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DIDÁTICA DA DIFERENÇA: ESCRILEITURA E TRANSCRIAÇÃO CURRICULAR A partir das pesquisas "Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida" e "Didática da Tradução, Transcriação do Currículo: escrileituras da diferença", ambas coordenadas pela Professora Doutora Sandra Mara Corazza e vinculadas ao PPGDEU/CNPq/UFRGS, a mesa propõe discussões que versam sobre a temática da Diferença, da Tradução e da Didática. Diferença, em um viés deleuziano, é o aporte filosófico que, no campo da educação, possibilita entender a primazia da criação, do minoritário, do devir, numa leitura pós-nietzschiana da cultura que vê na escrita um modo de subverter o instituído da pesquisa em educação. Tradução, a partir das contribuições de Haroldo de Campos, é entendida como prática de reinvenção dos artefatos culturais, reconfigurando a ideia leitura e de escrita; se entendermos o tradutor como agente dessa reinvenção, o educador pode ser visto como tradutor/artistador. Um dos vieses salientados pela mesa é a noção de espaço poético, extraída da obra de Gaston Bachelard, e que funciona como um dispositivo do traduzir em educação. E, finalmente, Didática, como didática da diferença, é abordada como território transdisciplinar, translinguístico, transemiótico, transcultural e transpensamental. Uma Didática-Artista é aquela que recolhe matérias da Arte, Ciência, Filosofia para afirmar- se como atividade escrileitora, enquanto transcriação do currículo e da didática. As pesquisas apresentadas, dada esta ambiência conceitual, não se limitam a explorar fenômenos prontos, acabados, delimitados por relações hierárquicas, estatais, referentes aos alunos e/ou professores. Entende-se que é preciso reescrever as forças desejantes educacionais para além dos modelos lógicos, psicológicos, epistemológicos já consagrados e instituídos. Sendo Artista, esta Didática reinventa as condições de produção do saber, reinterpreta formas de pesquisar na esteira de sua própria condição criadora, isto é, inventa critérios a partir da imanência de seus elementos. Palavras-chave: Didática. Escrileitura. Transcriação. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 10690 ISSN 2177-336X

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DIDÁTICA DA DIFERENÇA: ESCRILEITURA E TRANSCRIAÇÃO

CURRICULAR

A partir das pesquisas "Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida" e

"Didática da Tradução, Transcriação do Currículo: escrileituras da diferença", ambas

coordenadas pela Professora Doutora Sandra Mara Corazza e vinculadas ao

PPGDEU/CNPq/UFRGS, a mesa propõe discussões que versam sobre a temática da

Diferença, da Tradução e da Didática. Diferença, em um viés deleuziano, é o aporte

filosófico que, no campo da educação, possibilita entender a primazia da criação, do

minoritário, do devir, numa leitura pós-nietzschiana da cultura que vê na escrita um

modo de subverter o instituído da pesquisa em educação. Tradução, a partir das

contribuições de Haroldo de Campos, é entendida como prática de reinvenção dos

artefatos culturais, reconfigurando a ideia leitura e de escrita; se entendermos o tradutor

como agente dessa reinvenção, o educador pode ser visto como tradutor/artistador. Um

dos vieses salientados pela mesa é a noção de espaço poético, extraída da obra de

Gaston Bachelard, e que funciona como um dispositivo do traduzir em educação. E,

finalmente, Didática, como didática da diferença, é abordada como território

transdisciplinar, translinguístico, transemiótico, transcultural e transpensamental. Uma

Didática-Artista é aquela que recolhe matérias da Arte, Ciência, Filosofia para afirmar-

se como atividade escrileitora, enquanto transcriação do currículo e da didática. As

pesquisas apresentadas, dada esta ambiência conceitual, não se limitam a explorar

fenômenos prontos, acabados, delimitados por relações hierárquicas, estatais, referentes

aos alunos e/ou professores. Entende-se que é preciso reescrever as forças desejantes

educacionais para além dos modelos lógicos, psicológicos, epistemológicos já

consagrados e instituídos. Sendo Artista, esta Didática reinventa as condições de

produção do saber, reinterpreta formas de pesquisar na esteira de sua própria condição

criadora, isto é, inventa critérios a partir da imanência de seus elementos.

Palavras-chave: Didática. Escrileitura. Transcriação.

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ESPAÇO POÉTICO COMO TRADUÇÃO DIDÁTICA: BACHELARD E A

IMAGEM DA CASA

Luiz Daniel Rodrigues Dinarte – PPGEdu/UFRGS

Resumo: O artigo propõe a invenção de um problema envolvendo o Espaço Poético, a

partir da obra A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard e a didática. Entendendo a

noção de Espaço a partir da inflexão atribuída por Corazza (2015b, 2015a), desde o

bloco de pensamento EIS AICE (Espaços, Imagens, Signos e Autor, Infantil, Currículo,

Educador) e a didática como didática da diferença, a discussão gira em torno da

imagem da casa, nos termos da filosofia bachelardiana, como força de criação. Procede-

se com a apresentação da ideia de imagem poética em Bachelard, seguindo alguns dos

desdobramentos da análise textual do filósofo; em seguida são discutidas algumas

repercussões deste pensamento em uma didática da tradução, ao mesmo tempo em que

são enumeradas algumas pesquisas relevantes no campo da educação da diferença; e,

por fim, o Espaço Poético é sugerido como uma possibilidade de tradução em didática,

ou seja, aporte filosófico que dá sustentação a uma didática da diferença. Por isso o

Espaço é definido como espaço de possibilidades tradutórias e de emergência de

linguagens. Ao inventar um problema didático, propõe-se verificar alguns efeitos

possíveis de leitura e escrita no campo da educação para além das unidades consagradas

de análise neste campo. Se entendemos uma didática da diferença em consonância com

uma didática tradutória, mesmo nosso território conceitual-filosófico pode e deve ser

dado à tradução, à reinvenção e à possibilidade de novas conexões. Talvez tenha sido

este o novo espírito científico desejado e propalado por Bachelard, no qual os conceitos

devem se reinventar, e, reinventando-se, ganham novos sentidos.

Palavras-chave: Didática da diferença; Espaço Poético; Didática da Tradução.

POETIC SPACE AND TRANSLATION OF DIDATICS: BACHELARD’S

IMAGE OF THE HOUSE

Abstract: The article proposes the invention of a problem that involves the Poetic

Space, from Gaston Bachelard‘s book The Poetics of Space, and didactics.

Understanding space from conceptual inflection given by Corazza (2015b, 2015th),

since the thought‘s block EIS AICE (Spaces, Images, Signs and Author, Children,

Curriculum, Educator) as well as didactics as didatics of difference, the discussion

explores the image of the house, according to Bachelard philosophy as creative force.

The procedure consists in the presentation of the idea of poetic image on Bachelard,

following some of the consequences of textual analysis of that philosopher; then

discusses some implications of this thought in a didactics of translation, afterwhile there

are some relevant researches in the field of the education of the difference; and finally,

the Poetic Space is suggested as a possible didatics of translation that supports

philosophical input to a didatics of difference. So the space is defined as a space of

translational possibilities and arise of languages. By inventing a didactic problem, it is

proposed to verify some possible effects of reading and writing in the field of education

in addition to the units of analysis in this field. If we understand the teaching of the

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difference in accordance with a translational didactic, even our conceptual and

philosophical territory can and must be open to the translation, the reinvention and the

possibility of new connections. Perhaps this was the desired new scientific spirit

released by Bachelard, in which the concepts must reinvent itself, and reinventing

themselves, gain new meanings.

Keywords: Didactic of the difference; Poetic space; Didactics of translation.

Cruzamentos

Quais são os cruzamentos entre Espaço Poético e a didática da tradução e quais

aspectos condicionam tal cruzamento? Trata-se de uma invenção de um problema

educacional e filosófico. Mesmo inventada, é uma pergunta que possibilita traduções,

novas invenções, novas perguntas, cruzando elementos de cada um de seus

componentes. A busca é sempre por outros desdobramentos, outras decorrências. Isso

significa que não se trata d‘A Poesia, A Literatura ou O Poema como conduções seguras

de uma prática educativa, onde a didática, certa do seu papel de obter resultados através

de atividades definidas a priori, elegeria artefatos mais propensos a possibilidades de

criação. Da mesma maneira, não evocamos uma didática que não seja uma didática da

diferença (CORAZZA, 2015a). Pois, para que se faça possível e pensável um

cruzamento dessa natureza, a imagem poética deve ser entendida não como o

estabelecido da imagem, mas como aquilo que ―é uma emergência da linguagem‖, e que

está ―sempre um pouco acima da linguagem significante‖ (BACHELARD, 1979, p.

190). Trata-se de movimento de abertura de espaços de escrita e leitura, como ―um

movimento do pensamento, uma direção tradutória dos atos curriculares – por si

próprios, transcriadores de elementos artísticos, filosóficos e científicos‖ (CORAZZA,

2015a, p. 108). A escrita do Espaço Poético se configura, nesse emaranhado conceitual-

criador, como uma das potências para que uma didática da diferença, como imagem que

irrompe à consciência criadora, embora não se realize senão como misto entre

pensamento e fazer didático.

Não há Espaço enquanto não se produzir Espaços; não há didática enquanto não

se atribuir um sentido e um movimento tradutórios aos atos curriculares. Tradução, para

Corazza (2013), corresponde a uma atividade para além do trânsito entre duas línguas,

entre dois sistemas linguísticos, mas se define na transposição, para uma língua didática,

de elementos polissêmicos, artísticos, imagéticos, sonoros, não tributária a uma busca

pelo original da língua, mas que requer criação de espaços tradutórios. O movimento

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tradutório não pode se encerrar na sala de aula, unidade sobrecarregada de códigos

gastos, enfadonhos e cheio de afirmações e enunciados estabelecidos em termos

discursivos. Por isso propomos uma invenção de um campo problemático e pragmático,

uma variação epistemológica que visa multiplicar os efeitos do Espaço Poético e da

didática no pensamento educacional. Tal pragmática é aqui entendida a partir daquilo

que Deleuze e Guattari (1995) definem como uma proposta de colocar o pensamento e a

linguagem em variação, e, a partir da escrita, propor novos arranjos conceituais,

artísticos e científicos, numa crítica às formas instituídas de colocação de problemas.

