DIÁRIO DO MINHO Suplemento Cultura 16-04-2014 Braga

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VI Diário do Minho QUARTA-FEIRA, 16 de abril de 2014 Cultura Cultura 3 José ARCHINTO (1652-1712), cardeal e arcebispo de Milão, muito viajado por quase toda a Europa para conhecer os costumes e índoles destes povos; depois veio para Roma, onde Inocêncio XI (1676- -1688) o fez vice-legado de Bolonha; seguidamente foi-lhe concedida a nunciatura de Florença, na Toscana (1686-89); com Alexandre VIII (1689-1691) obteve a de Veneza (1689-95) e com Inocêncio XII (1691-1700) a de Madrid [aqui em 1696, sucedendo a D. Frederico Caccia, arcebispo de Laodiceia (1693), e sucedendo-lhe em 1700 D. Francisco Aquaviva, arcebispo de Larissa], sendo sagrado arcebispo de Tessalónica. Tendo-se mostrado muito fiel à Santa Sé no desempenho das suas funções, Inocêncio XII nomeou-o arcebispo de Milão e cardeal-presbítero do título de Santa Prisca em, respetivamente, 18 de maio e 14 de dezembro de 1699, tendo sido adscrito à Congregação dos Bispos e Regulares, do Concílio, da Propaganda e outras. O zelo, a constância e a firmeza cativaram-lhe o amor e a estima de todos. Presente ao conclave de Clemente XI (1700-1721), convocado a 12 de outubro e composto de 64 cardeais, este despachou-o ao imperador Carlos VI na qualidade de legado a latere e convidou-o depois para assistir às bodas entre Filipe V de Espanha e a princesa de Sabóia, Maria Luísa Gabriela de Sabóia, em novembro de 1701. Por breve de 18 de agosto de 1701 Clemente XI ofereceu a esta a rosa de ouro, nomean- do legado a latere o arcebispo de Milão. Faleceu aqui, estando sepultado na sua catedral. Esta célebre e antiga família italiana descende dos reis lombardos (Enciclopedia Cattolica, Città del Vaticano, I, 1948, coll. 1815-1816; Enciclopedia Universal Ilustrada, XXIII, pp. 606-609 e XXXIII, p. 48; Gaetano Moroni ROMANO, Di- zionario di Erudizione storico-ecclesiastica da S. Pietro sino ai nostri giorni. Venezia: Dalla Tipografia Emiliana, 1840, vols. 2, p. 276; 45, pp. 51 e 80; 59, p. 139; 68, p. 141; e 92, p. 556; Ludovico PASTOR, Historia de los Papas. Barcelona: Editorial Gili, S A., vols. XXXII, 1952, p. 524 e XXXIII, 1958, pp. 5 e 22). 4 Note-se na sua biografia a referência, por duas vezes, a comungar outras tantas vezes em Roma. Isto exige saber-se que até Pio X não havia comunhão frequente e, muito menos, comunhão de crianças. 5 A tradição medieval fala da vinda da Virgem em carne mortal a Saragoça, junto do Ebro, para dar ao apóstolo Santiago o seu apoio maternal, simboliza- do na coluna ou pilar trazido pelos anjos (fuste de coluna cilíndrica, sem molduras nem adorno algum, de jaspe, de 1,67 m. de altura e 25 cm. de diâmetro); a difusão deste culto chegou também ao Brasil, onde há dois municípios desse nome: um no Estado da Paraíba e outro no de Alagoas (A. ORTIZ GARCÍA, “PILAR (Virgen del)” in Stefano de FIORES y Salvatore MEO (dir.), Nuevo Diccionario de Mariología. Madrid: Ediciones Paulinas, 1988, pp. 1615-1623). 6 Vicente de LA FUENTE, Historia Eclesiástica de España, segunda edición corregida y aumentada. Madrid: Compañia de Impresores y Libreros del Reino, 1875, VI, p. 449: D. José Archinto, arcebispo de Tessalónica, núncio em 1696; D. Francisco Aquaviva, arcebispo de Larissa, núncio em 1700. 7 Em todo caso há sempre a possibilidade de ter sido despachado legado a latere para qualquer missão espe- cial junto da corte de Madrid, no primeiro semestre de 1700, dada a delicada conjuntura, mas isto exigia um estudo especializado que não fiz nem conheço neste momento. Mas com outros intervenientes e não pelos referidos por Gaetano Moroni Romano. Ou dar-se o caso de se ter utilizado folha timbrada do tempo do anterior núncio, mas assinada pelo novo. 8 Fr. António de Santa Maria JABOATAM, Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Chronica dos Frades Meno- res da Provincia do Brasil, Parte Segunda (inédita). Impressa por ordem do Instituto Histórico e Geo- grafico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiliano Gomes Ribeiro, 1859, vol. I, pp. 285-289; Orlando CAPITÃO, “Frei João de Loreto Franciscano Brasileiro, de Mar” in Brisa de Mar, nº 324, Janeiro de 2012, p. 5. Agradeço ao Dr. Manuel António Sampaio Azevedo a cedência do texto de Fr. António de Santa Maria Jaboatam, sem o qual nunca seria tão comple- ta esta biografia. 