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Diálogos, afetos e pensamento lírico: a poesia de Cecília Meireles Cláudia Dias Sampaio 2013

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Diálogos, afetos e pensamento lírico:

a poesia de Cecília Meireles

Cláudia Dias Sampaio

2013

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Diálogos, afetos e pensamento lírico:

a poesia de Cecília Meireles

Cláudia Dias Sampaio

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do título de Doutor em

Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Orientadora: Profa. Doutora Vera Lucia de

Oliveira Lins

Rio de Janeiro, 1º semestre de 2013.

UFRJ

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Diálogos, afetos e pensamento lírico: a poesia de Cecília Meireles

Cláudia Dias Sampaio

Orientadora: Profa. Doutora Vera Lucia de Oliveira Lins

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria

Literária).

Examinada por:

___________________________________________

Presidente Profa. Dra. Vera Lucia de Oliveira Lins (UFRJ/ Ciência da Literatura)

_____________________________________________

Profa. Dra. Beatriz Resende (UFRJ/ Ciência da Literatura)

___________________________________________

Profa. Dra. Regina Aída Crespo (UNAM/ Centro de Investigaciones sobre América

Latina y el Caribe)

____________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Diniz (UFRJ/ Ciência da Literatura)

__________________________________________

Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ/ Letras Vernáculas)

Rio de Janeiro, março de 2013.

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Sampaio, Cláudia Dias

Diálogos, afetos e pensamento lírico: a poesia de Cecília

Meireles. Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2013.

Orientadora: Vera Lucia de Oliveira Lins

Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2013.

Referências Bibliográficas: f. 202 a 213.

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A Nina, meu motivo da rosa, e Francisco, meu tutor de azul.

Aos meus pais, Tania e Cláudio, a minha irmã Tatiana

e a Leila, tia poesia (In memoriam):

poemas de amor imenso.

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Agradecimentos

Uma tese é realizada em um longo percurso, com diversos diálogos.

Atravessa a vida, e muitas vidas atravessam uma tese.

Este é o espaço para o “muito obrigado”

a todos com quem gostaria de compartilhar essa realização.

A Vera Lins, minha orientadora, que acompanhou e sempre apoiou as tantas histórias de

vida e poesia aqui presentes, pelo que aprendi com a sabedoria de seus diálogos.

Ao CNPq pela bolsa que tornou possível este trabalho.

A Capes pela oportunidade da pesquisa na Cidade do México.

A Francisco Kochen, que transformou minha vida em poema de amor imenso, pelas

aulas de azul e por ter me inserido na beleza das imagens mexicanas.

A Ieda Magri, amiga de diálogos infinitos, pelas boas leituras sempre tão amorosas e

pelo apoio e incentivo fundamentais.

A Regina Crespo, co-orientadora, pela carinhosa recepção e apoio generoso durante

minha experiência como pesquisadora no exterior.

Aos professores da Faculdade de Letras da UFRJ: Jorge Fernandes da Silveira (com

quem compartilho a paixão pela poesia de Cecília Meireles) e Martha Alkmin, que

estiveram presentes na qualificação, e Julio Dalloz, pela contribuição que deram para o

rumo deste trabalho. A Dau Bastos, pelos ensinamentos com o texto literário e pela

amizade e incentivo de tantos anos. A Ronaldo Lima Lins, pelo entusiasmo com que me

recebeu nas primeiras aulas que assisti nesta Faculdade.

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Aos professores: Luiz Costa Lima (PUC-RJ), Ana Maria Domingues (Unesp), Anita

Leandro (ECO-UFRJ) e Jeanne Marie Gagnebin (Unicamp).

Aos amigos da Faculdade de Letras da UFRJ: André Vinícius Pessoa, Ana Maria

Bernardes e Clarissa Pena.

Aos funcionários da Fundação Casa de Rui Barbosa (em especial a Leonardo Cunha e

Cláudio Vitena), Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e Real Gabinete

Português de Leitura (em especial a Vera Lúcia de Almeida).

A Daniela Vidal, amiga e construtora de pontes entre México e Brasil, quem me

apresentou a Alfonso Reyes, e me trouxe música, cores e sabores do México.

A amiga Diana Lopez Font, pela hospitalidade generosa e pela afetuosa convivência

durante a primeira estadia na Cidade do México, e que transformou belamente minha

vida.

A Clara Zuñiga, Joana Araújo, Juliana Rondon, Leandro Pimentel, Luciana Fleischman

e Sidnei Cruz pelo conforto vital de suas amizades.

A minha família mexicana, pela amorosa acolhida: La abuela Evelia Beristain, aos tios

Kochen, Evelia, Viviana e Juan, a tia Carolina Rodriguez, e aos tios Salvador Lutteroth

e Férmin Sánchez. Aos primos Matias, Gala, Juan e Fed. E a Olmo Kochen, pelo

carinho das deliciosas cenas.

A amiga e professora do Instituto de Investigações sobre a Universidade e a Educação

da UNAM, Renate Marsiske, por todo carinho e pela alegria de sua companhia.

Aos amigos no México, pelo afeto da recepção: Gerardo Hellion, Rodolfo Mata,

Enrique Rodríguez, Javier Malpica, Mônica Brozon, Ana Romero, Juan Carlos

Quezadas, Costanza Patán, Enrique Brozon, Leopoldo e Tere Vidal.

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A Sra. Alicia Reyes e a Eduardo Mejía da Capilla Alfonsina, pela cuidadosa atenção.

Aos funcionários da Biblioteca Daniel Cosovo, do Colégio de México (especialmente a

Lourdes Quiroa), e da Biblioteca Nacional do México (UNAM).

Aos companheiros de curso no Centro de Investigaciones sobre América Latina y el

Caribe (UNAM).

Ao professor da Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM, Oscar Lopez, e aos alunos

do curso de Literatura Iberoamericana.

Pelos diálogos poéticos que aconteceram em algum momento do percurso com:

Adolfo Lachtermarcher, Angélica Tironi, Ellen Spielman, Javier Garcia, Lourdes

Grzybowski, Lucía Yañez, Mariana Cruz, Paulo Tiefenthaler, Roosivelt Pinheiro

Salmo Dansa, Santiago Bustelo e Silvana Jeha.

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RESUMO

A escrita de cartas foi uma atividade constante para Cecília Meireles. Por seu caráter

lacunar, fragmentário e de índice de afastamento físico as correspondências estão em

afinidade com dimensões fundamentais da vida e da obra da poeta: distância e ausência.

Assim, tomando as cartas por elemento importante na construção de sua obra, propomos

uma leitura da poesia de Cecília Meireles em conjunto com algumas cartas que ela

trocou entre 1930 e 1960 com amigos e escritores. Entre eles, Isabel do Prado, cuja

correspondência apresenta uma espécie de diário de construção de o Romanceiro da

Inconfidência, e com o poeta e intelectual mexicano Alfonso Reyes, um dos principais

críticos e ensaístas da América Latina no século 20.

A correspondência de Cecília pode ser tomada como espaço autobiográfico de

exercício de construção ficcional e diálogos interculturais, o que contribuiu para uma

dicção singular da poeta e acabou por colocá-la em um lugar excêntrico em relação aos

seus contemporâneos modernistas. As cartas dirigidas à amiga Isabel do Prado,

pesquisadas no acervo da Casa de Rui Barbosa, constituem material valioso para

refletirmos sobre a relação entre autobiografia e poesia na obra de Cecília, na escrita das

cartas como lugar de construção de sua obra, e na importância das redes de amizades

entre escritores para o fortalecimento cultural de uma sociedade.

Outro corpus de relevo é a correspondência com o poeta mexicano Alfonso

Reyes, que se encontra no Museu Capilla Alfonsina, na Cidade do México. Neste caso,

a importância explica-se por aí encontrarmos um dos pontos fortes da articulação

político-estético-cultural empreendida pela autora, sobretudo no que se refere à

Educação e à Cultura mexicana como parâmetros para as transformações sociais

idealizadas por Cecília Meireles para o Brasil e às tentativas de diálogos entre o Brasil e

a América Latina.

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RESUMEN

La escritura de cartas fue una actividad constante para Cecilia Meireles. Debido a su

naturaleza incompleta, fragmentaria e de índice de aislamiento físico, las cartas

mantuvieran una relación de afinidad con dos dimensiones fundamentales de la vida y

obra de la poeta: la distancia y la ausencia. Así, tomando las cartas como un elemento

importante en la construcción de su obra, proponemos una lectura de la poesía de

Cecilia Meireles paralela a la de algunas de las cartas que intercambió entre 1930 y

1960, con amigos y escritores. Entre ellos, se eligieron a Isabel do Prado, cuya

correspondencia se presenta como una especie de diario de la construcción del

Romanceiro da Inconfidência, y al poeta e intelectual mexicano Alfonso Reyes, uno de

los principales críticos y ensayistas de América Latina en el siglo 20.

Las cartas de Cecilia pueden ser analizarse como espacio autobiográfico de ejercicio de

construcción ficcional y diálogos interculturales, lo que contribuyó para la dicción

exclusiva de la poeta y, finalmente, la puso en un lugar excéntrico a de sus

contemporáneos modernistas. Las cartas enviadas a su amiga Isabel do Prado,

depositadas en el archivo de la Casa de Rui Barbosa, constituyen un valioso material

para reflexionar sobre la relación entre poesía y autobiografía en la obra de Cecilia,

sobre la escritura de las cartas como un lugar para construir su obra, y sobre la

importancia de las redes de amistad entre los escritores para el fortalecimiento de la

cultura de una sociedad. Cecília envió varias cartas al poeta mexicano Alfonso Reyes,

que forman parte del acervo del museo Capilla Alfonsina, en la Ciudad de México. Esta

correspondencia fue importante porque representó uno de los puntos fuertes de la

articulación político-estético-cultural llevada a cabo por Cecília Meireles, especialmente

en relación con la educación y la cultura mexicanas, que la poeta utilizó como

parámetros para las transformaciones sociales que deseaba para Brasil y con su interés

por el diálogo entre Brasil y América Latina.

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Sumário

Pensamento lírico 15

I. Correspondência e amizade: construindo horizontes 19

1. Romanceiro da Inconfidência, cartas com Isabel do Prado 39

2. Amizade e pensamento lírico 61

3. Cartas, amizade, poesia 70

Mário de Andrade: correspondências 73

Alfonso Reyes, cartas aos amigos 78

4. Cecília e Reyes 83

5. Brasil e México, poemas e correspondências 89

II. Uma rede latino-americana:

Cecília Meireles, Gabriela Mistral e Alfonso Reyes 105

1. “Carta del Brasil” 106

2. Por uma formação humanista para a América Latina 111

3. A poesia infantil de Cecília e Gabriela 113

4. Uma tradutora para a rainha Quéchua 116

5. Dame la mano: poética da convergência na América Latina 120

6. Educar para transformar 124

7. México: tierra madre 127

8. Vida e Ficção 133

III. A modernidade da estética de Cecília Meireles:

interculturalidades e convergências 143

1. Mais moderna que modernista 144

2. Cecília e o simbolismo 148

3. Medida da significação e os laços com o épico 167

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IV. Cartas e poemas: autorretratos 176

1. O leitor nas cartas e nos poemas 177

2. Busca de si e encontro com o outro 185

3. Palavra: entre a eternidade e o momento 196

Considerações finais 200

Referências bibliográficas 202

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Pensamento lírico

O conhecimento de si foi considerado pelo poeta Rimbaud como essencial à

formação de um poeta. Em Lettre du voyant, escreve: “La première étude de l’homme

qui veut être poète est sa propre connaissance, entière; il cherche son âme, il l’inspecte,

il la tente, l’apprend”. Nessa carta a Paul Demeny (1871), o poeta francês apresenta a

célebre expressão que coloca em xeque a concepção cartesiana de sujeito. O “je est un

autre” diz da complexidade da relação entre pensamento e subjetividade: “Car Je est un

autre. Si le cuivre s´éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’ est évident: J’

assiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je l’écoute, je lance un coup d’archet: la

symphonie fait son remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène.”1.

Somando o pensamento de Rimbaud ao de outro poeta, Paul Celan, chegamos à

compreensão de que, na poesia, a busca de si é empreendida como possibilidade de

encontro com o outro. Diz Celan:

O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por

conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa,

lançada ao mar na convicção – decerto nem sempre muito esperançada – de

um dia ir dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste

sentido os poemas estão a caminho – têm um rumo (Celan, 1996, p. 34).

Podemos então pensar em três vias possíveis para essa abordagem de si como

possibilidade de encontro com o outro: o saber teórico-especulativo, a experiência da

vida, e a reflexão ficcional empreendida pelo poeta – entendendo o ficcional como

próprio também à poesia, e não limitando-o à prosa, como ocorre com frequência. Desse

modo, a capacidade de investir pela via ficcional no conhecimento de si, somada aos

diálogos que o poeta mantém com seus pares – críticos, teóricos e poetas –, é o que

1 “O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, inteiro, ele procura a

sua alma, a inspeciona, a tenta, a aprende. (...) Com efeito, EU é outro. Se o cobre acorda clarim, a culpa

não é dele. Para mim, é evidente: assisto à eclosão do meu pensamento: fito-o, escuto-o: dou com o golpe

de arco no violino: a sinfonia tem um estremecimento nas profundidades ou salta de súbito para a cena”.

(Rimbaud, A.“Lettre du voyant”. Carta de um vidente. Trad. da autora).

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tornaria pertinente a hipótese de um pensamento lírico, constituído pelos diálogos,

afetos e pela construção da linguagem poética.

Nesse sentido, trazer os diálogos entre escritores como fonte de aproximação

desse pensamento lírico pode ser uma maneira de ampliar as margens da pesquisa sobre

a lírica moderna. Tendo em vista a poesia produzida a partir de Charles Baudelaire,

refiro-me à “modernidade poética” pensando na ideia de “exploração dos poderes de

uma linguagem desviada do seu uso comunicacional”, como expressou Jacques

Rancière, em A partilha do sensível (Rancière, 2005, p. 38).

Por essa concepção de modernidade, dilui-se um aspecto tão presente no século

XXI: o de tornar descartável o que já não mais corresponde ao anseio da novidade

ditada por uma política do consumo. Desse modo, os diálogos do passado recuperam

suas vozes e dilatam as possibilidades de percepção que temos de nosso tempo.

O fato é que a necessidade dos vazios e do silêncio se evidencia em tempos de

oferta de felicidade eterna e de falta de aceitação da finitude humana, próprios de um

sistema que toma o consumo e a novidade como necessidades vitais. Nesse sentido, a

linguagem poética se coloca como resistência, utopia, pois se apresenta como

possibilidade de reconquista do vazio e do silêncio intrínsecos à humanidade.

Na poética de Cecília Meireles há um convite obstinado ao silêncio, necessário

ao movimento de encontrar a si e ao outro. Como lemos em um dos versos de “Auto-

retrato”:

(...) Nem me lamento

nem esmoreço:

no meu silêncio

há esforço e gênio

e suave exemplo

de mais silêncio.

Arredia a classificações normativas, sua obra surge com o modernismo

brasileiro, mas mantém dicção própria, resultado do interesse pela exploração dos

recursos expressivos da arte verbal que a aproximou das tradições simbolista e das

métricas clássicas da poesia lusófona. Uma poética em que versos livres se mesclam a

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redondilhas, plasmada por referências de poetas árcades, simbolistas, modernistas,

romanceiros e cancioneiros.

O impulso para a exploração da linguagem efetuado pela poeta surge talvez

desse lugar excêntrico, acentuado, inclusive, pela tímida inserção do movimento

simbolista no Brasil e pela vocação brasileira por uma alegria solar “que sintonizava

com o nacionalismo ufanista propagado por um modernismo hegemônico futurista e

construtivo que acabou por atrofiar um outro veio do moderno”, o que resultou, segundo

a análise de Vera Lins, num recalque do trágico (Lins, 2005, p. 66).

É instigante pensar nos porquês da opção por essa alegria solar e efusiva à

consciência do transitório, da melancolia e da dor; inevitável àqueles que intencionam

construir uma reflexão consistente sobra a vida e a arte. Afinal, como observou Adorno,

“nenhuma obra de arte moderna que valha alguma coisa deixa de encontrar prazer na

dissonância e no abandono” (2006, p. 62).

O poema “Improviso”, de Belo Belo (Bandeira, 1967, p. 324), que contém o

conhecido verso “Cecília, és libérrima e exata”, é fonte interessante para pensarmos em

como se apresenta, na obra da autora, a potência expressiva do silêncio. Ao chamá-la

“diáfana”, Manuel Bandeira aproxima o leitor da camada que Cecília parece ter

incessantemente perseguido em sua poética: a capacidade estética manifesta na

qualidade translúcida do não-dito. O que nos mostra que o processo de comunicação,

como nos diz Wolfgang Iser, não se realiza através de um código, “mas sim através da

dialética movida e regulada pelo que se mostra e se cala” (Iser, 1996, p. 90).

Negação e lacunas estão intrinsecamente ligadas na teoria de Iser. São elas que

“conferem ao texto ficcional uma densidade característica, por meio de omissões e

cancelamentos, revelando traços não-explicitados” (Iser, 1999, p. 31).

A incerteza move a obra de arte e a constitui. Essa porosidade, por onde circula

o movimento de produção na recepção da arte, é intensificada na linguagem poética. Por

isso, procuraremos pensá-la a partir do discurso também fragmentado e poroso das

correspondências.

No Capítulo I trataremos das relações entre cartas, amizade, pensamento e

poesia, a partir das correspondências de Cecília Meireles com Dulce Lupi Osório de

Castro, Diogo de Macedo, Afrânio Peixoto, Fernanda de Castro, Alberto de Serpa,

Isabel do Prado, Mário de Andrade e Alfonso Reyes. O Capítulo II traz a discussão

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sobre uma rede latino-americana que despontou nos anos 1940, constituída pelos poetas

Cecília Meireles, Alfonso Reyes e Gabriela Mistral e que tinha por objetivo comum a

proposta de uma formação humanista para a América Latina. Os diálogos interculturais

tão presentes na poética de Cecília são o tema do Capítulo III que apresenta a discussão

sobre a modernidade estética de sua obra. Por fim, no Capítulo IV, o tema é a questão

autobiográfica nas cartas e nos poemas, desde a perspectiva do autorretrato, pensando

nas relações da obra da poeta com as artes plásticas.

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I. Correspondência e amizade: construindo horizontes

As cartas de CM são, todas elas, documentos de grande riqueza humana e

mesmo quando analisadas em perspectiva literária e cultural interessam por

si próprias e pelo que aclaram da sua obra, pois à poética ceciliana repugna

o formalismo, devendo o encantatório da sua poesia absoluta ainda mais à

profundidades das ideias e sentimentos do que à grande musicalidade e

leveza de expressão (Cristovão, 1982, p. 33).

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Uma das intelectuais mais atuantes do século XX no Brasil, Cecília Meireles

cultivava com esmero o exercício da correspondência, que manteve com poetas e

intelectuais brasileiros e estrangeiros; entre eles Mário de Andrade, Alfonso Reyes,

Armando Cortês-Rodrigues, Alberto de Serpa, Diogo de Macedo, Fernanda de Castro,

Maria Vallupi, Augusto Meyer, Isabel do Prado, Gabriela Mistral e Carlos Drummond

de Andrade.

No âmbito do que Manuel Bandeira chamou de “cartas de minha gente”, temos a

publicação da editora Moderna, Três Marias de Cecília, que traz ao leitor as cartas e

cartões-postais que Cecília escreveu às filhas entre os anos 40 e 48, durante as diversas

atividades de difusão cultural em que esteve envolvida pelo Brasil e no exterior.

As correspondências de Cecília já foram fonte de pesquisa para estudos

significativos que compõem sua bibliografia crítica, como os de Leila Gouvêa, Valéria

Lâmego, Ana Maria Domingues de Oliveira, Jussara Santos Pimenta e Fernando

Cristovão2.

O que proponho é uma leitura da poesia de Cecília Meireles em conjunto com

algumas cartas que ela trocou entre 1930 e 1960 com amigos e escritores. Entre eles,

Isabel do Prado, cuja correspondência apresenta anotações sobre a criação de o

Romanceiro da Inconfidência3, e com o poeta e intelectual mexicano Alfonso Reyes,

um dos principais críticos e ensaístas da América Latina no século 20.

Cartas e documentos manuscritos da autora, de que se têm notícias, encontram-

se espalhados por países como Brasil, México, EUA e Portugal, onde a atuação de

Cecília já é bastante conhecida, sobretudo pelo estudo de Leila Gouvêa, Cecília em

Portugal (2001).

No Brasil, a correspondência com a amiga Isabel do Prado e com os escritores

Alberto de Serpa e Augusto Meyer é parte do acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa,

no Rio de Janeiro. Há também cartas datilografadas e manuscritos da autora que foram

2 Cf.: Cristovão, 1982., Lâmego, 1996. Gouvea, 2001. Oliveira, 2001. Pimenta, s/d: neste artigo a autora

apresenta a localização das correspondências mais conhecidas de Cecília e os acervos onde estão

localizadas.

3 Cf.: Bonapace, 1974. Adolphina Portella Bonapace foi professora da Faculdade de Letras da UFRJ. Este

estudo foi sua dissertação de mestrado. Com prefácio de Afrânio Coutinho, o trabalho apresenta uma

leitura do Romanceiro da Inconfidência a partir de uma ampla pesquisa em documentos históricos da

Inconfidência, em particular os Autos de Devassa.

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cuidadosamente guardados por seu amigo Darcy Damasceno, no arquivo que ele doou à

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. No México, as cartas trocadas com Alfonso

Reyes são parte do acervo da Capilla Alfonsina, museu que abriga a obra do escritor, na

Cidade do México.

Em “Cartas inéditas de Cecília Meireles a Maria Valupi” (1982), Fernando

Cristovão destaca a relação intrínseca que há entre o exercício da escrita das cartas e a

poesia na obra de Cecília Meireles, observando que em ambas está presente “a

profundidade das ideias e sentimentos”.

A correspondência com Maria Valupi, pseudônimo da poeta Dulce Lupi Osório

de Castro (1905-1977), aconteceu em um dos momentos mais difíceis da vida de

Cecília, quando ela acabara de perder seu primeiro marido e pai de suas três filhas, o

artista plástico Fernando Dias Corrêa. As duas cartas à Dulce datam de 1937 e 1938 e

mostram, sobretudo em suas linhas iniciais, a atitude contemplativa e reflexiva de

Cecília, em sintonia com o que observa Cristovão sobre o poema que ela dedica à amiga

portuguesa e que, assim como as duas cartas, ele reproduz na íntegra em seu artigo.

Sobre o poema, ele diz encontrar “a inspiração de quantos retratos esboçou em seus

livros de poemas: a mesma contemplação terna, a mesma atitude metafísica, a mesma

utensilagem simbolista verbal do mar, das pedras preciosas, duma vaga e indefinível

música” (Cristovão, 1982).

E é tomada por esse gosto pela reflexão filosófica, que irá marcar toda a sua

obra, que Cecília se dirige à amiga, tanto no poema que lhe dedica, quanto em seu

discurso epistolar, como mostra o seguinte trecho:

sejamos daqueles que sabem distinguir a Beleza Exata dentro dos

despropósitos humanos. Dos que surpreendem a Ordem Serena dentro dos

aparentes desastres. Dos capazes de amar a Inteligência Initingelível (sic), e

sorrir com ternura sobre as ruínas e as desgraças – como para um Serviço

indispensável, neste caminho misterioso por onde vamos seguindo

(C.M. à Maria Valupi. Rio, 24 de novembro de 1937).

O longo parágrafo com que Cecília inicia esta carta, e do qual o extrato acima

faz parte, é concluído com um pedido de desculpas pelo repentino desabafo metafísico,

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ao que segue uma justificativa: “Perdoa uma introdução quase filosófica. Voltei agora

da aula na Universidade, onde discorri sobre Confúcio”; como se o retorno à realidade

fosse urgente e necessário. Podemos perceber assim que era o próprio cotidiano, da lida

com a matéria filosófica, que a impulsionava ao pensamento abstrato. Por essa época,

Cecília dava aulas na Universidade do Distrito Federal no Rio de Janeiro, atual UFRJ, e

a Filosofia era parte do programa que trabalhava com os alunos. Textos como

“L’energie spirituelle”, de Henri Bergson e “La langage et la pensée ”, de Henry

Delacroix, eram parte da bibliografia de seu curso4.

O que temos portanto é a relação intrínseca entre a vida e a produção literária da

poeta, da qual as cartas podem ser consideradas parte integrante. Nesse trecho inicial da

carta à amiga Dulce, lemos, como observou Fernando Cristovão em relação ao poema,

“a contemplação terna e a atitude metafísica”. Estamos então diante da “serena

desesperada”.

E aqui observamos um ponto de conexão interessante entre poesia, cartas e

autobiografia. À doce Dulce, “agora vinda à tona, com o enigma e o verso”, Cecília

escreve:

aqui na areia me reclino,

e teu perfil acompanho,

levantado entre as espumas breves,

– firme cristal.

4 Cecília também apresentava aos seus alunos a Literatura do Oriente, textos Bíblicos, ensaios sobre o

teatro indiano, como por exemplo na aula do dia 7/11/1937, quando trabalhou o clássico Mahabarata, ou

no dia 12/11/1937, em que propôs a análise de Ramayana e começou a introduzir os assuntos das aulas

seguintes, sobre livros chineses e japoneses. As anotações de Vera Teixeira, que taquigrafou as aulas

dadas por Cecília na Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1937, no curso Técnica e Crítica

Literárias, mostram o currículo ousado que ela apresentava aos alunos. (Acervo Darcy Damasceno. Seção

manuscritos. Biblioteca Nacional, RJ). A UDF foi criada em abril de 1935 e foi inicialmente composta

por cinco escolas: Ciências, Educação, Economia, Direito, Filosofia e Instituto de Artes. A ideia era

formar quadros de intelectuais para o país. Anísio Teixeira esteve à frente da Universidade que, com a

instauração do Estado Novo, em 1937, acabou sendo incorporada à Faculdade Nacional de Filosofia da

Universidade do Brasil, criada em 1939, e que hoje é a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ). (CPDOC-FGV)

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Esta que, tanto na carta quanto no poema, com ternura, de longe contempla, nos

faz pensar na navegadora de Vaga Música, que buscava ensinar a primavera às areias e

gelos:

Se te perguntarem quem era

essa que às areias e gelos

quis ensinar a primavera;

(...)

essa que sofreu de beleza

e nunca desejou mais nada;

que nunca teve uma surpresa

em sua face iluminada,

dize: “Eu não pude conhecê-la,

sua história está mal contada,

mas seu nome, de barca e estrela,

foi: SERENA DESESPERADA.

(“Epitáfio da navegadora”)

Um epitáfio é uma elegia a um morto, uma inscrição tumular, e este poema que

integra Vaga Música (1942) é uma mostra de como o tema da morte está presente na

poética de Cecília Meireles. A dor da morte foi uma constante em sua vida, ela padeceu

com a perda precoce dos pais, da avó Jacinta, que a criara, e depois com a viuvez.

Desde a morte, a poeta parece buscar o mistério da vida.

Um dos poemas mais representativos desta temática na poética ceciliana é a

longa “Elegia” que ela escreveu em homenagem à avó Jacinta Garcia Benevides e que

encerra os poemas de Mar absoluto5. Na epígrafe está um trecho de Lettres à un jeune

poete, de Rilke. Aqui reproduzimos do original o parágrafo completo:

5 Sobre o tema da morte em Cecília há o ensaio de Ana Maria Domingues, “Cecília Meireles e a

reinvenção da morte”, em que ela faz uma análise justamente da “Elegia”, de Mar absoluto. A autora

defende que a morte na poética ceciliana não representa uma aniquilação, mas sim “um patamar de

perfeição inatingível durante a vida”. Disponível em http://cpd1.ufmt.br/meel/arquivos/artigos/33.pdf

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24

Que soberania na calma que contém esses sons, tais forças em movimento!

E quando pensamos que a isso se soma a presença do mar, no entanto,

distante e que ela se parece ao som mais íntimo de uma harmonia pré-

histórica, então podemos desejar-lhes que se abandonem com fé e paciência

a ação desta magnífica solidão. Nada mais poderá privar sua vida. Ela

transcorrerá em silêncio de um modo contínuo e eficaz como uma força

desconhecida em tudo que você viver e fizer como faz em nós o sangue de

nossos ancestrais que forma, com o nosso, esta coisa inigualável que não se

repetirá em outro lugar, que nos representa em cada turno de nossas vidas.6

A poeta começa sua Elegia “desenhando” diferentes cenas de um cotidiano que

palpita, como a voz dos pássaros e das águas a correr, o canto das cigarras, trovões que

“caminham por cima da terra, agarrados ao sol”, para, então, constatar a ausência da avó

diante dessa sucessão de acontecimentos.

Mas tudo é inútil

porque os teus ouvidos estão secos como conchas vazias,

e a tua narina imóvel

não recebe mais notícia

do mundo que circula ao vento.

6 Quelle souveraineté dans le calme qui contient de tels bruits, de telles forces en mouvement ! Et quand

on pense que s’y ajoute la présence de la mer pourtant lointaine et qu’elle y résonne comme le son le plus

intime d’une harmonie préhistorique, alors on ne peut que vous souhaiter de vous abandonner avec foi et

patience à l’action de cette solitude magnifique. Rien ne pourra plus en priver votre vie. Elle agira en

silence d’une manière continue et efficace comme une force inconnue sur tout ce que vous vivrez et ferez,

comme fait en nous le sang de nos ancêtres qui forme avec le nôtre cette chose sans équivalence qui

d’ailleurs ne se répétera pas, que nous représentons à chaque tournant de notre vie. Em:

http://c.hartmann.perso.sfr.fr/lecture/html/Rilke_Lettres_a_un_jeune_poete.html. (trad. da autora). Cecíla

foi tradutora de Rilke, o resultado de seu trabalho pode ser conferido na seguinte edição que realizou em

parceria com Paulo Rónai: Cartas a um Jovem Poeta (trad. de Paulo Rónai) e A Canção de Amor e de

Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke (trad. de Cecília Meireles), ed. Globo, 8a edição, 1976.

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25

O que sentimos é que a morte é vista como parte dos ciclos da natureza. E a

tristeza, o lamento da poeta, é não poder mais compartilhar com a avó dessa vida

pulsante.

Minha tristeza é não poder mostrar-te as nuvens brancas,

e as flores novas, como aroma em brasa,

com suas coroas crepitantes de abelhas.

O poema está dividido em oito partes. No sexto movimento lemos a

apresentação do universo ficcional, onde a morte é transformada em matéria verbal.

Tudo cabe aqui dentro:

vejo tua casa, tuas quintas de frutas,

as mulas deixando descarregarem seirões repletos,

e os cães de nomes antigos

ladrando majestosamente

para a noite aproximada.

A oitava parte remete ao presente, e é cheia de pesares: “Hoje! Sem cigarras nem

pássaros.” Mas uma estrofe mostra o poema como lugar de encontro, nos leva a pensar

na epígrafe, o encontro dos sangues e do que é ancestral, como se a morte aqui

apresentada fosse a tônica do que nos faz reviver:

Alegra-te, aqui estou,

fiel, neste encontro,

como se do modo antigo vivesses

ou pudesses, com a minha chegada, reviver.

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26

O modo antigo de um morto é o que este era em vida, e o poeta “irmão das

coisas fugidias” (“Motivo”, de Viagem) pode, no poema, tornar a esse “modo antigo” e

fazer da morte uma nova vida, a vida do poema.

Em 1964, poucos meses antes de morrer, Cecília concedeu uma longa entrevista

ao jornalista Pedro Bloch, publicada no número 630 da hoje extinta Revista Manchete

(edição de 16/05/1964). Em um dos momentos, a poeta revela a perspectiva quase

missionária que tinha em relação à realização de sua obra e ainda sua peculiar

concepção de autoria:

Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os

momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para ser

a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém, ou de

alguém ou de alguma coisa. Quando adoeci e tinha que repousar uma hora

depois do almoço, ficava calculando quanto poema deixava de escrever,

quanta coisa linda deixava de ler e conhecer naquelas horas perdidas.

Um dos poemas de Mar absoluto apresenta o sentido do compromisso que a

obra literária tinha para Cecília, as conexões que buscava entre os antepassados e o

presente e a dimensão missionária de sua literatura:

Transportam meus ombros secular compromisso.

Vigílias do olhar não me pertencem;

trabalho dos meus braços

é sobrenatural obrigação.

Perguntam pelo mundo

olhos de antepassados;

querem, em mim, suas mãos

o inconseguido.

Ritmos de construção

enrijeceram minha juventude,

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27

e atrasaram-me na morte.

Vive! - clamam os que se foram,

ou cedo ou irrealizados.

Vive por nós! - murmuram suplicantes.

Vivo por homens e mulheres

de outras idades, de outros lugares, com outras falas.

Por infantes e velhinhos trêmulos.

Gente do mar e da terra,

suada, salgada, hirsuta.

Gente da névoa, apensa murmurada. (...) (“Compromisso”, Mar absoluto)

Nos versos desta última estrofe lemos a auto incumbência missionária de Cecilia

de dar voz aos mortos. E mais uma vez estamos diante da correspondência entre poesia

e discurso epistolar na obra da poeta. Durante o processo de criação de o Romanceiro da

Inconfidência, nas cartas enviadas pela poeta à amiga Isabel do Prado, no ano de 1949,

Cecília conta da relação peculiar que tinha com as personagens, a quem chama “meus

fantasmas”. Assim lemos, por exemplo, no seguinte trecho de uma das cartas onde ela

conta que conseguira uma licença de suas atividades como docente, e que estava em

Ouro Preto quando precisou voltar às pressas ao Rio pois uma das filhas se operara do

apêndice e outra estava com amigdalite. Nessa missiva, Cecília queixa-se também do

excesso de atividades em que estava metida, o que a impedia de se dedicar como

gostaria a elaboração de sua poesia.

(...) faço a apresentação de um conferencista no sábado, 7, promovo um

espetáculo de teatro para o fim do mês (peça de Tagore), organizo uma lista

de conferencistas daí por diante. A agencia de artigos brada lá de S. Paulo;

os amigos silenciam, desconfiados, pela minha aparente indiferença; os

meus fantasmas da Inconfidência que iam tão bem, gritam por mim, de cada

canto (...) (Carta 52, 1949)

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28

Levando em conta a observação feita por Fernando Cristovão, de que “a

profundidade das ideias e sentimentos” está presente nas cartas e na poesia de Cecília,

pensaremos também na conexão entre a ausência e a distância, que tanto caracterizam o

movimento do discurso epistolar, quanto são ícones da obra poética de Cecília.

Ausência e distância fazem parte da morte, e da vida. Desse modo, a constante

do tema da morte é somada ao incansável trabalho de construção de uma obra

constituída por uma vitalidade impressionante, que se dispõe ao leitor nas múltiplas

formas da produção textual pela qual Cecília se expressou, mostrando assim o profundo

engajamento com a vida e a face de uma escritora comprometida em estabelecer

diálogos e cultivar as relações afetivas.

Fernando Cristovão também chamou a atenção para o desafio que a poesia de

Cecília Meireles representa para a crítica literária, por se tratar de uma “poética dum

caminho próprio não enquadrável no esquema relativo da estrutura reconhecida

oficialmente”. Em “Compreensão portuguesa de Cecília Meireles” (1978), Cristovão

desenvolve um estudo sobre a recepção da poesia da autora em solo português e as

alteridades que apresenta se comparada à recepção no Brasil.

Foi com estranhamento e desconfiança que a crítica brasileira a recebeu no

primeiro momento. O maior exemplo disto foi a polêmica em torno do prêmio da

Academia Brasileira de Letras, em 1938, ao seu livro de poemas Viagem7.

A comissão julgadora ficou dividida em dois grupos. Um, liderado por Cassiano

Ricardo, defendia a premiação de Viagem, e o outro, conduzido por Fernando

Magalhães e Olegário Mariano, reivindicava o prêmio para o livro Pororoca, de

Vladimir Emmanuel. Um dos pontos de divergência foi sobre a questão da

nacionalidade. Para o grupo favorável à obra de Emmanuel, impregnada de vocabulário

indígena e paisagens típicas, Cecília era uma escritora muito mais ibérica que brasileira.

Margarida Maria Gouvêa, no ensaio “Da universal inquietude”, a propósito da

correspondência de Cecília ao poeta português Armando Côrtes-Rodrigues, faz a

seguinte análise sobre a questão do nacionalismo na obra da poeta:

7 Ver mais em: Lâmego, 1996, p.39 e 40 e Anjos, 1996. Esta dissertação apresenta ainda um panorama da

recepção crítica à obra de Cecília no Brasil e em Portugal. Ver outros estudos sobre estes assuntos em:

Oliveira, 2001.

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29

A representatividade de Cecília no espaço cultural da língua portuguesa

decorre da riqueza dos seus temas: os problemas humanos, a condição de ser

homem numa sociedade injusta, a profundidade da análise dos conflitos,

enfim, uma temática que se prende muito mais à condição humana do que a

circunstâncias de quaisquer regionalismo ou mesmo de um nacionalismo

brasileiro (Gouvêa, 2001, p. 122).

Trata-se, portanto, de uma visão muito mais ampliada do sentimento de

nacionalidade, numa perspectiva que privilegia o humano em toda sua complexidade e

idiossincrasias. Margarida Gouvêa chama a atenção para a dimensão universalista da

poética ceciliana e nos efeitos dessa opção da poeta:

Ao sentimento de brasilidade acrescenta uma dimensão universalista,

conquistando uma atitude singular, “marginal” a escolas, ideologias ou

crenças. Nos quadros referenciais do Modernismo, de espiritualidade e do

anti-positivismo, ocupa um lugar muito próprio, particular e “independente”

(Idem, p. 123).

Em um texto que escreveu para a Revista Realidad, “Carta del Brasil” (1947),

que iremos discutir mais adiante, Cecília explica a ideia que defendia do que é ser

brasileira: “Ser brasileira implica ao mesmo tempo ser geograficamente americano e

historicamente um vasto europeu, de muitos cruzamentos” (p.104).

Os poemas de Viagem mostram justamente esse interesse pelos diálogos

múltiplos e desconhecidos, como sintetiza o seguinte verso de “Diálogo”: “Minhas

palavras são a metade de um diálogo obscuro/ continuando através de séculos

impossíveis”.

Apesar das divergências entre os julgadores, a premiação de Viagem foi apoiada

pela maioria dos críticos e também pelos modernistas de 22. O amigo Mário de Andrade

dedicou um estudo ao Viagem, que seria publicado anos mais tarde em O empalhador

de passarinhos. Nele, Mário exalta a qualidade artística da poeta, justamente por seu

ecletismo:

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30

Ela é desses artistas que tiram seu ouro onde o encontram, escolhendo por

si, com rara independência. E seria este o maior traço de sua personalidade,

o ecletismo, se ainda não fosse maior o misterioso acerto, dom raro com que

ela se conserva sempre dentro da mais íntima e verdadeira poesia (Andrade,

1955, p. 71)

Diogo de Macedo (1889- 1959), escritor e escultor português, logo que recebeu

seu exemplar de Viagem, escreveu uma bela carta de agradecimento à amiga. Ele fala

das cartas e dos poemas de Cecília como uma mostra da capacidade da poeta de criar

“formas novas” e nos transmitir o que ele considera a parte digna da vida: o sonho e as

ilusões. Aqui transcrevo um trecho:

A minha coragem de hoje, devo-a a sua Viagem, que recebi há duas horas

(...). Os poetas são generosos. Por isso nos seus versos, como numa

confissão de beleza, nos abrem o próprio coração, e nos aceitam como

amigos a quem nos fazem confidencias (...).

Querida Cecilia! A Terra é que não a merece. Os seus versos dum lado, as

suas cartas do outro, provam-me que você nasceu cá embaixo por traição,

para sofrer injúrias e injustiças no contato com a vida, embora seja dela que

você extrai a sua maravilhosa obra, sublimando-a através de sua imaginação

de poetisa por graça de Deus, com uma liberdade preciosa de mulher, que

por uma sensibilidade privilegiada, e usando de formas novas e muito

pessoais, nos transmite a única parte dela digna de ser vivida, que é o sonho,

o deslumbramento adorável das ilusões (Carta de Diogo de Macedo à

Cecília Meireles, 18 de setembro de 1939)8.

Nessa mesma data, Cecília recebeu a carta (em papel timbrado da Academia

Brasileira de Letras) de Afrânio Peixoto (1876-1947), crítico e historiador que fazia

parte da Academia Brasileira de Letras. Também demonstrando seu agradecimento

pelos versos de Viagem, ele revela sua grande admiração pela poeta.

8 Arquivo Darcy Damasceno. Seção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Loc.

26,4,31.

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31

Dona Cecilia, minha senhora, ia dizer meu poeta...

Mil graças pelo seu livro “Viagem”, coisa tanto do meu agrado, única que

ora fosse fazer, ao sonho, e em companhia da musas... Já de longe lhe foi

uma declaração. Desde “Nunca mais”: era meu único poeta, no Brasil,

mesmo fora do Brasil.(...). Dona Cecilia, como lâmpada votiva, ficou,

sempre, ela mesma: aclarando... a caminhada de Psyche. “Não sou alegre

nem triste: sou poeta”. Canta. Cante, como a outra, primeira? primavera?

Cecilia, tangia música... Minha senhora e musa, obrigado! Vou viajar... ao

sonho! (Carta de Afrânio Peixoto para Cecília Meireles, 18 de setembro de

1939)9.

Tanto Diogo de Macedo quanto Afrânio Peixoto se referem ao universo onírico

presente em Viagem. Recorrentes são os poemas que se referem a isso, como

“Anunciação” (“É mais fácil pousar os ouvidos nas nuvens/ e sentir passar as estrelas”);

“Canção” (“No desequilíbrio dos mares, / as proas giravam sozinhas...”); “Gargalhada”

(“Não vês? / É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.”) Síntese da

proposição do livro, e porque não dizer também da obra poética de Cecília, é o poema

“Encontro”. Nele figura o diálogo com o leitor e a imagem revelada da poeta como

parte da natureza, ser mortal, “sustentada só de sonho”, que se lança aos braços de quem

a lê e faz do jogo e do pensamento, o ler o escrito, uma viagem por onde passam

sonhos, a natureza, e as imagens de si mesma e do poema como um desenho.

(...) Tu bem sabes que sou uma chama da terra,

que ardentes raízes nutrem meu crescer sem termo;

adestrei-me com o vento, e a minha festa é a tempestade,

e a minha imagem, como jogo e pensamento,

abre em flor o silêncio, para enfeitar alturas e ermo.

(...)

Pois eu, que sinto bem esses teus braços paralelos,

na atitude sem dor que é o rumo e o ritmo dessa viagem,

9 Idem. Loc. 26,4,38.

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32

digo que não cairei com uma fadiga permitida,

que não apagarei este desenho puro e ardente

com que, de fogo e sangue, foi traçada a minha imagem.

Viagem é dedicado aos “amigos portugueses”. Podemos pensá-lo como uma

viagem interior, cujo rumo e o ritmo estão no diálogo com o leitor. Cassiano Ricardo

defendia que o livro fosse premiado como hors concours, como nos mostra seu parecer,

publicado em 1939 na Revista dos tribunais:

Trata-se de um livro de grande e inconfundível poesia. Está num plano que

se diria “hors concours”. Premiá-lo é dever da Academia, que ainda poderia

realçar tão justa homenagem à extraordinária poetisa não distribuindo

segundo premio nem menção honrosa aos demais concorrentes. Estes serão

suficientemente poetas para compreender e admirar o valor solitário de

Cecília Meireles, deixando-a que cante sozinha. Quando canta o uirapuru, os

outros pássaros ficam quietos... (Ricardo, 1939).