O que é aqui apresentado uma concepção tradutória da pesquisa em Educação.

Corazza (2015b, 2015a) propõe, nessa direção, um bloco de pensamento, intitulado EIS

AICE (Espaços, Imagens, Signos e Autor, Infantil, Currículo, Educador), que ―compõe

duas unidades analíticas e operatórias de leitura e escritura: EIS, que expressa as

traduções efetuadas no currículo da diferença; e AICE, como expressão das traduções

didáticas da diferença‖ (2015b, p. 9). Como dobra teórico-prática, EIS AICE enseja um

movimento combinatório de suas partes, recusando a sistematização e o acabamento em

direção a finalidades curriculares ou conduções didáticas a priori. Entretanto, um

pensamento eisaiceano pode incitar inúmeros desdobramentos em termos de pesquisa.

Tanto o bloco pode funcionar em uma dinâmica interna, na recusa à sistematicidade

aliada ao tratamento da forma textual em que se apresenta, como, de outro lado (mas

não de maneira oposta), cada um de seus componentes pode ser discorrido isoladamente

(CORAZZA, 2015c). O giro conceitual adotado aqui é no sentido de eleger o Espaço,

como Espaço Poético, a fim de verificar sua potencialidade nas transposições de uma

didática da diferença. É no espaço de intimidade da casa que escolhemos nos debruçar,

inspirados em Bachelard e em suas análises no âmbito da poesia.

Bachelard e o Espaço da intimidade: a casa

É oportuno demarcar a concepção de produção da imagem que se delineia no

pensamento de Bachelard ao longo de sua produção. A partir da ideia de tempo

descontínuo, o filósofo credita à noção de instante, como coordenação tempo-espaço, a

possibilidade de instituir uma síntese entre experiência e devir, sendo a topoanálise um

expoente metodológico de aproximação ao acontecimento e irrompimento da imagem.

Assim sendo, o espaço se torna o campo fértil para que a palavra literária se torne

potência de multiplicação de experiência, sendo investida, portanto, de memória

simbólica para além da continuidade social. Antes, a palavra literária está em situação

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de descontinuidade em relação ao que apresenta como significação, e as imagens que a

poesia evoca estariam mais ligadas àquilo que tem a capacidade de fragmentar a história

linear e ao que expõe a nervura de uma memória mais profunda, que se renova,

exatamente, no instante da criação poética.

A casa é imagem do limiar de um resguardo, o íntimo que inicia, para a

consciência, um enfrentamento do cosmos, para além da fusão animalesca das

sensações indistintas. Consiste, nesses termos, em uma possibilidade de síntese entre

devir e criação estética. Em Bachelard encontramos este limiar como uma circunscrição,

descontínua, mas não arbitrária – em termos de uma filosofia que põe em evidência a

poética do espaço, pesquisar, pensar, arrazoar: não há sublimação do ser sem o advento

desse irrompimento. O despertar da consciência se dá numa dialética da ingenuidade do

abrir de olhos frente ao descalabro do movimento, do susto, da violência do mundo.

A imagem, para Bachelard, tanto na primeira fase de sua poética (inaugurada com

a obra A Psicanálise do Fogo), como na Poética do Espaço, é tomada como elemento

agregador de experiências estéticas, como filosofia interpretativa entre ciência e poesia

e como procedimento fantasístico do pensamento. Nesses termos, se assemelha ao uso

que os pré-socráticos fizeram dos elementos da natureza como representação da unidade

do ser. Não pretendemos recorrer aos pré-socráticos no sentido de alguma autorização

da tradição para validar a presente discussão, apenas fazemos o apontamento de que

tanto para Bachelard quanto para os pré-socráticos, há uma entrega, uma rendição ao

que se impõe como assombro, beirando o irracional, no que tange à imagem. É por isso

que o onírico ganha destaque em suas obras, dimensão que, a princípio, deveria seguir

uma espécie de fenomenologia do sonho sob a alavanca da interpretação psicanalítica.

Contudo, mesmo sem abandonar a psicanálise, há, em A Poética do Espaço, um ponto

cego no olhar sobre as imagens poéticas selecionadas e que dão o testemunho dessa

conversa entre devir e experiência real. Por isso ele afirma: ―a imagem poética existe

sob o signo de um ser novo. Esse ser novo é o homem feliz‖ (BACHELARD, 1979, p.

192). A contemplação seria a prática de dilatação do objeto, fazendo-o, de certa forma,

unidade de um conjunto de experiências mais ou menos vago que denota, todavia, a

grandeza do ser. Esta seria a definição de Bachelard para o devaneio, noção que não se

resume a um escape em relação à consciência, mas consiste em uma positividade, ponto

de clivagem entre inconsciente e a linguagem inaugurada pelo poema.

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A casa, nesse sentido, não apareceria como imagem da casa empírica, histórica e

arquitetada como berço acabado e seguro das experiências de um sujeito, mas como

ambiência da matização e da correlação sujeito-objeto. Se, diferentemente do saber

científico do positivismo, criticado e enfrentado por Bachelard, a imagem poética não

possui consequências, e, da mesma forma, também não existem causas para as mesmas,

não enquanto explicações psicológicas e cronologicamente ordenadas dadas à

interpretação psicanalítica. ―[É] uma linguagem jovem‖ (BACHELARD, 1979, p.185),

diz o autor em relação à imagem. A casa é a morada de uma alma, sendo esta

necessariamente um elemento, mais do que um projeto buscando harmonia entre

componentes textuais. Como uma anterioridade que funda qualquer atividade espiritual,

a alma inaugura a imagem, dando ao leitor de poemas uma prova de seu envolvimento

mais elevado com a linguagem e ao poeta a função de demiurgo, aquele que cria essas

novas realidades instituindo uma mediação, através da palavra, entre sonho e realidade.

A distinção entre alma e espírito não é, como ressalta Bachelard, uma sutileza nem um

preciosismo, mas a demarcação mesma de duas regiões da produção imagética que

dizem respeito à gradação da abertura fenomenológica entre o poema e o elemento

poético. Quando há harmonia da forma poética, quando a linguagem já atinge um plano

experiencial onde os elementos exigem, uns dos outros, lapidações da forma internas às

exigências da voz (e aí se possa entrever um eu sentimental, um eu poético, um eu

―lírico‖), estamos no domínio do espírito; quando, ao contrário, descemos mais fundo

na constituição de cada elemento, chamando de imagem a cada foco de iluminação,

estamos numa região de emanação, logo, alma.

É a partir dessa duplicidade que Bachelard (1979) percebe a necessidade de um

método para circunscrever as ressonâncias sentimentais nos planos da vida e o

aprofundamento ontológico da repercussão. ―Na ressonância, ouvimos o poema, na

repercussão, nós o falamos, porque é nosso‖. (p. 187) A novidade psíquica do poema

como uma espécie de époche bachelardiana, significa a produção de matéria na

condução do real, na invenção do real. É esse o sentido da imagem poética: produzir

novidade, uma suspensão, numa colocação entre parênteses do elemento poético que

produz o real na apropriação deste pelo leitor. A repercussão é união entre leitor e poeta

que inventa mundos possíveis. Esta é uma característica da filosofia de Bachelard

também nas suas obras voltadas à epistemologia e que o distingue, notadamente, da não

menos importante époche husserliana. Assim como a poesia, também a ciência se volta

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à pluralidade da postura investigativa. (BACHELARD, 1953). Longe de querer expor

ou detalhar o papel da imaginação na poética e na epistemologia de Bachelard, apenas

indico que a complexidade de sua obra deixa transparecer esse encanto e mobilização

do sujeito em relação às imagens da natureza. E é nesse sentido que reconhecemos,

nesta interferência do autor em outros planos de pensamento filosófico, um

procedimento peculiar e potente no sentido de uma investigação no campo educacional,

mais especificamente em termos didáticos.

É importante destacar que, para o filósofo, ciência e poesia devem se somar na

luta contra a conceituação totalizadora (PESSANHA, 1994), abrindo a imaginação para

a possibilidade de criação de novos mundos. É nesses termos que entendemos a

potência do pensamento bachelardiano, no sentido de fazer da investigação científica

uma afirmação do pensamento, do instante e do novo. Cabe aqui tomar a precaução de

não adentrar a extensa problemática da comunicação existente (ou impossível) entre sua

epistemologia e sua estética, mantendo nosso olhar nos seus escritos sobre a imaginação

poética e sobre quais procedimentos uma pesquisa do espaço poético pode supor e

ensejar.

Didáticas (im)possíveis, (im)pensáveis

O espaço, diante dessa perspectiva, para ser investigado, requereria essa investida

no mais primaz de sua projeção. Espaços escolares, por exemplo, seriam ainda muito

conformados, ainda muito passivos diante da inexorabilidade de forças cósmicas, que

tomam o mundo como feito – e feito para sujeitos prontos, que se supõem aprendentes,

escreventes, ensinantes, viventes. Mas o vivo não surge em um espaço pré-concebido. O

vivo é um enfrentamento em relação ao caos, uma rivalidade imposta por um universo

aterrador. Então, não seria necessário criar espaços de aprendizagem, de escrita, de

ensino, de vida?

Designa-se, neste momento, na pesquisa do espaço poético, esse necessário

retorno ao confronto primeiro entre forças viventes. Não há lugar para negatividade no

sentido de descobrir, desocultar, ocupar ou desbravar um espaço. Mas pesquisa, aqui,

quer dizer a aproximação exatamente dessa luta entre forças que se impõem umas sobre

as outras. Assim como Corazza (2015b) desenvolve uma pesquisa em Educação

utilizando um método de configuração de partes de um bloco (EIS AICE) que funciona

como um ―discurso epistemológico de cientificidade mediana‖ (p. 1), entende-se que

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pesquisar significa colocar discursos, conceitos, ideias, experiências, em rotação e

combinação contínuas; as forças que compõe tais estratos se deslocam e se chocam,

compondo historicidades e socialidades sempre múltiplas. É possível traduzir o

movimento crítico-tradutório da autora como uma urgência da novidade científica, que

cria espaços da Educação mais do que os reivindica.

