Diálogos de Um Louqo

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DIÁLOGOS DE UM LOUQO (Monólogo livremente inspirado na vida e na obra de Qorpo- Santo) Paulo Bauler Korpo-Santo olha insistentemente para um canto do teto; em seguida volta-se para o público, examina a platéia; examina de volta o canto de teto; resmunga sons ininteligíveis; repete os atos anteriores; volta a resmungar, agora fala num crescendo, para si mesmo. Korpo-Santo...aranhas...aranhas...aranhas...Onde está Inesperto, que não limpa direito essa casa... aranhas no teto...aranhas nos cantos...teias por toda a parte...é preciso uma limpeza rigorosa...aranhas...mas...olha só...são tão fininhas, tão delicadas...tão ternas...ah!deixemo- las ficar... (voltando-se para o público) ...tão lindas as aranhas tão belas, tão ternas pois caem do teto e não quebram as pernas (mexendo numa mesa, numa cadeira, nuns papéis) Onde está a minha pena? Está me vindo de novo essa doença, essa enfermidade, devo estar mesmo

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Monólogo livremente inspirado na vida e na obra de Qorpo-Santo

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DIÁLOGOS DE UM LOUQO (Monólogo livremente inspirado na vida e na obra de Qorpo-

Santo)

Paulo Bauler

Korpo-Santo olha insistentemente para um canto do teto; em seguida volta-se para o público, examina a platéia; examina de volta o canto de teto; resmunga sons ininteligíveis; repete os atos anteriores; volta a resmungar, agora fala num crescendo, para si mesmo.

Korpo-Santo...aranhas...aranhas...aranhas...Onde está Inesperto, que não limpa direito essa casa... aranhas no teto...aranhas nos cantos...teias por toda a parte...é preciso uma limpeza rigorosa...aranhas...mas...olha só...são tão fininhas, tão delicadas...tão ternas...ah!deixemo-las ficar...

(voltando-se para o público)

...tão lindas as aranhas tão belas, tão ternas pois caem do teto e não quebram as pernas

(mexendo numa mesa, numa cadeira, nuns papéis)

Onde está a minha pena? Está me vindo de novo essa doença, essa enfermidade, devo estar mesmo louco, essa gana de sair escrevendo o que me vêm à cabeça desse jeito inusitado, não consigo controlar...um lápis... ao menos uns rabiscos e eu me livro disso, volto ao normal...

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Normal? O que é normal? Natural! Isso, sim! Na-tu-ral! Volto ao natural, como tudo e todos deviam ser. Seguir o curso da natureza. Sobretudo em nós mesmos. Relações sociais, bolas! Quero relações naturais!

(ajeitando-se, roupa, gravata, cartola, diz)

Vou agora mesmo procurar o João, o Malkovitch...esse polaco é ator, homem de teatro...e anda insatisfeito com essas peças melosas que o obrigam a fazer... também, com essa gente atrasada...fazer o quê? Quem sabe um dia...Ele, sim, daria um bom Inesperto...Quem sabe um dia, quem sabe um dia?

E ele me aprecia os textos, compreende essas idéias que me vêm à tona, de que os corpos são habitados por inúmeros espíritos...

O polaco do João Malkovitch?! Esse, sim, esse me compreende as peças... não é como essa gente bem-posta no Império...por fora, amantes da inteligência e da cultura, por dentro, cavalgaduras...cavalgaduras! Cheirando o rabo dos poderosos de ocasião, disputando as migalhas vomitadas pelas elites de sempre...Tudo por dinheiro, tudo por dinheiro...e muita vontade de ser como eles, naturalmente...

(volta-se outra vez para a escrivaninha, mexendo em papéis...livros...)

Mas...onde está a minha pena...esses papéis estão fora de ordem...minha caneta bic?! Não há um lápis com ponta! Como posso me livrar dessas idéias que me vêm à cabeça? Que me sufocam! Desde que minha mulher se foi este criado tornou-se um imprestável! Inespertôoo! Inesperto!Onde anda essa desgraça de traste imprestável!

Mas...onde é que eu estava mesmo? Não vou mais sair...É, pensando bem...também não vou escrever

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nada...E deixa o Inesperto lá com seus afazeres, ou malfazeres...

Mas por que diabos! Quando terá esta cabeça um pensamento firme e invariável?

Que razão tenho eu de sair com a mais firme resolução agora, e passado alguns minutos adotar uma resolução contrária?

Pois Hoje Sou Um, Amanhã, Outro!

(Súbito, leva as mãos à cabeça, olha o horizonte, percorre a platéia com o olhar, muda de lugar no palco, ocupando duas posições frontais uma à outra, em diálogo de um rei com seu ministro)

Ministro Saiba Vossa Majestade de uma grande descoberta no Império do Brasil, e que se tem espalhado por todo o mundo cristão, e mesmo não cristão! Direi mesmo – por todos os seres da espécie humana!

Rei (muito admirado) Oh! Dizei; falai! Que descobriram? É erro!?

Ministro É coisa tão simples, quanto verdadeira.

1ª - Que os nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje é Rei como Vossa Majestade, ontem não passava de um criado, ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o vosso espírito, e me convenci, por esse simples fato, ser então eu o verdadeiro Rei, e o senhor o meu Ministro!

2ª - Que pelas observações filosóficas, este fato é tão verídico, que milhares de vezes vemos uma criança falar como um general; e este como uma criança.

Vemos por exemplo um indivíduo colocado no cargo de Governador de Estado, tendo ocupado várias posições de poder – ter medo, senhor: não poder abrir a boca diante de um homem simples do povo,

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desempregado, talvez mesmo sem o necessário para todas as suas despesas, simplesmente porque é um corpo habitado por uma só alma: daí porque são bem aventurados os pobres de espírito.

Que quer dizer isto, Senhor? Quer dizer que esse homem tão importante, tão cheio de poder é zero perante este outro, homem simples, mas iluminado, abençoado pelas leis divinas.

Eu, pois, estava ontem tão acima de Vossa Majestade, que sentia em mim o dever de cumprir uma missão divina, tanto que me era impossível cumprir ordens humanas.

Rei Estou pasmo – com a revelação que acabo de ouvir. Se isto for verdade, estou perdido!

Ministro Não temais, Senhor...Todo o Povo vos ama, e a Nação vos estima; mas desejo que Vossa Majestade aprenda a se conhecer, e aos outros...

