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19 Vozes femininas na novíssima narrativa brasileira Regina Dalcastagnè Professora de Literatura Brasileura / UnB Num ensaio clássico, escrito em 1929, a romancista inglesa Virginia Woolf afirmava que, para fazer literatura, a mulher antes “precisa ter dinheiro e um teto todo seu” 1 . Ela buscava sinalizar a conexão entre o trabalho artístico e as condições sociais e materiais – cidadãs de segunda categoria, limitadas aos afazeres domésticos, dificilmente possuiriam competência ou respeitabilidade para ingressar no campo literário. Mais de 70 anos depois, a situação das mulheres mudou (embora talvez não tanto quanto Woolf, ou nós, gostaríamos). As novas escritoras, e elas são muitas, ainda lutam por um teto seu. Mas se debatem também com os problemas do escrever ficção no feminino: como ser universal sem ignorar as diferenças nas experiências de gênero, como se relacionar com tradições literárias que foram, quase por inteiro, estabelecidas por autores do sexo masculino? No Brasil, hoje, é possível acompanhar o surgimento de uma nova geração de escritoras. Mulheres, em geral na faixa dos trinta, que estrearam em livro nos últimos anos e que tentam, cada uma a seu modo, dar sua resposta, ou ao menos acrescentar outras perguntas, a esses dilemas. Não é tarefa fácil, mas tampouco se espera alguma solução rápida. O que quer que venha a constituir a “escrita feminina” será algo conquistado ao longo do próprio processo de busca. Por isso mesmo, as obras dessas jovens autoras merecem um olhar mais atento de quem

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    Vozes femininasna novssima narrativa brasileira

    Regina DalcastagnProfessora de Literatura Brasileura / UnB

    Num ensaio clssico, escrito em 1929, a romancista inglesaVirginia Woolf afirmava que, para fazer literatura, a mulher antesprecisa ter dinheiro e um teto todo seu1 . Ela buscava sinalizar aconexo entre o trabalho artstico e as condies sociais e materiais cidads de segunda categoria, limitadas aos afazeres domsticos,dificilmente possuiriam competncia ou respeitabilidade para ingressarno campo literrio. Mais de 70 anos depois, a situao das mulheresmudou (embora talvez no tanto quanto Woolf, ou ns, gostaramos).As novas escritoras, e elas so muitas, ainda lutam por um teto seu.Mas se debatem tambm com os problemas do escrever fico nofeminino: como ser universal sem ignorar as diferenas nas experinciasde gnero, como se relacionar com tradies literrias que foram, quasepor inteiro, estabelecidas por autores do sexo masculino?

    No Brasil, hoje, possvel acompanhar o surgimento de uma novagerao de escritoras. Mulheres, em geral na faixa dos trinta, queestrearam em livro nos ltimos anos e que tentam, cada uma a seu modo,dar sua resposta, ou ao menos acrescentar outras perguntas, a essesdilemas. No tarefa fcil, mas tampouco se espera alguma soluorpida. O que quer que venha a constituir a escrita feminina ser algoconquistado ao longo do prprio processo de busca. Por isso mesmo, asobras dessas jovens autoras merecem um olhar mais atento de quem

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    passa correndo pelas estantes de lanamentos das livrarias.H as que investem numa vertente mais convencionalmente ligada

    s mulheres: a de um intimismo que procura desvelar os espaos midosda existncia. Aqueles sentimentos para os quais no se tem nome, nemrazes, mas que invadem uma tarde nublada ou a noite vazia. o casode Plita Gonalves, 36 anos, com os contos de Prolas no decote, seuprimeiro livro. So narrativas curtas, com personagens sem contornos,mas que adquirem alguma substncia a partir da concretude de seu medodo abandono, da solido. As linhas sucintas e sbrias de Gonalvesremetem o leitor para alm do texto, todo ele perpassado por umadorzinha fina, que se comunica com a nossa em sua inexplicabilidade.

