DIA DA VISIBILIDADE LESBICA 14 ANOS DE UMA HISTORIA MAL CONTADA

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DIA DA VISIBILIDADE: 14 Anos de uma história mal contada

Miriam Martinho1

Figura 1Grupos lésbicos brasileiros existentes em 2001. Da esquerda para a direita: Movimento D'Ellas, Um Outro Olhar, Grupo Lésbico da Bahia (GLB), Coletivo de Lésbicas-Feministas (CFL), Associação Lésbica de Minas (ALÉM), Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro e Movimento de Lésbicas de Campinas (MOLECA). Também na foto 3 representantes de grupos mistos (Nuances, Arco-Íris e Estruturação). Foto tirada durante reunião sobre saúde lésbica com a CN-DST/AIDS, em Brasília, (março de 2001).

Quando a idéia do dia da visibilidade foi lançada em 1996, havia menos de 6 grupos lésbicos em todo o Brasil (na foto acima vemos os 7 grupos lésbicos que existiam em 2001), e os grupos existentes eram todos diminutos. Como então pôde o dia da visibilidade ter sido estabelecido por mais de 100 ativistas lésbicas? Em 11 anos, desde a proposta de um dia da visibilidade, apenas 4 deles tiveram efetivamente celebrações da data. Por quê? Para responder essas perguntas vamos fazer uma pequena viagem no tempo da história da organização lésbica no Brasil até 2003 quando o dia visibilidade tira o manto da invisibilidade. INTRODUÇÃO

Tendo em vista que a história que se conta sobre a origem e desenvolvimento do dia da visibilidade lésbica viola a história da organização lésbica no Brasil, distorcendo seus fatos e sua evolução natural, cumpre tornar visíveis essas distorções. Cumpre não só porque hoje várias pesquisadoras vêm rastreando o desenrolar dessa história e merecem ter uma visão mais acurada dos fatos como também porque as ativistas lésbicas do presente e do futuro e a população lésbica merecem saber o berço das datas a que são convidadas a comemorar. Para tal, façamos uma breve retrospectiva da organização lésbica em nosso país chegando até o surgimento dos dias de comemoração da lesbianidade brasileira.

1 Miriam Martinho, 55 anos, é fundadora do Movimento Lésbico no Brasil, tendo organizado as primeiras entidades lésbicas

brasileiras, a saber, Grupo Lésbico-Feminista (1979-1981), Grupo Ação Lésbica-Feminista (1981-1989) e Rede de Informação Um

Outro Olhar (1989....). Editou também as primeiras publicações lésbicas do país, como o fanzine ChanacomChana (década de 80) e

o boletim e posterior revista Um Outro Olhar (década de 90 até 2002). Atualmente edita o site Um Outro Olhar On-Line

(http://www.umoutroolhar.com.br/), lançado em junho de 2004, e o blog Ciontra o Coro dos Contentes

(http://contraocorodoscontentes.blogspot.com/).

Fundou igualmente o movimento de saúde lésbica no Brasil, em 1994, realizando a primeira campanha de prevenção às DST-

AIDS para mulheres que se relacionam com mulheres, em 1995, e editando as primeiras publicações sobre o tema desde essa

época (em 2006 publicou a 4 edição da cartilha Prazer sem Medo sobre saúde integral para lésbicas e bissexuais). Participou da

organização do I EBHO (1980), organizou dois encontros LGBT nacionais (VII EBLHO/93 e IX EBGLT/97) e foi sócia-fundadora da

Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT-1995). Participou igualmente de vários encontros internacionais com

destaque para a IX Conferência Internacional do Serviço de Informação Lésbica Internacional-ILIS (Genebra, Suiça, 28 a

31/03/1986), o I Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-Americanas e do Caribe (Taxco, México, 1987) e a Reunião de Reflexão

Lésbica-Homossexual (Santiago, Chile/ nov. 1992).