Que saiba o que é o corpo e a alma de qualquer indivíduo da espécie humana: isto é, que os corpos são habitados cada qual por um número diferente de almas, cada qual com diferentes espíritos, de diferentes personalidades.

Rei Mas quem foi no Império do Brasil o autor dessa descoberta, que tanto nos ilustra, que tanto nos alegra, mas que também tanto nos preocupa?

Ministro Um homem, Senhor, predestinado sem

dúvida pelo Onipotente para derramar esta luz divina por todos os habitantes do Globo.

Rei Mas quais os seus princípios, ou os da sua vida?

Ministro Deixe que ele mesmo fale através de mim, já que estou neste exato momento, possuído por seu espírito, e bem Vossa Majestade o verificará:

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(O Ministro, então, passa a falar como Korpo-Santo, dirigindo-se à platéia)

Korpo-Santo Iniciei minha vida intelectual no exato momento do meu nascimento, quando explodiu no meu cérebro um raio de inteligência.

Não sei exato dizer se meu corpo era pura carne, animada de um pouco de espírito, ou se desde sempre existia o Santo em mim.

Aos trinta e quatro anos subi aos céus, e ao som das palavras que inundaram a minha imaginação o Santo começou a se desenvolver e a guiar os meus passos.

Minha infância foi muito difícil, tendo passado por desventuras que mesmo aos adultos não seriam pouco peso. Não conheci meu pai, e tive que trabalhar desde cedo. Mas, por bênção dos Reis do Universo, aprendi a ler, e desde a tenra idade dediquei-me à literatura e à filosofia, enquanto ia aprendendo a arte do comércio. Prestei concurso público e tornei-me professor de primeiro e segundo graus. Dirigi e fundei colégios e fui iniciado na Maçonaria, chegando a mestre maçom. Casei, fiz e criei filhos, fui eleito vereador, nomeado sub-delegado de polícia, até que me empreguei como jornalista. Cada vez mais inconformado com as injustiças que enxergava em toda parte, todas no interesse dos poderosos, e também porque sempre achavam que eu falava o que não podia – e ainda comia o que não devia – fundei o meu próprio jornal, A Justiça, onde denunciei os abusos dos poderosos, as injustiças sociais, e defendi minhas idéias e propostas de engrandecimento humano.

Por isso passei a ser vítima de perseguições e violências de toda espécie.

Incompreendido por todos, fui abandonado pela mulher e fui proibido de lecionar. Perseguido mais ainda por meus inimigos, acumulei dívidas e tive que abandonar o jornal.Depois, interditaram todos os meus bens. Acabei preso e internado na Casa dos Loucos.

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Depois me transferiram para um hospício no Rio de Janeiro, para a Casa de Saúde Dr. Eiras, (que aliás acabaram de demolir para a construção de mais um condomínio de novos-ricos), mas os psiquiatras cariocas compreendiam-me os discursos e não viram loucura nenhuma, mas arte e sabedoria em minhas palavras.

Depois de solto, voltei ao Sul, fundei uma gráfica, publiquei meus escritos, inventando um letreiro luminoso, único no país, que enche as vistas de quem passa pela sua gráfica, aliás, não sei por quê, incomodando as autoridades.

Tive que encerrar minhas atividades jornalísticas, e dedicar-se ao comércio, porque todo pensamento de reconhecida utilidade social que publiquei, foi considerado crime! – e pelo qual sempre sofri alguma pena!

Pois vivi em um retiro por espaço de um ano ou mais, onde produzi numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra a que dei o nome de Ensiqlopédia.

Adotei meu título de nobreza universal até por não poder usar o nome que usava, depois de interpretar diversos tópicos das Escrituras, que até aos próprios líderes religiosos pareciam contraditórios!

Durante esse tempo de jejum, estudo, e oração, fui alimentado pelos Reis do Universo, com exceção dos de palha! A minha cabeça era como um centro, donde saíam pensamentos, que voavam aos Universais de que me alimentava, e destes recebia outros pensamentos que assustam os comuns dos mortais. Eu era como o coração do mundo, espalhando sangue por todas as suas veias, e assim alimentando e fortificando, e refluindo quando necessário ao meu próprio centro! Assim como acontece a respeito do coração humano, e do corpo em que se acha. Assim é que tenho podido levar a todo o mundo habitado, através do só pensar – tudo quanto eu, e os Reis do Universo, temos querido!

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Pois a maldade habita os corações humanos pela ignorância, que os torna estúpidos, cegos de desejos pelo que não precisam, cheios de palavras e pensamentos que contrariam a lógica do mundo, a lógica da vida.

A minha missão é justamente desmantelar a lógica dos escravos da morte para abrir espaço em seus cérebros para a lógica dos amantes da vida!

Por isso é que sou um desses raros talentos que só se admiram de séculos em séculos!

(Korpo-Santo volta à voz de ministro, ainda de frente para a platéia)

Ministro Ecce Homo, Majestade! Esse é o homem, em suas próprias palavras autobiográficas...

Rei Ministro? Meu caro Ministro? Voltaste à ocupação de meu Ministro?

Ministro Sim, majestade! Sou eu, seu fiel servidor...

Rei Mas com quem falavas enquanto o espírito falava por sua boca? Deste-me as costas. Precisarei lembrar-lhe o protocolo da Corte?

Ministro Perdoa-me Vossa Majestade, mas dirigia-me, melhor dizendo, dirigia-se o filósofo aos Reis do Universo, entidades superiores com as quais ele afirma dialogar. Sem pretender ofender Vossa Majestade, é claro! São entes de um futuro muito distante, com poderes sobrenaturais, que conseguem conversar à distâncias maiores que daqui à China. E creio mesmo que esse filósofo pode ser um deles...

Rei Pelo que dizes reconheço que, no mínimo, não é um homem vulgar. Talvez não seja mesmo um louco. Mas...fale mais sobre ele.

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Ministro O importante é que prossegue com os seus escritos de toda ordem, desde peças teatrais, poemas, ensaios, aforismas, artigos de jornal, estudos de Direito e de Teologia, uma infinidade de temas e propostas, cada qual mais sábia e tão mais estranha que a outra...

Como a sua proposta de reforma ortográfica!

Rei(interrompendo) Reforma ortográfica? Mas se os doutos do Império já decidiram isso... Não será uma grave subversão contrariá-los?

