Dia de Início de Ano Dos Colegiais

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    A REALIDADE, JUNTO COM O CORAO, A NOSSA GRANDE ALIADA

    Notas do Dia de Incio de Ano

    dos Colegiais com Julin Carrn

    Milo, Baslica de So Marcos, 4 de outubro de 2015

    Cantos: Ballata dellamore veroLa strada

    Alberto Bonfanti. Bem-vindos a este gesto com que iniciamos juntos um novo ano.Cumprimento a todos vocs aqui presentes, agradecendo de corao ao proco, Pe. Luigi Testore,

    pela hospitalidade nesta igreja to bonita, e cumprimento todos aqueles que esto conectados. H 32conexes na Itlia e oito no exterior: de Lugano e de Friburgo, na Sua; de Barcelona e de Madri,na Espanha; da Litunia, da Gr-Bretanha, da Irlanda, de Portugal. Diz-nos Dom Giussani de forma

    provocadora, e recordou-nos Davide Prosperi no sbado passado, na Jornada de Incio de Ano dosadultos: O dia mais belo da semana a segunda-feira, porque s segundas-feiras se recomea,recomea o caminho, o desgnio, recomea a atuao da beleza, da afeio (cf. L. Giussani, Daltemperamento un metodo, Milo: BUR, 2002, p. 31). Ns tambm recomeamos cheios da belezaque vimos nas frias e que muitos de vocs atestaram; das perguntas que os fatos ocorridos fizeramaparecer, por vezes de modo dramtico; do desejo de comunicar aos nossos colegas esta beleza quevivemos; mas tambm, para alguns, do medo de perder esta beleza dentro da rotina do quotidiano,que s vezes parece sufocar todo desejo. Dentro de tudo isto, o desafio que voc, Julin agradecemos-lhe, porque nos acompanha tambm neste incio , nos lanou no Trduo Pascal, apartir do qual nos convocamos e j dialogamos com alguns de vocs em Cervnia junto com nossoamigo Davide, mais do que nunca atual: A realidade, junto com o corao, a nossa grandealiada. Junto com o corao, ou seja, junto com aquele desejo de felicidade, de verdade e de belezaque no podemos arrancar de ns, a realidade a nossa aliada. V-se das contribuies de vocs umempenho srio em verificar este desafio e em acertar as contas com as perguntas que nascem dessaverificao. Escolhemos algumas colocaes, algumas perguntas para nos ajudar nesta novaaventura que se abriu para cada um de ns, certos da positividade do que nos espera. Eu mesmo vouler a primeira pergunta, porque a pessoa que a mandou prefere assim; parece-nos importante pelaquesto que pe.

    Em relao Jornada de Incio de Ano, na Escola de Comunidade aparecem frequentementealgumas colocaes em que se diz que, em ambientes como os esportivos ou numas frias sozinho,por exemplo, a realidade se mostra imediatamente como vazia de sentido. A isto normalmente se

    responde dizendo que at essa realidade, se olhada at o fundo, uma possibilidade para entendermais e para viver o que dizemos nos Colegiais. Eu vivo uma situao familiar complicada. Parece-me que, nas circunstncias em que vivo quotidianamente, h continuamente um vazio de sentidoque preenchido ocasionalmente nas experincias de CL. Isto muitas vezes me irrita, porque,quando estou mal, normalmente por causa de atritos familiares, como disse, fico ainda maisintensamente mal, porque sinto saudades dos momentos de vida autntica vividos; tanto assimque, paradoxalmente, preferiria no ter conhecido os Colegiais, para abandonar-me ideia dos meuspais: de que no h nada. Contudo, entendo que esta posio no me corresponde, porque eu souexigncia de significado, e ento a minha pergunta : como possvel que este vazio possa serpreenchido sempre na minha vida?

    Julin Carrn. Boa tarde a todos. Estou particularmente contente por podermos continuar ocaminho juntos, porque, quando lhes mandei a mensagem em que dizia que a realidade, junto com ocorao, a nossa grande aliada, muitos de vocs a levaram a srio, e assim surgiram muitas

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    perguntas. Somos companheiros de caminho por isto. A nossa companhia no sentimental, noestamos juntos para chorar nos ombros uns dos outros ou para nos olhar entre ns. A nossacompanhia para ver se aquilo que dizemos nos ajuda a entrar no real. Se no nos ajuda a viver, seno percebemos o estarmos juntos, o pertencermos a esta amizade como pertinente s exigncias davida, como sempre nos disse Dom Giussani, cedo ou tarde esta companhia j no nos interessar.Quando, pelo contrrio, a pessoa a leva a srio, comea a ver o quanto as coisas que nos dizemospodem ser pertinentes s perguntas que a vida nos pe, s perguntas que brotam em nosso corao,como diz a carta que Albertino acabou de ler.

    Gostaria de comear esclarecendo o que significa para mim a palavra aliada. Na nossaimaginao, muitas vezes pensamos que uma coisa aliada por tirar mecanicamente as dificuldadesda vida; por isso, quando as coisas no caminham assim, quando os problemas no se resolvemmecanicamente, dizemos: ento como que a realidade pode ser aliada? Esta pergunta nos faziniciar um caminho. E, logo aqui, a realidade mostra-se aliada, porque faz emergir o nosso eu, asnossas perguntas, a nossa razo, a nossa liberdade; ajuda-nos a perceber que no h nada demecnico, de automtico no homem. Porque tudo passa atravs da liberdade; tudo uma

    possibilidade, como diz a carta, diante da qual se joga a nossa liberdade. A realidade pode serpercebida simplesmente como vazia de sentido ou, se olhada at o fundo, diz a nossa amiga, comouma possibilidade para entender mais. A realidade algo vazio de sentido ou uma possibilidade?Quem poder descobri-lo? Talvez quem no pensa em nada? No. Quem arrisca, quem corre o riscode verificar se, naquilo que percebo como desprovido de sentido, h uma possibilidade que noimagino e no intuo. E ento as circunstncias comeam a tornar-se aliadas porque nos provocam,tornam-se para ns uma provocao. Mas tenho de decidir: vazio de sentido ou possibilidade?Quem poderia pr a mo no fogo que a realidade absolutamente desprovida de sentido? Eu osdesafio! Vocs tm de levar a srio as suas perguntas. Quem pode estar to seguro de que aquiloque em determinado momento nos parece desprovido de sentido realmente o ? Quantas vezesaconteceu nas suas vidas, mesmo ainda sendo jovens, descobrirem como reais as possibilidades que

    no lhes tinham passado nem sequer pela entrada do crebro? Que ajuda nos d Shakespearequando diz: H mais coisas no cu e na terra, Horcio, do que sonha a tua filosofia (cf. W.Shakespeare, Hamlet, ato I, cena V)! Como podemos descobri-lo? S se aceitarmos como umaprovocao positiva as circunstncias pelas quais a vida nos faz passar. Por que que isto decisivo? Por que que temos necessidade disto? Porque a experincia elementar do homem ouseja, aquela estrutura que trazemos conosco desde o nascimento, feita de evidncias e exigncias deverdade, de beleza, de bondade, de felicidade precisa de uma provocao para se despertar. preciso uma provocao que venha de fora de ns para despertar o nosso eu, para arrancar-nos donosso torpor em que tantas vezes camos. Dom Giussani, com efeito, dizia-nos que a experinciahumana originria, ou seja, aquilo que ns somos, aquele conjunto de evidncias e de exignciaspelos quais eu sou um homem, no existe ativamente, seno dentro da forma de uma provocao.

