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1 DIAS DE VERÃO Sonia Rodrigues Contos e crônicas

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DIAS DE VERÃO Sonia Rodrigues

Contos e crônicas

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Título:

DIAS DE VERÃO

Personalidades:

SÔNIA REGINA ROCHA RODRIGUES - Autor(a)

Registro:

155712, em 17/07/1998

Gênero:

Contos/Crônica

Obra Publicada:

Sim

Tipo de Apresentação:

Papel, 58 página(s)

ISBN – 85-904649-3-8

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COMUNICAÇÃO

doro cartas. Sou uma dessas pessoas que detestam telefones. Não sei conversar sem ver os olhos, as mãos, a mímica facial de meu interlocutor. Os sons

das palavras saem pelo fio destituídas de qualquer sentido. Será que do outro lado alguém estará bocejando, olhando o relógio ou assistindo à Sessão da Tarde? Terá meu telefonema interrompido um beijo, os cálculos do Imposto de Renda, uma briga familiar? Isto, bem entendido, quando se consegue a ligação, pois as linhas estão freqüentemente ocupadas, ou ninguém atende, ou então, o que é mais frustrante, há do outro lado uma parafernália eletrônica que educadamente anota recados. Além de sentir-me uma idiota ao falar com uma máquina, fica a desconfiança de que o outro está confortavelmente a ver o futebol, saboreando uma loira gelada e ouvindo perfeitamente os recados pela ‘viva voz’ - atenderá se quiser. Telefonemas são sintéticos, frios, objetivos. Nada de sutilezas sentimentais. Não há espaço para as nuanças das entrelinhas. Em uma carta, a alma esparrama-se como um gato em um tapete macio. O telefone nos tolhe como uma camisa de força. Há sempre o risco de interrupção - a campainha, uma criança que chora, uma panela no fogo. A carta, pelo contrário, nunca é inconveniente - se não chega em momento propício, nós a guardamos para ler mais tarde com a atenção devida a um amigo querido. Hoje, contudo, a amizade existe em razão direta da distância. Apesar do advento da Internet, a comunicação atual é telegráfica e superficial. Na Era da Informação, as pessoas tem pavor de expor-se. Tenho esperança de que o hábito de escrever longas e afetuosas cartas volte a ficar em moda. Enquanto isso, para não perder o costume, vou escrever um diário. (texto premiado em 2o lugar na categoria Prosa no 2o Concurso Interno de Poesia e Prosa da APEBS, junho de 1997)

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DIAS DE INVERNO

ulho passou, com seus dias claros e seu céu límpido fazendo a alegria das crianças e das donas de casa. Estas porque o pesadelo da roupa suja que não tem como ser lavada, pois recusa-se a secar

quando a cidade se transforma numa nuvem úmida, e tudo nos armários fica cheirando a ‘cachorro molhado’, não aconteceu. E aquelas brincaram até fartar empinando pipas, correndo pela areia da praia e até tomando sorvetes - que estava quente e os pais não tinham porquê proibir. Julho passou perfeito para férias, ensolarado, quente, lindo. Inverno sem frio, no entanto, não tem graça nenhuma. Fiquei, frustrada, a esperar pela minha estação do ano preferida. Inverno, afinal, tem seu jeito próprio, seus aromas, seus sabores: o caldo verde, o fumegante cozido português, o chocolate quente com marshmallow, o vinho quente, o fondue... Pinhões tem gosto especial quando queimamos nossos dedos gelados no ingrato trabalho de descascá-los; as mãos ficam vermelhas e o estômago, aquecido. Até mesmo as prosaicas pipocas são mais saborosas nas noites frias em que nos enrolamos em cobertores em volta de uma mesa, como escoteiros acantonados, para um joguinho de cartas. Inverno é poder vestir-se com elegância; desfilar de blazers, casacões, túnicas e sofisticadas botas. Inverno mesmo é quando dois cobertores não são suficientes e o companheiro pula quando lhe encostamos nossos pés - e a gente dorme soterrada entre montanhas de edredons, meias, gorros e cachecóis. Inverno mesmo é quando a gente perde a hora porque a manhã é tão escura, o soninho tão bom e a chuva grossa nos embala como uma canção de ninar. Inverno perfeito é quando a gente, semicongelada, espera um dia inteiro pelo namorado carinhoso que nos envolve em um abraço daqueles tão aconchegantes que nosso coração se aquece, o mundo torna-se agradável e a felicidade, possível.