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DÉCADA DE 80: INÍCIO DA ORGANIZAÇÃO LÉSBICA NO BRASIL

A organização lésbica no Brasil surge no início de 1979 dentro do incipiente Movimento Homossexual Brasileiro (MHB), mais precisamente no grupo Somos de São Paulo. Forma-se nesse grupo um subgrupo de mulheres, em função de uma matéria sobre lésbicas para o Lampião da Esquina (maio de 79), que depois se consolida de forma autônoma em relação ao grupo misto. Como na época, o feminismo estava em seu auge e a questão de gênero sempre foi um problema dentro do Movimento Homossexual (hoje LGBT), este subgrupo, identificando-se com o feminismo, se autodenomina subgrupo lésbico-feminista, registrando também outras variantes deste mesmo nome até separar-se do grupo misto (maio de 1980), quando passa a chamar-se Grupo Lésbico Feminista (LF). Este grupo por sua vez, já no final de 1980, sofre um racha e enfraquecido subsiste até meados de 1981, sendo formalmente substituído pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) em outubro de 1981. O GALF, por sua vez igualmente, será o único grupo lésbico a subsistir por toda a década de 80 até 1989, quando cede sua vez à Rede de Informação Um Outro Olhar, formalmente constituída em abril de 1990. Essas diferentes denominações e substituições correspondem a mudanças não só nos coletivos que formaram esses grupos (que tem elos em comum) como nas influências ideológicas que os nortearam, cuja abordagem foge dos objetivos desse artigo.

Aqui interessa apenas lembrar que o Movimento Homossexual, que nasce em 1978 e tem seu pico de expansão em 1980, começa a declinar a partir de 1981, mergulhando numa grande crise até 1983/84, devido a conflitos internos e a duas questões que se mesclaram numa combinação explosiva: o questionamento sobre a identidade homossexual e a chegada da AIDS, alcunhada em seus primórdios de câncer gay, peste gay. De meados da década de 80 até o início da década de 90, o Movimento Homossexual viverá numa espécie de limbo político, subsistindo graças aos esforços heróicos de grupos como o GALF (SP), GGB (BA), Triângulo Rosa (RJ) e Dialogay (SE), embora outras agremiações femininas, masculinas ou mistas tenham surgido nesse período, todas contudo de vida efêmera.

Por outro lado, o Movimento Feminista (MF), para onde as lésbicas migram por falta de opção inclusive, vive seu ápice na década de 80, ocupando na mídia, ainda que de forma mais modesta, o lugar que hoje ocupa o Movimento LGBT, com feministas escrevendo em colunas na grande imprensa, coordenando programas de TV e tendo suas reivindicações sendo incorporadas à sociedade em geral. No que tange às lésbicas, contudo, o Movimento Feminista foi uma verdadeira madrasta. Após o impacto do aparecimento do subgrupo lésbico-feminista em eventos feministas, em 1980, o MF vai absorver individualmente as militantes do LF bem como de outros grupos lésbicos que existiam então (Terra Maria) ao mesmo tempo em que despolitiza a questão lésbica. Ainda que permitindo uma ou outra palestra ou oficina lésbica em seus encontros ou mesmo dando apoio eventual a manifestações lésbicas (como a do 19 de Agosto), liberalidades sempre seguidas da admoestação de que a questão de gênero era a mais importante e não havia espaço para grupos lésbicos específicos, a política do Movimento Feminista para lésbicas, durante toda a década de 80 e 90, posição só alterada em 2002, foi a da invisibilidade. As feministas homossexuais, em número razoável dentro do MF, ou simplesmente se omitiam sobre a questão lésbica (como se não tivessem nada com isso) ou hostilizavam abertamente todas as tentativas de politização do assunto.

Cansadas dessa situação e de outras tantas contradições do feminismo, o Grupo Ação Lésbica Feminista se afasta do MF em 1988, deixando um vácuo que será preenchido por feministas homossexuais que, ao contrário da maioria, achavam que o MF deveria sim assumir politicamente a questão lésbica, embora permanecessem com a idéia de que seu campo de atuação deveria ser somente o próprio movimento. Uma reunião, realizada durante o X Encontro Nacional Feminista em Bertioga (1989), originará um coletivo de onde surgirão os primeiros grupos lésbicos (3) a subsistirem por mais tempo, no período que vai de 1989 a 1996, concomitantemente ao surgimento da Rede de Informação Um Outro Olhar (também em 1989).