A didática da diferença, evocada no início deste artigo, seria a investida nesta

(trans)criação de elementos culturais que produzam efeitos epistemológicos e

pedagógicos. O Espaço Poético sendo aqui entendido como espaço de tradução de uma

didática (e um currículo) da diferença (CORAZZA, 2015d, notas de aula).

As possibilidades de materialização de uma didática da diferença vêm sendo

desenvolvidas através do entendimento do texto como corpo intensivo, produtor de

pontos de fuga que o ressignificam. Nesse sentido, a literatura como potencial de

criação de espaços de vida na educação não é tomada como objeto de análise, menos

ainda de contemplação. As estruturas referenciais da educação são postas em cena num

tipo de escrita da Vida Educacional, como tarefa crítica, seja através de uma

biografemática da educação (COSTA, 2010; OLIVEIRA, 2010), seja como corpo de

escrita, como conjunto linear produtor de existências-limite (COSTA, 2012). A ênfase

na tradução didática dos textos literários como corpos moventes capazes de recriar uma

ambiência reconciliada com o prazer de escrever, de ensinar e de pesquisar em educação

pode ser encarada como mais uma inflexão dessa materialização; esta pode, por uma

outra via, ser entendida como desmaterialização, como processo erotizante necessário

ao ressurgimento de uma Vida educacional de contornos interessantes (FEIL, 2009).

Entretanto, nesta via de projeção didática que assume a diferença como disparador

de sentidos, há um problema de ordem empírica. Do ponto de vista de um pensamento

da imanência, de teor deleuziano (mas também nietzschiano e, fundamentalmente,

espinosista), a produção de imagens seria inseparável de sua própria instância

pensamental, isto é, não haveria, em princípio, um momento reflexivo para

ensejar/disparar/autorizar uma didática da diferença. Didática, nesse caso, não seria

mais do que um conjunto de ideias autoprodutoras, constituidoras e constituintes de um

espaço de vida. Como sugere Adó (2013), a pesquisa educacional, a fim de aumentar as

potências de existir, lança-se numa coleção de relações intercambiáveis, e, nisso, a

escrita ―autoimplica-se na produção de imagens sem semelhança‖ (p. 26).

Corazza (2015b) delineia este problema empírico em termos de uma dobra

teórico-prática, expressa em pesquisas atuais e precedentes, que se consubstanciam

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entre planos de aula, teorias da tradução-transcriação, formulações curriculares e

didáticas contemporâneas entre outros aportes culturais que transitam no bloco de

pensamento intitulado EIS AICE. O drama didático é o espaço-tempo prenhe de

possibilidades de atualizações didáticas e curriculares e de conceitos relativos à

educação, que captura as forças dos acontecimentos educacionais, nos limites das

formas tendendo ao informe (CORAZZA, 2012). Nesse sentido, a empiria não se

expressa como um dado ao qual o educador/pesquisador deve lançar o olhar ―reflexivo‖,

ou ―crítico‖, mas o (re)escrever, sobre as encenações do drama da aula, é que dá a ver a

força do acontecimento, da aula como espaço-tempo especial (OLIVEIRA, 2014).

Em suma, o campo problemático da aula é que mostra ao educador as

possibilidades tradutórias da didática. A articulação da ideia e da prática é uma vasta

rede de combinatórias e intersecções, onde cada descrição, cada tradução didática, cada

inflexão espiritual se expressa como uma reinvenção do mundo. Nesse viés, o espaço,

antes criado do que ocupado, é sempre espaço de novidade, pensamento e linguagem,

indissolúveis.

Considerações finais

Tomemos a casa como um ponto de partida independentemente do sistema

filosófico ou critérios de experiência estética donde se pudesse vislumbrar seu

aparecimento: uma imagem momentaneamente fenomenológica, de um fundo

fantasístico. Mas sabe-se que, para Bachelard, tal imagem de fundo seria repetida e

reafirmada como um despontar da razão e da poesia numa multiplicidade descontínua

de produtos psíquicos – de uma fenomenologia provisória, como procedimento

inventado, na esteira da intervenção teórico-prática proposta por Corazza (2015c), este

autor passaria, desde nosso entendimento, a uma fenomenologia designada, ebulição de

imagens que seriam responsáveis pela torção e reavivamento do pensar científico. Nesta

investigação poética a casa é elemento de uma psicologia descritiva, imagem através da

qual a alma do poeta repercute no instante-limite do leitor. E se pensarmos, de maneira

diversa, em direção a uma filosofia da diferença, nossa vã fenomenologia de sustentação

inicial precisaria retornar ao informe, tocando a experiência imediata apenas como

intuição, via de acesso ao tempo que recusa tanto a inteligência como o instinto como

ordenadores/deformadores do pensamento.

Este traçado fenomenológico que propomos como torção conceitual não pretende

aproximar dois sistemas filosóficos, mas busca, outrossim, captar de tais sistemas aquilo

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que eles possuem de mais potente no sentido de superar a estagnação do pensamento.

Para provocar tal superação, para nós, ao menos momentaneamente, não interessa o

contínuo ou o descontinuo, mas as duas leituras, as duas concepções de tempo que,

apesar de estarem em vias de uma polêmica, são imagens de filosofias que subvertem a

tradição científica.

No campo educacional, este gesto de suspensão de oposições conceituais seria, no

nosso entender, um gesto de afirmação dos dois sistemas filosóficos em favor de uma

teoria-prática educacional por vir. Nada aqui é realizado fora do escopo operatório que

mobilizou o artigo desde as primeiras linhas, ou seja, não se pretende senão exortar a

imagem da casa ao encontro de uma didática da diferença como movimento tradutório.

Para além das incompossibilidades teóricas, para além das descrições de sintaxes

filosóficas coerentes em função de seus paradigmas e para além da defesa de um

discurso educacional específico, buscou-se, por meio deste artigo, inventar um

problema didático; e, a partir dos cruzamentos elaborados, verificar alguns efeitos

correlatos. Se entendemos uma didática da diferença em consonância com uma didática

tradutória, mesmo nosso território conceitual-filosófico pode e deve ser dado à tradução.

Talvez tenha sido este o novo espírito científico desejado e propalado por Bachelard, no

qual os conceitos devem se reinventar, e, reinventando-se, ganham novos sentidos. E

ganham ainda mais sentido.

Referências

ADÓ, Máximo Daniel Lamela. Educação Potencial: autocomédia do intelecto. Tese de

doutorado. PPGEDU-UFRGS. Porot Alegre, 2013. 195f.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução: Antônio da Costa Leal e

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DIDÁTICA DA TRADUÇÃO EM FLUXO DE CRIAÇÃO: ENTRE O ARQUIVO

E O PROCEDIMENTO

Fabiane Olegário - Centro Universitário Univates/PPGEdu/UFRGS

Resumo: Este texto é tecido a partir de um cruzamento da Pesquisa Escrileituras: um

modo de ler-escrever em meio à vida com a Pesquisa Didática da Tradução,

Transcriação do Currículo: escrileituras da diferença, ambas vinculadas ao

PPGDEU/CNPq/UFRGS. Afirma a didática como transcriadora de elementos

científicos, filosóficos, artísticos e literários. Uma didática que experimenta a recriação,

que por sua vez revivifica a si própria. O professor tradutor é considerado um autor, na

medida em que traduz o original inferindo certo grau de transformação do texto,

atribuindo-lhe uma nova vida. Para que novas traduções sejam possíveis, o texto deseja

mostrar as implicações concernentes à leitura do arquivo gerado pela Pesquisa

Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, e a necessidade de escritura de

procedimentos que viabilizem a invenção de outro texto, pois acredita que o texto é

fecundo e, por isso, aberto aos fluxos de criação. Entende o arquivo não como

depositário fechado de documentos, de acontecimentos marcados pela história, mas, ao

contrário, como algo aberto a novas escrileituras. O procedimento de leitura e escritura

toma a invenção como processo ativo e, por isso, dinâmico de novas traduções. Nessa

perspectiva, pensamos que não há criação sem experimentação, assim como não há

invenção isenta do processo transcriador de matérias. Como aporte teórico, ao texto

interessa o pensamento da diferença, tendo como principal referência Gilles Deleuze.

Importam ao texto os estudos sobre a teoria da tradução literária poética de Haroldo de

Campos e o modo como podemos nos apropriar do conceito de tradução de Campos e

deslocá-lo para o campo da educação, fazendo remissão à educação à tradição, não no

sentido de restaurar o idêntico, mas conduzindo-a à imersão do divergente.

Palavras-chave: Didática da Tradução. Arquivo. Procedimento.

DIDACTICS OF TRANSLATION IN A STREAM OF CREATION:

BETWEEN THE FILE AND THE PROCEDURE

Abstract: This paper has stemmed from an intersection between two researches:

writing-readings: a way to read and write in life and Didactics of Translation,

Transcreation of the Curriculum: writing-reading of difference, both linked to

PPGDEU/CNPq/UFRGS. Didactics is here seen as a transcreator of scientific,

philosophical, artistic and literary elements, a didactics that experiments with re-

creation, which in turn revivifies itself. Translator teachers are regarded as authors,

since they translate the original by inferring certain degree of transformation of the

text, giving it a new life. For new translations to be possible, the paper intends to show

the implications related to the reading of the file produced by the Research Writing-

readings: a way to read and write in life, and the need for writing procedures that

enable the invention of another text, as the text is believed to be fecund and, hence,

open to the streams of creation. The file is not understood as a closed depository of

documents and history-marked events; rather, it is seen as something open to new

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writing-readings. The reading and writing procedure takes invention as an active,

therefore dynamic process of new translations. From this perspective, we think there is

no creation without experimentation; likewise, there is no invention free from the matter

transcreating process. The thought of difference has been taken as our theoretical

support, considering Gilles Deleuze as its main reference. Furthermore, the paper is

focused on the studies of the theory of the poetic literary translation carried out by

Haroldo de Campos, and the way we can appropriate Campos‘ concept of translation

and displace it to the field of education, thus referring to education for tradition, not in

the sense of restoring the identical, but conducting it to the immersion of the divergent.

