Diásporas, homogeneidades e pertenças entre os Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará

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Diásporas, homogeneidades e pertenças entre os Tembé Tenetehara de Santa Maria 1 Jane Beltrão Universidade Federal do Pará Rhuan Carlos dos Santos Lopes Doutorando do PPGAS Universidade Federal do Pará Resumo: Considerando as transformações impostas às práticas de produção cultural e organização política da pertença Tenetehara, interroga-se como o povo Tembé dito de Santa Maria, enfrentaram e enfrentam a diáspora promovida, no século XIX, pelo Estado aliado à Igreja Católica, para afirma-se, hoje, como povo indígena. Analisam-se ações para recriar o “coletivo”. Para tanto, as marcas “tomadas como étnicas” são sublinhadas nos documentos e observadas no quotidiano, pela diferença que produzem em relação aos “vizinhos” não-indígenas que cercam os pequenos “territórios” que os Tembé conseguiram preservar. Palavras-chave: Diásporas, Coletivos indígenas, Pertenças, Identidades étnicas. 1 Trabalho originalmente apresentado durante o V Coloquio Anual IIDyPCa: Diversidad en Ciencias, Ciencias Diversas sobre o tema Pertenencias comunitarias en/del siglo XXI en perspectiva trans-disciplinar, evento promovido pelo IIDyPCA e pela Sociedad Suiza de Americanistas, realizado entre 20 e 21 de novembro de 2013, em Bariloche na Argentina

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Considerando as transformações impostas às práticas de produção cultural e organização política da pertença Tenetehara, interroga-se como o povo Tembé dito de Santa Maria, enfrentaram e enfrentam a diáspora promovida, no século XIX, pelo Estado aliado à Igreja Católica, para afirma-se, hoje, como povo indígena. Analisam-se ações para recriar o “coletivo”. Para tanto, as marcas “tomadas como étnicas” são sublinhadas nos documentos e observadas no quotidiano, pela diferença que produzem em relação aos “vizinhos” não-indígenas que cercam os pequenos “territórios” que os Tembé conseguiram preservar.

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  • Disporas, homogeneidades e pertenas entre os Temb Tenetehara de Santa Maria1

    Jane Beltro Universidade Federal do Par

    Rhuan Carlos dos Santos Lopes

    Doutorando do PPGAS Universidade Federal do Par

    Resumo: Considerando as transformaes impostas s prticas de

    produo cultural e organizao poltica da pertena Tenetehara, interroga-se como o povo Temb dito de Santa Maria, enfrentaram e enfrentam a dispora promovida, no sculo XIX, pelo Estado aliado Igreja Catlica, para afirma-se, hoje, como povo indgena. Analisam-se aes para recriar o coletivo. Para tanto, as marcas tomadas como tnicas so sublinhadas nos documentos e observadas no quotidiano, pela diferena que produzem em relao aos vizinhos no-indgenas que cercam os pequenos territrios que os Temb conseguiram preservar.

    Palavras-chave: Disporas, Coletivos indgenas, Pertenas, Identidades

    tnicas.

    1 Trabalho originalmente apresentado durante o V Coloquio Anual IIDyPCa: Diversidad en Ciencias, Ciencias Diversas sobre o tema Pertenencias comunitarias en/del siglo XXI en perspectiva trans-disciplinar, evento promovido pelo IIDyPCA e pela Sociedad Suiza de Americanistas, realizado entre 20 e 21 de novembro de 2013, em Bariloche na Argentina

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    Diasporas, homogeneities and belongings among the Temb Tenetehara of Santa Maria

    Abstract: Considering the transformations imposed on the cultural

    production and political organization practices of the Tenetehara belonging, we question how the Temb people from Santa Maria, faced and face the diaspora, promoted in the 19th century by the State allied to the Catholic Church, to assert themselves as an indigenous group. We analize the actions to recreate the collectiveness. In order to do so, the marks considered as ethnic were underlined in the historical documents and observed in everyday life, by the difference made regarding the non-indigenous neighbors that sorround the small territories the Temb were able to preserve.

    Key Words: Diasporas, Indigenous collectiveness, Belongings, Ethnical identity.

    Disporas, homogeneidades y pertenencias entre los Temb Tenetehara de Santa Mara

    Resumen: Considerando las transformaciones impuestas a las prcticas

    de produccin cultural y organizacin poltica de la pertenencia Tenetehara, se interroga cmo el pueblo Temb dicho de Santa Mara, enfrentaron y enfrentan la dispora promovida, en el siglo XIX, por el Estado aliado a la Iglesia Catlica, para afirmarse hoy, como pueblo indgena. Se analizan acciones para recrear el colectivo. Por lo tanto, las marcas tomadas como tnicas son subrayadas en la documentacin histrica y observadas en la cotidianidad, por la diferencia que producen en relacin a los vecinos no-indgenas que cercan los pequeos territorios que los Temb consiguieron preservar.

    Palabras-clave: Disporas, Colectivos indgenas, Pertenencias, Identidades tnicas.

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    Disporas orquestradas entre Estado e Igreja

    Usa-se disporas no sentido de disperso para referir as migraes compulsrias (Benbassa, 2010) s quais os Temb Tenetehara 2 foram submetidos, ainda no sculo XIX, quando o Estado aliado Igreja Catlica decidiu criar o Ncleo Colonial Indgena no Prata (Par-Brasil). Considera-se que a migrao forada produziu uma ruptura traumtica aos Temb com o territrio original e consequentemente a inscrio da identidade ficou restrita s narrativas que, h muito, alimentam os projetos de vida em comum, como forma de manter presente, a cultura que compreende crenas e hbitos que os mantm unidos e diferenciados em relao aos no-indgenas, apesar da macia homogeneizao a qual foram submetidos.