Ministro (levando as mãos à cabeça, voltando-se para a platéia) Vossa Majestade! Vossa Majestade! (agora volta a falar com a voz de Korpo-Santo).

Korpo-Santo Deixa que eu mesmo me explico. Que as minhas obras quase só eu as entendo; tantas foram as inutilidades por mim suprimidas!

Essas inutilidades gramaticais, por exemplo...Por quais diabos latinos temos três modos para escrever a letra c? Ora, por que temos que escrever com c aquilo que tem som de s? Se vamos escrever a palavra maçã (escrevendo na lousa), porque grafar c, se temos a letra s, que é dona do som sibilino... E ainda botar aquele rabinho ridículo que chamam de cedilha...Aliás, cedilha também não é uma apropriação indébita do som de s? Então a palavra masã deve ser escrita assim (e escreve na lousa) E o s? porque escrever com s, se o som é de z? Como em casa, por exemplo (escrevendo na lousa). E se o som é de z, porque não escrever com z, caza, cazaco. E quando o c tem som de q, porque não usarmos a letra que naturalmente já expressa esse som? Então, a palavra casa deve ser escrita assim, qaza, qazaqo, ou até com k, kaza, kazako (escrevendo na lousa). E mandamos para os quinto dos infernos essa letra c que só serve pra pegar estudante em prova de português, ou pra fazer a gente ridicularizar os obreiros que seguem os instintos dos sons quando escrevem presiza-se de

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serventes... No grego, essa letra não existia, uma invenção de doutos latinos, pra se fazerem donos do alfabeto... E o j com o g? Não é coisa feita pra chamar uns de burros (o povo) e outros de inteligentes (os doutos)? Girafa é com j ou com g? E jiló? Ora, alguém aí pode me explicar porque mil diabos temos que escrever girafa com g e jiló com j?(escrevendo na lousa) É ou não é coisa feita pra fazer de uns poucos, gente mais importante que os muitos?... Ora, se o g é dono do som guê,como em português? Porque faze-lo pagar o mico de travestir-se de jota, que é dono do som jê, como em jaqaré? E aí a gente tem que botar mais uma letra, o u, ao lado do g, pra dizer que o g tá falando como jota... portugês, portanto, se escreve assim (na lousa)... Precisamos criar uma ortografia apropriada ao nosso próprio Brasil, que nos afirme as literaturas perante as outras literaturas, e muito especialmente que não sejamos sub-língua de um império europeu... Por todos os Reis do Universo, quando é que a gente vai se livrar dessas companhias hereditárias? Dessas companhias das Índias? O que eles querem é que a gente seja um imenso portugal...

(Neste ponto, Korpo-Santo leva novamente as mãos à cabeça e, possuído por suas personagens, volta à encenação do diálogo entre o rei e seu ministro)

Ministro (com ar assustado e quase sussurrando

ao ouvido do Rei) Parece que atualmente ele se dedica a escrever febrilmente, e a profetizar!

(volta ao tom natural, em voz alta, confiante, talvez como o próprio Korpo-Santo falando ao Rei)

Sim, Senhor. Tudo quanto disse que havia acontecer, tem acontecido; e se espera que muita coisa ainda há para acontecer!

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Como se chama esse homem, vossa majestade quer saber?

(O ministro vai para a frente da platéia, e volta a voz Korpo-Santo)

O meu nome...Meu nome nasceu há dez mil anos

atrás! E foi-me concedido por esses Reis do Universo que Vossa Majestade não pode enxergar! Um nome que nenhuma autoridade só terráquea pode conceber!

O meu nome é KORPO...SANTO!

(neste momento, Korpo-Santo gesticula para a platéia, sorriso de vaidosa satisfação, aplaude-se e pede aplausos para si mesmo; das gesticulações de auto- aplauso passa moto-contínuo a uma pantomina malandra, safada, dobrando o braço à maneira fálica, correspondente ao duplo sentido da declamação do poema a seguir)

Falão-se os montes,

Falão-se as fontes,

Falão-se as feras,

Falão-se as pedras!

Todos se falão!

Falão-se os galos,

Falão-se os machos,

Falão-se as fêmeas,

Falão-se as bestas!

Todos se falão!

Falão-se os bichos.

Falão-se as bichas,

Falão-se os casos

Falão-se os cachos!

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Todos se falão!

Falão-se os gatos,

Falão-se os sapos,

Falão-se os cervos,

Falão-se aos berros!

Todos se falão!

Falão-se as bocas,

Falão-se as loucas,

Falão-se as águas,

Falão-se as brazas!

Todos se falão!

Falão-se os ricos,

Falão-se os polítcos,

Falão-se os nobres;

Falão-se os pobres!

Todos se falão!

Falão-se os gatos,

Falão-se os ratos,

Falão-se os sapos,

Falão-se as sapas!

Todos se falão!

Falam-se os brancos,

Falão-se os broncos,

Falão-se os pretos,

Falão-se os medos!

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Todos se falão!

Falão-se os livros,

Falão-se os livres,

Falão-se os presos,

Falão-se os mesmos!

Todos se falão!

(Após alguns trechos declamados, as palavras vão cedendo lugar a uma cantoria e gesticulações alegóricas relativas ao falar e ao copular, ao som de viola e batuque, sendo interessante a improvisação de versos satíricos ou jocosos aproveitando os assuntos em voga, ou qualquer outro da sensibilidade do público específico. É momento dionisíaco, bacante, Korpo-Santo bebe de uma garrafa, canta, dança,grita, gargalha loucamente. Ao final, com a música sumindo ao fundo, junto com a iluminação, Korpo-Santo está prostrado ao chão, até que a luz se apaga totalmente, por alguns segundos, o suficiente para Korpo-Santo deixar o palco.

Luzes acesas, Korpo-Santo vem do fundo do palco, resmungando, gesticulando indignado, incorporando um de seus detratores. De frente para o público, à beira do palco, ostensiva, agressiva, uma poltrona de status superior)

Conservador Mas vejam só os senhores e as senhoras! O mundo está mesmo de ponta cabeça. O sujeitinho, só porque tem algumas letras, conhecimentoszinhos de professor de colégio, acha que pode ser escritor.

Escritor é trabalho sério, erudito, de quem tem cultura sólida, de quem conhece a literatura dos grandes centros de cultura do mundo. Não é para qualquer um!

