DIÁRIO DO MINHO Suplemento Cultura 16-04-2014 Braga
-
Upload
luis-paulo-rodrigues -
Category
Documents
-
view
215 -
download
1
description
Transcript of DIÁRIO DO MINHO Suplemento Cultura 16-04-2014 Braga
![Page 1: DIÁRIO DO MINHO Suplemento Cultura 16-04-2014 Braga](https://reader035.fdocumentos.tips/reader035/viewer/2022081817/568c3ad51a28ab0235a7cb04/html5/thumbnails/1.jpg)
VI Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 16 de abril de 2014CulturaCultura
3 José ARCHINTO (1652-1712), cardeal e arcebispo de Milão, muito viajado por quase toda a Europa para conhecer os costumes e índoles destes povos; depois veio para Roma, onde Inocêncio XI (1676- -1688) o fez vice-legado de Bolonha; seguidamente foi-lhe concedida a nunciatura de Florença, na Toscana (1686-89); com Alexandre VIII (1689-1691) obteve a de Veneza (1689-95) e com Inocêncio XII (1691-1700) a de Madrid [aqui em 1696, sucedendo a D. Frederico Caccia, arcebispo de Laodiceia (1693), e sucedendo-lhe em 1700 D. Francisco Aquaviva, arcebispo de Larissa], sendo sagrado arcebispo de Tessalónica. Tendo-se mostrado muito fi el à Santa Sé no desempenho das suas funções, Inocêncio XII nomeou-o arcebispo de Milão e cardeal-presbítero do título de Santa Prisca em, respetivamente, 18 de maio e 14 de dezembro de 1699, tendo sido adscrito à Congregação dos Bispos e Regulares, do Concílio, da Propaganda e outras. O zelo, a constância e a fi rmeza cativaram-lhe o amor e a estima de todos. Presente ao conclave de Clemente XI (1700-1721), convocado a 12 de outubro e composto de 64 cardeais, este despachou-o ao imperador Carlos VI na qualidade de legado a latere e convidou-o depois para assistir às bodas entre Filipe V de Espanha e a princesa de Sabóia, Maria Luísa Gabriela de Sabóia, em novembro de 1701. Por breve de 18 de agosto de 1701 Clemente XI ofereceu a esta a rosa de ouro, nomean-do legado a latere o arcebispo de Milão. Faleceu aqui, estando sepultado na sua catedral. Esta célebre e antiga família italiana descende dos reis lombardos (Enciclopedia Cattolica, Città del Vaticano, I, 1948, coll. 1815-1816; Enciclopedia Universal Ilustrada, XXIII, pp. 606-609 e XXXIII, p. 48; Gaetano Moroni ROMANO, Di-zionario di Erudizione storico-ecclesiastica da S. Pietro sino ai nostri giorni. Venezia: Dalla Tipografi a Emiliana, 1840, vols. 2, p. 276; 45, pp. 51 e 80; 59, p. 139; 68, p. 141; e 92, p. 556; Ludovico PASTOR, Historia de los Papas. Barcelona: Editorial Gili, S A., vols. XXXII, 1952, p. 524 e XXXIII, 1958, pp. 5 e 22).4 Note-se na sua biografi a a referência, por duas vezes, a comungar outras tantas vezes em Roma. Isto exige saber-se que até Pio X não havia comunhão frequente e, muito menos, comunhão de crianças.5 A tradição medieval fala da vinda da Virgem em carne mortal a Saragoça, junto do Ebro, para dar ao apóstolo Santiago o seu apoio maternal, simboliza-do na coluna ou pilar trazido pelos anjos (fuste de coluna cilíndrica, sem molduras nem adorno algum, de jaspe, de 1,67 m. de altura e 25 cm. de diâmetro); a difusão deste culto chegou também ao Brasil, onde há dois municípios desse nome: um no Estado da Paraíba e outro no de Alagoas (A. ORTIZ GARCÍA, “PILAR (Virgen del)” in Stefano de FIORES y Salvatore MEO (dir.), Nuevo Diccionario de Mariología. Madrid: Ediciones Paulinas, 1988, pp. 1615-1623).6 Vicente de LA FUENTE, Historia Eclesiástica de España, segunda edición corregida y aumentada. Madrid: Compañia de Impresores y Libreros del Reino, 1875, VI, p. 449: D. José