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DÉCADA DE 90: RESSURGIMENTO DO MOVIMENTO HOMOSSEXUAL

Nesse ínterim, o Movimento Homossexual começa a ressurgir das cinzas, sendo o ano de 1993, um divisor de águas nesse sentido, quando grupos de São Paulo, como a Um Outro Olhar, o grupo Deusa Terra (lésbico), ativistas lésbicas independentes, como Monica Pita, e grupos gays como o incipiente núcleo de gays e lésbicas do PT e o grupo Etecétera e Tal, do psicanalista Arnaldo Domingues organizam, o VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais, em Cajamar (set/1993, SP). O Movimento Homossexual que renasce a partir dos primeiros anos da década de 90, ao contrário de seu antecessor, do final dos anos 70 e começo dos 80, vai ter um perfil fundamentalmente reformista e mais androcêntrico do que a da primeira geração, girando em torno das questões dos gays. Inserir a palavra lésbica no título do VII encontro do movimento, a fim de evidenciar a questão das mulheres homossexuais, exigiu consultas nacionais, abaixo-assinados e troca de desaforos entre as ativistas lésbicas e grupos gays mais tradicionalistas, como o Grupo Gay da Bahia, que viam na mudança de nome uma ameaça à unidade do movimento. Mas a alteração foi assumida e, no próprio encontro, houve outra alteração que resultou na denominação Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas. No VIII Encontro, em Curitiba (jan/1995), as travestis também reivindicaram a inserção do T, sendo acatadas de forma muito mais tranqüila, e os Encontros passaram a denominar-se Encontros Brasileiros de Gays, Lésbicas e Travestis (EBGLT), denominação que prevalece até hoje.

No encontro de Curitiba, também foi criada a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT) que teve como fundadoras as ativistas da Rede de Informação Um Outro Olhar e do nascente Grupo Lésbico da Bahia (GLB), além de ativistas dos grupos gays e travestis. Do período que vai de 1993 a 1996, desaparecem dois dos grupos lésbicos do início da década de 90, o Estação Mulher e o Deusa Terra, e permanecem a Rede de Informação Um Outro Olhar e o Coletivo de Feministas Lésbicas (todos de São Paulo) este último que, mudando sua política de não trabalhar com homens, passa a atuar também no Movimento agora já GLBT.

CHEGANDO À IDÉIA DO DIA DA VISIBILIDADE

No ano seguinte, em 1995, o jovem grupo Arco-Íris, do Rio de Janeiro, e outros grupos cariocas sediam a 17ª Conferência da ILGA (Associação Gay e Lésbica Internacional), de 18 a 25 de junho de 1995, que culminará com Marcha pela Cidadania Plena de Lésbicas e Gays, primeira manifestação de rua realizada no Brasil desde 1981 (quando ocorreu, em São Paulo, a primeira passeata homossexual de protesto contra as prisões arbitrárias de gays, lésbicas, travestis e prostitutas pelo famigerado delegado Richetti). No contexto da Conferência, surgem mais dois grupos lésbicos: o Movimento D’Ellas, fundado pela ativista Yone Lindgren, que militara na primeira geração do MHB e que retornava ao movimento, e o Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro (COLERJ), formado por mulheres que vinham de experiências tanto no movimento feminista quanto no movimento negro.