Keywords: Didactics of Translation. File. Procedure.

Introdução

O texto é um desdobramento da Pesquisa Escrileituras: um modo de ler-escrever

em meio à vida, ação de política pública de pesquisa nacional do Programa Observatório

de Educação (OBEDUC), mediante financiamento do Ministério da Educação na

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e no Instituto

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). A pesquisa foi

desenvolvida entre 1 de janeiro de 2011 e 31 de dezembro de 2014, envolvendo quatro

núcleos, relacionados às seguintes instituições universitárias: UFRGS e UFPel, RS;

UFMT, MT; UNIOESTE, Toledo, PR. Participaram cerca de cem bolsistas e

pesquisadores de diversos níveis de formação e atuação estudantil ou profissional.

Na vigência da Pesquisa, foram realizados ―Roteiros para Inventariar

Procedimentos Didáticos de uma Tradução em uma Aula‖, permeados de matérias

advindas da filosofia, da arte e da ciência; esses roteiros ganharam vida por meio do

funcionamento de Oficinas e de Cursos, os quais permitiram, de certo modo, a criação

de um plano liso à didática, onde a potência e os princípios dessas atividades estão

voltados às práticas em que o regramento tem validade quando os procedimentos são

reinventados.

Os atos de criação didática, formulação curricular e formação de professores-

pesquisadores, tais como foram desenvolvidos pelos bolsistas participantes da Pesquisa

Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, funcionam na medida em que

se atualizam no Projeto de Pesquisa Didática da Tradução, Transcriação do Currículo:

Escrileituras da Diferença (2015), desenvolvido por meio da bolsa do Conselho

Nacional de Desenvolvimento Técnico Científico e Tecnológico (CNPq) na

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), visto que a empiria da Pesquisa

vigente é realizada no terreno do Projeto Escrileituras. Nos processos de atualização,

trabalha em prol de um currículo e de uma didática da diferença tributários das teorias

da tradução-invenção poética e literária; das formulações curriculares e didáticas

contemporâneas; bem como dos processos de reescrita de EIS AICE – Espaços,

Imagens, Signos de Autor, Infantil, Currículo, Educador.

O texto busca criar outros procedimentos visando a uma leitura e a uma escritura

tradutórias dos procedimentos didáticos inventados pelos professores, pesquisadores e

bolsistas que integraram a pesquisa e que estão dispostos no arquivo. O objetivo da

escrileitura concentra-se no movimento de dar a ver a emergência de uma didática que

experimenta textos de outras áreas para produzir a sua própria matéria na presença viva

de um olhar interessado e aproveitador daquilo que já foi realizado em outras esferas,

lançando mão de um ―movimento plagiotrópico‖ (CAMPOS, 2008, p. 75). Um

movimento que tem sentido apenas em relação ao original, que concentra as suas forças

no desejo contínuo de ser novamente reinventado, posto em variação em favor da sua

recriação. Para isso, o texto toma os restos e os rastros dos experimentos realizados e

com eles executa uma ―recriação fantasística e imaginativa, por meio de escrileituras

[...] num processamento singular de interpretações‖ (CORAZZA, 2012 p. 185),

atribuindo-lhe novos limites, ―os quais são sempre inventados. E uma invenção entende-

se como uma inovação – mesmo que tênue – acrescida a uma invenção anterior‖ (ADÓ,

2013, p. 52).

Guarda-chuva

O que se sabe é que educadores executam a atividade pedagógica. Esta pode ser

considerada uma afirmação um tanto óbvia, e por isso nos interessa traçar um desvio,

operar um corte, forçar um deslocamento, não no sentido de inversão do que foi dito ou

de uma inversão descabida que não se refiram à execução de uma profissão, mas que a

tomem como uma atividade ―que prima pelo lançar dos dados ou o lançar-se aos dados‖

(OLIVEIRA, 2014, p. 39), na qual emerge uma didática ―intrinsecamente operatória‖

(OLIVEIRA, 2014, p. 37). Uma didática construída por um drama, que por sua vez

opera por um método dramático, em que ―a Idéia encarna-se ou atualiza-se‖

(DELEUZE, 2006a, p. 130) via currículo; isso faz com que a ideia se aproxime ―muito

mais do acidente do que a essência abstrata‖ (DELEUZE, 2006a, p. 131). Ademais, é

preciso dizer que ―mesmo a representação somente tem existência devido a um

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empreendimento dramático‖ (FEIL, 2010, p. 84). Também podemos dizer que

educadores são comprometidos com o campo teórico-prático de uma atuação específica

que, por sua vez, lhes concede a tarefa de ensinar. Indo além das tarefas, geralmente ao

educador é atribuído o mero papel de transmissão do texto original. Talvez por acreditar

que é apenas um transmissor, abdique da sua função autoral. Há de se prestar atenção

aos discursos recorrentes, pois se trata sempre de construir trincheiras constituídas pelas

batalhas entre as forças.

Percebemos que há uma marca indissociável entre didática e currículo, pois, se

há didática, há currículo; embora se remetam a campos distintos, estão intimamente

ligados pela concretude do vivido e do vivível, extraindo a imanência das matérias

provenientes da filosofia, da arte e da ciência. Por isso, cabe ao professor tradutor o uso

de um objeto cortante capaz de pequenos rasgões no guarda-chuva, os quais lhe

possibilitam extrair do caos, forças potentes com vistas a criar um plano à educação,

onde ressonam as três filhas do caos (do corte, o que se tem são sempre os estilhaços de

matérias científicas, filosóficas e artísticas).

Defendemos o professor como tradutor das matérias com que lida, porque antes

de qualquer coisa ―abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer

passar um pouco de caos livre‖ (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 240) que verte em

um campo de intensidade, que, ao invés de representar, dobra as forças para constituir

um interior. Corazza (2014) compreende o professor tradutor como um escrileitor

(escritor e leitor), que transcria os elementos científicos, filosóficos e artísticos,

reconhecendo a sua própria produção. Nesse sentido, a nossa aposta é de que a atividade

de um professor tradutor seja ―radicalmente marcada por procedimentos de invenção e

desfazimento‖ (OLIVEIRA, 2014, p. 70). Inevitavelmente que em meio ao processo de

criação, ―é preciso um pouco de ordem para nos proteger do caos‖ (DELEUZE;

GUATTARI, 1992 p. 237), sendo, pois, a condição de todo o processo de

experimentação, processo que recusa a educação como mediação, para se afirmar como

potência (ADÓ, 2013).

Suspeitamos desde o início que algo se passa entre a didática e a tradução.

Todavia, o professor tradutor não se contenta com repetições empobrecedoras e por isso

―não se obriga a transmitir o conteúdo literal ou verdadeiro dos elementos originais‖

(CORAZZA, 2014, p. 54). Na contramão desse fluxo, o professor tradutor assume e

encarna, no exercício docente, a invenção como inerente à atividade humana e por isso

se pode afirmar que criar ―é o ato intelectual verdadeiro, a única ação inteligente,

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porque só a invenção prova que se pensa, seja qual for essa coisa‖ (SERRES, 1993, p.

118-119). Tal proposição indica-nos que a vida é um processo de criação constante,

sendo imanente a esse processo a repetição do não-idêntico; proliferando por meio de

fluxos desterritorializados, incorpora aquilo que é dos outros, tornando-o seu. Daí o

interesse nos fluxos quando ―descodificados‖, porque possibilitam que ―algo escape à

codificação‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 204).

Todavia, a didática da tradução não se desvincula dos processos da vida e,

portanto, de criação, ―pois o que importa é sempre o processo como prática de

constituições múltiplas, irregulares e inconstantes‖ (ADÓ, 2013, p. 162). É por tal razão

que usurpa do texto original o que lhe interessa para produzir uma nova matéria;

desdobrado, engendra práticas tradutórias que possibilitam experimentar uma realidade

em constante transformação, na qual se instaura numa instância de atravessamentos,

revitalizando posturas investigadoras e criadoras, próprias do professor tradutor. Este,

sempre disposto a novas fendas, impede a realização de remendos que dizem respeito à

comunicação, à informação, ao senso comum e ao clichê. Para que não caia nas

armadilhas de transmissão do texto original, sabe que será preciso travar novas batalhas

que possibilitarão novas invenções ―e, restituir assim, a seus predecessores, a

incomunicável novidade que não mais se podia ver‖ (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.

240).

Trânsito

Compreendemos a tradução como um processo de transcriação, em que o

professor tradutor se apropria do texto original para investir em novas criações, o que

implica empenhar uma verdadeira ―transgressão‖, viabilizando o ―estranhamento‖ e a

―irrupção da diferença do mesmo‖ (CAMPOS, 2013, p. 168). Se levarmos a sério que a

tradução é um ato recriador do texto original, pode-se afirmar igualmente que traduzir

não pressupõe uma leitura passiva, tampouco revela uma recepção apaziguadora em

relação às matérias com as quais entra em contato. Uma leitura comprometida com a

crítica, contrária ao servilismo, não dará nenhum sinal de transmissão exata do original,

no sentido de transpor o seu sentido literal, porque assume a tradução como uma

atividade criadora, que por meio de interpretações e repetições do original sempre acaba

recriando-o. Logo, esse modo de leitura é o primeiro movimento tradutório, pois a

leitura é praticada ―como uma produção simbiótica de novos textos, como

intertextualidade e palimpsesto‖ (CAMPOS, 2004, p. 18). Admitimos que ―uma leitura

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jamais é a mesma leitura mesmo quando as palavras lidas coincidam palavra por

palavra, linha por linha com a leitura anterior‖ (ADÓ, 2013, p. 97), ou seja, uma

transcriação ―não traduz palavra por palavra; não transmite a mensagem do original‖

(CORAZZA, 2012, p. 182).