    A categoria dispora permaneceu restrita, durante anos, situao vivida pelo povo Judeu e pelos povos Africanos escravizados pelos europeus, postura que implica em considerar o que acontece no continente Americano como de importncia menor, especialmente, porque se refere aos povos originrios leia-se indgenas. Hoje, o preconceito trazido pelo eurocentrismo s Cincias Sociais precisa ser desfeito, pois a ao colonial na Amrica foi deletria e, ainda, produz discriminaes hediondas que merecem tratamento acadmico adequado. Como antroplogos situados na Amrica, considera-se necessrio analisar politicamente o caso, tentando retirar as vendas que tentam evitar o olhar arguto e revelador.

    Em cinco anos de contato, mais prximo com os Temb de Santa Maria, em face de interesses comuns relativos escrita da histria do povo, muitas tm sido as conversas para produzir o material, pois entre os sonhos comunitrios, como informa Cau, esto a demarcao de nossas terras, ... boa educao dentro da comunidade, e bom recurso para que possamos ter uma boa sade e outros benefcios para nosso povo.3

    2 Conserva-se as palavras em itlico pela origem no-portuguesa dos vocbulos e, escreve-se no singular, porque por conveno no se faz o plural de nomes indgenas pelo desconhecimento das regras de uso dos plurais. Grafa-se Temb em maisculas quando se refere ao povo e em minsculas quando adjetivo, em ambos os casos em itlico. 3 Partes dos trechos de registro escrito, apresentados no trabalho, correspondem s provas de lngua portuguesa do Processo Seletivo Especial, ocorrido em 2010, para povos indgenas, na Universidade Federal do Par (UFPA). Considerando que as provas mesmo quando documentos disponveis pesquisa no permitem ao estudioso ter acesso aos nomes dos autores, pois as provas s so identificadas em um momento durante o processo seletivo, quando se precisa oferecer os conceitos. Assim sendo, ao usar os depoimentos dos candidatos no se revela a identidade dos interlocutores, mas para conferir fluncia ao texto, atribu nomes fictcios aos escritores. As transcries das histrias mantiveram a estrutura do portugus falado pelos Temb, pois embora no mais falem o Tenetehara o portugus falado entre os membros da comunidade diferenciado do portugus praticado na Academia, traduzir produziria mutilao na expresso Temb, proibidos que foram de praticar a lngua materna, desde o final do sculo passado, quando foram sujeitados a ao dos Capuchinhos Lombardos no Ncleo Colonial Indgena.

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    No trabalho, procura-se apresentar as histrias4 e os sentidos da pertena temb, que indicam o territrio tradicionalmente ocupado ontem e hoje e os direitos diferenciados que demandam diuturnamente, via ao poltica, na maior parte das vezes, conduzida pela Associao Indgena Temb de Santa Maria (AITESAMPA) que luta entre indgenas para ter adeso causa, e entre no-indgenas para se fazer respeitar como povo indgena.

    Conjugam-se as histrias narradas para indicar o lastro que oferecem aos projetos de viver na comunidade para melhor viver, apesar das histrias e projetos de vida comunitria continuarem sendo, como ensina Cau, ... um pequeno resumo de uma histria sofrida [pelo] meu povo. Em pouco mais de um sculo do final do XIX ao XXI, os Temb se viram despojados de suas terras e circunscritos a espaos que dificultam o desenvolvimento comunitrio, pois pelejam em meio aos no-indgenas que cercaram as terras que conseguiram manter.

    As narrativas temb so tomadas como verdades pelo poder que a palavra e a performance do narrador tem de mobilizar autoridade enquanto falante que sabe, conhece dentro da comunidade, pois as histrias so ditadas pela memria e recitadas a partir do emaranhado cultural que cultivou a resistncia ao processo de homogeneizao ao qual estiveram expostos. A solicitao de escrita das histrias narradas a demanda, pela compreenso de que parte do preconceito que conduz discriminao, a comportamentos anti-indgenas, pode ser suavizado a partir da histria escrita, pois os Temb conhecem a importncia que a linguagem da Histria, possui na comunicao e que a mesma reafirma, na/pela escrita, a identidade que os demais (no-indgenas e, mesmo indgenas) acreditam que se esvaiu. (Gnerre, 2003 e Goody, 1988)

    Ao falar em vida comunitria, os temb imaginam-se um grupo de pessoas que compartilham histrias, mesmo que no mais falem Tenetehara, ainda comungam de valores e objetivos comuns, reconhecendo a mesma pertena e solidariedade, embora existam conflitos decorrentes do processo de homogeneidade.

    Miguel, cacique da aldeia Areal, exmio narrador e ao contar histrias sempre ouvido com ateno. Ao conhec-lo prestamos bastante ateno ao pronunciamento que fez durante a primeira reunio que participamos entre os Temb. Miguel investido de sua autoridade de mais velho, ao usar da palavra informou que para voltar a viver em paz com todos esses seres que nos envolvem falava de humanos e no-humanos torna-se urgente que ... o territrio seja demarcado ..., pois s assim poderiam praticar as tradies dos antigos: os rituais, a caa, a pesca e as atividades quotidianas, pois estas seriam realizadas em ambientes adequados ... garantindo nossa continuidade fsica e cultural. E, na sequncia, narrou a Histria da Guariba, fazendo um paralelo

    4 Usa-se a categoria histria porque privilegiamos os usos nativos e pelo fato de que a categoria mito, fora do campo da Antropologia, refere-se a mentiras contadas sob forma de lendas. Considerando que a demanda Temb possui como finalidade poltica escrever a histria, adota-se a perspectiva nativa para a escrita. Sobre mitos e pensamento selvagem, consultar: Lvi-Strauss, Claude. O Pensamento Selvagem. So Paulo, Editora Nacional/USP, 1970. [1962].