9 Franquelim Neiva Soares, Memórias de S. Bartolo- meu do Mar. Identificação geográfica da freguesia. Inquirições dos séculos XIII e XIV. Braga: Diário do Minho, 2001, pp. 11-20. Solenidades foram relançadas em 1950 Solenidades foram relançadas em 1950 por Monsenhor Joaquim Fernandes por Monsenhor Joaquim Fernandes A Procissão “Ecce Homo”, na Quinta-Feira Santa, em Vila Nova de Famalicão, é das poucas cerimónias religiosas quaresmais realizadas fora da cidade de Braga que con- tam com a presença do Arcebispo Primaz ou um dos seus Bispos Auxiliares. A tradição já dura há cerca de 60 anos e deve-se a Monsenhor Joaquim Fernandes, atualmente com 97 anos de idade – e de per- feita saúde –, que foi arcipreste de Vila Nova de Famalicão na segun- da metade do século XX. A história é contada pelo próprio sacerdote famalicense no livro “Joaquim Fernandes – Memórias do Senhor Arcipreste”, lançado em setembro do ano passado, que agora está disponível em Braga, nomeadamente na Livra- ria “Diário do Minho”. Ao longo das 132 páginas, Mons. Joaquim Fernandes fala na primeira pessoa sobre cinco grandes temas: a vida da infância ao seminário; o arci- prestado e a ação pastoral; a obra social no arciprestado; a velha e a nova igreja matriz de Vila Nova de Famalicão; e as relações entre o arciprestado e a sociedade civil. O livro resulta, sem dúvida, num sin- gular e valioso testemunho sobre as últimas seis décadas da história de Vila Nova de Famalicão, inteli- gentemente amalgamadas entre a comunidade religiosa e a socie- dade civil. A interação entre o poder civil e o religioso é, aliás, uma das preocu- pações centrais e uma das marcas mais relevantes do pensamento e da atividade de Monsenhor Joa- quim Fernandes. Enquanto pároco e arcipreste, jamais se fechou na torre da igreja. Pelo contrário, in- terpretou de forma sábia a missão sacerdotal de levar o Evangelho à rua, pois a palavra de Deus não é coisa de se ter na sacristia, mas de se levar às pessoas. Ordenado em 1945, Joaquim Fer- nandes assumiu funções na paró- quia de Santo Adrião (Vila Nova de Famalicão) em 6 de janeiro de 1946, como coadjutor, com plenos poderes paroquiais concedidos por Monsenhor Torres Carneiro, que estava doente. Em 1950, o padre Fernandes foi nomeado pároco; e em 1954 assumiu as funções de arcipreste, depois de ter sido vice-arcipreste. Duas décadas antes, as solenida- des da Semana Santa tinham sido suspensas na vila e o jovem arci- preste Joaquim Fernandes tinha o relançamento das celebrações como um dos seus grandes obje- tivos pastorais e religiosos. “Para recomeçar teria de ser uma coisa em grande. Isto é, eu teria de ter em Famalicão a presença do se- nhor Arcebispo Primaz, D. António Bento Martins Júnior”, explica Monsenhor Joaquim Fernandes nas suas memórias, compiladas e editadas em livro por Artur Sá da Costa e Luís Paulo Rodrigues, autores deste texto. As “pressões” do presidente Santos da Cunha O Arcebispo Primaz “aceitou o convite, dizendo que Vila Nova de Famalicão era uma terra mui- to ativa e também integrava a diocese de Braga”, conta Monse- nhor Joaquim Fernandes no livro de memórias. Assim, D. Bento Martins Júnior decidiu fazer-se representar na Procissão de Braga. Gerou-se, então, um “problema”: António Santos da Cunha, que era Presidente da Câmara Muni- Semana Santa de Famalicão Semana Santa de Famalicão oferece pão-de-ló e amêndoas oferece pão-de-ló e amêndoas ao Arcebispo Primaz ao Arcebispo Primaz É uma tradição com 60 anos: o Arcebispo de Braga vai à Semana Santa de Vila Nova de Famalicão e recebe como lembrança um pão-de-ló e amêndoas. Foi assim que Monsenhor Joaquim Fernandes gratificou D. Bento Martins Júnior quando, em meados da década de 1950, foi prestigiar o relançamento das solenidades, como conta o sacerdote famalicense no seu livro de memórias. A tradição manteve-se até hoje. Quem não gostou da ida do Arcebispo a Famalicão foi o presidente da Câmara de Braga Santos da Cunha... POR ARTUR SÁ DA COSTA E LUÍS PAULO RODRIGUES AUTORES DO LIVRO “JOAQUIM FERNANDES – MEMÓRIAS DO SENHOR ARCIPRESTE