Embora recém-nascido, o COLERJ se propõe a coordenar a Secretaria de Mulheres da ILGA, e a Rede de Informação Um Outro Olhar, que já vinha de uma boa experiência internacional, foi convocada a dividir a secretaria com esse grupo a fim de apoiá-lo. Em julho de 1995, os dois grupos se reúnem na sede da Rede de Informação Um Outro Olhar, em São Paulo, e discutem propostas para a Secretaria de Mulheres da ILGA. O COLERJ, contudo, pensa na Secretaria fundamentalmente como um apoio para a disseminação de encontros lésbicos no Brasil, a fim de incentivar a criação de grupos lésbicos e a criação de um movimento lésbico. Aqui cabe um parêntese para, retornando a 1993, lembrar que o grupo Deusa Terra (SP), durante a tentativa de organizar o IV Encontro Latino-Americano de Lésbicas Feministas no Brasil (1993), já havia proposto o mesmo, ponderando sensatamente que, em vez de fazer um encontro internacional, se passasse a gastar energias para a fundação de grupos lésbicos em nível nacional, proposta que não foi aceita. O COLERJ retoma essa idéia, que tem anuência da Rede de Informação Um Outro Olhar, mas não consegue desenvolvê-la de imediato por conflitos internos do grupo que o levaram a um racha no segundo semestre de 1995.

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Superando esses conflitos em 1996, o COLERJ organiza em 29 de agosto do mesmo ano, o primeiro seminário nacional de lésbicas (SENALE), realizado num hotel do Rio de Janeiro, com financiamento governamental. Em homenagem ao I SENALE, lançou-se de fato, em seu contexto, a idéia do dia 29 de agosto como dia nacional da visibilidade lésbica pelas participantes do evento, participantes que, todavia, de forma alguma conformaram o número de mais de 100 ativistas. Como bem dito acima, o SENALE foi pensado como um estimulador da formação de grupos lésbicos no Brasil porque exatamente na época em que foi realizado, 1996, não havia nem meia dúzia de grupos lésbicos em todo o território nacional, e todos os grupos lésbicos eram diminutos. De onde teriam aparecido então essas mais de 100 ativistas lésbicas que teriam estabelecido o dia 29 de agosto como dia da visibilidade lésbica? De outra dimensão do espaço-tempo?

Para desvendar esse mistério, cumpre dar um salto de 7 anos à frente desse momento, para o ano de 2003, quando ocorre em São Paulo o V SENALE durante as celebrações da 7ª Parada do Orgulho GLBT. Este será o primeiro SENALE que contará com a presença de mais de 100 participantes, não necessariamente ativistas lésbicas, porém sem dúvida mais de 100. Os anteriores, no Rio, em Salvador, Belo Horizonte e sobretudo em Fortaleza reuniram em média de 40 a 60 participantes, sendo o de Fortaleza o mais desestruturado de todos, ao contrário do que se deveria esperar pela seqüência. Citando a mim mesma, na revista Um Outro Olhar, sobre o II SENALE de Salvador (24-28/09/97):“Não se sabe se pelo número reduzido de pessoas, considerando tratar-se de um evento nacional, ou se por alguns erros organizativos ou políticos que impediram um aprofundamento das questões, o certo é que o encontro ficou meio chocho, meio morno demais (Revista Um Outro Olhar, 27. Encontro Morno em Salvador. Miriam Martinho).”

Citando Neli Aparecida de Farias, participante do III SENALE: “Dos dias 25 a 27 de setembro de 1998, realizou-se em Betim, Minas Gerais, o III Seminário Nacional de Lésbicas (III SENALE), com mulheres de algumas cidades do Brasil como Campinas, São Paulo, Brasília, Rio e Salvador, além de gente das próprias gerais, somando aproximadamente 40 participantes.” E sobre o clima desse evento, agudizado no encontro posterior, cito Virgínia Figueiredo, outra participante: “Como fomos todas custeando nossas despesas,... parecia que estávamos num retiro para descanso, para bater papo, etc.., pois a grande maioria (desestimulada pela falta de oficinas) preferia ficar bebendo e tomando banho de piscina (Revista Um Outro Olhar, 29. Considerações sobre o III SENALE).”