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    entre a histria e a realidade da comunidade e a forma como as coisas aconteceram entre os Temb.

    [] na primeira vez que eu fui participar da teologia [reunio do Conselho Indigenista Missionrio], a o rapaz tava contando as histrias, a eu disse mas oh rapaz! Olha aqui, da pediram pra conta o meu histria, a contei, da no final eu achei a nossa luta idntica com a da Guariba, n? Porque a Guariba o seguinte: ela perdeu todos os pais, n? E a ficou. Hoje, ns temos um exemplo aqui com os filhos da Maria n, a Maynumi, perdeu o pai, ningum sabe quem o pai, a me no sabe, no sabe quem a me, quando ela toma conhecimento da vida n? A ela vai, no vai ter conhecimento nem da me e nem do pai, e a um modo idntico a situao da menina n? Porque olha, a preguicinha perdeu todos os pais, ficou recm nascida, criada pelos outros, Guariba um macaco, e a o que que acontece, quando ela se formou-se que tinha os seus 15 anos, saiu procurando qual era, cum que o pai dele cantava, a ningum sabia, um informava diferente, outro informava de outro jeito e no tinha jeito nenhum pra encontrar, a a Guariba chegou na casa da preguia, ia passando, e lembro de perguntar camarada preguia, voc sabe me contar cum era que meu pai cantava?

    Como a Guariba (smbolo da esperteza), os Temb perderam os pais, ainda crianas (inverso da ordem natural da vida), arrancados que foram pelos missionrios lombardos para integrarem as escolas/internatos, onde deveriam se civilizar. A perda informada indica a necessidade de escutar o canto do pai, mas escutar no tarefa fcil, pois no lembram mais e, pouco ou nem sabem cantar.

    Na sequncia, Miguel conversando vagarosamente, disse que a preguia (smbolo da pacincia) respondeu: eu sei! E a Guariba, afoita disse como ? Ao que a Preguia respondeu:

    [o]lha deixa eu termina de penti meu cabelo, e eu v lhe ensina, pra voc como que o teu pai cantava, a terminou de penti o cabelo, a disse: agora nos vamo pra acol. Subiram num pau alto a, a Guariba atenta ouviu, a Preguia que comeou a cant.

    O cantar exige pacincia (espera associada sabedoria de resistir), pois

    no se canta numa ocasio qualquer, e a ao requer preparao (torna-se bela, penteando os cabelos), alm de requerer lugar reservado (acol, no alto do pau), longe dos olhos dos demais, talvez para evitar repreenso que obriga a no cantar.

    E, Miguel observou ainda:

    porque a preguia real, ela canta igualmente a Guariba s que ela no droba [dobra] n? a ... a preguicinha, no droba, ela faz uaaaaaaaa e a Guariba ela droba uaaaaaoooooouaouaouao, a o Capelaozo, a a bicha no, ela faz uaaaaaaaaa, a terminou, a disse: era assim que o teu pai cantava. A a preguicinha se abraou-se com a Guariba que se abraou-se com a Preguia, e agradeceu muito e chorou porque se emocionou-se, n? E agora eu v me embora. No, eu tenho uma menina a, t moa e voc vai cas com ela, a a Guariba casou-se com a Preguia e transformou-se em uma nova gerao, a Preguicinha e a Guariba que tiveram uma famlia, a comeou uma nova gerao.

    Ao despertar para o canto, Miguel relembra formas e nuances entre o ser

    Temb e o ser o outro, apontando as diferenas que s vezes no passam de

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    nuances que s um verdadeiro Temb pode reconhecer e ensinar aos mais jovens.

    Prossegue Miguel ... a! Como eu achei idntica com a nossa luta, especialmente,

    porque nis tava, eu praticamente tava, eu tava ali naquele momento eu vi como era ... correto o que povo, a gente era n? Porque, disseram que a gente era Temb, porque minha me no dizia pr gente, s dizia que a gente era Temb, mas no dizia qual era a etnia, qual no sabia, e a quando eu vi pela fala do ... Tenetehara, contando a histria da Mucura, como que meu pai cantava, o Bacural, e diz, Temb mesmo ns tamo aqui j procurando t o conhecimento do nosso povo, e a que por isso no final da histria, diz, uma luta! Assim como ns estamo procurando t formao da nossa histria n? E, correto que deu tudo certo, e a histria da Guariba, essa historia da Guariba minha me contava muito, e tinha outros e outros histrias que ela contava que eu num gravei, mas tinha muito, muito, eu sei s assim os pedacinho, que nem o mito da Capivara, n? da Capivara.

    importante ressaltar, a histria narrada por Miguel, pelo lugar que ele ocupa entre os Temb, uma vez que reflete sobre a realidade vivenciada pelos interlocutores. Como refere Almir (2012), presidente da Associao,

    ... durante muito tempo tivemos que nos esconder, esconder nossa identidade e negar que ramos indgenas, nossos pais sofreram muita discriminao e ns continuvamos sofrendo, mas enfrentando todas as adversidades e as situaes que poderiam surgir, resolvemos buscar a nossa histria, saber realmente como que nossos pais cantavam.

