Diálogos no mundo contemporâneo: por uma cultura de paz.

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Diálogos no mundo contemporâneo: por uma cultura de paz

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Pequeno ensaio de Antônio Campos, advogado, escritor, membro da Academia Pernambucanada de Letras e Curador da Fliporto.

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Diálogos no mundo contemporâneo:

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Imagens das capas editadas a partir de recorte digital do painel Guerra e Paz (1956), de Cândido Portinari.

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1. Uma breve introdução

As distâncias étnicas, culturais e religiosas vêm incitando grandes conflitos no mundo atual e trazem uma inquietação sobre os rumos da humanidade. A incapacidade de aceitar as diferenças coloca na ordem do dia a questão da intolerância entre populações, países e civilizações. A intransigência é tão alarmante que opiniões divergentes e formas de comporta-mentos distintos chegam a ser inadmissíveis.

A falta de atitude — ou as poucas ações — de governos e organismos internacionais para reduzir as distâncias entre povos e culturas coloca em jogo graves questões humanitárias e deixa a sensação de uma incompatibilidade permanente.

O tema da intolerância — e consequente necessidade de se estabelecer um diálogo profícuo entre as culturas — tem des-pertado o meu interesse enquanto cidadão do mundo, escritor, advogado e acadêmico. É inevitável que ele nos provoque uma reflexão sobre o papel que temos a cumprir nessa realidade.

Precisamos aceitar e compreender os outros em sua diver-sidade. Estou convencido, há muito, de que, para promover a paz, não podemos cultivar ideias distorcidas de outros povos. Precisamos, sim, compreender todos os credos, todas as artes, tradições, raças e formas de vida diferentes daquilo que somos nós. Devemos entender que todas as outras culturas, em vez de enfraquecer, fortalecem a nossa.

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A história do mundo é feita a partir do homem. Seja qual for sua religião, a cor de sua pele, seu sexo, suas preferências, seus gostos e seus costumes. A conclusão a que chego é de que precisamos contribuir para a construção de um mundo mais tolerante, com ações concretas ou com posicionamento firme contrário ao velho discurso civilizador dos países mais fortes e ricos, contra a ascensão da direita na Europa, o cresci-mento do terrorismo internacional, as discriminações raciais e culturais dentro e fora do Brasil, os golpes militares, os confli-tos étnicos no Oriente Médio, o fundamentalismo religioso, entre outras formas de intransigência.

2. Nós e os outros

“A justiça só continua a ser justiça numa sociedade em que não haja distinção entre próximos e distantes, mas na qual também haja a impossibilidade de ignorar os mais próximos.”

O pensamento do filósofo judeu-francês Emmanuel Levinas, cuja obra organizada na primeira metade do século 20 influen-ciou pensadores como Sartre e Merleau-Ponty, remete a uma discussão que continua atual e urgente, pois fustiga a natureza humana no que diz respeito à moral. Em sua elaboração existen-cialista, Levinas constata a tendência de o homem negligenciar a existência do seu semelhante quando, contraditoriamente, todos deveriam estar juntos na execução de uma missão comum.

As distorções da convivência provocam alterações morais como o preconceito, a exclusão, a opressão; são motivadas por razões sociais e econômicas, políticas e culturais ou mes-mo por questões pessoais. Se ampliarmos essa lente, observa-mos que o mesmo se dá em relação às nações. Somos teste-munhas de um tempo em que, em nome dos seus interesses, algumas sociedades ignoram a história, a tradição, a cultura, a religião, os costumes de outras, como se somente elas fossem dignas de apreço e respeito. E partem para a guerra, expressão máxima dessa conduta de intolerância. A força e o derrama-mento de sangue são usados como instrumento de persuasão ou como exemplo de supremacia.

Este é um tempo de permanente tensão. A história con-temporânea está cheia de exemplos de intolerância, o que é uma contradição em si, uma vez que somos singulares: seres e povos distintos, com traços específicos. Somos todos, homens e nações, diferentes por natureza, dotados de capacidades e ca-racterísticas diversas, aptidões e culturas que nos distinguem uns dos outros, enquanto homens e enquanto sociedade.

A superação da intolerância ao outro é um dos grandes desafios da humanidade neste início do século 21 e tende a se

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prolongar por muitos anos. É uma provocação cuja respos-ta irá depender do comportamento de cada indivíduo e dos diferentes povos. A réplica poderá ser uma solução se per-mitirmos que as diferenças se misturem, sem qualquer tipo de preconceito; ou será uma bomba de foguete se reagirmos com radicalismo, dividindo o mundo ainda mais.

Somos todos diferentes, sim. Mas, apesar dessas diferen-ças, podemos e devemos insistir em oportunidades iguais, em respeito mútuo, em convivência com as diferenças. Numa éti-ca que nos ilumine para uma convivência harmônica entre os sexos, as religiões, as raças.

Muitas dessas diferenças são promovidas pelas deficiências sociais, pelas questões ambientais ou, ainda, são desenvolvidas pelas crises que repercutem num dado momento histórico. E, nesses jogos, as pessoas nem sempre são protagonistas, mas espectadoras involuntárias. Não se justifica, portanto, a dis-criminação baseada em qualquer característica pessoal ou de um segmento, muito menos pelas visões distintas de mundo. O resultado tem sido um grande desequilíbrio, por falta de aceitação do outro. Pela desumanização do humano, gerando conflitos com relação a indivíduos ou grupos específicos que, muitas vezes, ultrapassam os limites da irracionalidade.

As diferenças são paradoxais. Não são nada mais que nós mesmos ao contrário. Entendo que aquilo que é visto como diferente também pode ser entendido como algo que acres-centa e potencializa porque é resultado da soma da experiên-cia humana na Terra, portanto, patrimônio cultural.

É a interculturalidade que nos coloca em pé de igualdade: “Um mais um é sempre mais que dois”, diz a frase da canção popular O Sal da Terra, dos compositores brasileiros Beto Guedes e Ronaldo Bastos. “Vamos precisar de todo mundo para banir do mundo a opressão, para construir a vida nova”, complementa a música.

3. Tolerância e intolerância

O tema Diálogos no Mundo Contemporâneo é muito grato a mim, que venho advogando a ideia de uma maior integração cultural do Brasil e dos demais países ibero-americanos com outras culturas.

É um tema de muita pertinência, levando-se em conta as novas realidades do mundo globalizado, em que as pessoas e as ideias se movimentam cada vez com mais velocidade. As fronteiras são ultrapassadas com facilidade, e as sociedades ca-minham para uma coexistência intercultural. A Internet glo-balizou a comunicação. E na era da comunicação não pode

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“Só a tolerância à diversidade cultural poderá forjar um novo mundo e compartilhar dele

reinar a incomunicabilidade sem ser dito o essencial. O mun-do contemporâneo não pode prescindir do diálogo.

A convivência com outras culturas é uma prática diária. Por isso mesmo, as sociedades marcadamente étnicas tendem a resistir a esse momento. Acham que essa tendência é perni-ciosa e se manifestam em nome de uma suposta preservação cultural e de uma improvável perda de identidade dos povos. Mas só a tolerância à diversidade cultural poderá forjar um novo mundo e compartilhar dele.

Dentro de minhas preocupações com o tema, tenho des-coberto que, felizmente, o debate sobre as formas de intole-rância tenha se tornado mais frequente nos últimos anos.