Archinto, arcebispo de Tessalónica, núncio em 1696; D. Francisco Aquaviva, arcebispo de Larissa, núncio em 1700.7 Em todo caso há sempre a possibilidade de ter sido despachado legado a latere para qualquer missão espe-cial junto da corte de Madrid, no primeiro semestre de 1700, dada a delicada conjuntura, mas isto exigia um estudo especializado que não fi z nem conheço neste momento. Mas com outros intervenientes e não pelos referidos por Gaetano Moroni Romano. Ou dar-se o caso de se ter utilizado folha timbrada do tempo do anterior núncio, mas assinada pelo novo.8 Fr. António de Santa Maria JABOATAM, Novo Orbe Serafi co Brasilico, ou Chronica dos Frades Meno-res da Provincia do Brasil, Parte Segunda (inédita). Impressa por ordem do Instituto Histórico e Geo-grafi co Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiliano Gomes Ribeiro, 1859, vol. I, pp. 285-289; Orlando CAPITÃO, “Frei João de Loreto Franciscano Brasileiro, de Mar” in Brisa de Mar, nº 324, Janeiro de 2012, p. 5. Agradeço ao Dr. Manuel António Sampaio Azevedo a cedência do texto de Fr. António de Santa Maria Jaboatam, sem o qual nunca seria tão comple-ta esta biografi a.9 Franquelim Neiva Soares, Memórias de S. Bartolo-meu do Mar. Identifi cação geográfi ca da freguesia. Inquirições dos séculos XIII e XIV. Braga: Diário do Minho, 2001, pp. 11-20.
Solenidades foram relançadas em 1950Solenidades foram relançadas em 1950
por Monsenhor Joaquim Fernandespor Monsenhor Joaquim Fernandes
A Procissão “Ecce Homo”, na Quinta-Feira Santa, em Vila
Nova de Famalicão, é das poucas cerimónias religiosas
quaresmais realizadas fora da cidade de Braga que con-
tam com a presença do Arcebispo Primaz ou um dos seus
Bispos Auxiliares. A tradição já dura há cerca de 60 anos
e deve-se a Monsenhor Joaquim Fernandes, atualmente
com 97 anos de idade – e de per-
feita saúde –, que foi arcipreste de
Vila Nova de Famalicão na segun-
da metade do século XX.
A história é contada pelo próprio
sacerdote famalicense no livro
“Joaquim Fernandes – Memórias
do Senhor Arcipreste”, lançado
em setembro do ano passado,
que agora está disponível em
Braga, nomeadamente na Livra-
ria “Diário do Minho”. Ao longo
das 132 páginas, Mons. Joaquim
Fernandes fala na primeira pessoa
sobre cinco grandes temas: a vida
da infância ao seminário; o arci-
prestado e a ação pastoral; a obra
social no arciprestado; a velha e a
nova igreja matriz de Vila Nova de
Famalicão; e as relações entre o
arciprestado e a sociedade civil. O
livro resulta, sem dúvida, num sin-
gular e valioso testemunho sobre
as últimas seis décadas da história
de Vila Nova de Famalicão, inteli-
gentemente amalgamadas entre
a comunidade religiosa e a socie-
dade civil.
A interação entre o poder civil e o
religioso é, aliás, uma das preocu-
pações centrais e uma das marcas
mais relevantes do pensamento e
da atividade de Monsenhor Joa-
quim Fernandes. Enquanto pároco
e arcipreste, jamais se fechou na
torre da igreja. Pelo contrário, in-
terpretou de forma sábia a missão
sacerdotal de levar o Evangelho à
rua, pois a palavra de Deus não é
coisa de se ter na sacristia, mas de
se levar às pessoas.
Ordenado em 1945, Joaquim Fer-
nandes assumiu funções na paró-
quia de Santo Adrião (Vila Nova
de Famalicão) em 6 de janeiro de
1946, como coadjutor, com plenos
poderes paroquiais concedidos
por Monsenhor Torres Carneiro,
que estava doente. Em 1950, o
padre Fernandes foi nomeado
pároco; e em 1954 assumiu as
funções de arcipreste, depois de
ter sido vice-arcipreste.