Em duas cartas escritas por Cecília aos amigos e poetas portugueses, Fernanda

de Castro (1900- 1994) e Alberto de Serpa (1906- 1992), lemos suas considerações

sobre o episódio da polêmica premiação da Academia Brasileira de Letras. A carta à

Fernanda é de dezembro de 1938, Cecília pede a ajuda da amiga pois recebera um

convite para publicar o livro (Viagem). De certo, Fernanda foi uma das que primeiro leu

esses poemas, pois Cecília os havia dado a ela antes de enviá-los ao concurso.

Justamente por isso, ela escreve à amiga:

Quando eu mandei o livro, não deixei cópia fiel do original. Esqueci-me de

muitos títulos, e principalmente, não sei a ordem de colocação dos poemas.

Não sei quando poderei ter vista do original. Talvez nunca. Então, para o

Pinto não ficar muito zangado e cantar de galo comigo, fui pondo títulos à

vontade, agora, nesta cópia - embora te jure que não sei si aceitei nem

sequer com os dois poemas citados pelo relator, o que me parece uma coisa

do outro mundo! Isso é engraçado, mas não é o importante. O importante é a

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colocação. Essa eu acho que nem Deus se lembra mais qual seja. Lembro-

me apenas que o critério foi este: alternar poemas em prosa, canções, e 13

epigramas. Os epigramas estão distribuídos proporcionalmente, e o livro

termina exatamente com o que diz: “Passaram os reis coroados de ouro”.

Na edição que veio a público encontramos a organização dos poemas bem

próxima a essa que Cecília explica a Fernanda, com os treze epigramas distribuídos

proporcionalmente.

O “Epigrama 13” encerra o livro:

Passaram os reis coroados de ouro,

e os heróis coroados de louro:

passaram por estes caminhos.

Depois vieram os santos e os bardos.

Os santos, cobertos de espinhos.

Os poetas cingidos de cardos.

A carta à Fernanda revela que Cecília já sabia do parecer favorável de Cassiano

Ricardo, e só estava esperando a confirmação de que o livro seria de fato premiado,

pois, assim, constaria na capa a menção ao prêmio.

(...) o secretario da Acad. mostrou-me confidencialmente o parecer chegado

de S. Paulo, do C. Ricardo, relator da comissão julgadora, no qual me é

concedido o prêmio, nas condições que verás pela cópia que te mando. O

parecer deve ser lido à Acad. na sessão de 15. Se algum inimigo meu não

fizer alguma escandalosa oposição, tudo está bem. (C.M. a Fernanda de

Castro. RJ, 11 de dezembro de 1938) 10

.

10

Arquivo Darcy Damasceno. Seção Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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34

Mas os inimigos se rebelaram, e, cinco meses depois, Cecília narrou a Alberto

de Serpa sua versão sobre o episódio. Segundo ela, a relutância de dois dos jurados em

lhe conceder o prêmio era fruto de uma implicância pessoal.

Assim conta ao amigo:

Mandei à Academia um velho livro, para o concurso de poesia. A comissão

conferiu-me o prêmio (Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo e João

Luso). Mas o Fernando Magalhães, que é um ginecologista-orador

(coitadinho dos recém-nascidos!) de quem eu tive ocasião de afirmar, e

comigo o sustentam todos os entendidos, que não entende de pedagogia, -

eu era cronista da matéria, num jornal daqui impugnou o parecer da

comissão. Isto foi em dezembro. De então para cá, andaram os jornalecos

movidos por ele a fazer escândalo em redor do caso. Ele não podia declarar-

me o seu velho ódio, o que tiraria o valor das suas afirmações. Então,

inventou esta coisa insustentável: que os demais livros não tinham sido

abertos, conservando-se nos seus “envólucros lacrados” e que o prêmio me

era dado por eu ser mulher, etc, etc, etc – dispense-me de repetir o que v.

imagina que deve ter dito um homem sem-vergonha, que tem uma vida

cheia de coisas abomináveis, e uma língua florida de trapos, mas cancerosa

de calúnias (C.M. a Alberto de Serpa. R.J., 31 de maio de 1939) 11

.

Junto à carta, Cecília enviou a Alberto um recorte de jornal com o parecer de

Cassiano Ricardo, segundo ela:

um pouco rude p/ os infelizes candidatos, mas desculpável num homem que

pretendeu ser justo e agiu com a maior pureza em tudo isso, e recebeu as

acusações mais idiotas e clangorosas que é capaz de fazer um ginecologista

burro e mau, que Deus teve a ideia de dotar de veia verborrágica e voz de

barítono.

11

Fundação Casa de Rui Barbosa.

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35

Alberto de Serpa ainda não havia lido os poemas de Viagem, é o que sabemos

pela resposta que ele enviou à Cecília em 26 de julho de 1939: “Espero a Viagem com a

maior ansiosidade e prometo-lhe uma critica lírica (doutoral, não sei fazer...)”. Comenta

o caso como “o escandaloso prêmio que a Academia concedeu a Viagem” (Carta de

Alberto de Serpa - 26 de julho de 39)12

.

Eu já sabia que a Cecilia tinha inimigos, mas pensei que tinham vergonha de

atacar os seus lindíssimos versos. Chega a ser comovedora, a posição que

tomaram contra si. Julguei que uma coisa dessas só seria possível na

Academia das Ciências de Lisboa. E pena que todos não lhe façam justiça e

queiram arrastar a Cecilia para esses caminhos que só deviam pertencer aos

homens...

Sobre a defesa de Cassiano Ricardo, Alberto de Serpa diz que esta “não deve

estar a altura do livro”, e termina a carta exaltando Cecília como “a maior poeta do

Brasil!” (idem).

Mesmo após decidirem dar o prêmio à Cecília, a polêmica não foi encerrada.

Convidada a discursar na cerimônia de entrega dos prêmios, Cecília sofreu com a

censura a trechos de seu texto, por isso, ela acabou preferindo não estar presente na

ocasião.

Assim inicia o discurso que não foi lido pela poeta: “Mais do que por sua eleição

própria, minha situação, nesta cerimônia, é ainda uma das tantas fatalidades que

aguardavam, nestes agitados mares acadêmicos, a minha bem desinteressada ‘Viagem’”.

Encontramos o texto do discurso no arquivo do amigo Darcy Damasceno que aponta,

com palavras da própria Cecília, o motivo pelo qual ela decidiu não comparecer na

entrega do prêmio:

Em carta dirigida ao autor, e respondendo a um pedido de autorização para a

publicação desse admirável discurso, assim explica Cecília Meireles o

motivo pelo qual deixou de prenunciá-lo na sessão de entrega do premio: “A

Academia designou-me para oradora, prevenindo-me de que havia censura

12

Arquivo Darcy Damasceno. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, seção manuscritos. Loc. 26,4,36.

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36

acadêmica mas referentes apenas a ataques a Pátria, a família e a pessoas

dos acadêmicos. Escrevi esse discurso. Cortaram os trechos que vão

indicados. Achei que a censura se tenha excedido. Não falei”.

A postura combativa contra a censura, e as cartas escritas por Cecília à Fernanda

de Castro e a Alberto de Serpa, nos mostram uma face pouco revelada da escritora. Os

insultos contra Fernando Magalhães estão bem distantes da placidez com a qual ela

sempre se apresentou publicamente. Isso nos faz pensar nos limites da encenação de um

escritor. O desabafo ao amigo seria algo confidencial, ou, ao escrever as cartas, Cecília

estaria, sim, permitindo que seu leitor (das cartas) conhecesse outras faces de sua

biografia?

“Encenação” é um dos conceitos elaborados por Wolfgang Iser em sua teoria do

efeito estético. Ele a considera uma categoria antropológica, sinônimo da “plasticidade

do ser humano, da presença de uma ausência” (1996, p. 356). No exercício da

encenação comprovamos os padrões a que nos submetemos e, também, por ela,

liberamos o impulso para subverter estes padrões, já que incorporamos nossa alteridade

no “espelho das possibilidades”. O teórico alemão argumenta que esta incorporação

pode estar “na raiz a partir da qual o deleite estético emerge”. Assim, para alcançarmos

essa construção, de integrarmos nossa alteridade ao “espelho das possibilidades”, é

necessário um enfrentamento com nossa própria subjetividade. Por isso, Iser define a

encenação como “o esforço incansável para o confronto do ser humano consigo mesmo”

(idem, p. 362-3).

Podemos pensar as cartas de Cecília Meireles como uma expressão deste

confronto subjetivo e ainda como espaço de subversão, na medida em que são reveladas

novas faces de sua biografia, construídas a partir do discurso epistolar, em um

movimento que nos sugere uma elaboração autobiográfica. E nesse “espaço

autobiográfico” encontramos uma produção estética cuja potência está na criação de

uma narrativa que articula a expressão da experiência pessoal à História, conforme

propôs Paul de Man (1989).

Ao analisar a relação entre a correspondência e a obra de Kafka, Gilles Deleuze,

afirmou que as cartas, consideradas tradicionalmente uma “literatura menor”, são

contudo parte da máquina de escritura ou expressão (Deleuze, Gilles e Guattari, Félix,

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1977, p. 43-64). No caso de Cecília, as cartas sugerem como um espaço autobiográfico,

e são parte integrante de sua poética, lugar de exercício de construção subjetiva

fundamental para o desenvolvimento de sua linguagem e de sua formação de escritora.

A escrita epistolar de Cecília pode então ser pensada como um importante

material do ponto de vista de uma construção autobiográfica e biográfica, de uma autora

que sempre se preocupou em escrever ela mesma sua biografia. Em Olhinhos de gato,

por exemplo, escrito entre 1939 e 1940, estão presentes as memórias da infância da

autora, numa narrativa em terceira pessoa voltada para o público infantil. Darcy

Damasceno tinha a intenção de fazer uma biografia da amiga, conforme nos conta Leila

Gouvêa (2008, p. 49), e nos confirmam as anotações que ele fez sobre diversos

episódios da vida da poeta e sobre sua obra13

. Mas a intenção não se concretizou. Não

tenho notícias de uma biografia consistente e significativa de Cecília Meireles. Já as

cartas, pelos diversos prismas que oferecem da personalidade da escritora, podemos lê-

las como uma possibilidade de autobiografia não linear, e com toda a riqueza de

nuances que contêm as narrativas fragmentadas.

A sugestão que apresento é a de observarmos as correspondências de Cecília

como espaço autobiográfico em que são refletidas diversas possibilidades de formas de

escrita, como o ensaio e o diário. Como vemos no caso da construção de o Romanceiro

da Inconfidência que se desenvolve na correspondência com a amiga Isabel do Prado.

Inicialmente pensada para ser uma peça de teatro, a obra é resultado de quase dez anos

de pesquisa, à qual Cecília se dedicou em inúmeras viagens que fez a Ouro Preto, e que

são relatadas à amiga, como um diário da construção da obra.

Outro corpus de relevo é a correspondência com o poeta mexicano Alfonso

Reyes, que se encontra na Capilla Alfonsina, na Cidade do México, onde estive no

período entre abril e agosto de 2011. Neste caso, a importância explica-se por aí

encontrarmos um dos pontos fortes da articulação político-estético-cultural empreendida

pela autora, sobretudo no que se refere à Educação e à Cultura mexicana como

parâmetros para as transformações sociais idealizadas por Cecília Meireles para o Brasil

e às tentativas de diálogos entre o Brasil e a América Latina.

13

Os cadernos com esses apontamentos estão disponíveis no arquivo Darcy Damasceno, seção

manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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38

Acredito que a riqueza desse material epistolográfico de Cecília esteja

justamente no fato de se tratar de uma escrita híbrida; quando o artista cria algo novo,

que ainda não se estabeleceu como gênero. Minha intenção ao realizar esta pesquisa foi

também propor uma reflexão sobre a importância dos diálogos interculturais no

desenvolvimento estético, cultural, político e social de um país, e como, no caso da

poética de Cecília Meireles, eles contribuíram para a dicção poética singular da autora.

São vários os intercâmbios culturais que Cecília Meireles estabeleceu e que se

refletem em sua obra poética. Apesar de contemporânea do Modernismo de 22, a

produção da poeta, sobretudo nos anos iniciais do movimento, foi vista com ressalvas

por sua associação à chamada “corrente espiritualista” na qual estavam Andrade Muricy

e Tasso da Silveira, vinculados às Revistas Festa e Árvore Nova, das quais Cecília foi

colaboradora. E se considerarmos opiniões como a do crítico Luís Augusto Fischer, de

que o modernismo paulista “homogeneizou descritivamente a cultura letrada brasileira

ao custo de apagar diferenças relevantes” (Fischer, 2011), podemos pensar melhor nas

dificuldades dos críticos em relação à obra da poeta.

A ideia é trazer para o presente um momento da história em que artistas e

intelectuais dialogavam por um objetivo comum, e é também um convite para que

possamos pensar sobre as relações atuais entre Brasil e América Latina. Tema que vem

ganhando cada vez mais relevo nos estudos culturais e de literatura.

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39

1. Romanceiro da Inconfidência, cartas com Isabel do Prado

“Escrevo por precisão de me sentir junto com os amigos”

(Andrade, 1967, p. 549)

A amizade entre Cecília Meireles e Isabel do Prado fez surgir um documento

precioso, a correspondência que elas mantiveram no período entre julho de 1941 e junho

de 1953, que revela os bastidores da concepção de uma das obras de maior envergadura

na poesia de Cecília Meireles: o Romanceiro da Inconfidência. As 77 cartas foram

doadas por Isabel do Prado à Fundação Casa de Rui Barbosa, que abriga o arquivo

pessoal de importantes escritores brasileiros, e estão acompanhadas de um documento

datilografado redigido por Isabel apresentando uma pequena cronologia de sua vida nos

anos em que se correspondeu com Cecília, onde também lemos uma nota à caneta,

“cartas de Cecília Meireles doadas por mim ao arquivo-museu da Fundação da Casa de

Rui Barbosa”. Entre as cartas há somente duas escritas por Isabel à Cecília, e mais

textos de conferências e aulas que a poeta deu na Universidade do Brasil, em 1937.

Além do material da própria Isabel do Prado, como crônicas, traduções e roteiros de

seus programas de rádio, que são, também, uma mostra da profunda troca intelectual,

artística e de amizade entre as duas.

Isabel do Prado leu e traduziu poemas de Cecília Meireles para a BBC de

Londres nos anos 194014

. Sob o pseudônimo Patrícia Campos, escreveu crônicas e

reportagens que expressavam principalmente suas reflexões sobre a Guerra. Foi a

primeira mulher a ser contratada pelo serviço brasileiro da BBC (Leal, 2008). Seu

14

Na reprodução de um dos programas gravado ao vivo e transmitido em português pela BBC, após fazer

uma pequena apresentação biográfica de CM, Isabel lê poemas de um de seus primeiros livros, Nunca

mais e Poemas dos poemas, e encerra com “Balada a Philip Muir”, a saga do copeiro inglês, “Nem

Almirante, nem corsário” que atravessa o Atlântico em plena tragédia da Guerra:

“(...) Do lado do norte, há sangue nas águas do oceano.

E do lado do leste. E nas terras. Sangue inglês.

E, por baixo do mar, andam as sombras sem passos...

Philip Muir, no meio do desastre humano,

serve champanhe, hoje. Amanhã, seu sangue, talvez (...)”

Page 38: Diálogos, afetos e pensamento lírico: a poesia de … · Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Diálogos, afetos e pensamento lírico: a poesia de Cecília

40

programa radiofônico era transmitido para o Brasil desde a Inglaterra, um dos centros

do conflito durante a Segunda Guerra Mundial. A relação das crianças e das mulheres

britânicas com a Guerra foi tema das crônicas que leu em 1943 na Rádio Roquete Pinto,

no Rio de Janeiro. Em 1945 foi para a Alemanha, contratada pela United Nations Relief

and Rehabilitation Administration (UNRRA) para dar apoio aos refugiados da Guerra.

Nessa época a correspondência com Cecília foi interrompida, e retomada no ano

seguinte, quando Isabel foi trabalhar no Departamento de Educação da UNESCO, em

Paris, onde permaneceu até 1951, quando então retornou ao Brasil.

À amiga, Cecília dedicou o poema “Canção de remar” (Vaga música), lido por

Isabel em um de seus programas da BBC, e que nos remete àquele momento de torpor e

“alguma esperança” latentes em tempos de guerra:

Doce peso

desta sonolência,

leve cadência

de amor e desprezo.

Lua mansa,

pedaço perdido

do anel partido

de alguma esperança (...)

A leitura das cartas dirigidas a Isabel é material valioso para refletirmos sobre a

relação entre autobiografia e poesia na obra de Cecília, na escrita das cartas como lugar

de construção de sua obra, e na importância das redes de amizades entre escritores para

o fortalecimento cultural de uma sociedade. Podemos pensar sobre isso a partir dos

gestos de cuidado de Isabel do Prado e de Darcy Damasceno, ao doarem seus arquivos

pessoais a instituições públicas, possibilitando assim a preservação da memória da obra

da poeta desde perspectivas pouco conhecidas do público.

Isabel teve a preocupação de fazer anotações e organizar seu arquivo de

memórias da amiga Cecília, enviando uma parte à Fundação Casa de Rui Barbosa e

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41

outra ao Real Gabinete Português de Leitura, também no Rio de Janeiro. Neste, cujas

doações datam dos anos 1980, encontramos livros com os quais Cecília presenteou

Isabel. Entre eles estão as primeiras edições de O espírito vitorioso, tese que Cecília

apresentou ao concurso para professor da Escola Normal, e da antologia Poetas Novos

de Portugal, cuja dedicatória mostra o compromisso amoroso que Cecília tinha com seu

trabalho e os laços afetivos que as uniu: “Para Isabel do Prado, estes poemas que escolhi

com amor”.

O carinho de Cecília por Isabel se manifestava sobretudo pelo incentivo que

dava à amiga em suas investidas artísticas. Dizia que ele devia aproveitar a rica

experiência do que viveu, ainda mais por ter acompanhado tão de perto os episódios da

Segunda Guerra.

Na carta de 20 de fevereiro de 1947 (carta 7), Cecília cobra da amiga o livro que

ela prometera fazer sobre a romancista Amandine-Aurore-Lucile Dupin, que escrevia

sob o pseudônimo de George Sand. Musa, pintora e autora de romances socialistas no

romantismo francês do século XIX, Sand foi amante de Chopin e teve em Dostoievski

um de seus leitores mais devotos15

. Nesta mesma carta, Cecília fala sobre a importância

do “testemunho da experiência”, revelando assim o valor que tinha para ela mesma uma

escrita produzida a partir de acontecimentos da própria vida. É mais um indício da

relação intrínseca entre ficção, poesia, autobiografia e a escrita das cartas, sendo cada

uma, a seu modo, expressão das experiências de uma vida.

Tanta coisa que V. poderia fazer, Isabel, com um pequeno impulso... Suas

experiências são tão grandes, naturalmente tão ricas, e é tão necessário

sempre o testemunho da experiência!... Agora, que os dias não são do

mesmo modo tensos, V. nos poderia contar muitas coisas. Eu bem sei que

não seriam coisas animadoras. Mas não é isso também que lhe pedimos. No

meio de tantas vidas e tantas mortes, V. decerto representa um episódio

humano digno de ser narrado (carta 7 – Rio, 20 de fevereiro de 1947).

O livro sobre George Sand não deixou de ser apenas uma ideia, mas o

entusiasmo com o potencial artístico da amiga Isabel continuou animando Cecília. Em

15

Ver mais em: Kern, 2010.

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42

um momento Isabel começou a pintar, e mantinha interesses diversos, o que Cecília via

como uma virtude:

Prefiro a sua dispersão, levada por interesses múltiplos, renovados,

incansáveis, que esta direção certeira em que vejo perderem-se tantas

criaturas, que, pelo desejo de glória, nada fazem do que conduz a glória,

mas apresentam todo esse caminho, e até a própria glória (carta 40 – Rio, 4

de agosto de 1948).

E ao saber que Isabel começara a pintar, Cecília não poupou entusiasmos. Em

diversos momentos da correspondência lemos, primeiro, a curiosidade da poeta em

relação ao que Isabel estaria pintando e, em cartas posteriores, os comentários de

incentivo e os elogios aos quadros produzidos pela amiga.

Gostaria de ver as suas pinturas, mesmo com esse pessimismo todo que V.

acrescenta à notícia. Quem sabe V. não está com uma vocação adormecida,

“encolhida”, como tantas vezes a vejo encolher-se sobre um assunto? (carta

11- RJ, 14 de abril de 47).

Nesta carta, Cecília aconselha Isabel a procurar a pintora Maria Helena Vieira da

Silva16

, mulher do desenhista Arpad Szènes, que desenhou vários retratos de Cecília. O

casal mantinha relação de intensa amizade com a poeta, que se refere à Maria Helena

como uma mulher difícil, mas demonstra grande admiração por seu trabalho:

Já esteve com Maria Helena? Não creio que ela seja capaz de estimular

vocações: é muito impaciente e alheia. Mas, independente do seu feitio

pessoal, a obra que realiza tem um grande poder poético; é inspiradora

(Idem).

Alguns meses depois, Cecília conta da felicidade que sentiu quando soube a

opinião de Maria Helena sobre a nova atividade de Isabel.

16

Sobre a pintora Maria Helena Arpad, ver em Lâmego, 2007.

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43

Maria Helena – e ela é terrivelmente difícil – dizia-me que V. estava

pintando “como um homenzinho honesto”. Fiquei contentíssima ao saber

disso com essas palavras (carta 23 – RJ, 3 de dez de 47).

Até que, finalmente, em fevereiro do ano seguinte, Cecília recebe em sua casa a

tão esperada encomenda: as pinturas de Isabel. E é enfática em seus elogios.

Seus quadros foram uma festa para os meus olhos. E V. dizia que não tinha

palavras “belas e boas”. Suas palavras são de cor, Isabel. Sua linguagem

está aqui: nestes cavalinhos adoráveis, neste vaso de barro, nestas flores...

Compreendo que Maria Helena se tenha entusiasmado. Eu também. Há uma

poesia imensa nas suas cores (carta 27 – Rio, 1º de fevereiro de 1948).

Cecília diz que o que mais lhe encantou foi o uso do branco nas pinturas de

Isabel e compara o trabalho da amiga ao do pintor uruguaio Pedro Figari.

Quando vi, em Montevideo, os quadros de Figari (conhece-os? gosta

deles?), enamorei-me dos brancos que encontrava. Perdia-me por dentro

deles. Caminhava como em luar. E agora surpreendo brancos em V. E

agradeço-lhe essa coincidência. Vou enfeitar toda a casa com seus quadros

(Idem).

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44

“Candombe”, Pedro Figari (1921).

A série de quadros de Figari sobre o Candombe, ritmo proveniente da África que

é parte importante da cultura uruguaia, nos remete às pinturas da própria Cecília,

especialmente, em Batuque, Samba, Macumba e ainda no encantamento pelo uso do

branco em afinidade com o tema da ausência, tão frequente na poética ceciliana.

Em meio aos comentários entusiastas sobre a pintura de Isabel, Cecília faz um

parêntese para dizer do abalo que sentiu quando soube da morte de Gandhi e fala sobre

a “Elegia” que enviara à amiga.

(Fiquei tão vencida! Queria escrever uma Elegia grande, mas não sei se terei

forças. Logo ao chegar – pois soube do assassinato na cidade – escrevi uma

pequena elegia, que lhe mando. É a mistura de tudo que me recordou a

morte. A frase em francês foi um oficial de marinha que me disse, uma

tarde, não há muito, numa recepção. Soou-me estranhamente. E neste

momento se levantou por si.) (Idem).

Vejamos um trecho da “Elegia”, que inicia justamente com a frase em francês

mencionada por Cecília:

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45

Les hommes sont des brutes, madame.

O vento leva a tua vida toda, e a melhor parte da minha.

Sem bandeiras. Sem uniformes. Só alma, no meio de um mundo

desmoronado.

(Dispersos, 1918-64)

O encantamento pela Índia, que levou Cecília a visitar aquele país na década de

1950 e a dedicar-lhe uma série de poemas, era compartilhado por Isabel, que traduziu

para o inglês “Cântico à Índia pacífica” (Poemas escritos na Índia, 1953), escrito por

Cecília a pedido da Embaixada da Índia, e também fez sua versão de “Elegia sobre a

morte de Gandhi”, ambas traduções publicadas no Jornal de Notícias da Índia, em 1 de

novembro de 1965 e 1 de janeiro de 1966, respectivamente. “Elegia” chegou a ser

traduzido para o hindi, motivo pelo qual Cecília foi convidada a conhecer aquele país17

.

Ao lermos a crônica “Meus ‘orientes’”, em O que se diz o que se entende,

podemos conhecer mais sobre os laços de Cecília com o Oriente: “O Oriente tem sido

uma paixão constante na minha vida: não, porém, pelo seu chamado ‘exotismo’ – que é

atração e curiosidade de turistas – mas pela sua profundidade poética, que é uma outra

maneira de ser da sabedoria” (Meireles, 1980).

Cecília nos conta sobre sua admiração pelo oriente, que começou na infância, na

convivência com as duas pessoas mais importantes em sua formação afetiva e

intelectual: a avó Jacinta e a babá Pedrina. A avó falava “em linguagem camoniana”:

“‘Cata, cata, que é viagem da Índia!’. Eu ainda não sabia do sentido náutico do verbo

‘catar’: mas parecia-me que, com aquele estribilho, tudo andava mais depressa, como

para uma urgente partida.” A babá Pedrina, que “sabia muito do Oriente”, fazia chás,

contava histórias e canções, mostrava figuras em livros, como a do touro alado, que foi

a que mais impressionou Cecília, “durante muito tempo aquele poderoso animal com

face humana habitou a minha imaginação infantil, mais sugestivo e misterioso que os

príncipes e princesas das histórias de fadas”. Havia ainda a antiga bandeja da

cozinheira, com desenhos chineses e os mascates que vendiam de porta em porta

17

Ler mais em: Loundo, Dilip. “Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética”. In: Gouvêa,

Leila V.B. (org.) Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2007.

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46

“alfinetes e pentes, rendas de linho e fitas, sabonetes e cosméticos”. Enfim, Cecília se vê

mergulhada nesse ambiente oriental, de delicadeza, sabedoria e “profundidade poética”:

As senhoras usavam quimonos, as mocinhas se abanavam com ventarolas de

seda, leques de marfim rendado, comia-se tanto arroz, tantas “fatias

chinesas”, falava-se de tanto cetim de Macau e de outras fazendas orientais

que era como se as naus dos bisavós continuassem a trafegar por esses

mares, e delas recebêssemos diretamente a canela e o cravo dos nossos

doces de cada dia (Meireles, 1980).

A partir desse diálogo tão particular de Cecília com o Oriente, o que nos propõe

o artigo “As rotas do Oriente em CM (uma poesia de interculturalidades)”, publicado

em A ilha ancestral: Vitorino Nemésio e Cecília Meireles, de Margarida Maia Gouveia,

é que há na poesia de Cecília uma poética de interculturalidade, de convergência entre

diferentes referências estéticas.

A estética ceciliana é, pois, também ela, uma estética de convergências, de

curiosas fusões, recuperando um lirismo ao mesmo tempo distante e

próximo, do Oriente e do Ocidente, com uma longa tradição histórica mas

reconhecido e assumido universalmente como experiência estética e humana

que é. Por isso, o orientalismo de Cecília não é um “orientalismo em estado

puro” é antes a sedução perante traços que lhe convinham temperamental e

culturalmente e de que ela, como ocidental também era a herdeira (In.:

Gouveia, 2001, p. 161).

Segundo a autora, que vê na construção da personagem do mártir, do Tiradentes

de Cecília, a figura de Gandhi, Romanceiro da Inconfidência seria o exemplo síntese

dessa perspectiva intercultural, pois nesta obra estariam presentes os cruzamentos de

gêneros e de culturas. De gêneros, pois se alinha à tradição do Romanceiro e da épica,

quer dizer, somam-se à exaltação do herói (característica do épico), a potência narrativa

e a carga lírica dos ‘romances’ tradicionais. Contudo, e aí estaria a interseção de

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culturas, “ao tratar o herói nacional Tiradentes, Cecília projeta porém nele a sua visão

oriental de raiz indiana, do resistente à maneira de Gandhi” (Idem, p. 161-2).

Quando Cecília envia à Isabel sua “Elegia”, na carta de 1º de fevereiro de 1948

(carta 27), ela o chama de “pequeno” poema a Gandhi. Diz: “Vou ver se consigo

realizar o grande. Uma coisa um pouco épica. Não sei como é, mas sei que é. Está

vivendo nas minhas veias. Ainda que o não consiga escrever, nem por isso terá deixado

de ser”. O interessante é que desde a hipótese de uma relação entre a personagem de

Tiradentes e Gandhi e do caráter épico de o Romanceiro estar ligado a um sentido

filosófico da existência18

, podemos pensá-lo como este “poema grande” que Cecília

tanto desejou escrever sobre o Mahatma.

Cecília frequentou a cidade de Ouro Preto com o objetivo de recolher material

para sua pesquisa da peça que pensava em escrever sobre a Inconfidência, o que mais

tarde veio a ser o Romanceiro da Inconfidência: “Depois de amanhã iremos a Ouro

Preto, por uns dez dias. Se tudo correr bem, verei se posso, afinal, acabar de construir a

já famosa peça da Inconfidência” (carta 27 – Rio, 1º de fevereiro de 1948).

Nesse momento, da criação de o Romanceiro, todas essas referências tão

importantes para Cecília estão misturadas: a relação com o Oriente, com a tradição oral

das poesias portuguesa e espanhola, o desejo de escrever dramaturgia (em especial a

tragédia) e seu interesse pelos personagens da Inconfidência mineira. Para Cecília esse

foi um dos grandes episódios da História do Brasil.

Na carta de 9 de junho de 1947 (carta 13) ela se refere à Inconfidência como “o

único fato verdadeiramente trágico em toda a história do Brasil.” E, pouco tempo

depois, em 17 de julho de 47 (carta 18), diz: “Não me interessa nem Marília nem

Gonzaga nem ninguém. Interessa-me “o caso”. É mesmo a meu ver, o único grande

caso de DESTINO, na história do Brasil.” Ainda nesta carta, Cecília revela seu desejo

18

Conferir o artigo “Da universal inquietude, a propósito da correspondência de Cecília a Armando

Côrtes Rodrigues”. In.: Gouveia, 2001, p.148. A autora faz uma aproximação entre o Romanceiro da

Inconfidência e Mensagem, de Fernando Pessoa, a partir da ideia de que em ambos a matéria histórico-

épico recebe um tratamento essencialmente lírico, e da constatação de que Cecília foi leitora de

Mensagem, como lemos em uma das cartas a Côrtes-Rodrigues. E o que daria ao Romanceiro uma

“perspectiva pessoana”: “Na obra (Romanceiro...) convergem lirismo, épica, misticismo, na construção

do herói cruzam-se a abnegação cristã e o sentido do martiriológico com a visão do herói pacifista e ainda

o ideal sabástico, numa perspectiva pessoana.”

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48

de fazer um tributo aos mártires: “Tenho esperanças de fazer uma coisa digna dos

mártires. E, ademais, é uma espécie de tributo de solidariedade aos poetas sacrificados.”

Pensemos em García Lorca, Gandhi, e no próprio Tiradentes, homens de ideais que

foram vítimas de mortes violentas.

Encontramos na correspondência com Isabel uma espécie de diário de criação de

o Romanceiro da Inconfidência. Há nesse “diário” do Romanceiro um espaço de

confluência entre crítica, autobiografia e poesia. Cecília participa à amiga, e ao leitor

das cartas, as diferentes fases de seu processo de concepção do longo poema que se

tornou uma de suas obras de maior relevo.

O interesse pelo teatro e a vontade de escrever dramaturgia fez com que a

primeira ideia fosse trabalhar o assunto em uma peça:

Talvez a peça sobre a Inconfidência se chame “Os condenados”— com o

duplo sentido de serem réus daquela história e representarem os réus eternos,

com e sem culpa, destinados a degredos e mortes por uma arquitetura sombria

que ninguém deslinda. Ontem fui ao Museu Histórico e vi os restos da forca

de Tiradentes. Aquilo deve ser pau Brasil, não sei: parece toda impregnada de

sangue: é horrível (carta 13 – RJ, 9 de junho de 1947).

Em “Fala inicial”, poema de abertura do Romanceiro, lemos versos que remetem

a esta carta de Cecília, ao tema dos Condenados como réus da história, e a “arquitetura

sombria” de seus destinos de “esquecimento e cegueira”. Vemos também, nesses versos

iniciais, a expressão da dificuldade que foi para a poeta mover-se no tema da

Inconfidência:

Não posso mover meus passos

por esse atroz labirinto

de esquecimento e cegueira

em que amores e ódios vão:

- pois sinto bater os sinos,

percebo o roçar das rezas,

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49

vejo o arrepio da morte,

à voz da condenação (...)

Impressionava Cecília a tragédia que foi a morte de Tiradentes, condenado à

forca por crime de rebelião e traição contra a rainha D. Maria I. E havia o desejo de

contar essa tragédia desde a perspectiva dos personagens, o que a motivou inicialmente

a escrever dramaturgia. Contudo, apesar da mudança de rumo no projeto inicial, ela

manteve no Romanceiro o trabalho de construção dos personagens e o ambiente teatral.

É o que vemos por exemplo nos poemas “Cenário”, nos Romances III ou Do caçador

feliz”, IV ou Da donzela assassinada. Este, por exemplo, está construído em primeira

pessoa, como se a própria donzela falasse ao público:

Sacudia o meu lencinho

para estendê-lo a secar.

Foi pelo mês de dezembro

pelo tempo do Natal.

Tão feliz que me sentia,

vendo as nuvenzinhas no ar,

vendo o sol e vendo as flores

nos arbustos do quintal,

tendo ao longe, na varanda,

um rosto para mirar! (...)

As cartas à Isabel mostram o longo e árduo processo de pesquisa para a

concepção Romanceiro da Inconfidência, ao qual a poeta se dedicou por quase dez

anos. Em 9 de junho de 1947 (carta 13), ela agradece a Isabel pelos livros que recebera

da amiga e lhe dá notícias de seu trabalho.

O que eu queria conseguir não era o lírico efeito banal dos amores de

Gonzaga, nem o episódio terrificante de Tiradentes: mas uma peça que,

sendo nacional, fosse absolutamente humana, pelas suas fatalidades, o seu

enredo emaranhado de segredos, tendo de um lado os propósitos de cada

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inconfidente e de outro as consequências ilógicas – como predestinações.

Estou apaixonada pelo assunto, e quero utilizar as próprias palavras dos

réus, recriando a atmosfera da sua vida naquele fantástico ano de 1789.

Tempos mais tarde, Cecília conta que fez um calendário de tudo o que se passou

entre 1786 e 1892, mas que não conseguia seguir com o trabalho por conta de suas

atividades como professora na Escola de Teatro. “E eu dando lições aos meus pobres

alunos da Escola de teatro... Não, isto não pode continuar. Estou louca para me meter

embaixo de uma mesa, num porão, onde ninguém me encontre – que me demitam, não

me paguem, se danem, mas eu quero pensar é nisto” (carta 25 – RJ, 13 de jan. de 1948).

No início da década de 1940 Cecília esteve bastante envolvida com o Teatro,

escreveu peças sob encomenda para companhias como a de Dulcina de Moraes e

trabalhou com grupos amadores como Os Comediantes e o Teatro do Estudante

Brasileiro19

. Em 15 de agosto de 1946, ela escreve à Isabel: “Ando muito interessada em

teatro, mas não me animo, por enquanto, a uma experiência. Principalmente por falta de

tempo para o inevitável fazer e refazer de um principiante no gênero” (carta 5). A poeta

conta ainda sobre seu especial interesse pelo teatro de marionetes, que via como uma

atividade nova, sugestiva e com forte potencial educativo.

Escrevi muitas peças, o que foi um bom exercício, pois desejava trabalhar

em teatro. Mas só pude representar uma, até agora. (...) Mas como êsse

exercício consegui criar forças para escrever uma tragédia que andava

sonhando e sofrendo. Não sei se será representável. Mas está feita. E isso é

bastante. As peças têm, sobre os poemas, esta vantagem: obrigam o autor a

deter-se, a ter disciplina. E isso me parecer bom. (carta 8 - RJ, 4 de março

de 1947).

Ao comparar a linguagem dramatúrgica com a poética, Cecília exaltava a

vantagem que as peças teriam sobre os poemas: “o poema pode-se fazer de pé, andando,

em qualquer parte. Mas a peça é preciso sentar, reler o que está escrito, pôr as ideias nos

lugares” (Idem). Mais uma vez, lemos nas cartas a profunda conexão entre vida e

19

Cf.: Vicenzia, 2006.

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51

produção literária. Nesta mesma correspondência, Cecília revela o drama pessoal pelo

qual passava naquele momento: a solidão que sentia por viver numa casa grande, e as

filhas e o marido passarem a maior parte do tempo fora. Então, a atração pelo teatro

vinha não somente pela vantagem da disciplina que as peças teriam sobre os poemas,

mas o fato de criar personagens a obrigava a entrar numa dinâmica de criação que lhe

trazia um conforto emocional: “ser fulano e beltrano, falar, calar, estar alegre, estar

triste, morrer, matar, etc. Creio que isso me ajuda a viver, nesta prisão em que me

encontro, sem uma pessoa, sequer, com quem conversar” (Idem). Podemos perceber

então que além da dramaturgia, outra linguagem também ocupava o lugar dessa

ausência, tomando o lugar de um interlocutor: as cartas, “porque a situação nua e crua é

essa que lhe digo: só converso pelo correio, a milhas de distância” (Idem).

Em 16 de fevereiro de 1948 (carta 28) Cecília escreve para Isabel ao regressar de

Ouro Preto, conta que visitou a casa do poeta Cláudio Manuel da Costa e sobre a ideia

que teve para uma cena que se passaria na sala de jantar. Ela lamenta a má conservação

do imóvel e se diz decepcionada pois a casa de Tiradentes havia sido demolida e no

terreno fora reconstruído um sobrado onde naquela ocasião funcionava um bilhar.

“Tudo é assim macabro em ouro preto” (carta 28).

O cenário de abandono encontrado por Cecília e seu desejo de criar uma cena

que aconteceria na sala de jantar da casa de Cláudio Manoel da Costa têm seus reflexos

em versos de “Cenário”:

Entre nuvens, colinas e torrente,

uma angústia de amor estremecia

a deserta amplidão na minha frente.

Que vento, que cavalo, que bravia

saudade me arrastava a esse deserto,

me obrigava a adorar o que sofria?

Passei por entre as grotas negras, perto

dos arroios fanados, do cascalho

cujo ouro já foi todo descoberto.

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52

As mesmas salas deram-me agasalho

onde a face brilhou de homens antigos,

iluminada por aflito orvalho.

A dificuldade em escrever sobre a Inconfidência se agravou quando a poeta

soube que a atriz Carmem Santos estava produzindo um filme, conforme lemos no

desabafo à amiga: “Calcule a angústia do meu coração! Agora, o filme está no cartaz, e

eu li hoje a primeira crítica, não inteiramente favorável, apesar de tanta propaganda”

(carta 32 – RJ, 23 de abril de 1948). Na carta seguinte, Cecília faz uma análise do filme

e revela que ele já não é mais um problema: “Nem é tão bom que me impeça de

continuar a trabalhar no drama, nem tão ruim como era possível esperar” (carta 33 – RJ,

28 de abril de 1948). Ela critica a falta de homogeneidade na composição das cenas, que

seria resultado da excessiva preocupação com a fidelidade histórica que tornou a

filmagem demorada e o filme cansativo. “E como o assunto precisa de síntese violenta e

clara, e não acharam quem a fizesse, recorreram a uma técnica de “quadros”, em lugar

de um argumento seguido, desenrolado com ordem” (Idem).

O fato é que Cecília chegou a parar a produção de sua “peça” sobre a

Inconfidência por causa do filme:

Calcule V. que se anunciava uma coisa do outro mundo, com a colaboração

de toda essa gente sabida de Minas (os historiadores que não mostram senão

a alguns privilegiados os arquivos que têm no fundo de gavetas invioláveis e

inutilizáveis, compreende?). Eu, que em História sou simplesmente poeta,

fiquei desconfiada de que ia sair uma coisa pasmosa, e que a minha peça era

desnecessária. Mas não saiu. Então, puxei dos meus papeizinhos, e vou ver

se continuo (carta 35 – RJ, 10 de maio de 1948).

Cecília escreve à Isabel sobre as leituras que estava fazendo e a angústia de seu

processo de criação. “Se V. soubesse o que tenho lido! Todo o século 18, na Espanha,

na Itália, em Portugal, na França, no mundo... Isso me impede outras leituras, atrapalha

muito a minha vida. Preciso acabar o quanto antes, para ter algum sossego!” (carta 21 –

RJ, 4 de setembro de 1947).

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53

Esse processo de idas e vindas é narrado pela poeta no texto que escreveu anos

mais tarde, após a versão final de O Romanceiro... “Como escrevi o Romanceiro da

Inconfidência” é resultado de uma conferência apresentada por Cecília em 20 de abril

de 1955, na Casa dos Contos, em Ouro Preto.

Assim, a primeira tentação, diante do tema insigne, e conhecendo-se tanto

quanto possível, através dos documentos do tempo, seus pensamentos e sua

fala – seria reconstituir a tragédia na forma dramática em que foi vivida

redistribuindo a cada figura o seu verdadeiro papel. Mas, se isso bastasse, os

documentos oficiais, com seus interrogatórios e respostas, suas cartas, suas

sentenças e defesas, realizariam a obra de arte ambicionada e os fantasmas

sossegariam, satisfeitos (Meireles, 1955).

Cecília discorre sobre o trabalho do artista em sua busca de encontrar o que

realmente importa ser dito, no que ela chama de “expressão essencial”. A obra de arte

seria então feita desse “essencial expressivo” e, segundo a poeta, o artista poderia dizer

a verdade do historiador, “porém de outra maneira”.

Em História. Ficção. Literatura, Costa Lima diz que “desde seu início, a

verdade procurada pela história segue a seta pragmática (própria da direção das técnicas

e da ciência)” (Costa Lima, 2006, p. 143). Poderíamos pensar o que Cecília chama de

“essencial expressivo” como a “condensação de possibilidades” a que se refere Costa

Lima em sua explicação sobre a imaginação na arte que “não é, por si nem

autocompensatória nem documental (...) trata o referente de que se apossa como

matéria-prima, transforma-o em outra configuração, a que empresta uma condensação

de possibilidades” (Idem, p. 149).

Há uma antologia de poemas de Mário Benedetti (1992) em que J. M. Caballero

Bonald faz uma observação bastante pertinente sobre a relação entre história e literatura.

Diz ele: “es precisamente en el campo de la poesía donde se aloja con mayor dinamismo

esa íntima correlación entre historia y literatura.” O que nos faz pensar na linguagem

poética como lugar de produção de síntese, onde se articulam memória e imaginação, e

cujo potencial está justamente na criação dessa “condensação de possibilidades”.

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54

Mas apesar dessa relação íntima entre história e poesia, os caminhos do

historiador e do poeta são distintos, como bem observou a poeta: “Seus caminhos são

outros para atingir a comunicação. Há um problema de palavras. Um problema de

ritmos. Um problema de composição” (Meireles, 1955). A preocupação com a

linguagem, com a forma em que a história será contada, somada ao trabalho de invenção

e a atenção ao leitor: esta é a verdade que parece buscar o poeta. Assim, temos a

alteridade entre o entre o registro histórico e a invenção poética: “O primeiro fixa

determinadas verdades que servem à explicação dos fatos; a segunda porém anima essas

verdades de uma força emocional que não apenas comunica fatos, mas obriga o leitor a

participar intensamente deles” (Idem).