O filósofo e escritor francês Denis Diderot já tratara desse assunto quando escreveu a Enciclopédia, obra na qual se pressu-põe estar todo o conhecimento da humanidade produzido na França iluminista do século 18. Ele apresentou a palavra intole-rância como verbete do discurso da Ciência Política. É impor-tante, porque sua definição nos leva a refletir sobre a importân-cia semântica do termo. Para Diderot, a intolerância e o termo antagônico tolerância seriam a base a partir da qual as chamadas democracias ocidentais ou democracias contemporâneas iriam for-mular juridicamente seu funcionamento. Ou seja, a palavra já era entendida pelo viés do relacionamento e da política

É o direito que objetiva essa significação. O direito que surge como proposta de civilização e modelos de diálogo. Se a intolerância é essencialmente má e a tolerância é boa para todos, imediatamente se torna uma norma social, formalmen-te válida porque presumivelmente é boa para todos nós. Mas isso se assemelha à filosofia.

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Numa definição mais simples, intolerância pode ser com-preendida como incapacidade de aceitar pessoas e seus pontos de vista. Da mesma forma, o termo tolerância pode representar, por exemplo, uma discordância respeitosa, sem raiva ou ódio. Os dois termos, portanto, estão abertos a interpretações.

A intolerância pode ser manifestada desde as atitudes co-tidianas, com expressões raivosas ou de menosprezo, até as situações extremadas de violência. O preconceito é um dos motivadores da intolerância, que, por sua vez, leva à discrimi-nação e incitação ao ódio, a exemplo do que ocorre na ques-tão cultural, religiosa, política, étnica, sexista e homofóbica.

4. Diálogos culturais no mundo pós-moderno

A globalização econômica e financeira, aliada ao progres-so das tecnologias de comunicação e informação, tem tido impacto sobre as identidades culturais, colocando em risco também a diversidade cultural do mundo. As identidades na-cionais que têm nas próprias culturas as suas principais fontes, estão com uma tendência de fragmentação, como resultado da homogeneização cultural da pós-modernidade global. No-vas identidades híbridas começam a ganhar força.

Dialeticamente, algumas identidades estão sendo reforça-das pela resistência à globalização, num processo de tensão entre o local e o global, entre culturas e religiões.

O século 21 passou da diversidade como riqueza à in-terculturalidade como problema. As relações ou os diálogos entre culturas estão sendo alterados pelos deslocamentos de imigrantes, como também pela crescente interdependência entre as sociedades em razão do efeito da globalização e com fronteiras bem mais complexas do que as convencionais.

Los Angeles é a segunda cidade do mundo em número de mexicanos. Buenos Aires é a segunda em número de bolivia-nos. Calcula-se que a Europa tenha, em seu território, cerca de 20 milhões de muçulmanos. O que significa ser europeu num continente marcado não apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também por outras culturas e povos oriundos de migrações ou diásporas pós-coloniais?

No seu livro Choque de Civilizações, o professor e ensaís-ta americano Samuel P. Huntington previu que, depois da Guerra Fria, as disputas se dariam no terreno da cultura e da religião. As distinções primordiais entre as pessoas não seriam ideológicas nem econômicas, mas de natureza cultural. Real-mente, as pessoas estão cada vez mais se definindo com base no idioma, na religião, nos costumes, nos antepassados.

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Recentemente, a Suíça proibiu, em seu solo, novos mina-retes (cúpula de mesquitas). Vez por outra, entra na ordem do dia o debate sobre o uso da burca na França, pois cerca de 1,5 milhão de muçulmanos vive na região de Paris. A legisla-ção inglesa antiterrorismo tornou-se mais rigorosa ante o te-mor do radicalismo islâmico. Na Alemanha, cresce o medo de terrorismo num momento em que a comunidade muçulmana chega a mais de 2 milhões de habitantes.

Merece reflexão o pensamento do escritor Salman Rushdie ao defender seu romance Versos Satânicos, que causou polêmica e forte reação no fundamentalismo muçulmano por ser consi-derado ofensivo a Maomé. Rushdie apresenta uma defesa do hibridismo, que é uma das veredas desse novo caminho:

Aquelas pessoas que se opõem violentamente ao romance, hoje, são de opinião de que a mistura entre diferentes culturas inevitavelmente enfra-quecerá e destruirá sua própria cultura. Sou da opinião oposta. O livro Versos Satânicos ce-lebra o hibridismo, a impureza, a mistura e a transformação que vêm das novas e inesperadas combinações de seres humanos, culturas, ideias, políticas, filmes, músicas. O livro alegra-se com os cruzamentos e teme o absolutismo do puro. Mé-lange mistura um pouco disso e um pouco daqui-lo; é dessa forma que o novo entra no mundo. É a grande possibilidade que a migração de massa dá ao mundo, e eu tenho tentado abraçá-la. O livro Versos Satânicos é a favor da mudança-por-fusão, da mudança-por-reunião. É uma canção de amor para nossos cruzados eus (Rushdie, Imaginary Homelands, 1991, Granta Books).

Como melhorar o convívio ou o diálogo entre culturas e indivíduos — admitindo diferenças, sem discriminações — passou a ser uma das principais indagações do século 21.

O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura de etnias, deve ser motivo de estudos quanto à tolerância e ao convívio entre raças e culturas. Prescindimos de identidades porque temos todas elas. O homem novo está no Brasil. Esse traço marcante do Brasil foi objeto de estudos de alguns bra-sileiros, destacando-se o sociólogo Gilberto Freyre, autor de Casa-Grande & Senzala.

O crescimento recente da ação afirmativa do Brasil traz Gilberto Freyre de novo à baila. Minha proposta é de que se releia a obra dele para compreender melhor esse legado das relações raciais no Brasil, contribuindo para o debate da iden-tidade brasileira e, certamente, para um melhor entendimento das questões interculturais no mundo.

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Está no centro da vida contemporânea o desafio de “cons-truir pontes”, de se estabelecer diálogos construtivos de paz entre culturas que estão em choque real ou aparente, em so-ciedades cada vez mais interculturais do que multiculturais.

Esse foi o tema de minha palestra no ciclo de debates O Brasil e o Futuro, em Estocolmo, em março de 2010.

5. Insurgências e ressurgências

Certo dia, ainda jovem, levado pelo meu pai, o escritor Maximiano Campos, para conhecer Gilberto Freyre. Ele per-guntou o meu nome, e respondi: “Antônio Ricardo”. Ele pontuou: “O meu primeiro pseudônimo quando comecei a escrever no jornal Diario de Pernambuco”. Na ocasião, inda-guei ao mestre de Apipucos o que ele achava de mais inteli-gente na vida. Ele falou do paradoxo. Quem estivesse diante de uma questão paradoxal estava diante de um enigma. Gil-berto era um ser paradoxal, e os seus livros são paradoxais.

Contudo, nunca me esqueço do encontro em que ele reti-rou da gaveta um livro e me presenteou, com a seguinte dedi-catória: “Para Antônio Ricardo, meu primeiro pseudônimo, com a condição de ler. Gilberto Freyre”. Esse livro é Insurgên-cias e Ressurgências Atuais, que tinha acabado de ser lançado.