Duas décadas antes, as solenida-
des da Semana Santa tinham sido
suspensas na vila e o jovem arci-
preste Joaquim Fernandes tinha
o relançamento das celebrações
como um dos seus grandes obje-
tivos pastorais e religiosos. “Para
recomeçar teria de ser uma coisa
em grande. Isto é, eu teria de ter
em Famalicão a presença do se-
nhor Arcebispo Primaz, D. António
Bento Martins Júnior”, explica
Monsenhor Joaquim Fernandes
nas suas memórias, compiladas
e editadas em livro por Artur Sá
da Costa e Luís Paulo Rodrigues,
autores deste texto.
As “pressões”
do presidente Santos da Cunha
O Arcebispo Primaz “aceitou o
convite, dizendo que Vila Nova
de Famalicão era uma terra mui-
to ativa e também integrava a
diocese de Braga”, conta Monse-
nhor Joaquim Fernandes no livro
de memórias. Assim, D. Bento
Martins Júnior decidiu fazer-se
representar na Procissão de Braga.
Gerou-se, então, um “problema”:
António Santos da Cunha, que
era Presidente da Câmara Muni-
Semana Santa de FamalicãoSemana Santa de Famalicão
oferece pão-de-ló e amêndoasoferece pão-de-ló e amêndoas
ao Arcebispo Primazao Arcebispo Primaz
É uma tradição com 60 anos: o Arcebispo de Braga vai à Semana Santa de Vila Nova de
Famalicão e recebe como lembrança um pão-de-ló e amêndoas. Foi assim que Monsenhor
Joaquim Fernandes gratifi cou D. Bento Martins Júnior quando, em meados da década de
1950, foi prestigiar o relançamento das solenidades, como conta o sacerdote famalicense
no seu livro de memórias. A tradição manteve-se até hoje. Quem não gostou da ida do
Arcebispo a Famalicão foi o presidente da Câmara de Braga Santos da Cunha...
POR
ARTUR SÁ DA COSTA
E
LUÍS PAULO RODRIGUES
AUTORES DO LIVRO
“JOAQUIM FERNANDES – MEMÓRIAS DO SENHOR ARCIPRESTE”
![Page 2: DIÁRIO DO MINHO Suplemento Cultura 16-04-2014 Braga](https://reader035.fdocumentos.tips/reader035/viewer/2022081817/568c3ad51a28ab0235a7cb04/html5/thumbnails/2.jpg)
CulturaCultura VIIDiário do Minho QUARTA-FEIRA, 16 de abril de 2014
cipal bracarense, e a Comissão da
Semana Santa de Braga soube-
ram que o Arcebispo Primaz iria
à Semana Santa de Vila Nova de
Famalicão e tentaram, por todos
os meios, fazer com que isso não
acontecesse, “pressionando Dom
António a desistir”, como recorda
Monsenhor Joaquim Fernandes.
Mas o Arcebispo Primaz tinha
assumido o compromisso e não
iria voltar atrás.
Ainda assim, Santos da Cunha
chegou a ir a Vila Nova de Famali-
cão, de propósito, com represen-
tantes da Comissão da Semana
Santa de Braga, para falar com o
arcipreste Joaquim Fernandes, no
sentido de o arciprestado fama-
license desistir de convidar Dom
António Bento Martins Júnior para
presidir às cerimónias da Semana
Santa: “Vim cá porque temos um
problema para resolver. Então o
senhor acha bem que o Bispo de
Braga saia de Braga na Semana
Santa para vir a Famalicão?”, per-
guntou Santos da Cunha, em tom
grave. “Não há problema nenhum.
Ele não sai da diocese. As ovelhas
de Famalicão também são dele…”,
respondeu-lhe o jovem padre
Joaquim Fernandes!