    [...] Quer dizer, dentro de um modo em que solicitada (cf.Dallutopia alla presenza: 1975-1978,Milo: BUR, 2006, p. 193). Portanto, o problema verdadeiramente radical haver uma provocaotal, que favorea a percepo de mim mesmo como um eu que deseja tudo. So certos encontros,certas circunstncias o que coloca em ao a nossa conscincia, a natureza original do nosso eu.Vocs veem isto quando gostam de uma pessoa: naquele momento comea a manifestar-se todo oeu de vocs, com todas as suas exigncias, com toda a sua capacidade de vibrar diante de umdesconhecido que os atrai, os solicita e os provoca com sua presena, com sua beleza; no hnenhuma possibilidade de elimin-lo, de tanto que os faz ser vocs mesmos. O outro provoca-nos asermos ns mesmos. A mesma coisa acontece em cada circunstncia. As circunstncias soprovocaes que despertam o seu eu, a sua exigncia de entender, de descobrir o significado detudo; despertam-lhe perguntas. E s quem leva a srio essas perguntas, s quem v surgir em siessas perguntas capaz de captar a resposta. De fato, s quando temos perguntas que somoscapazes de captar as respostas. E, se a pessoa que escreveu a carta prestar ateno, perceber quenaquilo que vive j h um incio de resposta: reconhece ter vivido momentos de vida autntica, e

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    justamente por isso experimenta uma saudade daqueles momentos. No que no lhe tenhaacontecido nada, viveu momentos de vida autntica dos quais sente uma saudade que no conseguetirar de si; mas depois, frente s dificuldades da vida, preferiria nunca t-las vivido e abandonar-se ideia dos que a circundam. preciso decidir, meninos! Vocs tm de decidir: estar disponveis aceder ao que viram com os prprios olhos, ou seguir o que lhes dizem os outros. Vocs queremviver a vida de vocs ou preferem que algum a viva em seu lugar? Se vocs mesmos nocomearem a decidir viver, sempre haver algum que vai sacane-los. Vocs tm de decidir,porque viveram momentos de vida autntica, viram-nos com os prprios olhos, sentiram-nos vibrarnas fibras do prprio ser. E, se algum lhes disser como na msica Barco Negro(msica de CacoVelho e Piratini, letra de D. Mouro-Ferreira) so loucas, vocs respondero: Voc que louco, voc que ! Eu estou realmente certa do que me aconteceu. Por que voc est to certa? Seprestarem ateno a si mesmos, vo encontrar a dica da resposta: porque o que os outros lhes dizemno corresponde a vocs como aquilo que lhes aconteceu. Entendo que esta posio, diz ela, nome corresponde, porque eu sou exigncia de significado. Ento decidam! A vida no maltratavocs, e vocs no so coitadinhos que nunca viram nada de realmente claro, vivo, atraente,

    fascinante; viram e viveram, tanto verdade que, se os outros lhes dizem so loucos, isto no lhesvai corresponder, porque so exigncia de significado. Veem como a realidade aliada? Mas istono mecnico, porque preciso que cada um ceda provocao da realidade; assim poderei vermostrar-se, diante dos meus olhos, o que a realidade, o que sou eu e qual a promessa que arealidade me oferece para a realizao do meu eu.

    Este vero foi um dos mais significativos para mim. Consegui manter presente aquela promessa,aquele encontro que tive e que reacontece quando estou nesta companhia. Graas s nossas friase s frias dos adultos, dei-me conta, cada vez mais, de que a realidade no minha, mas paramim; entusiasma-me pensar que, o que quer que acontea, a realidade sempre estar l. Tudomuda, porm, por como voc se coloca diante dela. este o meu problema, porque, na Equipe dos

    Colegiais, Davide Prosperi nos disse que voltar com perguntas um bem, mas eu tenho umapergunta sempre presente que me assusta: como posso manter tudo isto? Como posso continuar aviver com essa conscincia de que a realidade para mim? Eu sabia que, depois da Equipe edepois de um vero to verdadeiro, eu no conseguiria mant-la, e para evitar isto eu me lancei emtudo o que estava fazendo, sobretudo nas atividades dos Colegiais, porque a nica companhiaque me ajuda, como dizia Prosperi, a carregar o fardo da minha humanidade. Com volta s aulas,sinto que se anulou tudo o que eu tinha construdo; sabia que aconteceria, mas no pensava que iaacontecer to cedo. Como posso conseguir no perder o meu encontro toda vez que a realidade se

    pe diante de mim? verdade que tudo se anulou? Responda-me sim ou no.

    No.

    No. Vocs no podem mentir a si mesmos.Um pouquinho.Um pouquinho, mas nem tudo se anulou, tanto verdade, que voc est aqui fazendo a pergunta.

    Se tudo se tivesse anulado, voc no estaria aqui e no desejaria no ter perdido o que lheaconteceu. Portanto, o primeiro dado que reconhecer este: nem tudo se anulou, como, pelocontrrio, muitas vezes achamos. muito importante dar-se conta disto: o fato mesmo de voc terfeito a pergunta indica que no se apagou do seu eu aquilo que voc encontrou. Para vocs noparece quase nada, e no entanto crucial. Por qu? Porque permanece algo daquilo que eu vi,daquilo que me aconteceu; no se pode apagar totalmente um evento da vida. importante dar-seconta disto, porque assim comeamos a no mais nos assustar quando parece que tudo desmoronou.Quando aquele medo os tomar, olhem-no de frente e perguntem-se: verdadeiro ou no verdadeiro? Vocs no podem perder a ocasio. Quando vier a suspeita de que tudo tenha seanulado e apagado, de que tudo seja uma iluso, de que tudo tenha sido um sonho, olhem para tudoisso de frente, pondo-se a pergunta: verdadeiro ou no verdadeiro? Se vocs no julgarem se

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    verdadeiro ou no aquilo que pensam, vocs vo ter um tilt. Se vocs, porm, julgarem toda vez quea dvida os assaltar, vo descobrir-se sempre mais convencidos de que no foi um sonho, de quenem tudo foi apagado. Alis, vo perceber que, quando surgir essa pergunta, ser uma ocasio pararedescobrir isto novamente, para dar-se conta de quanto consistente, de quanto dura o que vocsviram e viveram. No devem autoconvencer-se, no devem contar bobagens, no devem acreditarem vises, simplesmente devem levar-se a srio e perguntar-se: verdadeiro ou no verdadeiroo que eu vivi, verdadeiro ou no verdadeiro que o que eu vivi no foi apagado? Uma pessoa queencontrou a comunidade crist e depois se afastou por anos, at mesmo depois de dezessete anos,como me contava um amigo, telefonou aos amigos de antigamente dizendo: Ser que vocs aindase veem?, Sim, Eu tambm posso ir?. Depois de dezessete anos! Claro, mas por qu?.Porque tenho muitas saudades!. Pareceria que, depois de dezessete anos, no tivesse sobradonada, mas aquela pessoa viu o que viu, viu que h um lugar de vida, viu que h uma experincia eviu que todas as suas tentativas feitas ao ir embora no conseguiram dar-lhe nem um minutodaquela plenitude que tinha vivido. Ns no temos nenhum problema com a realidade, no temosmedo dos desafios, porque justamente enfrentando as circunstncias que vemos a diferena entre