O sociólogo, antropólogo e escritor Gilberto Freyre pu-blicou essa obra em 1983. Nela seu arguto, captou, durante viagens que realizou por várias partes do mundo, naquela reta final do século 20, o cenário que se montava com a insurgên-cia da questão islâmica. Huntington, que escreveu em 1993 sobre o choque das civilizações dez anos depois, veio a confir-mar algumas das previsões de Freyre sobre as disputas que se dariam no terreno da cultura e da religião.

Nesse que foi um dos últimos livros de Freyre, ele aborda a realidade da época e questiona o mundo numa perspectiva de futuro. Refletindo e aprofundando-se sobre temas já tratados em sua vasta obra — como raça, religião e identidade brasileira —, o sociólogo forjou, com base em observações pessoais, um termo composto que veio a chamar de tempo tríbio. Ele resume os três tempos nessa expressão: a herança do passado, a reali-dade do momento presente e uma projeção do futuro.

Gilberto Freyre chamou a sua como uma época de insur-gências e ressurgências, daí o nome do livro. Foi uma época marcada pelas ideologias e formalizações científicas, quando se buscava interpretar as realidades nacionais. E ele entendeu que era preciso compreender cada civilização, cada unidade, na plenitude de suas dimensões e que era necessário obser-

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var sua natureza sem preconceitos, na inteireza da realidade existencial. Era preciso ver a plenitude. Os “ismos”, disse ele, falseavam as realidades nacionais, impondo os absolutismos e excluindo os relativismos.

Gilberto Freyre analisou a política internacional, na qual a Europa e os Estados Unidos se colocavam impositivamente como centros de decisões e de domínios. Mas, na busca de um equilíbrio frente a essas forças e para confrontá-las, já ressur-giam tradições como o islamismo; essa insurgência islâmica seria um desafio a um cristianismo em crise.

Da mesma forma, insurgiriam novos polos de desenvol-vimento, como a China, a Índia e a África do Sul, obrigando as potências tradicionais a uma interlocução mais ampla. E o Brasil seria modelo de futuro, por causa de sua natureza de tolerância. Nesse ponto, o sociólogo se convenceu da solidez de sua polêmica tese de que o Brasil tem facilidade para a con-vivência pacífica das misturas, porque é uma civilização mes-tiça. Nessa tese, ele diz que esta é uma civilização situada nos Trópicos, resultante da experiência de colonização portugue-sa, que, por sua vez, trouxe consigo um estilo de convivência de outras colonizações. E essa qualidade é que se permitia mesclar com as populações autóctones.

No livro, ele antecipa a ressurgência de culturas que pa-reciam adormecidas por terem sentido, ao longo da história, impactos “europeizantes” e “ianquizantes”. A partir de um momento, previa Gilberto Freyre, ocorreriam fortes mani-festações de seus valores culturais e políticos, como se reen-contrassem suas raízes. Principalmente as culturas de parte do Oriente e da África, gerando conflitos entre civilizações. Nesse ponto, advertiu para os riscos sobre o perigo de se des-prezar os opostos e para a necessidade de se deixar sempre abertas as portas para esses opostos.

“O Brasil seria modelo de futuro, por causa de sua natureza de tolerância

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Para facilitar a compreensão das realidades sociais, Gilber-to Freyre insistiu na necessidade de se adotar o “pluralismo metodológico”, que é nada mais que a interdisciplinaridade tão em moda. Ele dizia que, para se apreender os fenôme-nos socioantropológicos, não se pode deixar de considerar os conhecimentos de áreas que vão além dos científicos e tecno-lógicos. Um povo e uma nação não podem ser compreendi-dos somente pelos avanços da modernidade. E recomendou que uma leitura verdadeira e objetiva de uma civilização exige considerar também todas as formas do conhecimento huma-nístico e artístico em seus diversos gêneros e áreas.

6. Gilberto Freyre e a OTAN

A atualidade do pensamento freyriano foi comprovada, mais uma vez, com a realização da grande Cimeira da Organi-zação do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, ou Nato em in-glês), em Lisboa (Portugal), nos dias 19 e 20 de novembro de 2010. Chefes de Estado e de nações importantes como Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Rússia e Itália estiveram presentes, com suas delegações numerosas, na grande reunião, porque entenderam que era chegado o tempo de reflexão. Era preciso atualizar os objetivos e a missão da OTAN.

A cimeira anterior ocorrera em Washington, Estados Uni-dos, em 1999, e fazia-se necessário adaptar o papel da orga-nização às mudanças ocorridas no mundo. A insurgência do 11 de setembro de 2001, quando as torres gêmeas do World Trade Center foram derrubadas, “chacoalharam” a história contemporânea.

Os Estados Unidos deflagraram suas “guerras preventi-vas” e, para muitos analistas, revelaram a truculência da sua política externa. De fato: basta deter o olhar sobre o atual momento histórico para constatar que as intervenções milita-res da Organização do Tratado do Atlântico Norte, tendo os Estados Unidos como carro- chefe, são realizadas sob a justifi-cativa de conter o terrorismo internacional e o islã radical.

Na prática, as ações estão sempre direcionadas aos povos de origem islâmica, e as intervenções terminam por mostrar o quanto o Ocidente — notadamente os EUA e alguns paí-ses europeus — não tem interesse na realidade exterior e está despreparado para lidar com outros povos e outras culturas. Ponto para as teorias socioantropológicas de Gilberto Freyre. Os resultados são desastrosos, despertam antipatia e críticas de que essas ações têm uma finalidade mais econômica do que o real interesse de paz.

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É tanto que a intervenção político-militar da OTAN sem-pre recebeu severas críticas em países do Oriente Médio e do Leste Europeu, principalmente após o conceito estratégico da organização após a Guerra Fria. A ocupação dos territórios, dizem, atende aos desígnios dos Estados Unidos e da Europa com o velho discurso civilizador. Os povos dos Bálcãs, na década de 1990, teriam sido as primeiras vítimas desse novo processo. Mas as ofensivas militares têm um objetivo geoes-tratégico de expansão e domínio político-econômico do mun-do por parte das grandes potências ocidentais.

As tropas da OTAN já teriam alargado a área de influên-cia dessas potências no leste da Europa, no sul da Ásia e no Oriente Médio, onde foram estalecidas várias bases militares, forçando países a aderirem aos interesses imperialistas.

Durante os debates, foi reafirmado que o objetivo da Aliança é construir um mundo sem armas e que os países-membros não farão vista grossa às ameaças nucleares. Outro ponto foi a retirada progressiva das tropas do Afeganistão. Também se reafirmaram as parcerias e os papéis da ONU, União Europeia e Rússia.

Mas faltou à OTAN reconhecer que as estratégias de atu-ação da organização, em diversas intervenções, não levam em conta as complexidades socioantropológicas — variáveis so-bre as quais Freyre advertiu — que, se não forem considera-das, abrem precedente para se dizer que a Aliança é geratriz de políticas imperialistas.

“Os EUA deflagraram suas “guerras preventivas” e revelaram a truculência da sua política externa

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7. Uma pedra no meio do caminho do diálogo

No início deste 2011, o mundo islâmico entrou em ebuli-ção. Em países árabes do norte da África e do Oriente Médio, onde predominam a autocracia, a ira popular ficou insusten-tável. Numa situação rara, as multidões foram às ruas para manifestar sua revolta contra os governantes corruptos que querem se perpetuar no poder e não promovem as reformas democráticas prometidas. Além dos problemas políticos, as populações enfrentam desemprego em massa, inflação alta e precárias condições de vida. Mas o que os protestos tinham a ver com o Ocidente?