Essa distinção elaborada por Cecília e o relevo que dá ao papel do leitor na

produção da invenção poética nos fazem pensar na atenção à recepção presente em sua

obra. E, mais uma vez, temos as cartas como lugar de potência literária, já que mesmo

com as diferenças com que um mesmo assunto era apresentado dependendo de cada

destinatário, o que era produzido tinha por foco o leitor.

A odisseia dos mártires

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência a vossa!

Bajo el agua

siguen las palabras.

Eis os refrãos de “Romance Das palavras aéreas”, de Cecília Meireles, e

“Romance con Lagunas”, de Federico García Lorca. O primeiro está entre os poemas do

Romanceiro da Inconfidência (1953), e o segundo do Romancero Gitano (1928), ambos

parte de um conjunto de breves poemas. E esta é uma das características do

Romanceiro: “gênero literário de tradição oral constituído pelo conjunto de breves

poemas tradicionais ou romances cuja origem remonta à Baixa Idade Média”. Com

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qualidades próprias em relação às bilinas20

russas, ou às baladas escocesas e inglesas, o

Romanceiro é o “representante poético-narrativo da balada europeia na Península

Ibérica”. O termo surge em 1579 com a coleção de Lucas Rodrígues, Romancero

Historiado, ganha força em 1600, com o Romancero General (Escarduça, s/d.) e é

tributário da palavra romance.

Em História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva e Oscar Lopes,

explicam assim a origem da palavra “romance”:

O Império Romano do Ocidente, que coincidia em grande parte com a

România linguística, isto é, com o domínio do Latim como língua de

civilização (em vez do Grego, dominante no Império do Oriente) acaba por

fragmentar-se politicamente depois das Grandes Invasões do séc. V.

Precipita-se a partir dessa altura o processo de dialectização do Latim vulgar

de que resultam as línguas românicas modernas. Ao conjunto de falares da

România, nesta nova fase de transição, dá-se o nome de Romance (ou

Romanço), que vem do verbo romanice (à maneira românica, vulgar),

oposto a latine (à maneira latina, literária). A palavra romance (neste caso

com a variação de rimance) designa também um gênero de composição

transmitida oralmente, em que pela primeira vez a língua falada ganha

forma literária, e constitui o ponto de partida do moderno gênero literário do

mesmo nome (1975, p. 19).

A observação de que o Romance é um gênero com fortes conotações de oralidade

“em que pela primeira vez a língua falada ganha forma literária” é um dos aspectos que

interessam à leitura dos dois poemas, tendo por hipótese que os diálogos interculturais

que marcam a poética de Cecília Meireles foram decisivos para a formação de sua

dicção poética.

20

Conto épico popular russo; gênero que se mantém até o século XVI onde pouco a pouco começa a dar

lugar ao “conto histórico”, de onde o fantástico é banido. “Na sua análise devemos ter como critério a

tentativa do povo se rever no seu passado, tirando conclusões práticas que o ajudem a compreender o

presente” (Ferreira, Maria Teresa Neves. “A Língua russa – origem do povo russo”).

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56

São vários os intercâmbios culturais que Cecília Meireles estabeleceu e que se

refletem em sua obra poética, a ligação com Lorca, de quem a poeta foi tradutora, é

apenas um deles. A busca por uma experiência vasta é coerente com a notável intenção

humanista que marca a produção da autora. Assim, a Morte, tão presente na poética de

Cecília Meireles pode ser percebida por outras camadas que não a de uma poética

fúnebre, mortificada, mas como algo que remete à incumbência de todo escritor

comprometido em escrever a experiência humana: o defrontar-se com a Morte. E este

enfrentamento é realizado pelo trabalho estético com a linguagem, como lemos nos

poemas “Romance das palavras aéreas” e no “Romance con Lagunas”, testemunhos da

morte que se cura com a beleza: “a amizade em comunhão com a escrita”, como pensou

a poeta portuguesa Gabriela Llansol (2005).

Trata-se portanto de uma escrita que carrega a certeza da morte, mas de onde

irrompe a imortalidade resultante do encontro com novas palavras, “que superam seu

caráter mortífero, que demovem a língua de seu automatismo e de seus lugares comuns”

(Costa, 2009, p. 20) e do movimento que Cecília e Lorca realizam como poetas –

guardiães da memória dos heróis – assim como Homero ao sacar do esquecimento

Ulysses e Aquiles, Lorca e Cecília elegem a linguagem poética em suas relações com a

tradição oral para transmitirem a violência da morte. A coleção de versos, as baladas de

ambos os poemas em suas relações com a épica, se afina à busca de uma linguagem que

faça perdurar o feito dos heróis e Aristóteles já apontava, em oposição à tragédia e à

comédia, a épica como gênero da memória por excelência. Para o filósofo grego, “na

epopeia, por se tratar de uma narração, é possível a composição de várias partes

produzidas simultaneamente e que se estiverem bem harmonizadas aumentam a

amplitude do poema” 21

.

Os Romances estão portanto ligados à tradição oral da poesia e à épica. Romance

era como se chamavam também as coleções de versos e baladas, uma das primeiras de

que se tem notícia é o Cancionero General, de Hernando del Castillo (1511):

Os assuntos dessas compilações eram variados, um dos principais grupos

pertence ao épico que possivelmente deriva dos poemas épicos musicais. O

21

“Dans l’épopée, parce que c’est un récit, il est possible de composer plusieurs parties qui se produisent

simultanément et qui, bien appropriées, augmentent l’ampleur de poème” (Aristóteles, 2002, p.96).

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século 17 apresenta uma abundância de Romances que dialogavam com as

épocas anteriores. Autores como Lope de Vega, Góngora e Quevedo

escreveram “romances” e produziram o que conhecemos como Romance

Nuevo (novas baladas espanholas). Essa tradição manteve-se mais ou menos

estável até o século 20, com, entre outros, Rafael Alberti e Federico García

Lorca (Rosado, s/d.).

Vemos então que os diálogos estabelecidos pelos dois poetas remetem o leitor a

vários tempos e espaços: ao século XVI na Península Ibérica, aos antepassados gregos,

e ainda às origens jogralescas da Canções de gesta no século XII, que “emergem do

anonimato pela escrita, centradas em torno de heróis ou rebeldes mais ou menos

lendários e projetadas três séculos atrás, nos tempos carolíngios, como a Chanson de

Roland” (Saraiva & Lopes, 1975, p. 87), onde encontramos mais nitidamente o caráter

épico dos Romances.

Podemos pensar também na relação da poeta com a História por um movimento

que se aproxima do pensamento de Walter Benjamin em sua teoria da narração, da

memória e em seu célebre conceito de história transmitida – pela articulação entre o

lembrar e esquecer, onde o passado é rememorado para melhor pensarmos o presente –

numa narrativa em fragmentos, ruínas do passado contado a partir das margens, do

ponto de vista dos “vencidos”, numa perspectiva que privilegia as histórias do

cotidiano, e onde a escrita da história, sua forma estética, narrativa, está intimamente

ligada à transmissão, ao que vale a pena reverberar de geração a geração, enfim, do que

vale a pena fazer perdurar. Para Benjamin, a pulsão narrativa é intrínseca ao ser

humano, não só por um deleite estético, mas por se tratar de uma resposta mais

específica à questão da finitude e da morte. Quem se incumbe então de escrever a

história deveria ter por princípio “apropriar-se do curso das coisas e fazer as pazes com

o desaparecimento delas, com o poder da morte”22

.

A transmissão da memória a partir do ponto de vista do herói que foi vencido, o

enfrentamento da morte pelo labor estético e a busca por uma linguagem cuja potência

22

Gagnebin, Jeanne-Marie. Mini-curso. História, memória e narração em Walter Benjamin. Universidade

Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ, abril de 2010.

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de transformação faça com que ela perdure e seja transmitida de geração a geração: é

isso que encontramos nos dois poemas:

Ai, palavras, ai, palavras

sois de vento, ides no vento

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se transforma!

Nesta primeira estrofe do “Romance das palavras aéreas”, onde a palavra

“palavra” surge acompanhada da interjeição “ai!”, como irá suceder ao longo de todo o

poema, já que este é o refrão dele – lamento também presente no poema de Lorca, “(...)

¡Ay cómo lloraba/ el Caballero!” – temos uma concentração do que irá se estender no

decorrer das outras 11 estrofes: a analogia entre palavra e vento e a exclamativa “tudo

se transforma!” sustentam a reflexão que o poema suscita de que as palavras que

elaboram “a liberdade das almas”, são também as que “erguem asas muito incertas,

entre verdade e galhofa”.

No Romanceiro da Inconfidência podemos ler além da homenagem a Tiradentes e

aos heróis da Inconfidência Mineira, a menção ao próprio Lorca e ao seu trágico

fuzilamento pelo totalitarismo franquista, em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola.

Era o fato trágico, a odisseia dos mártires que se revoltavam contra todo tipo de

totalitarismo, o que interessava a Cecília Meireles.

Entre eles está Federico García Lorca, e o Romancero Gitano parece ter sido uma

apresentação antecipada do que viria a acontecer com seu próprio autor.

O diálogo que Cecília estabelece com Lorca pode ser pensado nesse caso como o

interesse de ambos pelo destino trágico dos que não se conformavam às normas, e ainda

na busca por uma linguagem que desse conta da violência dessas mortes e que tivesse a

potência de perdurar de geração a geração. Aqui observo a aproximação da autora com

a literatura em língua hispânica, na qual encontramos a primeira coleção de versos e

baladas de que se tem notícias, o Cancionero General. Na Espanha de Lorca, à época da

publicação do Romancero fervilhavam as vanguardas. Lorca era amigo de Salvador Dalí

e esteve aberto ao diálogo com o surrealismo, elegeu o Romance, lírico e narrativo,

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como expressão, e trouxe do surrealismo as imagens fantásticas do sonho – assim

lemos, por exemplo, na seguinte estrofe:

Unicornio de ausencia

rompe en cristal su cuerno.

La gran ciudad lejana

está ardiendo,

y un hombre va llorando

tierras adentro.

Al Norte hay una estrella.

Al Sur un marinero.

Lorca apresenta a contradição como cerne da espessura da linguagem, e essa ideia

surge já no título de seu Romanceiro. “O título Romancero Gitano prepara o leitor para

a subversão de Lorca à forma poética tradicional” (Blackwell, s/d ).

Ao mesmo tempo em que as baladas de seu Romancero se referiam à tradição

clássica, Gitano era o povo que simbolizava a rebeldia contra todas as normas vigentes.

Contudo, nem seu amigo Salvador Dalí, tampouco o cineasta Luiz Buñuel, de quem

Lorca também era amigo, compreenderam imediatamente a escolha do poeta por uma

forma narrativa que remetia à tradição, e, apesar de bem recebida pelo público no ano

de sua publicação (1928), a obra foi pivô “de duras críticas formuladas tanto por Dalí

quanto por Buñuel, que o acusaram de ser um mero tributário da poesia tradicionalista”

(Mochiuti, s/d.).

Situação semelhante parece ter sido a experimentada por Cecília Meireles que

estabeleceu uma relação com a tradição das métricas clássicas em pleno Modernismo

brasileiro, e sofreu críticas e desconfianças por ter escolhido essa via para a construção

de sua obra poética.

No poema de Cecília lemos também a contradição no título e ainda, nos

protagonistas de ambos os Romanceiros, a eleição pelos que se opunham aos

vencedores: os Inconfidentes e os Gitanos.

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O “Romance con lagunas, Burla de don Pedro a caballo”, é de fato contraditório e

de difícil compreensão, Lorca parece querer mostrar a desgraça do cavaleiro don Pedro

ao chegar na cidade dos Gitanos.

Quem seria este don Pedro? Sim, o poema é uma burla, uma mentira, então don

Pedro pode ser tanto a personificação do povo Gitano que “(...) va llorando/ tierras

adentro”, que heroicamente parte na busca “del pan y del beso” em busca do amor

impossível e avista uma cidade longínqua na qual não consegue chegar pois seu cavalo

morre.

Mas também podemos lê-lo como uma recriação de um personagem marcante na

história da Espanha, Pedro de Alvarado y Contreras (1485-1541), conquistador

espanhol de grande parte da América Central, chamado pelos indígenas mexicanos de

Tonatiuh (el Sol) e cuja morte aconteceu justamente por causa de um cavalo numa ação

militar conhecida como Guerra del Mixtón, um levante dos indígenas contra o exército

espanhol em meados do século XVI. O poema é obscuro, como reconhece Eduardo

Marín Izquierdo, que o destaca como um dos poemas em que mais se expressa a

potência literária do Romancero Gitano (Izquierdo, s/d.).

Voltando à definição de Saraiva para a palavra “romance”, vemos que a escolha

dos poetas já estava fundamentada no que há de seminal no gênero Romance, pois que

se trata de um “conjunto de falares” que surge numa importante transição da História e

se opõe à norma latina, literária. Surge da maneira românica, vulgar, do que circulava

entre o povo e era transmitido oralmente, em conexão com o conceito benjaminiano de

história.

Trata-se portanto de uma investida na convergência, segundo o pensamento de

Octávio Paz: “um cruzamento de tempos, espaços e formas, um lugar de encontro entre

a poesia e o homem”, ou um gesto em direção ao ethos (Agamben, 2007). Falamos

assim da síntese elaborada pelo poeta em seu movimento de escrita e vida, em um

diálogo que é mais que um acordo: “es un acorde” (Paz, 1993, p. 76).

É portanto esse movimento de convergência que nos possibilita uma “nova

concepção de realidade que integra a subjetividade, a emoção, a espiritualidade e o

sentimento do homem diante das ruínas, dos fragmentos” (Paz, idem, p. 50). Assim,

entendo os diálogos interculturais presentes na poética de Cecília como uma investida

na busca de novos sentidos, novos acordes para a linguagem, baseada em uma

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experiência que conjuga o exercício da “memória individual e cósmica” (Idem) à

simultaneidade dos fatos e dos afetos; a maestria em capturar, recolher, e transmitir as

palavras que vêm e vão com o vento.

Além de terem escrito os “Romanceiros”, Cecília e Lorca compartilharam outras

afinidades, como o gosto pela dramaturgia e o gesto de escrever cartas aos amigos. Há

uma publicação com o epistolário completo do escritor espanhol (Lorca, 1997) e ainda,

Cartas a sus amigos (1955), onde encontramos as cartas que Lorca escreveu, entre 1910

e 1936, aos amigos Sebastián Gasch, Guillermo de Torre, Ana María Dalí, Angel

Ferrant e Juan Guerrero.

A admiração de Cecília pela obra de Garcia Lorca pode ser vista nos diversos

momentos em que ela se refere a ele em suas cartas. À Isabel do Prado, em 9 de junho

de 1947, ela revela: “Vou dar agora três conferências sobre o assunto: a primeira, sobre

o valor do teatro de bonecos na difusão cultural; a 2ª sobre Garcia Lorca; a 3ª sobre

tradições do teatro brasileiro (tão poucas!) com o Judeu e Martins Pena” (Carta 13). Em

7 de outubro de 1944 ela escreve à Gabriela contando sobre o trabalho de tradução de

uma das peças de Lorca: “Agora, preparo-me para traduzir Bodas de sangre para uma

representação este ano (talvez em abril) no Municipal, com a Dulcina” (Carta 11). O

texto foi então encenado pela primeira vez nos palcos brasileiros, em setembro de 1944,

por Dulcina de Moraes, uma das maiores atrizes do teatro brasileiro (Fonta s/d). Nesse

mesmo ano, a poeta traduziu também uma outra peça de Lorca, Yerma.23

2. Amizade e pensamento lírico

As cartas e as amizades trazem uma dimensão muito particular da obra e da vida

de Cecília: a distância e a ausência:

Meus amigos, é curioso, ou vivem longe ou estão distantes. (...) Tenho

amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase

sem a presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser

23

Mais sobre a atuação de Cecília como dramaturga e tradutora de obras teatrais, ver em O teatro poético

de Cecília Meireles. Tese de doutorado de IdaVicenza Dias de Souza. PUC-RJ, Departamento de Letras,

2006.

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humano é sagrado, compreende? E esse pudor de invadir, esse medo do

perto. Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero

bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que

nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico

emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos

lados, de tantas pessoas, de tantas gerações! (Cecília Meireles em entrevista

a Pedro Bloch. Revista Manchete, nº 630. 16/05/1964. Pedro Bloch

Entrevista. Rio de Janeiro: Bloch Editora, 1989.)

Estes elementos também são fortes ícones na obra do escritor tcheco Franz

Kafka. Produtor contumaz de cartas escreveu-as incessantemente, até mesmo no leito de

morte, e sua correspondência foi objeto de estudo dos filósofos Deleuze e Guattari, de

Elias Canetti e também de Maurice Blanchot.

Em um dos capítulos de L’amitié (1971), Blanchot escreveu sobre a

correspondência entre Kafka e Max Brod, que se estendeu ao longo de 20 anos. O

elemento decisivo, que faz desta amizade um “entendimento forte e viril” (Blanchot,

1971, p. 289) é a profunda diferença entre Brod e Kafka. É justamente a partir da

constatação da importância dessa diferença que Blanchot irá desenvolver sua concepção

de amizade:

A amizade, essa relação sem dependência, sem imprevistos, e onde no

entanto toda a simplicidade da vida passa pelo reconhecimento da

estranheza comum que não nos permite falar de nossos amigos, mas apenas

de lhes falar, não de tomá-los por tema de conversas (ou de artigos), mas

pelo movimento de um entendimento onde, nós falamos, eles guardam,

mesmo na maior familiaridade, a distância infinita, a distância fundamental

a partir da qual a separação se torna relação.24

24

“L'amitié, ce rapport sans dépendance, sans épisode et où entre cependant toute la simplicité de la vie,

passe par la reconnaissance de l'étrangeté commune qui ne nous permet pas de parler de nos amis, mais

seulement de leur parler, non d'en faire un thème de conversations (ou d'articles), mais le mouvement de

l'entente où, nous parlant, ils réservent, même dans la plus grande familiarité, la distance infinie, cette

séparation fondamentale à partir de laquelle ce qui sépare devient rapport.”(Blanchot, 1971, p. 330).

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Desse modo, Blanchot toma por princípio três elementos que podem parecer

raros à ideia corrente que temos de amizade: diferença, distância e ausência estariam no

cerne das amizades profundas. A necessária diferença, o estranhamento, que faz com

que falemos aos amigos e não dos amigos; a distância infinita, que não é um

contraponto à familiaridade, mas sim o que permite o movimento de um falar, o outro

guardar, acolher “nossa insignificância”. A relação é assim construída a partir da

ausência, da separação que se torna relação. Por isso, as cartas funcionariam como

expressão da “encenação” do autor, ocupando o papel do interlocutor, a linguagem

verbal tornando presente o ausente.

Seria interessante pensarmos nesses três elementos – diferença, distância e

ausência – como constituintes fundamentais do exercício da escrita. A partir da reflexão

propiciada pela Teoria da Literatura, podemos pensar a diferença a partir do conceito de

mímesis. Sucintamente podemos dizer que a experiência da mímesis é histórica e

culturalmente variável (depende do horizonte de expectativa dos receptores), é a

correspondência entre obra de arte e mundo, a mímesis literária “supõe a sensação de

semelhança, a que se acrescenta a sensação de diferença” e se cumpre “dentro de um

circuito específico, o da experiência estética” (Costa Lima, 1989, 68-9). Se a mímesis

está na correspondência entre obra e mundo, e a constitui a interação entre semelhança e

diferença, lembremos que estas diferenças, por mais radicais, sempre mantêm “um resto

de semelhança, uma correspondência, não necessariamente com a natureza, mas sim

com o que tem significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade

concebe a própria natureza” (Costa Lima, 2000, 64).

Voltando para a poesia de Cecília Meireles, a diferença poderia ser pensada pela

construção estética de sua obra, sobretudo em seus diálogos com a tradição, e por

consequência, pelo lugar excêntrico no qual sempre se posicionou em relação a seus

pares. Distância essa expressa pela busca de uma estética dissonante à alegria solar de

seus contemporâneos modernistas.

No catálogo de reinauguração da Sala Cecília Meireles, em 1985, uma das

doações feitas por Isabel do Prado ao Real Gabinete Português de Leitura, encontramos

um poema de Murilo Mendes dedicado à Cecília Meireles que nos remete à poética

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Baudelariana em um de seus mais célebres poemas “À une passante”, de Les fleurs du

mal. Este poema aponta justamente para a questão da distância na poesia de Cecília:

A bela passante invisível

ensaia a flauta puríssima

sua música vê de longe

mas a cidade que descansa

ao pé da colina azul

apura os ouvidos de concha.

Murmura-se de amor na areia

de serenos desesperos

da infância perdida e achada

de sonhos desfeitos

enquanto se espera

o nascer da solidão.

No alto do morro a invisível passante

diz a si mesma que sua música é vaga

o poeta pensativo que a escuta

reclinado numa nuvem

afirma que o sopro é poderoso.

(Poema de Murilo Mendes para Cecília25

)

O poema de Murilo Mendes remete ao aspecto da modernidade tão peculiar a

Baudelaire: a exploração do transitório na valorização de uma beleza do que fenece,

onde estão intrínsecas as ruínas, a perda. É também uma homenagem, um

25

Catálogo de reinauguração da Sala Cecília Meireles em 1985. Uma homenagem – publicação

comemorativa da reabertura da Sala CM, oferecida pela editora Nova Fronteira à “professora Isabel do

Prado” em 25/8/85. Doado por Isabel do Prado ao Real Gabinete Português, consulta em fevereiro de

2012.

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65

reconhecimento da modernidade singular de Cecília. Nele, a poeta é musa, a “bela

passante invisível”.

Não seria um recado para os que não reconheceram a modernidade dos versos

dela? Podemos lê-lo ainda como uma afirmação do lugar excêntrico da poesia ceciliana:

a poeta não está na multidão, está distante, desde sua colina azul contempla a cidade que

descansa. O retrato poético que Murilo Mendes faz da poeta apresenta essa visualidade

contemplativa que marca a poética de Cecília, “No alto do morro a invisível passante,

diz a si mesma que sua música é vaga”.

Cecília também explora em sua poética a perspectiva das ruínas, como nos

seguintes poemas de Viagem, “Medida da significação” (“É inútil o meu esforço de

conservar-me/ todos os dias sou meu completo desmoronamento/ e assisto à decadência de

tudo / nestes espelhos sem reprodução”) e “Onda” (“Tenho no meu lábio as ruínas/ de

arquiteturas de espuma/ com paredes cristalinas”). A questão da distância pode então

estar relacionada com esse olhar da poeta sobre as ruínas. No poema “Medida da

significação”, ela contempla seu “desmoronamento”, efeito do tempo, como um

espetáculo a que assiste, passiva, desde o espelho. No caso, de “Onda”, a ruína que está

em seu lábio poderia ser associada como a própria palavra, à linguagem mesmo como

ruína, é como se ela buscasse apreender o transitório com a palavra.

Assim lemos também em “Lei do passante”, de Poemas escritos na Índia, cujo

título é alusão direta a “À une passante”. Neste poema estão presentes, além de uma

concepção não-linear do tempo, a referência ao âmbito da ficção (“inverdadeiro”), ao

efêmero e ao transitório, como mostra a última estrofe:

Passante quase enamorado,

pelos campos do inverdadeiro,

onde o futuro é já passado...

A escolha por falar desde a perspectiva das ruínas mostra ao leitor de Cecília a

possível afinidade já citada entre a poeta e a filosofia de Walter Benjamin.

Pensando na questão da ausência, poderíamos relacioná-la ao conceito de

“encenação” desenvolvido por Wolfgang Iser, como vimos, sinônimo da “plasticidade

do ser humano, da presença de uma ausência” (1996, p. 356). Ausência e distância estão

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66

inter-relacionadas, e essa perspectiva nos abre um horizonte de reflexão também sobre

as relações entre a escrita e a morte, que sobressai na poética ceciliana como o que

chamo de “estética da morte”. Como analisaremos mais adiante, o tratamento dado pela

poeta ao tema da morte traz uma ideia de “fome de vida”, em sintonia com a concepção

que se tem da morte no México, conforme observou Octávio Paz (1992, p. 7).

Há um entrelaçamento entre morte, ausência, ficção e autobiografia, sobre o qual

tentaremos refletir no decorrer desta tese, particularmente nas cartas e nos poemas de

Cecília Meireles. Assim como o tema da morte, o tema da ausência é recorrente na

poética de Cecília. Em Retrato natural há um poema cujo título é “Ausência”:

Por mais tarde que seja,

estou vendo a alvorada,

em cravos restituída

e em safiras molhada.

Tão certa é a minha vida

que em cego mar escuro

encontro o que procuro

e não me atrevo a nada.

De esplendores ferida,

fecho os olhos. Que ausente

quero ser. Tão distante

que eu mesma não me veja

– à morte indiferente,

para qualquer instante. Retrato Natural, p. 650

Também Carlos Drummond escreveu um poema com o mesmo título. Nele, o

poeta se regozija com o “estar em si” que propicia o que seria para ele uma “ausência

assimilada”.

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67

Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência assimilada,

ninguém a rouba de mim (Alguma poesia).

No caso do poema de Cecília, a elaboração ficcional ganhou outros contornos.

Ao contrário da humor com que Drummond trata o tema da ausência, o tom usado por

Cecília é dramático e fatalista. A ficção extrai o sentido de presença a partir da ausência,

e o que se conecta nos dois poemas é que em ambos o efeito da ausência é produtivo.

Por “mais tarde que seja”, a poeta vê a alvorada, apesar do “mar escuro”, a poeta

encontra o que procura. Os dois poemas apresentam portanto o sentido de ausência

como um “estar em si”.

Em uma das cartas ao jovem poeta, Rilke o adverte sobre a necessidade da

solidão interior e a compara com o sentimento que temos quando somos crianças:

O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão

interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é

preciso conseguir isso. Ser solitário como se era quando criança, quando os

adultos passavam para lá e para cá, envolvidos com coisas que pareciam

importantes e grandiosas (Rilke, 2006, p.56).

A amizade é o encontro dessas solidões? Assim o pensamento lírico seria o

produto do diálogo entre essas solidões, o compartilhar e acolher memórias, o que de

algum modo nos confortaria da dor de não suportarmos a constatação do vazio, como

observou Blanchot (cf.: Blanchot, 1971, p. 326). Os amigos acolhem nossa desmedida

insignificância, pois é “em vão que pretendemos manter, através de nossas palavras,

através de nossos escritos, o que está ausente” (Idem). Os amigos são “balões de

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oxigênio” pela generosidade com que nos acolhem e por darem conta da necessidade

que temos de manter nossa ilusão, de seguirmos vivos através de nossas palavras, de

nossos escritos.

Isto nos leva a refletir sobre o gesto de Darcy Damasceno e Isabel do Prado ao

guardarem documentos e cartas que Cecília recebeu de outros amigos e lhes confiou a

posse. E na preocupação que tiveram de doar seus “tesouros” a arquivos públicos –

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Damasceno), Fundação Casa de Rui Barbosa e

Real Gabinete Português (Isabel) –, na tentativa de preservá-los como patrimônio

cultural, deixando-os livres das possíveis disputas mesquinhas de herdeiros. Podemos

observar ainda o movimento duplo deste gesto: ao preservar a memória da amiga,

preservavam também a sua própria.

Cecília colocou em vários de seus poemas o título “Canção”. Um deles, de Mar

absoluto, traz os seguintes versos:

Da virtude de estar quieta

componho meu movimento.

Por indireta e direta,

perturbo estrelas e vento.

Sou a passagem da seta

e a seta – em cada momento (grifo meu).

Estes dois últimos versos nos mostram também um movimento duplo. Ao

mesmo tempo em que a poeta se vê como uma seta, que se move com o tempo, é ela

mesma essa seta, vivendo cada momento. Isso faz pensar na simultaneidade em que

estamos metidos: por um lado a passagem, o transitório e, por outro, o tempo presente, o

instante já.

Em carta ao amigo português Armando Côrtes Rodrigues, encontramos a

repetição dessa imagem, a que poderíamos chamar também de uma ideia estética. Trata-

se de uma reflexão da poeta justamente sobre o ato de escrever e receber cartas:

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a saudade que nós temos dos amigos, será deles, ou de nós? Quando se

deseja com insistência escrever a uma pessoa será a sua falta que sentimos,

ou a nossa própria? Esta carta, que venho querendo mandar-lhe há vários

dias, significa a necessidade de alcançá-lo, ou a de lançar-me apenas?

Enfim, o destino da seta é o alvo, ou o caminho, ou a seta ou a mão que

atira??? (Carta de Cecília a Armando Côrtes Rodrigues. Rio, 14 de agosto

de 1946. Carta XX. Sachet, 1998, p. 39)

Somos assim lançados ao jogo de espelhos das cartas: o ato de escrevê-las parte

da necessidade de se lançar ao outro, ou de alcançá-lo? Essa dúvida intrínseca contida

na série de perguntas que Cecília escreve ao amigo – ou a si mesma? – nos sugere um

outro ponto de encontro entre cartas e poemas. Essas questões de Cecília nos mostram

que em suas cartas ela utilizava recursos próprios do poético, e especialmente de sua

poesia, altamente reflexiva, a finalidade não seria nem o alvo, nem o caminho, seria o

próprio exercício da linguagem, na busca por afeto e imortalidade. E a amizade traz essa

dimensão, da troca necessária, do acolhimento de nossa insignificância.

Um outro amigo de Cecília, o paulista Ruy Affonso Machado (1920-2003), ator

e diretor da primeira geração do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) escreveu-lhe para

agradecer os versos de Viagem. Ele termina a carta louvando a amizade de Cecília.

Na realidade, Viagem, encantou a muita gente e particularmente aos jovens.

Foi uma loucura. Nós, da Faculdade de Direito, já nem sabíamos se éramos

do “partido” do Bandeira, do Drummond ou da Cecília. (...) A 16 de agosto

de 1942, embarcava Cecília Meireles de volta ao Rio. No meu exemplar de

Viagem ficava uma dedicatória: “Lembrança da navegadora solitária”. Sim,

mas uma navegadora solitária que nunca evitou os portos da amizade, e que

sempre deu a seus amigos a segurança de a sentirem amiga para sempre

(Carta de Ruy Affonso a Cecília Meireles publicada em artigo do Estado de

S. Paulo, em 20 de janeiro de1965) 26

.

26

Arquivo Darcy Damasceno. Seção manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, loc 26,3,111.

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70

3. Cartas, amizade, poesia

Há um poema de Cecília, de Mar absoluto, cujo título é “Carta”. A poeta-autora da carta

abre seu discurso, e o reafirma, com a frase “Eu, sim.” É como se entrássemos em um

universo muito íntimo, mas que se mantém conectado ao mundo que está afora,

demasiado humano, com suas chagas, caminhos vazios, lágrimas, silêncio da noite etc.

E, parece ser nesse discurso íntimo, da carta, onde brota a possibilidade de renovação.

Eu, sim. - Mas a estrela da tarde, que subia e descia o céu, cansada e

esquecida?

Mas os pobres, batendo às portas, sem resultado, pregando a noite e o dia

com seu punho seco?

Mas as crianças, que gritavam de coração alarmado: “Por que ninguém nos

responde?”

Mas os caminhos, mas os caminhos vazios, com suas mãos estendidas à toa?

Mas o Santo imóvel, deixando as coisas continuarem sem rumo?

E as músicas dentro das caixas, suspirando de asas fechadas?

Ah! - Eu, sim - porque já chorei tudo, e despi meu corpo usado e triste,

e as minhas lágrimas o lavaram, e o silêncio da noite o enxugou.

Mas os mortos, que dentro do chão sonhavam com pombos leves e flores

claras,

mas os que no meio do mar pensavam na mensagem que a praia

desenrolaria

{rapidamente até seus dedos...

Mas os que adormeceram, de tão excessiva vigília - e eu não sei mais se

acordarão...

e os que morreram de tanta espera... - e que não sei se foram salvos...

Eu, sim. Mas tudo isso, todos esses olhos postados em ti, no alto da vida,

não sei se te olharão como eu,

renascida de mim, e desprovida de vinganças,

no dia em que precisares de perdão. (“Carta”, Mar absoluto)

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O que vemos é que, nesse caso, a correspondência é destinada ao leitor do

poema. Trata-se de uma carta-poema que apresenta um discurso centrado no Eu,

elaborado como uma escrita de si e cuja correspondência poderia ser pensada a partir da

relação que a poeta propõe entre a intimidade (entre o eu lírico e o leitor) e a dimensão

humana revelada pela sequência de imagens que surgem no decorrer do poema, como a

“estrela da tarde”, “as crianças que gritavam de coração alarmado”, “os caminhos

vazios” e “os pobres batendo às portas, sem resultado”.

O abismo das correspondências

Por mais que um dos correspondentes tenha o zelo de um arquivista, como Drummond,

ou a paixão pelas cartas, como Mário de Andrade, certezas passam ao largo do universo

das correspondências. Cartas se perdem, outras são escritas sem que nunca venham a

público, o que confirma o abismo entre esse discurso e as verdades absolutas e, também,

sua vocação para a imprecisão e o fragmento.

O exercício da correspondência era uma constante entre os modernistas e Mário

de Andrade era figura central: “tratar de correspondência literária no Modernismo

brasileiro implica inevitavelmente tratar da correspondência de Mário de Andrade, que

se pode tomar como significativa, se não de todas, pelo menos de muitas das questões

envolvidas no assunto” (Castañon, 2004, p. 24). Em estudos sobre a correspondência no

Modernismo brasileiro27

Flora Süssekind e Julio Castañon pensam a carta como espaço

crítico (Süssekind, 1996, p. 31). Para entendermos mais claramente essa proposição,

observemos com minúcia uma passagem do estudo de Julio Castañon. Ele se refere à

correspondência entre Murilo Mendes e Drummond, que se intensificou em 1934,

período em que os dois moravam no Rio de Janeiro, ao contrário do que houve na época

em que Murilo partiu para Roma. Vejamos o trecho:

Quando Murilo se mudou para a Europa, passou de fato a haver uma

distância entre ele e seus amigos. A carta seria então uma forma de

aproximação; no entanto, o que ocorre é uma diminuição sensível da

correspondência. As cartas assim constituem não apenas uma forma de

27

Publicados na coleção Papéis avulsos, da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.

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comunicação, mas um meio especial de realizar um determinado nível de

comunicação, no lugar de outro, talvez mais efetivo (Castañon, 2004, p. 39).

Se seguirmos Benedito Nunes e pensarmos o exercício da crítica como poiésis,

enquanto “criação que organiza, ordena e instaura uma realidade nova” (1991, p. 20)

compreenderemos o porquê de Castañon chamar de “mais efetivo” este lugar outro,

possível de ser alcançado no discurso epistolar. Sobretudo nas cartas que apresentam

mais claramente a integração entre correspondência e processo de escrita, como em

Cecília e Mário, no que Bandeira chamou de “cartas de amigos”, a que se somavam as

“cartas de minha gente”. Estas eram de cunho estritamente pessoal, enquanto as

primeiras estavam de algum modo associadas ao trabalho literário.

Esse outro “nível de comunicação” a que Castañon se refere, poderia ser

entendido como o lugar da simbiose entre experiência estética e experiência crítica. Ao

estabelecerem uma ligação, tendo como foco a integração entre correspondência e

processo da escrita, esses poetas colocavam em exercício ambas as experiências. E

quando tinham por assunto primeiro, o poema, explicitavam a dimensão crítica que há

na experiência estética.

Castañon fala sobre o caráter lacunar, precário e instável das correspondências e

de sua condição de gênero de fronteira. O que resulta do aspecto maleável desse

discurso são os inúmeros caminhos de “leituras e conexões para cartas” (Castañon,

2004, p. 11 e 21). Por esse aspecto instável, e pela possibilidade de se apresentar como

espaço crítico – manifestando à ideia de que “a experiência estética ou se esgota em si

ou provocará uma decisão, própria da crisis que a engendrou” (Costa Lima, 2002, p. 49)

– o discurso epistolar torna-se atraente. Justamente por tratarmos de uma linguagem

construída na simbiose dessas experiências, estética e crítica (poiésis), e, também,

porosa e lacunar. E, nesse sentido, tanto a poesia quanto as correspondências

(atualizadas hoje na forma de correio eletrônico) vinculam-se à qualidade peculiar do

sujeito na modernidade: a fratura. Somado a isto há a relação do gesto epistolar a um

equívoco fundamental, conforme mostra Vincent Kaufmann, em L’équivoque

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epistolaire (1990): “Há com efeito no gesto epistolar um equívoco fundamental, do qual

a exploração conduz às fronteiras da escritura poética” (Kaufmann, 1990, p. 8) 28

.

Mário de Andrade: correspondências

Nunca saberemos ao certo quantas e quais foram as cartas trocadas por Cecília e

Mário. As que nos chegaram foram publicadas pela Nova Fronteira, em uma edição

infelizmente mal cuidada, com muitos erros de edição. Contudo, essas imperfeições não

comprometem o estudo que faremos deste material.

Cecília e Mário, publicado em 1996, traz, além das cartas, um estudo e uma

antologia preparados por Cecília Meireles. No prefácio à antologia, temos o “História de

um encontro”, por Alfredo Bosi. Nele, o autor aconselha a lermos o livro “com os

vagares da mais delicada atenção, pois aqui se conta a história de um encontro raro. É

Cecília Meireles lendo Mário de Andrade. E é Mário lendo Cecília” (Meireles, 1996,

II).

O estudo e a antologia que Cecília fez da obra de Mário foram encomendados

em 1960 pela Prefeitura do então Distrito Federal (Rio de Janeiro), para homenageá-lo

pelos 15 anos de sua morte. No entanto, o prazo de um mês foi curto para a tarefa de

escrever sobre a obra do amigo, Cecília se envolveu com tal paixão, que acabou não

entregando o material a tempo. Parte da antologia foi lida por ela em um programa da

Rádio MEC, que fora ao ar na mesma ocasião da homenagem.

Outro material que mostra a amizade entre os dois poetas, e a leitura recíproca

que mantinham, é uma edição de Viagem em que Mário faz diversas considerações

sobre os poemas, numa espécie de leitura comentada.29

A análise completa desse

material foi publicada em O empalhador de passarinhos, de Mário de Andrade.

É nítida a forma distinta com a qual cada um tece suas observações sobre a

poesia do outro. Mário se atém a comentários pontuais sobre cada um dos poemas,

28

« Il y a en effet dans le geste épistolaire une fondamentale équivoque, dont l’exploitation conduit aux

frontières de l’écriture poétique ».

29 Mário costumava pedir duas edições dos livros que lhe eram ofertados por seus contemporâneos. O

primeiro, com dedicatória, ele mantinha fechado e guardado em sua biblioteca. E no segundo, ele escrevia

nas margens seus comentários e críticas. As edições de Viagem estão na biblioteca do escritor no Instituto

de Estudos Brasileiros - USP (Meireles, 1996, p. 310).

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como costumava fazer em suas correspondências (cf.: Castañon, 2004, 29), as

referências refletem a erudição do escritor. Já o estudo de Cecília obedece a um padrão

esquemático.

Entretanto, esse estudo aparentemente esquemático e a distinção tão óbvia entre

o moderno Mário e a conservadora Cecília são colocados em xeque por comentários

pontuais que Cecília também tece, em articulação direta com os poemas de Mário.

Como por exemplo, no item XVII sobre Losango Cáqui:

Mário de Andrade, intransigente, pacifista, internacionalista amador,

comunica aos camaradas que bem contra-vontade, apesar da simpatia dele

por todos os homens da terra, dos seus ideais de confraternização universal,

atualmente soldado da República, defensor interino do Brasil.

E marcho tempestuoso noturno.

Minha alma cidade das greves sangrentas,

Inferno fogo INFERNO em meu peito,

Insolências blasfêmias bocagens na língua (Meireles, 1996, 231).

As 22 cartas que compõem o capítulo “O encontro”, de Cecília e Mário, datam

do período entre 1935 e 1945. É Cecília quem começa a correspondência e também é

dela a maior parte das cartas, 15, lembrando que estamos tratando das cartas que foram

publicadas nessa edição.

A primeira carta, de Cecília, data de 30 de setembro de 1935. Ela escreve do

Hotel Terminus, em São Paulo:

Mário de Andrade: eu não sei si V. me conhece – como se diz no carnaval –

mas isso não tem importância nenhuma. Andei há pouco por Portugal, e fiz

uma propagandazinha da poesia brasileira, que deu certos resultados. Um

deles foi uma grande simpatia por V. e pelos seus livros; e, em

conseqüência, o pedido que acabo de receber, da parte de Luís de Montalvor

(poeta português) que é sobretudo um esteta e um espírito encantador de

amigo, para obter alguns inéditos seus – a carta diz “dois, ao menos” – a

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serem publicados numa revista que por lá vai aparecer com o nome Poesia

(Meireles, 1996, 289).

Pela leitura de apenas esse trecho, percebemos o comprometimento e a intenção

de Cecília em criar diálogos entre Portugal e Brasil, e o esboço de como ela vivia sua

profissão de escritora, como uma intelectual comprometida com o humano em toda sua

profundidade cultural, social e existencial. Nas outras cartas, acompanhamos a

continuidade da relação profissional que se estabelece entre Mário e Cecília com o

convite dela para que ele escreva sobre a cultura brasileira na revista Travel in Brazil.

As afinidades que os enlaçavam, o interesse pelo folclore, pela música e sobretudo pela

poesia, contribuíram para que rapidamente eles se tornassem amigos.

Ao carinho que se instaura com o desenvolvimento dessa correspondência,

nítido em trechos como “Cecília Meireles, minha querida amiga” (SP, 1º de março de

1943); “Mário: só não digo que V. é um anjo para não o estragar” (RJ, 23 de janeiro de

1942); “Ao menos, sou sua amiga!” (24 de abril de 1943); notamos o modo afetuoso

com que Cecília cultivava suas relações e ainda como nestas se misturavam trabalho e

vida pessoal.

Ao contrário da divisão criada por Bandeira ao falar de suas correspondências,

“cartas de amigos” e “cartas de minha gente” (cf.: Castañon, 2004, p. 5-6), que

marcavam a distinção entre assuntos pessoais e familiares do que tinha em foco a

produção textual, no caso de Cecília, o que parece acontecer é o esboroar dessa fronteira

entre trabalho e vida. O que em parte pode ser explicado por dados biográficos, a viuvez

do primeiro marido, que fez com que ela precisasse de fato trabalhar para manter suas

despesas e as das três filhas, mas sobretudo pela estratégia de vida que a autora criou

para si. A responsabilidade que se impingiu de manter-se ativa no cenário social com

uma intensa produção textual em jornais, de pensar a educação e a cultura, e ainda

aprofundar os estudos sobre a linguagem poética, não diminuiu sua produção de

poemas, nem o interesse em dialogar com seus contemporâneos. O que nos leva a

hipótese de que talvez fosse justamente o modo como ela construía esses laços e o

apego a sua produção poética, sua “rosa”, que alimentavam a incansável mobilização

que tinha pela vida. Como mostra o seguinte trecho da carta que escreve em 8 de

outubro de 1935, do Rio de Janeiro, em agradecimento ao poema enviado por Mário em

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atenção ao pedido da poeta, “Rito do irmão pequeno”, de Livro azul, parte do volume

Poesias, publicado por Mário em 1941, edição Martins. Escreve Cecília:

Em Lisboa vão gostar muito, tenho certeza. E eu fico bem contente, porque

prometi mundos e fundos do Brasil, disse que tudo aqui era uma maravilha,

e quando comecei a tentar provar, com os nossos poetas, as invenções que

por lá andei espalhando, não consegui quasi nada, porque todos estão

perdidos na burocracia, bocejando de fadiga, sem força para mandarem

levar ao correio aquilo por que, no entanto, se salva ainda a sua própria vida

– o seu pensamento e a sua emoção (Meireles, 1996, 290).