    As histrias de Prolas no decote no se estendem por mais detrs ou quatro pginas. A rigor, muitas vezes no so nem histrias so flashes, situaes, ambientes. E essa a principal deficincia daescritora. Em que pese seu domnio na construo de estados de alma ea habilidade no manejo da palavra, o leitor fica sentindo falta de tramasmais slidas. Como Plita Gonalves roteirista, imagina-se que estejaexperimentando outros recursos neste livro. O que faz aumentar aexpectativa para suas prximas obras.

    Tenso

    outra a proposta de Claudia Lage, 30 anos presumveis, quetambm estreou com um volume de contos, A pequena morte e outrasnaturezas. No lugar da delicadeza e da ateno s mincias, ela optapor arrojo e tenso. Suas narrativas so longas algumas do a impressode se estenderem demais e delas no se pode dizer que estejam ausentesas tramas. Nos seus melhores momentos, a autora consegue capturar oleitor e mant-lo alerta para os desdobramentos inusitados das histrias,como no conto em que uma velha senhora prepara cuidadosamente suasltimas horas de vida, ou no da jovem que viaja sozinha, conhecendo

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    gente e tentando no se envolver demais com aqueles que cruzam seucaminho. Em outros, porm, o inusitado perde sentido e nem mesmo oestilo depurado de Lage segura a trama.

    Tambm Heloisa Seixas que, aos 48 anos, pertence a umagerao anterior das outras autoras, mas s estreou em livro em 1995 optou pelo universo do mistrio, aqui combinado com um certoerotismo. Seu primeiro livro, Pente de Vnus, relanado depois comsete novos contos, impregnado de velhas histrias de terror, com direitoa clichs do tipo cemitrio noite e invases de baratas. Mesclado aisso, o cotidiano de mulheres assustadas ou cheias de dio. Apesar demuitssimo bem recebido pela crtica, merecendo o aval de escritorescomo Carlos Heitor Cony e Igncio de Loyola Brando, o volume notraz nada de muito original e resvala vez ou outra para o mau gosto,como na cena dos dois cadveres se amando sob as moscas ou o contoonde uma espcie de estuprador bem recebido pela vtima lhe deixa seuresultado, positivo, do exame de Aids. Seixas publicou depois doisromances, A porta e Dirio de Persfone, ambos sem muita repercusso.

    No extremo oposto esto os contos de Stella Florence, 33 anos,autora de Por que os homens no cortam as unhas dos ps? e Hojeacordei gorda. Em vez do inusitado e do misterioso, situaes bemplantadas no cotidiano. E, longe das delicadezas de estilo de PlitaGonalves, uma prosa pedestre, que tem mais parentesco com as crnicasde jornal e as reportagens das revistas femininas. Suas histrias adotamum tom auto-irnico na abordagem de um tema nico: relacionamentosamorosos (ou a busca por eles). Quase todas se dirigem a um pblicoexclusivamente feminino e apresentam uma moral bvia, do tipovalorize a si mesma, no se deixe manipular por um cafajeste, paraser depreendida de suas metforas e alegorias. Em suma, uma espciede literatura de auto-ajuda travestida de fico, seguindo o filo de obras

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    estrangeiras como o romance O dirio de Bridget Jones, de HelenFielding.

    Romances

    Entre as novas romancistas, a de maior sucesso Patrcia Melo,37 anos, que estreou com Acqua Toffana, em 1994, e desde entopublicou O matador, O elogio da mentira e, agora, Inferno. Seu espao a literatura policial, gnero que possui pouca tradio no Brasil masque, nos pases de lngua inglesa, conta com uma legio de autorasimportantes (Agatha Christie, Patricia Highsmith, P. D. James, RuthRendell, Patricia Cornwell). Sem o aprofundamento psicolgico ou asensibilidade na descrio do ambiente social que fazem com que, porvezes, o policial se aproxime da chamada literatura sria, os livros deMelo se colocam como entretenimento ligeiro, na linha dos romancesde Rubem Fonseca, de quem discpula.