    Cristo e qualquer outra resposta; mas s descobrir isto quem no tiver medo de verific-lo narealidade. Por isso, impressiona-me sempre o episdio do filho prdigo: sentia-se sufocado em casae foi embora. Algum poderia pensar: acabou tudo. Mas, quando se v em meio aos porcos, nopode evitar pensar: Na casa de meu pai eu estava bem, e at mesmo seus empregados viveminfinitamente melhor que eu, que estou aqui comendo lavagem com os porcos (cf.Lc15,16-17). uma viso? uma iluso? fico cientfica? Ele no consegue esquecer a experincia vivida nacasa do pai, que parecia apagada por todas as besteiras que fez. Aquela experincia tinha sidototalmente anulada, como disse a nossa amiga? No, justamente porque, quanto mais se afastou,mais lhe veio uma saudade louca de casa. Deus no lhe mandou um anjo para dizer Coitadinho!.Das vsceras do seu eu jorrou um desejo de felicidade e de plenitude: Eu aqui vivo como umporco, quando poderia viver como um filho; e tudo se reprope com ainda mais intensidade que no

    incio: se o cristianismo fosse s uma inveno para aqueles que no provaram nada na vida, depoisde ter provado tudo a pessoa deveria ficar realmente convencida de que tudo acabou. Mas, justonaquele momento, reprope-se tudo com mais potncia ainda. Depois de termos verificado todos osnossos sonhos, todos os atalhos que imaginamos para atingir mais depressa a nossa felicidade, justonaquele momento se mostra toda a diversidade do cristianismo. Ento nos perguntamos: a nicaalternativa fazer besteiras? Ir embora por dezessete anos? No, h outra possibilidade: quandouma pessoa sente essa tentao, pode olh-la de frente, como eu dizia antes. Com o que meaconteceu e que no foi totalmente anulado, neste novo incio a partida ainda no est encerradapara mim. As circunstncias so dadas para que, jogando-se nelas, voc possa tornar-se sempremais certa. A vida crist s para os audazes. Se preferirem uma vida fcil, vo busc-la em outrolugar. A experincia crist s para quem tem o desejo de viver uma aventura na qual no falamos

    de bobagens e constantemente somos convidados a verificar o que nos dizemos. Mas, para verific-lo, preciso estar sempre de novo na ativa, porque estamos dentro de um lugar que constantementenos relana, nos acompanha, responde s perguntas, E, assim, a vida torna-se outra coisa.

    No fim do vero, dei por mim com uma vontade louca de voltar escola, porque, pela primeiravez, senti a exigncia de verificar se a beleza e a felicidade que tinha vivido durante as frias dosColegiais e no Meeting faziam realmente parte da realidade, uma realidade que, para mim, incluiem primeiro lugar a escola. Se verdadeiro o que eu vivo nesta companhia, deve s-lo em cadacircunstncia, de forma a sentir o desejo de estar sentada na frente do meu professor com o mesmocorao aberto com que estou durante um passeio na montanha. Desde quando comeou a escola,estou percebendo que a estou vivendo com o corao aberto. Percebi isto quando comecei a sentira necessidade de, no fim da aula, sair da sala e ir contar a minha manh a uma amiga dosColegiais, a ela como minha companhia. E tudo isto me parece muito bom, porque finalmenteessas duas realidades que eram distintas, a escola e os Colegiais, agora so uma s coisa, e sinto

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    que, sem o apoio e sobretudo a presena dos meus amigos, esta realidade que agora sinto aliada eprxima seria separada e adversa. Esse incio escolar, alm disso, suscitou em mim diversasperguntas, sobretudo em relao relao com a minha colega de sala, que, toda vez que acabavauma aula a meu ver tima, me mostrava a sua reao aptica e entediada, a ponto de fazer-me prem dvida o que eu tinha acabado de viver. Inicialmente, pareceu-me um limite, mas justamentenisto me dei conta de que no o devia ser e que, antes, tinha de ser algo do qual partir, um desafio.

    Ento me perguntei, e ainda hoje me pergunto, como possvel que ela, que tem um corao comoo meu e que vive a mesma realidade escolar, no consiga ver no que vivemos aquilo que eu vejo.

    Na sua opinio, por qu? Qual o ponto de partida para responder a essa pergunta, quandovemos que ns temos uma srie de exigncias que, s vezes, os outros no reconhecem comoexigncias suas, ou quando ns vemos certas coisas que os outros tm dificuldade em reconhecer?Qual o ponto de partida para responder a tais questes?

    A minha experincia.Muito bem! A sua experincia! A sua experincia! Anos atrs, um estudante universitrio

    perguntou a Dom Giussani algo parecido: Se [...] me dirijo ao outro, ao colega que encontro na

    universidade, e ele a um certo ponto me diz: Olha, essa uma necessidade sua, mas no umanecessidade minha. Dom Giussani respondeu-lhe: Quem lhe responde assim est anestesiado.Por qu? Como voc pode saber? Voc sabe o que h no corao do homem, porque h em voc[...]. E voc entende que o outro no entende aquilo que voc entende, porque est travado,anquilosado, paralisado (cf.Lio rinasce in um encontro. 1986-1987. Milo: BUR, 2010, pp. 364-365). Em voc, despertaram-se certas exigncias num certo momento da sua evoluo humana, doseu percurso humano, porque aconteceu algo, porque lhe aconteceu um encontro, algo que asdespertou em voc. Ento voc no deve julgar a sua colega, simplesmente deve esperar que elatenha a possibilidade de descobri-lo, como aconteceu com voc. este o alcance da nossaexperincia: como essa sua colega pode ser desafiada a descobri-lo? S se, antes de mais nada, vocresponder s necessidades que tem, como dizia no incio, de verificar se a beleza e a felicidade que

    voc tinha vivido nas frias ou no Meeting fazem realmente parte da realidade, se verdadeiro oque eu vivo dentro da companhia. Voc tem necessidade disso primeiramente por voc, no spara responder sua colega. A primeira questo somos ns. E, justamente porque voc responde asi mesma, poder mostrar sua colega qual a novidade que Cristo introduz no modo de viver oreal. Voc a desafia vivendo o que lhe aconteceu; verificando o que lhe aconteceu, voc a estdesafiando: V como possvel viver de modo diferente o estudo, viver a relao com as colegas,viver as dificuldades, viver o cansao, viver o quotidiano que nos esmaga?. E ento entende omtodo de Deus, que o mesmo desde sempre: Deus d a graa a uma pessoa para que ela chegue atodos, Ele a d a voc para que a comunique a todos os seus colegas. E voc no tem de fazer sabe-se l que anncio na aula, deve simplesmente viver, de modo que os outros possam ver qualnovidade que Cristo introduz na vida. No vo descobri-lo porque voc o diz em palavras e o

    explica; porque, se no o virem em voc, no modo com que voc reage s coisas, no poderdesencadear-se neles a pergunta: Por que voc vive assim? De onde nasce essa sua novidade? Deonde nasce o fato de que voc entra na sala contente e que, tendo que ver com os nossos mesmosdesafios, voc as vive diferentemente? Por que voc nunca se cansa de recomear?. Estasperguntas lhe oferecem a oportunidade de responder. Os seus colegas tm as suas mesmasexigncia, mas precisam, como dizamos antes, de uma provocao adequada para descobrir todasas possibilidades do viver que ainda no conhecem. E como o Senhor deu isso a voc, num certomomento o dar a eles tambm. Impressiona-me sempre o espetculo do respeito de Deus pelaliberdade de cada um de ns: em vez de se irritar com seus colegas ou de se confundir porque noentendem, pense em Deus que bate porta sem descanso e que espera a nossa resposta como ummendigo. Eu os desafio a encontrar algum que ame tanto assim a sua liberdade, que ame tantoassim a liberdade dos seus colegas. Ns no podemos amar a liberdade dos nossos colegas menosde como Deus a ama.

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    Neste vero, sofri uma grande ferida afetiva. O que particularmente me marcou que essarelao tinha se tornado para mim a ocasio principal que Cristo usava para me encontrar, para

    fazer-se presente no meu dia, mudando-o para melhor e tornando-o pleno. Quando essa relao seinterrompeu, o rompimento para mim foi muito doloroso, quer emotivamente, quer porque me sentitrada por Ele.