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VIZINHOS

vizinho da direita sofria de insônia; madrugada adentro eu ouvia a ‘Sessão Coruja’. Não é que ele ligasse alto a TV, mas aquele vago murmurar de vozes e ruídos diversos perturbava

meu sono. O menino da esquerda criava uma araponga. O

despertador da vizinha do andar de baixo tocava às cinco da manhã inclusive aos domingos, e o rapaz do andar de cima ouvia rock pauleira no horário do meu almoço.

Era demais! Dificuldade para adormecer, sono interrompido pela madrugada e nem ao menos poder cochilar após o almoço!

Mudei-me para o interior. Adormecer com o coaxar dos sapos, acordar com a passarada, lagartear no silêncio do sol a prumo...que paz!

Lá no interior conheci aquele tipo folclórico de vizinho, o que vem pedir emprestada uma xícara de açúcar, ou um ovo, e dali a dias bate à porta com um três ovos ainda quentes, que as galinhas botaram ‘inda agorinha’.

Na primeira manhã de merecidas férias acordo com insistentes batidas à porta:

- A senhora está doente? Fiquei preocupada, a senhora sempre sai tão cedo, mora sozinha, vai que houvesse sofrido algum acidente...

Semanas mais tarde, a mesma vizinha telefona para meu trabalho:

- Um homem estranho entrou em sua casa. Já chamei a polícia.

- É meu irmão! - protesto. Houve aquela memorável ocasião em que a velhinha da frente

cercou-me com ar confidencial, com uma conversa espiralada sobre ‘aqueles homens’ que apareciam com ‘tanta freqüência’ em minha casa, ‘sozinhos’, e que eu recebia ‘a portas fechadas’, sem nenhum cuidado pela minha ‘reputação’...

Perdoei a moral provinciana, mas saí do sério quando a mocinha dos fundos parou-me em plena feira:

- Usamos calcinhas da mesma marca.

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- Como? - Espiei o seu varal por cima do muro... Ora, francamente! Eu não podia usufruir do meu belo quintal para o lazer.

As altíssimas árvores em volta viviam carregadinhas de moleques que, não contentes em espiar, cismavam de puxar conversa:

- Que livro a senhora está lendo? - Por que a senhora não toma sol no clube, como a

minha mãe? Aos sábados, a vizinhança se revezava no churrasco do

almoço e na roda de samba que se encompridava das dez da manhã às oito da noite, hora em que começava a música na praça, bem alto que era para todo o povo da cidade ouvir.

Bem, pelo menos a barulhada era só aos sábados. Era, pois o “progresso” invade tudo. Hoje o interior tem

vida noturna: bares e clubes abrem todas as noites com seus conjuntos sertanejos trovejando alegria por potentes alto-falantes.

Assim, voltei para a cidade grande. Para o mesmo prédio onde o garoto da araponga agora cria três papagaios tagarelas; os vizinhos da direita tem TV a cabo, ‘24 horas no ar’ e o rapaz do andar de cima estuda bateria.

Estou pensando em forrar todo o apartamento com cortiça, transformando-o em um estúdio diferente: à prova de som.

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MUDANÇA

caminhão de mudança encostou e eu fui

logo avisando: - Os livros embalo eu! Pouco me importa o que acontecerá com as

roupas, as louças e os eletrodomésticos. Afinal, trata-se de um problema mecânico bastante simples: pegar de um lugar e levar para outro. Quanto aos livros, a questão é diferente. Na minha primeira mudança fiquei durante uma semana encontrando os coitadinhos nos lugares mais inusitados: na máquina de lavar, no forno, no freezer. Até mesmo servindo de calço para uma perna de sofá capenga _ e olha que era um exemplar novinho, que eu mal começara a ler. É indispensável examinar o caminhão cuidadosamente antes que parta. - Tem certeza de que descarregou tudo? - Sim, senhora. Aí dentro só tem papel velho e uma meia dúzia de livros que caíram dos caixotes. - Livros? E vocês não os pegaram? - Pra que? A senhora já tem tanto livro aí, que mais um menos um não vai fazer diferença. E, estatelados no chão sujo, meu atlas de anatomia e minha coleção de arte, importada! Não é muito ruim quando os carregadores enfiam alguns exemplares junto com os sabonetes _ ficam cheirosos por bastante tempo. Chato é quando eles os socam no mesmo caixote com cebolas, pó de café e outras especiarias - por semanas, ao escolher um livro, tenho a sensação de estar indo ao supermercado. Em outra ocasião, eu embalava cuidadosamente meus cristais, quando dei - me conta de um silêncio incomum.