Qualquer dia o carteiro, de tanto carregar palavras de cá para lá, de lá para cá, já vai se

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arrogar no direito de tentar fazer um seu livrinho de poemas, das coisas que ele acha...

Sim! pois essa gentinha acha coisas...acha coisas o tempo todo...mesmo as coisas mais complexas, que estão totalmente fora da sua compreensão...eles estão sempre a achar coisas! Eu acho isso, eu acho aquilo...A seguir assim, qualquer dia invadem a política...já nem mais vão se satisfazer em eleger, vão querer ser eleitos também...

Até para se escrever um romance há que seguir uma técnica já testada e aprovada pelos doutos. Ora, bolas! Isto não é assim! Há que ter cultura, há que saber literatura, conhecer os clássicos, no mínimo já ter lido os franceses, os ingleses, quiçá os alemães...E nos originais!

Como pode alguém pretender escrever peças de teatro sem ter lido e relido Shakespeare, sem ter lido e relido Goethe, sem ter lido...sem ter lido... (pigarreando)...

O mundo anda mesmo de ponta cabeça!Pois vinha eu, agorinha mesmo, pela rua dos

Andradas, o pensamento entregue à preparação do meu discurso que, como os senhores já devem saber, pronunciarei no Teatro São Pedro (adotar os nomes de rua e do principal teatro do lugar), nos festejos comemorativos do aniversário de fundação da nossa Câmara de Comércio Internacional, quando, passava eu pela porta do prédio onde mora nosso estimado Prefeito, súbito em dúvida se o requisitava para dois dedos de prosa sobre o que mais lhe agradaria ouvir a seu respeito, e eis que sou abordado intrepidamente por aquele doido, megalômano, ridículo, pretensioso, presunçoso, que não se dá ao respeito e faz-se passar por homem sábio e letrado, a ponto de pretender modificar a ortografia do nosso sacrossanto idioma português...E se diz professor de gramática...Acha-se um literato...escreve umas garatujas e chama a isso peças de teatro!

Quem ele pensa que é? Um Rabelais? Um Racine? Mesmo um Moliére?... Ora, esse homem precisa de um

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corretivo... Esse homem é um perigo para todos nós...homens de pensamento...um perigo para todos os cânones literários...para a cultura...para o povo...

Ele confunde a cabeça do povo, que daqui a pouco não vai mais saber o que é cultura, o que interessa e o que não interessa saber...

É um doidivanas, não tão inocente como pode parecer àqueles que, a contrário de mim, não têm a experiência de conhecer os males que a cultura, se entregue à plebe, ultrajada, deteriorada, causará à sociedade toda...

Não se pode ter clemência alguma com essa espécie de gente. E muito especialmente no caso dele, que se faz passar por um de nós... Nós merecidamente reconhecidos próceres das letras...

É, faz-se passar por um de nós, trajando-se com cartola, gravata, casaca e tudo o mais que nos distancia do vulgo primata e bárbaro...

Imiscuindo-se em assuntos que só a nós, escolhidos por quem de direito, compete pronunciamentos dessa natureza, e mesmo assim nos foros apropriados, longe da gentinha que – e isso já está cientificamente comprovado – não possuem nem o cérebro, nem o conhecimento, nem a preocupação com as elevadas idéias políticas, filosóficas, morais e religiosas que devem nortear os escritos literários do país...

Quem ele é? Um professorzinho de primeiras letras...um fracassado na política e na carreira pública, um vereadorzinho de interior que conseguiu chegar aqui na capital. Nem para a polícia serviu...abandonou a carreira assim como fez com o magistério público. É claro que percebeu que jamais chegaria às alturas dos Acadêmicos, estes sim, homens de calibre, uns doutos, merecedores das nossas mais intensas homenagens.

Um doido! Um megalômano! Um monomaníaco! Um ignorante, que não escreve coisa com coisa. Que nem serve ao teatro, nem serve às letras...nem serve à língua portuguesa...sequer serve à lógica!

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Pois digo e repito: essa minha avaliação está respaldada em provas irrefutáveis, baseada nos manuscritos que ele mesmo, com ares de sábio, com ares de escritor de gênio, ousou pôr-me às mãos, e antes mesmo que eu as pudesse recolher, já enojado, e temeroso – é claro! – que me presenciassem a cena, que me acusassem de comprometimentos com esse maluco!

Mas o mais grave, já disse, é que ele se apresenta como um de nós, homens de escol, preocupados que somos com a moral e os bons costumes, com o aperfeiçoamento das nossas letras, da nossa imprensa, da nossa justiça...

Qual o quê! É um homem insidioso, uma cascavel, um homem que se mostra de um jeito nobre, educado, mas que se denuncia no que fala, mais ainda no que escreve...

Hoje sou um; amanhã sou outro – confessa, com a maior desfaçatez, com a cara mais lavada do mundo...e ainda escreve e assina embaixo...e anda a exibir os manuscritos a toda a gente, sem distinção social ou cultural.

Hoje sou um; amanhã, outro...Como se algum político pudesse defender umas

idéias hoje e logo amanhã realizasse idéias totalmente contrárias...Imaginem só...é o mesmo que um político trocar de partido...um jogador de futebol trocar de time...hoje beija uma camiseta, amanhã outra...Ora, isso tem cabimento senhoras e senhores! Isso tem cabimento?

E quanto ao modelo de moral que prega?! Vocês podem acreditar que alguém em sã consciência afirme que as relações sociais, a estrutura da sociedade, das famílias, principalmente as relações conjugais possam ser determinadas por relações naturais? Pelas regras da natureza! E pelas regras da natureza de cada qual? Isso é o caos!

Imaginem os amigos que num de seus escritos, naquilo que ele chama de peça de teatro, há um casal, digo casal casado mesmo, vivendo em comum, sob o mesmo teto, que é formado por dois homens.

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Digo dois homens, elementos do sexo masculino, vivendo em comum, como esposos. Isso é ou não é o absurdo dos absurdos?! Pois se é da natureza deles...Relações naturais! Vejam só no que acaba dando!

Esse sujeito é doido varrido! Ah! E noutro escrito, noutro escrito ele diz que duas mulheres querem ter um filho delas, uma com a outra. Pasmem! Uma com a outra. Quero ver ele explicar essa com as tais relações naturais... Há, há, há...E diz e escreve disparates tais que esses almejando o desenvolvimento moral das nossas sagradas instituições. É um moralista! Um moralista, senhoras e senhores, um moralista!