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A Semana Santa de Vila Nova de Famalicão oferece pão-de-ló e amêndoas ao Arcebispo de Braga. Uma tradição que começou na década de 1950, com episódios rocambolescos. Texto de Artur Sá da Costa e Luís Paulo Rodrigues, autores do livro "Joaquim Fernandes - Memórias do Senhor Arcipreste".

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VI Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 16 de abril de 2014CulturaCultura

3 José ARCHINTO (1652-1712), cardeal e arcebispo de Milão, muito viajado por quase toda a Europa para conhecer os costumes e índoles destes povos; depois veio para Roma, onde Inocêncio XI (1676- -1688) o fez vice-legado de Bolonha; seguidamente foi-lhe concedida a nunciatura de Florença, na Toscana (1686-89); com Alexandre VIII (1689-1691) obteve a de Veneza (1689-95) e com Inocêncio XII (1691-1700) a de Madrid [aqui em 1696, sucedendo a D. Frederico Caccia, arcebispo de Laodiceia (1693), e sucedendo-lhe em 1700 D. Francisco Aquaviva, arcebispo de Larissa], sendo sagrado arcebispo de Tessalónica. Tendo-se mostrado muito fi el à Santa Sé no desempenho das suas funções, Inocêncio XII nomeou-o arcebispo de Milão e cardeal-presbítero do título de Santa Prisca em, respetivamente, 18 de maio e 14 de dezembro de 1699, tendo sido adscrito à Congregação dos Bispos e Regulares, do Concílio, da Propaganda e outras. O zelo, a constância e a fi rmeza cativaram-lhe o amor e a estima de todos. Presente ao conclave de Clemente XI (1700-1721), convocado a 12 de outubro e composto de 64 cardeais, este despachou-o ao imperador Carlos VI na qualidade de legado a latere e convidou-o depois para assistir às bodas entre Filipe V de Espanha e a princesa de Sabóia, Maria Luísa Gabriela de Sabóia, em novembro de 1701. Por breve de 18 de agosto de 1701 Clemente XI ofereceu a esta a rosa de ouro, nomean-do legado a latere o arcebispo de Milão. Faleceu aqui, estando sepultado na sua catedral. Esta célebre e antiga família italiana descende dos reis lombardos (Enciclopedia Cattolica, Città del Vaticano, I, 1948, coll. 1815-1816; Enciclopedia Universal Ilustrada, XXIII, pp. 606-609 e XXXIII, p. 48; Gaetano Moroni ROMANO, Di-zionario di Erudizione storico-ecclesiastica da S. Pietro sino ai nostri giorni. Venezia: Dalla Tipografi a Emiliana, 1840, vols. 2, p. 276; 45, pp. 51 e 80; 59, p. 139; 68, p. 141; e 92, p. 556; Ludovico PASTOR, Historia de los Papas. Barcelona: Editorial Gili, S A., vols. XXXII, 1952, p. 524 e XXXIII, 1958, pp. 5 e 22).4 Note-se na sua biografi a a referência, por duas vezes, a comungar outras tantas vezes em Roma. Isto exige saber-se que até Pio X não havia comunhão frequente e, muito menos, comunhão de crianças.5 A tradição medieval fala da vinda da Virgem em carne mortal a Saragoça, junto do Ebro, para dar ao apóstolo Santiago o seu apoio maternal, simboliza-do na coluna ou pilar trazido pelos anjos (fuste de coluna cilíndrica, sem molduras nem adorno algum, de jaspe, de 1,67 m. de altura e 25 cm. de diâmetro); a difusão deste culto chegou também ao Brasil, onde há dois municípios desse nome: um no Estado da Paraíba e outro no de Alagoas (A. ORTIZ GARCÍA, “PILAR (Virgen del)” in Stefano de FIORES y Salvatore MEO (dir.), Nuevo Diccionario de Mariología. Madrid: Ediciones Paulinas, 1988, pp. 1615-1623).6 Vicente de LA FUENTE, Historia Eclesiástica de España, segunda edición corregida y aumentada. Madrid: Compañia de Impresores y Libreros del Reino, 1875, VI, p. 449: D. José Archinto, arcebispo de Tessalónica, núncio em 1696; D. Francisco Aquaviva, arcebispo de Larissa, núncio em 1700.7 Em todo caso há sempre a possibilidade de ter sido despachado legado a latere para qualquer missão espe-cial junto da corte de Madrid, no primeiro semestre de 1700, dada a delicada conjuntura, mas isto exigia um estudo especializado que não fi z nem conheço neste momento. Mas com outros intervenientes e não pelos referidos por Gaetano Moroni Romano. Ou dar-se o caso de se ter utilizado folha timbrada do tempo do anterior núncio, mas assinada pelo novo.8 Fr. António de Santa Maria JABOATAM, Novo Orbe Serafi co Brasilico, ou Chronica dos Frades Meno-res da Provincia do Brasil, Parte Segunda (inédita). Impressa por ordem do Instituto Histórico e Geo-grafi co Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiliano Gomes Ribeiro, 1859, vol. I, pp. 285-289; Orlando CAPITÃO, “Frei João de Loreto Franciscano Brasileiro, de Mar” in Brisa de Mar, nº 324, Janeiro de 2012, p. 5. Agradeço ao Dr. Manuel António Sampaio Azevedo a cedência do texto de Fr. António de Santa Maria Jaboatam, sem o qual nunca seria tão comple-ta esta biografi a.9 Franquelim Neiva Soares, Memórias de S. Bartolo-meu do Mar. Identifi cação geográfi ca da freguesia. Inquirições dos séculos XIII e XIV. Braga: Diário do Minho, 2001, pp. 11-20.