    Por quem?Por Cristo. Apesar da ferida profunda, pedi ajuda aos meus amigos mais queridos que,

    simplesmente ficando comigo, me ajudaram a enfrentar a situao. Diminuda a emoo, pus-me afazer um balano do que me tinha acontecido, e percebi que a realidade, apesar da dor, tinha sidominha aliada, porque as relaes com os meus amigos e com os meus pais tinham crescido nessasituao; mas, acima de tudo, a minha relao com Cristo tinha renascido. Na dor eu tinhadecidido conscientemente no recitar as Laudes, e esse no a Ele era a prova de que tinhanascido em mim a conscincia de depender dEle; porque, se Lhe digo no, quer dizer que Ele temalguma substncia.

    Vocs veem como permanece?

    A minha pergunta nasce com a volta aulas; o quotidiano est me esmagando, est meachatando numa apatia que no me est deixando viver aquela relao com Ele que se tornou vitalpara mim, e uma coisa absurda. No momento em que eu estava mal, conseguia viver essa relaonum certo modo, e agora, o dia a dia normalssimo que eu sempre vivi, no aguento mais, e paramim isto absurdo. No saber como v-Lo, como encontr-Lo no meu dia est me confundindo. Seique preciso dEle, porque vi que, na dor, a relao com Cristo transformou a minha ferida numaocasio para mim; mas, se agora, na banalidade quotidiana, no consigo mais captar a Sua

    presena, basta um nada para me derrubar. Como fao para capt-Lo durante o dia? E, sobretudo,como fao para chegar a uma constncia nessa relao com Ele que resista s circunstncias?

    O que me impressiona antes de tudo esta sua afirmao: Na dor eu tinha decididoconscientemente no recitar as Laudes, justamente porque voc tinha a suspeita de que, no fundo,

    Cristo o tivesse trado, mas muito perspicazmente voc observa: Mas esse no a Ele era a provade que tinha nascido em mim a conscincia de depender dEle, porque uma pessoa diz no quandoj comeou uma relao.

    Tenho de dizer o no a algum.Perfeito! E isso fundamental, porque muitos teriam se irritado pela prpria incoerncia, tendo

    visto s o prrpio no, como que a dizer: Eu, apesar disto, disse no. Ele, pelo contrrio, no sedetendo na aparncia, foi mais fundo e disse: Mas o meu no a prova de que j se iniciou umafamiliaridade com Ele, e estou consciente disto justamente porque digo no, porque possa dizerno. Vocs veem que na vida, na experincia que fazemos, tudo serve? E esse exemplo dele impressionante, porque at um no, se a pessoa se d conta, adianta; de fato, permite-lhe ser aindamais consciente dAquele a quem diz no. Amanh lhe dir sim, no se preocupem com isso. A

    questo que eu j comecei uma relao, que no me concebo totalmente autnomo, que no meconcebo sozinho. Eu comecei a ver a verdade daquilo que dizamos citando Guccini: No souquando no ests aqui, quando voc no est, fico sozinho com os meus pensamentos (cf.Vorrei, letra e msica de F. Guccini). Por que gosto destas expresses? Porque dizem que, justoquando nos concebemos em autonomia total e isolados como indivduos sem relaes, a experinciaelementar me diz que eu sou mais eu quando voc est, quando entra na minha vida um tu umamigo, a pessoa amada, a me ; eu sou quando voc est. Uma pessoa comear a experimentar isto crucial. Posso ter momentos em que digo no pela minha fragilidade, pela minha estupidez, pelaminha teimosia, mas j comecei a ver algo mais interessante que todos os meus nos: h algumcom quem eu sou mais eu, h algum que me torna mais eu mesmo, como aconteceu com o filhoprdigo: percebeu que havia um lugar, uma relao mais decisiva para viver do que qualquer outracoisa, ou seja, a sua casa e o seu pai; pode ter cometido todas as burrices do mundo, mas no pdedeixar de voltar para casa, para o seu pai. Pensem em So Pedro: podia errar muitas vezes, mastinha visto, e, de fato, diz a Jesus: Onde vou sem ti, Cristo?. Isto mais importante que todo o

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    resto, incluindo todos os nossos nos. No tempo, segundo um desgnio que no o nosso,segundo um caminho ainda todo por descobrir, graas pacincia infinita que Cristo tem para comcada um de ns, algum dia chegaremos a dizer, ns tambm, como Pedro depois que Jesus lheperguntou: Tu me amas?; perguntou-lhe depois de t-Lo negado diante de todos : No seicomo, mas toda a minha ternura por Ti, Cristo, todo o meu eu est ligado a Ti (cf. Jo21,15-17).Tambm em vocs estar a vitria do vnculo com Cristo, estar a vitria da afeio a Cristo. Todaa minha afeio por Ti, Cristo. Pedro no se assustou com os muitos erros que tinha cometido,porque atravs de todos eles se ligava sempre mais a Ele. isto o que maravilha. Por isso voc jtem a resposta sua pergunta. O quotidiano est me esmagando, a apatia no me est deixandoviver aquela relao com Ele que se tornou vital para mim. Pergunto-lhe: como voc consegueviver sem? Ponto! Ento a apatia, a quotidianidade que o esmaga lhe oferecem a possibilidade de seperguntar: O que que eu fao aqui? Por que no O procuro?. como se Cristo, a partir dasvsceras da sua experincia, a partir da apatia que voc vive, lhe dissesse: Eu no fao falta?Consegue viver sem mim?. Responda-lhe! A apatia, paradoxalmente, torna-se o empurro para amemria dEle. Como a saudade, quando falta ele ou falta ela, essa tambm ocasio para a

    memria. A apatia ou o quotidiano tornam-se uma oportunidade para retomar a relao, aquelarelao que, no fundo no fundo, nunca se interrompeu.

    Neste momento, sinto mais do que nunca a presena de Cristo, e no porque a realidade que merodeia seja como eu rezei para que fosse, alis, justamente o contrrio. Obviamente agradeo aCristo por ter-me dado estes amigos com os quais eu posso ser eu mesma, e por ter-me colocadonesta companhia. Sem Ti, Senhor, aonde iria? O fato que os meus desejos algumas vezes nocorrespondem ao que Ele gostaria para mim. H uma realidade dolorosa que foi posta minha

    frente, mas que ao mesmo tempo uma ocasio de crescimento para mim e tambm um empurropara fazer-me abrir sempre mais os olhos, para procurar aquela felicidade, aquele bem maior queEle quer para mim. Todo dia busco entender o que est por trs desta dor, porque a realidade,

    junto com o meu corao, a minha maior aliada. Graas ao choque com esta realidade, sempremais me dou conta de quanto o meu desejo de felicidade seja grande. Seja feita a vossa vontade,assim na terra como no cu. Abandono-me a Ele, deixando-me transportar pelas Suas mos,dizendo sim a esta dor. Quando estou com meus amigos, estou bem; sorrio-Lhe e agradeo-Lhe.Sinto que com eles o meu caminho tem outro sabor, doce e simples. Apesar de tudo isto, hmomentos em que sinto que aquele corao, no cume da alegria, se esvazia, e a melancolia oacomete. Quando estou em casa, muitas vezes me sinto assim e tendo a fechar-me. Tenho medo de

    fugir, de no poder ficar diante de Cristo porque, quando volto para casa, descanso, ouo umpouco de msica e sinto que me acomete essa melancolia pela qual eu j no sinto Cristo ao meulado como O sentia antes.