De modo enfático, afirmamos que não há processo de criação que não esteja

calcado na tradição, pois ―ninguém explora novos domínios perdendo antigos amores‖

(Campos, texto digital), isto é, ―somente se pode produzir algo grande mediante a

apropriação dos tesouros alheios‖ (CAMPOS, 2008 p. 76). Além disso, uma semiótica

da recepção tradutória acredita que o receptor poderia ganhar os créditos de uma

coautoria quando intervém no texto, provocando alguma variação, por menor que ela

seja.

Entre o texto de partida e o texto de chegada, algo acontece, marcando um

trânsito, dotado de percursos, linhas sinuosas, velocidades, lentidões, constituindo

―regiões de intensidades contínuas‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 23) que se

entrecruzam e se entrelaçam, proporcionando a sobrevivência do original a fim de que

vivam ―mais tempo e também de modo diverso‖ (PAZ, 1981, p. 11).

O texto de partida transita em um campo cambiante e provisório. Embora o

texto tenha vida própria, sua persistência em continuar a existir se dá quando é

sobreposto a novas traduções, que acabam ―reeditando as suas potências – não como

monumentos gloriosos, mas como coisas criadas – desmontamos e remontamos as

máquinas da criação, que os engendraram, como produtos supostamente acabados‖

(CORAZZA, 2015, p. 114).

Paz (2009) afirma que aprender a falar é aprender a traduzir, o que, de certo

modo, nos permite pensar que traduzir é o nosso destino enquanto humanos. Não há

vida sem tradução, quando se toma o sentido de uma atividade recodificadora do fluxo

sígnico com o compromisso de transfigurar o original cada vez que se põe em trânsito

entre tradição e a tradução. É como se o texto original, sem aviso prévio, fosse atacado

por uma lufada, vinda de um golpe de vento, o qual revivifica a sua potência,

produzindo bifurcações em caminhos que supostamente se mostraram lineares.

O Arquivo

Há fortes indícios de que o arquivo não exista enquanto arquivo-morto e

arquivo-passivo; tudo nos leva a crer que o arquivo tem vida própria. A noção de

arquivo em Derrida (2001) não é reduzida à experiência de uma memória, ou então ao

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retorno a uma origem. Há no arquivo certa técnica da repetição em que se agrupam

dados e se juntam elementos, embora nada disso fosse possível ―sem uma certa

exterioridade‖. Isso significa dizer que ―não há arquivo, sem exterior‖ (DERRIDA,

2001, p. 22). Pode-se inferir que não há arquivo que não se exponha aos caos e que

também não possa ser ficcionado com as forças que o constituem, ―onde se escondem

suas certezas, assim que ali se lance um olhar, um pensamento‖ (FOUCAULT, 2009, p.

222).

Suspendemos a imagem de um arquivo com um bloco de registro documental

fixado e demarcado em um espaço, o qual tem como referência uma determinada

temporalidade passada. Admitimos que o arquivo não faça referência a um depósito de

memória sem passar por borrões, rasuras e esquecimentos. Na contramão de um arquivo

estático, trabalha-se no sentido de deslocá-lo, o que lhe possibilita sua repetição,

―entendida como movimento real, em oposição à representação‖ (DELEUZE, 2009b, p.

75). Esse movimento é encarnado pelas forças virtuais ―em curso de atualização‖

(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 174) do arquivo.

Podemos compreender de imediato que um arquivo trata de salvaguardar um

conjunto de informações. Grosso modo, numa concepção clássica e logocêntrica, o

arquivo é um depositário de documentos que revelam importante conteúdo. Por outro

lado, podemos interpretar o arquivo a partir do conceito de desconstrução de tela

derridiano, em que o arquivo suspende a lógica de armazenamento de testemunho e de

prova, e assim possibilitar a sua própria renovação. Teríamos, portanto, um arquivo

aberto às forças e aos fluxos da invenção. Nesse sentido, a noção clássica de arquivo

será estremecida, pois essa noção é torcida e retorcida por Derrida, uma vez que não se

trata de um retorno à origem e tampouco à verdade fixa, visto que o arquivo é tomado

por um movimento de repetição. Segundo o autor, ―não há arquivo sem um lugar de

consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade, não há

arquivo sem exterior‖ (DERRIDA, 2001, p. 22).

Nessa direção o arquivo é inacabado e por isso se encontra sempre aberto,

disposto a novas interpretações. De natureza descontínua, constitui-se em meio às

virtualidades, as quais ―reagem, portanto sobre o atual‖ (DELEUZE; PARNET, 1998, p.

174), sob a condição de impor-se de forma fragmentável. No plano insistente da

instabilidade e da composição fragmentária, o arquivo acolhe um processo permanente

de produção da diferença, que o torna sempre aberto, esgarçado e disposto à leitura

tradutória.

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Uma atualização ―é sempre criadora em relação ao que ela atualiza‖, visto que o

―virtual não se atualiza por semelhança, mas por divergência e diferenciação‖

(DELEUZE, 2006, p. 137), assim se concedendo a possibilidade de que novas leituras

sejam feitas do arquivo. De forma honesta, afirmamos que o arquivo tem como

procedência a invenção, permitindo, nesse sentido, que seja transcriado ao ―transcrever,

aludir, falsificar, devorar antropofagicamente, roubar o alheio, suspender e vomitar o

acontecimento‖ (CORAZZA, 2008, p. 13) que pulula no arquivo.

Rachaduras no procedimento

O fundamental é investir em um plano que ―quer salvar algo que está morrendo,

mas para salvá-lo é preciso matá-lo antes, ou pelo menos, fazer-lhe uma tal transfusão

de sangue‖ (CORTÁZAR, 2013 p. 505). O plano requer um procedimento, uma nova

forma de ler; sobretudo, requer a tradução de ―ideias já prontas sob o signo da

invenção‖ (CAMPOS, 1972, p. 111). Aqui o novo não diz respeito à novidade, já que ―o

que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo, isto é, a

diferença, é exigir, no pensamento, forças que não são as da recognição‖ (DELEUZE,

2009b, p. 213). Construir procedimentos exige, antes de qualquer coisa, operar via

processos transcriadores, no sentido de ―se apropriar de uma inovação anterior ou ainda,

futura‖ (ADÓ, 2013, p. 61).

A didática da tradução propõe-se a criar e funciona via operação dos métodos de

produção e de interpretação (no sentido que Nietzsche dava à palavra), em que

interpretar corresponde às práticas de ―violentar, ajustar, abreviar, omitir, imaginar e

falsear‖ (NIETZSCHE, 1998, p. 139). Logo, interpretar é extrair das matérias algo de

estrangeiro que interessa, tendo como princípio não negar aquilo que já foi feito. Um

procedimento, entretanto, versa sobre os processos de desmontagem do que existe,

visando a proliferar por meio de variações. O procedimento que se desdobra exige certo

esforço no sentido de ―ser previamente planejado, artisticamente armado e

estrategicamente pensado‖ (FEIL, 2007, p. 33).

É certo que ―o procedimento expressa uma nova forma que deve inventar

alguma coisa para permanecer sendo nova‖ (FEIL, 2007, p. 36). Nessa perspectiva, só

tem validade se o procedimento for inventariado. A dimensão criadora do procedimento

consiste em mostrar o modo como se está traduzindo o existente, ou então um arquivo,

pois ―toda a invenção depende de um arquivo‖ (ADÓ, 2013, p. 102). A invenção

desestabiliza o arquivo, uma vez que trata de imprimir novas configurações, outros

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arranjos, os quais forjam ―um rastro de intensa obscuridade‖ (OLIVEIRA, 2014, p. 33).

A montagem de um procedimento inventado demanda ―um pensamento que estaria por

ele mesmo obscuro, e que, de direito estaria atravessado por uma espécie de rachadura

sem a qual não poderia exercer‖ (DELEUZE, 2006, p. 125-126).

Para ler os rastros do arquivo ―Roteiro para Inventariar Procedimentos didáticos

de uma tradução em uma aula‖, recorre-se à tentativa de produzir um Procedimento

baseado na ideia de Inventário que reinscreve a sua existência por meio de notas de

escrituras ficcionais. A escrita baseada na ficção ―não remete a nenhuma oposição

ficção/não ficção, simplesmente porque ficção é tudo que existe. [...] É a nossa única

atividade [...] As ficções são a nossa vida‖ (CORAZZA; TADEU, 2003, p. 40).

Portanto, ―escritura ficcional não é menos verdadeira do que aquela que vive para a

verdade, ou: aquela que vive para a verdade não é menos mentirosa do que a ficcional‖

(FEIL, 2010, p. 82). A verdade, nesse caso, segundo Deleuze (2010a, p. 89), ―não se dá,

se trai; não se comunica, se interpreta; não é voluntária, é involuntária‖. Portanto, essas

notas podem ser acolhidas como marcas que imprimem a ―variação contínua‖

(DELEUZE, 2010b, p. 44) do arquivo. Trata-se de uma existência fragmentária, na

medida em que o rastro é sempre rastro do seu próprio rastro, pois ―não é somente o

desaparecimento da origem, ele quer dizer aqui (...) que a origem nem ao menos

desapareceu, que ela não foi constituída senão em contrapartida por uma não origem, o

rastro que se torna assim a origem da origem‖ (DERRIDA, 1997, p. 90). Nesse sentido,

o rastro não é uma estrutura, um existente, uma palavra; é uma operação que não rompe

com a sua materialidade gráfica e não se confina a ela (DERRIDA, 1997). Por isso, os

rastros não podem ser identificados, classificados, ordenados, mas inventariados, ―num

contínuo e incessante desdobramento da diferença‖ (CORAZZA; TADEU, 2003 p. 51),

pois ―o que permanece não é o que foi dito, mas sim a tendência em querer produzir

uma nova escritura‖ (FEIL, 2010, p. 85).