Solenidades foram relançadas em 1950Solenidades foram relançadas em 1950

por Monsenhor Joaquim Fernandespor Monsenhor Joaquim Fernandes

A Procissão “Ecce Homo”, na Quinta-Feira Santa, em Vila

Nova de Famalicão, é das poucas cerimónias religiosas

quaresmais realizadas fora da cidade de Braga que con-

tam com a presença do Arcebispo Primaz ou um dos seus

Bispos Auxiliares. A tradição já dura há cerca de 60 anos

e deve-se a Monsenhor Joaquim Fernandes, atualmente

com 97 anos de idade – e de per-

feita saúde –, que foi arcipreste de

Vila Nova de Famalicão na segun-

da metade do século XX.

A história é contada pelo próprio

sacerdote famalicense no livro

“Joaquim Fernandes – Memórias

do Senhor Arcipreste”, lançado

em setembro do ano passado,

que agora está disponível em

Braga, nomeadamente na Livra-

ria “Diário do Minho”. Ao longo

das 132 páginas, Mons. Joaquim

Fernandes fala na primeira pessoa

sobre cinco grandes temas: a vida

da infância ao seminário; o arci-

prestado e a ação pastoral; a obra

social no arciprestado; a velha e a

nova igreja matriz de Vila Nova de

Famalicão; e as relações entre o

arciprestado e a sociedade civil. O

livro resulta, sem dúvida, num sin-

gular e valioso testemunho sobre

as últimas seis décadas da história

de Vila Nova de Famalicão, inteli-

gentemente amalgamadas entre

a comunidade religiosa e a socie-

dade civil.

A interação entre o poder civil e o

religioso é, aliás, uma das preocu-

pações centrais e uma das marcas

mais relevantes do pensamento e

da atividade de Monsenhor Joa-

quim Fernandes. Enquanto pároco

e arcipreste, jamais se fechou na

torre da igreja. Pelo contrário, in-

terpretou de forma sábia a missão

sacerdotal de levar o Evangelho à

rua, pois a palavra de Deus não é

coisa de se ter na sacristia, mas de

se levar às pessoas.

Ordenado em 1945, Joaquim Fer-

nandes assumiu funções na paró-

quia de Santo Adrião (Vila Nova

de Famalicão) em 6 de janeiro de

1946, como coadjutor, com plenos

poderes paroquiais concedidos

por Monsenhor Torres Carneiro,

que estava doente. Em 1950, o

padre Fernandes foi nomeado

pároco; e em 1954 assumiu as

funções de arcipreste, depois de

ter sido vice-arcipreste.

Duas décadas antes, as solenida-

des da Semana Santa tinham sido

suspensas na vila e o jovem arci-

preste Joaquim Fernandes tinha

o relançamento das celebrações

como um dos seus grandes obje-

tivos pastorais e religiosos. “Para

recomeçar teria de ser uma coisa

em grande. Isto é, eu teria de ter

em Famalicão a presença do se-

nhor Arcebispo Primaz, D. António

Bento Martins Júnior”, explica

Monsenhor Joaquim Fernandes

nas suas memórias, compiladas

e editadas em livro por Artur Sá

da Costa e Luís Paulo Rodrigues,

autores deste texto.

As “pressões”

do presidente Santos da Cunha

O Arcebispo Primaz “aceitou o

convite, dizendo que Vila Nova

de Famalicão era uma terra mui-

to ativa e também integrava a

diocese de Braga”, conta Monse-

nhor Joaquim Fernandes no livro

de memórias. Assim, D. Bento

Martins Júnior decidiu fazer-se

representar na Procissão de Braga.

Gerou-se, então, um “problema”:

António Santos da Cunha, que

era Presidente da Câmara Muni-

Semana Santa de FamalicãoSemana Santa de Famalicão

oferece pão-de-ló e amêndoasoferece pão-de-ló e amêndoas

ao Arcebispo Primazao Arcebispo Primaz

É uma tradição com 60 anos: o Arcebispo de Braga vai à Semana Santa de Vila Nova de

Famalicão e recebe como lembrança um pão-de-ló e amêndoas. Foi assim que Monsenhor

Joaquim Fernandes gratifi cou D. Bento Martins Júnior quando, em meados da década de

1950, foi prestigiar o relançamento das solenidades, como conta o sacerdote famalicense

no seu livro de memórias. A tradição manteve-se até hoje. Quem não gostou da ida do

Arcebispo a Famalicão foi o presidente da Câmara de Braga Santos da Cunha...

POR

ARTUR SÁ DA COSTA

E

LUÍS PAULO RODRIGUES

AUTORES DO LIVRO

“JOAQUIM FERNANDES – MEMÓRIAS DO SENHOR ARCIPRESTE”

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CulturaCultura VIIDiário do Minho QUARTA-FEIRA, 16 de abril de 2014

cipal bracarense, e a Comissão da

Semana Santa de Braga soube-

ram que o Arcebispo Primaz iria

à Semana Santa de Vila Nova de

Famalicão e tentaram, por todos

os meios, fazer com que isso não

acontecesse, “pressionando Dom

António a desistir”, como recorda

Monsenhor Joaquim Fernandes.

Mas o Arcebispo Primaz tinha

assumido o compromisso e não

iria voltar atrás.

Ainda assim, Santos da Cunha

chegou a ir a Vila Nova de Famali-

cão, de propósito, com represen-

tantes da Comissão da Semana

Santa de Braga, para falar com o

arcipreste Joaquim Fernandes, no

sentido de o arciprestado fama-

license desistir de convidar Dom

António Bento Martins Júnior para

presidir às cerimónias da Semana

Santa: “Vim cá porque temos um

problema para resolver. Então o

senhor acha bem que o Bispo de

Braga saia de Braga na Semana

Santa para vir a Famalicão?”, per-

guntou Santos da Cunha, em tom

grave. “Não há problema nenhum.