Os líderes laicos, inimigos dos movimentos religiosos e apoiados até recentemente pelos Estados Unidos, com a exce-ção do Irã e da Síria, em nome da luta antiterror e de suposta estabilidade na região, estão ameaçados de saírem do poder e alguns já caíram dele.

Os protestos populares, em alguns casos sangrentos, co-meçaram na Tunísia e depois se espalharam, como efeito do-minó, pelo Iêmen, pelo Egito, pelo Sudão, pela Argélia, pela Jordânia e, agora, pela Líbia. Os governos desses países são frequentemente apoiados pelo Ocidente, através de recursos financeiros, apoio técnico e armamentos. Em nome de uma política de combate ao terrorismo internacional, as potências ocidentais, dos Estados Unidos à Europa, garantem o apoio aos governantes de linha-dura, porque acham que os ditado-res são capazes de conter o radicalismo islâmico.

“Não é só em época de guerra que o Ocidente provoca estragos na civilização islâmica

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O Estado laico, em países com mais de 1.300 anos de domínio muçulmano, identificado com o neoliberalismo e a submissão aos interesses ocidentais, entrou em crise.

Ao usar a desculpa de que os terroristas são uma ameaça à segurança da humanidade, os Estados Unidos e a Europa sentem-se no direito de legitimar regimes que inspiram ódio e medo na população. Mas o Ocidente também não oferece políticas alternativas para a região, também não entende nem respeita a diversidade dos povos. Com isso, alguns setores da população temem a eliminação da cultura muçulmana.

Comenta-se que, por trás das cortinas desse teatro, o real motivo das ingerências são as companhias de petróleo e a estra-tégia de dominação geopolítica. O que fica óbvio é que as ações ocidentais nas sociedades árabes não ocorrem somente nos con-flitos bélicos formais, ou melhor, não é só em época de guerra que o Ocidente provoca estragos na civilização islâmica.

Com o governo autocrata fortalecido, quem sofre mesmo nesses países muçulmanos é o povo. A corrupção e a miséria alastraram-se, a insatisfação se generalizou, e o sistema político foi ao colapso. Como já ocorreu em outras ocasiões, é de se supor que o sentimento antiamericano e antieuropeizante no mundo árabe se dissemine e inquiete as numerosas pessoas que, passando por dificuldades, só encontram consolo no Islã.

E o resultado é que a ingerência ocidental, ao deflagrar re-ações, traz dificuldades para a busca de um modelo de convi-vência pacífica entre os povos de crenças distintas. Instala um clima de desconfiança, prejudicial ao diálogo. As pessoas cujo futuro é pautado pela identidade islâmica custarão a acreditar nos discursos vindos do Ocidente sugerindo o respeito pelas diversidades étnicas e religiosas e pelos direitos humanos.

8. Reações esperadas

O comportamento imperialista dos Estados Unidos e de países europeus no Oriente Médio — que muitas vezes ter-mina por deixar o povo à míngua, marginaliza as liberdades individuais, desrespeita sua cultura e religião — é muito pre-ocupante. Alexandre, o Grande, e Napoleão Bonaparte, no passado, procuravam em suas conquistas respeitar os deuses e a cultura dos conquistados. Esse comportamento imperia-lista americano não leva em conta que o centro da história é o homem. É ele, em sua dimensão total, quem faz girar a roda da história. As pessoas impedidas de se desenvolver, de se expressar e de produzir ainda assim lutam para cumprir o seu potencial. E o resultado é o conflito. Não é à toa que o Oriente Médio é um barril de pólvora.

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Sabemos que o islamismo é a religião de propagação mais acelerada do mundo atual. No Corão, livro sagrado dos muçul-manos, Deus manda que a ética conduza a vida. Os versículos, no entanto, são interpretados livremente e muitas vezes fora do contexto poético e religioso, o que os deixa sujeitos a de-turpações. Não raramente, as ideias distorcidas do islamismo geram conflitos. Assim, os fanáticos — que estão em todas as religiões, mas aqui no caso específico do islamismo — desvir-tuam os princípios religiosos e justificam as guerras santas. Os grupos terroristas percebem o islã com essa visão distorcida. E, argumento forte, dizem que agem em nome de Alá.

Nos países em turbulência, são poucas as saídas. Uma al-ternativa que ainda se mostra frágil é a da implantação das reformas democráticas. A outra deixa observadores interna-cionais de cabelos em pé, pois eles receiam o avanço dos mu-çulmanos fundamentalistas. Afinal, o islã é um refúgio não só do ponto de vista religioso, mas também um apoio aos que reagem à influência ocidental que permeia a cultura daqueles países. Um perigo: o fundamentalismo é exatamente a cor-rente que tem potencial de forjar fanáticos que interpretam de forma muito particular a fé muçulmana para justificar a violência e a Guerra Santa.

9. Islamofobia

Os muçulmanos imigrantes europeus muitas vezes são ví-timas de estereótipos, por serem confundidos com os extre-mistas islâmicos. É um processo estigmatizante e de exclusão social, pois o islamismo tem as mesmas raízes históricas do cristianismo e do judaísmo, que defendem valores fundamen-tais como a dignidade à vida humana.

Muçulmano é todo adepto do islamismo, o seguidor da religião de Maomé, que possui como livro sagrado o Alcorão. Redigido em árabe e composto com 114 capítulos, ou sura-tas, ele contém os códigos religioso, moral e político — que teriam sido a revelação do Deus único, Alá, a Maomé, através do Anjo Gabriel.

Os extremistas islâmicos ganharam notoriedade na década de 1980, na revolução iraniana, que instituiu o fundamenta-lismo no país. É uma minoria de fanáticos, que nutrem um ódio sectário pelo Ocidente e se responsabilizam pela onda de violência e atentados que estão sempre nos noticiários. São homens-bomba, suicidas que jogam aviões em prédios e que matam em nome de Alá. Esses radicais se ressentem da influ-ência ocidental nos costumes, nos hábitos de consumo, no modo de vida.

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Mas o islamismo é uma religião que reconhece o valor supremo dado à dignidade e à vida humana, a liberdade de pensamentos, o respeito pelos outros. A maioria dos muçul-manos condena os ataques suicidas por ser um atentado ao dom divino da vida. Acha que é um pecado extremo, uma ofensa contra Alá.

Concordo com a historiadora Maria Aparecida de Aqui-no, da Universidade de São Paulo, para quem o primeiro equívoco comum entre ocidentais e cristãos é considerar todo islâmico um extremista suicida e, por extensão, um terrorista em potencial. É um equívoco no qual está embutida a dis-criminação religiosa. Um preconceito disseminado principal-mente na Europa, justo o continente onde os muçulmanos, milenarmente, sempre estiveram presentes, dando importan-tes contribuições culturais. Hoje, há países que se preocupam com a influência da população islâmica em sua sociedade a longo prazo. Um conflito fantasioso, tendo em vista que en-contro vários exemplos nos quais os muçulmanos vivem com respeito às leis e tradições dos países para onde imigraram.