É possível uma coisa dessas? Só pode ser um doido varrido, um sujeito desprovido de qualquer conexão lógica. Uma cobra! Uma cobra, isso é o que ele é! Devíamos tirar-lhe a casaca, a cartola, a gravata, deixá-lo vestido como um peão de fronteira...sim, um peão de fronteira, isso é o que ele é por dentro...uma melancia, verde por fora, vermelho por dentro...um lobo em peles de ovelha, um peão! Um peão de fronteira! Um peão em trajes de patrão. Ora já se viu!

Depois, dá-se a escrever como quem urina, uns rabiscos sem nexo...quem já assistiu esse sujeitinho em atividade de escrita diz que é a coisa mais horrorosa que existe...algo assim como quem recebe santo, como um médium... Esteja fazendo ou conversando o que seja, que de repente empalidece, toma-se de um tremor, ergue as mãos à cabeça, como quem sofre de dores lancinantes no cérebro, e corre a escrever como se alguma entidade do além lhe ditasse as sandices... Umas garatujas sem nexo, sem ter começo nem ter fim, um negócio tão absurdo que nem ele mesmo deve entender...umas coisas soltas, desarticuladas, que não querem dizer coisa alguma... umas coisas desconexas jogadas ao léu no papel, frases desordenadas, desconectadas umas das outras, desorganizadas, um louco a dizer coisas sem sentido.

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E propaga o fim do celibato dos padres! E quando alguém protesta, ele faz graça...diz que ia ser muito engraçado ver o padre caminhando na rua com um monte de padrezinhos...Ainda ri... às gargalhadas... Não respeita nada... Não se dá ao respeito nem respeita ninguém.

Defende a separação dos casais através de um divórcio!

Um homem desses, meus senhores, minhas senhoras, um homem desses põe em perigo as nossas mais nobres intenções: a palavra do Senhor, o Mercado, a Globalização!

Pois amanhã mesmo devo procurar a sua esposa, D. Inácia, essa sim, uma dama, pessoa de caráter, ajuizada, que se afastou do marido por não agüentar mais as suas sandices, suas megalomanias. Voltou para a casa da mãe, onde se sente mais segura, e tem horror a pensar em dividir o mesmo teto com o doido. E bem que ele lhe pede, implora o retorno. Sente saudades das relações naturais, o desavergonhado!

Vou recomendá-la ao Dr. Pinochete, advogado combativo, amigo dos juizes, conhecedor das psiquiatrias forenses, conhece os profissionais das perícias judiciárias... O Dr. Pinochete já não gosta nada desse sujeitinho arrogante, aliás já tiveram um entrevero público por causa de um tal de ditador latino-americano com o mesmo nome do nobre causídico...o sujeito fez graça com a coincidência, dando-se ares de conhecedor da política internacional...

O Dr. Pinochete se sentiu ofendido e humilhado pelo sacrispanta, e com toda a razão, pois os demais presentes se punham a rir acintosamente a cada frase de efeito que o dramaturgo (ironicamente) ia tirando da algibeira.

Vou recomendar a D.Inácia que mova um processo de interdição judicial para evitar que se dilapide o patrimônio da família...

Pois não é que o louco tem tido muita sorte nos negócios comerciais? Tem amealhado uma fortuna significativa... com toda a sua loucura, na hora dos

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negócios o homem sempre sai lucrando...o que lhe permite andar de lá pra cá com a desenvoltura dos bem nascidos...

Vou recomendá-la que o processe, adianto-lhe até, do meu próprio bolso, as custas judiciais... que lhe interditem os bens, para evitar se gaste dinheiro familiar com coisas tão inúteis quanto perigosas... Vou cortar-lhe as asas de pombo, antes que lhe cresçam asas de águia...Isso sim! Vou agora mesmo...vou agora mesmo!

(as luzes vão diminuindo em sombras; aos poucos o Conservador vai-se fazendo D.Inácia, trejeitos feminis, por baixo de seu sobretudo que, aberto, deixa ver roupas íntimas de mulher, um colant cor de rosa, sutiã e calcinha transparente, exibindo o órgão sexual feminino.

D.Inácia Todos sabem muito bem as humilhações que sofri nas mãos do meu cruel esposo. Nenhuma mulher de respeito como eu aturaria tanto, tanto! A vergonha que passei, Senhor Conservador dos Princípios da Província, a vergonha que passei! É certo que o destino da mulher é satisfazer os desejos do marido, mesmo os mais secretos. Mas tudo tem limite, e eu já estava me tornando igual a ele...eu sentia o diabo entrando no meu corpo (o Conservador fecha o sobretudo, agora em pose viril, fazendo meneios faciais de muito, muito interesse. Abre o sobretudo e volta D.Inácia).

Mas me botar uma coleira no pescoço, me fazer de cadela, me obrigando a praticar atos vergonhosos no quintal do nosso santo lar, a céu aberto, ainda mais com aquela lua cheia, cheíssima...é claro que algum vizinho havia de ver... e vendo...ia levar pra boca do povo! Que vergonha! Que vergonha!

(o Conservador, fechando o sobretudo, repete: “Que vergonha! Que vergonha!” Em seguida, voltando-se para a platéia, abre um sorriso sacana, com meneios de cabeça e de olhares de quem aprecia o

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ocorrido. Abre o sobretudo e volta a ser dona Inácia)

Só me restava mesmo a separação de corpos. Salvaguardar a honra da família, deixar claro para a província que eu estava nas mãos de um louco possesso. E graças à ajuda do senhor Conservador dos Princípios, e demais homens de bem, que sempre me louvaram o recato (“E o regaço!”, acrescenta o Conservador, para a platéia), pude sair-me bem do escândalo que o louco provocou.

Desgraçada de mim, mulher nova ainda, sem poder contar nem com o esposo, sem poder trocar por outro que seja de boa cepa, que seja honrado e respeitado, que... ah! Se eu fosse uma dessas qualquer, que não têm a minha dignidade, nome de família a zelar...dessas, que têm amante...Mas uma mulher discreta como eu, o senhor Conservador dos Princípios bem pode avaliar. (Volta o Conservador:”ah! D.Inácia...D.Inácia...Se a senhora soubesse... E despe os aparatos femininos, cheirando as roupas íntimas com fervor de tarado; Enquanto o palco vai escurecendo devagar, ouve-se a voz de D.Inácia: “sim, vamos cortar-lhe as asas, meu caro, pois nós é que precisamos delas...e dos trinta dinheiros.)

