa leva os homens à ação pela inveja e rivalidade; na sua falta,
os homens permanecem na inação. Contudo, um excesso disso conduz à atuação da
Éris má, ou seja, guerra e aniquilação. Segundo Nietzsche, a Éris má “conduz os
homens à luta aniquiladora e hostil entre si”425 e a Éris boa, qualificada “como
ciúme, rancor, inveja, estimula os homens para a ação, mas não para a luta
aniquiladora, e sim para a ação da disputa”426. Ele se refere ao seguinte texto de
Hesíodo:
“Há sobre a Terra duas deusas Éris. Uma Éris deve ser louvada, quanto a
outra deve ser censurada, pois diferem totalmente no ânimo estas duas deusas. Pois
uma delas conduz à guerra má e ao combate, a cruel! Nenhum mortal preza sofrê-la,
pelo contrário, sob o jugo da necessidade prestam-se as honras ao fardo pesado
desta Éris, segundo os desígnios dos imortais. Ela nasceu como mais velha, da noite
negra; a outra, porém, foi posta por Zeus, o regente altivo, nas raízes da Terra e
entre os homens, como bem melhor. Ela conduz até mesmo o homem sem
capacidades para o trabalho; e um que carece de posses observa o outro, que é rico,
e então se apressa a semear e plantar do mesmo modo que este, e a ordenar bem a
casa; o vizinho rivaliza com o vizinho que se esforça para seu bem-estar. Boa é esta
425 Nietzsche, CP, p.78. 426 Nietzsche, CP, p.79.
140
Éris para os homens. Também o oleiro guarda rancor do oleiro, e o carpinteiro do
carpinteiro, o mendigo inveja o mendigo e o cantor inveja o cantor”427.
Ao que parece, havia uma auto-regulação na sociedade grega: o ciúme, a
inveja e a rivalidade levavam as pessoas à ação e esse excesso era estimulado, pois,
em sua falta, havia apenas inação. Contudo, embora a inveja não fosse censurada, já
que era provocada por uma divindade benéfica, ela era, de certa forma, refreada
pelos homens para evitar um outro tipo de inveja, a de um deus sobre as conquistas
humanas que, certamente, por ser superior, provocaria aniquilação. Explica
Nietzsche: o homem, “porque invejoso, ele sente, também no seu excesso de honra,
riqueza, brilho e felicidade, repousar sobre si o olho invejoso de um deus, temendo
tal inveja” e “inclina-se diante da inveja divina”428. O recurso ao ostracismo pelos
gregos, que expulsa da cidade as pessoas que se destacam do todo em alguma
atividade (que apresentam algum excesso em relação às outras pessoas), também é
uma ação reguladora do governo. Em seu sentido original, o ostracismo visa
eliminar “aqueles que sobressaem, para que o jogo da disputa desperte
novamente”429. Ao nosso ver, há uma ênfase nietzscheana ao jogo de disputa, que
pode ser traduzido num outro jogo, o de excesso e falta, como correlato do crivo do
eterno retorno.
2.6.5) Ante-crivo seletivo: relação de forças
A relação entre forças antecede ao crivo do eterno retorno que seleciona
apenas o diferente, o Acontecimento. No ante-crivo, é preciso ainda invalidar as
questões da representação para que apenas prevaleça a diferença. Entretanto, avisa
Deleuze, devemos evitar «dialetizar», pois, “o anti-hegelianismo atravessa a obra de
Nietzsche como o fio da agressividade”430. Na análise deleuzeana, o embate entre
forças não é uma luta entre opostos, mas sim uma relação afirmativa entre dois
termos também afirmativos. Na luta, cada força afirma-se no máximo de sua
427 Hesíodo, TD, p. 58; trad. de Nietzsche, CP, pp.77 a 78 (grifos nossos). 428 Nietzsche, CP, p.79 (grifos nossos). 429 Nietzsche, CP, p.81 (grifos nossos). 430 Deleuze, NF, p.16; orig. p.9 : « l’anti-hégélianisme traverse l’œuvre de Nietzsche,
comme le fil de l’agressivité ».
141
potência, contudo, a diferença de quantidade de força entre elas é que determina a
vitória ou a derrota de uma delas, a dominadora e a dominada. Segundo Deleuze, a
dialética, que contrapõe um termo ao outro, não basta para expressar o pluralismo,
que é seu inimigo mais feroz e profundo431. Destarte, ao contrário da dialética
hegeliana, a relação entre forças não carrega em seu âmago o negativo, tendo em
vista que a força que se faz obedecer não nega a outra e nem a si própria, mas sim
“afirma a sua própria diferença”432. Conforme ele, a afirmação é posta no lugar da
negação, e assim, “a diferença constitui o objeto de uma afirmação prática
inseparável da essência e constitutiva da existência”433. Para ele, “ao elemento
especulativo da negação, da oposição ou da contradição, Nietzsche substitui pelo
elemento prático da diferença: objeto de afirmação e de prazer. É nesse sentido que
existe um empirismo nietzcheano”434.
Para Deleuze, Nietzsche rejeita a dialética porque é uma força esgotada que
não consegue afirmar sua diferença435. Entretanto, se a relação entre forças é
afirmativa, como explicar a vontade de potência ‘negativa’ (o querer interno) da
força reativa? Pois, no ideário nietzscheano, apenas a força ativa detém vontade de
potência afirmativa. A força reativa, ao contrário, carrega em sua essência o
elemento negativo, o que, na sua relação com o outro, a faz negar tudo aquilo que
ela não é. Ademais, o embate entre elas não é determinante para alterar a natureza
da força reativa quer ela vença ou perca, mudança esta que só acontece quando
submetida à prova do eterno retorno, como vimos. Deleuze explica que não há
contradição nisso, pois o negativo assume somente uma posição secundária na
relação entre forças, o que não acontece com a dialética em que a negação é
preponderante. É por isso que Nietzsche, na concepção deleuzeana, apresenta a
dialética como o pensar próprio do escravo, como a especulação da plebe, em que a
agressividade afirmativa cede lugar ao pensamento abstrato da contradição que o 431 Cf. Deleuze, NF, pp.15 a 16; orig. NP, p.9. 432 Deleuze, NF, p.16; orig. NP, p.9: « elle affirme sa propre différence ». 433 Deleuze, NF, p.17; orig. NP, p.10: « la différence est l’objet d’une affirmation pratique
inséparable de l’essence et constitutive de l’existence ». 434 Deleuze, NF, p.16; orig. NP, p.10: « a l’élément spéculatif de la négation, de
l’opposition ou de la contradiction, Nietzsche substitue l’élément pratique de la différence :
objet d’affirmation et de jouissance. C’est en ce sens qu’il y a un empirisme nietzschéen ». 435 Cf. Deleuze, NF, p.17; orig. NP, p.10.
142
conduz a uma reação sobre a ação, a uma vingança e ressentimento. Ademais, é
preciso deixar bem clara uma coisa: a relação senhor-escravo não é em si mesma
dialética, pois quem dialetiza a relação é o escravo. Em outras palavras, a dialética é
o ponto de vista apenas do escravo, e, por conseguinte, o processo dialético de
Hegel é o pensar do escravo436.
Conforme Deleuze, a célebre relação «senhor-escravo» é transformada em
dialética apenas se compreendida como representação do poder, como
reconhecimento um da superioridade do outro, tal como faz Hegel, para quem as
vontades querem reconhecer ou representar seu poder. Porém, trata-se de uma visão
caolha e própria do escravo, pois não enxerga em cada força uma vontade de
potência. Deleuze observa: “se a relação do senhor e do escravo toma facilmente a
forma dialética, a ponto de se tornar como que um arquétipo ou uma figura de
escola para qualquer jovem hegeliano, é porque o retrato que Hegel nos propõe do
senhor é, desde o início, um retrato feito pelo escravo, um retrato que representa o
escravo, pelo menos tal como ele o sonha, quanto muito um escravo ambicioso. Sob
a imagem hegeliana do senhor, é sempre o escravo que transparece”437. Sob a
perspectiva nietzscheana, entretanto, aparece a própria relação afirmativa entre as
forças.
2.6.6) Pós-crivo seletivo: diferença
Em nossa concepção, Deleuze realiza, com sua análise sobre Nietzsche, a
maior das galhofas com Hegel: ele faz a dialética da contradição passar pela prova
do eterno retorno. Vimos que, no turbilhão do eterno retorno, a negação da negação,
longe de conduzir ao apaziguamento da identidade final, provoca sua
autodestruição, pois detém uma potência afirmativa visto que tudo muda de
436 Cf. Deleuze, NF, p.18; orig. NP, p.11. 437 Deleuze, NF, p.18 (grifos nossos); orig. NP, p.11: « si la relation du maître et de
l’esclave emprunte aisément la forme dialectique, au point d’être devenue comme un
archétype ou une figure d’école pour tout jeune hégélien, c’est parce que le portrait que
Hegel nous propose du maître est, dès le début, un portrait fait par l’esclave, un portrait qui
répresente l’esclave, au moins tel qu’il se rêve, tout au plus un esclave arrivé. Sous l’image
hégélienne du maître, c’est toujours l’esclave qui perece ».
143
natureza. E a mudança de natureza possibilita o retorno da diferença, do
acontecimento. Em outras palavras, conforme essa interpretação, Hegel, ao passar
pelo crivo seletivo de Nietzsche, é transformado em Deleuze, ou antes, o
hegelianismo verte-se em filosofia da diferença e a negação em afirmação. O ser
dialético é trocado pelo ser do devir, do eterno retorno do diferente.
Deleuze observa que “quando os problemas atingem o grau de positividade
que lhes é próprio e quando a diferença torna-se objeto de uma afirmação
correspondente, eles liberam uma potência de agressão e de seleção que destrói a
bela-alma, destituindo-a de sua própria identidade e alquebrando sua boa
vontade”438. Da seleção do eterno retorno resultam as diferenças puras, libertas do
idêntico e independentes do negativo, e a relação do diferente com o diferente.
Por conseguinte, o novo devir ou a nova sensibilidade produzida pelo eterno
retorno, que Nietzsche anuncia com o além-do-homem, é o pensamento ou o ser da
diferença. Ao que nos parece, Deleuze concebe sua filosofia como sendo essa
produção do novo, como resultado do crivo seletivo e assume-a como diferença
afirmativa por excelência já que não mais submissa ao jugo da identidade e aos
preceitos da representação. É sua filosofia da diferença que retorna enquanto
Acontecimento.
Conforme essa interpretação, o mais elementar dos erros é introduzir o
negativo no pensamento da diferença que, por definição ou por natureza, é
afirmativa já que é o efeito produzido pelo eterno retorno, efeito que subiu à
superfície de Aion, e ‘situa-se’ na fronteira, no ‘não-lugar’. Então, ao passar pelo
eterno retorno, todas as forças tornam-se ativas e a realidade pós-crivo, ao que tudo
indica, é a realidade do pensamento da diferença, que considera a diferença em si
mesma, seu movimento de repetição e a relação do diferente com o diferente, sem
inclusão do negativo. Como colocar negação no Acontecimento, esse impassível,
incondicionado, efeito de superfície?
438 Deleuze, DR, p.17 (grifos nossos); orig. pp.2 a 3: « lorsque les problèmes atteignent au
degré de positivité qui leur est propre, et lorsque la différence devient l’objet d’une
affirmation correspondante, ils libèrent une puissance d’agression et de sélection qui détruit
la belle-âme, en la destituant de son identité même et en brisant sa bonne volonté ».
144
3) Relação do diferente com o diferente
Nos mais diversos livros de Deleuze sobre filosofias alheias, encontramos
um traço em comum: o pensamento da diferença. Sua interpretação é bastante
peculiar na medida em que ele procura validar sua própria filosofia e provar ser
realizável a ‘relação do diferente com o diferente’. Portanto, Deleuze produz, com
isso, um Acontecimento, resultado desse seu proceder. É com esse objetivo, ao que
nos parece, que ele introduz a noção de “paralelismo” em sua interpretação sobre o
pensamento de Espinosa no Spinoza et le problème de l’expression e no Spinoza -
philosophie pratique, que não é problematizada pelo filósofo. Em Nietzsche et la
philosophie e Nietszche, Deleuze entrevê um embate não-dialético entre as forças,
além da realização do eterno retorno do Diferente, como vimos. E em seu texto
Platon et le simulacre, apêndice do Logique du sens, ele entende o método
platônico de divisão como uma ‘dialética’ da rivalidade ou da diferença. Ademais,
Deleuze faz uma análise pela ótica da diferença da cisão na relação causal feita
pelos Estóicos, como já foi abordado, presente no Logique du sens.
