Dialetica Negativa Da Negação Determinada
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A DIALTICA NEGATIVA DA NEGAO DETERMINADA.
ALGUMAS IMPLICAES ESTTICAS NA TEORIA CRTICA DA SOCIEDADE DE
THEODOR W. ADORNO1
Roger Behrens
A dialtica negativa como negao determinada no um trao aparente na teoria crtica de Theodor W.
Adorno, mas forma a arquitetura de sua filosofia. No que se segue, eu gostaria de mostrar em que
sentido o projeto adorniano de uma dialtica negativa no apenas d contorno a diferentes aspectos de
seu pensamento, mas pe esses mesmos aspectos em constelao, como anti-sistema. Sobretudo, deve
ser demonstrado que embora a teoria crtica de Adorno seja moldada, desde sempre, segundo uma
dimenso esttica, as implicaes estticas de sua teoria s se deixam compreender como aguamento de
uma crtica dialtica da sociedade contempornea e suas condies.
A toalha de mesa
O pster deste congresso nos mostra uma ilustrao de Marta Neves cest quil y a un jeu dans les
mots: nela reconhecemos algo que se assemelha a uma toalha de mesa em que, ao centro, sobre fundo
azul, desponta um buqu de rosas; esse, por sua vez, est rodeado por pimentas inteiras que esto como
que deitadas sobre a toalha de mesa, a cobrir a superfcie que resta, servindo-lhe de moldura. As rosas,
dispostas no centro da composio, parecem ter sido descobertas. Uma vez que, em princpio, a
ilustrao no parece ter algo a ver com Adorno, fiquei a ponderar como se poderia relacion-la com a
sua filosofia. O que se procura mediao e acho que a ilustrao de Neves deixa-se relacionar, ao
menos, com o processo de aguamento a que eu aludi acima: me vem memria a frase hic Rhodus, hic
salta aqui est a rosa, dance aqui, como Hegel a traduziu.2 A rosa flor da bela aparncia, emblema
de uma manifestao esttica que se v aqui rodeada pela teoria aguada, apimentada. Mas, como se
1 Die negative Dialektik der bestimmten Negation. Einige sthetische Implikationen in Theodor W. Adornos kritischerTheorie der Gesellschaft. Traduo de Eduardo Soares Neves Silva.2 O autor se refere a uma clebre passagem que, traduttore, traditore, acabou por fazer parte do anedotrio filosfico.Originalmente, a frase citada era hic Rhodus, hic saltus, traduo latina da epgrafe de uma fbula de Esopo, sobre umatleta falastro que, ao afirmar ter dado um salto formidvel em Rodes, ouve o desafio: aqui () Rodes, aqui (d o seu)salto. O que era a concluso de uma fbula, que afirmava que a ao vale mais que a palavra, se torna um provrbio pelasmos dos latinos e, pouco a pouco, um produtivo mal-entendido quando Hegel, ao procurar adaptar o provrbio lido emErasmo, apresenta a traduo aqui est a rosa, dance aqui. As aproximaes Rhodus/rhodon (Rodes/rosa) e saltus/salta(salto/salte!dance!) feitas por Hegel perdem o sentido quando Marx, ao retomar o provrbio, apresenta a frase latina hicRhodus, hic salta, resultado da composio das duas verses dadas por Hegel, e a traduz por aqui est a rosa, danceaqui, cristalizando essa forma ambgua e sua traduo errnea, uma vez que a frase apresentada por ele deveria se traduzirpor aqui Rodes, dance aqui. Seja como for, e por mais que se conteste o latim tanto de Hegel quanto de Marx, o fato que essa srie de tropeos se tornou mais um ponto de disputa entre hegelianos, marxistas e adversrios, tendo sidorecuperada posteriormente por pensadores das vrias tradies, como Rosa Luxemburg, Karl Popper, Isaiah Berlin e EricHobsbawm. A inteno do autor aqui justamente aludir ao inesperado potencial terico que se esconde em um engano. (N.do T.)
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sabe, as rosas tm espinhos. Por isso, Marta Neves acrescentou ainda ao buqu algumas flores de
camomila, uma planta que suaviza, ameniza, acalma (como contraste rosa excitante, impulsiva e
luminosa) sou tentado a interpretar essa composio como sendo a situao da arte na indstria
cultural. E assim se pode dizer: preciso sempre redescobrir a esttica; ela o fundamento sobre o qual
a teoria crtica em toda a sua agudeza se constitui... talvez a ilustrao de Neves possa ser compreendida
nesses termos, de modo que eu gostaria agora de discutir as dimenses da teoria crtica de Adorno, com
respeito s suas implicaes estticas.