A crítica de Cecília além de valorizar o amálgama entre vida e trabalho, dá a

ideia do quanto a linguagem poética, expressão do pensamento e da emoção, é eleita a

“salvação da vida”. Assim como para Baudelaire eram suas flores do mal, a “rosa” de

Cecília eram seus poemas. Em carta de 15 de março de 1943, lemos o trecho em que

Cecília oferece um de seus poemas a Mário de Andrade:

Rosa de cá, rosa de lá – você tem a “Rosa” eu me beneficio da xará –

lembrei-me de lhe mandar “Três motivos da Rosa”, que devem sair no meu

próximo livro. Justamente, eu queria dedicar a você um poeminha:

lembrança da contemporaneidade lírica. E as rosas vêm a propósito, embora

seja um caso bem único o de uma mulher oferecer uma rosa a um homem.

Acho que é o único, mas minha instrução no assunto tem lacunas

consideráveis. Entretanto, é rosa e não é rosa: pois que é apenas poema da

rosa. Ora como são três, voilà, Mr., l’embarras du choix. Então, pensei:

copio todos, e mando. Você vê qual é o menos pior, e me diz: este fica

sendo meu. Eu lhe digo à moda de hoje: O. K. E pronto. Tão simples, a

vida! (idem, p. 306).

Dos poemas, posteriormente publicados em Mar absoluto, Mário escolhe o

segundo, o único soneto.

Na carta em que responde à oferta de Cecília, Mário justifica sua escolha:

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77

Rosa Cecília Meireles Rosa

É preciso ser cruel. É preciso trair, tomar uma decisão, me empobrecer deste

vai-vem sonoro em que vivo desde ontem de manhã. Prefiro o soneto. A

decisão é tomada por “outro motivo” – este meu mal secreto por essa forma

sublime e tão tênue que tantos males secretos andaram desencaminhando

por aí (idem, p. 308).

Mais adiante, Mário fala sobre o ensaio que estava produzindo, “Natureza do

soneto” e de sua gratidão pela oferta da amiga da qual pedia “perdão por merecer os

versos” que ela lhe dedicara. Leiamos o poema:

2º Motivo da Rosa

A Mário de Andrade

Por mais que te celebre, não me escutas,

embora em forma e nácar te assemelhes

à concha soante, à musical orelha

que grava o mar nas íntimas volutas.

Deponho-te em cristal, defronte a espelhos,

sem eco de cisternas ou de grutas...

Ausências e cegueiras absolutas

ofereces às vespas e às abelhas,

e a quem te adora, ó surda e silenciosa,

e cega e bela e interminável rosa,

que em tempo e aroma e verso te transmutas!

Sem terra nem estrêlas brilhas, prêsa

a meu sonho, insensível à beleza

que és e não sabes, porque não me escutas... (Meireles, 1967, p. 280).

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78

Constituído por duas estrofes de quatro versos e duas de três, obedecendo aos 14

versos da forma clássica do soneto, o poema tem no entanto uma distribuição

sofisticada das rimas. A leitura confirma também a analogia entre “rosa” e “poema” e,

para Cecília, este se assemelhava “à concha soante, à musical orelha”. Poderíamos ler

ainda este verso, carregado de erotismo, como uma possível relação, além da amizade,

entre Cecília e Mário.

Chama a atenção o elogio que Mário, um vanguardista, faz em relação às

métricas e ao formalismo de Cecília. Ele diz sobre o poema “Epigrama nº 2”, de

Viagem:

Um prurido, um sopro, um aflar leve e profundo de sensibilidade, que se

define apenas. Este o maior encanto das líricas metrificadas de Cecília

agora. Especialmente das metrificadas. Porque metrifica. Pra ficar mais livre

do pensamento, mais livre da necessidade de organizar o moto lírico num

juízo (idem, p. 315).

A consideração de Mário talvez se explique pelo amadurecimento com o qual

passa a analisar o Modernismo, expresso principalmente a partir da conferência “O

movimento modernista” (1942). Contudo, podemos pensar em como ambos puseram

em exercício uma subjetividade que expunha contradições e fragilidades, além de, cada

um a seu modo, investir na construção de uma subjetividade ativa, que possibilitasse a

efetivação de um pensamento crítico e reflexivo. Mostra de como essa subjetividade

aflora no poema, são os dois versos de “Eu sou trezentos”, de Remate de males, de

Mário de Andrade, que faz parte da antologia preparada por Cecília Meireles:

(...) Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta, Mas um dia afinal eu

toparei comigo...(idem, p. 145)

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Alfonso Reyes, cartas aos amigos

Estamos em 1905, da Cidade do México Alfonso Reyes escreve ao amigo Ignácio

Valdés: “ya sabes tú que una de mis más grandes aspiraciones es la de tener amigos

leales y nobles.”30

A aspiração do então adolescente de 16 anos vai se concretizando ao

longo de sua vida.

O gosto pela comunicação e pela escrita, que muitos escritores compartilham,

levou Reyes a se corresponder e a cultivar amizade com seus contemporâneos, como o

crítico literário dominicano Pedro Henriquez Ureña, a poeta argentina Victoria Ocampo

e o poeta chileno Vicente Huidobro, correspondências já publicadas no México,

juntamente com parte de seu Diário, volumes e volumes de apontamentos diários de sua

rotina como político e literato, que aos poucos estão sendo publicados; o mais recente é

o Vol. III (1930-36), sobre os anos que passou no Brasil. Entre os parceiros de cartas e

amigos brasileiros de Reyes estão Manuel Bandeira, Carlos Lacerda, Cecília Meireles e

Ribeiro Couto.

Para pensarmos na relação entre cartas, amizade e poesia, destaco um trecho da

correspondência de Reyes ao amigo e mestre Pedro Henriquez Ureña, de 25 de abril de

1914:

Me parece (a pesar de que mi inteligencia brillante está ligeramente

embotada por falta de diálogos) que ahora soy más digno de ti. Si yo no

contara contigo como un motivo espiritual de mi vida, estaría

profundamente triste (carta 70, del 25 de abril de 1914. In.: Martinez, 1986).

Para Reyes, os diálogos com os amigos eram fundamentais ao seu

desenvolvimento intelectual e sensível. E a escrita das cartas era parte importante de sua

atividade como escritor e de seu enfrentamento com o dilema de conciliar as ambições

estéticas com a carreira diplomática, como mostra Regina Crespo:

La extensa correspondencia que mantuvo con muchos de sus viejos

compañeros de las tertulias intelectuales, varios de ellos personajes activos y

30

Carta de 16 de janeiro de 1905. In.: Guerra, 2009.

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sobresalientes en la política del México posrevolucionario, comprueba los

dilemas que vivió, las dificultades que tuvo que enfrentar para mantenerse

en la carrera y su constante negativa de aceptar – con el único fin de

regresar a México y a su vida intelectual y literaria – puestos políticos aún

más oscilantes que la carrera diplomática (Crespo, 2008).

No ensaio “Entre porteños y cariocas. Alfonso Reyes embajador”, que integra o

catálogo da exposição Alfonso Reyes: o caminho entre a vida e a ficção, produzida pelo

Instituto Cervantes e organizada por Héctor Perea, que aconteceu em São Paulo, em

2008, Regina Crespo ressalta a qualidade e a intensidade da produção literária de Reyes,

apesar das dificuldades práticas decorrentes das sucessivas mudanças de residência que

exigia a atividade diplomática:

no podemos dejar de sorprendernos, principalmente hoy en día, bajo la

dictadura de la especialización que vivimos, con la calidad de la producción

literaria e intelectual y de la acción política de Reyes. El mexicano

redactaba tratados de cooperación económica y de comercio, lideraba

misiones políticas, organizaba cenas y tertulias, recibía intelectuales y

escritores, mientras escribía, escribía mucho (crítica literaria, trabajos de

referencia entre otros temas sobre Góngora y Mallarmé, prosa literaria,

ensayos, crónicas y poesía), editaba revistas e incluso su propia revista,

Monterrey (Idem, p. 3).

E é justamente por esse conflito entre o artista e o político que Reyes é um bom

exemplo para refletirmos sobre a relação intrínseca entre arte e política e no panorama

da intelectualidade latino-americana entre os anos 20 e 40, em que a escrita dos poetas

encontra-se no movimento entre cartas, amizade e produção poética.

O que para Reyes era um conflito, ter que conciliar seus compromissos

diplomáticos com seus anseios estéticos, é aqui para nós uma oportunidade de pensar

que essas atividades não estavam em campos distintos, mas, sim, eram complementares.

Reyes defendia a arte como uma maneira de “revolucionar nuestra sensibilidad

interior”. Desde essa perspectiva, o compromisso do artista tem a ver com um

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engajamento à vida, a tudo que diz respeito ao humano. E palavras gastas como

Liberdade e Revolução ganham então outros horizontes: “Para persistir hay que

renovarse incesantemente (...) y el arte, en las sociedades, es la periódica operación de

cataratas que devuelve a los pueblos la visión fresca de la vida, el nombre de esta

evolución continuada es Libertad” (Reyes, Norte y sur, 1996, p. 27).

No caso de Cecília, cuja figura pública sempre foi também muito atuante, o que

se mostra por suas atividades como educadora, jornalista e em suas preocupações com a

cultura, esse conflito também existia. Em vários momentos lemos suas queixas sobre a

necessidade de sobrevivência que a obrigava a exercer inúmeras funções deixando-lhe

pouco tempo para a escrita de sua obra de ficção.

A vida está ficando muito cara, e o tempo é cada vez menor. Agora, um

escritor austríaco, educado em Londres, que está escrevendo a biografia do

Getúlio, me encomendou uma seleção de folclore brasileiro, com uma

introdução minha e outra dele, para publicarmos em não sei quantos

idiomas. Não é precisamente o meu gênero, mas vou fazer, porque é preciso

fazer coisas, segundo dizem (carta para Isabel do Prado. RJ, 4 de julho de

1947, carta 1).

Contudo, talvez por não ter assumido efetivamente um cargo político, ou

justamente pela qualidade estética de sua obra poética, ela seja lembrada mais por sua

face de artista.

Mas, apesar das queixas de Reyes e de Cecília, e como seguimos vendo em

muitos escritores, a falta de tempo para se dedicar a escrever ficção, em decorrência do

acúmulo de seus compromissos como figuras públicas, não me parece ter sido um

problema para a produção de suas obras, mas sim parte importante e fundamental de

suas “máquinas de escrita”, o que podemos comprovar justamente com a intensa

produção ficcional de ambos. Desse modo, o que defendo é que a produção dessa ficção

era movida por esses outros movimentos da escrita, sobretudo as cartas que fomentavam

os diálogos entre amigos e que acabou por criar um movimento social específico na

América Latina, naqueles anos entre 20 e 40, uma rede de intelectuais cuja engrenagem

de suas produções foi em grande parte movimentada por essas relações de amizade e

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suas atuações públicas, mostrando que a relação entre arte e política não é dicotômica e,

sim, complementar.

Tendo por base o pensamento do filósofo francês Jacques Rancière, cuja

contribuição é hoje uma das mais relevantes no que concerne à reflexão sobre a relação

entre arte e política, defendo que a arte esteve e sempre estará ligada à política. Não no

sentido de uma arte engajada, com finalidade, compromissos sociais, ou partidários, a

arte é política pois apresenta outras formas de sensibilidade, na medida em que

transforma e reorganiza padrões vigentes, possibilitando assim o surgimento de novas

ideias e comportamentos.

No ensaio, “Política da arte”, Rancière explica que a arte é política “enquanto

recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os

quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma

forma de experiência específica”. Tomando a política também por um espaço de

“ocupações comuns”, a arte é então política enquanto os espaços e os tempos que ela

determina interferem nos espaços e tempos dos sujeitos e objetos, “do privado e do

público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política”

(Netto, s/d).

Em uma crônica intitulada “Suas cartas”, o poeta Carlos Drummond de Andrade

fala sobre o escritor ícone das correspondências no Modernismo brasileiro, Mário de

Andrade, com quem se correspondeu entre 1924 e 1944 (correspondência publicada

pela editora Bem-te-vi, RJ, 2002). Confirmando o princípio de Blanchot, da “distância

fundamental a partir da qual a separação se torna relação”, as cartas foram o produto

dessa amizade entre Mário e Drummond, que como o próprio Drummond revela

“jamais conviveram” (Andrade, 2002, p. 35). Escrevendo sobre essa relação epistolar,

em “Suas cartas”, Carlos Drummond conta que Mário certa vez confessou-lhe que

escrevia cartas por precisão de se sentir junto com os amigos. Para Drummond, essa

necessidade era reflexo de outra maior, a “de se sentir junto com os homens em geral”

(Andrade, 1967, p. 549).

E com esta necessidade de sentir-se junto aos amigos, e aos homens de modo

geral, os poetas latino-americanos, que fazem parte do elenco desta pesquisa, teceram

seus movimentos de escrita, construindo suas “ocupações comuns”. Viveram em um

período, entre os anos 20 e 40 do século XX, onde era urgente a questão da construção

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da identidade nacional nos países da América Latina, em que o papel do intelectual

nesse cenário era preponderante e a Educação se apresentava como elemento

fundamental de transformação social. Como veremos, a estrutura mexicana que

combinava educação e cultura era o modelo desse ideal.

4. Cecília e Reyes

Inebriados por esse “deslumbramento do Humanismo” (Meireles, 1947), Cecília

e Alfonso Reyes começaram a se corresponder. Na Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro (BN), no Arquivo de Darcy Damasceno, encontramos duas cartas de Reyes para

a Cecília, que provavelmente estão entre as primeiras dessa correspondência que se

concentrou entre os anos de 1931 e 1935, enquanto Reyes esteve no Brasil como

Embaixador do México, e mais tarde, em 1940, quando ele já havia voltado ao seu país

e Cecília, de passagem por lá, lhe enviou mais duas cartas, de que temos registro.

Na primeira das cartas que estão na BN, Reyes agradece amavelmente pelos

artigos jornalísticos que ela publicou em seu louvor, e se diz comovido com sua

“consagração apostólica para o único problema que nos importa na terra, que é o de

acabar de humanizar o homem”.

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Carta de 19 de agosto de 1931, de Reyes à Cecília.

No Arquivo Darcy Damasceno, seção manuscritos da

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

A outra carta de Reyes para Cecília, que integra o Arquivo de Darcy

Damasceno, tem a data do dia seguinte à anterior e, contrariando os que pensam que

Reyes nunca lera os versos de Cecília31

, mostra que ele foi leitor de sua poesia, e a

elogiou. Esta carta é especial, pois é a única a nos mostrar o intercâmbio da produção

poética tanto dela, quanto de Reyes, que juntamente com o agradecimento e o elogio

pelo livro da amiga, envia-lhe cinco poemas seus.

31

“Alfonso Reyes sentía especial atracción por mujeres que sumaran dos cualidades de difícil conjunción:

belleza y talento, raras avis. Una fue sin duda su apreciada pero distante Cecília Meireles. Salvo el asunto

de la biblioteca, Reyes no le prestó mayor atención, ni siquiera leyó sus versos” (Serna, Introd., 2011, p.

xxx).

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Encontramos um tom amável e cúmplice nas palavras de Reyes, que deixa

entrever um diálogo ainda pouco conhecido do público:

Rio, 20 de agosto de 1931.

Amiga Cecília Meireles:

apenas acabo de agradecer un don, cuando ya ud. me obliga con otro,

enviándome el gratísimo regalo de su libro Nunca mais... e Poema dos

poemas, libro que ud. llama prehistórico, y que uno resulta tan actual como

toda poesía verdadera y sincera y, además, primorosamente trabajada.

Acaso sea don exclusivo de la mujer (y de los pocos hombres - sin ironía -

que se les parecen) el poder aplicar a las cosas patéticas del espíritu la

misma preciosidad de trabajo manual con que tengan rondas y encajes?

Tímidamente me atrevo a enviarle 5 casi sonetos, que no tienen mas merito

que la encantadora edición hecha con las manos del poeta andaluz Manolo

Altolaguirre.

La admira y ya de veras la quiere,

Alfonso Reyes

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Alfonso Reyes foi um dos intelectuais latino-americanos mais célebres do século

vinte, construiu, entre 1911 e 1959, uma obra que reúne prosa, poesia e textos para

jornais e revistas, e sempre manteve, em paralelo, uma intensa atividade política.

Prestou serviços diplomáticos na Espanha e foi embaixador na Argentina e no Brasil,

onde viveu no Rio de Janeiro entre os anos de 1930 e 1938. O tempo que passou no

Brasil coincidiu com uma etapa efervescente de nossa história cultural e política.

Poucos meses após a sua chegada ocorreu a chamada “Revolução de 30”, que marcou o

início do longo período do governo de Getúlio Vargas. Reyes assistiu às intensas

transformações no cenário artístico e intelectual do país que ocorreram nesses anos.

Manteve relações com intelectuais, jornalistas, professores e estudantes de diferentes

correntes ideológicas, e estimulou a discussão de políticas de aproximação entre o

Brasil e os países hispano-americanos (cf.: Crespo, 2003).

No Rio, Reyes foi amigo dos poetas Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, com

quem manteve os laços mesmo depois de voltar ao México. Boa parte da

correspondência entre os dois está na Capilla Alfonsina, biblioteca museu do escritor,

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localizada na Cidade do México, onde também estão preservadas as cartas que Reyes

recebeu de Cecília Meireles. São ao todo 16 cartas e trata-se de um material ainda pouco

estudado por pesquisadores brasileiros. James Willis Robb escreveu em 1983 para a

revista Hispania um pequeno artigo sobre o tema da amizade entre Reyes e Cecília que

ele considerou como “uma interessante relação de intercâmbio cultural em torno de

assuntos pertinentes ao México e ao Brasil” (Robb, 1983).

Outro estudo sobre a correspondência entre Meireles e Reyes que merece

referência, inclusive porque é um dos poucos livros editados no Brasil sobre Alfonso

Reyes, e em especial sobre a relação do escritor mexicano com nosso país, é Alfonso

Reyes e o Brasil- Um mexicano entre os cariocas (2002), de Fred Ellison. As cartas de

Cecília para Reyes foram também analisadas por Regina Crespo. O aspecto principal

analisado por Fred Ellison é o de que a escritora brasileira tinha em Reyes um mentor,

um orientador, o que é reafirmado por Regina Crespo:

A poeta Cecília Meireles, integrante de um grupo de professores

preocupados com a renovação educacional do País, foi enfática em sua

admiração por Reyes. Segundo ela, o Brasil precisava estabelecer um

intercâmbio espiritual e expandir suas relações com os povos do continente.

Sua juventude buscava o universalismo e, para alcançá-lo, necessitava de

um guia. Este guia era Alfonso Reyes (Crespo, 2003).

Fred Ellison levanta a hipótese de um possível caso amoroso, que ele percebe

pela tensão das últimas cartas de Cecília endereçadas a Reyes, quando nos anos 40 a

poeta esteve de passagem pelo México, rumo aos Estados Unidos. É de fato

contrastante, e chama atenção, o tom seco dessas duas últimas missivas (em particular a

em que ela anuncia seu casamento com Heitor Grilo) se comparadas à amabilidade das

cartas anteriores.

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Carta de Cecília a Reyes. 26 de julho de

1940. Carta 16. Capilla Alfonsina.

Levemos em conta todas essas hipóteses, mas nosso foco é a produção ficcional

que atravessa essa correspondência, já que parece ser no discurso ficcional onde

encontramos a potência do discurso de ambos, tanto no que se refere à defesa do

humanismo, pela perspectiva de uma educação estética do homem, quanto pelo desejo

que compartilhavam de fomentar os diálogos interculturais na América Latina.

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5. Brasil e México, poemas e correspondências

De: Alfonso Reyes

Para: Brasil

Reyes não foi um comentador da literatura brasileira, apesar de ter convivido

com escritores como Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Ribeiro Couto, mas o Brasil

foi tema de ensaios e principalmente de sua ficção, tanto em poemas quanto em seus

contos-relatos. Foi pela ficção que Reyes expressou sua vivência e apresentou seu

pensamento sobre o país, que, inicialmente, lhe ofereceu certa dificuldade de adaptação,

mas com o qual mais tarde teria tantos vínculos afetivos, chegando a confessar certa vez

em carta ao amigo Ribeiro Couto que “seu coração batia em brasileiro”32

.

No volume IX de suas obras completas estão os principais livros com ensaios

dedicados ao Brasil, “Norte y sur” y “História das laranjeiras”. Fred Ellison analisa e

tece muitos comentários sobre os vários textos que Reyes destinou ao Brasil. Aqui

veremos alguns, e em especial poemas que ele dedicou ao Rio de Janeiro.

Provavelmente Reyes viajou pouco pelo Brasil, já que não há registro de viagens. O que

chama a atenção é que, em termos der sua escrita poética e narrativa, o cenário se

resume às ruas e paisagens cariocas.

“Brasil en una castaña” (1942) é um dos textos em prosa mais significativos de

Reyes sobre o Brasil, em que ele pensa sobre o tema da nação, que ocupava boa parte

das preocupações dos intelectuais latino-americanos na primeira metade do século XX.

Dedicado a refletir sobre esta problemática em seu país, o escritor mexicano havia

escrito anos antes, “México en una nuez” (1930). Assim, se a castanha “úmida, lisa,

macia e suave” simbolizava o Brasil, a noz, “seca, enrugada, dura e amarga” era para

Reyes o símbolo de seu país natal. Chamando a atenção de que ambos são frutos de

32

México, 15 de novembro de 1934 (manuscrita em folha oficial “El embajador del México”) Fundação

Casa de Rui Barbosa, consulta em dez. 2011.

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origem europeia em solo americano, Paulo Moreira analisa os ensaios como “exercícios

intelectuais de reinvenção através do autoexame, com vistas a forjar novas identidades

para os principais países latino-americanos, agora como nações modernas em vias de

industrialização” (Moreira, 2010, p.73-87) e cita um poema que Reyes escreveu no

intervalo entre a redação desses ensaios, em 1932: “El ruido y el eco”. Aqui, os dois

países são apresentados em contraste, e surge então um terceiro fruto: o coco.

Constituído por onze quadras, em redondilha maior, ou seja, em versos de sete

sílabas, os mais simples do ponto de vista da métrica e os que predominam nas

quadrinhas e canções populares, “El ruido y el eco” nos apresenta, desde o título, o jogo

binário que irá marcar todo o poema. Num primeiro momento, o leitor pode sentir-se

incomodado com essa dicotomia, que soa, em princípio, como uma oposição entre bem

e mal: de um lado o barulho, o tumulto, e de outro a reflexão, o acolhimento. Assim, o

Brasil é mostrado como “o ruído” e o México como “o eco”.

Percebi que há um silêncio quase meditativo em muitos dos mexicanos, e, se

temos em comum o gosto pelas festas, são, de modo geral, bem marcantes as distinções

entre a personalidade do mexicano e a do brasileiro.

O clima é um dos elementos a partir dos quais podemos refletir sobre estas

diferenças, pois está diretamente ligado ao modo de vida dos habitantes de um lugar,

refletindo-se na arquitetura e nas relações interpessoais e subjetivas. Árido e seco, em

muitas regiões, como na Cidade do México (situada a 2.400 m de altitude), percebemos

seu efeito na arquitetura de herança moura, presente tanto na Cidade do México, como

em “pueblos” vizinhos, como Tlaxcala, Puebla e Cacaxtla, com seus jardins internos e

suas fontes, em uma vida que se desdobra para dentro.

Já no Rio de Janeiro, a vida pulsa nas ruas, motivada pelo clima tropical, solar e

praiano. Sobre isto, Reyes anota em seu Diário a observação que fizera Graça Aranha

em seu discurso durante uma homenagem que realizaram para ele em 1931, na qual o

poeta mexicano esteve presente: “Concurrí ayer al homenaje a Graça Aranha, donde

presencié una de las primeras manifestaciones del nacionalismo literario en Brasil, y

Aranha citó el ejemplo del arte ruso y el arte mexicano que proceden de dentro hacía

fuera”. Río [jueves] 15 mayo 1930 (Reyes, 2011, p. 9).

Quando chegou ao Brasil, Reyes vinha de uma temporada como embaixador do

México em Buenos Aires e sofreu com a adaptação ao novo ambiente. Reclamava da

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falta de diálogos intelectuais, das condições de moradia e da saudade que sentia do

convívio na sociedade portenha e de seu México natal, como conta em seu Diário:

Rio de Janeiro [domingo] 6 de abril 1930.

(...) No sé qué hacer. Estoy desconcertado y triste. Con deseo de abandonar

hasta la carrera. Echo de menos mis cosas de Buenos Aires. Mi diablito. Mi

vida. Tengo que dominarme. Quisiera irme a México...

Rio de Janeiro, [jueves] 10 de abril de 1930.

Mundo demasiado colonial donde todavía la gente no sabe vivir y las casas

son malas. Desconcertante soledad en que me encuentro (2011, p. 4).

Talvez por isso, por essa indisposição inicial de Reyes em relação ao Brasil33

,

possamos ler a dicotomia de “El ruído y el eco”, como uma oposição entre o bom e o

ruim. Isso se nossa convenção de bom for o silêncio, ou recolhimento, e o ruim, o

barulho e o tumulto. Contudo, os horizontes do poeta são outros, e o que no primeiro

momento parece uma dicotomia redutora, vai ganhando outra perspectiva à medida que

avançam as estrofes. Reyes escreve o poema desde o Brasil, o “acá” e o “aquí” referem-

se à cidade do Rio de Janeiro:

Acá, en la punta del pie

gira el tamanco al danzar,

y las ajorcas son “cobras”

que suben del calcañar.

33

Cf. a análise de Regina Crespo sobre a chegada de Reyes ao Brasil em “Cultura e Política: José

Vasconcelos e Alfonso Reyes no Brasil (1922-1938)”. Revista Brasileira de História, vol. 23, nº45. A

autora examina as comparações que ele estabeleceu entre México e Brasil, e chama a atenção para a

importância do exercício intelectual que, apesar da dificuldade inicial de adaptação em solo brasileiro,

Reyes desenvolveu ao analisar a cultura ibérica em suas duas manifestações linguísticas – o português e o

espanhol. Apontando assim para uma preocupação de Reyes que remete à de Cecília Meireles, conforme

comentamos no início deste capítulo, em relação às suas traduções dos textos de Gabriela Mistral.

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“Allá” é o México natal. No decorrer do poema, a dicotomia vai se fundindo. E

sim, tem razão Paulo Moreira ao dizer que em “El ruído y el eco” os dois países são

apresentados em contraste, e de onde surge um terceiro fruto: o coco. É justamente a

partir da introdução dessa alegoria que os contrastes se fundem, como “dos madejas

enlazadas/ se tuercen en mi telar”.

Si aquí el coco de Alagoas

labrado en encaje, allá

la nuez de San Juan de Ulúa,

calada con el puñal.

Dan las mulatas del Mangue,

desnudas a la mitad,

de ahuacate y zapotillo

la cosecha natural.

¡Y yo, soñando que veo

piraguas por el Canal,

rebozos y trenzas negras

en que va injerto el rosal!

Entreluz de dos visiones

refleja y libra el cristal;

dos madejas enlazadas

se tuercen en mi telar.

“El ruído y el eco” é um dos onze poemas da coletânea Romances del Río de

Enero (1932). Fred Ellison observou que essa obra é a expressão poética que Reyes não

dedicou a “nenhuma outra cidade – nem Paris, nem Madrid, nem Buenos Aires, nem

México, nem mesmo sua cidade natal Monterrey – jamais provocou uma expressão

poética comparável” (Ellison, 2002, p. 189).

Como vimos, o Brasil para Reyes era o Rio de Janeiro, além dos Romances,

poemas como “Copacabana”, “São Sebastião” e “Guanabara” mostram a observação

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sensível do poeta que viveu intensamente a cidade, à moda dos viajantes europeus do

XIX e dos poetas que por aqui chegaram e foram enfeitiçados com a exuberante beleza

da geografia da cidade. Contudo, o mérito de Reyes, e seu diferencial, foi sua

exploração de uma “geografia emocional”, conforme nos mostra o comentário do amigo

Manuel Bandeira na elogiosa resenha que fez a Romances del Río de Enero: “Afinal

apareceu um poeta, um grande poeta, para cantar a cidade sem ficar nessa coisa

aborrecível como a literatura dos prospectos de turismo: o louvor do esplendor

cenográfico” (Bandeira, 1933).

Río de Enero, Río de Enero:

fuiste río y eres mar:

lo que recibes con ímpetu

lo devuelves devagar.

(“Río del olvido”)

Bandeira destaca a “finura de sensibilidade” e a “rica vida interior” que

proporcionaram a Reyes a virtude de “conhecer os aspectos da paisagem carioca mais

sutis, mais intelectuais”. E ressalta que “muito poeta estrangeiro soçobrou na água e no

sol da Guanabara. Alfonso Reyes é o que primeiro vence a prova difícil, e com que

incomparável distinção de espírito!” (idem).

A resenha foi uma dos raros gestos entre os escritores e intelectuais da época,

que de modo geral ignoraram a publicação do poeta mexicano, o que lhe causou

desgosto, conforme contou em carta ao amigo Ribeiro Couto.

Ribeiro Couto era um dos amigos brasileiros de Reyes, com quem compartilhava

interesses literários e a experiência diplomática. A relação entre os dois ficou marcada

pelo surgimento da expressão “homem cordial”, que mais tarde seria fonte dos escritos

de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. A expressão surgiu em uma das

cartas que Couto enviou a Reyes, e que mais tarde foi publicada em Monterrey Correo

literário, sob o título: “El Hombre Cordial, producto americano”.34

34

Mais sobre a questão, ler: Bezerra, s/d. e Nunes, 1968.

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Na carta de 6 de março de 1952, em que Reyes responde ao pedido de Ribeiro

Couto de lhe enviar uma cópia da carta sobre o homem cordial, lemos a decepção do

poeta mexicano em relação ao silêncio com o qual Romances del Rio de Enero foi

recebido pela crítica brasileira:

Pronto le mandaré su carta sobre el Hombre Cordial y su traducción de mi

Fuga de Navidad. He conservado esas páginas como oro en paño.

Contribuyen a cubrir “ese hiato que divide nuestras dos culturas” y de que

fué para mí una triste manifestación el silencio absoluto que acogió en el

Brasil mi librito de poemas Romances del Río de Enero, todo él consagrado

a Río y escrito con el corazón y con la cabeza. Tal vez lo reedite yo en estos

días, pues la primera edición de 300 ejemplares, hecha en Maestricht por

Stols, se agotó pronto y realmente no llegó al público (México, D.F., 6 de

marzo de 1952).

Em resposta, o amigo demonstra solidariedade à queixa de Reyes, e justifica a

falta de comentários sobre a obra como decorrência de uma preferência por uma “poesia

eloquente” que, segundo ele, dominava a cena poética de então.

Belgrado, sábado, 15 de marzo de 1952.

(...) Espero su nueva edición de los “Romances del Rio de Enero”.

Comprendo muy bien y encuentro justa su observación: esos “Romances”

no han tenido en Brasil los artículos de critica necesarios. No sé a quien

Udd. los ha regalado. Además no muchas personas alli serian capaces de

“rendre”, en articulos, el sonido de su poesia, ó de “mettre l’ accent” sobre

los valores líricos y formales que ella contiene. Aunque sob formas diversas,

ó diversas máscaras – és aun una cierta “poesia eloquente” la que “inflama

as multidões contentes” en mi tierra.

Ainda que o comentário soe irônico, e até mesmo depreciativo, podemos

associar o que Couto chama de “eloquente” ao intenso movimento da poesia brasileira

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95

naqueles anos 1950, em que a poesia era fonte de debate público em revistas e jornais,

sobretudo no “Suplemento Dominical do Jornal do Brasil” (cf.: Campos, 1996), que

teve papel fundamental na construção de um pensamento crítico sobre a poesia

brasileira. João Cabral de Melo Neto acabara de publicar O engenheiro (1945), e nove

anos mais tarde Ferreira Gullar lançaria A luta corporal (1954), obras fundamentais

para a criação do movimento da poesia Concreta (1956), dos irmãos Campos, Décio

Pignatari e Gullar, que logo em seguida se desligaria do grupo para lançar o movimento

Neoconcreto. Assim, a “poesia eloquente” que “inflama uma multidão de contentes”

estaria muito mais ligada a uma maior difusão da poesia que parecia não agradar à elite

dos poetas-diplomatas-eruditos.

O panorama da poesia no Brasil na década de 50 estava de fato longe do

formalismo apresentado por Reyes, que até certo ponto parecia estar mais conectado ao

movimento da geração de 45 em sua proposta de um retorno às formas tradicionais do

verso em contraposição ao experimentalismo dos modernistas de 22. Esse formalismo,

na poesia de Alfonso Reyes, podemos verificar pela composição formal dos poemas, ao

que confirmam as “notas” que encerram o livro. Redigidas pelo próprio poeta, elas

explicam sua eleição formal. Destaco aqui quatro das onze notas que funcionam como

um guia de leitura dos poemas:

Once romances, de once cuartetas cada uno, procurando que todos acaben

en la décima estrofa, para que la undécima cuelgue, arete o broche.

Partir del flujo del romance, en estrofas, sin duda cediendo a la tendencia

estrófica del corrido mexicano, hijo del romance peninsular.

De cuando en cuando, darse el gusto de deslizar uno que otro lusitanismo.

Estas contaminaciones entre el portugués y el español – se lo decía al joven

Juan Valera no menor persona que el purista Estébanez Calderón – dan

sazón al caldo.

Cada cuarteta debiera repetir la idea general del poema, volver a dibujarla,

aunque con objetos siempre diferentes. (...) Las ciento veintiuna estrofas

pondrían sitio a la misma emoción vaga, que nunca se entrega de todo; “No

pude decirte lo que quería.”

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96

Carta de Cecília Meireles para Alfonso Reyes. 9 de

maio de 1933. Acervo Capilla Alfonsina, México, D.F.

A amiga Cecília Meireles não deixou de lhe escrever sobre os Romances e

elogiá-los com entusiasmo. Chamou as tais notas finais de “arte poética” com as quais,

segundo ela, Reyes teria criado “todo um gênero delicioso”. Na carta de 9 de maio de

1933, ela começa desculpando-se por ter tardado demais em responder-lhe, além do

“momento elegante de responder”. O tom pode soar dramático, ou resultado do humor

peculiar da poeta. Vejamos o trecho em que ela se refere aos Romances:

esta Cecília é uma detestável criatura, que sempre se atrasa com a

correspondência, deixando passar o momento elegante de responder. (...) À

vista disso, peço-lhe que a perdoe; pois já lhe bastam tamanhas infelicidades

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97

naturais. Com esse pedido, envio-lhe este recibo sem graça, com o meu

encantamento comovido diante do seu poema ao Brasil, onde estão todas as

estampas de Debret e baianas incomparáveis – diante das quais todas as

minhas se inclinam... Como se não bastasse tanta maravilha, ainda lhe

ocorreu aquela arte poética do fim, na qual, explicando o seu livro está

criando todo um gênero delicioso.

Podemos pensar em dois pontos que mostram a repercussão e a afinidade

temática dos Romances del Rio de Enero na obra da poeta. Primeiro, a escolha da forma

romance que atende ao desejo de ambos de um maior diálogo entre as Américas

portuguesa e espanhola, este tipo de expressão poética seria usado poucos anos depois

por Cecília em uma de suas principais obras, Romanceiro da Inconfidência.

Batuque, samba, macumba (1935). Cecília Meireles

E as figuras de Debret, as baianas, para as quais as dela se inclinam, seriam as

baianas pintadas e escritas por Cecília em Batuque, samba, macumba (1935) (cf.:

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98

Oliveira, 2008) que encontram afinidade nos balangandãs e amuletos apresentados por

Reyes em, por exemplo, “Berenguendén”, mostrando o interesse de ambos pelo folclore

e pela cultura brasileira. Nos versos deste poema, Reyes nos mostra uma sorte de

amuletos, “el jacarandá, palo de mucho vivir”, “La mano em figa”, “Las monedas de

Don Pedro”, “La granada reventada”...

Toma y no le des a nadie,

que es secreto para ti,

y cuélgatelo en el pecho

donde tiene que lucir.

(“Berenguendén”)

Nessa mesma missiva, Cecília diz que irá enviar a Reyes o convite da

conferência que fará na Pró-arte sobre Cruz e Souza, “o poeta negro”.

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99

De: Cecília Meireles

Para: México

Convite da conferência na Pró-Arte sobre Cruz e Souza

(18 de abril de 1933).

A admiração de Cecília por Reyes era imensa e parecia estar muito ligada ao

sentimento da poeta em relação ao que o México representava para suas expectativas de

transformações sociais, educativas e culturais no Brasil, como vimos no artigo que

publicou em 15 março de 1931, em sua Página de Educação, “O exemplo do México”.

Outro aspecto desde o qual poderíamos pensar nas afinidades entre o México e a

poesia de Cecília é a questão da morte. Em El Laberinto de la soledad, Octávio Paz nos

dá uma definição precisa de como é peculiar a concepção da morte na cultura mexicana:

“Nuestro culto a la muerte es culto a la vida, del mismo modo que el amor, que es

hambre de vida, es anhelo de muerte.” (Paz, 1992, p. 7). Como vimos anteriormente, o

tema da morte na poética ceciliana pode ser lido como índice de renovação, assim, de

culto à vida. Como nos mostram, por exemplo, os versos de Cântico XIII, de Cânticos

(1927):

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100

Renova-te.

Renasce em ti mesmo.

Multiplica os teus olhos, para verem mais.

Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.

Destrói os olhos que tiverem visto.

Cria outros, para as visões novas.

Destrói os braços que tiverem semeado,

Para se esquecerem de colher.

Sê sempre o mesmo.

Sempre outro. Mas sempre alto.

Sempre longe.

E dentro de tudo.

A admiração de Cecília pelo México também foi expressa em versos. De que

temos notícias, foram três os poemas dedicados a esse país: “Mexicain List and

Tourists” (Vaga Música), “Pastorzinho mexicano” (Mar absoluto e outros poemas) e

“Corrida mexicana” (Poemas de viagens).

Em “Mexicain List and Tourists”, escrito em 1940, no restaurante “El charro”,

em Austin, durante a temporada em que Cecília passou na Universidade de Austin

dando cursos de Literatura Brasileira, lemos:

(...) Pela fresca das seis horas,

as mesas estão floridas.

Pelos canteiros, abóboras.

Pelas mesas, mãos unidas.

(Tacos y tortillas.)

Ao final de cada estrofe ela insere entre parênteses nomes das comidas

mexicanas, começa por (Tacos), ao que vai acrescentando, (Tacos y tortillas), (Tacos,

tortillas y enchiladas). Lembremos que Cecília escreve em um restaurante nos Estados

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Unidos, onde a comida é o que se chama “Texmex”, uma fusão entre o fast-food e a

resistência cultural da culinária mexicana.

A comida é um dos elementos mais fortes na cultura mexicana, comer é ritual,

momento de confraternização entre família e amigos. É comum vermos nas

publicidades dos restaurantes, sobretudo, nas “fonditas”, onde se serve comida caseira, a

frase “coma como díos manda!”. Nesse tipo de restaurante, que serve a “comida

corrida”, o cardápio inclui uma entrada com sopa, o prato principal, sucos e sobremesa,

além de pães e água, que na maioria dos restaurantes no México, são servidos como

cortesia.

Uma característica comum aos três poemas é a narrativa rimada, recorrente na

poética de Cecília. Em “Pastorzinho Mexicano” temos a marcante presença da

personagem, o jovem pastor e seu rebanho “as três crias de seu flanco”. Em “Corrida

mexicana”, também encontramos outra personagem, o chofer de táxi, mas nesse caso

ganha o destaque a situação: a corrida de táxi num dia especial, por uma famosa

tourada. O táxi, assim como a comida, é outro elemento bastante característico no

cotidiano da Cidade do México.

De fato, os taxistas, na maioria das vezes, gostam de “platicar” (conversar),

sobretudo quando se diz que é brasileiro. A conversa do chofer com a poeta tem por

eixo central a tourada que iria acontecer naquele dia, “os touros bravos e a toureira que

tinha apenas 17 anos”. As touradas, herança espanhola, também ainda seguem como

elemento típico da cultura mexicana. Assim, nos três poemas, somos apresentados a

elementos simbólicos da cultura mexicana, o que encantou Cecília, “as maravilhas da

vida costumeira”:

Com palavras quase eruditas

e olhares muito mexicanos

o chofer me disse que a tarde

devia ser das mais bonitas:

os touros bravos, e a toureira

tinha apenas 17 anos.

E mostrando, com certo alarde,

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além dessa, outras maravilhas

de sua vida costumeira.

(“Corrida mexicana”)

A observação de elementos chaves da cultura mexicana mostra a admiração de

Cecília Meireles por esse país, mas o que mais lhe chamou a atenção foi sem dúvida o

modelo de cultura e educação que surgiu poucos anos depois da célebre Revolução

mexicana de 1910.

A educação artística instaurada durante a etapa pós-revolucionária (1920-1930)

foi marcada pela convergência de diversas iniciativas culturais, terreno que propiciou o

início do movimento muralista, o surgimento do movimento de vanguarda na literatura

mexicana do grupo de escritores estridentistas, os centros populares de pintura, as

escolas de escultura e pintura ao ar livre, além das missões culturais que se espalharam

pelo país.

Nos anos 1920 o índice de analfabetismo era de mais de 70 por cento entre a

população mexicana e José Vasconcelos, naquele momento reitor da Universidade do

México, pôs em prática várias medidas na tentativa de reverter aquela situação. Uma

delas foi a criação da Secretaria de Educação Pública, que incluía o Departamento de

Belas Artes e o de Educação e Cultura para a raça indígena.

Vasconcelos foi o principal promotor do movimento muralista mexicano, a

Educação era tida então por intrínseca ao âmbito cultural, e com forte cunho

missionário. Mandou imprimir milhares de livros de autores clássicos da literatura

universal que foram distribuídos a vários setores da população, “fundou bibliotecas,

fixas e itinerantes e apoiou a difusão das artes em todas as suas vertentes, especialmente

a literatura, o teatro, a música e a dança” (Matute, s/d.).

Esse impulso por uma educação estética contagiou outros ativistas do

pensamento na América Latina, como Gabriela Mistral, que foi convidada por

Vasconcelos a participar de seu projeto de reestruturação da educação no México, e

Cecília Meireles, que em vários momentos expressou sua admiração por essas

iniciativas e seu desejo de que elas acontecessem também no Brasil. Assim, o desejo

por uma educação estética do homem na América Latina parece ser o principal ponto de

convergência entre Cecília, Reyes e Gabriela, era o que movimentava essa rede.

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103

Com Gabriela, Cecília partilhava ainda a condição de escritora latino americana.

Uma das iniciativas da poeta brasileira na tentativa de estabelecer um diálogo nesse

sentido é a conferência apresentada em 1956 na Universidade do Brasil, “Expressão

feminina da poesia na América”, que mostra um panorama da produção poética de

autoria feminina na América hispânica35

.

Apesar de nunca ter levantado nenhuma bandeira feminista, e por isso é difícil

aceitar que ainda hoje sua obra seja tão estudada por esta perspectiva de gênero, Cecília

tinha consciência de sua condição de mulher escritora num ambiente majoritariamente

masculino. Sabia das dificuldades de reconhecimento da contribuição feminina “num

mundo tradicionalmente organizado e administrado por forças masculinas”, conforme

mencionou no texto que escreveu em 1962 para ser apresentado às mulheres latino-

americanas no Congresso da International Federation of University Women, que se

realizou na Cidade do México em julho daquele ano36

. Cecília foi além do lugar comum

dos discursos feministas, trouxe para a pauta temas pertinentes como a questão latino-

americana, e sua preocupação com o que ela considerava uma crise mundial, que para

ela se tratava de uma crise de educação, “não se trata de um problema de instrução, mas

da adaptação social do homem ao mundo em que vive”.