    No! No pela melancolia que voc j no O sente, porque justamente a melancolia o modo

    por meio do qual Ele a est chamando: Eu no fao falta?.O fato que, de qualquer forma, eu sei que Ele est. Eu sei, Ele est sempre ao meu lado, mas

    sou eu quem foge.Concordo. Mas a primeira coisa a fazer comear a ver com clareza o que a realidade,

    comear a olh-la com um juzo novo. A realidade, qualquer realidade, no s a boa, mas tambm adolorosa, pode ser uma ocasio de crescimento, como voc dizia antes, um empurro para procuraralgo diferente. E isto j diz que estamos comeando a olhar a realidade diferentemente de como aolhvamos antes, quando a considervamos s um incmodo, algo que evitar, do qual fugir,

    pensando que no houvesse nada de bom para ns numa determinada circunstncia. disto quenasce em vocs, assim como nasceu em mim, a descoberta da realidade como aliada. Eu noaprendi lendo alguns livros, aprendi como vocs esto aprendendo, ou seja, vivendo, vivendo.Quando uma pessoa comea a fazer essa experincia, a realidade torna-se amiga dela, cada aspectoda realidade torna-se amigo. E qualquer pessoa que se introduza nesse caminho torna-se amiga. Porisso, a pessoa comea a reconhecer que os amigos representam um bem para si. Voc diz: Apesar

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    de tudo isto, h momentos em que sinto que aquele corao, no cume da alegria, se esvazia e amelancolia o acomete. precisamente o momento, carssima, da sua relao pessoal com Cristo;de outra forma, se todo o resto lhe bastasse, como voc poderia entrar numa relao nica e pessoal,absolutamente sua com Cristo? Lembro-me de uma histria de Dom Giussani: ele tinha ido a umafesta em que os amigos cumprimentavam uma deles que estava voltando do exterior, e ele estavatodo maravilhado pela beleza da companhia, dos amigos, dos cantos, de toda a amizade que havianaquele momento de festa; mas, a uma certa altura, disse aos presentes: Se, a um certo ponto,amigos, no vem um desejo enorme de dizer o nome dEle, tudo isto desaparece (cf. LattrattivaGes, Milo: BUR, 1999, p. 148). Disse isto naquele momento, no porque tudo estivesse ruim;tudo corria muito bem: boa companhia, boa amizade, belssimos os cantos, tudo bom, masreconhecer que tudo isso no basta diz quem somos ns e de quem somos. Por isso, no momento damaior nostalgia, desencadeia-se verdadeiramente a relao com Ele. A questo se ns estamosdisponveis a entrar nessa relao em vez de fugir na Internet, no celular, nos amigos, em tudo. Nomomento culminante, devemos decidir entrar naquela relao nica, seno seremos sempre comoum canho solto no convs; devemos aceitar que tudo o que nos acontece a porta para entrar mais

    na relao com Cristo.Este ano comeou diferente em relao aos anos passados, devido a uma grande dificuldade: no

    comeo, eu pensava que fosse devido ao estudo ou rotina que seria retomada, ou porque j nohaveria os meus colegas mais velhos. Mas dei-me conta de que o problema era muito mais

    profundo, porque logo o estudo comeou a me tomar, e eu ainda continuo vendo os meus amigosmais velhos. Quando fizemos a primeira Escola de Comunidade, e a ordem do dia era Arealidade, junto com o corao, a nossa grande aliada, isto me deixou sem palavras, e no pelomaravilhamento, mas porque eu no tinha nada para dizer, no tinha nenhuma experincia paracontar. Enquanto escutava as colocaes dos meus colegas, crescia em mim um enorme sentido deressentimento para com eles, porque tinham algo para dizer, e eu no. Vi-me completamente

    esvaziada e com um rancor por essa companhia, porque me tocava no fundo de mim. Aquilo quemais me perturbou que, apesar de crescer em mim esse dio por essa companhia, eu no possodeixar de pr aqui as minhas questes mais profundas. Por que, diante de uma coisa que fazcrescer em mim esse rancor, eu fico to ligada a ela? Vivendo com os meus amigos, tambm me deiconta de uma inveja profunda que me dava a relao com eles, que aumentava ainda mais esse

    sentido de dio; acometia-me uma inadequao dilacerante, cuja provenincia desconheo; apesarde saber que a realidade pode ser minha aliada, parece-me que no seja nem aliada nem inimiga.

    Obrigado. belssimo o percurso dramtico atravs do qual ns descobrimos as coisas; quantomais a pessoa segue adiante, mais se d conta de si mesma. Eu tinha comeado diferente emrelao aos outros anos e pensava que fosse o medo da rotina, mas a questo era muito mais

    profunda. Vocs veem? As circunstncias fazem-nos compreender a profundidade do drama

    humano, a beleza de que somos feitos. Sem ter vivido essa sua volta s aulas, poderia ter dado porbvio o ttulo da primeira Escola de Comunidade: A realidade, junto com o corao, a nossagrande aliada. Quando, pelo contrrio, uma pessoa tem perguntas to profundas como ela tem, s oler o ttulo da Escola de Comunidade j a deixa sem palavras. Que intensidade de viver qualquercoisa! Ento comea o drama, que devemos aprender a viver bem, porque diante disso ela sente umressentimento crescendo. Cada um deve decidir, porque a liberdade est sempre em jogo, semprechamada em causa. A realidade um sinal, Dom Giussani sempre nos disse, diante do qual cada umde ns decide. Decide diante de qu? Voc est diante de um dado: uma pessoa que conta coisas

    bonitas na Escola de Comunidade, experincias positivas que viveu, das quais aprendeu, e oferece-as a voc e a todos os amigos presentes. E isto um bem, no insultou voc, no ofendeu voc,colocou diante de voc a experincia de um bem que descobriu, ofereceu-lhe a contribuio da

    prpria experincia, do caminho feito, dividiu com voc a prpria vida. Diante desse bem, atmesmo diante de um bem como esse, podemos ter duas atitudes: acolh-lo pelo bem que , ou seja,um bem, um desejo de compartilhar, um convite a comunicar a sua experincia (Conte-me o que

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    voc descobriu!), ou ento perceb-lo como um juzo sobre ns. No segundo caso, voc comea aensimesmar-se e pensa: Mas eu no tenho nada para contar. Disto brota o ressentimento. Masnem mesmo naquele momento somos deixados sozinhos, porque, seguindo a linha do que voccontou, voc pergunta como que se sente to ligada a um lugar que lhe desperta esse rancor e esseressentimento, a ponto de pr ali as suas perguntas. Parece-nos uma contradio. Pelo contrrio, noo , s vezes as duas coisas coexistem: perceber um rancor e ao mesmo tempo reconhecer que no

    podemos no voltar ali para pr as nossas perguntas. Que promessa percebemos neste lugar, se nemmesmo todo o ressentimento, todo o rancor que sentimos podem apagar aquele pressentimento de

    bem que continua, apesar de tudo, a prevalecer, a tal ponto que volto aqui de novo hoje! A questo se aderimos ao que nos aconteceu naquele lugar, se voltamos quele lugar a que nos sentimosligados no fim um problema de afeio , se voltamos l no obstante nos deixemos levar peloressentimento ou pelo senso de inadequao que nos faz dizer: Eu no sou digna de estar aqui.Por isso, maravilhosa, repito, a figura de Pedro: quantas vezes no ter sentido essa inadequao,quantas vezes no ter sentido que no estava altura da amizade de Jesus, da preferncia de Jesus,mas ao mesmo tempo no conseguia ir embora: Aonde irei sem Ti, Cristo?. Toda a minha

    simpatia por Ti, Cristo, toda a minha simpatia humana mais forte que toda a minha inadequao.A minha inadequao no conta nada, porque prevalece esta minha simpatia que quase visceral,como a de uma criana pela me: no pode no se apegar me. maravilhoso ver como istocresce em ns. Como voc v, a realidade tudo, menos indiferente, o que constantemente desafiavoc a voltar quele lugar. E quanto mais perguntas a realidade lhe suscita, faz emergir em voc,tanto mais essas perguntas a impelem a voltar quele lugar, o nico onde as suas perguntas solevadas a srio. Em que outro lugar so levadas mais a srio as suas perguntas do que comofazemos aqui? Se encontrarem algum, podem ir. Desafio vocs: digam-me se h um lugar, almdeste, onde, para serem vocs mesmos, vocs no tm de apagar as suas perguntas mais humanas,um lugar onde vocs podem abraar toda a sua humanidade sem censurar nada da sua inadequao,da sua incoerncia, do seu mal. A esta altura, voc pode entender por que, apesar de a vida muitas