O palco vai-se iluminando de volta, até que se ilumina de todo. O Conservador, como que flagrado, atira longe os apetrechos de mulher, veste o sobretudo, e pigarreia, pigarreia, do feminino até o masculino)

Conservador Isso mesmo, vamos cortar-lhe as verbas...primeiro, desmoralizamos esse louco...afinal, ninguém, nem mesmo o zé povinho ouve quem não tem dinheiro...nisso pobre é igual a rico, só ouve quem tem dinheiro, quem tem bala na agulha... Quero ver ele publicar alguma coisa mais nessa tal Gráfica Korpo-Santo... Vamos apagar esse tal de letreiro luminoso que o maluco inventou... Coisa que nunca se viu antes, nem aqui nem no estrangeiro...Estabelecimento comercial de respeito

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não carece de propaganda luminosa... Coisa que ele inventou pra se exibir, pra nos fazer entupir à goela essas suas pretensões de escritor, jornalista, poeta, dramaturgo, jurista, e até...teólogo!

Teólogo, minha gente! Teólogo! Pois vou lhes dizer o tipo de teólogo que ele é... Imaginem os senhores e as senhoras que ele não vê nenhuma contradição em ser cristão, seguidor do Novo

Testamento, e fazer sexo grupal...Não, não riam ainda...É um louco pervertido e perigoso...Sabem o que ele diz? Que todos os textos religiosos devem

ser interpretados de acordo com as leis naturais...Vejam só! Relações naturais! ´, e diz

mais...Que nós, cristãos, somos hipócritas... que só existem duas leis nos evangelhos: amar a Deus sobre

todas as coisas e amar o seu próximo como a si mesmo. E com isso ele conclui que todas as nossas

leis são anti-cristãs, que são feitas por políticos e economistas a mando e no exclusivo interesse dos poderosos, mesmo quando beneficiamos os pobres. Ele não sabe de que lado está, ataca todo mundo, tanto os comunistas quanto os burguesistas. É um louco!

E mais: que um grupo de verdadeiros cristãos pode se juntar pra fazer sexo grupal. Pois amando a Deus sobre todas as coisas e, muito especialmente (é claro não é?) amando os próximos como a si mesmo...pois todos estão a fazer o que todos gostam! É o fim da picada! Suruba, minha gente, esse homem não defende a sagrada família, esse homem defende a sagrada suruba! Tinha que ir pra forca isso sim! Para a forca!

Mas, um momento! Porque mil diabos eu estou aqui a falar deste sujeito? Porque será que esse sujeitinho me incomoda tanto? Esse homem é o diabo! O diabo escrito e escarrado! E tem o desplante de auto-denominar-se Korpo Santo!

(Novamente as luzes se apagam por alguns segundos. Um cantor e sua viola apresentam número musical relativo ao poeta, que prossegue, como instrumental de fundo, enquanto Korpo-Santo declama

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alguns poemas e diz alguns aforismos, ao mesmo tempo em que os distribui em folhas de papel, para algumas pessoas da platéia).

Minnas obras eskritadasNão podem ser sensuradas!Poys estão relasionadaskom as kowzas enxergadas!Delas são – fiel retrato,kwal fotografia – ato!

Sinto ojeEm kada azeytona ke enguloIntroduzir-se em mew sérebro O espiryto de uma kapasidade transsendente...

As minnas obras Kwaze só ew as entendo Tantas foram as inutilidades por mim suprimidas!

Algém diz:Não á gosto sem desgosto!É falso:Tenno tido grandes gostosSem os menores desgostos!

Kruzes! Estow oje tão sientifykoKe até pelos kalkannares Sinto entrarem-me pensamentos, ideyasE não sey ke mays

Estow enganado?Estow turbadoEstow a sonnar?Estow a dormir?Parese qe estowTudo a fundir

Vivew Bokage longos anosSem dinneyro, e também sem vergonna!

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Ew porém ke não kero viver de igwal modoEzijo toda kwantiaA ke tenno inkontestável direyto.

Ew sow vida;Ew não sow morte!É esta minna sorte;É esta minna lida!

Abri-me em kwalquer parte;E terás koysa ke farte!

Rola a tinta,E tudo finta!Fuy bigorna,E sow martelo!Fuy prensado!Oje sow prensa!

Às vezes, paresem-me, os jornalistas,Para segos eskreverem; ow sem vistas!

Em doys mundos vivo ao mesmo tempo!No karnal mundo e no espiritual.Ew gozo da karne pelo espiryto!

Vi dansar uma lamparina!Kem akreditaKe tão bem gritaEsta sélebre baylarina?Owtra – owvi gemerAlgém akredita?Keria me entender

Não podem tempos tardarem,Ke ey de ver – kombinarem- As mulleres traballarem,- As mulleres se esforsarem,- As mulleres se enforkarem,

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- Para omens sustentarem!

(Enquanto as luzes se esvaem, Korpo-Santo desloca-se para o fundo do palco, olhar se perdendo no horizonte, de início, em seguida encarando a platéia, rostos a rostos, agressivamente; em seguida, as luzes se apagam por alguns segundos. Quando as luzes se acendem, Korpo-Santo vem vindo do fundo do palco, atitude desleixada, ginga de malandro, gravata afrouxada, casaca desabotoada, brincando com a cartola. Incorpora o criado Inesperto)

Inesperto É, até que eu fico bem em roupa de patrão (e como se olhasse em um espelho, botando a cartola de um jeito, de outro, abotoando um botão da casaca, mexendo na gravata), essa gravata é que não dá! Não sei como esses doutores agüentam andar com essa coleira no pescoço. Coleira é pra cachorro. De qualquer forma, coleira é que não falta no mundo, coleiras na alma, no espírito. A minha já me aperta faz anos...É, um dia, quem sabe, também vou ser patrão... Melhor que o meu, eu vou ser, isso eu garanto...sei lá...Vejam só isso (desarruma a mesa, deita uns livros, bota uma estatueta pro chão, e assim com tudo o mais que se achava arrumado, com gestos exagerados)...sempre encontro esta sala, este quarto, ou como o quiserem chamar...câmara, dormitório, ou não sei que mais – desarrumado! Nada, nada, isto não pode continuar assim! Ou hei de deixar de ser criado desta casa, ou as cousas hão de conservar-se nos lugares em que eu arrumo! São honras que a ninguém eu cedo...O que porém é mais notável é que além de me não respeitarem, nem obedecerem – não pagam-me também nem a quinta parte dos salários comigo contratados! Mas nada me há de ficar a dever! Quando retirar-me, hei de levar o dobro do que houver licitamente ganho, a fim de que paguem-me os prêmios, pois não estou resolvido a perdê-los!