ltima filosofia
A filosofia tem a tarefa de conhecer o que , diz Hegel. Para Adorno, em contrapartida, a filosofia tem a
tarefa de conhecer o que no mais, ou seja, de descobrir por que foram vedadas as possibilidades
segundo as quais seria possvel instituir uma vida melhor aqui e agora, respondendo por que a
humanidade, como se l no comeo da Dialtica do Esclarecimento, em vez de entrar em um estado
verdadeiramente humano, est se afundando em uma nova espcie de barbrie.3 Esse no apenas o
diagnstico fundamental da teoria crtica, mas simultaneamente sua fundamentao, o que significa que
fundamentao e crtica esto conciliadas como crtica imanente. Nela j est implicada a perspectiva
de transformao, por conseguinte, uma filosofia que no se contenta com a interpretao do mundo e se
concentra em sua possibilidade de emancipao. Esse o motivo central da teoria crtica, tal como
Horkheimer a desenvolveu, tendo como referncia seu fundador, Karl Marx. A teoria crtica acrescenta
ao programa de uma crtica da economia poltica, de modo antiprogramtico, elementos da teoria do
conhecimento kantiana, momentos da lgica e da filosofia da histria hegelianas, bem como aspectos da
doutrina psicanaltica freudiana acerca da dinmica do inconsciente. Como filosofia, a teoria crtica
persegue sistematicamente a questo que Kant legou com a quarta de suas perguntas fundamentais: o
que o homem? Adorno alude a uma antropologia negativa toda imagem do humano ideologia,
salvo a negativa, o que se l em Sobre a relao entre sociologia e psicologia.4 Somente uma
antropologia negativa seria capaz de dar contorno a uma possvel resposta. A resposta de Adorno parte
de uma intensificao crtica da pergunta, ela consiste na reviso das trs outras perguntas: o que posso
saber?, o que devo fazer?, o que posso esperar? Por reviso, se entende a reflexo que vai alm da
disciplina da filosofia e se torna sociologia, psicologia e esttica. Com respeito a isso, a teoria crtica,
programa de pesquisa do Instituto de Pesquisa Social, ultrapassa ainda a interdisciplinaridade: o que se
tenta, em vista da diviso de trabalho determinada tambm nas cincias, reconstruir a sistemtica da
3 Sempre que possvel, as citaes seguiro as tradues em portugus, acompanhadas da referncia ao texto original; emqualquer outro caso, a responsabilidade da traduo da citao cabe ao tradutor do artigo. No caso, Theodor W. Adorno eMax Horkheimer, Dialtica do Esclarecimento: fragmentos filosficos, Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p.11; Dialektik derAufklrung, in Theodor W. Adorno Gesammelte Schriften, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1997 (doravante AGS, seguido donmero do volume e da pgina), 3, p.11. (N. do T.)4 Adorno, Zum Verhltnis von Soziologie und Psychologie, AGS, 8, p.67.
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totalidade social como contexto geral de trabalho [Arbeitszusammenhang].5 Em todo caso, do mesmo
modo que seria falso, distorcido, reduzir a teoria crtica pessoa de Adorno, tambm falso tomar a
teoria crtica de Adorno em cada aspecto isolado. Em certa ocasio, em uma conferncia radiofnica,
Adorno se nomeou filsofo. O que ele visava ento era o sentido da ltima filosofia: consciente de que
a construo de um sistema sobretudo um hermtico no mais possvel, Adorno, no obstante,
reconhecia no poder abdicar da categoria sistemtica da totalidade. Com isso, h que se ressaltar,
especialmente, que a esttica, a filosofia da msica e a teoria da arte no podem ser atribudas obra
tardia de um pessimista filosfico ou encaradas como representantes de algo como uma segunda faceta
de sua carreira acadmica. Ao contrrio, elas pertencem a um esforo filosfico sistemtico, anlogo ao
da filosofia de Kant ou Hegel, porm sob condies que no permitem mais que um anti-sistema o que
faz com que sobretudo a esttica, em conseqncia, se torne um momento reflexivo do problema da
sistemtica filosfica. Logo, as questes sociolgicas ou psicolgicas e, antes de tudo, as dimenses da
esttica e da arte com as quais Adorno se ocupa no devem ser generalizadas como formao escolstica,
ao contrrio, elas devem ser encaradas em si mesmas como campos da inteno filosfica filosofia
como anti-sistema.
O que Adorno desdobra como anti-sistema em sua obra principal, Dialtica Negativa, no o metdico
manual de instrues da dialtica negativa, sua astcia filosfica ou coisa semelhante, mas o que
corresponde construo fundamental de uma teoria crtica sob as condies contemporneas, a
tentativa de realizar uma crtica social no capitalismo tardio. Esse anti-sistema se encontra do mesmo
modo, por exemplo, no Homem Unidimensional de Marcuse e tambm no esboo do Capital de Marx, o
que certamente teria que ser demonstrado em separado. O anti-sistema caracteriza, para todos os
efeitos, a obra de Adorno como um todo, e ele talvez tenha, como nenhum outro terico crtico, tornado
transparente essa necessidade da teoria filosfica.
Anti-sistema, dialtica negativa como teoria crtica
O anti-sistema indica como os momentos isolados da teoria crtica de Adorno se imbricam
dialeticamente e, mais precisamente, como se imbricam a partir do motivo da superao perdida da
filosofia, motivo em relao ao qual o sistema filosfico hegeliano desde sempre foi pensado. Assim, a
categoria de anti-sistema implica em imbricar os problemas filosficos da totalidade, da identidade e do
sujeito e objeto e as questes estticas acerca da mmesis, da autenticidade e do contedo de verdade,
bem como as anlises sociolgicas e psicolgicas das relaes entre sociedade e indivduo, consciente e
inconsciente.
5 Como muitos dos conceitos utilizados pelo autor j encontraram uma traduo cristalizada em portugus, sero mantidosentre colchetes apenas aqueles poucos termos utilizados no texto que ainda so objeto de controvrsia significativa entreestudiosos da obra de Adorno no Brasil. (N. do T.)