    J Fernanda Young, 30 anos, que estreou com Vergonha dos ps epublicou outros trs livros depois, trafega pelo universo da literaturapop. Seu ltimo romance, As pessoas dos livros, traz a histria de umajovem autora em crise, profissional e amorosa. sua volta, publicitrios,designers, modelos e editores que passam o tempo bebendo e sedrogando um espao de futilidades e carncias, que Young ora revelade modo irnico, ora apenas descreve. O tom de contemporaneidade dolivro dado pelos palavres, pelos trechos de msica pop, pelas marcasde cigarro, computadores e jeans, alm dos malabarismos com o foconarrativo, que passa de uma personagem para outra sem preparar o leitorpara a mudana, gerando alguma confuso. um romance com nichorestrito, um tanto autocentrado, sem a preocupao com a construode uma narrativa que cative e incorpore o leitor.

    Ao contrrio de As idias todas, terceiro romance de GiselaCampos, 31 anos (estria em 1991), que resgata o prazer de se

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    acompanhar uma boa histria. O livro tambm se concentra numa mulherem crise. Em meio a uma separao conjugal, a protagonista e narradoratenta dar ordem ao caos que se tornou sua existncia, revendo o passadoque foi e o que poderia ter sido. Mas no fecha a perspectiva sobre si.Aos poucos vo penetrando em seu texto as outras personagens, quefazem dela a mulher que : o ex-marido, os pais, o irmo, o cachorro dafamlia, e, especialmente, a av, que semeia o livro com suas histriasdo tempo de Lampio momento alto do romance. A linguagemdespretensiosa e bem cuidada de Campos, junto de uma trama que cresceatravs de discretos acrscimos, garantem a ateno do leitor do comeoao fim da obra, ainda que a idealizao das relaes familiares e o finalmelodramtico possam desagradar aos mais exigentes.

    Corpo

    O resultado mais maduro, no entanto, foi alcanado por DanielaBeccaccia Versiani, 33 anos, em seu at agora nico livro, o romanceA matemtica da formiga. uma narrativa violenta e delicada,extremamente potica, que fala de dores e ausncias, incluindo, em meioa uma conturbada existncia feminina, a histria de seus homens e dasmulheres que a precederam. Por isso mesmo, muitas histrias vobrotando no texto: a do velho que no consegue pecar, a do homem quequase morre durante a guerra por causa de uma alcachofra, a da mulherestril que esfrega com dio os frteis musgos do banheiro, das tantasGabrielas, Vitrias, Esperanas e Eugnias que do vida ao livro, comseu burburinho, seus cheiros e vontades que ficaram pela metade.

    Talvez seja o texto mais feminino entre os comentados aqui. Noexatamente pela sua dico, muito prpria, mas pela inquestionvelpresena do corpo feminino transitando por entre prateleiras desupermercado, tanques e microondas. Um corpo que di por razesdiferentes e inexplicveis e que se debate em dvidas que so recentes

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    e que no so. A protagonista, aqui, jovem, urbana, liberada, e se vno tanque um dia quando a mquina-de-lavar quebra , igual a tantasmulheres que se curvaram sobre a roupa suja. o que desencadeia aconscincia de sua prpria linhagem, da experincia compartilhada edo que se perdeu pelo caminho: O tanque meu rio. Ouo vozes detias velhas, entoando antigas canes que nem ao menos pude esquecerporque jamais aprendi2 . Com isso, Versiani atualiza alguns conflitosfemininos, que hoje no se limitam ao surrado dilema de ter uma carreirae cuidar dos filhos (temtica to presente em autoras de geraesanteriores, como Helena Parente Cunha e Lya Luft, por exemplo).