No nosso entender, com o paralelismo vislumbrado em Espinosa, Deleuze
mostra a relação entre os diferentes, por exemplo, no caso do corpo e da mente (ou
da alma), que são colocados em correspondência, preservando-se cada um em si
mesmo e em seu poder próprio, como dois absolutos439. No caso de Nietzsche, a
relação entre os diferentes se traduz no embate entre as forças que, longe de negar
uma à outra (dialética da contrariedade) ou de negar-se a si mesma para que a outra
se afirme (dialética da contradição), ambas se afirmam o máximo que podem. Será
sempre o desequilíbrio entre elas na quantidade de força que determinará aquela que
ganhará e a que perderá, a que será dominante e a dominada440. No que se refere a
Platão, como vimos, Deleuze inventa uma nova dialética nomeada por ele no
Lógica do sentido de “dialética da rivalidade” (dialectique de la rivalité) ou
αμφισβήτησις (amphisbetesis)441 e no Diferença e repetição de “dialética da
439 Cf. Deleuze, SPE, 2ª e 3ª partes. 440 Cf. Deleuze, NF, cap. II, “ativo e reativo”, pp. 61 a 109; orig. NP, “actif et réactif”,
pp.44 a 82. 441 Cf. Deleuze, LS, apêndice 1 “Platão e o simulacro”, especificamente, p.260; orig.
« Platon et le simulacre », p.293.
145
diferença” (dialectique de la différence)442, que opera conciliada como o método da
divisão platônico, de onde a negação parece ter sido expulsa, seja interna, seja
externamente.
Nos diálogos platônicos Fedro e Político, tal dialética se articula em
conjunto com o mito fundador e serve para selecionar o verdadeiro dos falsos
pretendentes que rivalizam a posição de cópia bem fundada. Entretanto, no diálogo
Sofista, o exercício solitário da dialética da rivalidade, sem mito fundador, conduz à
reversão do platonismo443, o que leva Deleuze a traduzi-la como ‘dialética’ da
diferença, visto que ela não passa pelo negativo, não opera por mediações e
consegue realizar o pensamento da diferença. E, finalmente, a conexão entre os
diferentes no pensamento Estóico ocorre por meio de uma nova relação causal que
refaz uma unidade de cada lado, como dois diferentes, dois absolutos: ao invés das
causas remeterem somente aos efeitos e vice-versa, há uma relação das causas entre
si (destino) e dos efeitos entre si (por meio das “quase-causas”)444. No nosso
entender, essas são algumas modalidades da relação do diferente com o diferente
vislumbrada por Deleuze sendo afirmativos tanto os seus termos como a própria
relação. Assim, ao historiar o pensamento alheio, ele parece sempre buscar o âmbito
da diferença e maneiras de viabilizá-lo. Em certas filosofias ou textos, ele consegue
apontar apenas as noções que funcionam como produção da diferença como é feito
em quase todo o Diferença e repetição; em outras (ou outros), ele vislumbra a
realização mesma do pensamento da diferença como é o caso do diálogo Sofista de
Platão, do pensamento de Nietzsche quase que por inteiro, principalmente, no que
tange a noção de eterno retorno.
3.1) Diferença diferenciante
Ao nosso ver, a noção de eterno retorno está contemplada nos movimentos
de três ‘presentes’, a saber, da subversão (Cronos mau), da efetuação (Cronos bom)
e da contra-efetuação (Aion) que, embora distingam em natureza, são reversíveis
442 Cf. Deleuze, DR, p.111; orig. p.83. 443 Cf. Deleuze, LS, apêndice: “Platão e o simulacro”, pp.259 a 271; orig. « Platon et le
simulacre », pp.292 a 307. 444 Cf. Deleuze, LS, p.7; orig. p.15.
146
entre si. Reversibilidade é o próprio movimento da lógica do anel de Moebius que
realiza, no nosso entender, o movimento do eterno retorno do Diferente. Como
vimos, há dois devires: o mau Cronos é o devir da profundidade e Aion é o devir da
superfície, sempre avançando nos dois sentidos ao mesmo tempo e furtando-se ao
presente. Contudo, como vimos, há uma diferença de natureza entre eles. Por um
lado, o paradoxo do devir da profundidade consiste numa “identidade infinita” dos
contrários, ou seja, dos dois sentidos ao mesmo tempo, em sua subversão interna da
ordenação dos corpos que traga tudo para dentro de si, possibilitando novas
misturas e uma reordenação das coisas.
Por outro lado, já o abordamos, o paradoxo do devir de superfície é
incorporal e opera por uma “diferenciação da diferença” (différenciation de la
différence)445, em que seus dois sentidos avançam ao mesmo tempo. Sendo
fronteira, Aion realiza uma síntese disjuntiva que se afirma enquanto diferença. É o
“instante” que percorre a linha reta de Aion como ponto aleatório sempre
deslocado, não-senso de superfície, quase-causa, puro momento de abstração que
divide e subdivide todo presente nos dois sentidos ao mesmo tempo, além de extrair
dele as singularidades. Enquanto o mau Cronos é a profundidade dos corpos, a linha
reta de Aion é a superfície entre os corpos e a linguagem. “A linguagem ou sistema
de proposições não existiria sem esta fronteira que a torna possível”446, observa
Deleuze.
A linha reta separa, mas, sobretudo articula as coisas e as proposições como
sendo duas séries desenvolvíveis. Nela, segundo ele, “há, pois, duas faces sempre
desiguais em desequilíbrio, uma voltada para os estados de coisas, a outra voltada
para as proposições”447. Aion, portanto, é a superfície em que o acontecimento-
sentido, como efeito incorporal das misturas dos corpos, relaciona-se diretamente
aos estados de coisas, mas como seu atributo lógico (e não da proposição),
diferentemente de suas qualidades físicas, às quais sobrevém, encarna-se ou efetua-
se. O papel do presente de Cronos bom é medir a efetuação temporal do
445 Cf. Deleuze, LS, p.181; orig. p.205. 446 Deleuze, LS, p.171; orig. p.195 : « le langage ou système des propositions n’existerait
pas sans cette frontière qui le rend possible ». 447 Deleuze, LS, p.171; orig. p.195 : « il y a donc deux faces, toujours inégales en
déséquilibre, l’une tournée vers les états de choses, l’autre tournée vers les propositions ».
147
acontecimento, sua encarnação na profundidade dos corpos agentes, sua
incorporação num estado de coisas. Segundo Deleuze, o conjunto desta
organização do sentido-acontecimento vai do ponto à linha reta, da linha reta à
superfície: “o ponto que traça a linha, a linha que faz fronteira, a superfície que se
desenvolve, se desdobra dos dois lados”448. Esse é Aion, o devir de superfície.
Como vimos, acontecimento e sentido são o mesmo, só que o primeiro é dito em
relação às coisas e o segundo, às proposições. O sentido é o exprimível ou expresso
da proposição (sua quarta dimensão), completamente distinto do que ela significa,
manifesta e designa em suas três dimensões ordinárias.
No entanto, como já enfatizamos, “nada sobe à superfície sem mudar de
natureza”449. Cronos mau, o devir da profundidade, em outras palavras, o
simulacro, ao produzir efeitos, sobe à superfície e transforma-se: de corporal
transforma-se em ideal. Mas, a produção das superfícies ideais a partir das misturas
dos corpos tomados em sua profundidade é apenas um dos três movimentos que se
entrecruzam e levam, ao nosso ver, a uma reversibilidade entre eles, que destitui de
maneira paradoxal o primado da causa sobre o efeito, havendo, na realidade, o
contrário: a primazia do efeito sobre a causa. Inversamente, então, há aquele
movimento que efetua os acontecimentos de superfície no presente dos corpos em
que as singularidades são aprisionadas nos limites de mundos, indivíduos e pessoas.
Mas há ainda um terceiro movimento pelo qual o acontecimento implica algo de
excessivo em relação à sua efetuação, “algo que revoluciona os mundos, os
indivíduos e as pessoas e os devolve à profundidade do fundo que os trabalha e os
dissolve”450. E “o que é excessivo no acontecimento é o que deve ser realizado, se
bem que não possa ser realizado ou efetuado sem ruína”451, atenta Deleuze.
Em outras palavras, esses movimentos proporcionam pelo menos três
sentidos para a noção de presente. No presente da subversão, há “o presente 448 Deleuze, LS, p.172; orig. p.196 : « le point qui trace la ligne, la ligne qui fait frontière, la
surface qui se développe, se déplie des deux côtés ». 449 Deleuze, LS, p.170; orig. p.193 : « rien ne monte à la surface sans changer de nature ». 450 Deleuze, LS, p.172; orig. p.196 : « quelque chose qui bouleverse les mondes, les
individus et les personnes, et les rend à la profondeur du fond qui les travaille et les
dissout ». 451 Deleuze, LS, p.172; orig. p.196 : « ce qui est excessif dans l’événement, cela doit être
accompli, bien que ce ne puisse être réalisé ou effectué sans ruine ».
148
desmesurado, desencaixado, como tempo da profundidade e da subversão” (do mau
Cronos: devir-louco); no presente da efetuação, ocorre “o presente variável e
medido como tempo da efetuação”452 (do bom Cronos: tempo corporal) e no
presente da contra-efetuação (contre-effectuation), verifica-se “o presente sem
espessura” (présent sans épaisseur), que “representa o instante” (représente
l’instant), “puro «momento» perverso” (pur «moment» pervers), “da operação pura
e não da incorporação” (de l’opération pure, et non de l’incorporation) de Aion.
Deleuze indaga: “como, aliás, haveria uma efetuação comensurável se um terceiro
presente não o impedisse a cada instante de cair na subversão e de se confundir com
ela?”453. Ele mesmo responde: é o presente da contra-efetuação que impede o
presente da subversão de derrubar o presente da efetuação, “que impede este de se
confundir com aquele e que vem redobrar a dobra”454.
Assim sendo, podemos concluir que, na concepção deleuzeana, é o âmbito
mesmo da diferença, desse presente sem espessura de Aion, presente da contra-
efetuação, do instante paradoxal, que possibilita que o presente de Cronos não seja
tragado pelo devir da profundidade. Paradoxalmente, é o efeito que se torna peça
fundamental e primaz para que a organização dos corpos perdure. Sem a fronteira,
Cronos bom é tragado por Cronos mau e a linguagem involui em ruídos corporais.
Inversamente, se o simulacro não se desprendesse do fundo, se não mudasse de
natureza e se tornasse autônomo, diferente em si mesmo, toda a ordenação do
mundo desapareceria. Portanto, em nossa concepção, Aion, que é a dimensão do
Acontecimento, produz a diferença na medida em que funciona como um crivo, tal
qual o eterno retorno. Tudo o que sobe à superfície muda de natureza e torna-se
Acontecimento. Além disso, o cruzamento desses três movimentos temporais é a
expressão mesma da lógica do anel de Moebius, que coloca o exterior em
452 Deleuze, LS, p.172; orig. p.196 : « le présent démesuré, déboîté, comme temps de la
profondeur et de la subversion ; le présent variable et mesuré comme temps de
l’effectuation ; et peut-être encore un autre présent ». 453 Deleuze, LS, p.172 (grifos nossos); orig. p.196 : « comment, d’ailleurs, y aurait-il une
effectuation mesurable si un troisième présent ne l’empêchait à chaque instant de tomber
dans la subversion et de se confondre avec elle ? ». 454 Deleuze, LS, p.173; orig. p.197 : « qui empêche celui-ci de se confondre avec celui-là, et
qui vient redoubler la doublure ».
149
continuidade com o interior, e assim “envolve o mundo inteiro e faz com que o que
está dentro esteja fora e o que está fora fique dentro”455.
Em suma, ao nosso ver, o movimento do devir de superfície, da contra-
efetuação, é o que permite a reversibilidade da tríade temporal, também composta
pelos presentes da subversão e da efetuação. Somente Aion realiza os três
movimentos: 1) ele é efeito, portanto, produzido a partir das misturas corporais da
profundidade; 2) ele se efetua, se encarna em corpos individuados e 3) ele se contra-
efetua e devolve os corpos à profundidade para que haja novas misturas, revoluções,
para que surja o novo, o acaso, o além-do-homem, na terminologia nietzscheana.
Portanto, cumprindo seus três papéis, Aion é a tradução e a realização do eterno
retorno do diferente. Enquanto Aion é o ‘presente’ somente como ser de razão,
ideal, impassível e forma vazia do tempo, que se subdivide ao infinito em passado e
futuro, Cronos é o presente vivo em que se passa e efetua o acontecimento. Porém,
mesmo efetuado, o acontecimento, nem por isso, deixa de guardar uma verdade
eterna sobre o Aion, que o divide eternamente em passado próximo e futuro
iminente, repelindo um e outro, sempre insistentes. Conforme Deleuze, “cada
acontecimento sobre o Aion é menor que a menor subdivisão no Cronos; mas é
também maior que o maior divisor de Cronos, isto é, o ciclo inteiro. Por sua
subdivisão ilimitada nos dois sentidos ao mesmo tempo, cada acontecimento
acompanha o Aion em toda sua extensão e torna-se coextensivo à sua linha reta nos
dois sentidos”456.