Nessa conversa, Joaquim Fernan-
des relata que engrandeceu Vila
Nova de Famalicão, sem nunca
fazer referências a Braga. “[Santos
da Cunha] pensava que estava a
falar com algum subordinado da
Câmara de Braga e perguntou:
‘Mas o senhor o que pensa que é
Famalicão?’ Então, virei-me para ele
e disse: ‘Quer o senhor queira, quer
não, Vila Nova de Famalicão, pela
sua situação e pelas suas gentes,
é o eixo entre o Porto e Braga.’ E a
conversa acabou ali, com Santos da
Cunha a soltar um palavrão entre
os dentes”, conta Joaquim Fernan-
des nas suas memórias.
Pão-de-ló e amêndoas
para o Arcebispo Primaz
A verdade é que o Arcebispo
de Braga foi à Semana Santa de
Vila Nova de Famalicão e gostou
muito. “No fi m da procissão, pelas
11 horas da noite, as autoridades e
membros da Confraria [das San-
tas Chagas] foram acompanhá-lo
até junto do seu carro onde era
aguardado pelo grande homem
e industrial António Vieira de
Castro, para lhe colocar dentro do
carro um tradicional pão-de-ló e
amêndoas, gesto que calou fundo
no coração do Arcebispo.”
O curioso é que a tradição de Vila
Nova de Famalicão oferecer um
pão-de-ló e amêndoas ao Arce-
bispo de Braga continuou nos
anos seguintes, mesmo depois da
morte de António Vieira de Castro.
Ainda hoje, o fi lho Carlos Vieira
de Castro, proprietário da fábrica
Vieira de Castro, nunca se esque-
ce do pão-de-ló e das amêndoas
pascais para oferecer ao Arcebispo
Primaz. Para Monsenhor Joaquim
Fernandes, “o que é fundamen-
tal é que, hoje, as cerimónias da
Semana Santa de Vila Nova de
Famalicão são um momento alto,
já com tradição, sendo prestigiado
sempre com a presença do Arce-
bispo de Braga, D. Jorge Ortiga,
o que é uma honra para a Igreja
famalicense”.
Esta é uma entre tantas histórias
interessantes relatadas na primei-
ra pessoa no livro de memórias do
Monsenhor Joaquim Fernandes.
Um protagonista
do século XX famalicense
A rica experiência pastoral de
Monsenhor Joaquim Fernandes,
como pároco e arcipreste de Vila
Nova de Famalicão, ao longo de
quase toda segunda metade do
século XX – entre 1946 e 1998 –,
faz dele um protagonista in-
dispensável quando se trata de
contar a história da Igreja no seu
arciprestado, mas também de
percorrer os caminhos do desen-
volvimento da sua terra, como
território e como comunidade
humana.
Monsenhor Joaquim Fernandes
sempre disse que não iria escrever
o seu livro de memórias. Aliás, ele
preferia chamar-lhe “incidências
cívico-pastorais na passagem pela
paróquia e pelo arciprestado de
Vila Nova de Famalicão”. No fun-
do, após 97 anos de uma vida bem
preenchida e feliz, e que continua
preenchida todos os dias, graças
a uma saúde de ferro que importa
assinalar, tem plena consciência
do trabalho realizado como pastor
da Igreja famalicense e como pro-
tagonista privilegiado de acesso
ao poder político municipal e a
múltiplas instituições da socie-
dade civil, onde exerceu funções
que ele soube desempenhar com
inteligência e sagacidade, que
ainda hoje, extraordinariamente,
fazem parte da sua imagem pes-
soal. “Felizmente continuo a fazer
uma vida ativa, absolutamente
normal”, afi rma, orgulhoso, dando
graças a Deus por isso e revelan-
do-se um homem realizado.
“A Igreja é de todos”
Nos últimos anos, os autores
deste texto vislumbraram grande
interesse histórico e cultural num
projeto editorial, em livro, que
passasse ao papel as inúmeras
memórias de Monsenhor Joaquim
Fernandes. Pela sua importância
histórica, pelo longo período que
atravessam, pela multiplicidade
e variedade de situações vividas,
pelos relacionamentos sociais que
manteve, que lhe proporcionaram
um envolvimento e participação,
aos quais acresce a riqueza de
detalhes que a memória apurada
do grande pastor famalicense per-
mitia. Fomos ganhando interesse
e entusiasmo no projeto. Depois
foi preciso convencer Monsenhor
Joaquim Fernandes a falar con-
nosco – para que as memórias
que interessam para a história da
Igreja de Vila Nova de Famalicão e
do próprio Município não fi cas-
sem circunscritas ao espaço tran-
quilo e verdejante da sua quinta,
na Casa de Montalvão, freguesia
de Mouquim, onde vive os seus
dias, partilhados com o “Pego”, o
seu fi el amigo labrador, as suas
roseiras, que cuida e venera, e as
árvores de fruto.