    Temas e ausncias

    Essas so algumas das jovens autoras que esto escrevendo sobremulheres no Brasil de hoje. claro que o espectro no to amploquanto pode parecer primeira vista. No h entre elas nenhuma CarolinaMaria de Jesus domstica e favelada que se tornou conhecida nosanos 60 pelos seus dirios, editados no belo Quarto de despejo e,tampouco, essas escritoras se arriscam a construir personagens que fujamdo universo da classe mdia, com o qual elas esto familiarizadas.Portanto, no d para confundir os conflitos e constrangimentos queafligem uma camada especfica e minoritria da sociedade brasileiracom a representao da situao como um todo. O que no diminui aimportncia desse tipo de mapeamento, que acaba sendo revelador,inclusive, dos preconceitos mais arraigados contra mulheres que semantm entre elas prprias.

    A se crer na maior parte dessas narrativas Versiani a principalexceo , a grande, quase exclusiva, preocupao feminina hoje conquistar um homem e mant-lo bem preso ao seu lado. Obviamentealgumas coisas mudaram: a mulher escolhe, desdenha, descartaparceiros, mas ainda teria o sexo masculino como centro de seu universo.

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    Das que fazem despacho em cemitrios para garantir a fidelidade docompanheiro, como em Heloisa Seixas, s que se suicidam aps seremabandonadas, como em Fernanda Young, passamos por dzias defrustradas, melanclicas e at uma histrica, dessas que passam ainfernizar a vida do ex-marido com telefonemas angustiados no meioda madrugada (em Gisela Campos). Toda obra literria se constri apartir de um recorte da realidade. Por que mulheres jovens esto optandoexatamente por este uma boa pergunta.

    curioso observar, ainda, uma grande ausncia entre esses textos:Clarice Lispector. Deliberadamente ou no, as novas autoras parecemevitar a proximidade com o estilo da mais cannica de nossas escritoras,que se tornou uma espcie de paradigma da escrita feminina, fugindode uma influncia que seria asfixiante. mais perceptvel a presena deLygia Fagundes Telles, tanto nos temas quanto na forma, no que talvezseja o reconhecimento implcito de sua posio como a mais importanteprosadora brasileira viva. Como se v, a literatura brasileira escrita pormulheres j possui suas prprias tradies, a serem seguidas, negadasou reinventadas.

    Quando se fala de escritoras jovens, com toda uma obra ainda aser construda, no possvel determinar quem vai ficar, firmar umareputao literria, e quem vai passar fugazmente pelas letras para logodesaparecer ainda que algumas apostas sejam feitas. Independentedisso, so livros que merecem ateno, quando menos por recortaremum pouco das preocupaes e do imaginrio das mulheres brasileirasdesta virada de sculo.

    Notas1 Woolf, A room of ones own, p. 6.2 Versiani, A matemtica da formiga, p. 47.

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    BibliografiaObras de jovens narradoras brasileiras

    CAMPOS, Gisela As idias todas. Rio de Janeiro: Record, 2000.

    FLORENCE, Stella Por que os homens no cortam as unhas dos ps?. Rio de Janeiro:Rocco, 2000.

    GONALVES, Plita Prolas no decote. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

    LAGE, Claudia A pequena morte e outras naturezas. Rio de Janeiro: Record, 2000.

    MELO, Patrcia Inferno. S. Paulo: Companhia das Letras, 2000.

    SEIXAS, Heloisa Pente de vnus e novas histrias do amor assombrado. Rio deJaneiro: Record, 2000.

    VERSIANI, Daniela Beccaccia A matemtica da formiga. Rio de Janeiro: Sette Letras,1999.

    YOUNG, Fernanda As pessoas dos livros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

    Outras

    JESUS, Carolina Maria de Quarto de despejo. 10a ed. Rio de Janeiro: FranciscoAlves, 1983.

    WOOLF, Virgina A room of ones own. Reed. London: Penguin, 1945.

    Regina Dalcastagn - Vozes femininas na novssima narrativa brasileira.Estudos de Literatura Brasileira Contempornea, no 11. Braslia, janeiro/fevereiro de 2001, pp. 19-26.