O IV SENALE, realizado no Ceará, de 29/08-01/07-2001, seguiu o mesmo estilo, caracterizando-se por ser um encontro para a realização de uma enquete/pesquisa. O encontro foi tão desestruturado que as duas integrantes da Um Outro Olhar que dele participaram disseram que não havia o que relatar e que, para simplesmente esculhambar o evento, era melhor se manterem caladas. Lamento essa postura, pois, ficamos sem um registro do encontro com algum distanciamento crítico. De qualquer forma, deste SENALE saiu a decisão de realizar o V SENALE em São Paulo, ao qual a Rede de Informação Um Outro Olhar se comprometeu a apoiar na forma de divulgação ao menos. Nos meses posteriores, contudo, até a realização do evento, não recebemos qualquer notícia ou informação a respeito da organização do mesmo, no velho esquema de comadrio que sempre caracterizou a estruturação desses encontros (em todas as suas versões).

2003: LÉSBICAS NA PARADA E O LANÇAMENTO DO DIA DO ORGULHO LÉSBICO!

De agosto de 1996 (quando se registra a idéia do dia da visibilidade) até junho de 2003, a questão dos direitos homossexuais vai ganhar cada vez mais visibilidade na sociedade, sobretudo na mídia, mas não houve comemorações do dia da visibilidade lésbica em todo esse período. O que surgiu nesse sentido foram as Paradas do Orgulho LGBT que hoje tomam conta do país inteiro.

Ainda durante a 17ª Conferência da ILGA, grupos paulistanos presentes ao evento refletiram que seria interessante trazer o próximo EBGLT para São Paulo novamente e assim acabou ocorrendo. Em fevereiro de 1997, a Rede de Informação Um Outro Olhar organizou, praticamente com os mesmos grupos do VII Encontro, o IX Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Travestis (um encontro muito tumultuado por conflitos em sua maioria promovidos por ativistas GLBT petistas), cujo maior mérito foi

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ter produzido o embrião das futuras paradas que hoje levam milhões às ruas (os participantes saíram em passeata do Largo do Arouche, passando pela República, pelo Teatro Municipal, cruzando a mitológica Ipiranga com a Avenida São João e terminando atrás da Igreja da Consolação). Nesse mesmo ano, em junho, entusiasmados com a experiência do IX Encontro, ativistas gays repetem o feito se reunindo em frente da Gazeta e seguindo em passeata pela avenida Paulista até a praça Roosevelt, no percurso que até este ano (2006) identificou as grandes Paradas do Orgulho de Sampa.

Na esteira das grandes Paradas de São Paulo, que continuaram num crescendo a cada ano, as ativistas lésbicas começam também a movimentar-se para conseguir marcar presença. A Rede de Informação Um Outro Olhar inicia esse processo em 1999 se postando no início das Paradas, quando ainda era possível fazer isso, carregando faixas relativas à liberdade de expressão sexual. Em 2001, faz a Parada numa truck, tendo em vista a necessidade de distribuir material, no que foi imitada por um outro veículo (um trenzinho) de um outro grupo de lésbicas. De 2001 até hoje (2006), a Rede de Informação Um Outro Olhar saiu nas Paradas com trios elétricos financiados por órgãos governamentais ou por verbas das próprias participantes, dividindo a avenida com o grupo AMAM (lésbico) que também sai tradicionalmente desde a mesma época.

Igualmente antes e depois das Paradas, passam a ocorrer outros eventos comemorativos do orgulho LGBT nacionais, incluindo atividades para lésbicas. Entre outras, em 2000, ocorreu um evento comemorativo dos 20 anos de ativismo lésbico no Brasil e, em 2003, o V SENALE, além da Primeira Caminhada Lésbica. Neste mesmo ano, Luiza Granado e Neusa Maria de Jesus, da Rede de Informação Um Outro Olhar e da Associação da Parada do Orgulho GLBT, na época, uniram-se para tentar formar uma secretaria de lésbicas dentro da Associação, entidade que sempre se caracterizou por ser fundamentalmente masculina e gaycêntrica. Para dar destaque à questão lésbica, nos eventos comemorativos da Parada do Orgulho LGBT daquele ano organizaram um debate específico sobre a questão lésbica (11/06/2003) e durante o mesmo lançaram o Dia do Orgulho Lésbico, dia 19 de Agosto, em referência à primeira manifestação lésbica contra o preconceito e a discriminação ocorrida no Brasil, em São Paulo, em 1983. O dia foi lançado tendo em vista estabelecer uma referência histórica de luta e orgulho para lésbicas e que de fato pudesse a vir ser comemorada, tendo em vista inclusive que o outro dia que se havia pensado nesse sentido nunca havia saído do papel.