    A Histria da Guariba que o cacique Miguel conta, relembrando que perdeu seus pais quando ainda era criana, diz respeito ao tempo dos antigos que s a memria alcana. Tempo o qual, em suas prelees, refere aos mais jovens e as crianas, sempre que se dispe ou solicitado a contar histrias. Conta que certo tempo depois, quando tornou-se rapaz procurou saber a histria do povo e, na busca, procurou muitos (pessoas mais velhas) que talvez pudessem informar sobre o passado e sobre como que seu pai cantava, muitos informaram como era o canto do seu pai, mas ele no se identificando com os relatos, continuava a busca, procurou, procurou at encontrar a Preguia (vagarosa e paciente) que, relembrou como era que o pai de Miguel cantava, e foi assim que a Guariba (com a sagacidade que lhe peculiar) relembrou como era que o seu pai cantava. Miguel inclui em seus relatos a lio moral: no se pode confiar em qualquer canto, apenas um deles verdadeiro. Portanto, um nico era Temb.

    A histria reflete a realidade vivida pelo nosso povo, diz Almir que aprendeu com Miguel, as histrias da tradio muitas foram as investidas sobre nosso povo e nosso territrio com o objetivo de

    ... fazer com que a gente deixasse de ser Temb, deixasse de falar a nossa lngua, de praticar nossa cultura, foram vrias estratgias para ... nos fazer esquecer o nosso passado, mas hoje estamos aqui, procurando saber de diversas formas e por intermdio de outras pessoas conhecer nosso passado [ou seja] como que os nossos pais cantavam.

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    O cacique Miguel ao narrar o passado indica que sua me ao falar quem eram, sabia que eram indgenas, mas no sabia qual era o povo ao qual pertenciam, ela em suas lembranas falava que era de um povo conhecido como Timb [Temb],5 mas depois de conhecer nossa histria que fomos descobrir nossas origens e a quem estamos ligados. Afinal, perderam os pais muito cedo, no tiveram tempo de aprender.

    Antigamente, informa Almir, quando os Temb tinham domnio do territrio, a relao com os antepassados e com os seres encantados era mais prxima, segundo os relatos. Era comum que os Temb nas caadas sofressem com as artimanhas do Curupira e com a apario de outros seres encantados. Contam os mais velhos que cresceram ouvindo histrias contadas, pelos avs, sobre o Curupira que, tambm, conhecido com pai da mata, ele quem guarda a floresta e cuida dos animais feridos. O passado corresponde aos anos de ouro, ao passado que foi bom em contraponto aos dias de hoje que so sofridos e com quase nenhum reconhecimento. O territrio para os Temb o lugar da expresso cultural.

    A presena dos seres encantados nas histrias contadas pelos mais velhos est fortemente ligada ao territrio e a existncia de floresta, pois na terra e na mata que moram, os seres que os interlocutores consideram sagrados e informam haver conexo entre os Tenetehara e os antepassados, o esprito dos ancestrais; e com os animais e os seres encantados. H interdependncia entre eles: territrio e gentes; gentes e demais seres encantados ou no; a relao de interdependncia, inclusive, produz a continuidade da existncia. Favorece a vida em comunidade.

    Territrio, segundo a representao Temb, compreendido no apenas como um espao geogrfico, pois se confunde com a prpria casa. o local onde se vive a cultura; o lugar do povo, onde se vive em comunidade; ou seja, espao de afirmao identitria. E, como no so mais ou ainda senhores do territrio imemorial, informam:

    [a] nossa cultura no esta totalmente completa, falta-nos a nossa me terra, a nossa lngua ainda existem pessoas na nossa aldeia que conhecem palavras soltas e os nossos rituais. Queremos reacender esta cultura e para que isso venha acontecer precisamos conquistar de volta o nosso territrio. (Relatrio do Povo Temb).

    Portanto, a principal demanda pelo melhor viver e viver em comunidade o territrio e, embora, no sejam senhores dos espaos imemoriais de antes, que hoje so ocupados por terceiros, no desistem de reivindicar a demarcao do territrio tradicionalmente ocupado como indica a Constituio Brasileira de 1988.

    5 Temb ou a variante Timb foi denominao, provavelmente, atribuda pelos no-indgenas. Os Temb constituem o ramo ocidental dos Tenetehara, autodenominao que significa gente, ndios em geral ou, mais especificamente, gente Temb. Sobre o assunto, conferir: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/tembe/10211. Acesso em: 01.04.2012. Ou, como resume, Almir Vital da Silva, temb estudante de enfermagem da UFPA e liderana poltica do povo Temb, em seu relatrio de Iniciao Cientfica: [s]omos da famlia lingustica Tupi-Guarani, do Tronco Tupi, conhecidos pelos parentes como Temb de Santa Maria do Par, no somos muito conhecidos pela literatura etnolgica nacional. A Histria Temb, assim como maioria dos povos indgenas do Brasil marcada por transformaes produzidas pelo contato com os no-indgenas, que nem sempre chegou a bom termo (2012: 6).

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    Homogeneidade articulada, identidade sufocada

    No Brasil, o uso da fora contra os povos indgenas que produziu o genocdio dos primeiros tempos estava supostamente proscrita, pois a poltica, poca, era ampliar e proteger as fronteiras nacionais conquistando, via colonizao, os territrios em poder dos indgenas, entretanto a execuo do projeto do etnocdio, supostamente cordial, que produzia a homogeneizao pela tica colonialista na esperana de morigerar os ento chamados silvcolas. O Par, no fugiu a regra, como informa Palma Muniz:

    ... foi resolvido enfrentar o importante problema social da catequese [dos indgenas] disseminados na zona dos rios Capim e Guam [territrio indgena Temb Tenethehara], sem outro caloulo que o sacrifcio e a lucta, sem mais outro fim que a chamada ao grmio christo e catholico de almas perdidas nas selvas, e levar a outros tantos brasileiros abandonados, no s os contornos da civilizao, como assegurar-lhes todas as procteces da nossa legislao. (1913: 5, sic.)