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A complexo do conceito na teoria crtica tambm deve ser entendida aqui como anti-sistemtica, ou
seja, como se todas as categorias positivas do filosofar sistemtico no pudessem ser determinadas que
no de modo negativo, o que afetaria, enfim, a construo do prprio filosofar sistemtico. O anti-
sistema a ltima filosofia aquela que, como sistema, se nega, emudece. O rascunho de uma dialtica
negativa corresponde no apenas metodicamente, mas estruturalmente totalidade negativa da
sociedade, lgica conceitual do no-idntico [Begriffslogik des Nichtidentischen] e, antes de tudo,
utopia negativa i.e. sem imagem e esttica negativa: a dialtica negativa da arte recobre e perpassa
todo o anti-sistema porque na arte a dialtica negativa do prprio anti-sistema tem expresso. Por um
lado, a arte a linguagem adequada da negao, a experincia por ela mediada negativamente negada e,
portanto, a arte , por assim dizer, a arma da crtica enquanto conhecimento; por outro lado, a totalidade
negativa se cristaliza na arte, o conhecimento negativo procede da negao da arte. E justamente essa
figura representa a dialtica do emudecimento [Dialektik des Verstummens].6 Ela pode ser tomada
exemplarmente no prprio anti-sistema, em claro contraste com as grandes filosofias sistemticas de
Kant e Hegel: Kant pergunta pelas condies de possibilidade do conhecimento, j para Adorno esto
em jogo as condies que impedem o conhecimento; Hegel descreve o caminho escarpado da
conscincia-de-si, enquanto Adorno procura descobrir porque esse caminho junto ao si conduz
menoridade. Acima de tudo, o anti-sistema implica na virada materialista do sistema idealista. O mundo
concebido pelo sistema hegeliano confirmou-se satanicamente somente hoje, cento e vinte e cinco anos
depois, como, literalmente, um sistema, qual seja, o de uma sociedade radicalmente socializada.7 Ao
mesmo tempo, o projeto contrrio do anti-sistema permanece historicamente mediado, e por isso
Adorno tambm se dedica na Dialtica Negativa ao ltimo sistema filosfico, a ontologia fundamental de
Heidegger. Para o anti-sistema de Adorno a anlise existencial de Heidegger constitui o plo
diametralmente oposto: enquanto Heidegger pergunta sobre o sentido do ser, a ateno de Adorno se
dirige primeiramente para trazer algum sentido ao mundo. Nesse ponto, Adorno cerca a ontologia de
Heidegger com os dois tabus da doutrina heideggeriana do ser a utopia e a dialtica: em face da
possibilidade concreta da utopia, a dialtica a ontologia do estado falso [falschen Zustandes]. Um
estado correto estaria livre da dialtica porque no seria sistema, tampouco contradio, ele afirma na
Dialtica Negativa. 8
O anti-sistema sistemtico medida que atravs do fragmento tenta se apoderar da totalidade, no de
modo arbitrrio, mas rigorosamente. A estrutura do anti-sistema a de uma mediao determinada:
anlises modelares [Modellanalysen] correlativas a um pensamento em constelaes. Por isso Adorno
pode por vezes formular de modo apodctico, sem dogma ou programa: teoria indispensavelmente
crtica,9 logo, teoria sempre teoria crtica. Como tambm pode afirmar: a relao da teoria crtica e da
6 Cf. Roger Behrens, Verstummen. ber Adorno, Laatzen, Wehrhahn, 2004.7 Adorno, Drei Studien zu Hegel, AGS, 5, p.273.8 Adorno, Negative Dialektik, AGS, 6, p.22.9 Adorno, Soziologie und empirische Forschung, AGS, 8, p.197.
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arte de afinidade eletiva, e teoria crtica teoria esttica. Ou formular: a teoria esttica uma teoria da
esttica e uma teoria estruturada segundo aspectos estticos. Ou ainda: arte prxis esttica, e teoria
crtica , enquanto crtica, tambm prxis. E assim por diante. Em Lio sobre a dialtica negativa,
Adorno afirma que de um modo geral pode-se dizer que, em tese, a dialtica negativa essencialmente o
mesmo que uma teoria crtica. Eu diria que ambos os termos, teoria crtica e dialtica negativa, significam
algo idntico.10 Adorno acrescenta: talvez, para ser exato quanto a uma diferena, teoria crtica
significa realmente apenas o lado subjetivo do pensamento, por conseguinte a teoria, enquanto dialtica
negativa indica no apenas esse momento, mas igualmente a realidade que por ela atingida.11
Quando na passagem citada Adorno fala da realidade, refere-se ao duplo carter do sistema, tese de que
sistema no apenas designa o pensamento filosfico, mas tambm o contexto estrutural da realidade
social. No obstante, esses dois conceitos de sistema ou mesmo realidades sistmicas [Systemrealitten]
esto conciliados: o anti-sistema da dialtica negativa resulta, por assim dizer, da dialtica negativa da
sociedade. O que o esforo filosfico-crtico de Adorno rene no complexo da lgica da identidade
aponta justamente para a anlise e crtica social da lgica da troca, entendida como prxis instrumental e
reificada [verdinglichte] do pensamento identificante e reificante:
O princpio da troca, a reduo do trabalho humano ao conceito universal abstrato do tempo
mdio de trabalho, protoparente do princpio de identificao. Esse princpio tem seu modelo
social na troca e ela no existiria sem ele; atravs dela os indivduos e desempenhos no-idnticos
se tornam comensurveis, idnticos. A ampliao do princpio constrange o mundo inteiro
identidade, totalidade.12
Totalidade, modelo, sociedade
A dialtica negativa como anti-sistema no implica em filosofar assistematicamente, ela aspira, na
verdade, a um sistema que no desemboca no hermetismo da identidade fechada em si mesma. Sua
categoria fundamental a da mediao que no pode mais contar com nenhuma imediatidade e
completude. Como filosofia, ela corresponde ao fragmento e ao modelo:
A submerso no particular, a dialtica imanente levada ao extremo, demanda como um de seus
momentos tambm a liberdade de sobressair ao objeto, privada pela pretenso de identidade.