Considerações finais

O que interessa à didática da tradução é estar sempre voltada aos processos de

reinvenção, de reimaginação, recriando as matérias supostamente originais, advindas de

campos distintos, dos quais emergem os elementos da filosofia, da arte e da ciência, os

quais mantêm a permanência dos fluxos intensivos em ―metamorfose perpétua‖

(CORAZZA, TADEU, 2003, p. 30).

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10709ISSN 2177-336X

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Uma didática da tradução trai o texto de partida, sendo avessa a uma tradução

literal; autoriza ao texto de chegada uma ação plagiária da matéria original. Numa

atitude usurpadora, a didática da tradução ―mantém encontros, mesmo que fugidios,

com os de partida; sem, no entanto, perder o parentesco, a proximidade, a vizinhança

entre as línguas‖ (CORAZZA, 2015, p. 109). Seus procedimentos são sempre da ordem

da invenção, pois recusa a essência que supostamente elevaria o original ao status de

verdade absoluta que ―se refere a um sistema de interpretação pronto‖ (CORAZZA,

2012, p. 186). Na contramão das certezas fáceis, a didática da tradução desencoraja

qualquer tentativa de repetição do mesmo porque, acima de tudo, aposta em uma

educação ―que se faz para conhecer o que se faz no próprio ato do que é feito‖; todavia,

essa educação ―passa a erguer-se na desordem vital que se insinua como processo‖

(ADÓ, 2013, p. 99).

Entretanto, o arquivo é tomado como matéria viva para a construção de um

procedimento. Construir um arquivo está sempre voltado para a atualização das matérias

que o constituem naquele momento. A matéria à qual nos referimos apenas poderá ser

viva porque ―pensa a didática como inseparável de variadas traduções e definições

comunicáveis; embora provisórias e sujeitas a contínuas reformulações‖ (CORAZZA,

2013, p. 204).

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TRADUÇÃO-DRAMATIZAÇÃO DO CURRÍCULO: IMAGENS DO PROJETO

ESCRILEITURAS

Polyana Olini - PPGEdu/UFRGS

Resumo: Esta comunicação apresenta uma tradução-dramatização do currículo do

projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, integrante do Programa

Observatório da Educação CAPES/INEP, em quatro núcleos, situados em instituições

públicas de ensino superior. Trata de imagens vivificadas em currículo, sem enclausurá-

las a argumentos lógico-formais, mas sim movimentando-as, questionando-as e

recriando-as, no âmbito do projeto Escrileituras, por meio do arquivo despojado a partir

da participação de seus pesquisadores em procedimentos de leitura, de compreensão, de

análise e de produção. Para tanto, cria vias de estudo, de verificação e de

experimentação marcadas, cada qual a seu modo, por um liame com o Método de

Dramatização de Gilles Deleuze, em seus movimentos crítico-genealógico e

experimental-exploratório, com a teoria da tradução literária poética de Haroldo de

Campos e com a tese da Didática da Tradução de Sandra Corazza. Opera com o arquivo

e os demais movimentos de pesquisa por dentro de três planos com os quais é possível

colocar em evidência o caráter dramático do currículo-escrileituras, quais sejam: o plano

documental (PD), o plano procedimental (PP), e o plano dramático-noológico (PDN).

Dessa forma, produz uma recriação do texto original do currículo do Escrileituras,

colocando suas imagens de pensamento em cena, desde um modo possível de pesquisar,

desalojado de um contínuo de procedimentos pré-definidos, mas que compõem uma

prática a ser inventada, documentada, analisada e produtora de sentidos, afecções,

conceitos, relações e aprendizagens.

Palavras-chave: Currículo. Didática da Tradução. Método de Dramatização

TRANSLATION-DRAMATIZATION OF CURRICULUM: IMAGES

OF PROJECT WRITREADINGS

Abstract: This paper presents a translation-dramatization from curriculum of project

Writreadings: a way of reading-writing amidst life, part of the Programa Observatório

da Educação CAPES/INEP, with four university cores, situated in public institutions of

higher education. This is quickened images curriculum without encloses them logical-

formal arguments, but moving them, questioning them and recreating them as part of

the project Writreadings, by means of the file stripped from the participation of its

researchers in reading, understanding procedures, analysis and production. To do so,

create study pathways, verification and scheduled trial, each in its own way, by a bond

with the Method of Dramatization in their critical-genealogical and experimental-

exploratory movements of Gilles Deleuze, with the theory of literary translation Poetics

of Haroldo de Campos and the Didactics of Translation of Sandra Corazza. Operates

with the file and the other movements of search by inside three planes, with which it is

possible to put in evidence the dramatic character of the curriculum-escrileituras,

namely: the documentary plan (PD), the procedural plan (PP), and the dramatic-

noologyc plan (PDN). Thus, produces a re-creation of the original text of the

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Writreadings-curriculum, putting your images of thought, since a possible mode of

search, dislodged from a predefined procedures continuous, but that make up a practice

to be invented, documented, analyzed and producer of senses, affections, concepts,

relationships and learning.

Key-words: Curriculum. Didatics of translation. Method of Dramatization

Considerações Iniciais

A partir da ideia de que ―debaixo de todo currículo há um drama‖ (CORAZZA,

2013, p. 171), pesquisou-se o currículo do projeto Escrileituras: um modo de ler-

escrever em meio à vida, sob a perspectiva do Método de Dramatização, perguntando o

que querem as imagens que habitam o currículo engendrado nesse projeto, visando

encontrar as forças que expressam seu modo de ser, de sentir e de pensar em meio ao

drama educacional. Proposto por Deleuze (2006a) na conferência de 1967 intitulada O

método de dramatização, ao apresentar o movimento de dramatização, apontando para a

encenação tipológica que questiona o privilégio da pergunta ―o que é?‖, apoiado na

crítica e na experimentação das relações de forças, criando assim contraponto à uma

imagem dogmática do pensamento. Nesse contraponto o pensamento se ocupa da

experimentação com o que não está dado dentro do limite da razão e do bom senso.

Segundo Deleuze, faz-se necessário buscar pelo caráter dramático do

acontecimento. Essa busca por dramas, anseia pela atualização das Idéias, que estão

recobertos por uma imagem dogmática e moral de pensamento, para colocá-los em cena

antes que sejam transformados em representação. Sob o logos do conceito, encontre o

drama que o especifica em suas determinações espaço-temporais.

Dessa forma, o Método de Dramatização pode ser entendido como um método

trágico, ou um método de exploração teatral que mostra afinado à filosofia de Nietzsche

e às perguntas perspectivistas que este entreabre. Busca o sentido no que se diz e a

avaliação daquele que fala, por meio de uma ruptura com a questão ―o que é‖ e a

utilização de questões dramáticas, genealógicas, perspectivistas. Isso implica um

autêntico movimento contra a inércia imutável da Imagem dogmática do pensamento,

pois compreende que não é possível determinar um tipo, nem fazer o mapa de uma

região, sem dissolver a imagem universal que bloqueia essas singularidades.

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Mas, o que é uma imagem do pensamento? Para Deleuze (2006b), cada filósofo

cria uma filosofia que não se trata de cópia mental, representação subjetiva ou uma

concepção de mundo. Não é representante da coisa no intelecto, ou visão do objeto na

consciência; não pode ser deduzida da ideologia, nem do contexto social e econômico;

tampouco, pode ser confundida com a transparência das formas ou das ideias, nem com

o esclarecimento de proposições e teses; não é um dado psicológico, nem está no

cérebro do indivíduo — ao contrário, tanto o cérebro quanto o indivíduo são imagens

entre outras. Nessa perspectiva, Deleuze e Guattari propõem uma reinvenção da

noologia, isto é, uma reinvenção das ciências do pensamento; um estudo e uma

genealogia das imagens de pensamento, a partir da seguinte proposição: ―haveria

portanto uma imagem do pensamento que recobriria todo o pensamento, que constituiria

o objeto especial de uma noologia‖ (1997, p. 43). Uma noo-imagem que é uma imagem

do ser, um recorte da matéria do ser.

Buscou-se evidenciar o caráter dramático do currículo do projeto Escrileituras.

Para tanto, a dramatização foi compreendida e movimentada como um exercício de

tradução, ou seja, de criação e fabulação de novos signos e de novas imagens, fazendo

aparecer o drama que está recoberto por suas imagens dogmáticas e atuais de

pensamento, suas potências intensivas e virtuais. Com a teoria da tradução, ou da

recriação e da transcriação, de Haroldo de Campos (2013) — que confere ênfase ao

caráter processual do texto como escritura e instala procedimentos literários

desestabilizadores de sentido, rompendo a hierarquia entre tradução e criação —, a

―Didática-artista da tradução‖ (Corazza, 2013) tornou tais movimentos possíveis,

visando provocar outros modos de relação com a pesquisa em educação, a escrita, a

leitura e a vida.

Dessa forma, a inflexão do Método de Dramatização para pesquisa curricular foi

desenvolvida em dois grandes movimentos, o crítico-genealógico e o experimental-

exploratório. Tais movimentos são possíveis através de criação e experimentação de

paradoxos próprios do Informe do currículo engendrado no Escrileituras. O Informe do

pensamento curricular não significa que ele não tenha formas, mas sim que suas formas

não passíveis de movimentos representacionais no pensamento das pesquisas.

O primeiro movimento é o crítico-genealógico, aquele que consiste em arrancar

o pensamento do domínio da doxa, determinando ―quem‖ interpreta, ―quem avalia‖, ―o

que quer‖ aquele que interpreta, ―o que quer‖ aquele que avalia? Quando essas

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perguntas são formuladas é promovida a ruptura com a tradição platônica, e se deseja

identificar um tipo, que se configura em determinada relação de força. As relações de

força não estão separadas de uma tipologia e uma topologia, uma vez que são

extremamente complexas e irredutíveis.

Daí o segundo movimento: experimental-exploratório, que expressa outra

maneira de aproximação do pesquisador com o biocurrículo. Esse movimento coexiste

com o primeiro e nele é possível identificar, definir e estudar — em movimentos

derivados de experimentação — a dinâmica ontológica, tipológica e topológica da

diferença, presente nas relações das forças vitais que o constituem.