    vezes nos fazer perceber a nossa inadequao, justamente essa inadequao no introduz umasuspeita sobre este lugar, sobre esta companhia, sobre esta amizade, alis, menos mal que exista emenos mal que no seja preciso estar altura. Garanto-lhe que, se fosse preciso estar altura, nohaveria lugar para mim! Este o lugar prprio para aqueles que no se sentem adequados, que nose assustam com a prpria inadequao, que no precisam estar altura para serem aceitos. Somostodos companheiros de Pedro, o primeiro que Jesus escolheu no por ser bom, no por seradequado, mas por ter, como voc, um tecido humano graas ao qual no podia, apesar de tudo,deixar de sentir que toda a sua simpatia humana era por Ele, por Cristo. Sentia-se to ligado, quenada o fazia separar-se dEle.

    Carssimo Julin, quando soube que o ttulo escolhido para a abertura deste novo ano era A

    realidade, junto com o corao, a nossa grande aliada, fiquei profundamente comovida.Nenhuma frase podia ser mais correspondete ao que vivi nestes primeiros dias de escola e,sobretudo, durante o vero. S se entende o meu incio de ano, com efeito, se repenso nos meusmeses de frias: primeiro em Londres e depois na praia, dei por mim me tendo de enfrentar uma

    srie de circunstncias que no s eu no tinha programado, como tambm eu nunca teria querido.Eu tinha criado uma ideia de como deveriam ser as frias perfeitas antes do ltimo ano, e, ao invs,foi tudo ao contrrio. No comeo, eu sentia o peso insuportvel do desgaste e da tristeza,continuava bloqueada em mim mesma e nos problemas, e me dizia: Por que que acontecemestas coisas?. Depois de alguns dias vividos sufocando, apresentou-se uma alternativa: ou ficar

    fechada no meu cantinho, olhando e voltando a olhar as coisas que no estavam como eu queria,ou levantar o olhar e aceitar com humilde obedincia que elas pudessem ser uma ocasio

    privilegiada para me tornar grande. Foi um momento decisivo, porque me foi pedido pr em aotoda a grandeza da minha liberdade. De fato, teria sido muito mais fcil continuar escrava do meulamento constante e da contnua medida de mim mesma e dos outros. Depois isso me veio mente,

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    quando voc dizia que, para empreender a luta de levar a srio o desejo de ser feliz, precisoamar-se verdadeiramente. preciso amar-se, porque eu sabia que as coisas no mudariam e queteria de lutar para ficar livre da aparncia delas. Naquele momento era necessrio que eu meamasse a mim mesma e ao meu corao, que to bem sabe o que lhe corresponde e nunca pode seenganar. Sustentada pela amvel ternura de muitos amigos, pela minha famlia e pela beleza doslugares que vi, decidi levantar o olhar e mant-lo fixo no essencial, no Aconcgua, como voc medisse uma vez. Ento me descobri livre para amar at a dificuldade, para no me perder nasaparncias, para no me deter no que as pessoas pensam de mim e no como eu deveria ser. Ascircunstncias no mudaram, pelo contrrio; com a morte de uma amiga, a dor aumentou, mas eratudo uma graa contnua, porque Deus se serviu delas para extrair de mim, ainda mais realmente,toda a paixo do meu corao. A realidade permitiu que ela se despertasse. Surgiu

    prepotentemente, de fato, o desejo de estar diante da beleza das coisas que eu via, com olharprofundo e grato, em contemplao silenciosa e maravilhada; o desejo de buscar a pureza e alimpidez nas relaes com os amigos, de doar-me totalmente no sacrifcio de ajudar em casa.Chegada das frias, estava preocupada, no via muitos amigos havia trs meses e no sabia o que

    esperar de mim. Ento Deus decidiu fazer-me entender definitivamente, com muitos pequenos fatos,que Ele muito mais original e criativo do que eu: o telefonema de um amigo meu, adulto, que medisse que se importa comigo; a redescoberta da amizade com uma colega minha que voltou dos

    Estados Unidos; a preparao da festa para os calouros e ver os rostos deles encantados; o voltara abraar os amigos e conhecer pessoas novas; so exemplos do abrao paterno com que o anocomeou. As matrias na escola mostraram-se extraordinariamente interessantes, cada coisa mecausa surpresa. Sei que me espera um ano trabalhoso devido ao estudo e s decises por tomar,mas, pela primeira vez, no estou assustada, tenho um desejo imenso de viver tudo, cada pessoaque encontro, mesmo aquelas que vejo no metr e as coisas com que deparo. s vezes meimpressiona quando vejo em mim mesma este corao to ardente e vivo, desejoso de caminhar.

    H os pequenos sofrimentos quotidianos, sinto que muitas vezes me machucam, mas atravs deles

    que me indicada a estrada, atravs deles que entendo o que realmente desejo. Tudo o que vaiacontecer ser uma graa superabundante que no posso imaginar.Obrigado. Voc descreve bem o itinerrio frente ao qual cada um de ns se encontra. No

    comeo, voc podia pensar que as circunstncias fossem um peso insuportvel, mas depois dealguns dias colocou-se uma alternativa: viver fechada no seu cantinho ou levantar o olhar e viveraquela situao como uma ocasio privilegiada para tornar-se grande. A vida, meninos, vocao.Deus nos chama atravs das circunstncias. E s quem adere s circunstncias pode comear adescobrir o que Ele, o Mistrio que faz todas as coisas e que tem muito mais criatividade do quens, preparou para ns. Quem pensa j saber, e portanto acredita que no precisa lanar-se na vidarespondendo s circunstncias por meio das quais o Mistrio nos chama, perde o melhor. Noentanto, se adere a elas, descobre que Deus muito mais original e criativo do que ns, tudo se

    torna interessante; e a pessoa j no fica assustada, mas tem um desejo imenso de viver tudo. Istoacontece atravs das circunstncias, e a questo mais interessante descobrir, como ela diz, queatravs delas me indicada a estrada. A estrada no algo que j sabemos a priori, porque sedescobre a vida vivendo. Diz um poeta espanhol: Faz-se o caminho ao andar (cf. A. Machado,Proverbios y cantares, XXIX, em Campos de Castilla, 1917), descobre-se o caminhocaminhando, descobre-se a estrada caminhando, no est j traada na nossa cabea. Por isso, comolhes digo sempre, a vida s para os audazes, para quem aceita o desafio da provocao constanteque nos dirigida pelas circunstncias, que muitas vezes so banais, mas atravs delas que oMistrio que nos fez nos convoca para introduzir-nos sempre mais na plenitude do viver.

    Bom ano, amigos!

    Bonfanti. Agradecemos de todo o corao ao Julin, pela estrada que nos indicou, uma estradaque para cada um de ns e que eu, ns queremos percorrer, uma estrada cujos instrumentos que

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    nos so dados, e que se encontram no folheto de avisos, so para serem levados a srio, cada um noprprio grupo.