Foi assim que nasceu o projeto
“Joaquim Fernandes – Memórias
do Senhor Arcipreste”. Escolhe-
mos esse título porque, em Vila
Nova de Famalicão, Monsenhor
Joaquim Fernandes será sem-
pre “o senhor arcipreste”, tantos
foram os anos que esteve à frente
da Igreja Católica famalicense. E
foram anos muito intensos e dife-
rentes – desde o apogeu e queda
do Estado Novo de António Oli-
veira Salazar – com o famalicense
Gonçalves Cerejeira a ocupar o car-
go de Cardeal-Patriarca de Lisboa
–, até à implantação da democracia
e do poder local democrático, em
25 de abril de 1974, e sua consolida-
ção nos anos seguintes.
Monsenhor Joaquim Fernandes
soube, como poucos, atravessar
todo esse tempo, deixando a ima-
gem de um pastor tolerante, líder
de uma Igreja aberta à participa-
ção de todos. “A Igreja é de todos”,
disse muitas vezes. Aliás, foi este o
pensamento que sempre apresen-
tou aos que tentaram desviá-lo do
caminho de autonomia e de inde-
pendência do poder religioso, que
cultivou, sem prejuízo do dever de
cooperação, que sempre procurou
face ao poder civil.
A “herança republicana”
Quando assumiu funções ecle-
siás ticas na paróquia de Vila Nova
de Famalicão, em 6 de janeiro
de 1946, alguns meses depois de
ter sido ordenado, o jovem padre
Joaquim Fernandes ainda conviveu
com a herança republicana, encar-
nada de forma contraditória por
Monsenhor Torres Carneiro, um
exemplo vivo dos que sofreram as
agruras do anticlericalismo radi-
cal republicano, em contraponto
àqueles, como o padre Manuel da
Costa Reis, capelão da Misericór-
dia de Famalicão, que saudaram
os ideais republicanos logo no dia
8 de outubro de 1910, assinando
o termo da sua proclamação nos
Paços do Concelho. Porém, em
1946 os tempos já eram outros.
A República dera lugar ao Estado
Novo de Oliveira Salazar, que vivia a
sua primeira grande crise, derivada
do fi m da II Guerra Mundial e da
derrota do nazi-fascismo europeu,
com o ditador português a tentar
a sobrevivência do regime, prome-
tendo eleições livres.
Em Vila Nova de Famalicão, Álvaro
Folhadela Marques tinha assumido
a presidência da Câmara Munici-
pal, em 1945, pelo que procurava a
consolidação do seu poder, apoia-
do na liderança política de José de
Oliveira, um prestigiado advogado
local, que ascendera ao cargo de
Governador Civil de Braga, no fi nal
da década de 1930, e que pôs termo
ao domínio político do seu rival
local, Francisco Alves, conservador
do Registo Predial, que a ditadura
militar, em 1926, nomeou para a
comissão administrativa da Câmara
Municipal, onde se manteve, suces-
sivamente, com a exceção de dois
pequenos períodos, até ao fi nal da
década de 1940.
Álvaro Marques tinha a seu lado
um grupo de jovens políticos,
entre os quais Abel Folhadela de
Macedo e José Casimiro da Silva,
e tentava concretizar um grande
plano de melhoramentos materiais
na urbe de Vila Nova de Famalicão,
ao tempo reduzida a meia dúzia
de ruas, cercadas de quintas, sem
infraestruturas de água e sanea-
mento, sem escolas, uma biblioteca
municipal moribunda, a Casa de
Camilo decadente, alvo de críticas e
do escárnio público.