3.2) Acontecimento: comunicação entre acontecimentos
A cisão da relação causal promovida pelos Estóicos, como vimos, coloca
uma unidade de cada lado, possibilitando considerar isoladamente as relações das
455 Cf. Deleuze, LS, pp.11 a 12; orig. p.21 : « elle envelloppe le monde entier, et fait que ce
qui est au-dedans soit dehors, et ce qui est dehors au-dedans ». 456 Deleuze, LS, p.66; orig. p.80 : « chaque événement sur l’Aiôn est plus petit que la plus
petite subdivision dans le Chronos ; mais il est aussi plus grand que le plus grand diviseur
du Chronos, c’est-à-dire le cycle entier . Par sa subdivision illimitée dans les deux sens à la
fois, chaque événement longe tout l’Aiôn, et devient coextensif à sa ligne droite dans les
deux sens».
150
causas entre si (Cronos) e a relação dos efeitos entre si (Aion), bem como entrever
uma inusitada comunicação dos acontecimentos por meio da quase-causa.
Conforme Deleuze, o laço das causas físicas entre si é o destino que também
submete os efeitos, porém, não da mesma maneira, pois causa e efeito diferem em
natureza: a causa é corporal e o efeito é incorporal, este é exterior e aquele é
interior. Por serem de outra natureza que suas causas, os efeitos incorporais entram
em relações de quase-causalidade uns com os outros e conjuntamente estabelecem
relação com uma quase-causa também incorporal, o que confere aos efeitos uma
independência em relação não ao destino, mas à necessidade. Ele explica que é a
expressão e não a necessidade que está ligada à relação de causalidade observada
entre as causas corporais e os acontecimentos-efeitos. E a relação dos
acontecimentos-efeitos entre si ou com sua quase-causa ideal não pode ser de forma
nenhuma de causalidade já que são efeitos, porém, é somente de expressão. Então,
há dois tipos de relação expressiva: entre causa e efeito (de causalidade) e dos
efeitos entre si ou com sua quase-causa (de quase-causalidade)457.
O que faz com que um acontecimento repita outro apesar de toda sua
diferença, ou antes, o que faz com que uma vida se componha de um só e mesmo
Acontecimento, pondera Deleuze, é um conjunto de correspondências não-causais
que forma um sistema de ressonâncias, ecos, signos, enfim, de quase-causalidade
expressiva e não a causalidade necessitante. A importância disso é total porque ao
mesmo tempo que afasta de uma vez por todas os preceitos do pensamento da
representação, possibilita haver uma diferença afirmativa entendida com distância
ou fronteira entre as séries bem como um ser unívoco, como veremos. Então, o que
determina a compatibilidade ou a incompatibilidade dos acontecimentos não é de
forma nenhuma a identidade e a contradição, aplicáveis apenas a conceitos,
predicados e classes, mas não aplicável a acontecimentos – a contradição é, na
realidade, o resultado da incompatibilidade e não o inverso.
Aion é vislumbrado como o eterno retorno da tortuosa linha reta porque
traça o ponto aleatório que subdivide infinitamente os pontos singulares de cada
acontecimento distribuídos sobre ela. É, dessa maneira, que o ponto aleatório faz
com que os acontecimentos se comuniquem uns com os outros, estendendo-os e
estirando-os por sobre toda a linha. Cada acontecimento comunica com todos os
457 Cf. Deleuze, LS, p.175; orig. p.198.
151
outros e é adequado ao Aion inteiro, formando um só e mesmo Acontecimento, ou
seja, acontecimento do Aion dotado de uma verdade eterna. Como abordamos, o
Acontecimento é a dimensão da diferença que Aion constitui e, sem a qual, o
pensamento não pensa.
“Eis o segredo do acontecimento: estando sobre o Aion, ele, entretanto, não
o preenche. Como o incorporal preencheria o incorporal e o impenetrável
preencheria o impenetrável? Somente os corpos se penetram, somente Cronos é
preenchido pelos estados de coisas e os movimentos de objetos que mede. Mas,
forma vazia e desenrolada do tempo, o Aion subdivide ao infinito o que o acossa
sem jamais habitá-lo, Acontecimento para todos os acontecimentos; eis por que a
unidade dos acontecimentos ou dos efeitos entre si é de um tipo completamente
diferente da unidade das causas corporais entre si”458. Conforme Deleuze, Aion é o
Acaso insuflado e ramificado, é a fronteira, a linha reta que separa, mas igualmente
superfície plana que articula, impenetrável. O ponto aleatório circula sobre a linha
única de um só e mesmo Acontecimento sempre em desequilíbrio, como o expresso
ou sentido das proposições, sob uma face, e como atributo das coisas, sob a outra
face459.
Deleuze explica que os acontecimentos puros são sempre positivos e nunca
entram em contradição. Portanto, o acinzentar (grisonner) ou o enegrecer (noircir)
da borboleta são acontecimentos igualmente positivos que revelam primeiramente
uma incompatibilidade evenemencial (incompatibilité événementielle) que a
causalidade física inscreve apenas secundariamente na profundidade dos corpos
dada a divergência de hormônios, e também da qual deriva uma contradição lógica
como conteúdo do conceito. Para Deleuze, “em suma, as relações dos
acontecimentos entre si, do ponto de vista da quase-causalidade ideal ou noemática,
exprimem, em primeiro lugar, conseqüências não-causais, compatibilidades ou 458 Deleuze, LS, p.67 (grifos nossos); orig. p.81 : « voilà le secret de l’événement : qu’il soit
sur l’Aiôn et pourtant ne le remplisse pas. Comment l’incoporel remplirait-il l’incorporel, et
l’impénétrable l’impénétrable ? Seuls les corps se pénètrent, seul Chronos est rempli par les
états de choses et les mouvements d’objets qu’il mesure. Mais forme vide et déroulée du
temps, l’Aiôn subdivise à l’infini ce qui le hante sans jamais l’habiter, Événement pour tous
les événements ; c’est pourquoi l’unité des événements ou des effets entre eux est d’un tout
autre type que l’unité des causes corporelles entre elles ». 459 Cf. Deleuze, LS, pp.67 a 68; orig. pp.81 a 82.
152
incompatibilidades alógicas”460. Veremos que a comunicação dos acontecimentos
obedece ao procedimento de uma síntese disjuntiva que se afirma pela diferença
enquanto tal e, portanto, haverá tão-somente compatibilidades alógicas. As
incompatibilidades alógicas ocorrerão jamais entre acontecimentos, mas, como
veremos, entre acontecimento e a individuação de outro acontecimento.
Destarte, Leibniz é considerado por Deleuze o primeiro grande teórico das
incompatibilidades alógicas, logo, do acontecimento, porque suas noções de
compossível e incompossível, em sua análise, não se deixam reduzir ao idêntico e
ao contraditório, que regem somente o possível e o impossível, e nem mesmo
pressupõe a inerência dos predicados a um sujeito individual ou mônada, mas o
contrário disso. Para ele, “Leibniz tem, pois, uma viva consciência da anterioridade
e da originalidade do acontecimento com relação ao predicado. A compossibilidade
deve ser definida de uma maneira original, a um nível pré-individual, pela
convergência das séries que formam as singularidades de acontecimentos
estendendo-se sobre linhas ordinárias. A incompossibilidade deve ser definida pela
divergência de tais séries”461.
A convergência e a divergência são, pois, relações que agem conjuntamente
com as relações de compatibilidades e incompatibilidades alógicas, “peça essencial
da teoria do sentido” (pièce essentielle de la théorie du sens)462. Contudo, na
concepção deleuzeana, Leibniz equivoca-se ao fazer uso negativo (ou de exclusão)
da divergência ou disjunção e ao utilizar a regra de incompossibilidade para excluir
os acontecimentos uns dos outros. Ele é levado a tal equívoco pela hipótese de um
Deus que calcula e escolhe, do ponto de vista de sua efetuação em mundos ou
indivíduos distintos e não dos acontecimentos puros que não admitem regras
negativas de exclusão nem serem tidos como incompatíveis ou incompossíveis. 460 Deleuze, LS, p.177; orig. p.200: « bref, les rapports des événements entre eux du point
du vue de la quasi-causalité idéelle ou noématique expriment d’abord des correspondances
non causales, des compatibilités ou des incompatibilités alogiques ». 461 Deleuze, LS, p.177 (grifos nossos); orig. pp.200 a 201: « Leibniz a donc une vive
conscience de l’anteriorité et de l’originalité de l’événement par rapport au prédicat. La
compossibilité doit être définie d’une manière originale, à un niveau pré-individuel, par la
convergence des séries que forment les singualrités d’événements en s’étendant sur des
lignes d’ordinaires. L’incompossibilité doit être définie par la divergence de telles séries ». 462Cf. Deleuze, LS, p.179; orig. p.201.
153
Leibniz, dessa maneira, deixa de vislumbrar a diferença em si mesma e perde a
oportunidade de desenvolver um novo pensamento.
3.2.1) Divergência, disjunção, distância, diferença positivas
Assim sendo, ao partirmos dos acontecimentos, nos posicionamos no âmbito
da diferença, em que “a divergência, a disjunção são, ao contrário, afirmadas como
tais”463. O ponto de partida proposto por Deleuze é a fronteira, o interstício e não os
termos ordinários da proposição (que dão conta do predicado, conceito, classe,
portanto, das contradições e identidades) e nem a dimensão corporal. Se
inicialmente a fronteira era apresentada como mero efeito incorporal da causa
corporal, agora ela passa a ser determinante para que haja linguagem (proposições)
e até mesmo a efetuação dos corpos. Contudo, isso significa romper com a regra
geral do pensamento da representação em que duas coisas são simultaneamente
afirmadas somente se sua diferença for negada, suprimida de dentro, em que os
opostos são afirmados ao mesmo tempo pela identidade. Tal rompimento revela os
propósitos de Deleuze: “falamos, ao contrário, de uma operação a partir da qual
duas coisas ou duas determinações são afirmadas por sua diferença, isto é, não são
objetos de afirmação simultânea senão na medida em que sua diferença é ela
própria afirmada, ela própria afirmativa”.
Deleuze esclarece que “não se trata, em absoluto, de uma identidade dos
contrários, como tal inseparável ainda de um movimento do negativo e da
exclusão”464, como ocorre no pensamento hegeliano (e no devir da profundidade
dos corpos de Cronos). Na Ciência da Lógica (Wissenschaft der logik), Hegel
afirma, por exemplo, que há dois termos da diferença em oposição, um determinado
463 Deleuze, LS, p.178 (grifos nossos); orig. p.201 : « la divergence, la disjonction sont au
contraire affirmées comme telles ». 464 Deleuze, LS, p.178 (grifos nossos); orig. p.202: « Nous parlons au contraire d’une
opération d’après laquelle deux choses ou deux déterminations sont affirmées par leur
différence, c’est-à-dire ne sont objets d’affirmation simultanée que pour autant que leur
différence est elle-même affirmée, elle-même affirmative. Il ne s’agit plus du tout d’une
identité des contraires, comme telle inséparable encore d’un mouvement du négatif et de
l’exclusion ».
154
pelo outro por “uma indiferença recíproca, se excluindo reciprocamente”465.
Deleuze explica que “se trata de uma distância positiva dos diferentes: não mais
identificar dois contrários ao mesmo, mas afirmar sua distância como o que os
relaciona um ao outro enquanto «diferentes».” Ele enfatiza que “a idéia de uma
distância positiva enquanto distância (e não distância anulada ou vencida) parece-
nos o essencial, porque ela permite medir os contrários por sua diferença finita em
lugar de igualar a diferença a uma contrariedade desmedida e a contrariedade a uma
identidade ela própria infinita”466. Não mais enfatizar os termos, mas a própria
fronteira. Contrariando Hegel, Deleuze afirma que não é a diferença que deve ir até
a contradição com o intuito de acolher o negativo, mas sim a contradição é que deve
revelar a natureza de sua diferença, conforme a distância que lhe é correspondente.
Ao invés de identificar os contrários, à maneira hegeliana, devemos afirmar toda
sua distância, mas como o que os relaciona um ao outro. Assim, a divergência
deixa de ser um princípio de exclusão (contra Hegel), a disjunção cessa de ser um
meio de separação (contra Leibniz), o incompossível passa a ser um meio de
comunicação (a favor da filosofia da Diferença)467.
A disjunção ou diferença é contemplada de maneira afirmativa ao atuar em
uma e outra série fazendo comunicar por meio de síntese. Segundo Deleuze, há três
tipos de síntese: conectiva ( se ... então ), que forma uma única série; a conjuntiva
( e ) que constrói séries convergentes e a disjuntiva ( ou ) que reparte as séries
divergentes. Na concepção deleuzeana, a disjunção é uma verdadeira síntese, por
um lado, na medida em que afasta o procedimento de análise em que se exclui
predicados de uma coisa em virtude da identidade do seu conceito, denotando um
uso negativo, limitativo ou exclusivo da disjunção; e por outro lado, quando a
divergência ou descentramento determinados pela disjunção tornam-se objetos de 465 Hegel, Georg, Science de la Logique (Wissenschaft der logik), tomo III, cap. C – « La
contradicition »: « une indifférence réciproque, et s’excluant réciproquement ». 466 Deleuze, LS, p.178 (grifos nossos); orig. p.202: « il s’agit d’une distance positive des
différents : non plus identifier deux contraires au même, mais affirmer leur distance comme
ce qui les rapporte l’un à autre en tant que «différents». L’idée d’une distance positive en
tant que distance (et non pas distance annulée ou franchie) nous paraît l’essentiel, parce
qu’elle permet de mesurer les contraires à leur différence finie au lieu d’égaler la différence
à une contrariété démesurée, et la contrariété à une identité elle-même infinie ». 467 Cf. Deleuze, LS, p.180; orig. p.203.