A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa reconhe-ce que há numerosos partidos políticos naquele continente in-centivando o ódio e medo ao Islã e usando o estereótipo negati-vo que iguala o Islã ao extremismo, o que lembra as leis racistas da década de 1930, quando, sob a influência do Terceiro Reich, os nazistas estabeleciam a supremacia de uma raça — no caso, a ariana — sobre as outras. Essa postura incita a intolerância reli-giosa, cultural e até mesmo o ódio contra os muçulmanos.

Não é raro encontrar muçulmanos que vivem em situação de exclusão na sociedade europeia. A Assembleia Parlamen-tar, no entanto, insiste que a discriminação contra os povos is-

“A islamofobia é a falta de conscientização e a percepção negativa que associa o Islã à violência

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lâmicos deve ser combatida, até porque está longe da verdade imaginar que basta ser muçulmano para ser contra os valores democráticos ou os direitos humanos.

Muitos governos europeus fazem vista grossa em relação ao preconceito contra os muçulmanos ou simplesmente não sabem lidar com a islamofobia, que nada mais é que a falta de conscientização e a percepção negativa que associa o Islã à violência. O perigoso, nesse caso, é que, com essa percepção distorcida, o extremismo muda de lado, com radicalismo con-tra as comunidades islâmicas na Europa. O confronto com os imigrantes muçulmanos é cada vez mais intenso. Diz Tariq Ali que “Há, hoje, na Europa e nos Estados Unidos, uma grande islamofobia que não é muito diferente do antissemi-tismo nos anos 1920 e 1930”.

Na prática, esse preconceito se dá através de políticas e prá-ticas adotadas por autoridades nacionais, regionais ou locais que discriminam os muçulmanos e legitimam restrições aos di-reitos à liberdade de religião e expressão. Um dos exemplos é a Suíça, com medidas de proibição geral da construção de mina-retes em mesquitas. Por outro lado, a Assembleia também es-timula as comunidades muçulmanas a abandonarem quaisquer interpretações tradicionais do Islã que neguem a igualdade de gêneros e limitem os direitos das mulheres tanto na família quanto na vida pública. É o caso do uso das burcas.

Existem esforços que devem ser elogiados, da Assembleia Parlamentar e de países-membros, por darem prioridade à promoção da inclusão social dos muçulmanos e de outras mi-norias religiosas, trabalhadores migrantes e novos cidadãos eu-ropeus. Mas essa integração, em muitos casos, ainda está longe do ideal e do real. Os governos nem sempre são proativos ao lidarem com desigualdades sociais, econômicas e políticas.

“O islamismo tem as mesmas raízes históricas do judaísmo

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Ao mesmo tempo, a Assembleia também estimula as pes-soas pertencentes a culturas diversas a não se isolarem nem tentarem desenvolver uma sociedade paralela no país para onde imigraram. Assim, convida ao diálogo os representan-tes das comunidades muçulmanas europeias para combaterem qualquer forma de extremismo sob o manto do Islã, o que é uma medida correta, pois espera-se que os muçulmanos sejam os primeiros a lamentar a ação de terroristas ou extremistas políticos que usam o Islã para a sua luta particular, desres-peitando a vida humana, que é um dos valores fundamentais consagrados no Islã.

Neste contexto, a Assembleia convida a Organização Is-lâmica Educacional Científica e Cultural (Isesco) e a Orga-nização Educacional, Cultural e Científica da Liga (Alecso) para trabalharem com o Conselho da Europa na luta contra a discriminação às discriminações religiosas, em especial ao isla-mismo. E, com esses organismos, também busca promover o respeito aos direitos humanos universais. Outra estratégia tem sido o apoio aos ideais da Aliança das Civilizações das Nações Unidas visando a criação de programas conjuntos de ação.

10. Aliança das civilizações

Nesse atual contexto histórico de desequilíbrio, intole-rância e conflitos, também são identificadas as vontades para formatação de um diálogo entre as diferenças e de tolerân-cia entre as culturas. Nesse aspecto, foi proposta, em 2004, a criação da Aliança de Civilizações, que se dispunha a reali-zar mobilizações em todo o mundo, visando a superação de preconceitos, percepções equivocadas e polarizações entre o mundo islâmico e o Ocidente. A ideia do presidente do go-verno da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero, copatroci-nada pelo primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdo-gan, é vista como uma forma de entendimento para prevenir conflitos entre os Estados e entre as diferentes comunidades de sociedades heterogêneas.

Um ano depois de sugerida, em 14 de julho de 2005, o então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, forma-lizou o lançamento da Aliança de Civilizações como iniciativa da ONU e criou o Grupo de Alto Nível, formado por vinte peritos de diversas regiões e culturas para formatar o conteú-do dessa aliança. Entre os relatores, havia personalidades da Turquia, da Espanha, do Brasil, do Irã, do Egito, da Tunísia, do Senegal, de Marrocos, da França, do Reino Unido, dos EUA, do Uruguai, da Índia e da China, entre outros.

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Eles entenderam que os países, as organizações internacio-nais e as entidades da sociedade civil deveriam atuar nas áreas de educação, juventude, migração e meios de comunicação, com vistas a apostar na construção de um mundo mais igualitário.

Esses focos de atuação, segundo os relatores da Aliança das Civilizações, são prerrogativas fundamentais e imprescin-díveis para a aproximação entre populações diversas, com o conhecimento recíproco das culturas, construindo uma cultu-ra de paz. Desde a criação da entidade, já foram organizados três fóruns mundiais. O primeiro, em Madri, em janeiro de 2008, aprovou o relatório do Grupo de Alto Nível.

O segundo ocorreu em Istambul, na Turquia, em abril de 2009, e reafirmou que a Aliança das Civilizações busca uma plataforma de diálogo e de intercâmbios e um espaço de com-promisso para a mobilização política e social.

O terceiro Fórum Mundial ocorreu no Rio, entre 27 e 29 de maio de 2010. Reuniu mais de 7 mil pessoas, entre chefes de governo de três continentes — América, Europa e África — e chanceleres de todo o mundo. Serviu para consolidar a necessidade da elaboração de planos nacionais e estratégias regionais em todo o mundo para lidar com a diversidade cul-tural. Uma estratégia mais que acertada, pois, além de superar os confrontos entre as culturas diversas, é necessário que cada país, cada região, cada cultura pratique, em seu próprio terri-tório, a tolerância e os direitos básicos de cidadania. E, se essas iniciativas localizadas forem positivas, poderão ser ampliadas para outras comunidades, outros países, outras culturas.

“Aliança de Civilizações se dispunha a realizar mobilizações em todo o mundo para superação de preconceitos

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O quarto Fórum Social Mundial, deste ano de 2011, no Catar, é mais uma porta que se abre para a confiança mútua, visando uma nova atmosfera à ordem política internacional. Em meu entender, a Aliança, que hoje inclui mais de noventa países e organismos internacionais, como a Comissão Euro-peia, a Liga Árabe e a UNESCO, estabelece — ou pelo menos tenta — um novo diálogo e uma convivência pacífica entre as diversas culturas e civilizações.

Muitos críticos podem ver a Aliança com ceticismo ou utopia. Acham que é muito difícil estabelecer um diálogo para superação de particularismos que funcionam como justificati-vas para conflitos e dominação. Mas prefiro a tentativa desse diálogo ao mutismo e à indiferença. Sei que é uma discussão complexa, mas ela funciona como uma demonstração de boa vontade para superar as desconfianças. Sem contar que é tam-bém o primeiro passo para o entendimento.