É neste contexto social e político
que Monsenhor Joaquim Fernan-
des inicia a sua carreira sacerdotal
– coadjuvando Monsenhor Torres
Carneiro, já no fi nal da sua longa
carreira e com sérias debilidades
físicas –, encontrando uma paró-
quia sem residência própria e com
a igreja matriz em mau estado
de conservação e sem condições
para o exercício pastoral, sobre-
tudo para um jovem sacerdote,
com a cabeça repleta de sonhos e
projetos e com o espírito a fervi-
lhar, carente de ver resolvidas as
graves carências da igreja e dos
seus paroquianos.
Diplomático e conciliador
É pela reabilitação da velha igreja
matriz que o padre Joaquim
![Page 3: DIÁRIO DO MINHO Suplemento Cultura 16-04-2014 Braga](https://reader035.fdocumentos.tips/reader035/viewer/2022081817/568c3ad51a28ab0235a7cb04/html5/thumbnails/3.jpg)
VIII Diário do MinhoQUARTA-FEIRA, 16 de abril de 2014CulturaCultura
Arthur Cupertino de Miran-
da, discordando da cons-
trução do edifício da Fun-
dação Cupertino de Miran-
da, no emblemático campo
da feira, contestando de
igual modo a decisão do
presidente da Câmara pa-
dre Benjamim Salgado, pela
doação daquele terreno
público e pelo licenciamen-
to da obra. E, como já referi-
mos, bateu o pé ao poderoso
Santos da Cunha, presidente
da Câmara Municipal de
Braga, que veio desafi á-lo a
V. N. de Famalicão.
Uma obra multifacetada
Das suas memórias emer-
gem os traços da sua
personalidade, fazendo de
Joaquim Fernandes uma
fi gura moral, eclesiástica e
cívica modelar. A indepen-
dência de espírito, a fi rme-
za de caráter, a coragem na
defesa das suas ideias pe-
rante todos, a nobreza dos
seus sentimentos em prol
dos mais desfavorecidos, o
combate às desigualdades,
a sensibilidade pelas ques-
tões sociais – eis o recorte
do retrato, imperecível, da
fi gura pública que mais
tempo esteve em funções
no século XX famalicense.
No exercício do seu múnus
eclesiástico, foi um pastor
com capacidade de lide-
rança sobre um rebanho,
por vezes, tresmalhado. Um
líder que soube colocar-se
acima dos confl itos entre
as partes, que soube unir
e federar, exercendo uma
infl uência que saiu para
fora das portas da Igreja
e provocou mudanças na
educação, na habitação dos
famalicensess carenciados,
na cultura e até na organi-
zação do espaço público.
Em nossa opinião, só essa
capacidade de liderança
permitiu que mantivesse
responsabilidades pastorais
na Igreja famalicense por
mais de 50 anos, realizando
uma obra de traço vinca-
damente humanista com
dimensão pastoral, educa-
tiva, social e cultural. Foi a
abrangência e a intensida-
de dessa obra que motivou
a edição do livro “Joaquim
Fernandes – Memórias
do Senhor Arcipreste” –
um documento histórico
incontornável para qual-
quer pessoa interessada
compreen der o século XX
de Vila Nova de Famalicão.◗
V. N. de Famalicão, Abril de 2014
Fernandes começa, socor-
rendo-se, como fará sempre,
da generosidade e do apoio
dos paroquianos, contando
com a abertura de espírito
e a capacidade de diálogo,
servidos por uma fi na e
sagaz inteligência, que mo-
delavam, e modelam, a sua
personalidade. A tertúlia dos
domingos, de que fala, e que
animava a conversa dos ami-
gos após a missa do meio-
dia na sacristia, ou no átrio
da igreja, será um dos seus
suportes para custear as
despesas deste seu primeiro
empreendimento de reno-
vação e de requalifi cação
da velha matriz. Na linha da
frente dos apoios estava um
grupo da elite empresarial
e social local, de diferentes
sensibilidades, apoiante do
Estado Novo, que os dotes
diplomáticos do jovem
padre conciliavam.
O apoio que reuniu e o
círculo de amizades que
cultivou alargavam-se
a outros setores sociais,
penetrando mesmo nas
áreas da oposição demo-
crática. O relacionamento
e a amizade que manteve
com António Pinheiro Braga
– que seria presidente da
Comissão Administrativa da
Câmara Municipal nomea-
do após a revolução de 25
de abril de 1974 –, atestam
exemplarmente este seu
comportamento aberto.