Onde estavam os carregadores? Procura daqui e dali, afinal encontrei - os sentados na sala, absorvidos na leitura. Súbita paixão pela literatura? Nada disso. É que haviam descoberto uma Enciclopédia Sexual Ilustrada. Desta feita eu resolvi fazer na biblioteca a mesma faxina que faço no resto da casa _ sumir com as velharias, cortando o que esteja fora de uso e fora de moda.

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Comigo ficaram apenas os clássicos, as obras-primas, os meus preferidos inseparáveis amigos de todas as horas. Por isso foi tão fácil acomodá-los, pois couberam todos em apenas vinte e cinco caixotes.

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EXPERIÊNCIAS DO PASSADO

á vivi nesta cidade antes, mas então não era eu a mesma pessoa. Naquela ocasião, astrônoma e poetisa, eu passava o tempo de nariz para cima, a

admirar a lua, a ouvir estrelas... Ah, a magia da noite! Eu me deleitava a meditar sobre os mistérios todos do universo à beira-mar.

Em Petrópolis, anos depois, fui moça devota, dessas que não perdem missa aos domingos e lêem a Bíblia diariamente. Professora severa e correta, sofri muito quando o noivo abandonou-me com estas palavras cruéis: eu era séria demais e não permitiria que ele gozasse a vida. E como, na minha concepção, só se amava uma vez na vida, vi-me relegada à solidão das solteironas.

Lembro-me da vida boêmia que se seguiu, pelos bares de São Paulo, as rodas de samba madrugadas afora, e o desastroso resultado: mãe solteira, escorraçada pela família e pelos ‘amigos’, a passar fome, frio e toda sorte de dificuldades para criar um filho sozinha.

Houve também uma época feliz, em Minas Gerais: a da fazendeira amada e apaixonada pelo maridão. Criei quatro filhos na tranqüilidade dos

campos, cursei faculdade, formei-me em psicologia e fui útil, criativa e feliz até tornar-me a viúva inconsolável do homem tão especial que enriquecera minha existência.

Mais tarde, no Paraná, renunciei a tudo como monja budista, procurando a solução para o problema da dor, alienando-me dos sofrimentos do mundo pela renúncia.

Agora, de volta à primeira cidade em que vivi, percebo curiosa que, sendo eu a mesma pessoa, sendo a cidade a mesma, sou no entanto uma pessoa nova em uma cidade nova. Não é mais o luar que me encanta a alma, é o sol que aquece meu coração. Aprecio as caminhadas matinais, faço ginástica na praia e...

Nisto, o psiquiatra que chegara à roda com atraso protestou indignado exigindo provas. Provas? Provas, sim, que ele já estava farto deste modismo de reencarnação!

Mas do que é que ele estava falando, afinal? Eu apenas comentava com meus amigos como se mostrara exata a previsão feita à beira de meu berço pelo astrólogo que interpretou minha carta natal: a cada dez anos, minha vida sofreria uma transformação radical.

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DISTRAÇÃO

ra um sujeito distraído. A gente parava bem em frente ao fusca amarelo dele e esperava em vão enquanto ele, chave na mão, olhava para todos os

lados, indeciso. - Não vamos embora? - Claro, assim que eu localizar o carro. Sei que estacionei em algum lugar por aqui... Entrava no carro e que é feito da chave? Deixara-a do lado de fora. Quantas vezes não voltava do trabalho a pé porque esquecera-se de que saíra de carro? De nada adiantava, para ele, anotar os compromissos do dia em uma agenda, pois ele não se lembrava de consultá-la; isto é, caso ele se lembrasse aonde a colocara. Viajei com ele uma única vez, para nunca mais. Hospedamo-nos na primeira noite em um hotel à beira da estrada; na manhã seguinte ele pôs-se a revistar os bolsos e a bagagem - esquecera dinheiro, cartões e talões de cheque. Se não fosse o amigo aqui... O que aconteceu na imobiliária, no entanto, foi demais. Eu o acompanhei em suas andanças à procura de um imóvel até encontrarmos um que o interessou. Aí o corretor, todo solícito, propôs-se a preencher a ficha cadastral: - Nome? - H*** W*** - Profissão? - Médico. - Endereço? Nisto, ele vira-se para mim: - Alfredo, onde é que eu moro? Sorri. Que brincadeira mais fora de hora! - Sério, Alfredo, não sei. - Você quer dizer que se esqueceu do próprio endereço? - Não sei mesmo. Não prestei atenção ao nome da rua. - Ao menos do número você lembra, não? - Sabe que também não reparei no número? Verdade é que ele mudara-se recentemente. - Mudou-se ontem? - Há dois meses. Seus olhos pediam-me socorro, porém eu estava sufocado até as lágrimas pelo mais inconveniente acesso de riso. O corretor ainda tentou mostrar-se compreensivo: - São Paulo confunde um pouco os que vêm de fora.