    ApndiceOutras contribuies escritas recebidas

    ! Neste vero tive de estudar para a recuperao. Por isso, passei muitos dias na biblioteca eno metr. Obviamente no tinha vontade nenhuma, j que podia estar na praia ou em algum outrolugar. Era sexta-feira tarde, e eu estava voltando de um dia de estudos na biblioteca. Tive deesperar o metr por quase quinze minutos e isso no me animou muito, porque s queria chegar emcasa, jogar-me na cama e no ter de pensar em mais nada que tivesse que ver com o estudo. Quandofinalmente chegou, entrei e sentei-me no ltimo lugar esquerda. Aquela sexta-feira era umdaqueles dias em que, se encontra algum a quem no tem vontade de cumprimentar, voc faz o

    possvel para no olh-lo e para no ser olhado; eu me sentia assim em relao a todos. Estava coma minha msica e os meus fones de ouvido, e s pensava em chegar em casa; mas naquele momentoaconteceu alguma coisa. Virei um pouco a cabea e vi uma garota grvida que chorava do outrolado do vago. Mas no estava chorando como quando voc repete de ano ou lhe acontece algo nomuito importante: estava chorando com dor, com muita dor. E a dor era tanta, que at mesmo eu anotei e me entristeci muito. Naquele momento, tudo ficou de ponta-cabea e pensei em meaproximar. Mas o que uma garota como eu poderia fazer falando com uma pessoa to triste e que eunem sequer conhecia? Pareceu-me uma estupidez ir falar com ela ou s mesmo cumpriment-la, e

    procurei evit-lo de todos os modos. Aumentei o volume da msica e virei a cabea. Mas noconseguia, no podia evitar a dor daquela garota de um modo to mesquinho. No podia fingir quenada aconteceu depois de t-la visto assim, e ento algo me moveu a levantar-me e, quanto mais me

    aproximava, mais eu sentia medo e me vinham perguntas. O que eu ia lhe dizer? O que ela ia medizer? O que aconteceria? E por que estava me aproximando dela? Acabei por me sentar perto dela,e s me ocorreu apresentar-me. Disse-lhe o meu nome, que eu a tinha visto do meu lugar e que algose tinha movido em mim. Ela me disse o seu nome, olhou-me e comeou a me contar o que lheacontecia. Eu no podia acreditar. Como era possvel que uma garota absolutamente desconhecidame contasse a razo por que estava sofrendo assim. Contou-me que estava muito triste e que estavaindo a uma clnica para abortar. Perguntei-lhe por que ia l e se queria continuar com a criana. Elame disse que sim, mas que isso pressupunha muitssimas dificuldades, e que no conseguia ver-secom uma filha para cuidar, para manter e para viver atrs a cada minuto, mas apesar disso queria t-la. Ento lhe perguntei por que motivo, se queria continuar com a criana, ia clnica. Olhou-mesem falar e ps-se outra vez a chorar. Eu vi que ela estava com medo, medo de ser abandonada,

    humilhada pelas pessoas, maltratada pelo seu namorado por ter querido ter a criana, e medo deoutras coisas que poderiam acontecer. Quando enfim se acalmou, disse-me que estava com medo eque no queria perder o seu namorado por isso que lhe estava acontecendo. Perguntei-lhe se achavaque, depois do aborto, ia ficar tranquila por ter tirado um peso ou se ia se arrepender. Sem vacilar,respondeu-me que ia se arrepender e que j amava a sua filha, que comeava a dar-se conta do que o amor de uma me e do sacrifcio que est por trs, e que ela queria a filha mesmo assim. Se estavato segura, por que ia clnica? Disse-me que, naquela mesma manh, o namorado lhe tinhatelefonado enquanto tomava uma cerveja com os amigos e a tinha mandado ir naquela mesma tarde clnica, porque ele no queria a criana. Naquele momento eu desabei. Pensei: como era possvelfalar disso por telefone? Disse-lhe que me parecia terrvel, e ela me deu razo. Contei-lhe tambmdas casas de acolhida, das pessoas que acolhem, do Movimento... E via que, quanto mais falava,

    mais ela se tranquilizava um pouquinho. Mas eu continuava vendo aquela dor to terrvel. Naquelemomento chegamos a uma estao, e ela se levantou e correu para fora. Mas de repente se virou eentrou. Olhou-me, abraou-me e disse-me: Vou voltar para casa. No vou clnica. Entendi que

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    esta filha que espero do meu namorado, mas minha tambm, e a amo com toda a alma. Obrigada.E saiu. Eu fiquei em p, sem saber o que fazer. O que tinha acontecido? Quem era aquela garota? Oque seria dela e da sua filha? Eu continuava a pensar: quem sou eu para mudar a opinio de uma

    pessoa desconhecida? Quem sou eu para que aquela garota me contasse toda a sua histria? Quepapel tenho eu em tudo isto? Como ser que esto aquela garota e a sua filha? S tenho clara umacoisa. Isto um verdadeiro Mistrio, algo que no consigo entender, mas a felicidade que sintoagora por t-la acompanhado naqueles minutos de metr incrvel.

    ***

    ! Frequento o quinto ano do Liceu Clssico. Na Equipe dos Colegiais, de manh, depois docaf da manh, disseram-nos que haveria o Angeluse as Laudes antes do encontro/assembleia. Euno tinha vontade de ir (desculpem-me se o digo, mas quero ser franca), porque queria comearlogo com a assembleia. Mas, no momento em que pensei isto, uma amiga me mandou umamensagem dizendo-me: Olhos abertos. Bem, sim! Abri os olhos! Porque me dei conta daquilo

    que eu tinha na frente. Antes de comearmos as Laudes, cantamos Al mattino, e o padre interveiodizendo: O que nos permite recomear de manh? Acordar a cada manh? Que eu te veja, e istoa manh. O mendigar v-Lo, estar diante do seu desejo. A orao um mendigar, e o mendigar constitutivo do homem. Por isso rezamos: para pedir que nos encontre. Eu me senti mendicantedurante todo o vero, e por esse motivo ele falava diretamente a mim. Aproveitei plenamente asLaudes, porque queria estar atenta s palavras: no queria dizer palavras s por dizer... de fato,estando com os olhos abertos, entendi que as Laudes so expresso dO desejo, porque cada

    palavra falava da minha posio de mendicante! Depois dessa experincia, eu e a minha colegamaltrapilha exortamo-nos, uma outra, a estar sempre de olhos abertos! A estar diante do quenos acontece e reconhec-lo. E assim comecei a escola de maneira diferente, mendigando que Eleme encontrasse a cada manh no Angelus com os meus amigos. Ficando de olhos abertos com

    aquela companhia, aproveitei o primeiro dia, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, etc. Todo dia,em pequenas coisas que me aconteceram: um simples sorriso das minhas amigas; uma fala daprofessora de filosofia sobre a sua posio em relao teoria de gnero, contrria minha, masque me estimulou a me informar mais, para entender melhor; um encontro em que se falou danecessidade do homem; o abrao de uma amiga minha que est passando por um momento difcilda vida... a lista ainda poderia prosseguir. Num dos primeiros dias, tivemos a professora de grego.Pensei comigo mesma: Ah! agora vai fazer o sermo de sempre sobre o fato de sermos passivos,de no estarmos atentos, etc. Mas ao mesmo tempo pensei: Bom, se a realidade aliada, deve sertambm neste momento!. Assim me coloquei de outro modo. E pouco depois, falando deEurpedes, a professora disse: Eurpedes mostra em suas tragdias que o homem no se faz por si,

    precisa de algo mais. Esta frase desconcertou-me, principalmente por ser dita pela professora

    naquele momento. Aquela aula era, para mim, uma Escola de Comunidade entre os bancos daescola, entre pessoas que no so de CL, falando de um autor acusado de atesmo por muitos deseus contemporneos, mesmo sendo religioso no sentido em que o entende Dom Giussani.Reconheo, em tudo isso, ter verificado a hiptese da realidade como verdadeira aliada at naescola. A nica coisa que peo para este ano que se inicia que, nesta companhia maltrapilha queso os Colegiais, nos ajudemos a manter os olhos abertos, para reconhecermos a nossa aliada!