Hegel teria repreendido tal liberdade: ele se fiava na completa mediao nos objetos. Na prxis do
conhecimento, na soluo do insolvel, vem luz o momento dessa transcendncia do
pensamento pelo fato de que ela, como atividade microlgica, dispe somente de meios
10 Adorno, Vorlesung ber Negative Dialektik, Nachgelassene Schriften, v.16, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 2003, p.36.11 Id., p.37.12 Adorno, Negative Dialektik, AGS, 6, p.149.
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macrolgicos. A exigncia de rigor sem sistema a exigncia de modelos de pensamento
[Denkmodellen]. Esses no so apenas do tipo monadolgico. O modelo encontra o especfico e
mais que o especfico, sem se evaporar em seu conceito superior mais genrico. Pensar
filosoficamente equivalente a pensar em modelos; a dialtica negativa um ensemble de anlises
modelares.13
Ao fim e ao cabo, os conceitos da teoria crtica de Adorno se igualam na anlise modelar. Tais conceitos,
tomados como modelos, no representam apenas o rigor sem sistema estruturado como anti-sistema,
mas so sobretudo a tentativa de, mediante a teoria crtica, apreender o todo do contexto sem que a
totalidade seja imediatamente acessvel. Dialtica negativa a mediao da totalidade, rememorao
[Eingedenken] do no-idntico.
A unidade resultante da mediao entre totalidade, sistema e fragmento determina tambm a sociedade
definida atravs da troca. A totalidade social no se sustenta essencialmente por via do imediato estar
junto, mas por via da relao abstrata da troca. Com efeito, tal relao abstrata permanece exterior s
relaes humanas: ela se sustenta na falsa imediatidade, na falsa concretude das relaes cotidianas, pelo
fato de que sua formao social a de produtos e consumidores, no de homens. Apenas por fora dessa
auto-referncia alienada que ns podemos produzir at mesmo a unidade que percebemos como
totalidade social compreensvel, a qual, de mais a mais, se constitui primeiramente de mecanismos de
separao, como antagonismos de classe, dominao e autocontrole. Trata-se de uma dialtica de
integrao e desintegrao que talvez possa vir a se agravar at o terror fascista, mas que pode tambm
ser amortecida atravs da auto-regulamentao democrtica dos sujeitos. Como mostra Adorno,
recuperando Marx, esse processo estrutura a sistemtica da sociedade burguesa que se manifesta
simultaneamente como dialtica radical:
os desequilbrios cada vez maiores que se formam nessa sociedade, nomeadamente, desde os de
ordem econmica at as despropores entre os setores isolados, so tais que, atravs deles, o
sistema como um todo deve ser atingido. Segundo essa teoria, [...] a lei do sistema implica seu
prprio naufrgio e no sua ratificao ou autoconservao. Em conseqncia, pode-se chamar o
sistema marxista de um sistema negativo ou crtico, uma teoria inteiramente crtica.14
Ou seja, no anti-sistema cristaliza-se a figura fundamental da filosofia de Adorno, segundo a qual o todo
o no-verdadeiro [das Unwahre]: o mundo na verdade um sistema, porm ele o sistema que
imposto aos homens, de modo heternomo, como algo estranho a eles; ele um sistema enquanto
13 Id., p.39.14 Adorno, Philosophische Terminologie, v.1, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1974, p.262.
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aparncia, nada tem a ver com a liberdade dos homens. Ele um sistema enquanto ideologia, e o todo,
que para Hegel deve ser a verdade, seria no interior da teoria marxista um no-verdadeiro.15
O nexo entre dialtica e totalidade foi desenvolvido por Georg Lukcs, nos anos 20, em Histria e
Conscincia de Classe: a categoria de totalidade, a dominao geral e determinante do todo sobre as
partes, constitui a essncia do mtodo que Marx recebeu de Hegel e que transformou, de modo original,
no fundamento de uma cincia inteiramente nova. [...] O domnio da categoria da totalidade o
portador [Trger] do princpio revolucionrio da cincia.16 Isso demanda considerar a categoria de
totalidade como histrica e, respectivamente, compreender a histria como totalidade real, concreta:
apenas neste contexto em que os fatos singulares da vida social integram uma totalidade,
como momentos do desenvolvimento histrico que um conhecimento dos fatos se torna
possvel enquanto conhecimento da realidade. [...] Essa totalidade concreta no de modo algum
dada imediatamente ao pensamento. [...] A real diferena das etapas do desenvolvimento
histrico se manifesta de modo bem menos claro e simples nas transformaes a que esto
sujeitos esses momentos parciais, singulares e isolados, do que nas transformaes que eles
sofrem em sua funo no processo geral da histria, na sua relao com o todo da sociedade. [...]