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- Não é meu caso, moro na mesma quadra desde que nasci, só que mudei para a rua de trás. Aí o corretor ficou com uma expressão muito esquisita e empurrou-nos firmemente porta afora.

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MEUS AMIGOS LIVROS

stou condenada à aposentadoria e a ter de colocar os meus amigos no prego!

Exagero? Sucessivos ministros da economia tem-me empurrado

para moradias cada vez menores. Fico a me perguntar o que farei com meus amados livros quando o próximo desastre econômico empurrar-me para um quarto e sala.

Se tiver de reduzí-los a uma dúzia de títulos, sem dúvida alguma ficarei com Edgar Allan Pöe, o mestre do horror e do suspense. Recentemente emprestei-o a uma amiga que o devolveu no dia seguinte com uma expressão de assombro: “Não quero saber deste troço esquisito”. Eu o recebi com carinho e o recoloquei em seu lugar de honra na estante. Como deixar de concordar com Pöe, afinal? Pois “a desgraça é variada. O infortúnio da terra é multiforme”.

Ficarei também com os romances russos, com sua peculiar visão de vida a oscilar entre a comicidade e a tragédia; os contos de Machado e o teatro de Dias Gomes; os Diálogos de Platão e, é claro, Oscar Wilde, para rir-me da hipocrisia humana.

Não, não levarei comigo nenhum livro religioso. Quando pediram a Buda que falasse sobre Deus, o Iluminado não pronunciou uma única palavra. Limitou-se a mostrar uma flor.

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APELIDOS

pelido pega. E uma vez pego, gruda para nunca mais. É gozação garantida para a vida toda, a acompanhar o pobre sujeito até a morte.

Não há escola, bairro ou clube que não tenha o seu Alemão, o seu Japa ou o seu Turco. Apelido é uma praga! Mas cidade para gostar de apelido igual àquela, eu nunca vi. Nanquim Nakara era o nissei que nascera com uma mancha de nascença no rosto. O aposentado que passava as tardes na praça, a acompanhar os conhecidos à farmácia ou ao banco, era o Ferry-boat. Salário Mínimo? Era o homem mais baixo da cidade. Eu precisava passar por lá para encontrar um amigo que me acompanharia em uma excursão de férias. Apostei com ele como não ganharia nenhum apelido. Lá chegando, dirigi-me ao hotel, telefonei para o meu amigo e subi para um banho e um cochilo, pois ele só chegaria ao final da tarde. De quando em vez eu espiava pela janela, para observar a paisagem, e assim que aparecia alguém, rapidamente eu me escondia, para que não me botassem nenhum apelido. Finalmente meu amigo chegou e desci a pedir a conta na portaria. Já ia cantar vitória, quando a voz do funcionário fez-se ouvir, em alto e bom som: - Saindo a conta do Cuco!

TIC-TAC

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inha eu o hábito de admirar o elegante despertador de ouro na cabeceira de minha mãe: pequeno, redondo, bonito. Por causa disto, papai me presenteara com um pequenino relógio de ouro em um cordão também de ouro, jóia para casamentos e ocasiões importantes, que trazia passarinhos e flores