É vigoroso o modo como ela se refere ao feminino, destacando a pouca

importância que era dada a um território considerado especificamente feminino, o da

educação doméstica, “a responsabilidade na formação dos filhos”, ela exaltava a

potência feminina, por sua “natureza feminina, maternal, em melhores condições de

influir com palavras e atos para a construção de um mundo harmonioso”.

E reafirmou sua principal bandeira, a educação como possibilidade de

transformações realmente significativas, como vemos já nos primeiros parágrafos do

texto que foi entregue à amiga Isabel do Prado:

35

Sobre essa conferência há o estudo de Jacicarla Souza da Silva. Vozes femininas da poesia Latino-

americana. Cecília e as poetas uruguaias. SP: UNESP. Cultura Acadêmica, 2009. Desde uma perspectiva

do movimento feminista, a autora defende a importância desse texto de Cecília Meireles no que se refere

aos estudos feministas na América Latina e apresenta os diálogos entre CM e as poetas hispano-

americanas, em especial com as uruguaias.

36 Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa. Arquivo Isabel do Prado.

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estas palavras que representam acima de tudo a minha solidariedade de

brasileira com os demais povos da América Latina, numa hora em que só

pela determinação de afirmar suas qualidades próprias, mediante um lucido

trabalho de educação, poderia ela concorrer para a harmonia de todas as

nações (Meireles, 1962).

Na ocasião do convite, Cecília já estava adoentada e não pôde comparecer ao

México para participar do encontro. Escreveu o texto em português e uma versão em

espanhol e o entregou à amiga Isabel do Prado para que ela o lesse ao público. O texto

da conferência vinha junto com um bilhetinho:

Isabel,

eu gostaria de dizer mais e melhor, mas...

Espero que algum trecho se aproveite. Corte por onde quiser!

Um abraço amigo da Cecilia

E, ao final, um anexo com orientações à amiga:

Maneiras de utilizar a mensagem:

1. O ambiente é calmo e compreensivo = lê-se a mensagem na integra ou

apenas trechos mais significativos.

2. O ambiente não é adequado = leem-se apenas as palavras de introdução,

como se fossem uma saudação, explicando que a autora se encontra doente,

ou não se

3. lê mesmo nada, declarando que, por motivo de doença, a Autora

apresenta, através da delegação brasileira, suas desculpas e saudações.

Apesar das recomendações detalhadas, o texto acabou não sendo lido, como

explica uma nota escrita por Isabel em janeiro de 1983. Mas graças ao gesto dela, de tê-

lo preservado, hoje temos acesso a ele.

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II. Uma rede latino-americana:

Cecília Meireles, Gabriela Mistral e Alfonso Reyes

Há pouco, escreveu-me Ayala pedindo colaboração para uma revista que ia

aparecer em Bs. As. – “Realidad”. Mandei-lhe uma “carta do Brasil”, mas

na verdade cada vez me convenço mais de que todos os meus impulsos são

para a literatura de ficção, não para ensaios nem artigos objetivos. Talvez

porque só creio em Educação, e a Educação é assunto tão abandonado que

não vale a pena discuti-lo em jornais...

(C.M a Gabriela Mistral, carta 16, 19 de fev. de 1947).

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1. “Carta del Brasil”

O convite para escrever um artigo para a Realidad: revista de Ideas entusiasmou Cecília

Meireles, que não tardou em contar a novidade às amigas Gabriela Mistral e Isabel do

Prado. Ainda que não fosse uma contribuição que atendesse aos seus “impulsos para a

ficção”, era uma boa oportunidade para expor sua revolta diante do que ela percebia

como a decadência dos valores humanistas e os primeiros sinais da reificação do mundo

naquele pós-guerras. Como disse à Isabel, a “Carta del Brasil”, assim como um outro

artigo que escreveu na mesma época para a revista uruguaia Escritura, era um aspecto

de sua aflição “diante desse mundo que os homens armaram” (RJ, 10 de maio de 1948,

carta 35 à Isabel).

O que a “Carta del Brasil” traz de mais relevante para nós é o profundo

desapontamento de Cecília em relação às expectativas frustradas nos projetos

educacionais dos anos 1930, que uniu uma rede de intelectuais na América Latina

convocados pelos governos para que contribuíssem com os planos de desenvolvimento

e afirmação das identidades nacionais, mas que acabaram decepcionados com o rumo

que tiveram seus ideais e ações. Essa rede latino-americana de pensadores, que tinha na

Educação e na Cultura o fundamento das transformações políticas e sociais necessárias

ao desenvolvimento saudável de seus países, envolveu três poetas: Cecília Meireles,

Gabriela Mistral e Alfonso Reyes; e teve o México por modelo e inspiração para a

renovação que eles buscavam semear na América Latina.

Encontramos no artigo “Diálogos culturais latino-americanos na primeira

metade do século XX”, de Gabriella Pellegrino Soares, os três poetas citados como

atuantes no que ela chama de “canais de circulação cultural abertos entre países latino-

americanos por meio de sociabilidades cultivadas por determinados escritores”.

Segundo a historiadora, esses intelectuais “expressavam a convicção de estar criando

não só uma literatura, mas uma consciência mesmo do continente.” A autora ressalta

ainda que o foco do seu artigo está justamente sobre figuras que não estiveram

diretamente ligadas ao movimento de vanguarda e que “conciliaram, em sua trajetória, o

labor literário com a participação em políticas educacionais e bibliotecárias ou em

empreendimentos editoriais. Ou seja, figuras interessadas em circulações culturais que

ultrapassavam os debates e intercâmbios estéticos” (Soares, 2006).

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107

Se por um lado o movimento cultural e intelectual desses escritores é objeto de

estudo entre os historiadores, por outro, afastados dos holofotes da crítica literária por

não se enquadrarem nos movimentos vanguardistas que dominavam a cena, suas obras

ficcionais ainda padecem da devida atenção no âmbito das Letras. Situação que

poderíamos explicar em parte pela soberania do cânone modernista, agravada, no caso

de Cecília e Gabriela, pela avalanche de estudos de gênero, que na maioria das vezes

são leituras que reduzem a amplitude de suas obras.

A “Carta del Brasil” integra a primeira edição da revista portenha criada em

1947 pelo argentino Eduardo Mallea e pelos espanhóis exilados em Buenos Aires,

Francisco Ayala e Lorenzo Luzuriaga. A Guerra Civil Espanhola provocou o

surgimento de uma diáspora de pensadores que se concentraram sobretudo nos países

hispano-americanos.

Duas revistas culturais, Cuadernos Americanos (México, 1942), em que Alfonso

Reyes esteve presente37

, e Realidad: revista de Ideas (Argentina, 1947) foram veículos

da produção intelectual desses refugiados. Tendo em comum a defesa da Cultura, as

publicações tiveram algumas distinções. Cuadernos seguia uma linha editorial mais

extensa, incluindo textos que não se limitavam ao campo social, e que visavam

fomentar o debate sobre a América Latina, e Realidad estava mais centrada no campo

das humanidades, excluindo a ficção, e apresentava ensaios e textos críticos que

abordavam questões gerais do mundo naquele início da Guerra Fria.38

Bastante citado pela própria Cecília em suas correspondências, pelo título, a

“Carta del Brasil” já me despertou interesse. Afinal trata-se de um artigo em forma de

carta; era então pelo gênero epistolar que ela escolhera falar sobre o Brasil. Em um dos

momentos em que comenta sobre esse seu artigo à amiga Isabel do Prado, Cecília nos

dá a perceber a dimensão desse tipo de discurso no movimento de sua escrita: “No

número seguinte, a revista passou a publicar cartas de todos os países (...). Agora,

37

Como exemplo, o ensaio que escreveu no segundo número da revista: “América y los Cuadernos

Americanos”, Cuadernos Americanos, nº 2, (1942). p. 7-10.

38 C.f.: Revista de la SSECI. González Neira, Ana (2011): Cuadernos americanos y realidad: dos

publicaciones más allá del exilio republicano en América. Nº 25. Julio. Año XIV. Disponível em:

www.ucm.es/info/seeci/Numeros/Numero 25/InicioN25.html

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pediram-me outro panorama, e será a ‘segunda carta’. Acabarei cartomante” (RJ, 5 de

junho de 1948, carta 37 à Isabel).

Não encontrei registros de que essa “segunda carta do Brasil” houvesse sido

publicada, mas, sim, cartas de outros países, escritas por outros escritores, surgiram nas

edições seguintes. O problema com o qual me deparei no início da pesquisa foi que

apesar das muitas referências a tal “Carta del Brasil” não a achava em nenhum dos

acervos das bibliotecas do Rio de Janeiro. Busquei sem sucesso comprar pela internet

uma edição da antiga revista, até que em maio de 2011 finalmente tive acesso a um

exemplar no acervo do Colégio do México. No sumário, vemos textos assinados pelos

fundadores da Revista (“Pasaje sobre la Cultura”, de Eduardo Mallea; “Testimonio de la

nada”, de Francisco Ayala; “Ortega y Gasset y sus obras completas”, de L. Luzuriaga),

e de outros colaboradores de língua hispânica, uma tradução de “Filosofía y Política”,

de Bertrand Russell, além da “Carta del Brasil”.

Os editores apresentam assim o texto de Cecília:

Para aquellos que conocen a Cecília Meireles por su poesía tal vez sea una

sorpresa encontrar en ella también el dominio de la prosa y del pensamiento

discursivo que se evidencia en esta Carta del Brasil con la que colabora a los

designios de Realidad. Y, sin embargo, en su contemplación del real – en

esta revisión de la experiencia viva de su generación, recapitulada en un

presente rigoroso – si descubre la misma clarividencia, la misma nostalgia

de otros mundos y la misma pasión del absoluto que caracteriza su poesía

(Meireles, 1947).

Coerente com a proposta editorial da revista, a autora apresenta em seu ensaio

em forma de carta, cujo destinatário é o leitor, uma discussão sobre a crise na Cultura

Ocidental a partir de como o Brasil foi afetado pelas Guerras, “seus resíduos fatais nos

chegaram como uma chuva de cinzas”. A decadência dos valores humanistas; a

desvalorização do passado, a crítica aos sucessivos “ismos” na arte dos anos de 1920, à

opressão das ditaduras, ao consumismo, ao poder do dinheiro, à mecanização da vida e

à desvalorização do pensamento estão presentes no texto, em que é nítido o

ressentimento de Cecília em relação à falência das tentativas de reforma educacional no

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Brasil. Vemos então que este era o tema central de seu desabafo: “Se as tentativas de

reforma educacional esboçadas em 1930 e nos anos subsequentes tivessem conseguido

prevalecer, a metade dos males que hoje nos consomem talvez pudesse ter sido

evitada”.

Contudo, na “Carta do Brasil” a busca pelo passado e pelo absoluto leva a autora

a desenvolver reflexões bastante questionáveis. Por exemplo, quando ela se lamenta

pela chegada de imigrantes estrangeiros ao Brasil, vendo-os como elemento

perturbador, já que, segundo ela, negros, brancos e portugueses aqui viviam em

completa harmonia: “simpatizávamos com o índio que o romantismo embelezou, nos

enternecia o negro que amamentou nossa infância com seu leite e sua imaginação e os

laços europeus com Portugal estendiam nosso parentesco à terra ibérica”. Além desse

cenário pueril lembrar os acordes perfeitos da convivência idealizada por Monteiro

Lobato em seu O Sitio do Pica-pau Amarelo, onde a Escrava Anastácia estava

docilmente integrada à família de Dona Benta.

A nostalgia pelo passado a partir da defesa da noção de que as mudanças

representam uma ameaça, leva Cecília à situação complexa: exaltar os tempos do Brasil

Colônia e ao mesmo tempo se posicionar veementemente contra a opressão das

ditaduras do XX, “porque as ditaduras podem ser mais odiosas que os próprios

ditadores”. Contudo, apesar de também se tratar de um sistema opressor, a situação de

Colônia é apresentada como algo positivo, por sua virtude de preservar e oferecer

valores humanistas:

Sob a luz dos trópicos, sentíamos aquela capacidade de compreensão que

parece um legado dos périplos e do velho convívio mediterrâneo. Talvez

fôssemos um pouco ridículos (...) mas era o privilégio de um país que havia

conhecido as disciplinas de Reino e Império. Talvez fôssemos um pouco

absurdos, por andar com sonetos greco-latinos nas mãos e nos sentirmos de

vez em quando helênicos: mas era o deslumbramento do Humanismo.

E aqui temos a importante distinção em relação à produção poética da autora: o

pensamento lírico de Cecília Meireles se distingue por expressar uma potência crítica e

de reflexão que nem sempre estão presentes em sua prosa.

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110

É portanto na poesia onde encontramos o vigor e a profundidade do pensamento

de Cecília, sobretudo no que se refere à “importância misteriosa de existir”39

. A

valorização do passado, por exemplo, presente tanto em seus escritos em prosa, quanto

em sua poesia, se apresenta de modos profundamente distintos. Se nos textos em prosa,

como a “Carta do Brasil”, as mudanças advindas dos novos tempos são vistas como

ameaça – e o leitor se depara com uma visão estática da vida –, na poesia, a valorização

da tradição que surge, sobretudo na forma como são construídos os poemas, no uso das

métricas clássicas, ganham vitalidade pelo movimento que o pensamento lírico da poeta

imprime; fazendo do transitório, do passageiro, marcas indeléveis de sua poética,

conforme lemos nas palavras da própria poeta: “A noção de sentimento de

transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade” (Meireles,

1967, p. 77).

Um dos poemas em que encontramos uma bela reflexão sobre o passado é

“Onda”, de Viagem, principalmente nas seguintes estrofes:

(...) Tenho no meu lábio as ruínas

de arquiteturas de espuma

com paredes cristalinas...

Voltei aos campos de bruma,

onde as árvores perdidas

não prometem sombra alguma.

As coisas acontecidas,

mesmo longe, ficam perto

39

Em carta de 19 de janeiro de 1915 a Armando Cortes Rodrigues, com quem Cecília também se

correspondeu, Fernando Pessoa fala sobre a “importância misteriosa de existir”: “Chamo insinceras às

cousas feitas para fazer pasmar, e às cousas, também - repare nisto, que é importante - que não contêm

uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da

gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro

de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, diverso em todos três, mas em todos

gravemente atento à importância misteriosa de existir.” (Disponível em:

http://arquivopessoa.net/textos/3510)

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111

para sempre e em muitas vidas (...)

Em “As duas velhinhas”, de Ou isto ou aquilo, Cecília também realiza uma

construção estética potente sobre o tempo passado, como veremos mais adiante.

2. Por uma formação humanista para a América Latina

O termo Humanismo, de modo amplo, indica a exaltação do espírito humano em

sua livre atividade, a dignidade humana na plenitude de suas capacidades criadoras. Em

um sentido mais específico também se entende Humanismo como a atitude que

historicamente se concretiza de modo exemplar em torno do século XV, quando a

antiguidade clássica é reativada por meio do estudo das “humanae litterae”, cujo ideal e

modelo de educação é o homem completo que tem no mundo Greco-romano como

momento histórico elevado a exemplar eterno (cf.: Gabetti, 1959, p. 232).

Veremos então como os pensamentos e as atividades dos poetas Cecília

Meireles, Alfonso Reyes e Gabriela Mistral se conectam às ideias humanistas, e em

particular à recente concepção de Eduardo Said sobre o Humanismo.

Poesia, educação e jornalismo: estas eram as áreas de atuação que Cecília, Reyes

e Gabriela tinham em comum, além do hábito de escrever cartas. As obras dos três

escritores apresentam conteúdo variado, incluindo poemas, cartas, contos, crônicas,

artigos, ensaios, conferências, e estão em sintonia com a subjetividade típica da

modernidade: uma subjetividade “fraturada”. Tal fratura, conforme a definição de Luiz

Costa Lima, “em vez de implicar a fragilidade do sujeito, o dota de uma imensa

plasticidade, indispensável para responder a tamanha variedade de experiências no

mundo” (Costa Lima, 2000, p. 171).

Assim, no trânsito entre esses diferentes discursos, eles articularam e

construíram o projeto que partilhavam de uma formação humanista para a América

Latina, fundamentada nos diálogos com as tradições, na interculturalidade e na

educação estética. O que os unia era que tinham na linguagem o lugar de encontro com

o outro. Assim, o humanismo ao qual se vincularam antecipou o pensamento de um dos

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112

mais importantes intelectuais do nosso tempo, o palestino Edward Said, que defendia

uma concepção de humanismo baseada numa atitude engajada contra a alienação e a

exclusão.

Trata-se do que Said chamou de um “humanismo mundano” (Said, 2007). Em

oposição aos ideais do humanismo conservador, elitista e etnocêntrico, ele propunha

uma ideia de humanismo livre das restrições acadêmicas, “que corresponde àquela de

intelectual defendida e vivida por Sartre: alguém que se vale do seu prestígio em

qualquer área do saber para influir no debate público, com uma crítica radical, acima de

lealdades partidárias, uma voz incômoda e, por isso mesmo, necessária” (Nuto, 2008).

É importante ressaltar que o termo “Humanismo”, e também o destaque para a

ideia de um “humanisimo mundano”, de Said, são aqui empregados como uma tentativa

de entender a ação desses poetas naquela época, já que nos anos 30 o termo nem existia

como tal.

Ainda que hoje não sejam lembrados pela radicalidade de seus posicionamentos

políticos – como Sartre –, Cecília, Reyes e Gabriela tiveram participação ativa no

debate público de suas épocas. Atuavam intensamente como escritores e tinham na

educação o foco desse engajamento.

A participação na sociedade, por meio dos artigos em jornais e revistas, a rede

de relações com intelectuais estrangeiros, as atividades de poeta – e educadoras, no caso

de Cecília e Gabriela –, foram movimentos que eles compartilharam, e que coincidiam

com a profunda ligação que mantinham com a vida e com a História.

Esse engajamento com a vida e a História, tendo na linguagem o veículo de

questionamento e a atenção ao sofrimento humano, é visto por Giuseppe Ungaretti

como peculiar a todo grande escritor. Diz o poeta italiano:

Não são os fatos externos que fazem o escritor: é o escritor que julga através

da própria obra tais fatos, fatos esses que não o determinarão – se ele for um

verdadeiro escritor. É claro que, por natureza, e não fora; mas se o escritor

não conseguir exprimir a história, na própria obra e marcá-la com sua

personalidade, ele é um escritor secundário, e a história não o levará em

consideração. Um escritor, um poeta, é sempre, para mim, engagé,

empenhado: empenhado em fazer o homem redescobrir as fontes da vida

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moral que as estruturas sociais, de qualquer constituição, sempre tendem a

corromper e exaurir (Ungaretti, 1994, p. 222).

3. A poesia infantil de Cecília e Gabriela

Ilustração: Salmo Dansa

‘Ontem eu era pequenina’

Diz Marina.

‘Ontem nós éramos crianças’,

Diz Mariana.

(“As duas velhinhas”. Ou isto ou aquilo, Cecília Meireles)

“Duas velhinhas muito bonitas” é o primeiro verso da balada “As duas

velhinhas” de Ou isto ou aquilo: poemas infantis, de Cecília Meireles. Escrito em 1964,

em pleno ano do golpe militar no Brasil, o livro é constituído por vinte poemas que

trazem personagens, cenas, brincadeiras, e imagens voltadas para o universo da

infância, explorando o ambiente do sonho e da fantasia. “Colar de Carolina”,

“Pescaria”, “Moda da menina trombuda”, “O cavalinho branco”, “Bolhas”, “O menino

azul” e “Ou isto ou aquilo”, que dá título à obra, estão entre os poemas que têm em

comum a musicalidade; expressa em rimas, aliterações (“Tanta tinta” e “A Lua é do

Raul”, por exemplo) e formas poéticas da tradição, como no caso de “As duas

velhinhas”.

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114

A balada é a “forma romântica por excelência”, conforme nos ensina Antonio

Candido: “poema narrativo de origem popular, parecido com o que na Península Ibérica

se chamou ‘romance’ contando fatos e aventuras de guerra, caça, amor e morte, com o

uso do diálogo, recorrência de versos e palavras, apresentação de tipo dramático”

(Candido, 1985, p. 47-8).

Na cena temos Marina e Mariana, que tomam chocolate na varanda lembrando o

tempo em que eram crianças.

Duas velhinhas muito bonitas,

Mariana e Marina,

estão sentadas na varanda:

Marina e Mariana.

Logo em seguida somos lançados à meninice de Marina e Mariana:

Elas usam batas de fitas,

Mariana e Marina,

e penteados de tranças:

Marina e Mariana.

Seria uma narrativa banal não fosse a habilidade da poeta em criar, na estrutura

do poema, uma apresentação que produz no leitor a sensação contígua ao que se passa

quando lembramos o passado: o embaraço entre memória e imaginação. A narração é

feita no presente e a sobreposição dos tempos, a mistura das cenas do passado e do

presente, é sutil, delicada como o clima do poema com suas “xicrinhas de porcelana” e

“ondas que dançam”. Os nomes das personagens, repetidos ao final de cada estrofe,

proporcionam o efeito de musicalidade; facilitando a memorização.

É um poema bom para ser ouvido e que está, portanto, muito próximo da

oralidade.

Baladas e Canções são formas recorrentes na poética de Cecília Meireles, que

defendia a importância da literatura oral na formação cultural das sociedades. O gosto

de ouvir era para ela um estímulo ao gosto de ler, já que “a Literatura Tradicional

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(literatura oral) é a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o seu

primeiro livro” (Meireles, 1979, p. 66). Cecília lembra ainda que a literatura oral está na

origem de todos os livros: são os momentos em que uma mãe canta para o filho dormir,

as histórias que os avôs contam para os netos. Enfim, as histórias que passam de pais

para filhos e que são o estímulo para a leitura e a escrita.

Tomando a oralidade por base da formação literária, a poeta elege o diálogo com

a tradição como uma das forças motrizes de sua obra. Se pensarmos na relação entre

experiência e narração, segundo os estudos de Walter Benjamin, especialmente em seu

clássico ensaio sobre o narrador, o que temos é o pressuposto de uma tradição

compartilhada, retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho.

O que gostaria de ressaltar aqui é o caráter de modernidade – da entrada em cena do

leitor e da exploração dos poderes da linguagem – que há nessa transmissão da tradição,

conforme observou Jeanne Marie Gagnebin. Ao contrário de muitos leitores, que veem

nostalgia nas análises do autor alemão sobre o fim da arte de contar e da experiência

coletiva, Jeanne Marie afirma que há em “O narrador. Considerações sobre a obra de

Nikolai Leskov” uma teoria antecipada da obra aberta: “Um movimento de abertura na

própria estrutura da narrativa tradicional. Cada história é o ensejo de uma nova história

(...)” (Gagnebin. In.: Benjamin, 1985, p. 13). Por esta observação podemos pensar na

hipótese de que o diálogo com a tradição – tão presente na obra de Cecília Meireles e

tão pouco compreendido por seus contemporâneos – além de ser parte de uma poética

da modernidade, tem relação com o processo que constitui a trajetória desta escritora: a

proposta de uma formação humanista para o Brasil.

A exploração dos recursos da arte verbal no diálogo com a tradição das métricas

portuguesas, do cancioneiro espanhol e do simbolismo, e o forte apelo às rimas e às

canções são aspectos importantes na obra de Cecília Meireles. Podemos entendê-los

como índices da busca de estabelecer um diálogo com o leitor, a partir da provocação

para o despertar de uma sensibilidade mais afinada com as questões intrínsecas da

humanidade.

Além da ideia de partilhar e ampliar a sensibilidade, formando leitores, o diálogo

com a tradição aponta também para um dos pilares dessa formação humanista, o

investimento na Educação infantil.

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Ainda hoje vista por muitos como uma “literatura menor”, a literatura infantil é a

base da leitura e da produção escrita no âmbito escolar, está ligada a uma das ações

humanas mais fundamentais na difusão do conhecimento e no desenvolvimento da

cultura dos povos: o ler e o escrever. Tendo em vista a importância destas ações, Cecília

Meireles defendia a ideia de que a leitura na infância não era um “passatempo” e sim

uma “nutrição” (Meireles, 1979, p. 28).

“Literatura menor” para Gilles Deleuze e Félix Guattari, é aquela literatura que

uma minoria faz em língua maior. Além do forte coeficiente de desterritorialização,

numa “literatura menor” tudo adquire um valor político e coletivo. Desse modo, o que à

primeira vista soa como um descompasso de artistas cuja dicção poética parece estar

sempre à margem das de seus contemporâneos, como no caso de Cecília e Gabriela,

ganha a força de uma revolução empreendida de um lugar que muitos consideram o de

uma “poesia menor”.

O poema “Duas velhinhas” encena então uma imagem significativa da relação

entre Cecília e Gabriela: o encontro de duas velhas amigas que partilham recordações e

a admiração por uma beleza singela e sutil.

4. Uma tradutora para a rainha Quéchua

Lavradeira de ternuras,

trago o peito atormentado

pelas eternas securas

de tanto campo lavrado.

(“Trabalhos da terra”, Vaga música, C.M.)

Cecília Meireles (1901-1964) e Gabriela Mistral (1889-1967) se conheceram no

Brasil em 1937, quando a já célebre poeta e intelectual chilena chegou ao Rio de Janeiro

como cônsul do Chile. Cecília foi procurá-la para uma entrevista, na época ela

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trabalhava para o jornal carioca A Nação. No artigo “Un poco de Gabriela Mistral”,

Cecília conta como foi o encontro.

Gabriela a recebeu no hotel, acompanhada por uma secretária, “me esperava

sentada em uma poltrona com um vestido verde malva, com bordados em relevo no

peito” (Meireles, 1963). Como Gabriela não entendia muito bem o português, Cecília

ajudou-a em seus primeiros contatos em terras brasileiras. Dessa aproximação surgiu a

ideia de preparar uma antologia chileno-brasileira, com uma traduzindo os poemas da

outra. A obra não foi publicada, mas, em 2003, uma parceria entre a Academia Chilena

de la Lengua e a Academia Brasileira de Letras trouxe ao público o volume bilíngue

Gabriela Mistral y Cecília Meireles, com um afetuoso ensaio de Cecília Meireles sobre

a obra e a pessoa de Gabriela Mistral. Os poemas foram traduzidos por Ruth Silvia de

Miranda (os da poeta chilena), e por Patricia Tejeda (os da poeta brasileira) e há

também um ensaio de Adriana Valdés sobre a obra de Cecília Meireles. No texto de

Cecília sobre Gabriela encontramos a amizade que as uniu e fez com que mesmo

distantes pelas situações da vida continuassem a se corresponder entre os anos de 1943

e 1947.

Nas cartas de Cecília Meireles para Gabriela Mistral, a que temos acesso pelo

site da Universidade do Chile, que organizou com esmero parte da obra da escritora

chilena, um dos traços mais marcantes é a investida da poeta brasileira na aproximação

entre os países latino-americanos.40

Cecília defendia uma maior interlocução entre os intelectuais latino-americanos.

Em carta, de 22 de janeiro de 1948, à amiga Isabel do Prado, ela escreve: “Se temos de

arranjar mestres estrangeiros – e nisso estou de acordo - devem ser os que têm conosco

certo parentesco, e, portanto, começarão por ser latinos” (RJ, 22 de jan. de 48, carta 26).

Tocando em um dos pontos complexos da questão de integração do Brasil à

América Latina, os idiomas, Cecília propõe à Gabriela a difusão do espanhol no Brasil:

Querida Gabriela, vou procurar um chileno para traduzir. Na minha opinião,

aliás, os sul-americanos deviam ser publicados no original. Por que fazer

este crime de metê-los noutra pele, quando nós todos entendemos tão

40

A correspondência para Gabriela Mistral está disponível no site da Biblioteca Virtual da Universidade

do Chile. www.gabrielamistral.uchile.cl/

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118

facilmente o espanhol, e com a prática de lê-lo ainda o viríamos a entender

melhor? Por que V. não explica isso às gentes com quem trabalha? (Carta de

Cecília à Gabriela em 26/06/1943).

Cecília traduziu para o português artigos que Gabriela publicou em revistas

brasileiras, mas, em alguns momentos dessa correspondência, ela se queixa à amiga da

dificuldade que sentia com essa tarefa. Ela acreditava que os textos em espanhol deviam

ser publicados no original, já que “nós todos entendemos tão facilmente o espanhol”. Na

prática, essa facilidade não corresponde ao entusiasmo da poeta, mas certamente uma

maior familiaridade entre o português e o espanhol ajudaria a minimizar uma forte

barreira de integração do Brasil à América Latina.

Wolfgang Vogt já chamara a atenção, em 1986, para a situação de isolamento do

Brasil em relação à América Latina, por decorrência do idioma: “Brasil fue bastante

aislado del resto de América Latina por cuestiones de idioma. Es relativamente fácil

encontrar libros en español en una librería de Río, pero casi imposible descubrir un libro

en portugués en una librería de México” (Vogt, 1986, p. 12). Comparando o Brasil ao

Caribe francês, Vogt conclui: “Si los hispano-americanos saben poco de Brasil, casi

nada saben de la cultura del Caribe francês. Pero no es suficiente el conocimiento de lo

hispano-americano. Sin las manifestaciones de Brasil y del Caribe francés, la cultura

hispanoamericana no es completa.” (Vogt, 1986, p.13).

Essa situação de isolamento percebida por Vogt nos anos 1980, ainda hoje se

mantém. Um exemplo, que pude observar durante minha estadia no México, foi a

impossibilidade que tive de conseguir um dicionário português-espanhol. Mesmo nas

maiores livrarias da Cidade do México não tive êxito em minha busca, havia uma sorte

de dicionários, chinês, alemão, inglês, francês... mas o português estava ausente das

estantes. Situação não muito diferente ocorre em relação às publicações de autores

brasileiros. O panorama que se tem da literatura brasileira no México, mesmo entre os

que atuam nas áreas da cultura e da educação, é restrito a um escasso elenco de autores,

como Clarice Lispector, Jorge Amado, Machado de Assis, Rubem Fonseca e Paulo

Coelho.

Nessa carta de Cecília à Gabriela, vemos além da preocupação com uma maior

comunicação entre os dois idiomas, a importância da oralidade para a poeta brasileira, e

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119

ainda um traço recorrente de sua subjetividade, presente nas cartas, e pouco conhecido

do público, o humor, como mostra o seguinte trecho:

Seu prestígio de rainha quéchua está muito consolidado, digam o que digam

os “criollos”. V. poderia mesmo decretar aos seus vassalos: “Queda

establecido que en la cosa literaria cada uno escribe como habla, e así se

publica, consideradas todas las traducciones, aún las da sra. C.M., como

abusivas, exóticas, nocivas al bienestar de los pueblos y al sentido común.

Etc, para que se cumpla, y que se no lo cumplen sean llevados los traidores

a un campo de concentración prusiano, etc. (Idem).

Em outra carta, de 28 de agosto de 1944, em que fala à amiga sobre o artigo que

esta publicaria no jornal “A manhã”, Cecília traz à luz a importância da comunicação

intercultural no desenvolvimento da humanidade, se aproximando da questão colocada

por T. S. Eliot no ensaio “A função social da poesia”:

A comunicação espiritual entre um povo e outro não pode ser levada adiante

sem indivíduos que assumam o desafio de aprender pelo menos uma língua

estrangeira tão bem quanto é possível aprender qualquer língua que não a

sua própria (Eliot, 1991, p. 15).

Tradutora de importantes autores de língua inglesa e espanhola, como Virginia

Woolf (Orlando); Charles Dickens (A Christmas Carol) e Federico Garcia Lorca

(Bodas de sangre, Yerma) Cecília tinha nos diálogos interculturais um dos fundamentos

de sua escrita.

Esforcei-me, nesta semana, por fazer-lhe as duas traduções, com o carinho

que merece tudo que é seu, e também pelo prazer que me dá o convívio com

o seu espírito. Mas ainda não estou completamente restabelecida, como já

disse a Palma. Não sei quem poderia ocupar-se de traduções suas – pelas

dificuldades já apontadas. Mas se o Renato tem tanta vontade de fazê-las, é

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120

porque isso lhe dá prazer e, com o tempo, é possível que adquira a destreza

que os seus artigos exigem do tradutor, o conhecimento do jogo imaginativo

e verbal da autora – enfim, que se ponha em condições de ser um intérprete

do seu espírito (Carta de Cecília à Gabriela em 28/08/1944).

Numa época em que o Brasil vivia um surto nacionalista, entre as décadas de

1920 e 1960, eram excêntricos tanto o movimento além das fronteiras quanto a

investida no estudo da tradição poética, que incluía os antepassados da Península Ibérica

e suas conexões com o Oriente, isto somado ao profundo interesse pela língua de

diferentes povos como o espanhol, o russo, o inglês, o francês, o chinês; o que confirma

a inquietação e a curiosidade que a autora manteve em relação à linguagem humana e

que a impulsionava a criar diversas articulações político-estético-culturais.

5. Dame la mano: poética da convergência na América Latina

Dame la mano y danzaremos;

dame la mano y me amarás.

(“Dame la mano”. Ternura, Gabriela Mistral)

O poema integra a seção “Rondas” e é dedicado ao escritor brasileiro Tasso da Silveira,

amigo de Cecília, com quem ela fez parceria nas publicações da Revista Festa (1927) e

na edição do premiado Viagem (1939). Encontramos nele uma nota, recurso que vez ou

outra Gabriela Mistral incluía em seus poemas:

Mi compañero el poeta Tasso da Silveira, me salvó una estrofa perdida de

esta Ronda, la única que tal vez importaba cuidar, y que había sido

suprimida por editor o tipógrafo.

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Não sabemos qual estrofe foi salva, mas a nota a Tasso da Silveira é uma mostra

da rede de amizades que unia Gabriela e Cecília.

O título do poema “Dame la mano” faz lembrar o “Mãos dadas”, do Drummond:

“O presente é grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos

dadas” (“Mãos dadas”. Sentimento do Mundo, 1935-40). E dimensiona a importância

que os diálogos e que os vínculos com o tempo presente tinham para esses poetas.

Assim como em Ou Isto ou Aquilo, a musicalidade e os laços com a tradição oral

são fortes componentes de Ternura; considerado um valioso antecedente de alguns dos

poemas mais célebres de Gabriela Mistral (Mistral, 1993, p. 24). Os poemas iniciais,

das seções “Canciones de cuna”, que podemos traduzir por “canções de ninar”, e

“Rondas” é onde esses elementos são mais evidentes. Como mostra, por exemplo, o

poema “Canción quechua”:

Donde fue Tihuantisuyo,

nacían los indios.

Llegábamos a la puna

con danzas, con himnos.

Silbaban quenas, ardían

dos mil fuegos vivos.

Cantaban Coyas de oro

y Amautas benditos.

Bajaste ciego de soles,

volando dormido,

para hallar viudos los aires

de llama y de indio.

Y donde eran maizales

ver subir el trigo

y en lugar de las vicuñas

topar los novillos.

¡Regresa a tu Pachacamac,

En-Vano-Venido,

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Indio loco, Indio que nace,

pájaro perdido!

A questão educacional e o investimento na formação humanista também

estavam presentes em Ternura. O desejo de Gabriela era o de criar um diferencial em

relação ao que estava sendo produzido para o público infantil:

He querido hacer una poesía escolar nueva, porque la que hay en voga no

me satisface, una poesía escolar que no por ser escolar deje de ser poesía,

que lo sea, y más delicada que cualquiera otra, más honda, más impregnada

de cosas de corazón más estremecida de soplo de alma (Idem).

A ideia de produzir uma poesia para as crianças diferente do que estava em

voga, mais profunda, “impregnada de coisas do coração”, que vibre com o sopro da

alma, nos faz pensar na defesa de Cecília por uma literatura infantil que não seja

somente um passatempo, mas uma nutrição. Afinal, disto dependerá sua formação

humana.

“El niño” de Gabriela, o “menino azul” de Cecília, em Ou isto ou aquilo,

também está na poesia de um de nossos grandes poetas, Manuel Bandeira que já foi

rotulado de um “poeta menor”41

. Está presente em “Meninos carvoeiros”, “O menino

doente” e “Balõezinhos”, onde lemos o belo verso: “Os balõezinhos de cor são a única

mercadoria útil e verdadeiramente indispensável” (“Os balõezinhos”. O ritmo dissoluto,

Manuel Bandeira).

Na feira do arrabaldezinho

Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:

— "O melhor divertimento para as crianças!"

Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,

41

A propósito de Bandeira e da análise de uma poesia menor, cf. o ensaio “Sobre poesia”, em Textos de

Intervenção, de Antonio Candido, em que ele fala sobre o polêmico artigo de Carlos Lacerda publicado

em 30/4/1944, na Folha da Manhã. Nele, Lacerda refere-se a Bandeira como um “poeta menor”.

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123

Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.

No entanto a feira burburinha.

Vão chegando as burguesinhas pobres,

E as criadas das burguesinhas ricas,

E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.

Nas bancas de peixe,

Nas barraquinhas de cereais,

Junto às cestas de hortaliças

O tostão é regateado com acrimônia.

Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras,

Os tomatinhos vermelhos,

Nem as frutas,

Nem nada.

Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única

mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.

O vendedor infatigável apregoa:

— "O melhor divertimento para as crianças!"

E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um círculo

inamovível de desejo e espanto.

Como em “As duas velhinhas”, os “Balõezinhos”, de Bandeira, também tem a

narrativa por fundamento. Há no poema, além de uma crítica a uma situação social

constante nos países latino-americanos, o argumento contundente de que a poesia é

inútil, porém indispensável. Afinal, seria muito preocupante um país que deixasse de ter

poetas.

Desse modo, o sentido que a educação adquire na trajetória desses escritores é o

de uma educação pela poesia, pela disposição lúdica despertada pelo belo – um estado

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124

de liberdade42

. É assim uma possibilidade de desenvolvimento de camadas mais

profundas da sensibilidade humana, próximo do que pensaram os românticos alemães

do século XIX: Novalis, Schlegel e Schiller, em suas Cartas sobre a educação estética

do homem: “O objeto do impulso sensível, expresso num conceito geral, chama-se vida

em seu significado mais amplo, um conceito que significa todo o ser material e toda a

presença imediata nos sentidos (Schiller, 1990, p.81)”.

Os poemas infantis de Gabriela e Cecília trazem justamente essa disposição

lúdica, apresentam um “sentir pensando”, como expôs Fernando Pessoa: “O que em

mim sente está pensando” (“Ela canta, pobre ceifeira”. Mensagem). Verso este que

poderíamos chamar de síntese dessa formação humanista, cujo princípio está no livre

jogo entre razão e sensibilidade:

Não errará jamais quem buscar o ideal de beleza de um homem pela mesma

via em que ele satisfaz seu impulso lúdico (...) o homem joga somente

quando é homem no pleno sentido da palavra e somente é homem pleno

quando joga (Idem, p. 84).

É, portanto, no exercício deste jogo que o homem poderá se desenvolver

plenamente em suas capacidades intelectuais e sensíveis.

6. Educar para transformar

Renovação era a palavra de ordem naquele período histórico entre 1920 e 1940. Em

1922, Gabriela Mistral foi convidada pelo governo do México para participar do

programa educativo dirigido pelo filósofo e ministro da educação, José Vasconcelos.

Gabriela aceita a oferta e parte para o México, no que seria sua primeira temporada de

dois anos naquele país.

42

“Educação, para mim; é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma

estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor.” (Cecília Meireles

em entrevista a Pedro Bloch. Revista Manchete, nº 630. 16/05/1964. Pedro Bloch Entrevista. Rio de

Janeiro: Bloch Editora, 1989.)

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125

No Brasil, Cecília Meireles participava ativamente do movimento da Escola

Nova (1932), com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho. Ao todo

eram 26 educadores que lançaram um manifesto em defesa da escola pública, gratuita e

leiga, com métodos pedagógicos centrados no aluno. Entre 1930 e 1933, Cecília editou

a “Página de Educação”, no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, e teve que enfrentar a

repressão do governo de Getúlio Vargas. É o que relata Valeria Lamego em seu estudo

sobre a atuação jornalística de Cecília Meireles durante a década de 1930, A Farpa na

Lira (1996), e no artigo “A musa contra o ditador” (1996), onde conta o caso absurdo

que ocorreu no Centro de Cultura Infantil que Cecília inaugurou junto com o primeiro

marido, Correia Dias, no Rio de Janeiro:

Em 1934, depois de todo furor causado pela “página”, junto com o então

marido, o pintor Correia Dias, Cecília inaugura o Centro de Cultura Infantil,

no Pavilhão Mourisco, espaço que estava vazio e abandonado, no bairro de

Botafogo, RJ. Em 1937, em plena vigência do Estado Novo, o Centro é

invadido pelo interventor do Distrito Federal, que apreende de sua biblioteca

‘As aventuras de Tom Sawyer’, de Mark Twain, por considerá-lo

comunista. O caso teve repercussão internacional, a prefeitura resolve então

fechar o Centro de Cultura Infantil e, em seu lugar, instala um posto de

arrecadação fiscal.

Foi Alfonso Reyes um dos maiores incentivadores na criação desse Centro de

Cultura, e da Biblioteca Pública Infantil Iberoamericana de Cecília Meireles. No Diário

de Reyes, lemos:

Rio, [viernes] 23 de marzo 1934.

Ofrezco en la embajada un almuerzo a los jefes de misiones

iberoamericanas para exponerles y pedir su apoyo para el proyecto de la

Biblioteca Infantil Iberoamericana de Cecília Meireles-Anísio Teixeira,

destinada a la enseñanza del español en Río, a los niños de las escuelas

primarias (Reyes, 2011, p. 199).

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126

Quatro dias depois, segundo as anotações de Reyes, ele recebe a visita de Cecilia

para tratarem sobre o assunto da Biblioteca, que é então inaugurada no dia 14 de agosto

de 1934, com a presença do embaixador mexicano que aponta a inauguração entre os

seus compromissos daquele dia: “Tarde: inauguración Biblioteca Infantil en el Pabellón

Morisco, Cecília Meireles, al que concurro.” (Reyes, 2011, p. 210).

Contudo já se insinuava a tensão política que viria nos anos seguintes com a

ditadura do Estado Novo. E quando começou a sentir as ameaças da possibilidade de

deturparem os propósitos originais de sua iniciativa, como se pressentisse as pressões

que culminariam com o fechamento do Centro de Cultura, Cecília, prestes a fazer uma

viagem de navio à Europa, desabafa ao amigo sobre sua inquietação:

(...) Confesso-lhe que parto com certa apreensão sobre o destino do Centro

de Cultura Infantil. O seu próprio êxito o ameaça. Anísio Teixeira esteve lá,

segunda-feira última. E comunicou-me o seu projeto de fundar muitos

outros, ao mesmo tempo, por toda parte... Esta infeliz mania norte-

americana de tudo fazer e pensar em série, estandartizada e medíocre (carta

14, de C.M. a Reyes, em 12 de setembro de 1934).

Essa é uma das cartas mais longas de Cecília para Reyes, e a que mais faz o

leitor entrar em contato com a cumplicidade e a amizade entre eles. Ela conta ao amigo

sobre os preparativos da viagem que fará com o então marido Fernando Correia Dias, a

bordo do Loyd, num itinerário que incluiu visitas a Portugal, Espanha, França e Itália,

mas o assunto central são as trocas culturais, os pedidos de indicações de livros e a

preocupação de Cecília na promoção da literatura Iberoamericana no Brasil e,

sobretudo, seu interesse missionário em divulgar o México no Brasil:

Para o Dia do México seria necessário preparar uma publicação, também,

por pequenina que fosse. Esta de Sarmiento levará apenas o seu retrato, e

talvez aquele quadro de Juan Pélaez sobre a sua adolescência. E para o

México? Que figura me aconselha como precisamente adequada à

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127

representação dos ideais e da felicidade do seu povo? Essas coisas históricas

vêem-se tão mal à distância! (Idem)

Pena que não tivemos acesso à resposta de Reyes, que provavelmente encontra-

se na casa abandonada do Cosme Velho, Rio de Janeiro, último endereço de Cecília e

fonte de uma série de pelejas judiciais pelos direitos autorais, que envolve uma das

filhas e um dos netos da poeta.