155
afirmação enquanto tais. A disjunção não é redutível à conjunção, observa ele, na
medida em que continua a recair sobre uma divergência como tal e não uma
convergência. “Mas esta divergência é afirmada de modo que o ou torna-se ele
próprio afirmação pura”468.
O procedimento da divergência ou diferença afirmativa é contrário àquele da
identidade: no lugar da exclusão de um certo número de predicados em função da
identidade de seu conceito, cada coisa se “abre” ao infinito dos predicados pelos
quais ela passa, o que provoca um descentramento, ou seja, uma perda de sua
identidade como conceito ou como eu. Então, pondera Deleuze, no lugar da
exclusão dos predicados dentro da lógica da Identidade, há a comunicação dos
acontecimentos, conforme a lógica da Diferença, em vez de uma disjunção
entendida como análise reguladora a serviço das sínteses conjuntivas, própria do
âmbito ordinário da proposição, há uma síntese disjuntiva somente possível numa
dimensão extraproposicional e excentrada. Conforme ele, a disjunção sintética
afirmativa “consiste na ereção de uma instância paradoxal, ponto aleatório com
duas faces ímpares, que percorre as séries divergentes como divergentes e as faz
ressoar por sua distância, na sua distância. Assim, o centro ideal de convergência é
por natureza perpetuamente descentrado, não serve mais senão para afirmar a
divergência”469.
Além disso, quando a disjunção torna-se síntese positiva, todos os
acontecimentos, mesmos os contrários, são compatíveis entre si e se “entre-
exprimem”. Portanto, só é possível dizer que há compatibilidades alógicas no
âmbito dos acontecimentos ou singularidades acósmicas, impessoais e pré-
individuais. Como dissemos, as incompatibilidades só ocorrem aos indivíduos,
pessoas e mundos em que os acontecimentos se efetuam, observável entre um
acontecimento e o mundo ou o indivíduo que efetuam um outro acontecimento
468 Deleuze, LS, p.180 (grifos nossos); orig. p.204: « mais cette divergence est affirmée de
sorte que le ou bien devient lui-même affirmation pure ». 469 Deleuze, LS, p.180 (grifos nossos); orig. p.204: « il consiste dans l’érection d’une
instance paradoxale, point aléatoire à deux faces impaires, qui parcourt les séries
divergentes comme divergentes et les fait résonner par leur distance, dans leur distance.
Ainsi le centre idéel de convergence est par nature perpétuellement décentré, il ne sert plus
qu’à affirmer la divergence ».
156
como divergente470. Dessa maneira, dando maior relevo à fronteira que se afirma
em sua diferença, por meio da síntese disjuntiva entre séries divergentes, no nosso
entender, Deleuze realiza, enfim, no Lógica do sentido, seu projeto de filosofia
exposto no Diferença e repetição: ele consegue considerar a Diferença em si mesma
ou o Acontecimento em si mesmo e estabelecer a relação do diferente com o
diferente ou do acontecimento com o acontecimento.
A distância positiva, atenta Deleuze, rege a topologia de superfície (Aion), o
que exclui, ao mesmo tempo, toda profundidade e toda elevação que reúnem o
negativo com a identidade. A superfície relaciona o diferente com o diferente, e a
diferença é afirmada. Enquanto no devir da profundidade (Cronos), pondera ele, os
contrários se comunicam pela identidade infinita e a identidade pessoal é rompida,
no devir de superfície (Aion), onde se desdobram apenas acontecimentos infinitivos
(impessoais), “cada um comunica com o outro pelo caráter positivo de sua
distância, pelo caráter afirmativo da disjunção, tanto que o eu se confunde com esta
própria disjunção que libera para fora dele, que põe fora dele as séries divergentes
como tantas singularidades impessoais e pré-individuais”. E enfatiza: Tal é já a
contra-efetuação: distância infinitiva, em lugar de identidade infinita. Tudo se faz
por ressonância dos disparates, ponto de vista sobre ponto de vista, deslocamento da
perspectiva, diferenciação da diferença e não por identidade dos contrários”471.
A fronteira, considerada como diferenciação da diferença, rompe com a
forma do eu, do mundo e de Deus que encontra abrigo na lógica da Identidade e da
contradição no círculo da proposição. Segundo Deleuze, o princípio da diferença
confere à disjunção um caráter sintético e afirmativo em si mesmo, em que “o eu, o
mundo e Deus conhecem uma morte comum, em proveito das séries divergentes
enquanto tais, que transbordam agora de toda exclusão, toda conjunção, toda
470 Cf. Deleuze, LS, p.183 ; orig. p.208. 471 Deleuze, LS, p.181 (grifos nossos); orig. p.205: « chacun communique avec l’autre par
le caractère positif de sa distance, par le caractère afffirmatif de la disjonction, si bien que
le moi se confond avec cette disjonction même qui libère hors de lui, qui met hors de lui les
séries divergentes comme autant de singularités impersonnelles et préindividuelles. Telle
est déjà la contre-effectuation : distance infinitive, au lieu d’identité infinie. Tout se fait par
résonance des disparates, point de vue sur le point de vue, déplacement de la perspective,
différenciation de la différence, et non par identité des contraires ».
157
conexão”472. Se no interior da proposição, o eu pode ser entendido como princípio
da manifestação; o mundo, o da designação e Deus, o da significação, no âmbito
extraproposicional, tais princípios não sobrevivem, não resistem à síntese
disjuntiva. Como falar em eu, mundo e Deus num campo onde se multiplicam
singularidades impessoais e pré-individuais ? Na quarta dimensão da proposição, o
sentido ou acontecimento é de uma outra natureza, “ele que emana do não-senso
como instância paradoxal sempre deslocada, do centro excêntrico eternamente
descentrado”. “Esta quase-causa, este não-senso de superfície que percorre o
divergente como tal, este ponto aleatório que circula através das singularidades, que
as emite como pré-individuais e impessoais, não deixa subsistir, não suporta que
subsista Deus como individualidade originária, nem o eu como Pessoa, nem o
mundo como elemento do eu e produto de Deus”. Deleuze esclarece que “este
centro descentrado é que traça entre as séries e para todas as disjunções a impiedosa
linha reta de Aion, isto é, a distância em que se alinham os despojos do eu, do
mundo e de Deus”473.
O caráter seletivo de Aion ao qual não subsistem noções caras à tradição
filosófica como eu, mundo e Deus, ao nosso ver, leva Deleuze a vislumbrá-lo como
sendo o próprio eterno retorno do diferente, como vimos: “há sobre a linha reta um
eterno retorno como o mais terrível labirinto de que falava Borges, muito diferente
do retorno circular ou monocentrado de Cronos: eterno retorno que não é mais o dos
indivíduos, das pessoas e dos mundos, mas o dos acontecimentos puros que o
instante deslocado sobre a linha não cessa de dividir em já passados e ainda por
472 Deleuze, LS, p.181; orig. pp.205 a 206 : « le moi, le monde et Dieu connaissent une mort
commune, au profit des séries divergentes en tant que telles, qui débordent maintenant toute
exclusion, toute conjonction, toute connexion ». 473 Deleuze, LS, p.182; (grifos nossos) ; orig. p.206: « lui que émane du non-sens comme de
l’instance paradoxale toujours déplacée, du centre excentrique éternellement décentré ».
« Cette quasi-cause, ce non-sens de surface qui parcourt le divergent comme tel, ce point
aléatoire qui circule à travers les singualrités, qui les émet comme pré-individuelles et
impersonnelles, ne laisse pas subsister, ne suppporte pas que subsiste Dieu comme
individualité originaire, ni le moi comme Personne, ni le monde comme élément du moi et
produit de Dieu ». « Ce centre décentré, c’est lui qui trace entre les séries et pour toutes les
disjonctions l’impitoyable ligne droite de l’Aiôn, c’est-aà-dire la distance, où s’alignent les
dépouilles du moi, du monde et de Dieu ».
158
vir”. E conclui: “Mais nada subsiste além Acontecimento, o Acontecimento só
Eventum tantum para todos os contrários, que comunica consigo por sua própria
distância, ressoando através de todas suas disjunções”474, o que revela a idéia de
Acontecimento como sendo uma imanência absoluta. “O que é a imanência?”,
indaga Deleuze, que responde: “Uma vida ...”475. A imanência não se refere a nada
de outro, nem a Alguma coisa como unidade superior a toda coisa nem um Sujeito
como ato que opera as sínteses das coisas. “É quando a imanência não é mais
imanência de um outro senão a si, que se pode falar de um plano de imanência”476.
Contudo, lembra Bento Prado Júnior, o plano de imanência é também um “crivo”,
detém um caráter seletivo, na medida em realiza um corte no caos477, tal como
afirma Deleuze. Diz ele: “Corta é selecionar e fixar – numa palavra, determinar,
conter o rio de Heráclito ou o Oceanomundo”478.
Como vimos, não mais o círculo de Cronos nem da proposição, mas a linha
reta de Aion que se afigura como o anel de Moebius cindido e preserva as mesmas
características paradoxais. O Acontecimento é o devir, é a Diferença. Ao nosso ver,
a proposta de Deleuze de entender a linha reta de Aion como a seleção última do
eterno retorno e o âmbito irredutível, faz da superfície incorporal, da fronteira, que é
regida por uma síntese disjuntiva e afirmativa enquanto tal, o “lugar” (ou não-lugar
positivo) próprio da filosofia da diferença, em que não subsistem nenhum dos
elementos do pensamento da representação.
474 Deleuze, LS, p.182 (grifos nossos); orig. pp.206 a 207: « a-t-il sur la ligne droite un
éternel retour comme le labyrinthe le plus terrible dont parlait Borges, très différent du
retour circulaire ou monocentré de Chronos : éternel retour qui n’est plus celui des
individus, des personnes et des mondes, mais celui des événements purs que l’instant
déplacé sur la ligne ne cesse de diviser en déjà passés et encore à venir. Plus rien ne susiste
que l’Événement, l’Événement seul, Eventum tantum pour tous les contraires, qui
communique avec soi par sa propre distance, résonant à travers toutes ses disjonctions ». 475 Deleuze, IV, p.5 : « “Qu’est-ce que l’immanence ? une vie... ». 476 Deleuze, IV, p.4 : « c’est quand l’immanence n’est plus immanence à autre que soi
qu’on peut parler d’un plan d’immanence ». 477 Cf. Prado, IPI, pp.314 a 315. 478 Prado, IPI, p.315.
159
3.3) Univocidade do ser: extra-ser
O Acontecimento único da linha reta de Aion se traduz no campo da
ontologia como Univocidade do Ser. Talvez seja mais apropriado falar em Extra-ser
já que ele se constitui como Acontecimento na fronteira entre as proposições e as
coisas. Porém, fica uma questão: como o indivíduo pode ultrapassar seu laço
sintático com o mundo e atingir “a universal comunicação dos acontecimentos, isto
é, a afirmação de uma síntese disjuntiva para além não somente das contradições
lógicas, mas mesmo das incompatibilidades alógicas”479? Enfim, como alcançar o
âmbito da diferença, das singularidades acósmicas, impessoais e pré-individuais, se
nos posicionamos sempre como sujeito diante do mundo-objeto? Vimos que as
incompatibilidades alógicas nascem com os indivíduos, as pessoas e os mundos,
não ocorrem entre acontecimentos que são sempre compatíveis na disjunção, mas
sim entre um acontecimento e o indivíduo ou o mundo que efetuam um outro
acontecimento. Deleuze esclarece que “seria preciso que o indivíduo se apreendesse
a si mesmo como acontecimento. E que o acontecimento que se efetua nele fosse
por ele apreendido da mesma forma como um outro indivíduo nele enxertado”480,
tanto quanto todos os outros acontecimentos como indivíduos, do mesmo modo que
todos os outros indivíduos como acontecimentos. “Tal é o sentido último da contra-
efetuação”481, atesta ele, realizando, ao que parece, uma reversibilidade entre
acontecimento e indivíduo.