estampados em sua moldura - um primor. O que me fascinava no despertador de mamãe, porém, não era o ouro e sim o delicado trabalho de ourivesaria, semelhante a uma renda. Pela manhã eu saía para o colégio e parava no sobrado da esquina, onde morava minha melhor amiga. Ela abria-me a porta do hall, onde eu aguardava que ela arrumasse o material, admirando a peça antiga de madeira escura, alta, esculpida com folhas e frutos, que anunciava os quartos de hora com um timbre metálico magnífico. Ela sorria-me, cúmplice, orgulhosa da raridade que pertencia à família há quatro gerações. Íamos juntas para a escola. Dobrando a esquina, estávamos na parte comercial da quadra. Passávamos pelo açougue, pela farmácia, pela barbearia, pela padaria, pelo armazém e pelo hotel - cada um exibindo seus relógios de parede, uns quadrados, outros redondos, o do barbeiro sempre atrasado dez minutos em relação aos outros. Virando a próxima esquina, víamos o campanário da capela, com riscos ao invés de algarismos e os imensos ponteiros de metal escuro, que às sete em ponto soava como um carrilhão anunciando o começo das aulas. E ao entrarmos no jardim da escola, rodeado de esvoaçantes borboletas, lá estava, com seu ar festivo, o relógio de flores que Irmã Leopoldina ajardinava com carinho, todo colorido e perfumado. De todos, o meu relógio preferido era um de mesa, esmaltado, com pés arqueados e enfeites dourados, que permanecia escondido para que nós, crianças, não bulíssemos nele. Esse relógio especial era retirado do esconderijo quando um de nós fazia aniversário; então mamãe dava-lhe corda e, no exato momento do nascimento, o que no meu caso acontecia às cinco horas da manhã, ele tocava ‘Parabéns a você.’ Esta é uma encantadora recordação de minha infância e talvez explique porque sonho freqüentemente com relógios e porque sou tão fascinada por eles.

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DIAS DE VERÃO

iagens de férias. Sorvetes. Tudo o que é bom parece acontecer no verão. É uma exuberância de frutas, um não acabar mais de passeios ao ar livre, e quando se mora à beira mar, então, há um

vasto leque de diversões à escolha. Caminhadas na praia, mergulho, natação, pescaria, passeios de barco e toda sorte de esportes aquáticos. Claro, nem sempre o calor é agradável. Para quem trabalha exposto ao tempo, sem ventilador, sem ar condicionado, fazendo esforço físico, não é nada divertido. Há dias em que a temperatura sobe tanto que, visto de longe, o asfalto parece água, e a paisagem junto ao solo estremece, distorcida pelas ondas de calor. Dias em que, já pela manhã, tudo parece queimar a nossa pele _ o sofá, os lençóis, e até das torneiras jorra, à temperatura ambiente, um líquido escaldante e nada convidativo. Dias em que nada refresca - nem banho, nem piscina, e mesmo os aparelhos de ar condicionado não conseguem amenizar o mal estar. Dias em que a única atitude sábia é encolher-se à sombra, como um bichinho, imóvel, esperando, pois está quente demais até para se conseguir dormir. (deveria haver um verbo para a suspensão temporária das funções vitais provocadas pelo calor extremo, uma espécie de hibernação às avessas) Um dia como o de ontem, que dizem ter sido o mais quente dos últimos cinqüenta anos. O solstício de verão já acontecera, mas parecia que a Terra continuava, distraída, a inclinar-se mais e mais em direção à fonte da vida. Foi com certeza em um dia assim que um grego imaginou a lenda de Faetonte, o mortal que dirigiu o carro do sol tão desastradamente, chegando tão próximo que quase incendiou o planeta.

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AGORA !

á estávamos, os primos em segundo e terceiro graus, os que se reúnem esporadicamente nos casamentos e batizados da vida, após anos de ausência, com o mesmo nostálgico sorriso de ‘lembra-se de como brincávamos juntos na casa do avô?’ e com o mesmo suspiro fatigado de

‘ah! esta vida corrida que a gente leva!’ Cada festa em família reacende o desejo de compartilhar, pois, afinal, esta é a finalidade da família; durante alguns dias pensamos em promover uma churrascada ou um passeio, mas logo o cotidiano empurra rotina abaixo nossas boas resoluções. Aí passam-se dois ou três anos até que alguém se case ou batize um filho e é aquela alegria do reencontro, aquela sucessão de calorosos abraços e as trocas de confidências, piadas e receitas. A última reunião, contudo, foi bem diferente. Os abraços até que forma mais calorosos, os sorrisos mais amigos, as conversas mais prolongadas, mas havia aquele incômodo constrangimento no ar. É que a reunião familiar, inesperada, urgente, era um velório. E o primo que falecera nem era o mais velho de sua geração. Os sussurros, aqui e ali, estremeciam os ouvintes: - Eu o carreguei no colo. - Brincamos juntos. - Eu me lembro bem de quando ele nasceu. - Tão moço... tão bonito... Agora, à medida que o tempo vai passando, dia um, dia outro, dá o seu recado: hoje um telefonema, amanhã uma rápida visita, e o primeiro que aniversariou levou um susto: a casa cheia de parentes. Tenho certeza de que de agora em diante será assim: aniversários concorridos no decorrer do ano, por duas razões. A primeira é que nos demos conta de que a morte não escolhe idade. A segunda é como diz o avô: - “Não quero saber de flores sobre a minha tumba. Quem quiser demonstrar o seu amor por mim, trate de fazê-lo enquanto eu estou vivo.”