Ele não sai da diocese. As ovelhas

de Famalicão também são dele…”,

respondeu-lhe o jovem padre

Joaquim Fernandes!

Nessa conversa, Joaquim Fernan-

des relata que engrandeceu Vila

Nova de Famalicão, sem nunca

fazer referências a Braga. “[Santos

da Cunha] pensava que estava a

falar com algum subordinado da

Câmara de Braga e perguntou:

‘Mas o senhor o que pensa que é

Famalicão?’ Então, virei-me para ele

e disse: ‘Quer o senhor queira, quer

não, Vila Nova de Famalicão, pela

sua situação e pelas suas gentes,

é o eixo entre o Porto e Braga.’ E a

conversa acabou ali, com Santos da

Cunha a soltar um palavrão entre

os dentes”, conta Joaquim Fernan-

des nas suas memórias.

Pão-de-ló e amêndoas

para o Arcebispo Primaz

A verdade é que o Arcebispo

de Braga foi à Semana Santa de

Vila Nova de Famalicão e gostou

muito. “No fi m da procissão, pelas

11 horas da noite, as autoridades e

membros da Confraria [das San-

tas Chagas] foram acompanhá-lo

até junto do seu carro onde era

aguardado pelo grande homem

e industrial António Vieira de

Castro, para lhe colocar dentro do

carro um tradicional pão-de-ló e

amêndoas, gesto que calou fundo

no coração do Arcebispo.”

O curioso é que a tradição de Vila

Nova de Famalicão oferecer um

pão-de-ló e amêndoas ao Arce-

bispo de Braga continuou nos

anos seguintes, mesmo depois da

morte de António Vieira de Castro.

Ainda hoje, o fi lho Carlos Vieira

de Castro, proprietário da fábrica

Vieira de Castro, nunca se esque-

ce do pão-de-ló e das amêndoas

pascais para oferecer ao Arcebispo

Primaz. Para Monsenhor Joaquim

Fernandes, “o que é fundamen-

tal é que, hoje, as cerimónias da

Semana Santa de Vila Nova de

Famalicão são um momento alto,

já com tradição, sendo prestigiado

sempre com a presença do Arce-

bispo de Braga, D. Jorge Ortiga,

o que é uma honra para a Igreja

famalicense”.

Esta é uma entre tantas histórias

interessantes relatadas na primei-

ra pessoa no livro de memórias do

Monsenhor Joaquim Fernandes.

Um protagonista

do século XX famalicense

A rica experiência pastoral de

Monsenhor Joaquim Fernandes,

como pároco e arcipreste de Vila

Nova de Famalicão, ao longo de

quase toda segunda metade do

século XX – entre 1946 e 1998 –,

faz dele um protagonista in-

dispensável quando se trata de

contar a história da Igreja no seu

arciprestado, mas também de

percorrer os caminhos do desen-

volvimento da sua terra, como

território e como comunidade

humana.

Monsenhor Joaquim Fernandes

sempre disse que não iria escrever

o seu livro de memórias. Aliás, ele

preferia chamar-lhe “incidências

cívico-pastorais na passagem pela

paróquia e pelo arciprestado de

Vila Nova de Famalicão”. No fun-

do, após 97 anos de uma vida bem

preenchida e feliz, e que continua

preenchida todos os dias, graças

a uma saúde de ferro que importa

assinalar, tem plena consciência

do trabalho realizado como pastor

da Igreja famalicense e como pro-

tagonista privilegiado de acesso

ao poder político municipal e a

múltiplas instituições da socie-

dade civil, onde exerceu funções

que ele soube desempenhar com

inteligência e sagacidade, que

ainda hoje, extraordinariamente,

fazem parte da sua imagem pes-

soal. “Felizmente continuo a fazer

uma vida ativa, absolutamente

normal”, afi rma, orgulhoso, dando

graças a Deus por isso e revelan-

do-se um homem realizado.

“A Igreja é de todos”

Nos últimos anos, os autores

deste texto vislumbraram grande

interesse histórico e cultural num

projeto editorial, em livro, que

passasse ao papel as inúmeras

memórias de Monsenhor Joaquim

Fernandes. Pela sua importância

histórica, pelo longo período que

atravessam, pela multiplicidade

e variedade de situações vividas,

pelos relacionamentos sociais que

manteve, que lhe proporcionaram

um envolvimento e participação,

aos quais acresce a riqueza de

detalhes que a memória apurada

do grande pastor famalicense per-

mitia. Fomos ganhando interesse

e entusiasmo no projeto. Depois

foi preciso convencer Monsenhor

Joaquim Fernandes a falar con-

nosco – para que as memórias

que interessam para a história da

Igreja de Vila Nova de Famalicão e

do próprio Município não fi cas-

sem circunscritas ao espaço tran-

quilo e verdejante da sua quinta,

na Casa de Montalvão, freguesia

de Mouquim, onde vive os seus

dias, partilhados com o “Pego”, o

seu fi el amigo labrador, as suas

roseiras, que cuida e venera, e as

árvores de fruto.