Nas décadas de 1950 e
1960, Pinheiro Braga já era
um destacado membro da
oposição à ditadura, sem
que isso impedisse que, en-
tre ambos, se estabelecesse
uma relação de trabalho e
de entreajuda, designada-
mente na concretização do
plano social de construção
de habitações sociais para
famílias pobres, que Mon-
senhor Joaquim Fernandes
empreendeu com sucesso.
A amizade fi cou e, implan-
tada a democracia, com
Pinheiro Braga à frente da
comissão administrativa da
Câmara Municipal, a cola-
boração frutifi cou em múl-
tiplos projetos, com desta-
que para a transferência da
Capela de São Vicente, da
Estrada Nacional n.º 14 para
o Bairro de São Vicente,
onde hoje se encontra.
Visão humanista e solidária
Nas décadas de 1940 e 1950
viviam-se tempos de gran-
de carência e de enormes
difi culdades a todos os
níveis. Uma das chagas
visíveis desses tempos era
a pobreza, que atirava para
as ruas da vila “bandos” de
pedintes, que o presidente
Álvaro Marques procurava
acolher na Casa dos Pobres,
que dinamizava. Monse-
nhor Joaquim Fernandes
não fi cou indiferente a esta
realidade e deitou mão à
sua solução. A obra social
por ele promovida, vista
a partir de hoje, adquire
uma relevância inigualável,
evidenciando a nobreza
dos seus sentimentos e
projetando a capacidade
do pastor para interpretar e
eliminar os sinais da misé-
ria, ajudando a conquistar
o direito à habitação de
seres humanos marginali-
zados pela sociedade.
Como ele recorda, a sua
maior preocupação foi a
construção de casas para
famílias pobres, através das
Conferências de S. Vicente
de Paulo e do Patrimó-
nio dos Pobres, que cria e
dinamiza, socorrendo-se,
como sempre, de ajudas
solidárias, quer na doação
de terrenos, quer para a
elaboração de projetos e de
donativos para a sua cons-
trução. Acontece que estas
modestas habitações ainda
hoje perduram no território
do Município de Vila Nova
Famalicão, albergando
famílias e inscrevendo na
memória coletiva a visão
humanista e solidária do
pastor e do cidadão.
As obras na velha matriz
e as primeiras habitações
construídas para “pobres”
– era esta a designação
adotada para identifi car as
franjas mais carentes da
população – ocorreram na
década de 1950. Quis o aca-
so da história que o pároco
Joaquim Fernandes inicias-
se a sua carreira sacerdo-
tal quase em simultâneo
– apenas um ano depois
– com a carreira política
do presidente da Câmara
Álvaro Marques, o autarca
do regime do Estado Novo
que mais tempo esteve no
poder (12 anos consecu-
tivos), tendo sido o único
que conseguiu realizar um
programa mínimo de me-
lhoramentos materiais no
concelho, a ponto de nos
levar a esquecer o estado
de submissão e de total de-
pendência das autarquias
ao poder central. É deveras
interessante e curioso veri-
fi car que é justamente com
Álvaro Marques que Mon-
senhor Joaquim Fernan-
des vai evidenciar um dos
traços da sua personalidade
mais marcantes: a inde-
pendência de espírito e de
pensamento e a coragem
na defesa das suas ideias
e, consequentemente, da
afi rmação da autonomia
e da separação do poder
religioso face ao poder polí-
tico. Nada de pessoal existia
entre ambos, apenas eram
senhores das suas ideias e
defensores dos seus pró-
prios caminhos.
Na história local havia
maus prenúncios. Dois pa-
dres tinham sido afastados
recentemente da paróquia
de Santo Adrião alegada-
mente porque desafi aram
a autoridade do presidente
da Câmara. Os confl itos gi-
ravam, aparentemente, em
torno do cemitério munici-
pal do Moço Morto, muito
distante do centro da vila,
e gerido com mão de ferro
pelo autarca, difi cultando
a realização dos funerais. A
forma imaginativa e audaz
como Monsenhor Joaquim
Fernandes enfrentou a
questão derrotou Álvaro
Marques. Já antes, este sa-
cerdote lhe atirara um aviso
contundente: “Prefi ro ser
padre no Alto Minho a ser
um padre submisso em Fa-
malicão.” Acabou tudo em
bem. Fumaram o cachimbo
da paz e cada um cuidou de
realizar a sua missão.