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DIZE-ME ONDE MORAS

ma das maneiras de conhecer a personalidade de uma pessoa é vê-la montar uma casa. Eu começo pela biblioteca. Vou procurar boas estantes,

firmes, de madeira de lei; uma cadeira de balanço confortável e uma escrivaninha. Já minha irmã começou pela sala, onde colocou uma rede. É, rede, aquilo que os índios usam para dormir dependurados, entortando a coluna e balançando indolentemente. E no cantinho o bar aconchegante, cúmplice, com ampla variedade de licores e a sofisticada coleção de copos, objetos de culto ao sedutor deus pagão. Minha filha começou a reforma do seu ‘ap’ pelo quarto: cortinas de babados, uma profusão de almofadas, quadros de palhaços e prateleiras com bichos de pelúcia de todos os tamanhos. Já um vizinho meu, um sujeitinho cuja esposa mudou-se mudou-se num repente sem deixar endereço e levando consigo toda a mobília, bem, este meu vizinho, vejam só, surpreende-me no elevador: - Vida nova! Comecei hoje a remodelar o meu espaço. Fiz a primeira compra. - A cama? - Não! A TV.

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COINCIDÊNCIA

a alegria do Carnaval, eu, minha esposa e meu filho nos

fantasiamos com máscaras brilhantes, enfeites nos

cabelos, roupas de piratas e fomos brincar na

privacidade de nosso camarote, como fazemos há anos.

Como é de praxe, levamos um isopor com sanduíches e

refrigerantes, levamos bastante pois sempre acabamos por repartir

alguns com os ocupantes dos camarotes vizinhos.

Este ano, contudo, tivemos uma experiência amarga. Ao nosso

lado instalou-se um jovem casal. Pois não é que o casal chamou o

diretor social do clube para que nos mudassem de lugar?

- Minha esposa está grávida. E se ‘isto aí’ a agredir?

- É um absurdo permitirem a entrada de ‘gente desse tipo’. Não

ficarei por mais nem um minuto ao lado de uma aberração dessas!

`Foi um choque descobrir que eles estavam falando do Serginho.

Do meu gentil e afetuoso filho!

O diretor comprou a briga a nosso favor - éramos sócios, o

camarote era nosso, o rapaz tinha tanto direito de se divertir quanto

qualquer outra pessoa, se ‘eles’ quisessem mudar de camarote,

bem, aí ele veria se havia um outro disponível.

- Ele não é agressivo? - insistia o outro - Prefiro não arriscar.

Vamos mudar para outro camarote.

Serginho, inocente, nem percebeu que causara tanta agitação ao

lado. Eu e Lúcia não respondemos às provocações e dispensamos

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as desculpas do diretor do clube pela cena desagradável. Meu

coração, contudo, confrangeu-se com a insensibilidade, a falta de

caridade, sobretudo com a ignorância daqueles dois jovens.

Há quinze anos nosso filho, portador da síndrome de Down, vem

enriquecendo nossas vidas, bondoso, prestativo, alegre e educado.

Quando vejo por aí jovens drogados, pichadores de muros, fúteis e

sem valores morais, roubando, matando, incendiando mendigos de

madrugada por falta de ter o que fazer, sinto-me abençoado. A

verdadeira desgraça é ser pai de algum criminoso de colarinho

branco ou de um serial killer.

Na semana da Páscoa fomos ao pediatra, para a consulta anual de

Serginho. Nossa pediatra é especializada no tratamento de Down e

de outras anomalias genéticas.

Eis que ao entrar na sala de espera, quem vemos? O casal do

camarote ao lado, com um recém-nascido nos braços. Claro que

eles não nos reconheceram sem as máscaras.

Minha esposa queria ir embora, mas eu a impedi. Naquela sala

eles não poderiam agredir o Serginho.

O homem olhou-me triste e comentou:

- É nosso primeiro. Estamos desesperados. Ele é Down.

Não o consolei. Que diabos, sou humano, afinal! E lembrei-me do desdém da moça que não queria ficar nem um minuto a mais ao lado de uma criança doente.

FIM