Essa considerao dialtica da totalidade [...] na verdade o nico mtodo capaz de reproduzir e
apreender a realidade em pensamento. A totalidade concreta , portanto, a prpria categoria da
realidade.17
Em sua conferncia acadmica inaugural sobre A atualidade da filosofia, de 1931 (a publicao, que
no se realizou, deveria ser dedicada a Benjamin), Adorno j havia destacado em que medida a totalidade
deve ser concebida como problema-chave de uma teoria crtica: quem hoje elege por ofcio o trabalho
filosfico deve renunciar, desde o incio, iluso pela qual os projetos filosficos antes iniciavam: a de
que seja possvel agarrar a totalidade do real por fora do pensamento.18 E exatamente no sentido de
seu projeto filosfico, Adorno liga essas palavras introdutrias concluso de sua palestra: a
produtividade do pensamento s capaz de se afirmar dialeticamente na concreo histrica. Ambas
[arte e filosofia RB] chegam comunicao nos modelos.19 Com a referncia aos modelos, Adorno
antecipa no apenas o motivo da Dialtica Negativa, mas, formalmente, o modelo lingstico do ensaio.
Neste sentido, no ensaio se repete o problema da totalidade porque ele
15 Id., p.262-263.16 Georg Lukcs, Geschichte und Klassenbewusstsein, Darmstadt, Luchterhand, 1976, p.94.17 Id., p.69-70.18 Adorno, Die Aktualitt der Philosophie, AGS, 1, p.325.19 Id., p.343.
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se transformou, de uma forma da grande filosofia, em uma forma menor da esttica, em cuja
aparncia ainda assim se refugia uma concreo da interpretao, da qual a filosofia propriamente
dita, nas grandes dimenses de seus problemas, j h muito no dispe. Se com a decadncia de
toda a certeza na grande filosofia a tentativa fez sua entrada, se com isso ela se vincula s
interpretaes limitadas, esboadas e nada simblicas, ento isso no me parece condenvel no
caso da escolha correta dos objetos: no caso deles serem verdadeiros. Pois o esprito no capaz
de produzir ou conceber a totalidade do real; mas ele capaz de penetrar no mnimo, de fazer
romper no mnimo as medidas do meramente existente.20
Muito mais tarde, na assim chamada Querela do Positivismo [Positivismusstreit], Adorno argumenta na
controvrsia com Popper: a totalidade no constitui uma categoria afirmativa, mas sim crtica. A crtica
dialtica se prope a ajudar a salvar ou restaurar o que no est de acordo com a totalidade, o que se lhe
ope ou o que, como potencial de uma individuao que ainda no , est em formao [...] A totalidade,
numa formulao provocativa, a sociedade como coisa em si, provida de toda carga de reificao.21
Adorno critica no positivismo o fato de que ele meramente subsume os estados de coisa isolados
[Einzelsachverhalte] no continuum lgico da totalidade, ao passo que na teoria dialtica o conceito de
totalidade pretende ser objetivo, isto , ser aplicvel a qualquer constatao social singular.22
Adorno explicita o que isso significa em uma outra conferncia dos anos 60, intitulada Introduo
sociologia:
seria uma abstrao m e idealista se, em nome da estrutura do todo, a possibilidade de melhoria
no quadro das relaes existentes fosse tratada como bagatela ou mesmo se [...] fosse acentuada
negativamente. Ali se encontraria um determinado conceito de totalidade que no se importa com
os interesses dos homens singulares, vivos aqui e agora, e que faz parte de uma espcie de
confiana abstrata no curso da histria mundial, confiana que eu, em todo caso, simplesmente
no sou capaz de depositar nessa figura.23
E continua:
eu gostaria ainda de acrescentar que exatamente por isso, a saber, porque a completude ou a
totalidade da sociedade no se conserva viva, de modo solidrio, a partir de um sujeito social
coletivo, mas apenas atravs dos interesses antagnicos dos homens por isso, nessa sociedade
20 Id., p.343-344. Cf. tambm: Adorno, Der Essay als Form, AGS, 11, p.9-33.21 Adorno, Introduo controvrsia sobre o positivismo na sociologia alem, Textos Escolhidos, So Paulo, Abril,1975, p.223 (traduo corrigida); Einleitung zum Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, AGS, 8, p.292.22 Id., p.225; p.294.23 Adorno, Einleitung in die Soziologie, Nachgelassene Schriften, v.16, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 2003, p.52.
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racional de troca, se chega a um momento de irracionalidade que constitutivo, a partir de seu
ponto radical, e que, na verdade, ameaa irromper a cada instante.24
Uma sociologia que se afirme teoria crtica, como Adorno chega a concluir mais frente na conferncia,
no deve perder de vista justamente a produo social e a reproduo da vida como um todo; se algo
uma relao social, ento isso precisamente essa totalidade.25
Linguagem, indstria cultural, metafsica
Na minha opinio, o motivo decisivo de Adorno est caracterizado assim: por via do projeto de uma
dialtica negativa como anti-sistema, uma ltima filosofia se v reconciliada com uma teoria crtica da
sociedade. Alm disso, esse exatamente o fundo em relao ao qual os demais aspectos da teoria crtica
de Adorno deixam-se dispor em constelao: a crtica da indstria cultural, por um lado, e a teoria
esttica do moderno, por outro, so precisamente dois lados do anti-sistema, so anlises modelares.