Os presidentes da Câmara
vão mudar e suceder-se uns
aos outros, no Estado Novo,
como na Democracia, mas
o seu comportamento não
muda: sempre presente,
nunca negando a colabo-
ração, sem deixar perder a
sua independência. Como
ele afi rma com orgulho,
passou “incólume no 25 de
Abril”. Estas palavras são o
reconhecimento do exercí-
cio do seu múnus espiritual
em benefício de todos. Esta
também é uma das marcas
da sua personalidade e do
seu magistério: a capacida-
de de relacionamento com
todos, a defesa dos mais
humildes, sem olhar a cores
políticas ou à sua condição
social.
Nova igreja matriz:
o projeto mais grandioso
A extensão da Creche Mãe,
no lugar de Mões, que
concretiza, refl ete o seu
pensamento em defesa dos
mais desfavorecidos e em
favor da igualdade social. A
perseverança molda tam-
bém o perfi l psicológico do
padre Joaquim Fernandes,
uma característica que lhe
permite concretizar um
plano de melhoramentos
materiais e espirituais sem
precedentes na história da
Igreja famalicense. O pro-
jeto da nova matriz acom-
panha-o desde o início
do seu magistério. Porém,
só em fi nais da década de
1970 é que o município
disponibilizou os terrenos
necessários. A obra seria
inaugurada em 1993.
Para Monsenhor Joaquim
Fernandes o lugar da matriz
era, como foi, nos terrenos
envolventes dos Paços
do Concelho, em perfeita
simetria, na parte poente,
com aqueles, forman-
do duas grandes praças.
Um sonho próprio de um
visionário. Quando Álva-
ro Marques lhe pergunta,
apontando o mapa, por que
a queria ali, respondeu:
“Como os que quiseram ali
a Câmara e o Tribunal.”
Não deixa de ser curioso
constatar que a nova matriz
marcou passo e enfrentou
resistências em algumas
presidências da ditadura,
sendo José Carlos Mari-
nho o primeiro presidente
eleito, em 1976, quem
desbloqueou o processo,
expropriando os terrenos
para a sua construção. É o
projeto mais grandioso que
concretiza, sendo também
o que levou mais tempo
a materializar-se. Muitos
outros projetos foram
concretizados, tais como o
ressurgimento da Semana
Santa, que destacamos na
abertura deste texto. E an-
tes de se retirar, restaurou
a capela da Lapa, criando o
Museu de Arte Sacra.
Independência
de pensamento
Homem de cultura, aberto à
inovação, Monsenhor Joa-
quim Fernandes viajou pelo
mundo em busca de saber
e de experiência. Sempre
afi rmou que nunca quis ser
político, mas jamais abdi-
cou de expor o seu pensa-
mento e de se bater pelos
seus ideais e princípios.
A opinião que expressa
no livro de memórias
sobre D. An tónio Ferreira
Gomes – o Bispo do Porto
que desafi ou o Salazar –,
a simpatia que exprime por
ele, a aproximação que com
ele faz e a crítica que for-
mula ao Cardeal D. Manuel
Gonçalves Cerejeira, por
ter abandonado o Bispo do
Porto à sua sorte no exílio,
demarcam o campo onde
se posicionou, desnudando
um pensamento humanista
e crítico das posições assu-
midas pela Igreja portugue-
sa durante o Estado Novo.
A sua independência
de pensamento e ação
manifestam-se em todos
os momentos, mesmo com
aqueles em que a colabo-
ração foi mais próxima.
No tempo do presidente
Agostinho Fernandes, por
exemplo, não deixou de
expressar em carta o seu
desapontamento e oposi-
ção ao destino dos terrenos
envolventes da nova matriz.
Como já o tinha feito com
Mons. Joaquim Fernandes saudado por D. Eurico Dias Nogueira (atualmente, Arcebispo Emérito de Braga)