Pelo que observo, a Aliança de Civilizações é vista com simpatia no Brasil. Afinal, esta é uma nação pluricultural e multirracial. A diversidade está em suas raízes. Muito antes da ideia do líder espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, o Brasil já vinha se mobilizando no sentido de superar os pre-conceitos e estimular a tolerância étnica e religiosa. Evidente-mente que se faz necessária uma permanente vigilância, com medidas para erradicação dos preconceitos. Mas, na formação do povo brasileiro, está a presença dos mais variados grupos étnicos, com imigrantes oriundos das mais diversas culturas, o que facilita uma convivência que serve de exemplo.

11. Brasil

É nesse contexto, em que os conflitos estão no centro do mundo contemporâneo, que o Brasil pode surgir como pala-vra nova e ser paradigma para outros povos. Vem desse país tropical e moreno, no meu entender, o primeiro exemplo de interculturalidade, porque agrega povos de diferentes grupos étnicos e religiões distintas. Não tenho receio em afirmar que a maior contribuição do Brasil ao século 21 seria mostrar, baseado na sua própria identidade e formação, um modo de melhor convivência entre os povos.

O Brasil é essencialmente diversificado, seja no tipo hu-mano, na geografia, na cultura. Assim, personagens e paisa-gens — pode parecer clichê, mas este é insuperável — são uma “aquarela do Brasil”, como na música de Ary Barroso.

Rio e São Paulo são centros de modernidade e tecnologia, onde tudo acontece ao mesmo tempo. No frio dos pampas, o gaúcho descendente de europeu sorve o mate do seu chimar-

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rão montado em seu cavalo. Em Minas, a tradição da história e da fé é vivida no cotidiano. Na Amazônia, grupos indígenas ainda praticam seus rituais de festa e de guerra. A Bahia é ao mesmo tempo África e Brasil, com seu povo negro, colorido e alegre. O Pantanal Mato-grossense é o santuário das aves, dos peixes, répteis e mamíferos. Em Pernambuco, com suas praias acolhedoras que lembram o paraíso caribenho, o povo dança frevo e maracatu.

O desafio constante desse imenso país é exatamente explo-rar a diversidade cultural, preservando-a. A história do Brasil foi feita por vários encontros. O primeiro, do branco europeu do século 16 que aqui chegou e encontrou uma civilização ainda em organização tribal. Foi um choque entre os dois mundos, distintos em tudo. Os portugueses, mais bem apare-lhados para o domínio, prevaleceram, ocupando terras e nela introduzindo a agricultura para atender o mercado europeu.

Aos latifúndios onde começaram a plantar a cana-de-açúcar, foram trazidos os africanos em regime de escravidão. Nossos ancestrais negros foram sequestrados da África para o Brasil. Foram homens e mulheres de várias etnias que trouxe-ram consigo suas tradições e seus costumes, influenciando e sendo influenciados. Nas origens da nossa sociedade colonial, o País ficou marcado pela discriminação e pela exclusão de índios e negros.

Esses encontros, sem nos aprofundar nas especificidades da violência que representou o processo de colonização, ter-minaram criando condições para a formação de um povo (de uma civilização brasileira) que se diversificava e ficava mais colorido quando, séculos depois, outros povos — italianos,

“Ao acolher essa diversidade o Brasil já estava no futuro sem o saber ou pretender

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alemães, judeus, espanhóis, holandeses, árabes, japoneses, chineses — migraram para o Brasil pelas mais diversas razões e tanto incorporaram hábitos e costumes como também in-fluenciaram a sociedade com suas atitudes e seus valores.

Ao acolher essa diversidade de povos, o Brasil já estava no futuro, sem o saber ou pretender. Era intercultural antes de exis-tir uma definição de interculturalidade. Por isso, tem tudo para ser um exemplo de tolerância. O exemplo brasileiro, enquanto sociedade fragmentada por diferentes grupos sociais, é uma ma-nifestação pós-moderna no sentido de oferecer uma perspectiva mais ampla aos grupos étnicos e de abraçar a multiplicidade.

Hoje não somos brancos, índios, negros nem amarelos. Não temos apenas uma tonalidade, pois temos todas elas. Somos mulatos, cafuzos, pardos e mamelucos. Incorporamos todos os matizes e diferenças ao mesmo tempo, pois trazemos no corpo o sangue dos nossos antepassados, dos nossos ancestrais.

Em 1988, foi promulgada a Constituição Federal, uma das legislações mais avançadas do mundo, e através dela so-mos portadores de direitos. Está escrito no artigo primeiro que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Está implícito o reconhecimento da dignidade humana através das numerosas etnias que formam o povo bra-sileiro, como também todos os credos que elas professam.

12. O Brasil e o preconceito

Pode-se dizer que não existe um Brasil, mas os brasis. Uma sociedade plural, com diferentes manifestações e populações que têm ideias próprias do mundo. E, no entanto, também é um só país. Mas é ilusório negar a existência dos preconceitos numa terra onde o diverso predomina.

A nossa atual luta é contra todos os tipos de discrimina-ção. O preconceito e a intolerância se apresentam nas mais variadas formas. Têm muitas faces. No País, por exemplo, predominam o crime organizado e a impunidade, que criam as exclusões. Também sabemos que o Brasil enfrenta uma dis-criminação social tão danosa quanto a racial.

Nós todos somos responsáveis por essa situação inconve-niente. Não podemos deixar este país perder o papel de pro-tagonista da história da tolerância. Pela nossa formação e pela nossa identidade, pelas lutas que travamos desde a colonização — a escravidão, as ditaduras — não podemos perder a chance de dar ao mundo o exemplo de democracia plena, que é compro-metida quando os movimentos separatistas pregam o indepen-

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dentismo de certos territórios brasileiros. Houve recentemente uma campanha de inspiração nazista que tinha até um lema: “O Sul é meu país”. A ideia foi disseminada nos três estados daquela região, com algumas extensões em São Paulo. A autoria era de uma certa organização clandestina chamada Odessa, que não aceitaria conviver num país com os povos do Nordeste.

Um dos principais redutos é a cidade de Santa Cruz do Sul (RS), centro de colonização germânica e coração da lavoura fumageira do Brasil. Os separatistas, no entanto, são uma mi-noria inexpressiva na população dos três estados do sul. Mes-mo assim, esse comportamento é inaceitável num país onde a busca da harmonia deveria ser uma característica do povo, que se reconhece no direito à livre existência, na identidade cultural, com saberes e conhecimentos os mais diversos.

Na história recente, enfrentamos um longo e doloroso pe-ríodo de intolerância política no Brasil, a Ditadura Militar, que durou 21 anos, iniciado em 1964. Foi uma fase de persegui-ções, prisões, tortura, morte e restrições dos direitos políticos. Em 1985, veio a abertura, mas ainda assim não podemos falar em democracia plena. Se superamos a intolerância política, te-mos outras nódoas, como a miséria, a fome e a corrupção, que violentam a nossa cidadania e segregam muitos brasileiros.

Nessa situação de exclusão social, historicamente negros e índios sempre estiveram em posição desigual. Foram socialmen-te marginalizados. A grande parcela da população pobre é for-mada por afrodescendentes, que vivem em situação precária.