Foi assim que nasceu o projeto

“Joaquim Fernandes – Memórias

do Senhor Arcipreste”. Escolhe-

mos esse título porque, em Vila

Nova de Famalicão, Monsenhor

Joaquim Fernandes será sem-

pre “o senhor arcipreste”, tantos

foram os anos que esteve à frente

da Igreja Católica famalicense. E

foram anos muito intensos e dife-

rentes – desde o apogeu e queda

do Estado Novo de António Oli-

veira Salazar – com o famalicense

Gonçalves Cerejeira a ocupar o car-

go de Cardeal-Patriarca de Lisboa

–, até à implantação da democracia

e do poder local democrático, em

25 de abril de 1974, e sua consolida-

ção nos anos seguintes.

Monsenhor Joaquim Fernandes

soube, como poucos, atravessar

todo esse tempo, deixando a ima-

gem de um pastor tolerante, líder

de uma Igreja aberta à participa-

ção de todos. “A Igreja é de todos”,

disse muitas vezes. Aliás, foi este o

pensamento que sempre apresen-

tou aos que tentaram desviá-lo do

caminho de autonomia e de inde-

pendência do poder religioso, que

cultivou, sem prejuízo do dever de

cooperação, que sempre procurou

face ao poder civil.

A “herança republicana”

Quando assumiu funções ecle-

siás ticas na paróquia de Vila Nova

de Famalicão, em 6 de janeiro

de 1946, alguns meses depois de

ter sido ordenado, o jovem padre

Joaquim Fernandes ainda conviveu

com a herança republicana, encar-

nada de forma contraditória por

Monsenhor Torres Carneiro, um

exemplo vivo dos que sofreram as

agruras do anticlericalismo radi-

cal republicano, em contraponto

àqueles, como o padre Manuel da

Costa Reis, capelão da Misericór-

dia de Famalicão, que saudaram

os ideais republicanos logo no dia

8 de outubro de 1910, assinando

o termo da sua proclamação nos

Paços do Concelho. Porém, em

1946 os tempos já eram outros.

A República dera lugar ao Estado

Novo de Oliveira Salazar, que vivia a

sua primeira grande crise, derivada

do fi m da II Guerra Mundial e da

derrota do nazi-fascismo europeu,

com o ditador português a tentar

a sobrevivência do regime, prome-

tendo eleições livres.

Em Vila Nova de Famalicão, Álvaro

Folhadela Marques tinha assumido

a presidência da Câmara Munici-

pal, em 1945, pelo que procurava a

consolidação do seu poder, apoia-

do na liderança política de José de

Oliveira, um prestigiado advogado

local, que ascendera ao cargo de

Governador Civil de Braga, no fi nal

da década de 1930, e que pôs termo

ao domínio político do seu rival

local, Francisco Alves, conservador

do Registo Predial, que a ditadura

militar, em 1926, nomeou para a

comissão administrativa da Câmara

Municipal, onde se manteve, suces-

sivamente, com a exceção de dois

pequenos períodos, até ao fi nal da

década de 1940.

Álvaro Marques tinha a seu lado

um grupo de jovens políticos,

entre os quais Abel Folhadela de

Macedo e José Casimiro da Silva,

e tentava concretizar um grande

plano de melhoramentos materiais

na urbe de Vila Nova de Famalicão,

ao tempo reduzida a meia dúzia

de ruas, cercadas de quintas, sem

infraestruturas de água e sanea-

mento, sem escolas, uma biblioteca

municipal moribunda, a Casa de

Camilo decadente, alvo de críticas e

do escárnio público.

É neste contexto social e político

que Monsenhor Joaquim Fernan-

des inicia a sua carreira sacerdotal

– coadjuvando Monsenhor Torres

Carneiro, já no fi nal da sua longa

carreira e com sérias debilidades

físicas –, encontrando uma paró-

quia sem residência própria e com

a igreja matriz em mau estado

de conservação e sem condições

para o exercício pastoral, sobre-

tudo para um jovem sacerdote,

com a cabeça repleta de sonhos e

projetos e com o espírito a fervi-

lhar, carente de ver resolvidas as

graves carências da igreja e dos

seus paroquianos.

Diplomático e conciliador

É pela reabilitação da velha igreja

matriz que o padre Joaquim

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VIII Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 16 de abril de 2014CulturaCultura

Arthur Cupertino de Miran-

da, discordando da cons-

trução do edifício da Fun-

dação Cupertino de Miran-

da, no emblemático campo

da feira, contestando de

igual modo a decisão do

presidente da Câmara pa-

dre Benjamim Salgado, pela

doação daquele terreno

público e pelo licenciamen-

to da obra. E, como já referi-

mos, bateu o pé ao poderoso

Santos da Cunha, presidente

da Câmara Municipal de

Braga, que veio desafi á-lo a

V. N. de Famalicão.

Uma obra multifacetada

Das suas memórias emer-

gem os traços da sua

personalidade, fazendo de

Joaquim Fernandes uma

fi gura moral, eclesiástica e

cívica modelar. A indepen-

dência de espírito, a fi rme-

za de caráter, a coragem na

defesa das suas ideias pe-

rante todos, a nobreza dos

seus sentimentos em prol

dos mais desfavorecidos, o

combate às desigualdades,

a sensibilidade pelas ques-

tões sociais – eis o recorte

do retrato, imperecível, da

fi gura pública que mais

tempo esteve em funções

no século XX famalicense.