    Para dar conta da recomendao, ... as largas vistas ... do ento presidente da Provncia do Gro-Par, Paes de Carvalho, avalizou os Capuchinhos Lombardos da Misso do Norte, situada no Maranho, no Brasil, a implantar um Ncleo Colonial Indgena, no Par, com finalidade especial de cathequese dos silvcolas. (Muniz, 1913: 6, sic.)

    Os Capuchinhos implantaram o Ncleo no, hoje, municpio de Igarap-A (Mapa), s margens do rio Prata, com a promessa de se deixar ficar por um perodo de 15 anos, conforme a orquestrao acordada politicamente. A localidade distava seis dias de Belm e a Estrada de Ferro de Bragana, em construo, alcanava a vila do hoje municpio de Castanhal (Par), fato que deixava a questo das comunicaes razoavelmente solucionadas, pois o caminho de ferro correspondia metade do percurso entre Belm (capital) e o Prata.

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    Segundo a Lei No. 588 de 23 de junho de 1898, a Misso Capuchinha

    deveria: (1) ministrar ensinamentos da catequese catlica; (2) dar instruo elementar; e (3) preparar mo-de-obra aos trabalhos agrcolas. Entre os planos do Ncleo estavam previstas as instalaes fsicas compreendendo: edifcios para a Igreja e prprios administrativos; internatos escolares para meninos e meninas (indgenas e rfos); casas de colonos; campos experimentais; engenho

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    de cana; e estao de ferro carril. Espao planejado para controlar, adequadamente, os imorigerados Temb.

    A descrio, permite pressupor os impactos da Misso Capuchinha, especialmente, considerando que, a rea era territrio indgena e quilombola de amplas dimenses no sculo XIX. A Cruz redemptora da humanidade, implantada por Frei Carlos de So Martinho, em 14 de setembro de 1898, d incio cordialidade catequtica que conduz ao etnocdio.

    A comprovao do territrio multitnico (indgena e africano), compreendendo comunidade multitnica que vem a ser a emergncia e consolidao de organizao social de etnias de tamanho e composio diversa e flexvel. Comunidade forjada pelo encontro de indgenas (donos da terra) e africanos que se refugiavam em espaos indgenas por serem distantes e pouco acessveis s tropas de resgate que buscavam braos para escravizar ou africanos fugidos do jugo das autoridades coloniais. H referncia a confederaes multitnicas no Rio Negro na literatura corrente, especialmente, na Venezuela (Wrigth, 2005). No caso estudado, as referncia comunidade multitnica, chega a ns, via Palma Muniz que informa:

    [r]esa a tradio, encontrada entre os ndios que em tempos idos, talvez em eras coloniaes ainda, a regio das nascentes do maracan, ento no taladas pelas incurses civilisadoras, serviu de refugio a escravos fugidos, tanto das terras do rio Guam, como das costas atlanticas, e de Belm e suas cercanias, que, internando-se nas mattas, desaparecem para sempre. (1913:16, sic.)

    E, prossegue, informando que:

    [e]xistiu nssas paragens um clebre mocambo de negros que cultivavam a terra e viviam da caa, fazendo de quando em vez correrias nos povoados e fazendas das circumvizinhaas,, deixando atraz de si a rapina, o assassinato e outros crimes, acolhendo-se aos seus reductos, que defendiam de qualquer espionagem e conhecimento, tendo feito pagar com a vida todo aquelle que se aventurou a conhecer-lhes a localizao. (Muniz, 1913:16, sic.)

    A considerar as observaes de Palma Muniz (1913) a rea era conflagrada e, segundo as indicaes, localizava-se acima do Prata e denominava-se Santa Maria de Belm, s margens direita do rio Maracan. A represso aos negros amocambados foi enrgica, leia-se dizimadora, produzindo grande mortandade e destruindo o mocambo. O domnio colonial inviabilizou o projeto territorial de povos nativos, no caso os Temb; e de povos transplantados, como os africanos escravizados, a dispora estava promovida uma vez mais. Entretanto, os casamentos inter-tnicos tornam inmeros descendentes da comunidade original Temb em pessoas, facilmente, identificadas como negras, pelo fentipo, sinal diacrtico que remete discriminao que sofrem na atualidade, pois para o senso comum ndios no so negros. A construo recorrente na sociedade brasileira, embora como afirma Oliveira Filho: [o]s [povos] indgenas no tem homogeneidade cromtica, nem possuem traos fsicos que possam singulariza-los perante outros segmentos da populao. (1999: 134). Ao fazer a afirmao sobre a negritude dos Temb as pessoas esquecem a possibilidade do

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    estabelecimento de relaes sociais entre os grupos tnicos, negando os direitos de ultrapassar fronteiras tnicas e a dinmica do convvio tradicional que se renova. (Barth, 2000).

    O suposto desaparecimento do mocambo levou os indgenas a se assenhorear uma vez mais do territrio, provavelmente, acolhendo os negros que sobreviveram represso e formando uma nova aldeia a uma lgua da ento Colnia do Prata, que abandonada pelos Capuchinhos tornou-se Casa de Correo e, posteriormente, veio a transformar-se em Leprosrio, conhecido como Colnia do Prata. A sada junto com os aliados seria uma das muitas maneiras dos Temb de livrar-se da homogeneidade a que foram submetidos. A ao estratgica lida por Muniz (1913) como fuga.