Não é próprio do pensamento da diferença, adverte Deleuze, elevar ao
infinito as qualidades individuais contrárias para afirmar sua identidade, como faz
Hegel. “Elevamos cada acontecimento à potência do eterno retorno para que o
indivíduo, nascido daquilo que acontece, afirme sua distância de todo outro
acontecimento e, afirmando-a, siga-a e espose-a, passando por todos os outros
indivíduos implicados pelos outros acontecimentos e dela [distância] extraia um 479 Deleuze, LS, pp.183 a 184 (grifos nossos); orig. p.208: « l’universelle communication
des événements, c’est-à-dire à l’affirmation d’une synthèse disjonctive au-delà non
seulement des contradictions logiques, mais même des incompatibilités alogiques ». 480 Deleuze, LS, p.184; orig. pp.208 a 209: « il faudrait que l’individu se saisisse lui-même
comme événement. Et que, l’événement qui s’efectue en lui, il le saisisse aussi bien comme
un autre individu greffé sur lui ». 481 Deleuze, LS, p.184; orig. p.209: «tel est le sens ultime de la contre-effectuation ».
160
único Acontecimento que não é senão ele mesmo de novo ou a universal
liberdade”482. Por exemplo, “a borboleta cinza compreende tão bem o
acontecimento esconder-se que, ficando no mesmo lugar colada no tronco da
árvore, percorre toda a distância com o envigorar do negro e faz ressoar o outro
acontecimento como indivíduo, mas no seu próprio indivíduo como acontecimento,
como caso fortuito”483. Deleuze enfatiza que “o eterno retorno não é uma teoria das
qualidades e de suas transformações circulares, mas dos acontecimentos puros e de
sua condensação linear ou superficial. Assim, o eterno retorno guarda um sentido
seletivo”484. Na medida em que só seleciona o acontecimento, ao que parece, o
eterno retorno deixa de fora as qualidades das coisas, só passando pelo seu crivo a
disjunção, a diferença, a fronteira. Como vimos, a contra-efetuação é parte da tríade
dos movimentos do ‘presente’, a saber, subversão (devir da profundidade),
efetuação (tempo dos corpos) e contra-efetuação (devir de superfície) que é, no
nosso entender, a forma descritiva do eterno retorno, por isso, seu movimento é
correlato ao do anel de Moebius torcido e atado ou cindido e em linha reta. A
contra-efetuação, em particular, parece-nos o equivalente ao segundo crivo seletivo
do eterno retorno, em que só retornam o ser do Devir ou do Diferente ou do
Acontecimento. Então, enquanto o círculo da proposição dá conta da teoria das
qualidades, a linha reta (anel de Moebius cindido) concerne ao âmbito
extraproposicional (extra-ser).
482 Deleuze, LS, pp.184 a 185 (grifos nossos); orig. p.209: « nous élevons chaque
événement à la puissance de l’éternel retour pour que l’individu, né de ce qui arrive, affirme
sa distance avec tout autre événement et, l’affirmant, la suive et l’épouse en passant par
tous les autres individus impliqués par les autres événements, et en extraie un unique
Événement qui n’est que lui-même à nouveau, ou l’universelle liberté ». 483 Deleuze, LS, pp.184 a 185; orig. p.210: « le papillon gris comprend si bien l’événment
se cacher qu’en restant à la même place, plaqué sur le tronc d’arbre, il parcourt toute la
distance avec l’invigorer du noir et fait résonner l’autre événement comme individu, mais
dans son propre individu comme événement, comme cas fortuit ». 484 Deleuze, LS, pp.184 a 185 (grifos nossos); orig. p.209: «l’éternel retour n’est pas une
théorie des qualités, et de leurs transformations circulaires, mais des événements purs et de
leur condensation linéaire ou superficielle. Aussi l’éternel retour garde-t-il un sens séletif
».
161
Para Deleuze, a filosofia se confunde com a ontologia e a ontologia com a
univocidade do ser. Ele considera uma visão teológica e não-filosófica adotar a
analogia como critério (no lugar da univocidade) de compreensão do mundo ou do
eu sob o ponto de vista de um Deus transcendente, como se fossem análogos. Na
analogia, diz ele, tudo se passa em mediação e em generalidade, ao contrário do ser
unívoco que se reporta imediatamente a fatores individuantes485. Deleuze esclarece
que a univocidade do ser não implica na existência de um único ser, posto que há
múltiplos e diferentes existentes sempre produzidos por uma síntese disjuntiva, eles
mesmos disjuntos e divergentes. Segundo ele, “a univocidade do ser significa que o
ser é Voz, que ele se diz em um só e mesmo «sentido» de tudo aquilo de que se diz.
Aquilo de que se diz não é, em absoluto, o mesmo. Mas ele é o mesmo para tudo
aquilo de que se diz”486. No nosso entender, o ser é voz na univocidade porque ele
se diz da coisa; ele não diz uma qualidade sensível dela (a “cor verde da árvore”),
mas se diz na e pela linguagem como atributo lógico ou noemático (o “verdejar”) da
coisa. Muito embora o atributo lógico na pertença à linguagem (não é um de seus
termos ordinários) e sim à dimensão extraproposicional, pois ele é o acontecimento-
sentido. Se dissesse algo sobre a coisa, o ser apenas a designaria, em um dos termos
internos à proposição, e seria seu predicado; contudo, ele se constitui como
acontecimento nos interstícios, na dimensão extraproposicional, ou antes, na
fronteira estabelecida entre as proposições e as coisas. Portanto, o ser se diz como
atributo lógico da coisa na linguagem, fora da qual ele não tem existência, contudo,
sem pertencer a ela.
Ao que nos parece, Deleuze insiste na termologia «dizer-se» por dois
motivos. Primeiro, porque a linguagem é o território onde a fronteira ganha
visibilidade e o ser pode se ‘mostrar’; ela é a superfície comum em que ambas as
séries divergentes, dos corporais e dos incorporais, se colocam de maneira visível; é
o campo comum e disjunto. E, por definição, a linguagem é o que se diz das
coisas487. Dizer-se é o exprimir-se e diz respeito ao sentido. O acontecimento ou o
485 Cf. Deleuze, DR, p.79 ; orig. p.56. 486 Deleuze, LS, p.185 (grifos nossos); orig. p.210 : « l’univocité de l’être signifie que l’être
est Voix, qu’il se dit, et se dit en un seul et même «sens» de tout ce dont il se dit. Ce dont il
se dit n’est pas du tout le même. Mais lui est le même pour tout ce dont il se dit ». 487 Cf. Deleuze, LS, p.23; orig. p.34.
162
ser como acontecimento, concernente à dimensão extraproposicional, só pode se
dizer na linguagem como atributo lógico da coisa ou dos existentes. O ser é exterior
à proposição e reúne disjuntivamente os corporais e os incorporais. Ele não existe,
porém, insiste na proposição ao sobrevir às coisas, portanto, ele não pertence nem a
uma nem a outra série. Ele se diz, se põe, se afirma, de maneira sintética e disjunta,
e não designa, não manifesta nem significa conforme os termos proposicionais. No
nosso entender, ao dizer-se das coisas nas proposições, o ser reúne por disjunção a
série das coisas e a série das proposições, ambas divergentes entre si. Ele as reúne
por meio do seu dizer-se, de sua auto-afirmação, enquanto diferença. Ao que
parece, o dizer tem uma ligação com a lógica e não com a coisa, pois o ser diz-se
como atributo lógico da coisa na proposição. Por isso, “o ser é voz” é uma
proposição ontológica tanto quanto “o ser se diz num só e mesmo sentido de tudo
aquilo de que se diz”.
Em segundo lugar, o «dizer-se» também nos parece justificar o termo “voz”
que não se confunde com a própria linguagem, o que confirma o caráter disjunto do
ser, ou antes, do extra-ser, que se manifesta na linguagem sem confundir-se com
ela. Deleuze explica que a voz, conquanto apresente as três dimensões da uma
linguagem organizada, a saber, designação, manifestação e significação, não detém
o princípio de organização que faria de si própria uma linguagem. Ela permanece
num pré-sentido, fora e longe do sentido. Isso porque, esclarece ele, “a voz não
dispõe ainda da univocidade que dela faria uma linguagem e, não tendo unidade
senão por sua eminência, permanece engastalhada na equivocidade de suas
designações, na analogia de suas significações, na ambivalência de suas
manifestações”488. Sem apresentar as dimensões nem a condição da linguagem, a
voz espera o acontecimento que a tornará uma linguagem489. Então, ao nosso ver, o
ser é voz não por seu caráter unívoco, mas porque consegue dizer-se do que é
equívoco, ou seja, as coisas, os existentes etc., sem designá-los. O dizer-se é que é
unívoco. Portanto, é uma única e mesma voz, um único e mesmo Acontecimento
488 Deleuze, LS, p.198; orig. pp.225 a 226 : « la voix ne dispose pas encore de l’univocité
qui en ferait un langage, et n’ayant d’unité que par son éminence reste empêtrée dans
l’équivocité de ses désignations, l’analogie de ses significations, l’ambivalence de ses
manifestations ». 489 Cf. Deleuze, LS, pp.198 a 199; orig. p.226.
163
que se diz das coisas (como seu atributo lógico) nas proposições. Ao que nos
parece, a voz, enquanto ser, não diz a coisa, o designado, porque ela não é
linguagem, porém, ela se diz (diz o ser) como atributo lógico da coisa na
linguagem. E, ao se dizer, a voz diz o acontecimento (pois o ser é acontecimento)
sem se tornar linguagem; ela assume-se, pois, como uma única fronteira,
possibilitando a univocidade do ser. Ele se afirma enquanto diferença.
As afirmações que «o ser é Voz» e que «o ser diz-se das coisas nas
proposições» evidenciam o caráter disjunto intrínseco do ser que se diz das coisas
nas proposições. Sobretudo, mostram que há nelas três movimentos implícitos
realizados pelo atributo lógico, ou seja, pelo acontecimento. Nesse sentido, o dizer-
se concerne ao âmbito do acontecimento, sua voz é a expressão do movimento de
contra-efetuação. Por outro lado, o ser efetua-se na linguagem como atributo lógico
das coisas. Destarte, ele se distingue tanto da linguagem como das coisas,
afirmando-se enquanto diferença. O ser articula, pois, duas séries sem pertencer a
nenhuma delas, sobrevém às coisas como acontecimento e insiste nas proposições
como sentido. Como sugere Carroll, é possível falar palavras tanto quanto comê-las
ao mesmo tempo que falar de comida e comê-la490, ou seja, sempre os dois em
simultâneo: linguagem e coisa. Ele se diz de maneira unívoca, como único
Acontecimento, como atributo lógico das coisas equívocas (os existentes). Então,
“somos nós, é nossa individualidade que permanece equívoca num Ser, para um Ser
unívoco”491.
Conforme Deleuze, “a univocidade significa que é a mesma coisa que
acontece e que se diz: o atribuível de todos os corpos ou estados de coisas é o
exprimível de todas as proposições. A univocidade significa a identidade do atributo
noemático e do expresso lingüístico: acontecimento e sentido”492. Se, inversamente,
houvesse uma equivocidade dos sentidos ou das vozes, parece-nos que não haveria
comunicação entre os acontecimentos, como os mundos paralelos de Leibniz, sem 490 Cf. Deleuze, LS, p.25; orig. p.36. 491 Deleuze, DR, p.80; orig. p.57: « c’est nous, c’est notre individualité qui reste équivoque
dans un Être, pour un Être univoque ». 492 Deleuze, LS, pp.185 a 186 (grifos nossos); orig. p.211: « l’univocité signifie que c’est la
même chose qui arrive et qui se dit : l’attribuable de tous les corps ou états de choses et
l’exprimable de toutes les propositions. L’univocité signifie l’identité de l’attribut
noématique et de l’exprimé linguistique : événement et sens ».
164
contatos, em que a incompossibilidade significa separação ou exclusão. É preciso,
pois, pondera Deleuze, substituir o ponto de vista leibnizano pelo perspectivismo
nietzcheano para que a divergência não seja princípio de exclusão e a disjunção não
signifique separação, fazendo do incompossível um meio de comunicação493. Há,
ao que parece, uma mesma comunicação como sendo único Acontecimento para
todos acontecimentos que permanecem disjuntos. Destarte, a univocidade do Ser é a
afirmação de todo o acaso de uma só vez, tal como no eterno retorno. Alan Badiou
ressalta que Deleuze, muito além de Heidegger, eleva a questão do Ser à
“radicalidade da síntese disjuntiva”494.
O Ser ocorre como um Acontecimento único para tudo o que ocorre às
coisas diversas e para todos os acontecimentos, é forma extrema para todas as
formas que permanecem disjuntas nelas. Na univocidade, não são as diferenças que
são ou têm de ser, mas “o ser é que é Diferença, no sentido em que ele se diz da
diferença”495, na medida em que faz uso positivo da síntese disjuntiva, tida a mais
alta afirmação. Trata-se, segundo Deleuze, do “eterno retorno em pessoa” ou da
“afirmação do acaso em uma vez, o único lançar para todos os lances, um só Ser
para todas as formas e vezes, uma só insistência para tudo o que existe”, “uma só
voz para todo o rumor”496. Considerando que o Ser precisa ocorrer para dizer-se,
que o Ser é o único Acontecimento em que todos os acontecimentos comunicam, a
univocidade remete ao que ocorre em simultâneo ao que se diz, ou seja, às coisas e,
ao mesmo tempo, à linguagem, ao acontecimento e ao sentido que se traduzem no
extra-ser, ‘ser’ este da fronteira que advém às coisas e insiste na proposição sem
pertencer a nenhum deles, que se forma como disjunção afirmativa, portanto, que é
diferença.