Têm sido frequentes as notícias de intolerância religiosa em relação aos terreiros das religiões de matriz afro-brasileira em diversas cidades e capitais. Os terreiros de candomblé, tambor de mina, umbanda, têm recebido ataques das religiões neopentecostais, que insistem em desqualificar a importância desses credos na cultura brasileira.

“Sabemos que o Brasil enfrenta uma discriminação social tão danosa quanto a racial

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Fatos que são duplamente inaceitáveis. Primeiro porque a argumentação não corresponde à realidade e pressupõe a desvalorização da cultura afro-brasileira. Em segundo lugar, porque não se pode concretizar o ideal de democracia no Bra-sil sem os princípios de liberdade e sem a igualdade. Entre elas, a racial e de credo religioso.

Para mim, é indiscutível que a religião é um fenômeno cultural que deve ser respeitado e tolerado. Dentro desse pres-suposto, faz-se necessário construir liberdades reais para a po-pulação negra e mestiça em todos os níveis da vida. Por isso, é fundamental o papel das instituições e dos gestores do Estado brasileiro na imperiosa missão de observar as fundações de formação da cultura brasileira, visando a construção de um mundo novo e melhor.

Não podemos aceitar que haja violência contra os homos-sexuais e que as legislações previdenciárias façam distinção de cidadania a partir da condição sexual; que as mulheres — tão produtivas e inteligentes quanto os homens — sejam discrimi-nadas em funções e cargos ou que recebam salários menores. Ou ainda que sejam abusadas, violentadas e vítimas de violên-cia porque seus companheiros se julgam seus proprietários.

Enfim, são numerosos os exemplos. Sei que é difícil pen-sar em tolerância a todo custo quando a sociedade ainda é tão cheia de contradições e de graves problemas de subdesenvol-vimento. Mas é preciso corrigir erros e injustiças praticados contra os negros e índios, suas religiões e organizações sociais. Contra as mulheres, os homossexuais, os pobres, os nordesti-nos. Hoje, há um crescimento de militância de grupos sociais que se articulam nesse sentido, dando inegáveis contribuições para reverter essa realidade, mas a estrada é longa.

O fato é que deveríamos ter uma tolerância forjada na nossa própria história, uma vez que somos misturados na formação social, conforme ressaltam estudiosos do porte do antropólogo e escritor Darcy Ribeiro, conhecido pelas suas investigações com índios brasileiros, e pelo sociólogo, antro-pólogo, historiador e escritor Gilberto Freyre.

13. Freyre e a modernidade

É inevitável falar do caso brasileiro e referenciar a obra do sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, que forneceu con-teúdo para entender a identidade brasileira, ao mesmo tempo que valorizou pela primeira vez índios e negros na nossa iden-tidade e formação cultural.

Autor do conceito da democracia racial brasileira, Gilberto Freyre é contestado por outros cientistas sociais. Essa democra-

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cia a que ele se refere definiria o nível de tolerância nas relações raciais no Brasil. Freyre entendia que nosso país não tinha o mesmo nível de discriminação visto, à época, em outros países como os Estados Unidos e a África do Sul, durante o apartheid.

Mas é fato que negros e brancos, no Brasil, em várias di-mensões, sempre estiveram em posições desiguais em relação à oportunidade. Além disso, o negro e outras minorias tam-bém foram socialmente marginalizados. Independentemente da polêmica levantada sobre a democracia racial, é indiscutí-vel a importância da obra de Freyre. E concordo com sua assertiva de que “a cultura brasileira tem uma singularidade que a engrandece: a miscigenação não é um peso, mas uma virtude”. Freyre mostrou que é dela, da multiplicidade e da aceitação das contradições e coerências, que nasce essa mo-dernidade brasileira.

Da mesma forma, ele comprova que a facilidade de se vi-sualizar o passado histórico como uma construção coletiva é determinante para o entendimento da identidade nacional. Nesse ponto, parece paradoxal constatar que o discurso da modernidade se forma exatamente sobre o entendimento do passado. Tradição e memória não se chocam com novidade e modernidade. Pelo contrário: é na busca de semelhanças entre o passado e o presente que a cultura sobrevive.

E aqui está um dos pontos-chave para se compreender a ge-nialidade de Gilberto Freyre, brasileiro à frente de seu tempo. Não é à toa que, em 1948, quando a ONU, em consequência dos holocaustos judeus da 2ª Guerra, estava preocupada com as questões raciais, convidou sete cientistas sociais, entre eles o bra-sileiro Gilberto Freyre, para discutir e apresentar alternativas para as relações raciais no mundo. O evento, realizado pela Unesco em Paris, ficou conhecido como o Encontro dos Sete Sábios.

Freyre se assumia como um homem de paradoxos. Ele era moderno ao seu modo tradicional e olhava, com olhar ambí-

“é na busca de semelhanças entre o passado e o presente que a cultura sobrevive

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guo, a modernidade. Ambíguo porque não a condenava nem a exaltava. Apenas a aceitava. Sendo ambíguo, assim ele também enxergava a nossa identidade cultural. Por isso, na totalidade de sua vasta obra, o passado histórico se comunica com o presen-te, que, por sua vez, serve de referência para jogar luzes no fu-turo. Ele teve o discernimento de que a modernidade brasileira dialogava com o antigo e assim forjou algumas teorias.

É importante ressaltar que, quando Gilberto Freyre forjou a tese da democracia racial, o Brasil estava em busca de uma identidade de povo e de nação. À época — meados da déca-da de 1930 do século passado —, os estudiosos lamentavam porque somos descendentes do europeu degredado, a escória da sociedade portuguesa da época, que aqui se misturou com os indígenas, também malvistos por eles.

A baixa autoestima daqueles teóricos ou a pouca compre-ensão dos fatos conduziam-nos a dizer que o Brasil veio a in-corporar depois o africano, que recebia referências pouco abo-nadoras. Essa doutrina da inferioridade biológica, que reduzia a nossa estima, era defendida por pensadores e antropólogos.

Havia como um desconforto com a nossa mestiçagem. Al-guns estudiosos entendiam que estávamos condenados ao fra-casso por sermos mestiços ou que, ao longo do tempo, iríamos passar por uma espécie de embranquecimento, conforme diziam alguns autores. Freyre veio para desmentir e envelhecer todos esses mitos, dizendo que a civilização brasileira foi se erguendo e se firmando com essa mesma gente “tropicalmente morena”.

Nas trevas das ciências sociais, lançou Casa-Grande & Sen-zala, em 1933. Ao desmontar os mitos até então aceitos, ele valorizou o índio e o negro na formação da identidade brasilei-ra. Redescobriu o português e transformou em orgulho o que antes era tido, erroneamente, como vergonha. Os três compo-nentes étnicos passaram a ser vistos como o alicerce em que se fundamenta a sociedade brasileira, artífice de nossa civilização.

A presença africana, índia e portuguesa estava agora não apenas no sangue, mas também na cor da nossa pele, na lín-gua, no vocabulário, na cultura em geral, nas expressões es-téticas, na psicologia. Assim, nascia a identidade brasileira, distinta de outros povos.

14. Gilberto Freyre e o Oriente que tornou o Brasil possível

Em 1936, Gilberto Freyre publicou Sobrados e Mucambos, que é a continuação de Casa-Grande & Senzala e talvez sua verdadeira obra-prima. É um belo estudo do embate entre o Ocidente e o Oriente, no Brasil, durante o século 19, em que

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defende a ideia de que a cultura brasileira havia sido gerada a partir de uma matriz oriental de valores, hábitos e conceitos sobre o mundo.