São interconexões entre novas formas de pensar o currículo do Escrileituras e os

problemas postos com a filosofia da diferença. Uma operação de devolução do

pensamento ao caráter vivente do currículo. Entende-se que com esta operação pode

abrir-se à interpretação pós-crítica para uma potência ativa do pensar e um sentimento

mais intenso da vida, realizando o acordo, desejado por Nietzsche, entre a vida e o

pensamento.

Matérias e movimentos de pesquisa

De acordo com Deleuze e Guattari (1992), só é possível pensar a partir de nossos

próprios problemas; e o primeiro enfrentamento no processo da pesquisa residia na

necessidade de gerar uma abordagem para os elementos chamados de dados e análise de

dados. Quando entendidos classicamente, esses elementos são sustentados por

referenciais teóricos, ensinamentos e programas de coleta e de análise de dados que se

instauram na exclusividade do verdadeiro, do real, do original. O conceito de dados, por

exemplo, implicava um sistema bastante unificado, estável e hierárquico de concepções

e de experiências. Tais entendimentos estão enraizados em posicionamentos

epistemológicos que se esforçam para encontrar categorias estáveis, temas ou imagens

para descrever uma representação do mundo. Amplamente utilizados em diversas

posturas epistemológicas presentes nas pesquisas qualitativas em Educação, estes meios

de pesquisa acadêmica, em consequência de que funcionam por pressupostos de aparato

positivista, colidem com a inflexão pluralista, perspectivista e criacionista adotada na

pesquisa, além de colidir com o movimento teórico-metodológico desenvolvido no

projeto Escrileituras. Todavia, essas questões contribuiriam com os encontros presentes

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na pesquisa, como um desafio e um projeto crítico-experimental que busca por um

―empirismo superior ou transcendental‖ (DELEUZE, 2006b).

A noologia permite que a pesquisa educacional crie imagens e pense por

imagens. Não mais representando, mas engendrando; não descobrindo as formas, mas

procurando singularidades; não contemplando, mas nos prolongando em fluxo

turbilhonar de currículo. As imagens são os seres vivos da pesquisa; enquanto os seus

dinamismos espaço-temporais são condições de possibilidades para a criação. Em

função desta perspectiva, a noção de plano de imanência funcionou como uma

ferramenta para composição dos procedimentos e para pensar a extração e a analítica

dos fluxos e das forças. Permitiu documentar e organizar as redes de movimentos

formadas pela imagem do pensamento do currículo do projeto escrileituras, isto é, o

atravessamento de acontecimentos, velocidades, afetos, sensações, multiplicidades e

devires presente no arquivo em questão nesta pesquisa.

A pesquisa lançou mão de investigar as imagens do pensamento do currículo do

projeto Escrileituras. Para tanto, criou três planos imanentes e, sob tendência dramática,

opera os seus elementos de pesquisa em uma espécie de voo por dentro desses planos-

mundo; marcados, cada qual a seu modo, por um liame com o Método de Dramatização

e seus movimentos — movimento crítico-genealógico e movimento experimental-

exploratório. Dessa maneira, a construção e a apresentação dos elementos que ordenam

e desordenam esta pesquisa encontram-se de acordo com operação desses planos, quais

sejam: documental (PD), procedimental (PP), dramático-noológico (PDN). Constituindo

escritura anterior ao texto e, em certa medida, resultando de um plano geral de

composição, ou de imanência, propõe-se que esses planos iniciam um encontro com

imprevisibilidades, através de múltiplos ângulos de aproximação.

Nesses planos coexiste um arquivo, ao modo de um traço ou uma ―experiência

do vivo em geral‖ (Derrida, 2012, p. 129). Isto é, os traços do vivido foram arquivados

em corpus de investigação de acordo com os chamados traços-arquivo e sua infinidade

de operações de triagem, de separação de documentos e deslocamentos. O traço-porta é

composto pelos textos Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida

Observatório da Educação/CAPES/INEP, e Notas para pensar as Oficinas de

Transcriação de Sandra Corazza (2010; 2011). Uma vez convocados como ponto de

partida e de passagem, estes textos oferecem a extração de regiões de composição, de

ser e de pensamento do Escrileituras. O traço-chave se utiliza de um dos roteiros de

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leitura e de escritura, desenvolvidos durante o projeto, para levantamento e verificação

de resultados de pesquisa no OBEDUC. Do universo conceitual e empírico subjacente

àqueles instrumentos, o escolhido para colocar em evidência o caráter dramático do

currículo-escrileituras foi o proposto, como método — técnica, procedimento, operação

— de leitura, compreensão, análise e produção de um currículo, e denominado Chave

para Pesquisar um Currículo: Método de Dramatização. Na qualidade de técnica

criativa de tradução-dramatização de um currículo, a Chave de Escrileituras transforma

o Método de Dramatização em procedimento de pesquisa.

Em meio ao vitalismo de pesquisa e criação do projeto OBEDUC Escrileituras,

convidamos os pesquisadores do projeto Escrileituras para participação direta nesta

pesquisa, via produção deriva(da) da Chave de escrileitura para Pesquisar um

Currículo: Método de Dramatização. O retorno desses participantes define o principal

critério de seleção das oficinas de transcriação movimentadas aqui. Das vinte e cinco

Chaves de Escrileituras recebidas, as dezesseis selecionadas foram as que abordaram a

criação e a realização de oficinas de transcriação desenvolvidas no decorrer do projeto1.

O currículo do projeto Escrileituras no Programa Observatório da Educação

Ao reunir, a partir de concepção orientada pela filosofia da diferença, os planos

de pensamento filosófico, artístico e científico, o projeto Escrileituras: um modo de ler-

escrever em meio à vida_ se concretiza como processo de Pesquisa, Criação e Inovação.

Financiado pelo Programa Observatório da Educação (OBEDUC), parceria entre

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Instituto

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e a Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério

da Educação do Brasil (MEC), o Escrileituras, comportando quatro núcleos, situados

em instituições públicas de ensino superior: Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) — universidade sede —, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),

Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade do Oeste do Paraná

(UNIOESTE). O trabalho desenvolvido, nesses quatro núcleos, abrangeu cursos de

graduação e pós-graduação, bem como escolas de Educação Básica cadastradas no

projeto.

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No projeto Escrileituras, a referência à vida cotidiana, a situacionalidade

histórica na qual ela se desenvolve, as relações entre o saber e o poder permitem dar a

ver um currículo que não está preocupado com planos administrativos e com a

fabricação e homogeneização de sujeitos, mas sim com uma formação aberta aos fluxos

e intensidades do pensamento.

O Escrileituras atuou nos campos do ensino, da pesquisa e da extensão, por

meio da proposição e do desenvolvimento de oficinas de escrileituras. Também

chamadas de oficinas de transcriação (OsT) e ateliers de pesquisa; ―as oficinas são

espaços-tempos pragmáticos e críticos de transcriação para processar a criação e a

inovação, que passam, necessariamente, pela escrita-e-leitura‖ (CORAZZA;

RODRIGUES; HEUSER; MONTEIRO, 2014, p. 9).

A denominação do projeto veio da noção de ―escrileituras‖; palavra-valise que

diz da intersecção leitor-escritor-texto e da experiência sensual que leva o leitor ao

desejo de escrever (CORAZZA, 2008, pp. 21-47). Em escrileituras a escrita-e-leitura

justifica-se pelo trabalho com escritas e leituras singulares e autorais.

Tomando o projeto Escrileituras como plano, cria-se e experimenta-se uma

problematização da educação que foi vivida nele, ao operar por meio da relação de

transbordamento recíproco entre escrita e leitura. Essa problematização desenvolve um

currículo que é entendido como produção de conhecimento, experiências e práticas —

com seus aspectos políticos, sociais, históricos e culturais —, em um processo que não é

neutro, pois implica os sentidos de ações e de efeitos.

A contribuição do Escrileituras para a discussão educacional, artística e

filosófica sobre a escrita-leitura é se concentrar em conectividade, movimento e

mudança para atravessar o pensamento curricular, os professores e as práticas

educacionais que idealizam e celebram a formação de escritores que se desenvolvem

apenas em relação com os testes e as normas nacionais. Além disso, o projeto forneceu

um conjunto de ferramentas conceituais e um quadro teórico e empírico com o potencial

de permitir aos pesquisadores e estudantes participantes a renovação didática e a

recriação das estruturas convencionais de escrita e de leitura, por meio de

experimentações produzidas em contínuo devir no contexto político, econômico e social

da contemporaneidade.

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Processos de tradução-dramatização no currículo

Ao entender o currículo do projeto Escrileituras como ―uma espécie de ‗ser

falante‘‖, a significação do que ele comunica, em determinada época e determinado

local, ―está sempre suspensa a um alhures, que é, invariavelmente, uma cadeia

incompleta de significantes‖ (CORAZZA, 2001, p. 11). Portanto, são efeitos de

derivação da linguagem as vontades e os problemas formulados pelo currículo: O que

quer? Que indivíduo deseja formar? Para este fim, o Método de Dramatização inverte a

perspectiva do platonismo, atualizando uma nova imagem do pensamento curricular, na

qual o ato de criação pedagógica carrega a força virtual de uma didática que se atualiza

em currículo2. Permite um campo intensivo de indeterminações e de incertezas criativas

que promovem uma dramatização do conhecimento que coloca em cena, por meio do

drama.

Para a filosofia clássica, o conceito em toda a sua pureza e rigor, transcende a

inscrição linguística. Sócrates, como o filósofo que, supostamente, não escreve, mas

fornece um modelo para toda a tradição filosófica. Nesse pensamento

fundamentalmente fonocêntrico ao problema da tradução é raramente concedido muito

significado filosófico. Para Derrida (2002), no entanto, uma vez que a filosofia não pode

transcender ou superar sua própria inscrição, a tradução é uma condição da própria

filosofia; uma sempre necessária e impossível, em rigor absoluto, por ser uma ação

sempre singular de priorizar um dos níveis da significação como transposição de

significado. Nenhuma elaboração teórica em geral, sobre o problema da tradução, irá

diminuir o ato de forças do tradutor em seu compromisso, obrigação, dívida,

responsabilidade, restituição todos eles elementos implícitos no ato de traduzir.