Adorno no apenas um dos poucos tericos do sculo vinte a se ocupar simultaneamente, de modo
refletido e crtico, com o fenmeno da cultura de massa e com as questes de uma esttica
contempornea e da situao da arte ele , em larga medida, o nico filsofo que concebeu tanto a
crtica da indstria cultural quanto a teoria esttica como elementos de uma filosofia aps Auschwitz, o
que eu tomo como determinante para o valor relativo do anti-sistema de uma ltima filosofia. Com isso,
a meu ver, de importncia secundria decidir se Adorno estava certo em sua crtica ao Jazz, em sua
compreenso da arte ou mesmo em sua avaliao da televiso; o decisivo aqui a premente indicao de
que uma cultura, como a que temos hoje, no pode ser isolada do contexto histrico e principalmente
no pode ser separada da calamidade [Unheil] histrica, que ao mesmo tempo seu produto e seu
resultado. Ora, tal anlise remonta ao conceito crtico de histria e sociedade. A sociedade burguesa
escreve sua prpria histria como histria dos vencedores e, como tal, permanece presa ao progresso: a
cultura se gera hoje por meio de uma mlange liberal e esclarecida de alta cultura e cultura pop
[Popkultur]26 e nela que a idia de um progresso contnuo encontra sua expresso, alis atravs de
meios que remontam e se consolidam no sculo dezenove, mesma poca em que a idia burguesa do
progresso passa a ser a representao da histria. O que se afirma com a cultura pop contempornea a
inveno de uma linguagem que capaz de lidar conscientemente com a histria. Aqui se encontra, a meu
ver, uma outra indicao decisiva da articulao dos momentos da teoria crtica de Adorno como anti-
sistema. Quando ele critica a indstria cultural, no se trata de uma condenao da estupidez das massas,
mas essencialmente de afirmar que a indstria cultural ou, hoje, a cultura pop priva as massas
24 Id., p.78.25 Id., p.237.26 A obra do autor est marcada pela tentativa de repensar a teoria crtica da indstria cultural luz das transformaesestruturais contemporneas. Em sua anlise, o conceito de cultura pop [Popkultur] tem uma funo importante e deve sercompreendido como marcadamente distinto do conceito tradicional de cultura popular [populre Kultur], seguindo, alis, aindicao de Adorno: a fim de excluir de antemo a interpretao que agrada aos advogados da coisa. (N. do T.)
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daquilo que ela ao mesmo tempo persiste em prometer. O veredicto da estupidez das massas dado
pela prpria indstria cultural: elas so muito modestas frente oportunidade de uma maior felicidade,
que continuamente prometida a elas. Na Dialtica do Esclarecimento se afirma logo no prefcio:
nas condies atuais, os prprios bens da fortuna convertem-se em elementos do infortnio.
[...] o progresso converte-se em regresso. O fato de que o espao higinico da fbrica e tudo o
que acompanha isso, o Volkswagen e o Palcio dos Esportes, levem a uma liquidao estpida da
metafsica, ainda seria indiferente, mas que eles prprios se tornem, no interior do todo social, a
metafsica, a cortina ideolgica atrs da qual se concentra a desgraa real no indiferente. Eis a
o ponto de partida de nossos fragmentos.27
Segundo me parece, essa crtica da ideologia como metafsica e a crtica da metafsica como ideologia na
concluso da Dialtica Negativa devem ser compreendidas como concatenadas, no sentido reivindicado
por Adorno como solidariedade com a metafsica no instante de sua queda.28 No se trata de uma
defesa conservadora da metafsica e nem mesmo de sua destruio, igualmente conservadora, mas da
necessidade metafsica do homem, ponto em que tocam igualmente a indstria cultural e a teoria crtica:
trata-se da tentativa de dar sentido vida, o que absolutamente no se tornou mais fcil aps as
experincias histricas do sculo vinte. Justamente em funo deste aspecto, alis, Adorno retorna ao
seu ponto de partida materialista: os interesses metafsicos do homem necessitariam da observao
integral de seus interesses materiais.29 O que j preordenado, como se disse acima, a pergunta pelo
homem.
No debate sobre a indstria cultural, tal discusso concentra-se na pergunta acerca de seus mecanismos
de funcionamento, acerca do que constitui o seu ntimo. A indstria cultural desemboca em publicidade
propaganda do mundo, como ele . Em seus primeiros textos, como O esquema da cultura de massa,
pensado como continuao do captulo sobre indstria cultural, Adorno desenvolve esse ponto: a
prpria publicidade absorvida na informao. Como em Jargo da Autenticidade, embora ali s se
refira filosofia e, por assim dizer, alta cultura, Adorno formula aqui uma crtica da linguagem em que
se trata da possibilidade do conhecimento, isto , de suas condies enquanto experincia histrica.
Conhecimento e experincia, no entanto, foram completamente separados. Isso acontece na cultura de
massa monopolista. Trs nveis deixam-se diferenar no desdobramento da dominao sobre a
necessidade: publicidade, informao, comando.30
27 Adorno e Horkheimer, Dialtica do Esclarecimento, p.15; Dialektik der Aufklrung, AGS, 3, p.15-16.28 Adorno, Negative Dialektik, AGS, 6, p.400.29 Id., p.391.30 Adorno, Das Schema der Massenkultur, AGS, 3, p.323-324.