    ***

    ! Durante estas frias, descobri a beleza do estar nas coisas simples que me so pedidas. Emparticular, trabalhando na vigilncia do Meeting, era-me pedido essencialmente que esperasse.

    Esperar o horrio para abrir as portas da feira, esperar por pessoas desconhecidas e talvez mal-educadas, que precisassem da minha ajuda. No entendia o sentido da espera: a quem eu esperava?

    Nos primeiros dois dias, fiquei irritada por esse trabalho que parecia quase intil. Pouco a pouco,

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    porm, a espera comeava a j no ser to hostil. Com o passar dos dias, a companhia dos outros domeu grupo comeou a me sustentar: j no espervamos meio adormecidos, mas cantvamos; cada

    pessoa que chegava, nem que fosse s para perguntar onde era o banheiro, era um grande evento,uma pequena coisa que dava sentido espera. Depois, no penltimo dia de trabalho, chegou poracaso, para pedir ajuda, uma pessoa querida que no via havia tempo. Com a sua chegada, boa parteda minha espera ganhou sentido. Eu tinha esperado aquela semana toda inconsciente, mas no emvo. Isto no pode seno dar-me confiana naquele Algum que me doou a espera, sabendo antes demim o que eu devia esperar.

    ***

    ! Nasci com uma doena rara que me obrigou a submeter-me a diversas operaes nas pernas;depois aconteceu o que nunca deveria ter acontecido: o pino que me colocaram no fmur se partiu, ecom ele o meu fmur. Quando isto aconteceu, obviamente o mundo caiu em cima de mim, masdepois entendi que em todas as vezes que me operaram eu sa muito feliz, com a concincia de quetudo o que me acontece para mim, para o meu bem. At mesmo agradeci a Deus no por umaideia, mas porque eu vivi isso, experimentei isso, fiz experincia disso. Nesta aventura redescobri osmeus colegas de classe e a minha famlia, a minha casa, os meus avs e todos aqueles que merodeiam. Alm disso, fiquei desconcertada pela enorme quantidade de amigos que rezaram pormim. Este fato foi para mim como um renascimento, porque pouco antes de ser operada eu estavap da vida com Deus, porque no queria me curar; na verdade entendi, compreendi que a cura no

    pode ser s fsica, mas tambm moral, tanto que eu me vejo agradecendo continuamente ao Senhor,porque sem esta minha situao eu no seria aquela que sou. Neste vero, entendi que a realidade uma enorme aliada minha, j que, sem o choque da realidade (o meu pino que se partiu), eu noseria aquela que sou; a realidade permite-me viver ao mximo os meus dias e redescobrir a cada vezque tudo o que me doado para o meu bem. Antes de todo esse desastre, eu estava muito

    aptica em relao minha realidade, minha vida, eu era uma pessoa que no conseguia ver ascores da realidade, estava tudo em preto e branco, mas depois a realidade quis entrar na minha vidade modo prepotente, quis fazer-me entender que ela estava l, que ela sempre esteve, mas que euno queria olhar para ela, no a via, reduzia tudo ao que eu queria, para mim o resto no contava,nem mesmo valia a pena olhar para ele. Tudo o que me dado para mim, mas como se toda vezeu tivesse de redescobri-lo; cada um de ns, creio, sempre precisa de algo que o sacuda de tudoaquilo que o mundo nos prope e que sempre nos faz esquecer que a realidade bela para cada umde ns.

    ***

    ! A realidade, junto com o corao, pode ser sua aliada?. Esta pergunta foi-me repetidainmeras vezes no ltimo ano, tornando-se rapidamente um ponto que, provavelmente tambm pelainsistncia com que me foi lembrada, exigia uma resposta. Devo dizer que inicialmente me virespondendo a essa questo de modo muito ctico. Isto porque, neste ano, tive de enfrentar fatos,como o tumor da minha av, que se impunham deixando-me sem a possibilidade de fazer nada, scom um grande sofrimento perante a minha inutilidade, que aqueles acontecimentos faziamsobressair cada vez mais. No comeo deste ano, deparei com um momento decisivo que me fezmudar de ideia sobre a minha posio e sobre o meu ceticismo. Fui convidada a participar daEquipe Nacional dos Colegiais em Cervnia. Partindo de Milo com a inteno de viver aqueles dias

    para mim, depois de um ano em que eu tinha feito tudo, menos parar e me olhar seriamente, me viperdida j depois de poucas horas. De fato, encontrei uma pessoa com quem eu j tinha tido um

    passado; este fato levou-me imediatamente a perder de vista a ideia de viver aqueles dias para mim;problemticas do tipo como me devo comportar com ele distraram-me. Naquela mesma noite,Albertino nos disse: Lembrem-se de que esto aqui somente por vocs. Vocs tm de levar a srio

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    em primeiro lugar vocs mesmos. Aquilo que vocs so para os outros uma superabundncia quenasce espontaneamente. Aquela chamada de ateno para viver aqueles dias para ns mesmos feza diferena. Primeiramente em Cervnia, contando este fato a alguns amigos, agradeci por uma

    pessoa que me disse: Voc se levou a srio j nesta noite, contando-nos tudo isso, fez-me prestarateno quelas palavras que tinham ficado indiferentes para mim. Se lhe interessa, esta j umasuperabundncia que voc me deu. intil dizer o quanto foi grande o meu maravilhamento ao vero quanto essa superabundncia se fez sempre mais presente quando voltei para Milo, na minhavida de todos os dias. A partir de uma amiga que, no tendo podido ir a Cervnia, tinha me pedidoque lhe contasse tudo; deixando de lado uma falta de vontade inicial, contei-lhe tudo o que tinha meimpressionado, entendendo melhor ainda o que tinha vivido. Nasceu um dilogo surpreendente, ao

    ponto de, no dia seguinte, ela me mandar uma mensagem em que citava uma frase do seu diretorque lhe tinha lembrado uma coisa de que tnhamos falado no dia anterior. Isto no superabundncia? Ou um simples jantar com as colegas de classe em que eu e outra amiga, quetambm foi a Cervnia, contamos por duas horas seguidas tudo o que nos tinha marcado e como issonos tinha feito recomear em Milo. O que contamos causou tanta maravilha entre eles, que vieram

    agradecer-nos, e de novo cheguei a perguntar: O que isto, seno um levar-se a srio? O que estacoisa, seno uma superabundncia?. Percebi que algo inevitavelmente se desencadeia quandocomeamos a nos perguntar: O que eu desejo para mim? O que este fato desencadeia em mim?.Isto um olhar amoroso que a pessoa tem sobre si mesma e que depois se reflete na relao com oamigo, com os pais, etc., ao ponto de tornar a escola, na qual talvez no se encontre muito bem, umlugar no qual poder lanar-se at o fundo. Outro dia, em sala, lemos um texto de Pasolini em queescrevia, a uma certa altura: um grito dado para invocar a ateno de algum / ou o seu socorro;mas tambm, talvez, para blasfem-lo. / um grito que quer dar a saber, / [...] que eu existo, / ouento, que no s existo, / mas que sei. um grito / em que no fundo da nsia / se sente algum vilacento de esperana; [...] / De todo modo, isto certo: que qualquer coisa / que este meu gritoqueira significar, / ela est destinada a durar alm de todo possvel fim, e isto o que contm o

    levar-se a srio. Dei-me conta de que a realidade como aliada no significa que ela substitui voc,simplicando cada coisa, no permitindo que a dor seja um dado importante na sua vida; massignifica, justamente, que ela faz voc dar um passo, em primeiro lugar, na seriedade que voc temconsigo mesmo, como o mesmo Pasolini afirmava.