2003: O ORGULHO LANÇA A VISIBILIDADE

O lançamento do Dia do Orgulho Lésbico, em 2003, foi amplamente divulgado pela mídia, mais por uma coincidência do que por causa de uma campanha planejada de divulgação. Como de praxe, o jornalista Aureliano Biancarelli, então da Folha de São Paulo, buscou a Rede de Informação Um Outro Olhar para saber o que estávamos planejando para a Parada do Orgulho e foi informado sobre o lançamento do 19 de Agosto. Fez uma reportagem sobre o assunto com Luiza Granado e Neusa Maria de Jesus, pauta que foi, como de costume, reproduzida por outros jornalistas e outros veículos da mídia, dando uma grande divulgação à iniciativa.

Nesse ínterim, como já dito, ocorria o V SENALE em São Paulo, cujas fundadoras haviam lançado a idéia do dia da visibilidade em 1996, embora nunca tivessem se dado o trabalho de viabilizá-la. Diante da ameaça de ver um outro dia suplantar o dia da visibilidade, durante plenária desse evento, elas ressuscitaram o dia da visibilidade como data de comemoração, passando efetivamente a celebrá-lo a partir deste ano de 2003.

Até aí morreu Neves, como se diria. O problema é que à parte essa decisão, essas ativistas iniciaram também uma campanha de difamação e injúrias (crimes previstos no Código Penal deste país) contra as pessoas que lançaram o Dia do Orgulho e suas respectivas organizações. O relato que se segue poderia ser definido como uma ópera bufa, não fosse o quadro muito triste do estado moral dos movimentos sociais que vem a revelar.

Conjugaram-se para ampliação dessa campanha difamatória interesses de ativistas de outros movimentos, desafetos históricos das organizações que lançaram o 19 de Agosto, que se aproveitaram da situação para realizar seus intentos oportunistas e retaliatórios. De um lado, tivemos os glpetistas

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(gays e lésbicas petistas) que tinham problemas com a diretoria da Associação da Parada de então, que havia expulsado o ex-presidente da entidade, Beto Jesus, sob acusação de improbidade administrativa, e com a própria Rede de Informação Um Outro Olhar, com quem tinham conflitos desde a organização do IX Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Travestis (1997), sem falar num conflito de fundo mais antigo que remete à história primeira do movimento homossexual brasileiro, quando os anarquistas deixaram o grupo SOMOS em protesto contra a tomada da organização por grupos da Convergência Socialista. A Um Outro Olhar descende politicamente desse grupo que deixa o SOMOS. De qualquer forma, não pretendo me estender sobre o papel dos glpetistas nessa ópera bufa, assunto para outro momento, mesmo porque o governo Lula, seus mensalinhos e mensalões, cuecas cheias de dinheiro, sanguessugas e outros bichos peçonhentos falam por mim muito melhor do que eu jamais imaginei que poderia dizer.

De outro lado, tivemos as feministas homossexuais desempenhando um papel importante na construção do dia da visibilidade, como hoje ele se celebra, sobre as quais vale a pena se debruçar um pouco mais. Como vimos no início desse artigo, o movimento feminista pregou a invisibilidade lésbica em seu meio até 2002 quando, na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (Brasília, 6-7/06/2002), assumiu finalmente a questão. É preciso lembrar que, mesmo aí, o apoio que o MF deu à questão lésbica, ainda era indireto, como apoio à causa de gays, lésbicas e travestis e não como apoio a causa das mulheres lésbicas. Foi esta que lhes escreve que introduziu na Plataforma Feminista o papel fundamental das mulheres lésbicas na luta pelos direitos das mulheres em geral, porque as feministas homossexuais haviam se esquecido desse detalhe.