    Ainda, segundo Muniz (1913), o novo espao era conhecido como Aldeia Velha, hoje, de saudosa memria no relato dos mais velhos que, vez por outra, falam do lugar com alguma nostalgia a partir da lembrana de histrias contadas pelos pais, avs e bisavs repassadas de gerao a gerao. fato, portanto que, os donos da terra rearranjavam o territrio em funo das vicissitudes produzidas pelo embate com os invasores.

    Diz ainda, o cuidadoso historiador, sobre os amocambados que, o tempo se encarregou de fazer crescer o clebre mocambo, o qual teria chegado a compreender 1000 almas, fato que os levou a construir uma aldeia que abrigava: africanos escravizados fugidos, criminosos evadidos da justia e, mais tarde ndios, incorporados aps a destruio. Um lugar criado revelia do Estado s poderia abrigar pessoas que para o Estado, so sem qualificao.

    Muniz (1913) refere-se de forma explicita s comunidades multitnicas pouco estudadas existentes em territrio paraense e na Amaznia, as quais se afiguravam poderosas e que o Estado no podia suportar. Por certo, da decorre a insistncia em morigerar os povos que viviam entre os rios Guam e Maracan, pois o territrio supostamente pertencia ao Par, mas fugia das mos do Estado e produzia danos insuportveis, afinal como os ditos civilizados no conseguiam domar (ou amansar, como se dizia poca) gentes no-civilizada, ou sejam indgenas e africanos.

    No local, onde no passado se produziu a infraestrutura do Prata, encontravam-se: (1) as casas, em nmero de cinco ou seis, dos ndios da famlia Miranha; (2) em Anselmo, margem esquerda do rio Maracan viviam os Tupanas; (3) a famlia Braz morava no Jeju, afluente da margem direita do rio Maracan; e (4) em Arrayal, nas nascentes do rio Jeju ficavam a famlia dos Leopoldinos, segundo Muniz: [t]odas estas familias pertenciam a trib Temb e viviam em contnua relao entre si, e ultimamente [ poca da construo do Prata] com civilisados, por intermedio dos respectivos chefes. (1913: 16/17, sic.)

    Os Temb, portanto, sempre estiveram em Santa Maria, mas a cidade chegou a eles, incialmente, como Ncleo de Colonizao Indgena, depois elevada a categoria de Vila e, mais adiante sede de municpio. A cidade ocupou a aldeia dos Braz e dos Leopoldinos, famlias consideradas as mais antigas entre os Temb.

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    Portanto o melhor viver, para o povo Temb requer retorno ao territrio, pelo menos ao, hoje, territrio tradicionalmente ocupado e garantia de demarcao do mesmo o projeto de vida em comum que mantm os descendentes dos Braz e Leopoldinos, o qual ensinado coletivamente por diversas vias.

    Criana, perdi meu pai e minha me Para os Temb de Santa Maria as narrativas do cacique Miguel so

    importantes para a reafirmao da identidade, mas insuficientes para se fazer respeitar como povo indgena que so, por isso h mais de dez anos procuram: (1) reunir documentos, (2) escrever relatrios, (3) adentrar ao ensino superior (o mundo escolar dos brancos) e (4) terceiros com quem possam produzir parcerias e solicitam servios para dar a conhecer aos demais, por intermdio da escrita, a Histria dos Temb de Santa Maria. (Beltro, 2012; Fernandes; Silva & Beltro, 2011)

    O genocdio e o etnocdio perpetrado contra os Temb reconhecido, nas histrias narradas, como a perda dos pais, registrada na Histria da Guariba quando se diz:

    ... o seguinte: ela perdeu todos os pais, n? E a ficou. Hoje, ns temos um exemplo aqui com os filhos da Maria n, a Maynumi, perdeu o pai, ningum sabe quem o pai, a me no sabe, no sabe quem a me, quando ela toma conhecimento da vida n?

    Considerando a proposta feita pelos Temb, estamos em busca de como a documentao que existe sobre o antigo Ncleo Colonial Indgena pode demonstrar, via indcios, entendidos aqui como possibilidade de produzir hipteses referentes a afirmao criana, perdi meu pai e minha me que a rigor pode ser repetida por qualquer uma das pessoas temb de qualquer idade. Os mais velhos pela autoridade do conhecer e os mais jovens pelo que aprendem com os velhos conhecedores a ser Temb Tenetehara.

    Uma das possibilidades encontrada de atender a demanda dos Temb foi trabalhar com a documentao que restou entre as runas do Prata. Escolha que se relaciona ao silncio das fontes e da historiografia a respeito do destino dos povos indgenas, antes, confinados no Ncleo Colonial Indgena. Para onde foram as pessoas temb? Foram expulsas? Deixaram-se ficar nas imediaes? Fugiram para espaos distantes? Foram considerados hspedes/reclusos da casa correcional que substituiu o educandrio catlico? Sofreram com mais uma dispora? So perguntas que no querem calar, mas para as quais no temos at ento respostas. Ao lidar com a documentao procuram-se o registro da passagem das famlias: Miranha, Anselmo, Tupanas, Braz e Leopoldino pelo Prata. A tarefa rdua, pois os nomes das famlias devem ter sido atribudos ou escolhidos quando da converso, mas o dar um nome cristo fazia parte dos registros nos ncleos desde a Colnia.

    Pelo comportamento diplomtico Temb Tenetehara as narrativas ganham espaos e as migraes foradas do tipo disporas aparecem por

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    intermdio de metforas, como as que se descrevem acima. Portanto, como acadmicos parceiros devemos revelar os enlaces e demonstrar as violncias produzidas pela poltica homogeneizadora, pois essa inscrio que auxiliar os Temb a manter viva a reivindicao pelo territrio.