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E não é fácil ser criado desse homem... Ainda mais depois que a mulher dele foi embora dessa casa. Altas horas da noite e ele caminhando pra lá e pra cá, de ceroulas...e de cartola!...de ceroulas e cartola! É...como todo mundo diz, é doido! Como é possível um doutor estar vestido de ceroulas e cartola! E às vezes até à frente da casa, pra toda vizinhança ver. E falando sozinho, aos berros, os maiores disparates, assustando toda a gente. De repente, sossega... se traja todo, bota uma colônia e dispara porta afora. Dá-se ares de puritano, de bom cristão, mas sei bem aonde ele vai a essas horas...sei bem que ele só voltará pela manhã, com um sorriso, todo gentil, me tratando quase como um parente. Agora, ó...agora mesmo, neste exato instante – quem quiser flagrá-lo é só dar um passeio ali pelas ruas da Zona ...Eu mesmo o vi, certa vez... Temeroso que algum mal lhe acontecesse numa desses acessos repentinos de loucura...à essas horas da noite. Pois chega de mansinho, passa longo tempo em conversação com as damas da noite até adentrar uma das casas, muito bem acompanhado – pra não dizer o contrário...É! Pois devia comportar-se melhor, já não basta o que a cidade toda anda falando...Qorpo Santo, o louco! Neste frio, então, devia ficar em casa, protegido...Ele me faz lembrar a do canarinho...(dirigindo-se à platéia) Vocês conhecem a do canarinho? Pois é: um dia desses, de chuva grossa, um frio dos pampas, um canarinho, desses ainda bem pequenininho, foi derrubado ao chão por um vento dos demos. Mal ia se recompondo, passa uma vaca e dá-lhe uma cagada poderosa por cima e ele fica lá, preso na bosta. Indignado, o canarinho começa a reclamar, piando, gritando, injuriado com a vaca, com o tempo, com a bosta, com tudo. Um gato, que passava pelas redondezas, ao largo de vacas e bostas, ouvindo aqueles gritos, chegou perto e logo começou a limpar, gentilmente, a bosta em volta do canarinho e, terminado o serviço, comeu ele. Moral da estória: nem todo mundo que caga na tua cabeça é teu inimigo, e nem todo mundo que limpa a tua merda

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é teu amigo. E se você ta no seguro e no quentinho, melhor ficar de bico calado!

(súbito, mão ao ouvido) O telefone! Quem será a essas horas? (imitando o falar ao telefone) Alô! Pois não, senhor delegado! Aqui é Inesperto, seu criado. Meu amo não se encontra de momento. Parece que está lá pelos lados da D.Inácia. Sim, perfeitamente, senhor delegado, darei o recado ainda hoje mesmo, ou logo cedo, pelo café da manhã. Às ordens, senhor delegado! (voltando-se para a platéia) Chii! Tão chamando o patrão pra comparecer à Delegacia..alguma ele já deve ter aprontado...Lá vem encrenca! Mas essa gente dessa cidade também provoca. Outro dia eu ouvi uma dessas mães carregadas de filho dizer pra um deles: é melhor se comportar senão eu chamo o Qorpo-Santo, hein?! Ele é pior que o bicho-papão e o velho do saco juntos! Ele bota a cartola em cima da cabeça da criança e a criança desaparece dentro da cartola dele. Lá dentro, a criança vira coelho de cartola. Lembra daquele mágico? Pois é, aqueles coelhos foram criança um dia... Essa gente não tem mais o que inventar. O patrão é um homem inteligente e culto, um professor! Se ele fala sozinho é porque tem tanto conhecimento na cabeça que uma hora começa a vazar pela boca. É um bom homem. Me trata muito bem. E o salário não é reuim, afinal de contas. Com quem mais eu vou trabalhar? Pensando bem eu também tenho cá as minhas manias...Depois...é meu destino servi-lo...que afinal, eu sou um dos seus personagens...sou criação dele...humm...se ele não existisse, eu também não existia... Melhor deixar tudo como está, que vai muito bem, obrigado. É o meu destino (voltando-se para a platéia, declama)

...tão lindas as aranhas tão belas, tão ternas pois caem do teto e não quebram as pernas...tão lindas as aranhas tão belas, tão ternas

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pois caem do teto e não quebram as pernas

(deixa-se ficar um pouco, sorrindo para a platéia, repetindo último verso, não mais em tom de declamação):

De gratidão – e de amor! (alto, em tom de discurso,de alerta ao público)

De gratidão e de amor(mais baixo, como se falasse para alguém ao lado) De gratidão e de amor...(quase murmurando, para si mesmo)

(Num gesto repentinamente brusco, ar aflito,

possuído por seus reis do universo, com exceção dos de palha. Corre para a escrivaninha, pega uma folha de papel, levanta sua pena do tinteiro, debruça-se para escrever. Após um ligeiro ar pensativo, pena levantada, volta a debruçar-se, junta a pena ao papel como se buscasse o que escrever.depois, abre os braços largos para a platéia, na mão ainda a pena)

Peraí, peraí, peraí! Eu nem sei ler, quanto mais escrever. O que estou fazendo aqui, com essa pena na mão! Sou só um criado! E muito do mal pago! EU, HEIN!(e devolve com mão firme a pena ao tinteiro)

( as luzes se apagam por alguns segundos. Korpo-Santo volta a si mesmo, traje arrumado, bengala à mão)

Korpo-Santo Chispa, Inesperto! Passa, cachorro! O que estás a fazer com as minhas coisas! E essas minhas roupas! Vá botá-las a lavar! Imediatamente! Chispa! Que já te passo na bengala! Abusado! (golpeia o ar com a bengala, repetida e desastradamente, atingindo a escrivaninha, o tinteiro, os livros, como se espancasse fantasmas. Em seguida, acalmando-se, passa a aprumar o traje, esticar o colete, conferir a casaca, ajeitar a

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gravata, a cartola, sempre com a bengala na mão. Volta-se, então para o público, sorriso de benevolência nos lábios) Liguem, não! É um bom criado. Um Inesperto, é verdade, mas um bom criado. Um coração de ouro. Fiz bem em dar-lhe vida... (vai-se aproximando da beira do palco enquanto fala e, no mais junto do público, súbito estaca. Entre perplexo e espantado, examinando as pessoas com os olhos, o indicador apontando aqui e acolá, uns e outros, recuando alguns passos)

Um momento! Porque é que vocês estão vestidos assim? De onde vocês são? Em que cidade ou país as pessoas se vestem assim? E essas...