No exercício do seu múnus

eclesiástico, foi um pastor

com capacidade de lide-

rança sobre um rebanho,

por vezes, tresmalhado. Um

líder que soube colocar-se

acima dos confl itos entre

as partes, que soube unir

e federar, exercendo uma

infl uência que saiu para

fora das portas da Igreja

e provocou mudanças na

educação, na habitação dos

famalicensess carenciados,

na cultura e até na organi-

zação do espaço público.

Em nossa opinião, só essa

capacidade de liderança

permitiu que mantivesse

responsabilidades pastorais

na Igreja famalicense por

mais de 50 anos, realizando

uma obra de traço vinca-

damente humanista com

dimensão pastoral, educa-

tiva, social e cultural. Foi a

abrangência e a intensida-

de dessa obra que motivou

a edição do livro “Joaquim

Fernandes – Memórias

do Senhor Arcipreste” –

um documento histórico

incontornável para qual-

quer pessoa interessada

compreen der o século XX

de Vila Nova de Famalicão.◗

V. N. de Famalicão, Abril de 2014

Fernandes começa, socor-

rendo-se, como fará sempre,

da generosidade e do apoio

dos paroquianos, contando

com a abertura de espírito

e a capacidade de diálogo,

servidos por uma fi na e

sagaz inteligência, que mo-

delavam, e modelam, a sua

personalidade. A tertúlia dos

domingos, de que fala, e que

animava a conversa dos ami-

gos após a missa do meio-

dia na sacristia, ou no átrio

da igreja, será um dos seus

suportes para custear as

despesas deste seu primeiro

empreendimento de reno-

vação e de requalifi cação

da velha matriz. Na linha da

frente dos apoios estava um

grupo da elite empresarial

e social local, de diferentes

sensibilidades, apoiante do

Estado Novo, que os dotes

diplomáticos do jovem

padre conciliavam.

O apoio que reuniu e o

círculo de amizades que

cultivou alargavam-se

a outros setores sociais,

penetrando mesmo nas

áreas da oposição demo-

crática. O relacionamento

e a amizade que manteve

com António Pinheiro Braga

– que seria presidente da

Comissão Administrativa da

Câmara Municipal nomea-

do após a revolução de 25

de abril de 1974 –, atestam

exemplarmente este seu

comportamento aberto.

Nas décadas de 1950 e

1960, Pinheiro Braga já era

um destacado membro da

oposição à ditadura, sem

que isso impedisse que, en-

tre ambos, se estabelecesse

uma relação de trabalho e

de entreajuda, designada-

mente na concretização do

plano social de construção

de habitações sociais para

famílias pobres, que Mon-

senhor Joaquim Fernandes

empreendeu com sucesso.

A amizade fi cou e, implan-

tada a democracia, com

Pinheiro Braga à frente da

comissão administrativa da

Câmara Municipal, a cola-

boração frutifi cou em múl-

tiplos projetos, com desta-

que para a transferência da

Capela de São Vicente, da

Estrada Nacional n.º 14 para

o Bairro de São Vicente,

onde hoje se encontra.

Visão humanista e solidária

Nas décadas de 1940 e 1950

viviam-se tempos de gran-

de carência e de enormes

difi culdades a todos os

níveis. Uma das chagas

visíveis desses tempos era

a pobreza, que atirava para

as ruas da vila “bandos” de

pedintes, que o presidente

Álvaro Marques procurava

acolher na Casa dos Pobres,

que dinamizava. Monse-

nhor Joaquim Fernandes

não fi cou indiferente a esta

realidade e deitou mão à

sua solução. A obra social

por ele promovida, vista

a partir de hoje, adquire

uma relevância inigualável,

evidenciando a nobreza

dos seus sentimentos e

projetando a capacidade

do pastor para interpretar e

eliminar os sinais da misé-

ria, ajudando a conquistar

o direito à habitação de

seres humanos marginali-

zados pela sociedade.

Como ele recorda, a sua

maior preocupação foi a

construção de casas para

famílias pobres, através das

Conferências de S. Vicente

de Paulo e do Patrimó-

nio dos Pobres, que cria e

dinamiza, socorrendo-se,

como sempre, de ajudas

solidárias, quer na doação

de terrenos, quer para a

elaboração de projetos e de

donativos para a sua cons-

trução. Acontece que estas

modestas habitações ainda

hoje perduram no território

do Município de Vila Nova

Famalicão, albergando

famílias e inscrevendo na

memória coletiva a visão

humanista e solidária do

pastor e do cidadão.

As obras na velha matriz

e as primeiras habitações

construídas para “pobres”

– era esta a designação

adotada para identifi car as

franjas mais carentes da

população – ocorreram na

década de 1950. Quis o aca-

so da história que o pároco

Joaquim Fernandes inicias-

se a sua carreira sacerdo-

tal quase em simultâneo

– apenas um ano depois

– com a carreira política

do presidente da Câmara

Álvaro Marques, o autarca

do regime do Estado Novo

que mais tempo esteve no

poder (12 anos consecu-

tivos), tendo sido o único

que conseguiu realizar um

programa mínimo de me-

lhoramentos materiais no

concelho, a ponto de nos

levar a esquecer o estado

de submissão e de total de-

pendência das autarquias

ao poder central. É deveras

interessante e curioso veri-

fi car que é justamente com

Álvaro Marques que Mon-

senhor Joaquim Fernan-

des vai evidenciar um dos

traços da sua personalidade

mais marcantes: a inde-

pendência de espírito e de

pensamento e a coragem

na defesa das suas ideias

e, consequentemente, da

afi rmação da autonomia

e da separação do poder

religioso face ao poder polí-

tico. Nada de pessoal existia

entre ambos, apenas eram

senhores das suas ideias e

defensores dos seus pró-

prios caminhos.