    Assim, trabalha-se o livro de Registro dos Attestados de Obitos ocorridos na Lazaropolis do Prata (sic) aberto em outubro de 1923, ano anterior fundao oficial da Instituio asilar. Cujo primeiro bito foi registrado em 22 outubro de 1923, relativo a Ernesto Viriato Soares, recolhido em 30 de junho de 1923 (Registro dos Attestados de Obitos ... 1923-1938: 1). Como nos outros 738 registros at 1938, segue-se roteiro de informaes essenciais acerca do paciente falecido: nmero do bito, nome do sujeito, causa mortis, data e hora da morte, idade, cor da pele, nacionalidade, estado civil, naturalidade, filiao e indicao de vida ou morte dos pais, indicaes de lepra entre os pais, data de acolhida (recolhimento instituio), nmero da internao, matrcula e local do Servio Geral, esplio, local de sepultamento e, por fim, assinatura dos mdicos responsveis. A sequncia de dados permitem inferncias diversas, pois os atributos do o tom de objetividade ao documento, tal como possvel observar nas Fichas que regiam a vida dos doentes no Prata. Todavia, a ausncia de um ou outro apangio, de acordo com o assentamento dos mortos, sugere a dimenso subjetiva presente nas tintas mdicas.

    A ausncia de objetividade, como destacou Ginzburg (1990 [1976]), no anula a validade da fonte. Pelo contrrio, possibilita a verificao/interpretao centrada nos ... resduos, sobre dados marginais, considerados reveladores. Desse modo pormenores normalmente considerados sem importncia e at triviais, baixos forneceriam a chave para aceder aos produtos ... (Ginzburg, 1990 [1976]: 147-148) que, no caso especfico, permite a aproximao com as representaes mdicas acerca da doena e do atendido (Cardoso, 2000), alm da tentativa de reconhecer os indgenas entre os doentes e os no-doentes.

    Considera-se que as narrativas dos profissionais possuem historicidade reveladora de preceitos (Cardoso, 2000) que no passado podem ter apoiado aes discriminatrias em funo desse ou daquele apangio. Tendo em vista os objetivos do trabalho, ora apresentado, problematiza-se os marcadores sociais da diferena, no caso aqueles de natureza tnico-racial dos mortos que mereceram registro.

    A pesquisa encontra-se no incio. No trabalho, discute-se a partir de cem sujeitos cujos registros e informaes foram tabulados e, nos quais aparecem proporcionalmente as seguintes referncias: 50% brancos, 45% mestios, 2% pretos, sendo que 2% no tiveram a etnia informada. Todos os mestios e pretos, alm dos no informados, so marcados como brasileiros, o que implica na classificao aos estrangeiros (espanhis, portugueses e srios) como brancos (Grfico 1). Essas pessoas de cor so advindas, sobretudo, do Par e do Cear, posto que do primeiro estado viessem 53% dos indivduos e do segundo, 16% (Grfico 2). Sabe-se que, com a construo da Estrada de Ferro de Bragana,

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    espanhis e srios libaneses estabeleceram-se ao longo da ferrovia, bem como entre os trabalhadores da mesma encontravam-se muitos cearenses.

    Grfico 1 - Nacionalidade dos internos/mortos

    Grfico 2 - Naturalidade dos internos/mortos

    As definies para etnia apresentam-se bastante estticas, pr-definidas.

    V-se um quadro diferente dos registros demogrficos em tempos de epidemia, por exemplo como o da Clera, na segunda metade do sculo XIX (Beltro 2004), ou mesmo das demarcaes tnicas efetuadas por outros profissionais

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    que no relacionados ao campo da sade para a mesma centria (Bezerra Neto, 1998 e Baena, 2004 [1885]). Assim, no observamos mais as categorias cabocla (descendentes de negros e ndios, de cor morena, cabelos lisos e feies marcadamente indgena), cafuza (ou cabur descendentes de negros ou mulatos e ndios, de cor negra, cabelos lisos e grossos), mameluca (descendentes de brancos e ndios de cor clara, cabelos lisos e feies supostamente indgenas), mulata (descendente de negros e brancos, cujos traos negros sobressaem), parda (descendente de negros e brancos com pele menos escura), tapuia (denominao genrica dada aos ndios destribalizados e, tambm, as gentes com caractersticas consideradas marcadamente indgenas) e, sobretudo, ndia (descendentes dos povos originrios). Parece que todas as pessoas esto subsumidas na categoria mestios (Grfico 3). Aqui nota-se a historicidade desses termos, considerando os diferentes contextos em que eles so usados ou deixados ao largo das categorizaes.

    A Lazaroplis do Prata era, acima de tudo, o lugar e o tempo do exerccio da cincia (Almeida 2007), posto que a prpria lepra confrontou o Estado com a necessidade de aes imediatas. Nessa esteira, a medicina ocidental foi a voz de autoridade naquela Instituio, ao modo como vinha ecoando em face a outras prticas curativas correntes (Figueiredo 2003). Logo, as concepes raciais dos oitocentos, difundidas essencialmente por intelectuais ligados poltica brasileira (Schwarcz, 1993 e Bezerra Neto, 1998), toma outros contornos, sem, contudo, abolir o mtodo primordial de identificao das raas: a cor da pele.