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A linguagem, na verdade, a pedra fundamental do sistema filosfico e tambm do anti-sistema da
dialtica negativa (antes de tudo, naturalmente, em funo da questo acerca do conceito identificante).
Tambm sob este aspecto a concepo fundamental remete aos primeiros trabalhos de Adorno. Em suas
dez Teses sobre a linguagem dos filsofos, do incio dos anos trinta, ele escreve: a pretensa
compreensibilidade da linguagem filosfica deve ser hoje totalmente desvelada como logro. Ou ela
banal e estabelece ingenuamente, como dados e vlidos, termos que teriam na verdade relao
problemtica com o objeto; ou ela no-verdadeira medida que ela procura ocultar aquela
problemtica.31 Segundo me parece, isso demarca do mesmo modo o padro da informao na indstria
cultural, como Adorno o concebe. A informao, como jargo da autenticidade, absorve a imediatidade,
porm essa absoluta imediatidade no est mais disponvel. Para a linguagem da teoria crtica permanece
como material [...] a runa das palavras,32 posto que a linguagem filosfica hoje implica pensar
unicamente de modo dialtico.33 Aqui a filosofia j converge para a arte, embora, ao mesmo tempo,
para a crtica da reificao.
Adorno explicitou, primeiramente, esse aspecto do problema da linguagem filosfica ao se situar em
relao assero wittgensteiniana de que o homem deve calar-se sobre aquilo de que no pode falar.34
A razo da linguagem no poder ser fundamentada em alguma imediatidade no pode se reduzir ao fato
de que hoje ns tenhamos que lidar com um mundo complexo e incompreensvel, pelo contrrio, isso se
d porque a prpria linguagem foi avariada e entretanto no dispe mais sobre o conceito, com o qual
deveria dizer imediatamente o que se passa e porque. A filosofia hoje no mais mera interpretao de
um mundo progressivamente menos transparente, e sim ela se exprime na necessidade de deixar o
sofrimento [Leiden] vir a ser eloqente [beredt].35
Arte, prxis, teoria crtica como postura
J em sua Metacrtica da Teoria do Conhecimento, Adorno formulava:
essa salvao, rememorao do sofrimento que se sedimenta nos conceitos, aguarda pelo
instante de sua queda. Tal a idia da crtica filosfica. Ela no tem outra medida que a queda da
aparncia. Se j passada a era da interpretao do mundo e o que vale transform-lo, a
filosofia, ento, se despede e na despedida os conceitos se detm e se tornam imagens. Quisesse
a filosofia, como semntica cientfica, traduzir a linguagem em lgica, ento a ela ainda restaria,
31 Adorno, Thesen ber die Sprache des Philosophen, AGS, 1, p.368.32 Id., p.368.33 Id., p.369.34 Cf. Adorno, Negative Dialektik, AGS, 6, p.21; Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, So Paulo,Edusp, 1994, aforismo 7, p.280-281. (N. do T.)35 Adorno, Negative Dialektik, AGS, 6, p.29.
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como especulativa, levar a lgica a falar. No tempo da filosofia primeira, mas de uma
ltima.36
A ltima filosofia no apenas a nica que ainda possvel, ela tambm a restante, tardia ou atrasada:
ela alude, como utopia, ltima arte. Somente ela ainda concede algum conhecimento, a saber, nenhum
como o que uma prima philosophia produz, mas apenas aquele que aponta para alm do anti-sistema. O
ltimo aforismo da Minima Moralia alude a isso:
A filosofia, segundo a nica maneira pela qual ela ainda pode ser assumida responsavelmente
em face do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se
apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da redeno. O conhecimento no tem
outra luz alm daquela que, a partir da redeno, dirige seus raios sobre o mundo: tudo o mais se
exaure na reconstruo e permanece uma parte da tcnica. Seria produzir perspectivas nas quais
o mundo analogamente se desloque, se estranhe, revelando suas fissuras e fendas, tal como um
dia, indigente e deformado, aparecer na luz messinica.37
No sistema idealista, a religio ocupa a posio central; no anti-sistema de Adorno, ela vem de fora,
messinica, ou como na imagem benjaminiana do autmato que joga xadrez ela est dentro, mas
escondida.38 Que essa virada quase religiosa esteja sob o ttulo Para terminar decisivo para a
concepo da ltima filosofia. O que est em jogo tambm o fim de um perodo da era burguesa, que
culmina no terror. Assim como a ltima filosofia fala por imagens, esse conhecimento luz da redeno
tem a forma de uma percepo esttica: ele recorre ao carter de conhecimento da obra de arte, ao seu
teor de verdade [Wahrheitsgehalt].
Em uma nota de rodap da Filosofia da Nova Msica, encontra-se o programa esttico de Adorno de
modo concentrado:
Como instncia de conhecimento [erkennendes], porm, a obra de arte torna-se crtica e
fragmentria. O que hoje nas obras de arte tem uma chance de sobreviver, sobre isso esto de
acordo Schnberg e Picasso, Joyce e Kafka e mesmo Proust. E isso permite talvez de novo a
especulao histrico-filosfica. A obra de arte fechada a burguesa, a mecnica pertence ao
fascismo, a fragmentria indica, no estado da completa negatividade, a utopia.39
36 Adorno, Zur Metakritik der Erkenntnistheorie, AGS, 5, p.47.37 Adorno, Minima Moralia: reflexes a partir da vida danificada, So Paulo, tica, 1992, p.215-216; Minima Moralia,AGS, 4, p.283.38 Cf. Walter Benjamin, Sobre o conceito da histria, Obras Escolhidas, v.1, So Paulo, Brasiliense, 1993, p.222. (N.do T.)39 Adorno, Filosofia da Nova Msica, So Paulo, Perspectiva, 1989, p.101-102 (traduo corrigida); Philosophie der neuenMusik, AGS, 12, p.120.