Sim, dá curiosidade de saber qual teria sido a “figura representativa dos ideais e

da felicidade do povo mexicano”, indicada por Reyes. Mas, pelas linhas a que temos

acesso, podemos ver o interesse de Cecília em promover o encontro entre história,

cultura e literatura na América Latina, e ainda mais na promoção de um dos países com

os que teve mais afinidades espirituais, como revelou em diversos momentos: o México.

7. México: tierra madre

Em “O exemplo do México”, um dos textos publicados na “Página de Educação”, em

15 de março de 1931, Cecília procura chamar a atenção do governo brasileiro para a

importância da questão educacional na transformação da sociedade, e cita como

exemplares as políticas que estavam sendo elaboradas no México. Comentando um

pronunciamento do secretário do governo, José Américo, logo após o advento do

governo Calles, conclui: “Quem conhece o espírito da revolução do México sabe já que

a dedicação e o esforço a que se referiam essas palavras estavam intimamente ligados à

questão educacional, e pode-se dizer que se resumem propriamente nela” 43

.

Gabriela Mistral viveu no México entre os anos de 1922 e 1924. Ternura é,

portanto, o livro que publica após esta primeira temporada em um país que a marcou

profundamente e para onde retornou entre 1948 e 1950. Ao longo dessas duas

temporadas, Mistral produziu uma coletânea de textos em prosa que mais tarde seria

organizado por Alfonso Calderón e publicado com o título Croquis Mexicanos (1957).

43

“O exemplo do México”. Página de Educação, Diário de Notícias, 15 de março de 1931. Seção

Periódicos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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128

Em “A mulher mexicana na prosa de Gabriela Mistral”, Julio Dalloz analisa um

dos textos desta coletânea, “A la mujer mexicana”, lido por Mistral no Congreso

Mexicano del Niño (1923). Elaborando uma discussão sobre o corpo da mulher e sobre

a maternidade, Dalloz defende que a atitude feminista que sustenta ideologicamente o

“A la mujer mexicana” é de uma outra ordem, diferente daquela das feministas

contemporâneas de Gabriela:

A preparação da mulher para a maternidade e seu centramento na esfera do

lar não constituem, dentro do projeto mistraliano, um reforço da opressão

patriarcal, pois, devidamente preparada, a mulher está apta a dedicar ao filho

uma criação de caráter intelectual, opondo-se àquela que se tecia

unicamente nos modelos gastos da afetividade materna, idealizada pelo

sistema patriarcal cuja premissa básica é a de que a mulher não pensa.

Assim sendo, a maternidade para Mistral, mais que um fenômeno natural, é

um projeto de articulação política onde a mulher exerce o papel central de

formadora de cidadãos (Dalloz, s/d).

A imagem recorrente nos poemas de Ternura é a da mãe embalando seu filho. A

obra é “um colóquio diurno e noturno de uma mãe com sua alma, com seu filho e com a

terra visível ao dia e audível à noite” (Mistral, 1993, p. 24).

Como mostram, por exemplo, os versos de “Meciendo”:

El mar sus millares de olas

mece, divino.

Oyendo a los mares amantes,

mezo a mi niño.

A personagem da criança está presente na estrutura de vários dos poemas de Ternura:

Estoy en donde no estoy,

en el Anáhuac plateado,

y en su luz como no hay otra

peino un niño de mis manos (“Niño mexicano”)

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129

Se pensarmos na análise de Julio Dalloz sobre a conotação política que Gabriela

Mistral imprime à maternidade – “a maternidade é apresentada como uma função ativa,

de procriação e criação, que a diferencia daquela marcada pela passividade” – temos,

portanto, a mulher no centro desse projeto de uma formação humanista. É ela a figura

primordial na relação entre experiência e narração. E desse modo, “a fragilidade, então,

seria um artifício, uma possibilidade de defesa da mulher: pareço frágil, sou forte; sou

delicada, concentro energia. ‘En su tremenda hora de peligro’, esta força e energia

forjarão uma estirpe de ‘organizadores, obreros y campesinos’” (Dalloz, s/d).

Gabriela também apreende um traço marcante da cultura mexicana: o canto.

“México: el pluebo que canta. El Azteca, el Tolteca y el Maya eran músicos: el canto

fue una de sus manifestaciones religiosas” (Zegers, 2007, p. 107). Encontramos o

reflexo disso, por exemplo, nas “canciones de cuna”, as “canções de ninar”, que

constituem boa parte dos poemas de Ternura.

Eis então mais um elo entre Gabriela e Cecília: o México.

“Paisagem mexicana” é título de um poema de Cecília e de um texto em prosa

de Gabriela. O que eles têm em comum é a mulher como personagem central, ícone da

paisagem mexicana:

Ali no meio do mundo,

toda para o céu voltada,

única fonte na areia,

sozinha, a mulher chorava.

Talvez perguntasse aos santos:

“Por que se morre? e sentisse

que do céu lhe perguntavam

também “Para que se vive?

(“Paisagem mexicana”, Retrato natural. Cecília Meireles)

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130

Iztaccihuatl, julho de 2012. Foto: Francisco Kochen

La que más amo es el Iztaccíhuatl, o sea, La mujer Blanca. Línea a línea, es

una mujer tendida y vuelta al cielo. (...) Este paisaje del valle de México es

cosa tan nueva para mis ojos, que me desconcierto, aunque el desconcierto

está lleno de maravillamiento (Mistral, 1993, p. 361).

A leitura das “paisagens mexicanas” de Cecília e Gabriela apresenta a

coincidência da imagem da mulher na estrutura do texto. Assim como a figura feminina

é personagem central no poema de Cecília, é la mujer blanca, cuja silhueta constitui a

famosa geografia do vulcão Iztaccíhuatl, popularmente conhecido como “a mulher

dormida”, a paisagem amada pela poeta chilena, um dos ícones mais presentes do

imaginário mexicano, fonte de inúmeras lendas e inspiração de poetas e pintores44

.

44

Popocatépetl y Iztaccíhuatl são dois vulcões símbolos da paisagem e da identidade cultural da Cidade

do México. Hoje, somente o “Popo” ainda tem atividades esporádicas, o “Izta” é considerado uma

montanha, mas muitos o chamam de “la vulcana”. Desde a época pré-hispânica, são considerados espaços

sagrados, templos naturais onde se venerava o Deus Tláloc (Deus das águas e da chuva). Séculos depois,

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131

Entre os pontos de afinidades entre Gabriela e Cecília está ainda a figura do

poeta e intelectual mexicano Alfonso Reyes, como mais um dos tantos laços que uniram

as poetas brasileira e chilena. Sobre ele, Gabriela escreveu: “Un hombre de México:

Alfonso Reyes”, e descreveu-o usando o mesmo adjetivo que usou ao se referir à

novidade que foi para ela o contato com a paisagem do Vale Mexicano:

desconcertante Alfonso Reyes (...) una cordialidad fabulosa hacia los

hombres y las cosas, especie de amistad amorosa del mundo (Mistral, 1993,

p. 409).

Pode ser pelo desconcerto “cheio de maravilhamento” causado pela novidade da

paisagem, ou por sua forte ligação com a tradição e as histórias das Revoluções

populares, que o México seja visto como polo de fertilidade para escritores das

Américas. Outro fator relevante é a tradição desse país como polo de pensamento,

conforme observou Wolfgang Vogt: “México es, probablemente, el único país hispano-

americano con una tradición filosófica más independiente del modelo europeo. José

Vasconcelos y Samuel Ramos son filósofos que reflexionan principalmente acerca de

los problemas específicos de América Latina y México” (Vogt, 1986, p.50).

Vogt chama a atenção também para a importante atuação dos integrantes do

“Ateneo de la Juventud”, fundada em 1909 por um grupo de jovens intelectuais

mexicanos inspirados nas ideias difundidas por eles na revista Savia Moderna (1906). A

os vulcões marcaram e impressionaram viajantes e artistas, que a eles dedicaram desenhos, memórias e

documentos. Assim fizeram Hernán Cortés, Alexander von Humboldt, Diego Rivera, Antonin Artaud e o

pintor mexicano Dr. Atl, entre outros. Uma das versões mais populares da lenda azteca é a que narra o

amor da bela princesa Ixtaccíuatl, filha do cacique de Tlaxcala, e do guerreiro Popocatépetl que o ajudou

a libertar seu povo da dominação azteca numa das batalhas mais sangrentas do período pré-hispânico,

entre aztecas e tlaxcaltecas. Com a promessa de casar-se com a princesa após a guerra, o guerreiro, que

venceu todos os combates, no entanto a encontra morta quando regressa para sua terra. Então decide levá-

la nos braços subindo montanhas e montanhas, até chegar perto do céu, a estende no topo e se ajoelha

junto a ela. A neve então cobriu seus corpos, formando os gigantescos vulcões do Vale do México. Cf.: El

mito de dos volcanes: Popocatépetl y Iztaccíhuatl, Livro-catálogo da exposição homônima que aconteceu

em 2005 no Palácio Bellas Artes, na Cidade do México. Museo del Palacio de Bellas Artes. Editorial RM.

México-MMV.

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132

cultura dos ateneístas está marcada pelo humanismo clássico, durante as reuniões, liam

Platão e autores modernos como Kant, Croce, Nietzsche e Schopenhauer. A principal

fonte de pensamento era o idealismo alemão, e a obra de Henri Bergson, e concebiam

“la educación como una actividad evangelizadora”. A espinha dorsal do grupo era

formada por José Vasconcelos “el ateneísta que más participa en la vida política

mexicana”, Alfonso Reyes, “un humanista de estilo europeo que asombra por su gran

erudición”, Antonio Caso que “como nadie sabía transformar los ideales de la clase

media mexicana en ideas claras” e Pedro Enríquez Ureña, “investigador literario e

historiador de la cultura, uno de los membros más destacados del Ateneo de la

Juventud”. Vogt lembra também de pensadores como Vicente Lombardo Toledano “el

padre del marxismo mexicano” e, mais recentemente, Octávio Paz, cujo El laberinto de

la soledad é, segundo o crítico alemão, “un libro de impresiones con muchas ideas

geniales” (Vogt, 1986, p. 32-52).

O fato é que ainda hoje esse país provoca encanto em artistas e amantes da

cultura. Érico Veríssimo escreveu sobre o México quando lá esteve em 1957 (México,

história duma viagem)45

e Cyro dos Anjos tentou implantar um curso de literatura

brasileira na Universidade do México na década de 1950.

Não foram poucas as tentativas de laços entre México e Brasil. Regina Crespo,

ao analisar o tema das relações culturais e intelectuais entre mexicanos e brasileiros

durante as décadas de 1920 e 1930, diz ser inevitável entrarmos no campo da política

para pensarmos sobre o assunto, já que os primeiros contatos mais concretos e

sistemáticos entre Brasil e México aconteceram a partir das relações diplomáticas entre

os dois países (Crespo, 2006). A pesquisadora lembra que a questão da integração do

Brasil no continente latino-americano era parte da agenda ideológica daquele momento

e chama a atenção para as afinidades entre o plano educativo-cultural de Vargas, e o

projeto liderado por Vasconcelos durante a presidência de Obregón, “guardadas,

evidentemente, as diferenças e especificidades históricas e dadas as distintas matrizes

ideológicas de cada caso” (Idem).

No entanto, apesar desses contatos diplomáticos no passado, a dificuldade de

diálogos, que resultem em uma maior aproximação entre os dois países, persiste;

sobretudo no campo da arte e da cultura.

45

Ver Souza, 2008.

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133

Há a questão da distância geográfica, a barreira do idioma e o que suponho ser

um complicador para esta relação: a sensação de que há algo familiar entre mexicanos e

brasileiros. Assim, quando não reconhecemos a diferença que há entre os mais íntimos,

perdemos o interesse em avançar por diálogos mais profundos.

Gabriela e Cecília foram intelectuais que fizeram de sua condição de mulher,

ligada à natureza, à maternidade, elemento a mais de potência para suas obras. E

tiveram no México a geografia necessária para que desabrochasse a ligação mais íntima

com a terra, a consciência da condição de escritora latino-americana, e as sintonizasse

com os princípios de uma revolução em consonância com a ideia do amigo e poeta

Alfonso Reyes, que propôs:

revolucionar nuestra sensibilidad interior. Para persistir hay que renovarse

incesantemente (...) y el arte, en las sociedades, es la periódica operación de

cataratas que devuelve a los pueblos la visión fresca de la vida, el nombre de

esta evolución continuada es Libertad (Reyes, 1959, v. IX, p. 27).

8. Vida e Ficção

Qué derecho tengo yo para aplicar a estos hombres las convenciones

mímicas de mi sociedad. Todos, en cierta medida, hacemos la farsa, la

traducción, la falsificación do lo que llevamos dentro, al tratar de

comunicarlo los procedimientos pueden variar, eso es todo (Reyes, 1996, v.

13, p.156).

Na carta de 16 de março de 1931, a de número 1 no acervo da Capilla Alfonsina,

Cecília agradece a Reyes pelo envio de “El testimonio de Juan Pena”, a que ela chama

“encantador”. E diz, “não acrescentarei nenhuma palavra de louvor a esse

agradecimento, porque sei que, a um artista de verdade, custa sempre muito aceitar a

futilidade de um elogio”. E segue informando que junto com a carta lhe envia um

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134

recorte do Diário de Notícias, em que ela “se atreve a um comentário sobre o livro”. A

esse texto, publicado em 6 de março de 1931, na seção “Comentário”, da Página de

Educação, ela se refere como um pretexto à admiração que sente por ele, e pelo México,

seria então uma homenagem:

Encarei-o sob esse aspecto para ficar dentro do espírito da Página que dirijo,

e onde tantas vezes tenho escrito sobre a tua terra admirável que é, para

mim, um exemplo e uma inspiração, nesta hora de transformações da

humanidade, de desejos de transformações, pelo menos... (carta de Cecília a

Reyes, 16 de março de 1931).

Nesta mesma carta, ficamos sabendo que Reyes lhe enviou também três livros

sobre o ensino no México, além de uma coleção que ela chama de “magnífica”.

“El testimonio de Juan Pena” integra a seção “Vida y Ficción”, do livro

Ficciones (Vol. XXIII de Obras Completas), onde estão também textos produzidos por

Reyes durante a temporada brasileira, como “La fea”, “Pasión y muerte de Dona

Engraçadinha”, “Fábula de la muchacha y la elefanta” y “La cicatriz”. Segundo José

Luis Martínez, que assina a introdução, as “ficções” presentes nesse volume eram uma

maneira de escape, o descanso dominical de Reyes.

Sobre os textos produzidos no Brasil, ele destaca o mérito de “La fea”, que,

segundo ele, assim como os outros “compartilha o entusiasmo erótico que, ao que

parece, desfrutou Reyes em seus anos brasileiros – quando contava quarenta e poucos

anos”. Martínez explica a composição do livro, que reúne múltiplas formas: narrativas,

relatos, descrições, lembranças, experiências pessoais, fantasias, “bromas literárias”,

sátiras, farsas em versos, anedotas e anotações sobre a natureza, e, usando a expressão

“relato-análise”, chama a atenção para o caráter analítico a partir do qual os textos são

construídos: “Ele enriquece a densidade psicológica de seus personagens, mas o faz por

meio de explicações e não pela ação ou pela representação” (Reyes, 1996, p. 10).

Se pensarmos nos textos ficcionais de Cecília, em suas crônicas, nos pequenos

contos e relatos, e ainda em sua poesia, vemos que são também produções de múltiplas

formas, boa parte delas dificilmente enquadráveis em rótulos de algum tipo de gênero.

Percebemos então a afinidade com o mestre Reyes: as múltiplas formas da escrita, ao

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135

que se soma uma outra coincidência, que marca a obra ficcional de ambos: o caráter

reflexivo e analítico dos relatos, onde as personagens são construídas muito mais pela

análise do que por situações de ação dramática, nesses casos, o conflito é íntimo, da

ordem do autobiográfico.

As duas marcas que se destacam nas obras ficcionais de Cecília e de Reyes: a

filiação entre poético e filosófico e a mistura de gênero, nos leva a pensar o quanto eles,

de algum modo, estavam próximos do pensamento da Teoria Romântica da Poesia

Alemã, e da “prosa poética” de Schlegel e Novalis, no que se considera uma concepção

moderna de literatura (Seligmann-Silva, 2004).

Esta verve de reflexão está presente em “El testimonio de Juan Pena”, em que as

memórias da juventude do narrador se desenrolam paralelamente a um movimento de

reflexão, que surge, em alguns momentos, como uma autoanálise do autor. Este

narrador-autor se constrói justo na medida em que se questiona: “– Quem eu sou? filho

privilegiado da cidade, agasalhado entre leituras e amigos refinados. Para quem no

entanto a vida não tem mais estímulos que os paradoxos e os amores.”

Ao refletir sobre a poesia de Novalis, Vera Lins, apresenta a problemática e a

condição auto reflexiva do sujeito na produção dos primeiros românticos alemães, “o

sujeito é para eles pura atividade de imaginação” (Lins, 2004).

O questionamento marca toda a narrativa de “El testimonio...” e a condição auto

reflexiva do sujeito se torna então instrumento para o questionamento da própria

linguagem. E, neste caso, um dos pontos mais interessantes do relato é a situação de

dúvida que o autor constrói em relação à sinceridade de seu personagem Juan Peña:

Todos, en cierta medida, hacemos la farsa, la traducción, la falsificación de

lo que llevamos dentro, al tratar de comunicarlo los procedimientos pueden

variar, eso es todo.

Para que se leve adiante a encenação, vários podem ser os procedimentos. E para

dar conta dessa teatralidade, há que se tomar a palavra. A escrita?

Las cosas habían llegado a tal termo de teatralidad, que no pude menos de

“tomar la palabra”.

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136

José Luis Martínez, autor do texto de apresentação do volume XXIII das obras

completas de Reyes, onde está publicada a coletânea de contos-relatos Vida y Ficción

(1910-1959), nos conta que Verdad y Mentira (Madrid, 1950) foi a primeira tentativa de

reunir a obra narrativa de Reyes, e que “El testimonio...” foi publicado pela primeira vez

em 1931, como um livreto, juntamente com três desenhos de Manuel Rodríguez

Lozano. A edição foi feita no Rio de Janeiro, pela Villas Boas Edições.

“El testimonio de Juan Pena” (1931).Catálogo da

Expo Manuel Rodrígues Lozano, pensamiento y

pintura, Munal, 2011.

Lozano (1894-1971) foi um dos mais importantes pintores mexicanos do século

XX. Quando estive fazendo a pesquisa na Cidade do México, o Museu Nacional de

Belas Artes (Munal) realizou uma bela mostra do pintor46

, a qual estive presente.

46

“Manuel Rodríguez Lozano. Pensamento e Pintura (1922-1958)”, Museo Nacional de Arte, Munal,

julho de 2011.

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137

Manuel Rodríguez Lozano, que também escrevia, participou ativamente da vida cultural

mexicana. Em uma das salas da exposição, “Red social”, a curadoria apresentou a rede

social de amigos, discípulos, amantes, mecenas e colegas que estiveram presentes na

vida do pintor de 1913 a 1961. Com fotografias e pequenos textos biográficos, e linhas

que indicavam as conexões entre cada um dos personagens, o visitante podia visualizar

o quanto eram imbricadas as relações afetivas e profissionais, e tomar conhecimento dos

fortes laços que uniram escritores e pintores, como os amigos Reyes e Lozano. Um dos

efeitos dessa amizade foi a parceria no trabalho, que vemos, por exemplo, na publicação

da primeira edição de “El testemonio”.

Outro elo que uniu os dois amigos foi a presença marcante de Antonieta Rivas

Mercado (1900-1931)47

, que aparece na “rede social” de Lozano como um de seus

amores. Mecenas do grupo “Os Contemporâneos”, Antonieta viveu a luta e as

transformações da Revolução mexicana. Como artista, sua produção mais significativa

foram As cartas de amor a Manuel Rodríguez Lozano e alguns de seus escritos foram

publicados em Ulises criollo y El Preconsulado, de José Vasconcelos.

Personagem emblemático da vida cultural mexicana durante as três primeiras

décadas do século XX, Antonieta é dona de uma biografia apaixonante e com fim

trágico (se suicidou com um tiro na catedral de Notre Dame).

No dia 4 de março, do Brasil, Reyes escreve em seu Diário:

Rio, [miércoles] 4 marzo de 1931.

Un telegrama de la United Press del 11 de febrero, publicado en México, da

cuenta de que se suicidó en Notre Dame de París, ante la imagen de Cristo,

con un disparo de revólver, María Antonieta Rivas Mercado. Me ha afligido

profundamente, y repaso toda la vida de la pobre amiga (2011, p. 29).

47

Cf.: Luna, s/d.

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138

Alfonso Reyes, Antonieta Rivas Mercado e Manuel Rodriguez Lozano

Fotos de Francisco Kochen

Essa rede de artistas que movimentou o cenário cultural Mexicano nas primeiras

décadas do século XX é uma mostra de como vida e arte estão imbricadas.

No Brasil, podemos pensar nos grupos que se formaram nos anos 1920 e 1930,

como os Modernistas, a turma de Oswald e Mário de Andrade, e os que receberam um

lugar menos central na história de nossa cultura, por não terem sido considerados

vanguarda pela crítica de então, como foi o caso dos intelectuais da Revista Festa (cf.:

Gomes, 2011), no Rio de Janeiro, ao qual Cecília esteve vinculada e à corrente

popularmente conhecida como “espiritualistas”.

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139

“El testimonio...” começa com uma pequena nota explicativa de Reyes: “Quis

recolher neste relato o sabor de uma experiência que interessa aos do meu tempo, antes

que minhas lembranças se confundam”. Já temos assim o tipo de terreno no qual irá se

construir o texto: um relato baseado em experiência e lembranças que o autor pensa ser

de interesse “aos homens de seu tempo”. Compartilhando assim com Drummond o

desejo de, ainda que se referindo ao passado, fazer do tempo presente a sua matéria,

como mostra o verso que encerra o “mãos dadas”, citado anteriormente: “O tempo é a

minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.”

Em seu “Comentário”, publicado no Diário de Notícias, Cecília descreve assim

sua leitura de “El testemonio...”:

“El testimonio de Juan Pena”, de Alfonso Reyes, o ilustre embaixador do

México, que junta às suas qualidades de erudito os seus dons de artista

finíssimo, é um livro vivido no tempo em que o seu autor lia Spinoza, com

mais 2 companheiros, “ahi por mil novecentos e... tantos”, diz ele. Uma

recordação da juventude. Da primeira juventude. Porque a vida de um artista

é juventude permanente. Recordação em que há uma índia tímida, uma

questão de terras, o autor como juiz e Juan Pena como testemunha, com a

nota inesquecível da sua roupa azul, trêmula de luz.

Ao escrever sobre “El testimonio...”, em sua Página de Educação, Cecília

aproveita para fazer uma explanação sobre o que era para ela a questão do artista

moderno. Contrariando todas as regras atuais do jornalismo, cuja orientação é

apresentar logo no primeiro parágrafo o assunto do texto, no que se chama de “lead”,

Cecília passa quatro longos parágrafos discorrendo sobre a tendência moderna da

literatura, antes de se deter no texto de Reyes.

Entre outros elementos que ela atribui à obra literária na modernidade está o que

chama de uma “tendência moderna de fazer o pensamento caminhar sobre si mesmo”. E

o que lemos é algo muito próximo ao pensamento de um dos poetas de quem Cecília foi

tradutora48

e admiradora, Rainer Maria Rilke, a quem ela faz uma referência não

48

Rilke, 1983.

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140

explícita ao citar elementos do poema “Canção de amor”49

. Quando finalmente se volta

para o texto de Reyes, diz: “Entre a testemunha e o juiz palpita o mistério da vida,

exatamente como naquele verso lindo em que o poeta pensava no mundo imprevisto que

paira entre o violino e o arco”.

Entre os aspectos citados por Cecília como parte de uma moderna concepção de

literatura, na qual segundo ela Alfonso Reyes se insere, estão: o desejo do artista de

viver a vida com transcendência, o fazer das recordações da infância e da juventude

motivos constantes na realização da obra literária, e, como comentamos anteriormente,

o caráter reflexivo e de autoquestionamento como marcas da literatura na modernidade.

Vejamos nas palavras da poeta:

A tendência moderna de fazer o pensamento caminhar sobre si mesmo,

acordando cada emoção desse caminho, é uma nova forma criadora, bela e

difícil (...) É verdade que, às vezes, só a sutil passagem por esses distantes e

misteriosos sítios do nosso mundo íntimo constitua uma excursão

maravilhosa, pela riqueza do ambiente e a delicadeza de cada detalhe. Mas,

além desse gosto da narração introspectiva, por ela mesma, os escritores

mais artistas de hoje têm uma curiosidade psicológica e uma intuição quase

metafísica iluminando os domínios que atravessam na sua aventura

espiritual, tão difícil de relatar, depois, e tão difícil de ser entendida pelos

temperamentos de outra estirpe.

Os artistas que, como Cecília e Reyes, tinham o gosto por uma narrativa

introspectiva e defendiam a construção de uma vida e de uma obra como uma aventura

do espírito, foram durante muito tempo rotulados, como no caso-ícone de Mallarmé, de

escritores herméticos. Cecília se refere a esses escritores de “outra estirpe”, como os que

“Escrevem como em outra língua (...) por uma fatalidade, como a de falar e a de ouvir.

(...) Há quem os ache desencontrados, incompletos, estranhos, loucos”.

49

“Pois o que nos toca, a ti e a mim,/ isso nos une, como um arco de violino/ que de duas cordas solta

uma só nota./ A que instrumento estamos atados?/ E que violinista nos tem em suas mãos?”

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141

Esse mergulho profundo numa tentativa radical de exploração da linguagem, ao

ponto de “escrever como em outra língua”, não é marca presente da obra de Reyes, o

que nos faz pensar num exagero provocado pela admiração de Cecília ao seu mestre, ou

mesmo entender como uma opinião mais abrangente do que seria para ela um escritor

moderno, já que neste início do texto ainda não havia se detido propriamente em

comentar o relato de Alfonso Reyes: “Os escritores modernos pesam suas lembranças,

graduam-nas, interpretam-nas, vivem dentro dos descobrimentos que realizam na sua

silenciosa vida interior, trocando a mentira da realidade pela autenticidade do sonho”.

Poderíamos ainda associar essa “aventura do espírito”, no caso específico de

Reyes em “El testimonio...”, ao manejo do autor com suas lembranças, mescla de

sonho, memória e devaneio, seu “cinematógrafo interior”: “por el campo de mi

cinematógrafo interior, veo pasar a una pobre india descalza, trotando por un camino

polvoso, con ese trotecito paciente que es un lugar común de la sociología mexicana,

liadas las piernas en el refajo de colorines, y el fardo infantil a la espalda, de donde

sobresale una cabecita redonda”.

Em “Poesia e pensamento abstrato”, célebre ensaio de Paul Valéry, apresentado

em 1939 em uma conferência na Universidade de Oxford, lemos a relação que o poeta e

crítico apresenta entre o universo poético e o universo dos sonhos, em que faz questão

de ressaltar sua distinção ao que chama de “confusão que se formou a partir do

Romantismo, entre as noções de sonho e de poesia” (Valéry, 1991). Segundo ele, “nem

o sonho, nem o devaneio são necessariamente poéticos. (...) Aprendemos com os sonhos

que nossa consciência pode ser invadida pela produção de uma existência (...) que

podemos representar como símbolos ou alegorias”. Deste modo, a relação entre o

universo dos sonhos e o poético consiste em que aprendemos com os sonhos a

possibilidade que temos como seres humanos de produzir outras existências. A ficção é

então vista como parte constituinte da vida. Assim entendemos melhor quando Cecília

afirma que “a vida é para os artistas de hoje, uma inspiração suprema”.

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142

Quando falamos de autobiografia, estamos falando sim de construção ficcional,

essas lembranças, esses “descobrimentos introspectivos” são trabalhados a partir da

problemática do sujeito, desse sujeito que é “pura atividade de imaginação”, lembrando

as palavras de Vera Lins (2004).

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143

III. A modernidade da estética de Cecília Meireles:

interculturalidades e convergências

“(...) Converta-me a minha última magia

Numa estátua de mim em corpo vivo!

Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,

Anônima presença que se beija

Carne do meu abstrato amor cativo,

Seja a morte de mim em que revivo;

E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!”

(“O último sortilégio”, Fernando Pessoa. In.: Poetas Novos de Portugal)

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144

1. Mais moderna que modernista

A antologia Poetas Novos de Portugal, organizada por Cecília Meireles em 1944,

foi uma das primeiras referências à obra do poeta Fernando Pessoa no Brasil50

.

Conforme explica no prefácio, o que motivou Cecília a realizar a antologia foi seu

interesse em oferecer um resumo da obra dos poetas portugueses que a seu ver

contribuíram de modo inovador para a poesia em língua portuguesa naqueles anos 1940,

e cujas obras, segundo ela, tinham pouca difusão no Brasil; ou porque seus livros não

chegavam aqui, ou porque suas produções circulavam apenas em revistas.

Ela justifica assim os critérios de sua edição:

Não se encontram no índice desta antologia alguns grandes nomes da poesia

portuguesa contemporânea. Simplesmente porque esta não é, na verdade,

uma antologia de ‘poetas contemporâneos’, mas apenas de ‘poetas

novos’(Meireles, 1944, p.19-20).

Segundo a argumentação da poeta, para quem “novo” significava a “infatigável

inquietação de pensar os sentimentos, o mundo, o homem”, a expressão “Poetas novos”

é portanto uma “definição de época e estilo”, como “poetas românticos” ou “poetas

clássicos”. O que a motivou então foi seu interesse em reunir um elenco de poetas que

50

Cf.: Camargo, Luís. “O ano em que Álvaro de Campos foi publicado no Brasil”. Segundo o

pesquisador, os primeiros versos de Pessoa (Álvaro de Campos, trechos de ‘Ode triunfal’) teriam sido

publicados no Brasil por Cecília Meireles, em sua tese O espírito Vitorioso, sem constar no entanto uma

referência bibliográfica ao poeta português. Disponível em:

www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via01/via01_15.pdf. Para Edson Nery (Três poetas

brasileiros apaixonados por Pessoa), as referências de Cecília a Pessoa, em prefácio de Poetas novos de

Portugal está entre os primeiros textos críticos sobre Pessoa no Brasil.

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145

tivessem em comum o “poder especial de crítica e autocrítica”, que fossem “tão bons

poetas, quanto críticos literários”.

O que há nesses poetas, segundo Cecília, é uma valorização preponderante do

conteúdo expressivo: “Nos poetas novos não é o amor à beleza formal que vemos

prevalecer: ou antes, há um outro critério para julgar a beleza da forma – seu poder de

expressão.”

Os poemas escolhidos por Cecília têm em comum esse conteúdo expressivo,

voltado para a construção de uma poesia reflexiva que aborda questões afins à própria

poética ceciliana: o universo dos sonhos, o marítimo, o mistério de existir. Enfim, uma

poesia de pensamento, que valoriza a qualidade humana da imaginação e faz da morte

um tema em que está presente a renovação da vida. Esses temas são parte dos poemas

de Fernando Pessoa que integram a antologia, como o que aqui destacamos na epígrafe,

em que o verso “Seja a morte de mim em que revivo” traz justamente a ideia de morte

como renovação.

Há outro verso de Pessoa, já mencionado anteriormente, do poema “Ela canta

pobre ceifeira”, não incluído na antologia Poetas Novos de Portugal, mas citado por

Cecília em seu prefácio, que poderíamos considerar como ícone dessa poesia reflexiva:

“O que em mim sente está pensando”. Verso-síntese dessa vertente poética, tão próxima

ao pensamento dos primeiros românticos alemães e que remete ao universo dos sonhos,

do inconsciente, a uma estética da morte; enfim, traduz a busca humana em direção ao

insondável mistério do existir.

A maioria dos poemas de Pessoa escolhidos por Cecília tiveram suas primeiras

edições em revistas, como Presença e Athena. Cecília destacou a produção dos poetas

da geração de Orpheu e ressaltou em seu texto de abertura a importância de Pessoa para

a poesia em língua portuguesa: “Fernando Pessoa é o caso mais extraordinário das letras

portuguesas”. A poeta, que vê em Mensagem “senão um volumezinho (...) que menos

caracteriza o autor”, argumenta que é Pessoa quem estabelece a ligação entre duas das

mais importantes revistas de literatura das primeiras décadas do século XX para a

poesia portuguesa, “o movimento de Orpheu, que data de 1915, e o de Presença que

começa em 1927”.

Entre os poemas de Fernando Pessoa escolhidos por Cecília, está “Canção”,

(Presença, 1936, musicado por F. Lopes Graça, originalmente datado de 1934). Título e

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tema tão recorrentes na poética de Cecília, apresenta a temática das ruínas, o poeta

como visionário, o ser que vê “tudo estranho”, o que revela uma nova perspectiva da

língua e põe em relevo a dimensão do sonho e da ilusão:

Põe-me as mãos nos ombros,

Beija-me na fronte,

Minha vida é escombros

A minha alma insonte.

Eu não sei porque

Meu dês d’onde venho,

Sou o ser que vê

E vê tudo estranho.

Põe a tua mão sobre o meu cabelo,

Tudo é ilusão,

sonhar é sabê-lo.

O poeta vê, mas “vê tudo estranho”, seu olhar não tem por meta a descrição da

realidade, ele propõe o transporte do leitor para o universo dos sonhos, da invenção: é a

afirmação do lugar da linguagem como pensamento, mas um tipo de pensamento

peculiar, criado desde a perspectiva da emoção, do sentimento.

Escrevendo sobre a poesia do amigo Mário Faustino, Benedito Nunes nos fala da

“poesia como linguagem menos discursiva possível, que apresenta em vez de

representar o objeto”. Desse modo, a poesia constitui “uma forma da experiência e do

conhecimento da realidade” (“A poesia do meu amigo Mario” In.: Faustino, 2002, p.

50).

Mário Faustino foi contemporâneo de Cecília e os diálogos com sua poética

podem ser vistos em poemas homônimos aos dela, como “1º motivo da rosa” e “2º

motivo da rosa”, publicados em O homem e sua hora e outros poemas. Uma das

contribuições mais significativas de Faustino à poesia no Brasil foi seu trabalho a frente

do Suplemento dominical do JB nos anos 50, onde mantinha a seção “poetas novos” em

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147

que publicava versos de poetas que estavam começando juntamente com uma resenha

crítica. Faustino escreveu, entre outros, sobre Whitman, Poe e Baudelaire. Do ponto de

vista de Cecília, poderíamos considerá-lo como um “poeta novo”, já que sempre se

mostrou interessado em pensar o fazer poético.

A argumentação de Cecília em defesa de sua seleção, que exclui o ícone do

Modernismo português, Eugênio de Castro, “cujas proporções na literatura de Portugal

se fizeram revolucionárias noutro sentido (...) mais quanto ao valor plástico, que a

substância e a intenção” (Meireles, 1944, p. 20), nos leva à própria linguagem poética

de Cecília, em sua eleição por uma poesia reflexiva, voltada para pensar “os

sentimentos, o mundo e a humanidade”. O que temos, assim, a partir da distinção que

Cecília faz entre “novos” e “contemporâneos”, é a filiação da poeta a uma concepção de

modernidade como potência de experimentação da linguagem para pensar o humano,

que ultrapassa a tendência conservadora do que se convencionou pensar como moderno.

Mesmo não tendo desenvolvido uma reflexão teórica paralela a sua obra poética,

sobretudo se pensarmos em poetas como Baudelaire, Paul Valéry, ou, no cenário

brasileiro, em João Cabral de Melo Neto ou Haroldo e Augusto de Campos, o que

percebemos no caso de Cecília é que a investida na experimentação da linguagem e sua

reflexão crítica estão presentes em sua própria linguagem poética, em seus diálogos com

a tradição oral e em seus escritos epistolares, que algumas vezes serviram de fonte de

reflexão para suas criações poéticas, conforme vimos no caso de o Romanceiro da

Inconfidência, no corpus de cartas à amiga Isabel do Prado.

Para Cecília, o novo está, portanto aquém e além da novidade, o trabalho com a

linguagem estaria assim ligado à potência de reflexão que ele provoca no leitor. Uma

lírica que dialoga com a Modernidade baudelariana em sua relação com a antiguidade51

,

com o simbolismo e com o modernismo hispano-americano, que tem no poeta Ruben

Darío um de seus principais representantes. Azul, obra precursora do modernismo na

América Latina apresenta afinidades com a poesia de Cecília, por exemplo, por seu

diálogo com a tradição e com o Oriente. O livro é constituído por poemas em prosa,

contos e poemas metrificados. As afinidades com a poética de Cecília podem ser lidas

51

“Entre todas as relações que a modernidade possa ter, a relação com a antiguidade é a melhor.

Baudelaire encontra esta ideia apresentada em Victor Hugo.” (Cf.: Benjamin, 2000.)

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148

nas elegias, na presença de temas recorrentes na obra da poeta, como o mar, a noite, a

rosa, e na interculturalidade. Darío escreve contos sobre diferentes geografias como

Paris, Grécia, China, Itália e Rússia. Há ainda o forte vínculo com a tradição, presente

em contos como “El velo de la reina Mab” e nos sonetos em homenagens a escritores

como Leconte de Lisle, Walt Whitman e ao poeta mexicano Salvado Diaz Miron (1853-

1928):

Tu idea tiene cráteres y vierte lavas;

del Arte recorriendo montes y llanos,

van tus rudas estrofas jamás esclavas,

como un tropel de búfalos americanos

(Darío, “Salvado Diaz Miron”)

É nessa convergência, nesse lugar excêntrico, e inapreensível à classificação exata

dentro da historiografia da literatura brasileira, que encontramos a poética de Cecília

Meireles.

2. Cecília e o simbolismo

Andrade Muricy, que teria sido o primeiro crítico brasileiro a reconhecer a

importância da poesia de Cecília Meireles, em A nova literatura brasileira, de 1936

(cf.: Cristovão, 1978, p. 23), em sintonia com a crítica portuguesa, filiou-a ao

simbolismo. Incluiu-a em Panorama do simbolismo brasileiro (1952), uma das raras

obras dedicadas à revisão desse movimento no Brasil. Os poemas escolhidos por

Muricy são principalmente de Nunca mais... e Poemas dos poemas, Vaga Música e

Viagem. Em comum, apresentam o aspecto noturno, sombrio, o tema da morte e o da

solidão irremediável, como lemos em “Epigrama”, de Vaga Música:

A serviço da Vida fui,

a serviço da Vida vim;

só meu sofrimento me instrui,

quando me recordo de mim.

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149

(Mas toda mágoa se dilui:

permanece a Vida sem fim.)

“Beatitude”, de Nunca mais... e Poemas dos poemas, outro que consta da

antologia de Muricy, expressa um estado de permanente satisfação, um contentamento

como aqueles produzidos pela prática da meditação, um exercício de sabedoria. Esse

poema se conecta ao estudo de Jacques Rancière sobre a poesia de Mallarmé, La

politique de la Sirene, em que ele afirma “A poesia é meditação, dúvida que se

transforma em hipérbole” (Rancière, 1996, p. 47). Remete à poesia como lugar de

reflexão, de não resposta, mas de onde reverberam as perguntas. O poema apresenta o

universo noturno, sombrio. Fala do transitório, do etéreo, de um grande desalento:

Corta-me o espírito de chagas!

Põe-me aflições em toda a vida:

Não me ouvirás queixas nem pragas...

Eu já nasci desiludida,

De alma votada ao sofrimento

E com renúncias de suicida...

Sobre o meu grande desalento,

Tudo, mas tudo, passa breve,

Breve, alto e longe como o vento...

Tudo, mas tudo, passa leve,

Numa sombra muito fugace,

– Sombra de neve sobre neve... –

Não deixando na minha face

Nem mais surpresas nem mais sustos:

– É como, até, se não passasse...

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150

Todos os fins são bons e justos...

Alma desfeita, corpo exausto,

Olho as coisas de olhos augustos...

Dou-lhes nimbos irreais de fausto,

Numa grande benevolência

De quem nasceu para o holocausto!

Empresto ao mundo outra aparência

E às palavras outra pronúncia,

Na suprema benevolência

De quem nasceu para a Renúncia!...

Por uma leitura intertextual, o sentido de resignação, contido em versos como

“Eu já nasci desiludida” e “Todos os fins são bons e justos”, se liga a um dos poemas

mais célebres de Cecília: “Motivo”, de Viagem (“Eu canto porque o instante existe,/ e a

minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ Sou poeta.”)

Essa resignação, como uma submissão à vontade do destino, ou como a

consciência de uma força cósmica, de aceitação do mistério da vida, Cecília também

expressa nas cartas. Na correspondência com Isabel do Prado, em vários momentos, ela

fala de sua filosofia de vida, de que “tudo está certo”. Como lemos na conclusão da

poeta na carta de 15 de agosto de 1946, ao expressar seu espanto e sua melancolia

diante dos efeitos da Segunda Guerra:

Esse seu estupor não é apenas seu: é de todos nós. Mesmo quem esteve

longe ficou assim meio idiotizado, com êsse espetáculo do mundo – como

não havia de ficar V., que esteve tão dentro, de todas essas pavorosas

coisas? Mas isso passará. Decerto haverá uma recordação em todos nós,

envelhecendo-nos e entristecendo-nos. Mas tudo, na vida, não deixa dêsses

resíduos? Espero que Londres restituirá lembranças mais claras e felizes.

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151

Quando discutiremos outra vez as razões da vida e os caminhos do

pensamento? – E que pena me dá pensar na Nídia, com aquela sua faísca

mórbida, nas horas amigas de antigamente! Enfim, Isabel, é mesmo como

eu lhe dizia – não vê? – tudo está certo. Tão certo, tão terrivelmente certo,

que até a incerteza é exata (carta 5, de 15 de agosto de 1946).

O “tudo está certo” surge novamente na correspondência de quatro de março de

1947. Um dos assuntos desta longa carta é um novo comentário a respeito do caráter

duvidoso de “Paulo”. Possivelmente Cecília está se referindo a Paulo Freire a quem

compara com o também educador Anísio Teixeira. Em carta anterior, ela havia

desaconselhado Isabel a trabalhar com Paulo, pois apesar de ser “tão simpático como

pessoa”, se metia em situações políticas complicadas, “que poderiam resultar em sérios

contratempos” (carta 6, de 5 de novembro de 1946).

O Anísio é outra coisa, naturalmente. Há muitos anos que o não vejo, e não

sei como andará, mas parece-me uma criatura mais positiva, mais clara,

mais segura. Pode ser, porém, que eu esteja enganada. E não é que eu goste

tanto das pessoas claras, seguras e positivas. Mas dentro de uma situação,

creio que a pessoa deve andar em correspondência. Se o Paulo fosse apenas

um poeta (apenas!) isto é, um ser para quem a justa pátria é o sonho, a

adivinhação, um homem que gosta de tomar atitudes patrióticas,

humanitárias, filantrópicas, etc., corre o perigo de, quando se vai procurar

pela salvação anunciada, não se encontrar o salvador... Mas, minha cara

Isabel, eu continuo a crer que tudo está certo. CERTÍSSIMO. Andamos,

desandamos, e acabamos direitinho onde temos de acabar (carta 8, de 4 de

março de 1947).