    Grfico 3 - Cor dos internos/mortos

    Considerando as Fichas dos doentes do Prata, observamos que o marcador

    racial considerava a cor da tez, verificada pelo prprio mdico durante a avaliao do paciente. Se converso de pluralidade tnica do sculo XIX em marcadores estticos indica, por um lado, a vinculao cientfica do observador que analisa o fentipo do paciente, por outro lado, sugestivo do apagamento da categoria ndia e suas derivativas nos registros mdicos. Esse fenmeno

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    correlaciona-se poltica do governo paraense quanto ao seu projeto homogeneizador direcionado aos indgenas. No por acaso, a partir da extino do Educandrio do Prata, no se observa nos documentos, at ento levantados, e, por conseguinte, na literatura que se dedica ao estudo dos seus diversos momentos institucionais, referncias aos Temb Tenetehara. O silncio talvez refira/esconda o malogro da ao morigeradora.

    Os mestios so, portanto, uma das marcas nas quais foram enquadrados todos os sujeitos que no eram brancos ou pretos; um amlgama, ao que nos parece, de todas as categorias utilizadas no sculo XIX.

    Com os dados referente s faixas etrias, podemos conjugar internos mortos e tempo de permanncia no Prata (que, talvez, remonte a poca do Ncleo), mas at aqui as mortes so razoavelmente distribudas por faixa etria. Caso os adultos com mais de 50 anos estivessem no Prata antes da internao, alguns deles poderiam ser indgenas. No caso dos mais jovens, estes poderiam ser filhos de indgenas. De todo modo, entre os dados computados, no h sobrenomes atribudos aos temb. Mas no difcil existirem indgenas entre os internos mortos, at porque as famlias nominadas podem ser as mais resistentes morigerao e outras pessoas indgenas possam ter sofrido com os apagamentos dos sinais de etnia bem mais cedo at antes da ida ao Prata, pois os missionrios eram incansveis na busca de ovelhas.

    Cabe referir que os temb se fixaram, aps a dispora inicial, nos campos que compreendiam o Ncleo e suas condies de vida poderiam favorecer a contrao da doena. A proporo dos indgenas na rea dos lotes das colnias correspondia a at 75%, pois os colonos no-indgenas corresponderiam idealmente a 25%.

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    Grfico 4 - Faixas-etrias dos internos/mortos

    Modelo encontrado para pensar prticas coletivas O uso do mtodo indicirio, referido por Ginsburg (1990 [1986], 1993

    [1975]) para fugir aos incmodos contrapontos entre racionalidade e o irracionalidade, a primeira um atributo europeu e a segunda atribuda aos no-europeus, entre as formas de se expressar historicamente de forma escrita ou oral analisa quaisquer indcios como reveladores, ou caminhos e possibilidades de levantar pressupostos relativos s aes do Estado na tentativa de submeter os Temb. Por outro lado, se a homogeneizao no aconteceu, como se deu o enfrentamento organizado pelos indgenas para manter a tradio e minimizar os efeitos das diporas? E se houve enfrentamento, como se recria o coletivo ou como se reaprende as prticas coletivas? De que forma, hoje, a partir de histrias articuladas (tradicionais ou no) a projetos de vida (passada e presente) os Temb se afirmam indgenas?

    Para responder estas questes retomam-se tanto as histrias Temb, como as marcas que se apresentam na documentao do antigo Ncleo como tnicas, forte ou sutilmente sublinhadas, nos documentos e no quotidiano observvel, pela diferena que produzem em relao aos vizinhos no-indgenas que cercam os pequenos territrios que os Temb conseguiram preservar.

    Ao juntar pontos residuais da malha tecida produziu-se um conhecimento indireto e conjectural sobre o que viver melhor para os Temb de Santa Maria.

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    sabido que os povos indgenas so exmios conhecedores da floresta e que possuem capacidade de ler a natureza, quando criados na tradio, no sistema indgena como referiram Miguel e Almir em suas narrativas. Assim sendo, comportam-se como estrategistas e ao longo de mais de um sculo, entre disporas e esbulho de seus territrios, mantiveram na memria dos mais velhos a possibilidade de ser Temb. Os velhos so patrimnio e conduzem politicamente os destinos do povo.

    Para bem viver, o modelo : (1) cultivar a tradio caso esta esteja demasiadamente esfumaada, recorrer aos parentes; (2) pensar as narrativas como ensinamentos para viver em comunidade; (3) partilhar tradies que devem ser reavivadas quotidianamente; (4) reivindicar o territrio confiscado para ampliar os circunscritos espaos de hoje; (5) exigir a demarcao de suas terras; e (6) inscrever-se na histria reafirmando sua identidade.

    O modelo ainda parece-nos incompleto, mas na medida em que os indcios vo sendo reunidos a complexidade do modelo deve reaparecer. Por outro lado, importante ver o modelo homogeneizador em ao para melhor compreender os estrategistas temb.

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    Referncias

    Fontes documentais Manuscritas

    Registro dos Attestados de Obitos ocorridos na Lazaropolis do Prata. Depoimentos e Narrativas Temb, registradas entre 2009 e 2013. Entrevistas realizadas com os Temb, entre 2009 e 2013. Fichas/Pronturios da Colnia Santo Antnio do Prata. Documentos relativos aos Processos Seletivos Especiais para povos indgenas (2010, 2011, 2012 e 2013) realizados pela Universidade Federal do Par. Silva, Almir Vital da; Fernandes, Edimar A. & Beltro, Jane Felipe. 2012. Histrias, Narrativas e Cuidados Sade entre os Temb. Relatrio de Iniciao Cientfica/CNPq/UFPA. (Manuscrito indito). Temb. 2011. Relatrio apresentado Fundao Brasil de Direitos Humanos. Santa Maria do Par. (Documento indito).

    Impressas

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    Bibliogrficas

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