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Logo, nessa virada, a esttica no s ponto de fuga, mas simultaneamente o horizonte da utopia. A
obra de arte fechada espelha-se na filosofia idealista do sistema fechado; a obra de arte fragmentria tem
afinidade eletiva com a dialtica do esclarecimento. Concluda ao lado de Horkheimer, em 1944, a
Dialtica do Esclarecimento trouxe primeiramente o ttulo Fragmentos Filosficos. No captulo sobre a
indstria cultural, Adorno e Horkheimer expem de modo concreto, atento dimenso sociolgica,
aquilo que antes havia sido preparado filosoficamente. O segmento sobre a indstria cultural ainda
mais fragmentrio do que os outros.40 A anlise desenvolvida nesse captulo no deve, portanto, ser
tomada hermeticamente: ela trata do mundo totalmente administrado, enquanto tenta, no sentido dado
pelo anti-sistema, se esquivar do ditame da administrao total. A abertura do anti-sistema, entretanto,
no nenhuma incompletude ou lacuna, mas a formalizao daquela liberdade, cuja possibilidade
Adorno ainda via na arte. A obra aberta passa a ser o sinal do anti-sistema. Quanto mais total a
sociedade, quanto mais integralmente ela se reduz a um sistema unvoco, tanto mais as obras, que
armazenam a experincia desse processo, se transformam no seu outro.41
determinante aqui reconhecer de que maneira a utopia negativa est mediada pelo elemento utpico na
dimenso esttica do anti-sistema. Esse passo explicita, finalmente, a dialtica negativa como negao
determinada [bestimmte Negation], a saber, de modo concreto: por um lado, nem as condies para uma
satisfao existencial de todos os homens esto dadas aqui e agora, nem a fundao do estado humano
poderia implicar em qualquer renncia substantiva; por outro lado, os homens concentram
energicamente uma grande parte de suas foras e bens de modo a fazer com que tudo permanea como
est e nada se modifique essencialmente. Na prpria teoria crtica, esses plos podem ser
compreendidos em anti-sistema apenas por fora de sua mediao refletida: a teoria esttica um
momento da teoria crtica da sociedade; a teoria crtica da sociedade se cristaliza na anlise da indstria
cultural. A arte que aponta para a teoria esttica e por ela tenta pr a descoberto seu carter de
conhecimento hoje tambm um momento da indstria cultural. Nem a arte nem a prpria teoria
crtica dispem de uma posio fora do sistema, porm permanece possvel para a prxis crtica romper
com o contexto de violncia do sistema, seja atravs da arte, seja atravs da teoria: por ora, na
reconstruo do anti-sistema permanece, enquanto plano, a possibilidade da prxis transformadora, que
no deveria se deixar dirigir por nenhuma presso dos fatos [Sachzwang], por nenhuma necessidade
poltica real [realpolitischen Notwendigkeit] ou pela urgncia da interveno social em uma situao de
crise. Porm, conforme afirma Adorno, a prxis, adiada por tempo indeterminado, no mais a
instncia de protesto contra a especulao auto-suficiente.42 Por ora, a prxis permanece sendo o
pensamento crtico, no menos: o objetivo de uma prxis justa seria sua prpria supresso [...] uma
40 Adorno e Horkheimer, Dialtica do Esclarecimento, p.16; Dialektik der Aufklrung, AGS, 3, p.17.41 Adorno, Teoria Esttica, Lisboa, Edies 70, s.d., p.44; sthetische Theorie, AGS, 7, p.53.42 Adorno, Negative Dialektik, AGS, 6, p.15.
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prxis oportuna seria unicamente a do esforo de operar a sada da barbrie.43 A nuance decisiva: se a
prxis, fundamentada terico-criticamente, fosse vedada, ento seria ao mesmo tempo cinismo e escrnio
recolher-se posio terica, recusar a prxis onde a urgncia da situao a requer. O anti-sistema no
capaz de alterar isso, porm, ele condio radical para que no se d uma submisso cega e irrefletida
presso dos fatos em uma capitulao terica ou prtica. Esse o sentido da teoria crtica como postura
[Haltung]. Nesse ponto, ela se refere fantasia esttica da prxis concreta: como negao determinada
do estado falso.
Roger Behrens professor associado na Bauhaus-Universitt Weimar e docente na Universitt Hamburg
e na Universitt Lneburg. Suas ltimas publicaes so Verstummen. ber Adorno (2004), Die
Diktatur der Angepassten. Texte zur kritischen Theorie der Popkultur (2003), Krise und Illusion.
Beitrge zur kritischen Theorie der Massenkultur (2003), Adorno-ABC (2003), Kritische Theorie
(2002). Ele redator da Zeitschrift fr kritische Theorie e vive em Hamburg e Weimar.
43 Adorno, Notas marginais sobre teoria e prxis, Palavras e Sinais: modelos crticos 2, Petrpolis, Vozes, 1995, p.214(traduo corrigida); Marginalien zu Theorie und Praxis, AGS, 10.2, p.769.