Desde muito cedo, a ideia de uma orientalidade e de um amouriscamento do Brasil aparecia na obra de Gilberto Freyre. A impressão de que o Brasil era, de alguma forma, um prolongamento da cultura Oriental nos Trópicos.

Na perspectiva de Gilberto Freyre, as conexões entre o Brasil, no período de sua formação, e o Oriente árabe ou asi-ático iam muito além de aspectos arquitetônicos, tendo sido determinantes na conformação da sensibilidade brasileira, em sua visão do mundo e seus valores culturais mais marcantes.

O Oriente tornou o Brasil possível, no dizer de Freyre. Foram os saberes orientais que permitiram a construção da “maior civilização moderna dos Trópicos”. Freyre estava va-lorizando o Oriente como matriz cultural formadora do Bra-sil em contraposição à matriz europeia.

Nesse sentido, ele destacava o papel exercido pelos na-vegadores e conquistadores portugueses como intermediá-rios entre as duas metades do mundo, o ocidental e o orien-tal: “Foram, com efeito, os portugueses que trouxeram, do Oriente à Europa, o leque, a porcelana de mesa, as colchas da China e da Índia, os aparelhos de chá e parece que também o chapéu-de-sol” (Casa-Grande & Senzala, p. 275).

Deve-se, aliás, registrar que, na maior parte das vezes que Gilberto Freyre falava em Oriente, estava, na verdade, se re-ferindo tanto à África, muçulmana ou não, quanto à Ásia. No seu discurso, o Oriente é uma ampla matriz cultural que abriga todos os valores não europeus e, inclusive, antieuro-peus. Vejamos:

“Para Freyre o Brasil era, de alguma forma, um prolongamento da cultura Oriental nos Trópicos

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A verdade é que o Oriente chegou a dar con-siderável substância, e não apenas algum dos seus brilhos mais vistosos de cor, à cultu-ra que aqui se formou e à paisagem que aqui se compôs dentro de condições predominan-tes patriarcais de convivência humana [...] Modos de viver, de trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar (Sobrados e Mucambos, p. 424).

Sobrados e Mucambos apresenta o Brasil do século 19 como um capítulo relevante da história da luta entre Ocidente e Oriente. O estopim da luta teria sido a chegada da corte por-tuguesa ao Brasil em 1808: “A colônia portuguesa na Améri-ca adquiria qualidade de vida tão exóticas — do ponto de vista europeu — que o século 19, renovando o contato do Brasil com a Europa [...] teve para o nosso país o caráter de uma europeização” (Sobrados e Mucambos, p. 309). Junto com a Família Real, vieram produtos ingleses e modismos franceses. Estes chegavam cercados de tal prestígio e poder de sedução que tornavam difícil a resistência às “vozes de sereia do Oci-dente” (Sobrados e Mucambos, p. 453).

O século 19 representou, assim, no Brasil, o fim do “pri-mado ibérico de cultura”, que nunca foi “exclusivamente europeu, mas, em grande porte, impregnado de influências mouras, árabes, israelitas, maometanas”.

Por essa via, o Brasil se afastava de sua origem e se entre-gava ao processo de descaracterização, uma frágil tentativa de transformar-se numa Europa tropical. O mundo atual é mul-tipolar, e o eixo do poder econômico volta-se novamente para o Oriente do qual temos influência decisiva em nossa forma-ção. Vejamos a força da China e da Índia, na atualidade.

As relações, desavenças e semelhanças entre o Oriente e o Ocidente, ou melhor, entre os Orientes e os Ocidentes, são temas de grande relevo. Por essa necessidade de compreensão de nossas raízes, de aprofundar os diálogos entre culturas e países no mundo contemporâneo, é que traremos, na Festa Li-terária Internacional de Pernambuco – Fliporto, em sua 7ª edi-ção, em novembro de 2011, o tema Uma Viagem aos Orientes, para discutirmos tal questão e mostrarmos a importante influ-ência oriental na formação do Brasil. O grande homenageado será Gilberto Freyre.

A Fliporto é festa e pensamento, buscando diálogos de paz através da literatura, das artes, do debate de ideias.

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15. Cultura de paz

Não vislumbro outra saída para as graves questões de in-tolerância que não seja a adoção de uma cultura de paz e con-vivência no sentido amplo, que vai desde a rejeição a todas as formas de violência, como também o respeito à vida e à diversidade inerente. Valorizar a solidariedade e estabelecer a harmonia nas relações — de gênero, de religião, de culturas. Buscar o equilíbrio do planeta. Não acredito que possa haver um mundo sem conflitos, mas creio na direção do diálogo, do entendimento e do respeito às diferenças.

Adotar e divulgar os valores da cultura de paz passa a ser o ponto de partida para as mudanças fundamentais do mun-do, buscando-se construir um novo paradigma de desenvolvi-mento. A ONU definiu o que seria a cultura de paz, à qual me associo, na Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz, divulgada em 13 de setembro de 1999:

Ela estaria

no respeito à vida, no fim da violência e na pro-moção e prática da não violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; no pleno respeito aos princípios de soberania, integridade territorial e independência política dos Estados e de não ingerência nos assuntos que são, essen-cialmente, de jurisdição interna dos Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e o direito internacional; no pleno respeito e na promoção de todos os direitos humanos e liberda-des fundamentais; no compromisso com a solução pacífica dos conflitos; os esforços para satisfazer as necessidades de desenvolvimento e proteção do meio ambiente para as gerações presentes e futu-ras; no respeito e na promoção do direito ao de-senvolvimento; no respeito e fomento à igualdade de direitos e oportunidades de mulheres e homens; no respeito e fomento ao direito de todas as pessoas à liberdade de expressão, opinião e informação; na adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância, solidariedade, coopera-ção, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os níveis da sociedade e entre as nações; e animados por uma atmosfera nacional e internacional que favoreça a paz.

Só se vence uma ideia com uma ideia melhor ainda. E o terror é uma ideia enlouquecida. Quando se vence alguém pela força, se ganha pela metade — quando algo se ganha. Quando se ganha pelo convencimento, ganha-se por inteiro. A maior arma que existe é o homem. A paz também está nele. O resto são caminhos e escolhas. Somente diálogos constru-

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tivos de paz, uma melhor compreensão e convivência com o outro, com o diferente, vencerão o terror e a tensão entre religiões e etnias, que é o grande desafio do contemporâneo. O Brasil tem uma missão nesse sentido.

Somos “diversos”, como afirma o poema do músico bra-sileiro Marcelo Yuka, pois “Entre a revolta e a obediência, crescer com diferenças e crescer pelas diferenças, será sempre entender que o amor é a nossa maior forma de inteligência”.

Vamos criar coletivamente uma nova Guernica, de Picas-so, ou Guerra e Paz, de Portinari, mas, dessa vez, apagando a guerra e pintando a paz. Ainda há esperança.

Fevereiro/2011, Bairro de Casa Forte, Recife, Brasil

Antônio Campos - advogado, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras e curador da

Festa Literária Internacional de Pernambuco - Fliporto [email protected]

“Não acredito que possa haver um mundo sem conflitos, mas creio na direção do diálogo

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