Este trecho apresenta novamente a perspectiva missionária, humanística, de

Cecília em relação ao ofício do escritor, sobretudo do poeta. O comentário é uma crítica

a um patriotismo exacerbado, faz a distinção entre o salvador e o poeta, para quem justa

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152

pátria é o sonho. É portanto a defesa de uma via menos pragmática, mais sensitiva,

onírica, e fatalista.

Fazendo uma leitura completa das cartas enviadas à Isabel, nos inteiramos de

onde parte essa concepção fatalista, o “tudo está certo” de Cecília:

Isabel: V. bem vê que eu só posso pensar como o Candide que tudo está

certo: absolutamente certo (carta 28, de 16 de fevereiro de 1948).

Trata-se, sem dúvida, da leitura que ela fez de Cândido, ou O otimismo (1759),

de Voltaire. A informação torna a ideia de Cecília mais irônica e menos fatalista do que

até então parecia.

Cândido é uma das obras mais conhecidas do filósofo iluminista Voltaire, e é

uma sátira às ideias otimistas de Leibniz. Neste romance encontramos a famosa frase de

que “devemos cultivar nosso jardim”. Após ouvir sobre o perigo das grandezas, que

todos os acontecimentos estavam encadeados no melhor dos mundos possíveis, e que

todo sofrimento pelo qual passara transformara-se em benefícios, Cândido responde:

“Tudo isso está bem dito... mas devemos cultivar nosso jardim”. O livro de Voltaire é

também uma crítica à crença em Deus e a defesa por uma fé no Universo. Essa defesa,

pela fé no fluxo da vida, no Cosmos, também encontramos na poética de Cecília.

Mircea Eliade escreveu sobre a imagem de si mesmo formada pelo homem das

sociedades arcaicas e sobre o lugar que ele assume no Cosmos em contraponto ao

homem das sociedades modernas. O primeiro sentia-se indissoluvelmente vinculado

com o Cosmo e com os ritmos cósmicos, enquanto o segundo insiste em apenas

vincular-se à História. Ele explica, contudo, que a História a que os homens das

civilizações tradicionais se vinculavam era uma história sagrada, preservada e

transmitida pelos mitos (Eliade, 1992, p. 8).

Essa vinculação a uma divindade que não é necessariamente Deus nos serve de

um bom ponto de partida para refletirmos sobre a questão da religiosidade na poesia de

Cecília Meireles. Muitas vezes vinculada a uma dita corrente espiritualista, ou católica,

sua poesia parece estar mais próxima dessa meditação, de que falou Rancière, e dessa

ligação ao ritmo cósmico, conforme observou Mircea Eliade em relação às sociedades

arcaicas.

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153

Rancière, também em seu estudo sobre a poesia de Mallarmé, fala sobre uma

poética do mistério. Para ele, “a poesia é a expressão da linguagem humana que

sintetiza o ritmo essencial do sentido misterioso dos aspectos da existência” (Rancière,

1996, p.28). Ele identifica na poesia de Mallarmé duas dimensões, “séjour” et

“existence”, que poderíamos traduzir por “passagem” e “existência”, e pensarmos nas

duas instâncias as quais a poética de Cecília se refere: instante e eternidade.

O mistério que, contudo, “não tem nada de misterioso”, seria, segundo Rancière,

justamente o ato de reordenamento dessas duas dimensões (“séjour” e “existence”), uma

apresentação da simultaneidade delas. Assim elabora o filósofo francês sua reflexão

sobre uma poética do mistério:

Esse mistério não tem nada de misterioso. Ele é precisamente o ato de

reordenamento. A ideia assimilada dos aspectos dos elementos dispersos,

para produzir um ponto de vista de um outro mundo – presente e ausente no

espetáculo do ordinário – as virtualidades de correspondência entre os

gestos do homem e as formas de sua vivência (séjour) (idem, p. 31).52

A apresentação dessa simultaneidade – presença-ausência; instante-eternidade;

“séjour”-“existance” –, na poesia, dá autenticidade a nossa vida, a nossa estadia, a nossa

passagem por este mundo. A palavra seria assim o elo de conexão, como concluiu

Cecília na seguinte estrofe de “Há um nome que nos estremece”:

(...) Há um nome levado no vento.

Palavra. Pequeno rumor

entre a eternidade e o momento (Canções, 1956).

Nesse sentido poderíamos pensar a “espiritualidade” na poesia de Cecília, onde

encontramos a consciência da religiosidade como uma ligação ao Cosmos, ao fluxo da

52

Ce mystère n’a rien de mystérieux. Il est précisément l’acte de ce réordonnancèrent. L’idée assimilé

des aspects – des éléments épars – pour en faire des points de vue d’un monde autre – présent-absent dans

le spectacle ordinaire – des virtualités de correspondance entre les gestes de l’homme et les formes de son

séjour.

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vida, em que a história é parte do sagrado, em consonância com a reflexão que elaborou

Mircea Eliade sobre as antigas sociedades.

A preocupação em passar às gerações futuras a história sagrada, pela ficção

(poesia), está refletida na escolha de Cecília por poemas rimados, que dialogam com a

tradição da literatura oral, de fácil memorização, e na escrita das cartas como

documento do instante, dessa estadia, da vida que é vivência, mas que de alguma forma

está comprometida em perdurar. Esse compromisso está na escrita das cartas,

“documentos literários”, e na transmissão da experiência dessa simultaneidade cuja

potência se estabelece no realce que a poeta dá a produção da fantasia, onde

encontramos a ficção como possibilidade de conhecimento, como mostram os versos:

Olho as coisas de olhos augustos...

Dou-lhes nimbos irreais de fausto,

Numa grande benevolência

E encontramos, na estrofe final de “Beatitude”, a ideia de uma modernidade

poética em sua tarefa de “reconfiguração do mundo pelas palavras”. Uma tentativa de

dar ao mundo “outra aparência”, e às palavras “outra pronúncia”.

Empresto ao mundo outra aparência

E às palavras outra pronúncia,

Na suprema benevolência

De quem nasceu para a Renúncia!...

(“Beatitude”, Nunca mais... e Poemas dos poemas)

O lugar excêntrico da poética de Cecília Meireles, em relação aos seus

contemporâneos modernistas, nos faz pensar ainda nas ligações entre o simbolismo e a

poesia moderna. Otto Maria Carpeaux chamou a atenção para a filiação da poesia

moderna ao simbolismo: “O simbolismo é a base de toda a poesia moderna, inclusive

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daquela que depois o hostilizou. O simbolismo não foi uma mera reação contra o

naturalismo” (Carpeaux, 1964, p. 2575).

Carpeaux está entre os que defendem que o movimento da poesia simbolista

implicava uma posição política contra o pragmatismo, conforme apresentou também

Vera Lins no estudo sobre a ensaística de Gonzaga Duque e Nestor Vitor, “Os

simbolistas: virando o século”.

Vera Lins diz que na autonomia da arte que os simbolistas defendiam estava sua

política “ligada à separação radical do mundo da mercadoria”, e argumenta que “o

simbolismo é uma corrente melancólica, ‘spleenética’, baudelariana, que aponta a perda

que a modernidade provoca” (Lins, 2007). A autora chama a atenção também para a

confusão que há na historiografia da literatura brasileira entre parnasianismo e

simbolismo, em análises que levam em conta apenas a coexistência temporal, o que,

segundo ela, “implica uma desconsideração dos leitores de Mallarmé” (idem).

O simbolismo foi não uma continuidade, mas uma reação ao parnasianismo. E a

poesia de Mallarmé é referência desse movimento literário, juntamente com o artigo-

manifesto de Jean Moréas publicado no Suplemente Literário de Le Fígaro, em 18

setembro de 1886, um dos principais marcos do início do movimento simbolista.

No verbete “Simbolismo”, do Diccionario Literario de obras y sus personajes

de todos los tiempos y paises, Giuseppe Gabetti apresenta o surgimento do Simbolismo

e suas relações com o Parnasianismo, e com a poesia de Mallarmé, como lemos a

seguir:

O simbolismo surgiu na França entre 1870 e 1880. Poderíamos fixar sua

data de nascimento em 1876, ano da aparição do terceiro e último Parnaso e

de L’après-midi d’un faune de Mallarmé. Assim a publicação do último

documento oficial do Parnasianismo viria a coincidir com a primeira

afirmação decisiva do simbolismo, que principalmente reagia contra aquele

movimento (Gabetti, 1959, p. 500).

Além de ser uma reação contra o parnasianismo e o naturalismo na Literatura, e

contra o positivismo na Filosofia, o surgimento do simbolismo está ligado também ao

desenvolvimento do decadentismo:

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156

No movimento de separação do Parnasianismo, os primeiros a se associarem

ao grupo homogêneo foram, de fato, os decadentes, os quais já em 1882 se

reuniram em torno de revistas próprias, entre as quais “La nouvelle Rive

Gauche” que, transformada no ano seguinte em “Lutèce”, publicou pela

primeira vez versos de Rimbaud e os poetas malditos de Verlaine (...) os

futuros simbolistas formavam então parte do movimento sem diferenciarem-

se. Só em 1885, Jean Moréas no artigo de “XIX siécle” de 11 de agosto,

mudou os términos da questão afirmando que a nota essencial da nova

poesia havia que “buscar-se tanto no tom decadente como em seu caráter

simbólico” (Idem, p. 500).

O manifesto de Jean Moréas, o segundo artigo publicado em Le Fígaro, fora

encomendado pelos editores do Suplemento Literário com o intuito de que o autor

expusesse os principais fundamentos daquela “nova manifestação da arte”, fruto de uma

escola de poetas e prosadores que desapontaram dois anos antes e que se auto

intitulavam “decadentes”. Citando Baudelaire como precursor do Simbolismo, e

também Verlaine e Banville, Moréas se refere a Mallarmé como o que mais dominava o

sentido do mistério e do inefável.

Durante o surgimento do simbolismo, o poeta Stèphane Mallarmé organizou

concorridas reuniões em que participaram escritores como Albert Mockel e Stefan

George. Eram os célebres “martes” na Rue de Rome, dos quais falavam não como uma

simples reunião de poesia, mas como “um experimento intelectual perseguido com

profunda devoção religiosa, quase como um renovado convívio platônico” (Idem, p.

502).

Giuseppe Gabetti ressalta em seu verbete alguns aspectos da poética de

Mallarmé que podemos aproximar à poesia de Cecília Meireles, tais como: a busca pelo

inefável, e por um discurso lírico-musical.

Um exemplo dessa observação lemos nos poemas “Herodíades”, de Mallarmé e

“Herodíada”, de Cecília, que indicaria a leitura que a poeta brasileira pode ter feito da

obra de Mallarmé, ou tão somente a expressão de seu interesse por temas bíblicos, como

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mostram, por exemplo, muitos dos poemas de Espectros (“Sansão e Dalila”, “Dos

jardins suspensos”, “Judite”), e também o “Oratório de Santa Maria Egipcíaca” (1957).

Vejamos o poema “Herodíada”:

Manaém volta do ergástulo. Ofegante,

Traz de Iokanan, na rude mão pendente,

A pálida cabeça, gotejante

De sangue, que num prato reluzente

Estende a Salomé. Depois, perante

Vitélio, Antipas, Aulo, toda a gente

Passa o prato em silêncio. E, noite adiante,

Findo o festim, Fanuel, no atro silente,

À luz do facho trêmulo, que fuma,

Em grande e silenciosa dor absorto,

Vê, nos olhos proféticos de João,

De manso perpassarem, uma a uma,

As marginais paisagens do Mar Morto,

Por onde escorre, plácido, o Jordão.

A cena bíblica da dança de Salomé e da execução de João Batista, o profeta

Iokanan, é tema recorrente na arte. Original do Evangelho segundo São Marcos, a

história narra a vingança de Herodíades, mãe de Salomé, que usou os atrativos da filha

para conseguir que seu esposo, o rei Heródes, lhe entregasse a cabeça de João Batista,

que havia condenado seu casamento.

O poema de Cecília acontece desde a perspectiva de Manaém, irmão de

consideração de Heródes, e que na verdade foi o primeiro esposo de Herodíades. Trata-

se de um personagem secundário, e o recurso de trazer a perspectiva de um personagem

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que não é parte central na trama também foi usado por Mallarmé ao dar voz a Nourrice,

a pagem de Herodíades. Nesse caso, são muitas as vozes no poema, sugerindo uma

tênue fronteira entre poesia e dramaturgia. Nos dois poemas é a figura de Herodíades

que está em foco.

Marcos Siscar, ao escrever sobre “Herodíades”, de Mallarmé, analisa a presença

das múltiplas vozes como uma tendência inicial para a destinação teatral da obra e como

efeito do desejo do poeta de potencializar o “jogo de forças interno ao poema”. Segundo

a análise de Siscar, a personagem Herodíade é apresentada por Mallarmé como a

própria beleza, “ou seja, como figura que coloca em jogo a invenção daquilo que é

apresentado como uma ‘poética muito nova’, relacionada com a famosa ‘crise de

versos’, ou seja, com um certo modo de conceber a inserção da poesia na história”

(Siscar, 2010).

Já a cena do poema de Cecília inicia com Manaém saindo do ergástulo, na Roma

antiga, a prisão onde se confinavam os escravos. Nas mãos, levava a cabeça de João

Batista, “gotejante”.

A imagem da cabeça separada do corpo, ícone dessa cena bíblica, de forte tom

dramático, também é explorada por Mallarmé, que cria, no meio de seu longo poema,

um grupo de versos que consiste basicamente em um monólogo de São João Batista, no

momento em que sua cabeça é cortada pela foice, e alça voo:

Je sens comme aux vertèbres

S’éployer des ténèbres

Toutes dans un frisson

À l’unisson

Et ma tête surgie

Solitaire vigie

Dans les vols triomphaux

De cette faux

(Por um momento a treva

Das vértebras se eleva

Em uníssono passo

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Por todo o espaço

Para que esta cabeça

Solitária apareça

No vôo singular

Da foice no ar)

Augusto de Campos –“Herodias”; 1987 –

Há trechos do poema de Cecília que parecem dialogar com esse trecho, como o

verso “passa o prato em silêncio”, e a estrofe final com o jogo de imagens, Manaém (e o

leitor) veem nos olhos “proféticos” de João, a cabeça decapitada, o movimento manso

das marginais paisagens do Mar Morto, “Por onde escorre, plácido, o Jordão”. A

“solitária cabeça” de Mallarmé de algum modo se conecta a essas marginais paisagens

apresentadas no poema de Cecília.

Em sua análise, Marcos Siscar se detém justamente neste fragmento para

defender a ideia de que a decapitação convive com uma ideia possível de salvação, o

que seria, segundo o crítico, um aspecto de um certo tipo de inscrição da poesia na

Modernidade. Por esse aspecto poderíamos pensar em conexões entre as poéticas de

Cecília e Mallarmé. Siscar chama a atenção para a dimensão crítica presente na poesia

de Mallarmé e da relação dos poetas simbolistas com o real:

aquilo que a história da literatura chama de esteticismo está longe de ser um

discurso apartado do sentimento de realidade. De maneira mais ou menos

desenvolvida, mais ou menos consequente, mais ou menos programática e

raramente como mero sintoma, os autores chamados simbolistas e pós-

simbolistas elaboram de fato uma relação com o real que, diferentemente do

pathos romântico do exílio, poderia ser descrita em termos de uma

determinada ética. Ou seja, o chamado esteticismo, do alto de sua mal

afamada torre de marfim, pretende elaborar um lugar para a poesia que se

define – pelo menos, é o caso de Mallarmé – como avaliação e como

resposta ao contemporâneo. Se quiserem, como crítica (Siscar, 2010).

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A criação de dimensões sonoras e espaciais, cujo exemplo mais contundente é

Un coup de dés, poderia ser pensada como uma das marcas do posicionamento da

poesia simbolista em oposição às “amarras naturalistas”. Contudo, a investida numa

poesia intelectualizada fez com que a obra do poeta fosse muitas vezes taxada como

hermética e obscura.

Podemos refletir sobre a filiação de Cecília Meireles ao Simbolismo por alguns

aspectos presentes em sua poética, tais como: a busca pela transcendência do objeto, e a

oposição a uma poesia naturalista e mercadológica, e ainda o trabalho recorrente com

determinados símbolos, como o mar (p. ex.: Mar absoluto), a rosa (motivos da rosa), o

espelho, a noite, desenhos e retratos.

Um ponto interessante é como Cecília trabalha também os símbolos no conteúdo

dos poemas, como os muitos epigramas e epitáfios que compõem sua poética e que

podem ser lidos como símbolos da morte. Os poemas dos primeiros livros, Espectros e

Nunca mais e Poemas dos poemas são os que estão mais conectados à estética

simbolista.

Em 1929, Cecília escreveu sobre o Simbolismo, na tese apresentada ao concurso

da cadeira de Literatura da Escola Normal do Distrito Federal. O espírito vitorioso versa

sobre a liberdade individual na sociedade, e o simbolismo é apresentado como uma

linguagem de renovação.

vemos que se o tempo clássico se pode caracterizar pelo domínio da forma

objetiva; o romântico é a fase subjetiva, com derivações naturalistas,

científicas, ou parnasianas, quando se deteve, na solução do seu mistério

mediante o raciocínio e a explicação das aparências – e, finalmente,

simbolista, ou decadente, quando se amparou na intuição e no sentimento

espiritual da matéria e do indivíduo (...) Os parnasianos faziam a forma pela

forma: os simbolistas tentavam fazer a forma pelo espírito (Meireles, 1983,

p. 112-3)53

Esse texto é lembrado mais pelos especialistas na área de educação do que pelos

de letras, pois nele encontramos dois importantes artigos de Cecília sobre Educação: “A

53

Real Gabinete Português de Leitura. Livro doado por Isabel em 6 de janeiro de 1983.

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escola Moderna” e “A formação do professor”, que apresentam convicções inovadoras

da poeta em relação à Educação.

Mas as ideias progressistas de Cecília não foram bem vista pela banca

examinadora.

Assim como o episódio da premiação de Viagem, que aconteceria dez anos

depois, a apuração do concurso para a Escola Normal resultou em polêmica. A banca

formada por Alceu Amoroso Lima, Antenor Nascentes, Coelho Neto e Nestor Vitor deu

o segundo lugar a Cecília, atribuindo o primeiro lugar a Clóvis do Rego, o que acabou

gerando um intenso debate na imprensa da época. As ideias inovadoras de Cecília para a

educação não agradaram, sobretudo ao católico Alceu Amoroso Lima, que dois anos

depois partiu contra os integrantes do movimento da Escola Nova, principalmente

Anísio Teixeira, chamando-os de comunistas (cf.: Gouvêa, 2007, p. 219, no ensaio “A

combatente: educação e jornalismo”, de Valéria Lâmego).

Nestor Vitor, um dos principais divulgadores do simbolismo no Brasil, o

primeiro a editar os poemas de Cruz e Souza, criticou o impressionismo do texto de

Cecília, considerando-o uma “Obra de poeta”. Contudo, foi justamente a impulsividade

da autora que o crítico avaliou como sendo uma virtude, e reconheceu o mérito de

Cecília em ter apresentado um estudo minucioso da literatura vernácula:

Uma tese pertinente neste concurso porque se refere à educação em geral,

mas principalmente e desenvolvidamente à literatura. Além disso, o trabalho

é feito por modo que proporciona, como verá quem o ler, uma vista a voo de

pássaro em toda a literatura vernácula, da Renascença para cá (Vitor, 1973,

p. 321).

O crítico considerou o trabalho como um “poema em prosa”, uma obra vinda por

inspiração: “é bonito e não depõe contra o talento da candidata, antes o confirma”. Uma

das críticas que faz à análise de Cecília sobre o simbolismo é a visão universalista que a

autora apresenta desse movimento. A perspectiva excessivamente entusiasta da poeta

pode ser conferida em trechos como este:

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Aos homens que receberam a herança do simbolismo (...) coube a glória de

poder ter uma linguagem nova, como que profética, empregada não mais em

canções de amor ou queixas da sorte, mas dirigida a multidões e multidões,

apostrofando tudo, dialogando com as realidades imediatas (Meireles,

1983).

Nestor Vitor cita F. Baldensperger para apresentar as características do

simbolismo: “instantaneidade, ausência de dependências causais mais ou menos

acentuadas, e aquilo que poderia chamar o sentido do deslumbramento, não sei que

pasmo diante das coisas” (La Litterature, p.99). Vitor diz que tais características cabem

a O espírito Vitorioso, considerando a própria tese um reflexo da estética simbolista,

mas que a linguagem do simbolismo não ficaria ao alcance das multidões e multidões a

que eles queriam dirigir-se, pois que:

não é dado a todos ver as dependências causais que ligam nele umas coisas

as outras, porque o livro é feito de princípio a fim como que sob o impulso

de um arrebatamento, é obra para ser apreendida apenas por aqueles que

antes de tudo se podem colocar no plano sentimental em que ela foi feita e

têm olhos capazes de dispensar uma acentuação muito viva das

dependências referidas (p. 317).

No entanto, o elogio do crítico, pela sensibilidade com que o texto de Cecília foi

realizado, é o que revela também a fragilidade de seu conteúdo teórico. Um exemplo é a

ideia de que o simbolismo é uma linguagem “dirigida a multidões”. Sob forte

arrebatamento, que não condiz com a realidade do que foi o simbolismo, a

argumentação mostra o lado idealista e sonhador da poeta, como o foi também de Cruz

e Souza, um dos escritores mais representativos do Simbolismo no Brasil.

Na Capilla Alfonsina encontrei um desenho que Cecília fez especialmente para

Alfonso Reyes. Inspirada no poema “Caminho da Glória”, de Cruz e Souza, o desenho

em nanquim traz cinco faces de uma figura feminina, vestida de negro e com uma

auréola sobre a cabeça, mostrando faces ora suave, ora trágica e dolorida, e o pescoço se

alongando em uma perspectiva crescente, na diagonal típica do Barroco. Destaco aqui

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duas estrofes do soneto de Cruz e Souza, publicado postumamente em Últimos sonetos

(1905):

Neste caminho encontra-se o tesouro

Pelo qual tantas almas estremecem;

É por aqui que tantas almas descem

Ao divino e fremente sorvedouro.

É por aqui que passam meditando,

Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,

Neste celeste, límpido caminho.

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Vemos assim a filiação de Cecília com o poeta de Broquéis (1893), precursora

do simbolismo no Brasil. Sobre Cruz e Souza, ela escreveu, em O espírito vitorioso:

Cruz e Souza ficará sendo, inestimavelmente, o iniciador do simbolismo

entre nós, o que equivale a dizer que, no momento em que o romantismo

tentava resolver a sua incógnita pelos caminhos de regresso do

parnasianismo, ou pelas infecundas estradas do cientificismo, ele foi o que

sentiu a suprema beleza das formas espiritualizadas, e ascendeu aos

segredos invioláveis, de que todos os poetas se afligiram inutilmente, por

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essa dolorosa, mas luminosa ascensão da intuição mística (Meireles, 1929,

p.106-7).

Em “Apresentação da poesia brasileira”, Manuel Bandeira faz o seguinte resumo

biográfico de Cruz e Souza:

Os pais do poeta eram escravos do Marechal Xavier de Sousa, o qual,

quando teve de seguir para a guerra do Paraguai, os alforriou. O menino

João era tratado com todo carinho na família do ex-senhor; recebeu boa

instrução secundária, tendo tido entre os seus mestres o naturalista Fritz

Müller. Mortos os seus protetores, teve de lutar pela vida, militando na

imprensa, organizando em sua província natal a campanha abolicionista,

correndo o país de Sul a Norte como secretário ou ponto de uma campanha

dramática. Em 1890 muda-se definitivamente para o Rio e após um estágio

de três anos no jornalismo carioca, obtém um emprego ínfimo na

administração da Estrada de ferro Central. Em 1893 casa-se com aquela a

quem chamou “meu tenebroso lírio” (era negra como ele) e publica dois

livros, um de prosas líricas – Missais, outro de versos – Broquéis.

(Bandeira, 1967, p. 689-90).

O simbolismo, ao chegar ao Brasil padeceu com a recepção crítica, pela

coincidência temporal com o parnasianismo, que acabou por gerar análises confusas,

conforme observou Vera Lins, e sobretudo pelos pressupostos naturalista e positivista

que dominavam a cena crítica de então.

João Alexandre Barbosa em “O simbolismo brasileiro”, prefácio à terceira

edição de O panorama do movimento simbolista, de Andrade Muricy, desenvolve uma

reflexão sobre as dificuldades que tiveram os poetas simbolistas ante a crítica de sua

época. Segundo sua análise,

os pressupostos da crítica naturalista e positivista que dominaram grande

parte do século XIX foram postos em questão pelo aparecimento de obras

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literárias que não somente não se ajustavam as lentes naturalistas e

positivistas, mas faziam do próprio desajustamento um modo de articular

uma mimese antes da construção do que da representação e por aí

apontavam para os desvios entre literatura e história (Barbosa, 1990, p 101).

Essa mimese da construção, que apresenta, ao invés de representar, está presente

no investimento da poesia simbolista em um caminho muito mais sensorial que

pragmático, por isso marcando, como disse Barbosa, os desvios entre literatura e

história, recordando que “a verdade procurada pela história segue a seta pragmática

(própria da direção das técnicas e da ciência)” (Costa Lima, 2006, p. 143). Ressaltando

as análises de Paul Valéry, Barbosa diz que à diferença da crítica positivista de então, o

poeta e crítico francês via no simbolismo uma revolução na ordem dos valores, pois os

poetas simbolistas escreviam com o desejo de criar leitores e não com a preocupação de

se adaptar a uma expectativa do mercado. Por isso, Valéry situa o movimento simbolista

como “um precursor das modernas teorias que insistem na interação obra-leitor”

(Barbosa, 1990, p. 104). Aí estaria então um dos laços entre o simbolismo e a poética da

modernidade e, como observou Barbosa, “a importância desse movimento não apenas

para a consideração da própria história da poesia, mas como núcleo de um debate

teórico e histórico-literário ainda muito vivo” (idem).

Agora podemos analisar as particularidades de Cecília Meireles ante o

movimento simbolista. Pensemos na teoria das correspondências: para os simbolistas

tudo da ordem do natural e do humano tem uma correspondência com a ordem

espiritual, assim os símbolos servem para evocar as realidades espirituais. Assim lemos

na poética de Baudelaire, cujo poema “Correspondências” é um dos mais

representativos dessa “teoria”. Vejamos o poema:

A natureza é um templo onde vivos pilares

Deixam filtrar não raro insólitos enredos;

O homem o cruza em meio a um bosque de segredos

Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

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Como ecos longos que à distância se matizam

Numa vertiginosa e lúgubre unidade,

Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,

Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,

Doces como o oboé, verdes como a campina,

E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo que jamais termina,

Como o almíscar, o incenso e as resinas do oriente,

Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.54

Lembro que um dos problemas que apresento nesta tese é pensarmos as

correspondências de Cecília como espaço autobiográfico de exercício de construção

ficcional e diálogos interculturais, o que teria contribuído para uma dicção singular da

poeta, posicionando-a em um lugar excêntrico em relação aos seus contemporâneos

modernistas. Diferente da concepção baudelariana, a ligação de Cecília ao Cosmo

passava pela busca de si e pelo encontro com o outro, na linguagem, ou seja no

exercício da linguagem. A hipótese que aqui apresento é a de que, tomando o sentido

espiritual na poética de Cecília por esse reordenamento entre instante e eternidade, o

54

Correspondances

La nature est un temple où de vivants piliers

Laissent parfois sortir de confuses paroles;

L´homme y passe à travers des forêts de symboles

Qui l´observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent

Dans une ténébreuse et profonde unité,

Vaste comme la nuit et comme la clarté,

Les perfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs d´enfants,

Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,

- Et d´autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l´expansion des choses infinies,

Comme l´ambre, le musc, le benjoin et l´encens,

Qui chantent les transports de l´esprit et des sens.

Trad. de Ivan Junqueira. Baudelaire, C. As flores do Mal, RJ: Nova Fronteira, 1985, p. 115.

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trabalho com os símbolos remete mais a uma comunhão com a humanidade do que a

uma referência a um mundo outro. O horizonte que surge a partir deste ponto do estudo

é justamente a possibilidade de pensarmos uma teoria das correspondências na poética

de Cecília Meireles, onde cartas, poemas, desenhos, retratos estariam relacionados na

construção de uma busca de si, empreendida a partir de e pelo intercâmbio entre as

linguagens verbal e plástica.

3. Medida da significação e os laços com o épico

Para pensarmos na aproximação da poesia de Cecília Meireles com essa outra

concepção de modernidade, faremos uma leitura do poema “Medida da significação”,

de Viagem. Dividido em quatro partes, “Medida da significação” pode ser lido como um

exercício de produção de conhecimento fundado na ficção.Trata-se de um conjunto de

quatro poemas, que podem ser lidos separadamente, mas constituem uma única peça em

que sobressai o gesto contundente de afinação entre escrita e vida.

Na busca por uma leitura que ilumine essa “medida da significação”,

percebemos na camada mais evidente do texto suas relações com a memória, o diálogo

possível com a tradição da poesia em língua portuguesa e as imbricações que sucedem

na relação entre “imaginação” e “subjetividade”.

Pelo realce que dá a imagem – em sua equivalência com a metáfora, o que

portanto supõe não a faculdade perceptiva mas sim o uso da imaginação (cf. Costa

Lima, 2009) – ela constrói uma subjetividade que surge no poema pela relação que

estabelece com o leitor, e pelo modo como articula a configuração imagética de sua

criação literária.

Talvez o calibre dessa “medida” se situe justamente entre o vivido e o

imaginado, tendo na memória o locus da mistura íntima entre essas duas dimensões.

Assim, o poema apresenta em especial o desafio de se lidar com a linguagem humana

em sua significação infinita e enaltece o pensamento lírico, a ficção, como contribuinte

vital e indispensável à produção do conhecimento.

A estrofe inicial da primeira parte condensa ideias fundamentais no poema. Nela

estão presentes três metáforas que apresentam os diálogos primordiais da poeta: com a

tradição, com a modernidade e com o leitor. Vejamos:

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Procurei-me nesta água da minha memória

que povoa todas as distâncias da vida

e, onde, como nos campos, se podia semear, talvez

tanta imagem capaz de ficar florindo...

Pelo pronome demonstrativo “nesta” percebemos a referência ao próprio poema,

“água da memória”, metáfora que o vincula à tradição da poesia portuguesa e que irá se

ampliar no decorrer do poema com apresentação do “mar” como espelho. Contudo,

nesse momento, o que de imediato se coloca é o contrato proposto com o leitor,

convidado a embarcar em “caminhos assombrados”, lugar em que o tempo flui de modo

peculiar: água “interminável e muda”, “puramente imortal”.

Num processo peculiar à obra literária, o tempo cronológico do poema é

limitado à medida que o leitor começa e termina a leitura, mas a produção verbal que o

constitui propicia viagens a tempos infinitos – variáveis segundo o “horizonte de

expectativas” (Iser, 1979) de cada leitor.

Se a especificidade da obra literária está em seu caráter virtual, “na convergência

do texto com o leitor” (Iser, 1999, p.50), nada como a bela metáfora criada por Camilo

Pessanha ao referir-se ao poema como “relógio de água”, na tentativa de dar conta do

tempo etéreo em que se processa esse encontro. Eram dessas horas feitas de água que

falava o poeta português:

E escutando o correr da água na clepsidra,

Vagamente sorris, resignados e ateus,

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,

Que toda a noite errais, doces almas penando,

E as asas lacerais na aresta dos telhados,

E no vento expirais em um queixume brando,

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

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Lemos nesta, que é a última estrofe de Clepsidra (1920), a ponte que Cecília cria

com o autor pela metáfora recorrente da água como fluir do tempo, e também pela

concepção do poema como experiência estética, nítida sobretudo nos versos que

encerram “Medida da significação”:

olhando para esta água interminável e muda, que não floriu, que não

palpitou, que não produziu, de tanto ser puramente imortal...

A água como metáfora da passagem do tempo é recorrente nas investigações a

respeito dos sombrios lugares do inconsciente. E o mar, como rio infindável, remete à

importância que esse locus adquire na poesia de língua portuguesa, pelo tema da

expansão marítima de Portugal.

O “mar português” foi, e ainda é, mensagem de muitos poetas que escrevem

nesta língua: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ são lágrimas de Portugal” (Fernando

Pessoa, “Mar Portuguez”, Mensagem); “Pensemos no comércio de viver: passagem dos

navios/ quando, a passar, se retém a espessa/ água do tempo, da tempestade” (Luiza

Neto Jorge, “Recanto 2”)”; “Do Atlântico ondas rebentavam plácidas/ e o delas ruído às

vezes tempestade” (Jorge de Senna, “Sobre esta praia... Oito meditações à beira do

Pacífico”).

A metáfora da navegação presente na poética de Cecília e o interesse da poeta

por uma poesia que extrapola os limites do nacional, também são caminhos para

pensarmos sua obra no âmbito das poéticas da modernidade.

No célebre ensaio “O narrador” (1936), Walter Benjamin apresenta a narrativa

como possibilidade do intercâmbio de experiências, partindo de dois narradores

exemplares: o camponês sedentário (regional, raízes, tradição) e o marinheiro

comerciante (universal, viagem, deslocamento). A poética de Cecília Meireles à

primeira vista se aproxima desse narrador “marinheiro” num movimento de amplitude e

ruptura com o ufanismo nacionalista que imperava na poesia brasileira, estimulado

sobretudo pelo Modernismo de 1922. Porém, a escolha pelo diálogo com a tradição da

poesia lusitana e hispano-americana, e ainda a atenção que ela deu ao folclore e à

religião afro-brasileira (praticamente ignorada pela crítica que a manteve distante do

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cânone Modernista), podem ser associadas ao narrador “camponês” concebido pelo

filósofo alemão.

Tema poético por excelência na obra da autora, o mar, em “Medida da

significação”, surge como espelho (“Procurei minha forma entre os aspectos das

ondas”), expondo mais uma afinidade entre Cecília e a poesia portuguesa, nesse caso

com a amiga Natércia Freire, cujo poema “No mar”, de Rio infindável (1947) apresenta

o movimento de leitura que os poetas mantêm entre si:

Eu que já fui, comovida,

mirar-me ao fundo do mar,

no vaivém perdi a vida

– o que ganhei está no mar.

Temos, portanto, em “Medida da significação”, a água como fluir do tempo e, na

amplitude que essa imagem vai ganhando no desenrolar do poema (quando o mar torna-

se espelho em que o sujeito poético olha para si) a estrutura poemática passa a adquirir

essa mesma dimensão reflexiva quando comparada à água: revelando o lugar de

reflexão não somente para o poeta, mas também para o leitor.

Se tomarmos a imagem na literatura, não como informação da qual estamos

saturados hoje, mas por equivalência com a metáfora e o uso da faculdade humana da

imaginação, temos em “Medida da significação” uma obra de indiscutível potencial

imagético.

Pensemos na relação com Benjamin por esse fino trabalho da poeta ao produzir

imagens que remetem às ruínas (“todos os dias sou meu completo desmoronamento”) e

se posicionam no limiar entre vida concreta e imaginada. São essas imagens/ metáforas

(olhos, espelho e luz), que, no poema, amplificam o sentido de “reflexão”, enaltecendo

o potencial da obra literária como contributo à produção de conhecimento.

Desse modo, o poema se coloca sobretudo como lugar de encontro com o outro,

no processo de apresentar o sentido infinito da linguagem humana, como mostram os

versos construídos com o tão típico gerúndio camoniano:

[...] e, onde, como nos campos, se podia semear, talvez

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tanta imagem capaz de ficar florindo...

O conceito de alegoria, cuidadosamente estudado por João Adolfo Hansen

(2006), pode nos servir aqui como argumento para mais uma aproximação entre a

poética de Cecília e o pensamento benjaminiano. Pensemos nele a partir dos versos que

antecedem a estrofe final de “Medida da significação”:

Não precisaremos falar mais nem sentir:

seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.

Vista como um discurso que quer significar outro e tendo por “procedimento

construtivo” a “metáfora continuada” (Hansen, 2006, p. 7), pela impossibilidade da

palavra se aproximar da completude da palavra divina, a alegoria teve no período do

Barroco um caráter acentuadamente teológico.

Tomando a alegoria como procedimento de reflexão crítica, Benjamin mostra

como na modernidade de Baudelaire a incessante busca pelo novo é alvo da crítica do

poeta pelas diversas construções com as quais ele apresenta o poeta na sociedade de

mercado (dândi, flâneur, conspirador, trapeiro etc.).

Segundo Costa Lima, o “tratamento alegórico facilita a entrada em cena do

leitor, que, com seus valores e expectativas socialmente condicionadas, empresta ao

texto uma pluralidade de significações, com base na própria estratégia de composição

do texto” (Costa Lima, 1981, p. 76).

Por um lado, Cecília parece se aproveitar dessa qualidade plural da alegoria e

também do sentido crítico conforme a orientação benjaminiana, já que o poema escapa

de uma visão utilitária da linguagem. Mas a tensão que Cecília mantém com o leitor ao

longo do poema, observemos novamente os versos “Não precisaremos falar mais nem

sentir:/seremos só de afinidades: morrerão as alegorias”, parece apontar para além do

que pensou Benjamin tanto em sua visão messiânica da linguagem, quanto na alegoria-

crítica que surge na poética de Baudelaire pelas várias facetas do poeta. Afinal, na ponte

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173

que Cecília busca estabelecer com seu “leitor-implícito”55

ela propõe a morte das

alegorias.

O caráter teológico, que perpassa a questão da alegoria, parece ter prejudicado

em muito a compreensão da poesia de Cecília que por ter colaborado nas revistas

Árvore Nova, Terra de Sol e Festa (entre 1919 e 1927), acabou sendo vinculada à

corrente “espiritualista” do Modernismo. É fato que se pode ler na produção inicial da

autora (poemas de Baladas para El-Rei, escritos em 1921 e publicados em 1925)

marcas da religião católica e da apropriação que esta fez do pensamento platônico.

Contudo o caráter divino que percorre a poesia de Cecília passa rapidamente dessa

tendência dogmática para a ideia de que é na arte que encontramos a resposta

satisfatória à ilusão que necessitamos na tentativa (vã) de driblar a morte.

Em “Deus dança”, de Vaga música (1942), vemos nessa mudança de prisma, a

marca nietzschiana e a dor que decorre do deslocamento do conforto de se ter Deus

como fim: “Eu o vi dançando, ardente e mudo, [...] Eu o vi dançando, e fiquei triste”.

Soma-se a isso a postura combativa de Cecília em relação ao decreto que instituía o

ensino religioso nas escolas públicas, em sua “Página da Educação”, no Diário de

Notícias do Rio de Janeiro (1930-33) (cf.: Moraes, José Damiro de, 2007). E ainda de

seu interesse pela religião afro-brasileira expresso nos desenhos que criou em Batuque,

samba e Macumba Estudos de gesto e de ritmo, 1926-1934, cuja primeira edição foi

promovida pela Secretaria da Cultura do antigo Ministério da Educação e Cultura

(MEC). O livro foi reeditado pelo Instituto Nacional do Folclore (Funarte), em 1983. A

publicação apresenta dois aspectos pouco comentados da obra de Cecília, seu trabalho

de folclorista e seu talento como desenhista.

Essas atividades acima mencionadas mostram a amplitude da produção de

Cecília e a inviabilidade de rotulá-la como “platônica” ou “católica”.

55

Cf.: Wolfgang, Iser, 1999, p. 73: “[...] o leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o

conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores

possíveis. Em consequência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na

estrutura do texto. Se daí inferimos que os textos só adquirem sua realidade ao serem lidos, isso significa

que as condições de atualização do texto se inscrevem na própria construção do texto, que permitem

constituir o sentido do texto na consciência receptiva do leitor. A concepção do leitor implícito designa

então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor.”

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174

Talvez a aproximação maior entre o poema e o conceito de alegoria, segundo

Benjamin, esteja ainda no modo como a poeta trabalha sua subjetividade no exercício da

escrita, ao expor a presença de uma ausência.

Ao longo de sua vida, Cecília manteve fortes laços com Portugal. Foi casada

com o artista plástico português Fernando Correia Dias, com quem teve três filhas; entre

as décadas de 1930 e 40 proferiu diversas conferências em Lisboa e Coimbra; publicou

livros e inúmeros ensaios em revistas portuguesas e organizou, em 1944, a antologia

Poetas Novos de Portugal, como vimos anteriormente.

Por sua personalidade de escritora profundamente engajada à vida e tendo por

desafio a tarefa permanente de ampliar os limites do sensível, a poeta cultivou com

afinco as amizades que criou. Entre os intelectuais portugueses com quem manteve

correspondência estão: David Mourão-Ferreira, Natércia Freire, Maria Valupi, Adolfo

Casais Monteiro, João Gaspar Simões, e, nos Açores, Armando Cortes-Rodrigues,

Vitorino Nemésio e João Afonso.

Os laços entre sua poética e o épico são visíveis em poemas como Romanceiro

da Inconfidência, e não tão óbvios como no caso de “Medida da significação”.

A conexão com a poesia portuguesa no caso desse poema pode ser vista por

alguns aspectos como: a conexão com a poética do fingimento de Fernando Pessoa, que

surge não só pontualmente, “(...) sobre fingidos caminhos”, mas na proposta do poema

como um todo que apresenta a ficção como contributo para a produção do

conhecimento. E talvez seja aí onde encontramos o laço mais firme com a tradição

camoniana, na consciência de sua condição, daquele que “veio contar”. O traço

narrativo do poema é ainda outro elemento que o conectaria ao épico.

A discussão entre “poesia pura” e poesia narrativa vem tomando o cenário dos

estudos da poesia moderna56

. Para Dominique Combe, a exclusão da poesia narrativa é

também a condenação do épico (p.151).

Reunindo, portanto, esses três elementos: o humanismo (linguagem como ponte

para o outro), a narratividade e a tensão que se estabelece entre poeta e leitor,

poderíamos supor a aproximação entre o poema e o épico. Essa tensão, a escrita como

56

Basta examinar a discussão apresentada por Alfonso Berardinelli em A prosa da poesia (Cosacnaify,

2007) em relação ao clássico de Hugo Friedrich, A estrutura da lírica moderna (Duas Cidades, 1978). E

também as ideias de Dominique Combe em Poésie et récit (José Corti, 1989). Une rhétorique des genres.

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175

presença da ausência e a precariedade, que antes associamos às ruínas de Walter

Benjamin, podem ser pensadas também como afins à poesia camoniana.

Vejamos o que nos diz Jorge Fernandes da Silveira sobre a possibilidade de se

formular um equilíbrio na tensão:

Em princípio, digo residir no estado incerto o ponto de equilíbrio do ser

camoniano, na busca de um modo conforme de estar entre os seres e os

objetos, entre as palavras e as coisas. (...) com toda a certeza um ser de

expressão comovente, visto que, nele, ainda é possível perspectivar a

hipótese sempre contemporânea de se formular uma zona de equilíbrio na

tensão, na turbulência. Toda a plenitude camoniana é precária, breve,

contraditória (1996, p. 43).

A poética da tensão é inclusiva, reúne os diálogos estabelecidos pelo poeta no

gesto de escrever o lido e ler o escrito. É desse lugar, que leva o leitor a ver-se, e a viver

a dúvida e o estranhamento, de que fala o poema. Como bem diz em os versos de Fiama

Hasse Pais Brandão: “O inexprimível é o que se exprime por um excesso de

disparidades necessárias [...]” (1978, p.14). E é justamente essa tensão que torna

possível ao leitor desfrutar da experiência estética, vivenciar o inefável, como nos

mostra a estrofe final da primeira parte do poema:

E aquilo que restaria eternamente

é tão da cor destas águas,

é tão do tamanho do tempo,

é tão edificado de silêncios

que, refletindo aqui,

permanece inefável (C.M).