No texto A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin, a tradução está em dívida

com o original, a partir do qual ele recebe sua própria tarefa. que não consiste na

recepção, na comunicação ou representação do original. Ele deve centrar seu interessa

basicamente sobre a forma, como evidencia qualquer tentativa de traduzir textos

sagrados ou poéticos. Dizendo de outra forma, a tarefa do tradutor é ―fazer amadurecer

a semente de uma linguagem pura‖ (2008, p. 49). Contudo, o original também está em

dívida com a tradução para a sua própria sobrevivência. Tradução, então, parece lançar

uma economia de dívida incalculável, em que equilibrar as contas é tarefa impossível e

incessante do tradutor.

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10720ISSN 2177-336X

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Conforme Campos (2013, p. 5), a transcriação é uma operação de tradução

radical que não tenta reproduzir a forma do original, mas consiste em uma ―recriação,

ou criação paralela, autônoma, porém recíproca‖, uma leitura crítica da tradição. A

transcriação está, portanto, ―no avesso da chamada tradução literal‖. Sob efeito desta

concepção de tradução, é possível que o tradutor-transcriador se conecte a um texto, isto

é, que olhe para o texto de partida de formas nunca antes imaginadas, identificando ―o

desenho geral da poética do original, redesenhando-a e disseminando-a no espaço de

sua própria língua‖ (SANTAELLA, 2005, p. 230). Trata-se de uma organicidade do

texto. A buscar a semântica pela semântica. Mais que renunciar a uma língua e suas

especificidades em função da outra, busca-se, na transcriação, sempre soluções de

transposições, manter no texto sua informação estética, mesmo que por meio da traição,

da infidelidade em sua relação com o original.

Octavio Paz define um poeta-tradutor; de atividade paralela ao poeta, esse

tradutor é um desmontador dos elementos do texto original, recolocando em circulação

os seus signos na linguagem. Esse tradutor é compositor de um poema análogo ao

original, com uma importante diferença: ―ao escrever, o poeta não sabe como será seu

poema; ao traduzir, o tradutor sabe que seu poema deverá reproduzir o poema que tem

diante dos olhos‖ (2009, p. 27). Somente sendo poeta-tradutor ou tradutor-poeta se

poderá conciliar estas duas operações paralelas, na busca do domínio da arte de fazer as

escolhas mais adequadas a cada situação, equilibrando, assim, literatura e literalidade,

na tradução poética.

Com base nessa perspectiva criadora, é possível colocar em evidência o caráter

dramático do currículo-escrileituras na criação empírica, paralelamente crítica e

experimental, que esta pesquisa define. É do movimento de busca pelo do drama, que

age na escrita como um todo e não como se fosse uma série de fragmentos das diversas

linhas lingüísticas inseridas na sua estrutura, a buscar, separadamente, o sentido

intrínseco da tradução e não pela razão, em espaços regularizados que uma nova

imagem do pensamento nasce e ganha uma nova perspectiva, uma perspectiva que ajuda

a afastar a imagem dogmática do pensamento.

Imagem currículo-escrileituras

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Dramatizar os vidarbos curriculares presentes no projeto Escrileituras, por meio

do tratamento do material selecionado e empregado, é também mostrar suas máscaras e

seus devires, submetendo a realidade à uma reformulação da ordem da composição.

Cada movimento analítico a partir dos planos e dos arquivos apresenta uma relação

mútua de escolhas previstas ou surpreendentes que produzem um arquivo novo.

Deslocamentos advindos, por sua vez, de um caminho de movimento contra a

identidade e a representação, que permite compor respostas — às perguntas que

derivam do Método de Dramatização — que gravitam forças puras e que evidenciam

um movimento incessante de máscaras atrás de máscaras. Quem é aquele que quer? O

currículo-escrileituras, movimentador das noções de criação, tradução, transcriação,

escrita, leitura, escrileitura, diferença, cartografia, etc. Quando quer? Em um tempo, tão

saltitante, molecular e eternamente movente que não é visível por um contorno temporal

apreensível. Essa brevidade preserva o currículo, numa temporalidade aiônica. Como

quer? Insistindo que o mundo não é somente algo externo ao pensamento e que está

simplesmente esperando para ser representado. Indicando entradas e saídas para novas

vidas, percursos para outras formas de existência, incidências sobre inéditas

possibilidades de viver. Quanto quer? Que aconteçam muitas variáveis de intensidade e

relações com as forças do Fora. Mas que aconteçam com as forças reativas apenas em

quantidade necessária para que cada relação molar se transforme em relações

moleculares e partículas submoleculares, em movimentos de vazamento.

A pesquisa pode produzir elementos pensamentais para pensar uma escolaridade

oriunda de uma imagem escolar heterogênea, de uma mudança epistemológica.

Ao operar com experiências de problematização o tipo currículo-escrileituras é

contrário às leis do assentamento curricular; menos preocupado com o ―que quer o

dogmatismo de um currículo-Assentado ―para se tornar potencializador de novas

experimentações de vida ―com o que deseja um currículo-Vagamundo‖ (CORAZZA,

TADEU, 2003, p. 19). Realiza movimentos de transformação que são próprios de um

pensamento problemático e não de um pensamento resolvido, buscando conexões entre

forças efetivas, que agem sobre esse pensamento por meio de devires que se deslocam

em paisagens pedagógicas errantes.

Uma imagem que remete ao par matéria-forma compõe um modelo legal ou

legalista, opera individuações por sujeitos e objetos, forma bons cidadãos, bons saberes,

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bons valores, fazendo com que tudo, no campo do currículo, fique firme, sólido, estável,

a partir do momento em que ela adquire exclusividade e se torna A Imagem.

A escola e suas segmentações disciplinares consistem em agenciamentos

molares — são registros regidos por estratos, e capturados por políticas majoritárias;

espaço e tempo, regras, normas, palavras de ordem — que repousam em agenciamentos

moleculares. Dentre essas funcionalidades, construir uma nova imagem de pensamento

curricular implica buscar pelas linhas de vazamento do molar, isto é, linhas menores,

fluxos de vida que traduzem devires moleculares em currículos. O projeto Escrileituras

busca por expor e multiplicar as linhas de fuga, em torno das quais afloram novos

devires e se revestem de formas novas de pensar a educação. Trata-se de proceder por

experimentação e criação possibilitando uma imagem infinitamente multifacetada da

educação — na qual se dissolve o entendimento das práticas pedagógicas como objeto,

e dos aprendizes como sujeito.

Assim, aproxima-se o currículo-escrileituras do rizoma de Deleuze e Guattari

(1995, p. 33). Um ―sistema a-centrado não hierárquico e não significante‖ caracterizado

como ―desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e

saídas, com suas linhas de fuga‖. As forças efetivas que agem, rizomáticamente, sobre o

currículo engendrado no projeto Escrileituras permitem investimentos nas

indeterminações afetivas que forçam o pensamento a pensar de outro modo. Essa

perspectiva oferece conexões rizomáticas que ultrapassam a concepção de indivíduo

enfatizada nos pensamentos curriculares assentados na imagem de pensamento

representativa.

Considerações finais

A pesquisa trata de uma recriação do texto original de um currículo, colocando

suas imagens de pensamento em cena, desde um modo possível de pesquisar,

desalojado de um contínuo de procedimentos pré-definidos, mas que compõem uma

prática a ser inventada, documentada, analisada e produtora de sentidos, afecções,

conceitos, relações e aprendizagens. Uma criação paralela, autônoma, mas recíproca de

currículos e simulacros. Brechas por onde a língua se distrai dos modelos

representacionais e força a palavra a fazer outros nexos, a dizer o que ela não poderia

dizer.

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Nessa perspectiva, para que possamos problematizar o que se cria em educação,

a ―Didática-artista‖ da tradução sugere uma partida das formas, sentidos, interpretações,

indivíduos, identidades, conhecimentos para que seja possível traduzir didaticamente.

Coloca-se a criar, a fazer o novo seguindo ―devires, ao produzir formas deformadas,

figuras desfiguradas, paradoxos e não-sensos‖ (CORAZZA, 2013, p. 207). Por meio

desses movimentos de deslocamento e transmutações didáticas, uma nova abordagem

para o problema da diferença nas relações educacionais é possível. Isso resulta em uma

mudança na própria imagem do pensamento.

As produções oriundas do procedimento Chave para Pesquisar um Currículo:

Método de Dramatização demonstram que as experimentações que compõem o

currículo do projeto Escrileituras — movimentadoras das noções de criação, tradução,

transcriação, escrita, leitura, escrileitura, diferença, cartografia — configuram uma

imagem de pensamento; um currículo-escrileituras que permite o surgimento de

multiplicidades ou composições de matéria-pensamento que estão sempre em processo

de mudança, tornando o que fazemos com o currículo e o que o currículo faz de nós

uma transcriação de novas intensidades e fluxos.

É possível afirmar que o currículo do projeto Escrileituras não opera como uma

ferramenta fabricada para funcionar como quer a imagem dogmática do pensamento,

isto é, buscando apenas meios de representação do mundo. Insiste que o mundo não é

somente algo externo ao pensamento e que está simplesmente esperando para ser

representado. Define-se como uma imagem curricular heterogênea, na qual não se

separa o pensamento da vida. Por outras palavras, o ato de pensar o mundo é

indissociável do próprio mundo e os conceitos do currículo do Escrileituras foram

criados ou fabricados em resposta a problemas reformulados.

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10724ISSN 2177-336X

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1 As oito Chaves de Escrileitura restantes trataram de outras práticas e vivências desenvolvidas no

Escrileituras, como relatos de experiência das participações em seminários e Oficinas de

Escrileituras. 2 A esse respeito ver: OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Método de dramatização da aula: o que é a

pedagogia, a didática, o currículo? Porto Alegre. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-

Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

Porto Alegre, 2014.

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