Na história local havia

maus prenúncios. Dois pa-

dres tinham sido afastados

recentemente da paróquia

de Santo Adrião alegada-

mente porque desafi aram

a autoridade do presidente

da Câmara. Os confl itos gi-

ravam, aparentemente, em

torno do cemitério munici-

pal do Moço Morto, muito

distante do centro da vila,

e gerido com mão de ferro

pelo autarca, difi cultando

a realização dos funerais. A

forma imaginativa e audaz

como Monsenhor Joaquim

Fernandes enfrentou a

questão derrotou Álvaro

Marques. Já antes, este sa-

cerdote lhe atirara um aviso

contundente: “Prefi ro ser

padre no Alto Minho a ser

um padre submisso em Fa-

malicão.” Acabou tudo em

bem. Fumaram o cachimbo

da paz e cada um cuidou de

realizar a sua missão.

Os presidentes da Câmara

vão mudar e suceder-se uns

aos outros, no Estado Novo,

como na Democracia, mas

o seu comportamento não

muda: sempre presente,

nunca negando a colabo-

ração, sem deixar perder a

sua independência. Como

ele afi rma com orgulho,

passou “incólume no 25 de

Abril”. Estas palavras são o

reconhecimento do exercí-

cio do seu múnus espiritual

em benefício de todos. Esta

também é uma das marcas

da sua personalidade e do

seu magistério: a capacida-

de de relacionamento com

todos, a defesa dos mais

humildes, sem olhar a cores

políticas ou à sua condição

social.

Nova igreja matriz:

o projeto mais grandioso

A extensão da Creche Mãe,

no lugar de Mões, que

concretiza, refl ete o seu

pensamento em defesa dos

mais desfavorecidos e em

favor da igualdade social. A

perseverança molda tam-

bém o perfi l psicológico do

padre Joaquim Fernandes,

uma característica que lhe

permite concretizar um

plano de melhoramentos

materiais e espirituais sem

precedentes na história da

Igreja famalicense. O pro-

jeto da nova matriz acom-

panha-o desde o início

do seu magistério. Porém,

só em fi nais da década de

1970 é que o município

disponibilizou os terrenos

necessários. A obra seria

inaugurada em 1993.

Para Monsenhor Joaquim

Fernandes o lugar da matriz

era, como foi, nos terrenos

envolventes dos Paços

do Concelho, em perfeita

simetria, na parte poente,

com aqueles, forman-

do duas grandes praças.

Um sonho próprio de um

visionário. Quando Álva-

ro Marques lhe pergunta,

apontando o mapa, por que

a queria ali, respondeu:

“Como os que quiseram ali

a Câmara e o Tribunal.”

Não deixa de ser curioso

constatar que a nova matriz

marcou passo e enfrentou

resistências em algumas

presidências da ditadura,

sendo José Carlos Mari-

nho o primeiro presidente

eleito, em 1976, quem

desbloqueou o processo,

expropriando os terrenos

para a sua construção. É o

projeto mais grandioso que

concretiza, sendo também

o que levou mais tempo

a materializar-se. Muitos

outros projetos foram

concretizados, tais como o

ressurgimento da Semana

Santa, que destacamos na

abertura deste texto. E an-

tes de se retirar, restaurou

a capela da Lapa, criando o

Museu de Arte Sacra.

Independência

de pensamento

Homem de cultura, aberto à

inovação, Monsenhor Joa-

quim Fernandes viajou pelo

mundo em busca de saber

e de experiência. Sempre

afi rmou que nunca quis ser

político, mas jamais abdi-

cou de expor o seu pensa-

mento e de se bater pelos

seus ideais e princípios.

A opinião que expressa

no livro de memórias

sobre D. An tónio Ferreira

Gomes – o Bispo do Porto

que desafi ou o Salazar –,

a simpatia que exprime por

ele, a aproximação que com

ele faz e a crítica que for-

mula ao Cardeal D. Manuel

Gonçalves Cerejeira, por

ter abandonado o Bispo do

Porto à sua sorte no exílio,

demarcam o campo onde

se posicionou, desnudando

um pensamento humanista

e crítico das posições assu-

midas pela Igreja portugue-

sa durante o Estado Novo.

A sua independência

de pensamento e ação

manifestam-se em todos

os momentos, mesmo com

aqueles em que a colabo-

ração foi mais próxima.

No tempo do presidente

Agostinho Fernandes, por

exemplo, não deixou de

expressar em carta o seu

desapontamento e oposi-

ção ao destino dos terrenos

envolventes da nova matriz.

Como já o tinha feito com

Mons. Joaquim Fernandes saudado por D. Eurico Dias Nogueira (atualmente, Arcebispo Emérito de Braga)