Assim, como vimos, univocidade quer dizer identidade do atributo
noemático e do expresso lingüístico, entre acontecimento e sentido. Segundo 493 Cf. Deleuze, LS, p.180; orig. p.203. 494 Badiou, Alain, O clamor do ser, p.32. 495 Deleuze, DR, p.80; orig. p.57: « c’est l’être qui est Différence, au sens où il se dit de la
différence ». 496 Deleuze, LS, p.185 (grifos nossos) ; orig. pp.210 a 211: « l’éternel retour en personne »,
« l’affirmation du hasard en une fois, l’unique lancer pour tous les coups, un seul Être pour
toutes les formes et les fois, une seule insistance pour tout ce qui existe », « une seule voix
pour toute la rumeur ».
165
Deleuze, “a univocidade eleva, extrai o ser para melhor distingui-lo daquilo ao que
ele acontece e daquilo de que se diz. Ela o arranca aos existentes para referi-lo a
eles em uma vez, abatê-lo sobre eles para todas as vezes”497. O ser é diferença, é
distinguível pela univocidade. “Puro dizer e puro acontecimento, a univocidade põe
em contato a superfície interior da linguagem (insistência) com a superfície exterior
do ser (extra-ser)”498, colocando em ação uma lógica paradoxal tal qual a do anel de
Moebius.
Deleuze observa que “o ser unívoco insiste na linguagem e sobrevém às
coisas; ele mede a relação interior da linguagem com a relação exterior do ser”499.
Ele não é ativo ou passivo, mas neutro, é um mínimo de ser comum ao real, ao
possível e ao impossível, ou seja, é um extra-ser. Ele é “posição no vazio de todos
os acontecimentos em um, expressão no não-senso de todos os sentidos em um, o
ser unívoco é pura forma do Aion, a forma da exterioridade que relaciona as coisas
e as proposições”500. Deleuze resume a questão: “em suma, a univocidade do ser
tem três determinações: um só acontecimento para todos; um só e mesmo aliquid
para o que se passa e o que se diz; um só e mesmo ser para o impossível, o possível
e o real”501. O ser unívoco é a voz do próprio eterno retorno que vocifera a
diferença, clama o ser da diferença. Ele pode ser entendido também como puro
497 Deleuze, LS, p.186 (grifos nossos); orig. p.211: « l’univocité élève, extrait l’être pour
mieux le distinguer de ce à quoi il arrive et ce dont il se dit. Elle se arrache aux étants pour
le leur rapporter en une fois, le rabattre sur eux pour toutes les fois ». 498 Deleuze, LS, p.186 (grifos nossos); orig. p.211 : « pur dire et pur événement, l’univocité
met en contact la surface intérieure du langage (insistance) avec la surface extérieure de
l’être (extra-être) ». 499 Deleuze, LS, p.186; orig. p.211 : « l’être univoque insiste dans le langage et survient aux
choses ; il mesure le rapport intérieur du langage avec le rapport extérieur de l’être ». 500 Deleuze, LS, p.186 (grifos nossos); orig. p.211 : « position dans le vide de tous les
événements en un, expression dans le non-sens de tous les sens en un, l ‘être univoque est la
pure forme de l’Aiôn, la forme d’exteriorité qui rapporte les choses et les propositions ». 501 Deleuze, LS, p.186; orig. p.211 : « bref, l’univocité de l’être a trois déterminations : un
seul événement pour tous ; un seul et même aliquid pour ce qui se passe et ce qui se dit ; un
seul et même être pour l’impossibile, le possible et le réel ».
166
plano de imanência. Véronique Bergen observa que a imanência é “desdobramento
de um ser unívoco, do qual tudo provém e onde tudo retorna”502.
Ao nosso ver, o ser confinado no círculo da proposição refere-se ao existente
e foi amplamente abordado pela tradição filosófica. Mas, o extra-ser, tornado visível
com a ruptura do círculo (tal qual o anel de Moebius cindido), remete, ao mesmo
tempo, ao extra-existente e ao insistente na proposição. O primeiro dá conta do que
é real e possível e o segundo, do real, do possível e do impossível, na medida em
que até proposições absurdas têm sentido. Isso tudo confirma a conclusão
deleuzeana inspirada em Carroll: tudo passa pela linguagem e na linguagem.
Deleuze elucida que o ser do real está circunscrito às três dimensões ordinárias da
proposição, portanto, é matéria das designações e ser do possível como forma das
significações e que o extra-ser, como vimos, “define um mínimo comum ao real, ao
possível e ao impossível”503. Assim sendo, o princípio de contradição tem seu poder
de atuação restrito ao círculo da proposição, sendo inaplicável à fronteira e
inexeqüível para o ser da diferença. Tal princípio rege apenas o ser do real e do
possível, mas a diferença alcança também o ser do impossível, justificado por sua
impassibilidade e seu caráter fronteiriço, e, sendo extra-existente e insistente à
proposição, reduz-se a este mínimo504. Mínimo que é toda a fronteira: o
Acontecimento.
O acontecimento, pois, nada tem a ver como os acidentes ou o fatual (é antes
fatal505); ele subsiste na proposição que o exprime ao mesmo tempo em que advém
às coisas em sua superfície, no exterior do ser. Diz Deleuze: “como atributo dos
estados de coisas, o sentido é extra-ser, ele não é ser, mas um aliquid que convém
ao não-ser. Como expresso da proposição, o sentido não existe, mas insiste ou
subsiste na proposição”506. E as diversas intervenções na superfície do anel de
Moebius provaram isso: sua unilateralidade coloca em continuidade interior e 502 Bergen, Véronique, OGD, p.25. 503 Deleuze, LS, p.38 (grifos nossos); orig. 49: « définit un minimum commun au réel, au
possible et à l’impossible ». 504 Cf. Deleuze, LS, p.38; orig. p.47. 505 Cf. Deleuze, LS, p.36 ; orig. p.47. 506 Deleuze, LS, p.34 ; orig. pp.44 a 45: « Comme attribut des états de choses, le sens est
extra-être, il n’est pas de être, mais un aliquid qui convient au non-être. Comme exprimé de
la proposition, le sens n’existe pas, mais insiste ou subsiste dans la proposition ».
167
exterior. Este aliquid é, ao mesmo tempo extra-ser e insistência, mínimo de ser que
convém às insistências. “É neste sentido”, observa ele, “que é um «acontecimento»:
com a condição de não confundir o acontecimento com sua efetuação espaço-
temporal em um estado de coisas”.
3.4) Linguagem
Deleuze adverte: não se pode perguntar “qual é o sentido de um
acontecimento”, pois “o acontecimento é o próprio sentido”. Daí a importância da
linguagem nesse contexto: “o acontecimento pertence essencialmente à linguagem,
ele mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz
das coisas”507. Vimos o porquê disso. O acontecimento, longe de ser uma
qualidade na coisa, é um atributo que se diz da coisa e que não existe fora da
proposição que o exprime ao designar a coisa. Por isso, a linguagem se torna a base
de tudo: o sentido-acontecimento precisa ser extraído dela, por inferência, se for
mantido o circuito proposicional. Porém, diretamente, se a proposição for
desdobrada para que apareça a dimensão extraproposicional. Quando Deleuze
assevera que “o caos caotiza”508, ao nosso ver, ele rompe o círculo da proposição,
desdobra-a para dizer o acontecimento “caotizar”.
Então, pelo mesmo movimento lógico, alcançamos as coisas e as
proposições; ou melhor, é, sobretudo, pela linguagem que o acontecimento se diz
das coisas designadas na proposição ao mesmo tempo em que subsiste na
507 Deleuze, LS, p.23 (grifos nossos) ; orig. p.34: « C’est en ce sens qu’il est
« événement » : à condition de ne pas confondre l’événement avec son effectuation spatio-
temporelle dans un état de choses. On ne demandera donc pas quel est le sens d’un
événement : l’événement, c’est le sens lui-même. L’événement appartient essentiellement
au langage, il est dans un rapport essentiel avec le langage, mais le langage est ce qui se dit
des choses ». 508 Deleuze, OF, p.59 (grifos nossos); orig. QP, p.45: « le chaos chaotise”. Com sua frase,
« o caos caotiza », ele diz o acontecimento tanto quanto Heidegger ao afirmar que “o nada
nadifica”.
168
linguagem. É por isso que “tudo passa pela linguagem e se passa na linguagem”509.
Vimos que o acontecimento é coextensivo do devir que, por sua vez, é coextensivo
à linguagem, o que remete à nossa questão inicial: tudo se passa na fronteira entre
as proposições e as coisas. Peculiaridade esta que Crisipo, dentre os estóicos, sabia
explorar muito bem ao proferir seus paradoxos sobre a linguagem, como a frase por
nós já citada: “se dizes alguma coisa, esta coisa passa pela boca; ora, tu dizes uma
carroça, logo uma carroça passa por sua boca”510.
Contudo, mais um paradoxo se forma. “Tudo passa pela linguagem e na
linguagem”, mas esta só torna possível pelo sentido ou acontecimento. Sem ele, os
sons seriam meros ruídos corporais. Deleuze explica que é o mundo novo dos
efeitos incorporais ou os efeitos de superfície que torna a linguagem possível, que
tira os sons do estado de ações e paixões corporais e os distinguem como
linguagem, impedindo-a de se confundir com o barulho dos corpos. “Os
acontecimentos puros”, enfatiza ele, “não têm existência pura, singular, impessoal e
pré-individual senão na linguagem que os exprime. É o expresso, na sua
independência, que fundamenta a linguagem ou a expressão, isto é, a propriedade
metafísica adquirida pelos sons de ter um sentido e secundariamente de significar,
de manifestar, de designar, em lugar de pertencer aos corpos como qualidades
físicas”511.
Deleuze revela, pois, qual é a mais geral operação do sentido: “é o sentido
que faz existir o que o exprime e, pura insistência, se faz desde então existir no que
o exprime”512. Portanto, é o expresso que torna possível a expressão, embora o
509 Deleuze, LS, pp.36 a 37; orig. p.47: « Tout se passe par le langage, et se passe dans le
langage ». 510 Deleuze, LS, p.9; orig. p.18: « Si tu dis quelque chose, cela passe par la bouche ; or tu
dis un chariot, donc un chariot passe par ta bouche ». 511 Deleuze, LS, pp.170 a 171 (grifos nossos); orig. p.194: « Les événements purs», «n’ont
d’existence pure, singulière, impersonnelle et préindividuelle que dans le langage qui les
exprime. C’est l’exprimé, dans son indépendance, qui fonde le langage ou l’expression,
c’est-à-dire la propriété métaphysique acquise par le sons d’avoir un sens, et
secondairement de signifier, de manifester, de désigner, au lieu d’appartenir aux corps
comme des qualités physiques ». 512 Deleuze, LS, p.171 (grifos nossos); orig. p.194 : « C’est le sens qui fait exister ce qui
l’exprime et, pure insistance, se fait dès lors exister dans ce qui l’exprime ».
169
expresso não possa existir sem sua expressão. Sem a fronteira entre as coisas e as
proposições, os sons se abateriam sobre os corpos e as próprias proposições não
seriam «possíveis». “A linguagem é tornada possível pela fronteira que a separa das
coisas, dos corpos e não menos daqueles que a falam”513. Entendida dessa forma, a
linguagem pois não cessa de nascer na direção futura da fronteira (Aion) onde é
fundada e “esperada”, ao mesmo tempo em que deve também dizer o passado dos
estados de coisas que não cessam de aparecer e desaparecer na outra direção.
Inversamente, como já dissemos, tudo se passa nela e por ela.
Por um lado, o acontecimento torna possível a linguagem, ele habita-a, não
existe fora das proposições que o exprimem; por outro lado, ele não se confunde
com elas, pois o expresso não se confunde com a expressão. O acontecimento não
preexiste à linguagem, porém, lhe pré-insiste, dando-lhe fundamento e condição.
Como vimos, o acontecimento torna a linguagem possível ao distinguir os sons das
qualidades sonoras das coisas, do burburinho dos corpos, de suas ações e paixões,
ao não deixar que se confundam som com ruído.
Então, o que possibilita a linguagem é o que separa os sons dos corpos, que
os distingue e os organiza em proposições, tornando-os livres para a função
expressiva. Deleuze observa que a expressão tem fundamento no acontecimento
como entidade do exprimível ou do expresso. O acontecimento, como expresso,
torna possível a linguagem, que é sua expressão. Ele não se confunde com a
proposição que o exprime, o estado daquele que a pronuncia [manifestante] e o
estado de coisas designado pela proposição. Sem acontecimento, só haveria
barulho. Ele torna possível a linguagem, separa o que torna possível ao mesmo
tempo que distingue naquilo que torna possível514. Ao que nos parece, a ênfase
deleuzeana recai sempre na produção da diferença estabelecida pelo expresso
(acontecimento) e sua expressão (linguagem).