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176

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177

IV. Cartas e poemas: autorretratos

La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda

para contarla (Gabriel García Márquez. Vivir para contarla, epígrafe).

1. O leitor nas cartas e nos poemas

Partimos da ideia de que toda escrita é autobiográfica, como propôs Paul de Man, para

quem “a autobiografia não é um gênero ou um modo, mas, uma figura de leitura ou

entendimento que ocorre, em algum grau, em todos os textos”. Segundo De Man, o

momento autobiográfico acontece no alinhamento entre os dois sujeitos envolvidos no

processo de leitura, “em que eles determinam um ao outro por substituição reflexiva

mútua. A estrutura implica diferenciação assim como similaridade, na medida em que

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178

ambos dependem de um intercâmbio substitutivo que constitui o sujeito” (De Man,

1989).

No caso das correspondências há no entanto uma maior complexidade no

alinhamento dessas subjetividades, já que temos sempre presente o fantasma do

destinatário. Essa ausência, sempre presente, se conecta com uma ideia recorrente nos

estudos sobre a autobiografia: a que toma a prosopopeia como figura de linguagem

dominante desse tipo de escrita. É o que lemos nos estudos de Paul de Man,

“Autobiografia como desfiguração”, e de Silvia Moloy, “Acto de presencia. La escritura

autobiográfica en Hispanoamérica”, no qual afirma: “Así escribir sobre uno mismo seria

ese esfuerzo siempre renovado de dar vida a lo muerto dotando-lo de una máscara

textual” (Molloy, 1996).

Em um exercício de reflexão poderíamos relacionar esta afirmativa de Silvia

Molloy à epígrafe com a qual abrimos este capítulo. Para García Márquez, a vida é o

que recordamos, e como recordamos para contá-la. “Dar vida ao morto, dotando-o de

uma máscara textual” seria então dar vida a própria vida pela elaboração textual. O

texto nasce da própria vida, que já é morte pois que é passado, mas que se torna vida

novamente pelo movimento de recordação e pela forma como é expressada. Assim, no

jogo de escrever sobre si mesmo, estariam em cena: recordação, “máscara textual” e

prosopopeia.

No caso das cartas, a personificação da ausência ocorre duplamente, na

encenação do remetente e na presença da ausência do destinatário, com as quais ao

leitor é possível estabelecer, ou não, uma empatia. Desse modo, o que Silvia Molloy

chama de máscara textual está presente nas cartas e nos poemas, se considerarmos uma

abordagem desde um ponto de vista mais dinâmico, como o de uma escrita em

processo, um jogo de subjetividades. Geralmente o leitor das cartas está pensado como

interlocutor conhecido e o da obra literária como um leitor anônimo e potencial, o que

não impede que o escritor jogue com essas expectativas.

Cecília Meireles incrementou seu jogo de escrever sobre si ao trabalhar com

máscaras textuais de discursos distintos, poético e epistolográfico, e também por

convocar o leitor como partícipe de suas propostas especulares.

Há que ressaltar a questão de como a faculdade da memória está presente tanto

nas cartas quanto nos poemas, resultando na produção de imagens e de imagens de si,

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179

autorretratos, conforme mostra o estudo de Silvina Rodrigues (“A poesia, memória

excessiva”. In.: Literatura, defesa do atrito, 2003). Ao destacar essa relação entre

memória e produção de imagens, a crítica portuguesa provoca nossa reflexão sobre a

recorrência dos retratos, e a importância da apresentação de imagens na poesia e nas

cartas de Cecília Meireles.

São muitos os poemas nos quais o exercício do autorretrato, de um desenho de

si, está presente: “Memória” (Vaga Música); “Auto-retrato”, “Retrato obscuro” e

“Mulher ao espelho” (Mar absoluto); “Desenho”, “Apresentação”, “Comentário do

estudante de desenho”, “Retrato de uma criança com uma flor na mão”, “Desenho leve”

(Retrato natural); “Desenho colorido” (Poemas escritos na Índia); “Desenhos do

sonho” (Sonhos); “Desenho” (O estudante empírico); “Desenhos”, “Desenho sem

título”, “Biografia” e “Personagem” (Dispersos), são alguns deles.

Já nas cartas, os autorretratos surgem a partir de duas perspectivas: histórica e

intimista. Em muitas das correspondências aos amigos, Cecília narra seus processos de

trabalho e fala sobre seu estado de espírito, como nesta missiva ao amigo português

Diogo de Macedo, escrita no Rio de Janeiro, em 1953, época em que a poeta viajou para

diversas partes do mundo. Ela conta suas impressões de Paris, Calcutá, Itália e Holanda

e expõe seu estado de ânimo:

O Dioguíssimo: a sua carta me deixou muito enternecida, mas v. não se

deve preocupar com esta minha melancolia, que já agora é incurável. (...) Há

várias maneiras de chegar ao céu. Uma – poética – é a do Aeronauta: mas

de curta duração. Outra, a sobrenatural, pela escada de Jacó – mas não é

para mim. Depois, há as maneiras naturais e as artificiais. Espero que seja

pelas naturais, mas que não demore muito. Porque, Diogo, eu não sei até

onde vou ter paciência! Tudo em redor de mim é tão triste e tão mal, tão

impenetrável por doçura ou inteligência, tão escuro e tão torto... Não

entenderei jamais porque as criaturas não querem ser amadas... Porque se

fazem odiosas. E eu não me posso defender, porque, para isso, teria de

acusar.57

57

Meireles, Cecília. A Diogo de Macedo. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, loc. 26, 3,126.

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180

É ainda parte da história das cartas que o remetente narre um mesmo fato em

diferentes versões, dependendo do grau de intimidade que tenha com cada destinatário.

Encontramos esse tipo de ocorrência nas missivas de Cecília, como por exemplo nos

conjuntos de correspondências destinadas à amiga Isabel do Prado e a Gabriela Mistral.

A coincidência de datas, fez com que, por exemplo, Cecília contasse às duas sobre o

entusiasmo com a sua então recente inserção na dramaturgia. A Gabriela, dirige-se em

tom mais formal:

Como já lhe disse em carta anterior, estou profundamente interessada em

escrever para teatro, e tenho três peças prontas, que talvez se representem

breve. Meu sonho é criar platéias para a tragédia; acordar os homens para

um sentido mais grave da vida; e, com isso, habituá-los também a uma

linguagem em que a vida superficial e o péssimo teatro, e o cinema, e a sub-

literatura que nos aflige, têm tornado quase impossível.58

Pouco menos de um mês antes, Cecília havia escrito à Isabel, mas, desta vez, o

tom formal deu lugar a um intimismo e a uma descrição de si, como um autorretrato de

seu temperamento, construído a partir da reflexão sobre o temperamento da própria

destinatária:

Sua carta traduz o otimismo que V. sempre teve, embora às vezes parecesse

não o entender bem. No íntimo, V. dispõe de uma espécie de alegria e de

capacidade de encantamento permanente, -- o que é fortuna rara, sobretudo

num tempo destes. Naturalmente, as coisas amargas passarão diante dos

seus olhos, como diante dos de toda gente: mas V. já está prevenida, e isso é

um grande bem e uma enorme força. E a conservação da sua liberdade, num

tempo de imensos cativeiros, é mais uma vantagem, para amortecer os

choques de tantos desequilíbrios que a vida impõe. Comigo tudo é diferente

porque já o meu temperamento é outro, as minhas responsabilidades

58

Cecília Meireles a Gabriela Mistral. Carta 17, de 7 de abril de 1947. Biblioteca Virtual da Universidade

do Chile. www.gabrielamistral.uchile.cl/

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181

também pesam e agravam coisas que eu sei quase insignificantes. E o

ambiente, como V. vê, causa também muita complicação. Aqui, tudo quanto

posso fazer é isolar-me. Mas eu não sou um ser de isolamento por egoísmo.

É a forte necessidade que me obriga a isto. Solidão é outra coisa.59

A leitura das correspondências com Isabel e com Gabriela lança o leitor no jogo

de espelhos produzidos por Cecília. A linguagem da remetente que fala sobre

temperamentos, dá conselhos e conta seus sonhos e seus processos de criação à Isabel,

ganha outros contornos quando se corresponde com Gabriela. As cartas à chilena

apresentam uma linguagem mais solene, deixam entrever uma maior preocupação em

relação ao registro histórico e reafirmam o compromisso humanista de Cecília.

A hipótese de uma relação entre as cartas e a produção de autorretratos na obra

de Cecília foi levantada também por Margarida Maia Gouveia que, em ensaio sobre a

correspondência entre Cecília e Armando Côrtes Rodrigues, relacionou as cartas de

Cecília a exercícios de autorretratos: “Dado aquilo que nos revelou o aproveitamento

desta correspondência, parece-nos de privilegiar o sentido de Cecília na intimidade, o

seu autorretrato como pessoa e como poetisa” (Gouvêa, 2001, p.129).

Nos dois casos, cartas e poemas, lemos a expressão da recordação e estamos

diante da apresentação de imagens. Voltando aos elementos que estão presentes no jogo

de escrever sobre si, recordação, “máscara textual” e prosopopeia, pensemos agora no

elemento “recordação”. Silvina Rodrigues, em “A poesia, memória excessiva”, fala em

“vazio da recordação que a memória substitui por imagens capazes de conter elas

próprias o vazio e assim o transportarem” (2003, p. 61). A linguagem seria o “abrigo

para esse vazio”. Estudando o caso específico do poema, Silvina relaciona a recordação

a um vestígio do acontecimento, “mas um vestígio de uma ordem diferente da cinza

como vestígio do fogo – um vestígio que é potência ritimizante, é o modo de aparição,

aquele em que consiste a forma” (Idem, p. 63). Por esta perspectiva é possível

construirmos uma reflexão sobre os diferentes lugares em que se encontram o leitor das

59

Cecília Meireles à Isabel do Prado. Carta 9. RJ, 12 de março de 1947. Acervo Fundação Casa de Rui

Barbosa.

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cartas e dos poemas. Nos dois casos, então, o leitor está diante da apresentação de

imagens e da expressão da recordação. A apresentação de imagens na linguagem

poética é enriquecida justamente pelo trabalho com a “máscara textual”, a forma

constituída pela “potência ritimizante”:

Pensar o poema como memória que não se extingue justamente porque é

memória enquanto operação, isto é, memória activa, forma dinâmica e não

mecanismo, implica considerar nele que a dimensão da leitura como

constitutiva (Idem, p. 74).

Como vimos, Cecília convoca o leitor como partícipe de suas propostas

especulares. Em sua poesia, o leitor é exposto a mais vazios, a mais imagens do que

quando se encontra na posição de leitor das cartas.

Um exemplo é o poema “Retrato”, de Viagem. O leitor está diante da cena da

poeta construindo seu autorretrato, numa atitude impregnada de nostalgia. A atividade

do leitor está talvez na multiplicidade de situações que ele pode imaginar: pode ser

apenas uma contemplação, um lugar de voyeur como o do leitor das cartas, admirando o

sujeito lírico em sua contemplação e a amarga constatação do passar do tempo diante de

um espelho; ou o poema poderia ser lido como uma revelação que uma pessoa faz a

outra sobre a impressão de sua imagem sob o efeito do passar do tempo? Esta outra

pessoa, poderia ser uma terceira pessoa, ou o leitor mesmo?

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo,

assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo (Retrato, Viagem)

Nas cartas, lemos trechos bastante descritivos, como retratos, desenhos que

Cecília traçava sobre pessoas de seu convívio. Muitas vezes, este é o pretexto para que a

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poeta revele um pouco de sua intimidade. Como quando descreve a criada gordíssima à

amiga Isabel.

Tenho uma criada que deve pesar 200kg. Eu não conseguia gostar dela,

porque é muito bronca e fala fininho. Mas inventei um jeito de encantar-me:

faço de conta eu ela é elefante. V. não gostaria de ter um elefante fazendo

bife? Aí está como se pode tornar a vida encantadora! (carta 25 de outubro

de 1941).

Ou quando conta sobre as vizinhas, uma que tocava piano, outra que brigava

com suas companheiras de cortiço...

Há uma vizinha que leva o dia inteiro praticando acordes ao piano, o que me

restitui a uma infância tranquila, em que o mundo parece possível. Há outra

vizinha, longe, que briga com as suas companheiras de cortiço, e recuo para

mais longe, até a idade das cavernas. Naquele tempo já devia haver nomes

feios, não? O homem deve ter começado a falar aos berros, em brigas,

dizendo imundícies, não acha? E no meio de tudo isso, passarinhos, árvores,

borboletas tão bem educadas que pousam nos cabelos da gente (carta 6, de 5

de novembro de 1946).

Como vemos nessas duas cartas, as descrições são acompanhadas de revelações

íntimas, como a aversão inicial à cozinheira gorda, e a expressão de seus valores

pacifistas ao exaltar a vizinha pianista e citar passarinhos, árvores e “borboletas bem

educadas” em contraponto a outra vizinha brigona.

Há na escrita epistolar de Cecília uma dimensão poética que surge justamente

nesses retratos, como da cozinheira e das vizinhas, e também de situações, um exemplo

é a imagem recorrente de um iate que aparece na correspondência com Isabel, que

lemos como uma espécie de Pasárgada.

Já falei muito de mim. E de v. é que devia falar. V. me saiu uma

valentonazinha, e eu desejava bem conversar outra vez dos meus iates com

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V. – vendo-a com suas calças de Churchill e seu cachimbo de almirante,

para lhe assegurar que o mundo não presta, está torto, complicado,

embrulhado, sujo, feio, triste, horroroso, mas a vida está certa, certíssima,

absolutamente certa. É a perfeição do errado, si v. quiser. Mas que

maravilha! (carta 1, 4 de julho de 1941).

Conte-me coisas. Todas as minhas conversas, como já sabe, são a grande

distância. Tudo diluído... com os amigos que trato – todos, estimo, sempre

vivem afastados – tenho já a impressão de viver fora do mundo, em espírito,

apenas. Se isso se pudesse conseguir depois da morte, essa união afectuosa e

inteligente com os que amamos, desde já convidava aquele grupo que

sonhei levar no iate, ao redor do mundo, para um suicídio coletivo, elegante

e sutil. (carta 6, de 5 de novembro de 1946).

Há uma preocupação da memória como preservação de um modo consciente da

vida, de valor à vida, a construção de um sujeito histórico, como mostra a epígrafe de

Garcia Marquez: “La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la

recuerda para contarla”. E temos mais uma vez a autobiografia em sua relação com a

produção de imaginação, no lugar da ambivalência da ficção.

Estamos então diante de escritores interessados na elaboração artística desde as

perspectivas da vida vivida, da memória e da história, dentro do âmbito da estética.

Lembremos da convergência entre estética e história presente na escrita autobiográfica e

que poderíamos relacionar, no caso de Cecília Meireles, aos seus textos epistolares e

poéticos.

Outra perspectiva poética das cartas de Cecília surge no trabalho que a poeta

empreende com a faculdade da memória. A correspondência com Isabel é um exemplo,

pela exposição do percurso de construção de o Romanceiro da Inconfidência, numa

escrita vacilante, fragmentária. Dessa forma, a escrita epistolar de Cecília possibilita um

tipo de leitura passível de atualização, em que o leitor atua de forma ativa configurando

a cada nova leitura outras possíveis interpretações. E já que falamos da dimensão

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poética das cartas, poderíamos pensar, no caso de o Romanceiro, numa dimensão

histórica da poesia. Contudo, mesmo nesse caso, em que está nítida a preocupação da

autora de trazer à tona um fato histórico, ainda assim o trabalho com a faculdade da

memória não significou apenas a preservação da informação do passado. Pois que a

dinâmica da memória está justamente na forma como ela apresenta esse fato histórico:

“A forma-poema é memória profética, o que significa que nunca se limita à descrição e

interpretação do passado, mas o constitui no próprio gesto que inventa o futuro” (Lopes,

2003, p.69).

As cartas e os poemas poderiam então ser pensados como escritas

autobiográficas, que partem de eventos da realidade, mas que mantêm a ambivalência

da ficção. Sobretudo no caso dos poemas. Nas cartas, a ambivalência se apresenta na

encenação que o autor faz de si e na dupla autoria com que se depara o leitor. Nos textos

das correspondências estão sempre presentes os fantasmas de seus receptores, o que

coloca o leitor em um lugar indireto e de intensa atividade imaginativa, pela presença do

fantasma do destinatário com quem o leitor acaba por criar uma relação de empatia, que

o leva a pensar constantemente em como aquele texto será por ele recebido. Por um

lado, esse lugar indireto do leitor das cartas, em sua confortável posição de voyeur

sugere uma maior passividade em relação ao leitor dos poemas. Por outro, a atividade

da leitura nas cartas é também uma intensa atividade da imaginação, justamente por este

lugar diferenciado no qual o leitor se depara com uma gama de camadas de reflexão. E

pela interseção das subjetividades ali expostas, a leitura das cartas provoca também no

leitor a autorreflexão e ainda a possibilidade dele construir seu próprio retrato.

Um retrato é uma descrição “dos traços, do caráter de uma pessoa ou de tudo

que se relaciona com o homem”, e, também segundo o Houaiss, o “ato de retratar”.

Nesta segunda acepção, raramente usada, temos a analogia com o adjetivo retraído, e a

palavra ganha o sentido de corrigir, emendar, desculpar-se, desfazer.

Autorretrato é um “retrato feito por um indivíduo de si mesmo” e que pode

surgir “sob a forma de desenho, pintura, gravura, ou de uma descrição escrita ou oral”

(Houaiss). Os retratos que Cecília fez de si estão expressos em muitos poemas que

apresentam este tema, assim como seus “desenhos” em forma de poemas ou em suas

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expressões nas artes plásticas, como as aquarelas de Batuque, samba, macumba, onde as

baianas são longilíneas e com traços que lembram as feições da própria autora. Além

dessa apresentação mais nítida dos autorretratos de Cecília, podemos ler nas cartas uma

construção autobiográfica onde se articula também a construção crítica de sua obra

poética.

2. Busca de si e encontro com o outro

Vejamos o poema “Retrato”, de Viagem:

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo,

assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

– Em que espelho ficou perdida a minha face?

Todas as estrofes começam do mesmo modo: “Eu não...” O que nos faz pensar

em uma construção pelo avesso, como se estivéssemos do outro lado do espelho.

Potencialmente reflexivo, em todos os aspectos, desde a alusão ao espelho, ao sentido

filosófico, existencialista, expresso na indagação final “– Em que espelho ficou perdida

a minha face?”, e na consciência do efêmero e da impossibilidade humana de apreensão

do tempo (“Eu não dei por esta mudança”), podemos dizer que o poema é um retrato

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construído pelo leitor. A hipótese é possível se a analisarmos em relação ao pensamento

de Iser sobre o papel da negação no texto:

A negação produz um lugar vazio dinâmico no eixo paradigmático da leitura

(...) é um impulso decisivo para os atos de representação do leitor,

estimulando-o a constituir o tema não formulado e não dado da negação

enquanto objeto imaginário (Iser, 1999, p. 171-2).

A construção de um retrato, ou de um autorretrato, a partir da ausência, da falta,

é o que apresenta Cecília em seu poema, e, ao mesmo tempo em que constrói seu

autorretrato, possibilita ao leitor que ele construa também o seu próprio, pelo modo

como articula sua desfiguração. Pensemos também no leitor das cartas e na construção

de seu autorretrato proporcionada pelo entrelaçamento de subjetividades presente nas

cartas – autor – destinatário – leitor.

Como vimos anteriormente, a empatia do leitor das cartas com o destinatário e o

movimento de imaginação que a ausência, o fantasma deste produz, também provocam

a produção de uma autorreflexão por parte do leitor.

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Arpad Szènes

“Auto-retrato”, de Mar absoluto (1945) é uma descrição escrita de si construída

com a espessura própria da linguagem poética, e que, por isso, concentra em seus versos

horizontes infinitos de leitura.

Se me contemplo,

tantas me vejo,

que não entendo

quem sou, no tempo

do pensamento.

Vou desprendendo

elos que tenho,

alças, enredos...

E é tudo imenso...

Formas, desenho

que tive, e esqueço!

Falas, desejo

e movimento

– a que tremendo,

vago, segredo

ides, sem medo?!

Sombras conheço:

não lhes ordeno.

Como precedo

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189

meu sonho inteiro,

e após me perco,

sem mais governo?!

Nem me lamento

nem esmoreço:

no meu silêncio

há esforço e gênio

e suave exemplo

de mais silêncio.

Não permaneço.

Cada momento

é meu e alheio.

Meu sangue deixo,

breve e surpreso,

em cada veio

semeado e isento.

Meu campo, afeito

à mão do vento,

é alto e sereno:

AMOR. DESPREZO.

Assim compreendo

o meu perfeito acabamento.

Múltipla, venço

este tormento

do mundo eterno

que em mim carrego:

e, una, contemplo

o jogo inquieto

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190

em que padeço.

E recupero

o meu alento

e assim vou sendo.

Ah, como dentro

de um prisioneiro

há espaço e jeito

para esse apego

a um deus supremo,

e o acerbo intento

do seu concerto

com a morte, o erro...

(Voltas do tempo

– sabido e aceito –

do seu desterro...)

Nos primeiros dois versos lemos a subjetividade fraturada da modernidade: “Se

me contemplo, / tantas me vejo”. Para Costa Lima, essa fratura não é sinônimo de

fragilidade, mas sim de “uma imensa plasticidade, indispensável para responder a

tamanha variedade de experiências no mundo” (2000, p. 171). Lemos no poema uma

escrita de si, construída pelas idas e vindas, pelos tropeços de quem busca se retirar,

desfazer, corrigir, emendar, desculpar-se – retratar-se, “Vou desprendendo/ elos que

tenho, (...)”.

A poeta começa a empreender sua escavação de si a partir do movimento de

desfiguração, “vou desprendendo elos”. A formação verbal condiz com a ideia de que o

trabalho é contínuo, pois o sujeito é múltiplo e inconstante. E o último verso desta

estrofe, “É tudo imenso”, remete à infinitude de variações possíveis na literatura. De

modo geral, o poema encena o que escapa à sua autora, como podemos ler mais

especificamente em “ – a que tremendo,/ vago, segredo/ ides, sem medo?!”.

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191

O desconhecido que a habita, está em consonância com um ponto chave da

teoria do efeito estético, de Wolfgang Iser, para quem a função antropológica da

literatura estaria justamente nessa possibilidade do sujeito experimentar a sua

inacessibilidade. Segundo Iser,

a literatura não elimina a relação entre disponível e indisponível, mas se

transforma em lugar no qual esta relação pode ser encenada. A

indisponibilidade encenada do ser humano se manifesta em uma abundância

de conflitos imprevisíveis, que pode tornar-se tangível mediante o conjunto

das variações do jogo. A peculiaridade desse jogo é a infinitude, porque a

encenação permite o paradoxo, de outro modo impossível, de experimentar

a própria inabilidade do ser humano em possuir a si mesmo (1996, p. 356).

O verso “E é tudo imenso” concentra essa particularidade da literatura como

espaço aberto para o devir, “da realização lúdica, daquela infinitude que faz esquecer o

fim” (Iser, 1996, p. 363). E apesar de ainda haver certa confusão no uso dos termos

“ficção” e “poesia” – em muitos casos há a distinção entre os dois – este poema é mais

uma confirmação da inoperância de se tomar poesia e ficção como termos distintos, seus

versos põem em ação o funcionamento da ficção: movimenta o lúdico e a sombra,

“Sombras conheço:/ não lhes ordeno”.

A tônica é a impermanência, o movimento contínuo, presente tanto nas

formações verbais, como vimos, quanto em versos explícitos: “Não permaneço.” Ao

mesmo tempo em que encena o desconhecido: “Meu campo afeito/ à mão do vento”, a

poeta conhece o jogo que elabora: “e, una, contemplo/ o jogo inquieto/ em que padeço”.

Trata-se da ativação da capacidade do imaginário específico do ficcional, que faz tornar

presente uma ausência.

Não há lamento, no “auto-retrato” de Cecília, há é o reconhecimento deste lugar

do escritor que tem o silêncio por circunstância de vivenciar a experiência mais

profunda, a impossibilidade:

Nem me lamento

nem esmoreço:

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192

no meu silêncio

há esforço e gênio

e suave exemplo

de mais silêncio

O autorretrato traz a marca da autorreflexão, por isso podemos pensá-lo em

conexão com a autobiografia. Maria Teresa Bastos o apresenta como reflexo, “como

primeiro instante em que nos vemos, como se estivéssemos diante do espelho” (Bastos,

2007), e Francis Borzello (1998) ressalta que este reflexo nada tem de inocente. Na

opinião dela, essas obras constituem a linguagem usada pelo artista para tomar

posição60

. Diria que “este tomar posição” é tanto mais potente se estiver ligado ao

investimento na construção de uma subjetividade apta a enfrentar o embate com a

criação ficcional, do que com uma conotação política que tenha a ver com a ideia de

salvar o mundo.

A ficção traz a impossibilidade, a inacessibilidade de apreensão de si, por isso, a

criação de uma alteridade imaginária é tomada como condição de salvar a si. Trata-se de

uma atitude do escritor que, consciente dessa impossibilidade e da necessidade de

manter-se aberto para o devir, já não tem mais como pretensão salvar o mundo com sua

obra. A partilha que fará com sua comunidade é de outra ordem: está na experiência

com a linguagem.

É pela transformação que empreende de si, no exercício da escrita, que o escritor

dá sua contribuição ao espaço público; tendo a leitura e a escrita como práticas de

recolhimento necessário à construção subjetiva e, portanto, à criação da alteridade pela

qual a partilha de um ethos se torna possível.

Este é um dos caminhos apontados por Wolfgang Welsch para o recolhimento

de que carece a contemporaneidade (cf. Welsch, 1995). Tendo na linguagem o lugar de

troca, o autorretrato seria, portanto, a expressão deste recolhimento, um ajuste de contas

do artista consigo, uma abordagem de si em direção ao outro.

60

“Les autoportraits ne sont pas d’innocents reflets de l’image que le miroir renvoie aux artistes. Ces

oeuvres participent du langage utilisé par les artistes pour prendre position, depuis le simple ‘voici ce à

quoi se ressemble’ au plus complexe ‘voici ce à quoi je crois’” (Borzello, 1998, p. 17).

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193

A produção de autorretratos acompanha a história da arte desde que o gênero

retrato se afirma no século XIV, quando ganha destaque na arte europeia em diferentes

escolas e estilos. Uma particularidade dos retratos de si, em que o artista se vê e se deixa

ver, é que, de modo geral, o foco está colocado sobre o rosto e este, raramente, é

retratado em momento de relaxamento ou felicidade. Na maioria das vezes, a visão do

artista sobre si é sombria e angustiada61

.

Nesta apresentação de si para o outro, o que vemos do autorretrato, na

modernidade, é, portanto, a desfiguração e a encenação, como mostram os versos de

Cecília em “Auto-retrato”:

Vou desprendendo

elos que tenho,

alças, enredos...

E é tudo imenso...

Formas, desenho

que tive, e esqueço!

O que irá marcar a modernidade é a dissolução da concepção substancialista do

mundo e a existência de uma consciência individualizada (cf.: Costa Lima, 2000, p. 25).

O autorretrato poderia ser pensado então como o exercício no desenvolvimento da

subjetividade que admite esta consciência individualizada. O recolhimento que implica

o “voltar-se para si”, é o que constitui a subjetividade capaz de, pela linguagem,

movimentar o imaginário do outro.

A primeira pessoa misturada ao objeto, peculiar ao autorretrato, surge na

literatura com Montaigne, como o primeiro movimento formal de uma escrita de si. Os

Ensaios marcam o ponto zero na passagem para uma concepção moderna de sujeito62

:

61

Enciclopédia de Artes Visuais. Disponível em: www.itaucultural.com.br.

62 “Montaigne: um subversivo em profundidade”. Revista Educação Pública, 2006. Disponível em:

www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/filosofia/0012.html (acessado em agosto de 2009).

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194

um sujeito vão, inconstante e diverso, que representava um risco à fixidez daquele ideal

de mundo cujas instâncias eram a igreja e a nobreza. À deriva do ensaio trouxe a

Montaigne a experiência da heterogeneidade: “Decididamente, o homem é um assunto

espantosamente vão, variado e inconstante. Sobre ele, é difícil estabelecer uma

apreciação firme e uniforme” (Ensaios, 1580, vol. I, p. 9).

Mas é com Jean Jacques Rousseau e suas Confissões (1764-70) que a literatura

ocidental tem seu primeiro referente formal de uma escrita autobiográfica:

não há dúvida sobre seu imediato e largo propósito: o desvendamento do eu

pela sondagem de suas motivações, por mais remotas, ocultas ou

desagradáveis (...) Rousseau emprega uma espécie de causalidade psíquica:

para conhecer-se um homem além da maturidade, é preciso aprender-se a

vê-lo na infância. A infância começa a deixar de ser tomada como a idade

dourada da inocência, vestíbulo em que se interditam as sombras e

armadilhas do mundo adulto. Essa forma de causalidade será incorporada às

expectativas que acompanharão o gênero autobiográfico. (Costa Lima,

1986, p. 283-4)

O achado de Rousseau foi contudo a impossibilidade de seu projeto: o desejo de

tornar-se transparência. Esta impossibilidade é o “destino comum do indivíduo

moderno” (idem, p.295); à medida que constrói sua individualidade, está a todo

momento enfrentando o olhar sobre si e o olhar para o outro (cf. Pimentel, 2005, p. 23-

4).

Uma das maneiras deste exercício de olhar para si, e para o outro, é a escrita,

prática que não é exclusiva aos profissionais das letras, como mostra Michel Foucault

em “A escrita de si” (1983). Foucault defende que a palavra escrita interessa a todos que

desejam “cuidar da alma”, “atenuar os perigos da solidão”, “construir a memória

material de coisas lidas, ouvidas e pensadas”; enfim, exercitar o pensamento a partir do

sentido e encontrar-se face a face consigo e com o outro.

Voltado para o estudo sobre “as artes de si mesmo”, ou seja, “a estética da

existência e o domínio de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois primeiros

séculos do império”, Foucault observou a relação que os antigos como Plutarco, Sêneca

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195

e Epicteto mantinham com o exercício da escrita, analisando duas expressões frequentes

entre esses pensadores: a correspondência (“a carta é ao mesmo tempo um olhar que se

lança sobre o destinatário e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é

dito sobre si mesmo”) e o hupomnêmata (espécie de caderneta onde se anotava uma

coletânea de coisas lidas e ouvidas).

A caderneta dos antigos é citada por Foucault como meio de enganar a solidão,

já que “o fato de se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro” e a

carta é o meio pelo qual o olhar do outro elabora nossa alma. Ele lembra dois dos

princípios frequentemente evocados por Sêneca: “o de que é necessário adestrar-se

durante toda a vida e o de que sempre se precisa da ajuda do outro na elaboração da

alma sobre si mesma”.

Sêneca, que insistia na leitura como prática de si, defendeu ainda a escrita como

elemento que transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue”. Observamos

as cartas de Cecília como lugar dessa construção subjetiva, escape para a necessidade

de, com a ajuda do outro, elaborar sua própria alma e amadurecer sua linguagem

poética.

Há os que defendem que toda escrita é autobiográfica, como Paul De Man,

citado anteriormente, para quem a narrativa da própria experiência é também um

investimento na convergência entre Estética e História (De Man, 1989). Já Philippe

Lejeune, autor de Le Pacte Autobiographique (1975) e Je est un autre (1980) –

frequentemente mencionado quando o assunto é autobiografia –, pensa este tipo de

discurso como diferente da ficção, ligando-o a pactos referenciais, o que será rejeitado

por De Man, que vê nisto um modo de sustentar a noção de autoridade transcendente do

autor (cf.: Klinger, 2007, p. 44). De Man destaca a alegoria e a metáfora como próprios

da construção autobiográfica e relaciona esta a um movimento de desfiguração (1989).

Para Costa Lima, o estatuto da autobiografia como gênero “depende do destino

da individualidade. Assim, à medida que esse destino não é questionado, as definições

da autobiografia tendem a apresentá-la como um tipo dotado de incidência quase

infinita” (Costa Lima, 1986, p. 246). Esta oscilação é observada por Leonor Arfuch que

apresenta a autobiografia como um espaço figurativo sempre ambíguo, no que chamará

de oscilação entre mímesis e memória, “entre uma lógica representativa dos feitos e o

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196

fluxo de recordação, ainda que reconhecidamente arbitrário e distorcido”63

(Arfuch,

2002, p. 57).

Sobre autobiografia, o que nos interessa são três pensamentos: a) o caráter

ambíguo, a oscilação entre mímesis e memória; b) alegoria e metáfora como próprios da

construção autobiográfica e como esta se relaciona a um movimento de desfiguração; c)

a escrita de si como formação do sujeito.

Montaigne, no início do segundo volume dos Essais, escreve:

Todos nós somos retalhos (Nous sommes tous de lopins) e de uma

contextura tão informe e diversa que cada peça, cada momento cumpre seu

jogo. E encontra-se tanta diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós

e outrem (Montaigne, Michel de: 1580, II, 1, p. 324).

A citação é retomada por Luiz Costa Lima em Dispersa Demanda, no capítulo

“Representação social e mímesis”, com a qual ele conclui que: “Somos tantos mais unos

e tanto mais íntegros quanto menos conhecemos os papéis que representamos (Lima,

1981, p.221)”.

A partir dessas ideias, começamos a construir nossa reflexão sobre uma possível

“poética dos retalhos” presente nas produções artísticas que têm por tema o autorretrato.

Para escrever, investigamos nossa infância, vasculhamos nossas gavetas e armários,

portanto, o apreensível de nós, além do desconhecido – que a literatura é capaz de

encenar – são os fragmentos, memórias: os retalhos. Pelo processo do trabalho literário,

o poeta os recompõe, tecendo-os meticulosamente às lacunas, aos vazios: os rasgos.

Estas lacunas, o vazio tão comentado da teoria de Wolfgang Iser, por onde seria

possível circular a imaginação do leitor, poderiam ser pensadas também a partir do que

Didi-Huberman (2008) chamou “image-déchirure”, uma imagem-rasgada. Nesse

sentido, poderíamos associar a concepção de Paul De Man da autobiografia como “De-

facement”, para refletir sobre a relação entre recolhimento, memória, lacunas e o

63

“A autobiografía propone un espacio figurativo para la aprehensión de un yo siempre ambiguo – el

héroe autobiográfico como un “alter ego” –, este espacio se construye tradicionalmente – y más alla de la

diversidad estilística – en la oscilación entre mímesis y memória (de Mijolla, 1994) entre una lógica

representativa de los hechos y el flujo de la recordación, aun reconocidamente arbitrario y distorsivo.

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197

movimento de desfiguração, como devir a que o escritor necessita se lançar para

empreender sua obra. O autorretrato seria tão significativo nessa constituição justamente

por concentrar todas estas nuances.

Retratar a si é uma constante na obra de Cecília Meireles. São vários os poemas

que têm explicitamente este tema. Há versos conhecidos, como: “Eu não tinha este rosto

de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o

lábio amargo. (“Desenho”, Viagem); “Fui morena e magrinha como qualquer polinésia/

(...) Levai-me aonde quiserdes! – aprendi com as primaveras/ a deixar-me cortar e a

voltar sempre inteira. (“Desenho”, Mar absoluto).

Ambos os “Desenhos” apresentam descrições físicas que a poeta faz de si e o

movimento de desfiguração é nítido, uma tentativa de ser ver além do que mostra o

espelho, a reflexão nada ingênua de que falou Francis Borzello. Os dois poemas, em que

o exercício da autobiografia está latente, são elaborados por elos da memória da infância

e juventude da poeta. Costa Lima chama as memórias e autobiografias de “substitutos

dos espelhos” (1986, p. 244) Poderíamos considerar este um circuito-chave na poética

de Cecília Meireles: memória, autobiografia e espelho.

3. Palavra: entre a eternidade e o momento

Ler as cartas como literatura de si, uma busca do eu na, e pela, linguagem

poética, este é o caminho que seguimos nesta pesquisa. Há um livro de poemas de

Cecília, escrito na fase de maturidade da poeta, apenas oito anos antes de sua morte, que

é uma interessante mostra do que consideramos como uma teoria das correspondências

na obra da poeta. Em Canções (1956) estão conjugadas a busca de si, e a de um diálogo

poético com o leitor, visualidade (relação com as artes visuais) e musicalidade (efeito

lírico musical da poesia simbolista).

Aqui destacamos três poemas que apresentam esses aspectos tão preponderantes

na poética de Cecília e que parecem ter sido condensados nesta obra.

Há um nome que nos estremece,

como quando se corta a flor

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198

e a árvore se torce e padece.

Há um nome que alguém pronuncia

sem qualquer alegria ou dor,

e que, em nós, é dor e alegria.

Um nome que brilha e que passa,

que nos corta em puro esplendor,

que nos deixa em cinza e desgraça.

Nele se acaba a nossa vida,

porque é o nome total do amor

em forma obscura e dolorida.

Há um nome levado no vento.

Palavra. Pequeno rumor

entre a eternidade e o momento.

É uma ode à linguagem, à palavra. A busca de si é a revelação de que na palavra

está também uma forma de amor, “obscura e dolorida”. O poema sintetiza a discussão

que propusemos sobre o lugar que ocupa certo tipo de poesia, entre a eternidade e o

instante, “séjour” e “existance” (Rancière, 1996, p.28).

Outra “canção” deste livro apresenta a dimensão onírica, o simbolismo da água

como representação da proposta de uma poesia que conjugasse sensibilidade e intelecto

com a visualidade (“Vejo e sou meu olhar”).

Assim moro em meu sonho:

como um peixe no mar.

O que sou é o que vejo.

Vejo e sou meu olhar.

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199

Água é o meu próprio corpo,

simplesmente mais denso.

E meu corpo é minha alma,

e o que sinto é o que penso.

O cruzamento dessas correspondências (poesia, cartas e artes plásticas) na

literatura de Cecília Meireles nos faz pensar nas artes plásticas e nas cartas como

possibilidades de ampliar a expressão desse sujeito atravessado pela linguagem. Parece-

me que para o escritor a pintura e o exercício das cartas trazem outro sentido para o

erro, uma outra dinâmica, me parece ser um terreno onde é possível expandir o ‘jogo’, e

isso de algum modo se reflete na linguagem poética.

O “jogo” entre autor e leitor está no cerne da teorização de Paul de Man sobre a

autobiografia: “O momento especular inerente a todo ato de entendimento revela a

estrutura tropológica que subjaz a toda cognição, incluindo o conhecimento de si” (De

Man, 1989). À diferença de Lejeune, De Man não vê na autobiografia um pacto

contratual. Ele defende que a autobiografia não revela um conhecimento confiável de si,

pois seu interesse está “sim na demonstração de modo surpreendente, da

impossibilidade de fechamento e de totalização (isto é, da impossibilidade de chegar a

ser) de todos os sistemas textuais conformados por substituições tropológicas” (idem).

“Ciclo do sabiá”, que também integra Canções, é um poema que parece falar

exatamente sobre essa impossibilidade de chegar a ser de um sistema textual. A poeta

cria um jogo linguístico a partir de uma linguagem figurada, o sabiá: sabia, saber, quem

somos?

Por quantos remotos dias,

Sabiá,

nossos vagos descendentes

repetirão este jogo

com suas alegorias?

Sabiá,

de que servem tais sinais?

Que anúncios clarividentes

podem ter vozes mortais?

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200

(...)

E tu, quem foste, quem eras,

Sabiá,

que não se explica também?

- Que somos, além dos ossos

e dos terrenos destroços,

e imaginárias quimeras,

Sabiá,

quem somos? quem?

Como nos poemas, as cartas também vão estabelecer um solo precário, porque

precária são as palavras. Talvez no diálogo, com o outro, e com as outras artes, esse solo

se torne mais fértil, possamos ampliar nosso repertório, de questões.

Nas cartas, mesmo o leitor estando em outro lugar, diferente dos poemas, ele

permanece mergulhado na ambivalência de uma certa dimensão ficcional, é também

parte do jogo: o ato de escrevê-las parte da necessidade de se lançar ao outro, ou de

alcançá-lo? Essa dúvida intrínseca contida na série de perguntas que Cecília escreve ao

amigo (ou a si mesma?), nos sugere um outro ponto de encontro entre cartas e poemas.

Essas questões de Cecília nos mostram que em suas cartas ela utilizava recursos

próprios do poético, e especialmente de sua poesia, altamente reflexiva, a finalidade não

seria nem o alvo, nem o caminho, seria o próprio exercício da linguagem, na busca por

afeto e imortalidade.

Considerações finais

Tomamos as cartas escritas por Cecília Meireles como parte fundamental em sua

atividade de escritora. Além de se tratar de matéria de reflexão para a problemática da

construção ficcional e de suas relações com a autobiografia – por seu caráter lacunar e

fragmentário e de índice de afastamento físico – as correspondências estão em afinidade

com dimensões fundamentais da vida e da obra de Cecília Meireles: distância e

ausência.

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201

O poema “Ausência”, de Retrato natural (1949), por exemplo, condensa essas

duas dimensões:

Tão certa é a minha vida

que em cego mar escuro

encontro o que procuro

e não me atrevo a nada.

De esplendores ferida,

fecho os olhos. Que ausente

quero ser. Tão distante

que eu mesma não me veja

– à morte indiferente,

para qualquer instante.

As correspondências com os amigos, os poetas Maria Vallupi, Mário de

Andrade, Gabriela Mistral e Alfonso Reyes e a jornalista Isabel do Prado, nos mostram

faces da escrita de Cecília Meireles desde as quais podemos refletir sobre sua poesia e

ainda na possibilidade de uma construção autobiográfica a partir do discurso epistolar.

Partindo da ideia de que a produção da poeta é excêntrica a de seus contemporâneos

modernistas, vimos a concepção de modernidade à qual Cecília está vinculada, em suas

conexões com a tradição, os laços com o simbolismo e com o modernismo hispano-

americano.

As cartas aqui apresentadas mostram a interculturalidade presente na poética

ceciliana, em como esses diálogos contribuíram para a construção de sua obra, e a

importância das redes de amizades entre intelectuais na preservação da memória e na

constituição cultural de uma sociedade.

Na correspondência com Alfonso Reyes, vimos os laços entre Cecília Meireles e

o México e o grupo de poetas que tinham na linguagem o lugar de encontro e na

educação o ponto chave para as mudanças sociais que reivindicavam para a América

Latina.

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202

As cartas à amiga Isabel do Prado revelam um diário de criação do Romanceiro

da Inconfidência e nos fazem pensar em autorretratos epistolográficos da poeta, e na

profunda ligação de sua poesia com as artes plásticas.

Uma das hipóteses apresentadas é a de que o sentido espiritual na poesia de

Cecília tem a ver com o reordenamento entre instante e eternidade. Desse modo, o

simbolismo na poética ceciliana remete mais a uma comunhão com a humanidade do

que a uma referência a um mundo outro. O que nos levou a pensar numa possível teoria

das correspondências, onde cartas, poemas, desenhos, retratos estariam relacionados na

construção de uma busca de si, empreendida desde e pelo intercâmbio entre as

linguagens verbal e plástica.

A relação entre cartas, poemas, retratos nos remete a uma dimensão

autobiográfica que problematiza a subjetividade a partir da construção ficcional. A soma

dessas relações aos diálogos e afetos entre os correspondentes, e ao aspecto intercultural

na poética ceciliana, nos apresentam a potência do discurso ficcional, e a poesia como

um lugar de construção de sensibilidades, de conhecimento.

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