(referir alguns detalhes do vestuário do público, acessórios, coisas tais como logomarcas, gracejando com algumas delas, conforme as circunstâncias atuais, tudo de modo a aproximar o público da pessoa do Korpo-Santo, como um professor em sala de aula faz em seu primeiro dia)

Sim, eu bem sei quem são vocês! Eu sabia! Eu sabia! (ar feliz e contente, pulinhos de alegria, sorriso largo, expressões e atitudes de satisfação e de júbilo). Vocês são...Vocês são... Vocês São OS REIS DO UNIVERSO! OS REIS DO UNIVERSO, rá, rá, rá! Os Reis do Universo...

Pois eu sempre falo à toda a gente da existência de vocês e eles simplesmente não me acreditam; julgam-me um louco desvairado, imaginem...E aí estão vocês, bem à minha frente...(e fazendo um gesto com as mãos)...quase posso tocá-los...ouço-os os pensamentos mais admiráveis, compartilho seus sonhos, suas esperanças de um mundo melhor...

Um mundo em que o trabalho seja motivo de alegria e não de revolta, tédio, ou escravidão...

Um mundo em que os seres humanos preferirão até morrer, se preciso for, mas matar... nunca...

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Que os mais privilegiados, por sua força, riqueza ou talento, se guiem antes pela generosidade e solidariedade, que pela vaidade e pela ambição...

Um mundo em que ai palavra tenha o sabor da poesia e que jamais seja veículo das hipocrisias...

Um mundo em que a beleza da natureza humana prevaleça sobre os instintos mais brutais que nos animalizam quando o amor se esvai...

O amor...Um mundo em que o amor em qualquer de suas manifestações seja livre para se expressar, com a naturalidade e a alegria do vôo das andorinhas...

Um mundo em que a arte e a cultura, accessível a todos nós, sejam instrumentos de beleza e sabedoria, jamais de instrumento dos podres poderes...

Um mundo em que a riqueza material seja apenas meio para suprir as necessidades de todos e de cada um de nós...

Um mundo em que as armas sejam apenas as armas do convencimento pela solidariedade, e não artefatos covardes do ódio, da cobiça e da brutalidade...

Um mundo em que as boas idéias, a criatividade, a inventividade sejam motivo de alegria para quem as recebe, e nunca motivo de inveja, inveja que atrasa a todos, invejados e invejosos... Pois todos sabemos que a inveja é uma merda mesmo...

Um mundo em que a justiça esteja antes em nossos pensamentos e em nossas ações do que em leis e tribunais...

Um mundo em que as máquinas e os sistemas nos venham para acrescentar, nunca para nos escravizar, ou nos substituir...

Um mundo em que mais importante seja amar a nossa espécie humana e a vida, do que qualquer dos nomes e ritos que nos fazem odiar os outros como a nós mesmos...

Um mundo em que simplesmente se fará a tudo e todos que compartilham conosco as alegrias desse planeta, assim como em todo o Universo, o que desejamos para nós mesmos, em que todos sejam livres

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para exercer as próprias personalidades, respeitando as individualidades, a pluralidade e a variedade de toda a Natureza: Erótica, Inteligente, Amorosa...Um mundo, enfim, regido pelas RELAÇÕES NATURAIS!

Um momento! (levantando a mão espalmada) Um momento! Que vozerio é esse, meu Deus! Parece que toda a gente da cidade está em alvoroço...Um momento! (dirigindo-se para e abrindo uma janela imaginária)...è o senhor prefeito...o senhor juiz....o senhor delegado com um punhado de guardas...Estão vindo em nossa direção...(virando-se para a platéia, tranqüilizando o público)...fiquem calmos...não se assustem... Essa gente não consegue vê-los...para ver vocês é preciso ter olhos de futuro...e essa gente só tem olhos para o próprio rabo...e um rabo passadiço...

(caminha de um lado a outro do palco, aflito)

O quê fazer?! O quê fazer?! Digam-me vocês, Reis do Universo! (voltando-se para o público, braços esticados em súplica) Vamos! Me instruam! Salvem-me! Salvem-me! (percorre a platéia com os olhos entre perplexo e espantado) Não, fiquem onde estão!... não vão embora!...Vocês estão desaparecendo! (gesticulando para algum ponto distante)...Por favor, não me faltem!...Sempre fui leal a vocês! Estou nessa encrenca por vocês! (o olhar percorre a platéia como se não houvesse ninguém)

(em seguida, pende os braços em desânimo, a cartola numa das mãos, a bengala,noutra, o olhar perdido no horizonte,cacoetes ou tremores de nervosismo)

A mim, só me resta uma alternativa... (deixa cair a bengala e a cartola)...Quando aqui chegarem não me encontrarão mais...Abdicarei, destruirei, este meu corpo-santo...o cidadão comum dessa província...igual a eles...na rala mediocridade dessa gente sem sonhos, sem imaginação, sem graça,

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sem poesia...(dirige-se ao fundo do palco, toma de uma corda armada em forca, coloca em volta ao pescoço – pode-se usar também um boneco, com nosso herói enforcando o alter-ego)

Adeus, Reis do Universo!...Adeus!...Adeus, Korpo-Santo!...Adeus!

(As luzes se apagam e se acendem, alternadamente, a cada três segundos; cada momento claro mostra um Korpo-Santo, enforcado até que as luzes se apagam por cerca de cinco segundos. Do meio da escuridão, ouve-se a voz de Korpo-Santo:

Sai fora, Inesperto, essa forca só tem lugar pra um!

(acendem-se as luzes, o palco vazio, em volume adequado se ouve um coro musical, ao estilo da ária mais popular de Bizet, com os versos de Eu sou vida/Eu não sou morte/É esta a minha lida/É esta a minha sorte)

Fim

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