De que forma o acontecimento torna possível a linguagem? A natureza
paradoxal do acontecimento parece ser a resposta para tal questão porque, em
essência, ele é puro efeito de superfície, impassível incorporal, que resulta dos
corpos, de suas misturas, ações e paixões, portanto, de natureza diferente daquilo
513 Deleuze, LS, p.171 (grifos nossos); orig. 194 : «Le langage est rendu possible par la
frontière qui le sépare des choses, des corps et non moins de ceux qui parlent ». 514 Cf. Deleuze, LS, pp.187 a 188; orig. pp.212 a 213.
170
que resulta. É sua natureza incorporal distinta de sua causa corporal que faz com
que o acontecimento não seja como uma qualidade física. Assim, ele se atribui aos
corpos como um atributo noemático, incorporal, que não existe fora da proposição
que o exprime, porém, difere em natureza de sua expressão. Por isso, o
acontecimento existe na proposição não como um nome de corpo ou de qualidade,
como sujeito ou predicado. Ele é o exprimível ou expresso da proposição
(expressão), envolvido em um verbo.
Então, o acontecimento é um verbo. Essa distinção de natureza entre efeito e
causa, expresso e expressão, por um lado, e sua natureza incorporal que habita dois
“mundos”, da linguagem e das coisas, por outro, ao nosso ver, são elementos
principais para se entender o acontecimento como diferença que Deleuze explora
amiúde. O acontecimento sobrevindo aos estados de coisas é o sentido insistindo na
proposição: essa dupla face do acontecimento-sentido também contribui para o
caráter paradoxal da diferença, entendida como fronteira. E, ao nosso entender, a
frase recorrente que ‘nada sobe a superfície sem mudar de natureza” passa a ser a
afirmação da síntese disjuntiva do pensamento da diferença.
Segundo Deleuze, os Estóicos levam ao ponto máximo o paradoxo da dupla
causalidade ao afirmar que “as transformações incorpóreas, os atributos incorpóreos
são ditos, e só são ditos acerca dos próprios corpos. Eles são o expresso dos
enunciados, mas são atribuídos aos corpos”. “Expressando o atributo não-corpóreo,
e simultaneamente atribuindo-o ao corpo, não representamos, não referimos,
intervimos de algum modo, e isto é um ato de linguagem. A independência das duas
formas, a de expressão e a de conteúdo, não é contradita, mas ao contrário
confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos vão se inserir nos
conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los,
retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de
um outro modo”515. É a independência dos termos que permite a constituição da 515 Deleuze, MP, p.27 (grifos nossos); orig. p. 110 : « les transformations incorporelles, les
atributs incorporels, se disent et ne se disent que des corps eux-mêmes. Ils sont l’exprimé
des énoncés, mais ils s’attribuent aux corps ». « en exprimant l’attribut non corporel, et du
même coup en l’attribuant au corps, on ne représente pas, on ne réfère pas, on intervient en
quelque sorte, et c’est un acte de langage. L’indépendance des deux formes, d’expression et
de contenu, n’est pas contredite, mais au contraire conffirmée par ceci : que les expressions
ou les exprimés vont s’insérer dans les contenus, intervenir dans les contenus, non pas pour
171
fronteira que atua em um e outro âmbito ao “dizer” na linguagem o atributo das
coisas.
“Na medida em que o acontecimento incorporal se constitui e constitui a
superfície”, pondera Deleuze, “ele faz subir a esta superfície os termos de sua dupla
referência: os corpos aos quais remete como atributo noemático, as proposições às
quais remete como exprimível”516. O acontecimento organiza esses termos como
duas séries que separa, e é por e nesta separação que ele se distingue dos corpos do
qual é resultado ou efeito e das proposições tornadas possíveis por ele. Esta linha
fronteiriça que separa as coisas e as proposições, ou antes, comer-falar, passa
também nas proposições mesmas, entre os nomes e os verbos, ou seja, entre as
designações e as expressões. Deleuze observa que “a linha fronteiriça não operaria
esta separação das séries na superfície se não articulasse enfim o que separa, uma
vez que opera de um lado e de outro por uma só e mesma potência incorporal, aqui
definida como sobrevindo aos estados de coisas e lá como insistindo nas
proposições”517.
A fronteira faz convergir as séries divergentes em torno de um elemento
paradoxal que pode ser explicado como um ponto que percorre a linha ou circula
através das séries, como um centro sempre deslocado que faz convergir os que
divergem enquanto tal, e esta é sua potência de afirmar a disjunção. “Este elemento,
este ponto é a quase-causa à qual os efeitos de superfície se prendem, enquanto
precisamente diferem em natureza de suas causas corporais”518. Conforme Deleuze,
les représenter, mais pour les anticiper, les rétrograder, les ralentir ou les précipiter, les
détacher ou les réunir, les découper autrement ». 516 Deleuze, LS, p.188; orig. p.213 : « dans la mesure où l’événement incorporel se
constitue et constitue la surface, il fait monter à cette surface les termes de sa double
référence : les corps auxquels il renvoie comme attribut noématique, les propositions
auxquelles il renvoie comme exprimable ». 517 Deleuze, LS, p.188; orig. p.213 : « la ligne-frontière n’opérerait pas cette séparation de
séries à la surface si elle n’articulait enfin ce qu’elle sépare, puisqu’elle opère d’un côté et
de l’aute par une seule et même puissance incorporelle, ici définie comme survenant aux
états de choses et là comme insistant dans les propositions ». 518 Deleuze, LS, p.188; orig. p.214 : «cet élément, ce point est la quasi-cause à laquelle les
effets de surface se rattachent, en tant précisément qu’ils diffèrent en nature de leurs causes
corporelles ».
172
a linguagem se organiza tanto com a superfície metafísica ou transcendental, quanto
com a linha incorporal ou abstrata e também com o ponto descentrado, que
correspondem, respectivamente, aos efeitos de superfície ou acontecimentos, à linha
do sentido imanente ao acontecimento na superfície, e o ponto do não-senso da
superfície co-presente ao sentido sobre a linha.
O acontecimento, como vimos, é expresso pelo verbo na proposição que se
atribui à coisa, como o “verdejar” da árvore, o “caotizar” do caos e o “acinzentar”
da borboleta. Ele se destaca do movimento de ação e reação lingüística, de ida e
volta, que representa o círculo da proposição. Para Deleuze, o verbo constitui o anel
da proposição fazendo voltar a significação sobre a designação. “É dele que
inferimos o que o anel esconde ou enrola, o que o anel revela uma vez fendido e
desdobrado, desenrolado, estendido em linha reta: o sentido ou o acontecimento
como expresso da proposição”519.
Assim sendo, o verbo tem dois pólos: um que se refere ao círculo interno da
proposição e o outro concernente ao âmbito extraproposicional. Na concepção
deleuzeana, há, por um lado, o tempo presente, cuja relação com um estado de
coisas designável ocorre em função de um tempo físico; e há, por outro lado, o
tempo infinitivo, cuja relação com o sentido ou o acontecimento ocorre em função
do tempo interno que envolve. Conforme Deleuze, “o verbo inteiro oscila entre o
«modo» infinitivo que representa o círculo desdobrado da proposição inteira e o
«tempo» presente, que fecha, ao contrário, o círculo sobre um designado da
proposição. Entre os dois, o verbo dobra toda sua conjugação em conformidade com
as relações da designação, da manifestação e da significação – o conjunto dos
tempos, das pessoas e dos modos”520.
O infinitivo puro, já o vimos, é Aion, a linha reta, a forma vazia do tempo ou
a distância, que não comporta nenhuma distinção de momentos, mas que se divide 519 Deleuze, LS, p.190 (grifos nossos); orig. p.215: « c’est de lui qu’on infère ce que
l’anneau cache ou enroule, ce que l’anneau révèle une fois fendu et déplié, déroulé, déployé
en ligne droite : le sens ou l’événement comme exprimé de la proposition ». 520 Deleuze, LS, p.190; orig. pp.215 a 216: « le verbe tout entier oscille entre le «mode»
infinitif qui représente le cercle une fois déplié de la proposition tout entière, et le «temps»
présent, qui ferme au contraire le cercle sur un désigné de la proposition. Entre les deux, le
verbe ploie toute sa conjugaison conformément aus rapports de la désignation, de la
manifestation et de la signification – l’ensemble des temps, des personnes et des modes ».
173
formalmente na dupla direção simultânea do passado e do futuro. Sendo distância
positiva, fronteira, Infinitivo, Aion põe em contato, por disjunção, a interioridade da
linguagem e a exterioridade do ser. É dessa maneira, conforme Deleuze, que o ser,
em sua exterioridade, transmite a univocidade à linguagem, em sua interioridade.
Diz ele: “a equivocidade é sempre a dos nomes. O Verbo é a univocidade da
linguagem, sob a forma de um infinitivo não determinado, sem pessoa, sem
presente, sem diversidade de vozes”521. O verbo infinitivo, observa Deleuze,
exprime na linguagem todos os acontecimentos em um, ou seja, exprime o
acontecimento da própria linguagem, ela mesma sendo um acontecimento único,
confundida agora com o que a torna possível. Segundo Júlia Almeida, a forma
verbal do Infinitivo enuncia o tempo do acontecimento puro ou o devir522.
O complexo procedimento que torna a linguagem possível denota, ao nosso
ver, a própria produção da diferença, apresentada como superfície que distingue,
separa e articula. Deleuze explica que “a linguagem é tornada possível pelo que a
distingue. O que separa os sons e os corpos, faz dos sons os elementos para uma
linguagem. O que separa as proposições e as coisas torna as proposições possíveis.
O que torna possível é a superfície e o que se passa na superfície: o acontecimento
como expresso. O expresso torna possível a expressão”523. Ele observa, nós o
vimos, que na gênese estática, vai-se do acontecimento suposto à sua efetuação em
estados de coisas e à sua expressão em proposições. Porém, na gênese dinâmica,
vai-se diretamente dos estados de coisas aos acontecimentos, parte-se das misturas
às linhas puras, da profundidade à produção das superfícies (de la profondeur à la
production des surfaces), que libera os sons, tornando-os independentes dos corpos.
Do ponto de vista da gênese estática, pondera Deleuze, “nós nos dávamos,
de direito, comer e falar como duas séries já separadas na superfície, separadas e 521 Deleuze, LS, p.190 (grifos nossos); orig. p.216: « l’équivocité est toujours celle des
noms. Le Verbe est l’univocité da langage, sous la forme d’un infinitif non determiné, sans
personne, sans présent, sans diversité de voix ». 522 Cf. Almeida, Júlia, EDL, p.127. 523 Deleuze, LS, p.191 (grifos nossos); orig. p.217: « le langage est rendu possible par ce qui
le distingue. Ce qui sépare les sons et les corps, fait des sons les éléments pour un langage.
Ce qui sépare parler et manger rend la parale possible, ce qui sépare les propositions et les
choses rend les propositions possibles. Ce qui rend possible, c’est la surface, et ce qui se
passe à la surface : l’événement comme exprimé. L’exprimé rend possible l’expression ».
174
articuladas pelo acontecimento que resultava de uma e a ela se referia como atributo
noemático e que tornava a outra possível e a ela se referia como sentido
exprimível”524. Todavia, a gênese dinâmica leva-nos a saber “como falar se destaca
efetivamente de comer ou como a superfície ela própria é produzida, como o
acontecimento incorporal resulta dos estados de corpos”525, ou seja, ela dá conta da
produção da diferença. O som é independente quando se eleva à superfície da
expressividade e “deixa de ser uma qualidade específica atinente aos corpos, ruído
ou grito, para designar agora qualidades, manifestar corpos, significar sujeitos e
predicados”526, ou seja, ele torna-se linguagem por obra da superfície que a
distingue e a separa das coisas que afirma-se como distância positiva, como
dissemos, que faz a diferença.
4) Fronteira e intensidade
Ao nosso ver, no Lógica do sentido, Deleuze mostra explicitamente o que no
Diferença e Repetição está apenas implícito: que a Diferença é o Acontecimento.
Entendido como fronteira, interstício, “entre”, distância que separa ao mesmo
tempo que articula e também que se afirma enquanto tal, que é impassível e
simultaneamente dotada de poder genético. Dessa maneira, podemos afirmar que a
diferença se constitui na fronteira, ou antes, que ela é a própria fronteira, e que o
pensamento da Diferença é o pensamento do Acontecimento. Em nossa concepção,
é possível aproximar e mesmo criar uma tradução entre as noções de “distância” ou
“fronteira” e “superfície”, presentes no Lógica do sentido, com as noções de
524 Deleuze, LS, p.191 ; orig. p.217 : « nous nous donnions en droit manger et parler comme
deux séries déjà séparées à la surface, séparées et articulées par l’événement qui résultait de
l’une et s’y rapportait comme attribut noématique, et qui rendait l’autre possible et s’y
rapportait comme sens exprimable ». 525 Deleuze, LS, p.191 ; orig. p.217 : « comment parler se dégage effectivement de manger,
ou comment la surface elle-même est produite, comment l’évément incorporel résulte des
états de corps ». 526 Deleuze, LS, p.191 ; orig. p.217 : « il cesse d’être une qualité spécifique attenant aux
corps, bruit ou cri, pour désigner maintenant des qualités, manifester des corps, signifier des
sujets et prédicats ».
175
“intensidade” e “profundo sem fundo”, expostas no Diferença e repetição,
respectivamente, pois elas definem-se como instância da diferença afirmativa. Por
um lado, Deleuze assevera que “duas coisas ou duas determinações são afirmadas
por sua diferença”, que “se trata de uma distância positiva dos diferentes”, ou seja,
de “afirmar sua distância como o que os relaciona um ao outro enquanto
«diferentes»”527. Por outro lado, ele explica que, “compreendendo o desigual em si,
sendo já diferença em si, a intensidade afirma a diferença. Ela faz da diferença um
objeto de afirmação”528.
O “profundo sem fundo” (Ungrund)529, definição dada ao âmbito da
diferença no Diferença e Repetição, verte-se, ao nosso ver, em “superfície” no
Lógica do sentido, em que “o mais profundo é a pele” 530. A pele coloca em contato
o interior e o exterior, ou antes, reúne em sua superfície, de maneira disjuntiva,
tanto um quanto outro. Conforme Roberto Machado, o privilégio conferido à
profundidade com relação à altura, de inspiração nietzscheana, não significa uma
oposição à superfície, na realidade, é uma conquista dela. A intenção é “restituir a
idéia de profundidade como segredo absolutamente superficial ou descobrir a
profundidade como sendo apenas uma dobra da superfície”531. A fronteira,
analogamente, é o que cumpre este papel de superfície que separa e articula duas
séries divergentes, dos corporais e dos incorporais, das proposições e das coisas. Ela
se faz afirmativa nessa síntese disjuntiva que estabelece entre dois âmbitos
divergentes – a fronteira é a dimensão da diferença em si mesma e em que o
diferente se relaciona com o diferente, ela procede por “diferenciação da
diferença”532.
527 Deleuze, LS, p.178; orig. p. 202 : « il s’agit d’une distance positive des différents : non
plus identifier deux contraires au même, mais affirmer leur distance comme ce qui les
rapporte l’un à l’autre en tant que «différents» ». 528 Deleuze, DR, pp.373 a 374; orig. p.301: « comprenant l’inégal en soi, étant déjà
différence en soi, étant déjà différence en soi, l’intensité affirme la différence. Elle fait de la
différence unobjet d’affirmation ». 529 Deleuze, DR, p.367; orig. p.296. 530 Cf. Deleuze, LS, p.11; orig. p.20. 531 Machado, DF, p.19. 532 Cf. Deleuze, LS, p.181 ; orig. p.205.
176
Dado que é incorporal e que se constitui e se afirma por uma tensão entre
duas séries, podemos concluir que a fronteira não é da ordem do extensivo, tal como
os corpos. O “acontecimento” entendido como “fronteira”, então, pode ser
considerado um correlato da “intensidade” (intensité), definida por Deleuze como
“diferença em si mesma” (différence en elle-même)533, em que o intensivo é “a
natureza da diferença” (nature de la différence)534. Tanto os acontecimentos quanto
as intensidades nunca são idênticas, pois diferem por natureza entre si (diffèrent en
nature)535 e se articulam, se comunicam pela diferença. O acontecimento remete a
outro acontecimento, estabelecendo uma comunicação entre si, tanto quanto a
intensidade – exatamente “porque já é diferença, a intensidade remete a uma série
de outras diferenças que ela afirma ao se afirmar”536.
Se no Diferença e repetição, a intensidade é a diferença em si mesma e no
Lógica do sentido, a fronteira é o que diferencia a diferença, é distância positiva,
podemos criar essa tradução entre intensidade e distância ou fronteira, entre
profundidade e superfície. Segundo Deleuze, a profundidade, tal qual a linha
geológica do N.-E. ao S.O, vem do âmago das coisas em diagonal537. Ele observa
que “a diferença em profundidade compõe-se de distâncias, sendo que a
«distância»” “é uma correlação assimétrica indivisível, de caráter ordinal e
intensivo, que se estabelece entre séries de termos heterogêneos e, a cada vez,
exprime a natureza daquilo que não se divide sem mudar de natureza”538. Portanto,
a distância tem origem intensiva. Embora o Lógica do sentido não apresente tal
terminologia, a aproximação entre um livro e outro, pela noção de distância, é
evidente. Ele explica que, na intensidade, diferença é o que é realmente implicante,
533 Deleuze, DR, p.402; orig. p.325. 534 Deleuze, DR, p.383; orig. p.309. 535 Deleuze, DR, p.404; orig. p.326. 536 Deleuze, DR, p.375; orig. p.302 : « parce que l’intensité est déjà différence, elle renvoie
à une suite d’autres différences qu’elle affirme en s’affirmant ». 537 Cf. Deleuze, DR, p.367; orig. p.296. 538 Deleuze, DR, p.380 (grifos nossos); orig. p.306: « la différence en profondeur se
compose de distances, la «distance» » « est une relation asymétrique indivisible, de
caractère ordinal et intensif, qui s’établit entre séries de termes hétérogènes et exprime à
chaque fois la nature de ce qui ne se divese pas sans changer de nature ».
177
envolvente e distância é o que está realmente implicado, envolvido539. Para
Deleuze, “da intensidade à profundidade já se trava a mais estranha aliança, a do
Ser consigo próprio na diferença”. “No ser, a profundidade e a intensidade são o
Mesmo – mas o mesmo que se diz da diferença. A profundidade é a intensidade do
ser ou inversamente”540.
O âmbito da diferença afigura-se no Lógica do sentido como uma fronteira
que pode ser compreendida pela noção de “intensidade”, exposta no Diferença e
repetição, que é implicada em si mesma; e o deslizar pela superfície dessa fronteira
para alcançar o âmbito corporal permite-nos aproximar da diferença explicada no
extenso541. A dualidade “implicação e explicação” parece-nos correlata da primeira
grande dualidade estóica, a saber, dos incorporais e corporais. Deleuze esclarece
que “a diferença é essencialmente implicada, que o ser da diferença é a implicação”.
“A intensidade se explica, desenvolve-se numa extensão (extensio). É essa extensão
que a refere ao extenso (extensum), onde ela aparece fora de si, recoberta pela
qualidade”542. Há, pois uma certa evidência na correlação entre as dualidades
“intensidade-extensão” ou “implicação-explicação”, que aparecem no Diferença e
repetição” e as de “incorporal-corporal” ou “expresso-designado”, apresentadas no
Lógica do sentido.
Ao nosso ver, é crucial para se entender a noção de Diferença no Lógica do
sentido a frase que aparece de forma insistente: “nada sobe à superfície sem mudar
de natureza”543, subida esta da profundidade dos corpos à superfície incorporal. No
Diferença e repetição, a mesma idéia aparece na seguinte frase: “uma quantidade
intensiva divide-se, mas não se divide sem mudar de natureza. Em certo sentido, ela
é, pois, indivisível, mas somente porque nenhuma parte preexiste à divisão e
539 Cf. Deleuze, DR, p.379; orig. p.305. 540 Deleuze, DR, p.369; orig. p.298: « dans l’être, la profondeur et l’intensité sont le Même
– mais le même qui se dit de la différence. La profondeur esrt l’intensité de l’être, ou
inversement ». 541 Cf. Deleuze, DR, p.365 ; orig. p.294. 542 Deleuze, DR, p.364 ; orig. pp.293 a 294 : « La différence est essentiellement impliquée,
que l’être de la différence est l’implication ». « L’intensité s’explique, se développe dans
une extension (extensio). C’est cette extension qui la rapporte à l’étendue (extensum), où
elle apparaît hors de soi, recouverte par la qualité ». 543 Deleuze, LS, p.170; orig. p.193 : « rien ne monte à la surface sans changer de nature ».
178
nenhuma parte guarda a mesma natureza ao dividir-se”544. Em ambos os casos, a
mudança de natureza é como se submeter ao crivo seletivo do eterno retorno, em
que só passa por ele o diferente. Diz Deleuze: “o eterno retorno elabora-se num
fundo, num sem-fundo em que a Natureza original reside em seu caos, acima dos
reinos e das leis que apenas constituem a natureza segunda. Nietzsche opõe “sua”
hipótese à hipótese cíclica, “sua” profundidade à ausência de profundidade na esfera
dos fixos. O eterno retorno nem é qualitativo nem extensivo; ele é intensivo,
puramente intensivo. Isso é: ele se diz da diferença”545.
Ao nosso ver, as concepções deleuzeanas de diferença intensiva e
profundidade poderiam ser substituídas pelas de Acontecimento (fronteira) e
superfície sem praticamente prejuízos a seus sentidos. Diz ele: “a diferença
intensiva confunde-se com a profundidade como spatium inextensivo e não
qualificado, matriz do desigual e do diferente. Mas a intensidade não é sensível; ela
é o ser do sensível, em que o diferente se refere ao diferente”546. As afirmações
categóricas de Deleuze fazem-nos inferir a tradução entre as noções: Acontecimento
= Intensidade = Fronteira = Profundo = Superfície = Diferença.
--- **** ---
544 Deleuze, DR, p.379; orig. p.306: « une quantité intensive se divise, mais ne se divise pas
sans changer de nature. En un sens, elle est donc indivisible, mais seulement parce
qu’aucune partie ne préexiste à la division et ne garde la même nature en se divisant ». 545 Deleuze, DR, pp.387 a 388; orig. pp.312 a 313: « l’éternel retour s’élabore dans un fond,
dans un sans fond où la Nature originelle réside en son chaos, au´dessus des règnes et des
lois qui constituent seulement la nature seconde. Nietzsche oppose «son» hypothèse à
l’hypothèse cyclique, «sa» profondeur à l’absence de profondeur dans la sphère des fixes.
L’éternel retour n’est ni qualitatif ni extensif, il est intensif, purement intensif . C’est-à-
dire : il se dit de la différence ». 546 Deleuze, DR, p.421; orig. p.342: « la différence est intensive, elle se confond avec la
profondeur comme spatium inextensif et non qualifié, matrice de l’inégal et du différent.
Mais l’intensité n’est pas sensible, elle est l’être du sensible où le différent se rapporte au
différent ».
179
5) Para não concluir O quadro abaixo apenas reúne as idéias principais que contribuíram para
entender a Diferença como sendo a própria fronteira que separa ao mesmo tempo
que articula as proposições e as coisas. A fronteira afirma-se enquanto diferença,
por sua distância, por disjunção.
Efeito de superfície, ela assume-se como um único Acontecimento. O
“descuido” de quase toda tradição filosófica sobre a fronteira justifica-se. Apenas a
um pensamento a-fundado, permite-se tal deslocamento lógico e ontológico para
encontrar nesse “entre” o próprio devir.
Segundo Philippe Mengue, “o devir não estando em nenhum dos dois
termos, nem em sua mistura, é o que passa ENTRE os dois”547. Princípio
descentrado, a diferença possibilita um novo pensar, ou antes, um novo pensar-se
como lugar sem ocupante e ocupante sem lugar: como Fronteira.
Deleuze coloca foco no âmbito dos interstícios para realizar – com sucesso –
seu projeto de filosofia: pensar a diferença em si mesma e a relação do diferente
com o diferente.
547 Mengue, SM, pp.211 a 212: « le devenir n’étant ni dans l’un des deux termes, ni dans
leur mélange, est ce qui file ENTRE les deux ».
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Fronteira : Acontecimento : Sentido : Diferença Diferença de natureza
Caráter paradoxal Incorporal, ideal
Lógica do anel de Moebius: reversibilidade entre o dentro e o fora Efeito autônomo
Superfície = profundo sem fundo Impassibilidade, neutralidade
Poder genético Devir de superfície: dois sentidos ao mesmo tempo
Linha reta de Aion: anel de Moebius cindido Tempo vazio
Incondicionado como condição Instante sem espessura
Ponto aleatório Elemento paradoxal
Instância = X Quase-causa
Não-senso co-presente ao sentido Deslocamento perpétuo pelas séries
Subdivisão infinita Verdade eterna
Fragilidade, evanescência Produzido produtor
Distância positiva: relação pela diferença Síntese disjuntiva: compossibilidade dos incompossíveis
Diferenciação da diferença Duas faces ímpares em desequilíbrio
Expressão
181
6) Bibliografia 6.1) De Deleuze
6.1.1) Obras
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1980, trad. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia, de Aurélio Guerra Neto, Célia
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