Voltando um pouco no tempo, lembremos que no início do MF, em nosso país e no mundo todo aliás, a sociedade machista acusava as feministas de reivindicarem igualdade para as mulheres porque elas não gostavam de homens, porque eram sapatões. As feministas se acovardaram diante dessas acusações e sacrificaram a questão lésbica para se manterem distantes desse estigma. O grau de invisibilidade a que as lésbicas ficaram sujeitas dentro do MF foi maior ou menor de acordo com a capacidade destas de aceitarem ou não essa situação. Nos EUA, onde as lésbicas já tinham alguma articulação até antes da emergência do feminismo, essa política não vigorou. No Brasil e em outros países da América Latina, essa política foi hegemônica até o início deste século.

Acontece que a História pregou uma peça nas feministas. A mesma sociedade machista que as acusava de sapatões por reivindicarem direitos iguais para as mulheres acabou, 26 anos depois, transformando as lésbicas em fetiche da mídia e tirando as feministas e o feminismo da pauta das redações. Prova de que não vale a pena fazer certas barganhas. Principalmente do início do milênio para cá, à parte toda a evidência trazida pelas Paradas do Orgulho LGBT, começaram a surgir personagens lésbicas em novelas, seriados, atrizes e cantoras dando selinhos em amigas, cantoras hétero se fazendo passar por lésbicas, como jogada de marketing, até chegarmos recentemente à novelinha lésbica que é o seriado americano The L Word, onde sobram cenas tórridas de sexo entre mulheres em plena TV. Quem diria, não?

Nessas circunstâncias, depois de 2001, as feministas homossexuais começaram a se interessar pela organização lésbica que, aos trancos e barrancos, foi de qualquer forma crescendo paralelamente ao MF. Esse interesse se concretizou exatamente em 2003, quando do lançamento do Dia do Orgulho Lésbico e da realização do V SENALE, onde de fato se lançou também o dia da visibilidade lésbica. A princípio algumas feministas homossexuais ficaram em dúvida sobre o que fazer diante da existência de desses dias lésbicos, mas depois consideraram mais oportuno apoiar o dia da visibilidade.

Se fosse só apoiar, contudo, não haveria problema. Mas elas resolveram encampar a campanha difamatória e injuriosa contra as pessoas que lançaram o Dia do Orgulho Lésbico, com armações e articulações nada condizentes com os princípios feministas (o que será isso?) ou de direitos humanos. Os ataques visaram atingir a credibilidade das pessoas que lançaram o Dia do Orgulho e a validade do mesmo, inclusive com ameaças de ostracismo político contra aquelas e aqueles que naturalmente apoiavam o dia.

Então, nós tivemos dois movimentos na construção do dia da visibilidade:

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1) primeiro, o da afirmação do dia, através do mito de que ele teria sido lançado por mais de 100 ativistas lésbicas, em 1996, e conseqüentemente comemorado desde então e 2) segundo, o do ataque à credibilidade das pessoas que lançaram o Dia do Orgulho Lésbico e à validade do mesmo. Neste segundo movimento, procurou-se invalidar o Dia do Orgulho dizendo que ele não tinha sido tirado numa plenária, pois só uma plenária daria aval a tais comemorações. Esqueceram-se, contudo, que os símbolos máximos de celebração da comunidade LGBT em todo o mundo, comemorados inclusive por estas mesmas pessoas, não saíram de nenhuma plenária. O Dia Internacional do Orgulho Gay, o dia 28 de junho, foi lançado por um grupo homossexual americano que capitalizou a revolta de Stonewall Inn e a bandeira do arco-íris foi criada por um artista gay americano e divulgada no meio LGBT passando a ser adotada internacionalmente.

De fato, as razões para as feministas homossexuais terem se metido nessa pendenga (pendenga desnecessária, diga-se de passagem) remetem a uma repetição da História. Como já vimos anteriormente, o Movimento Feminista da década de 80, após o impacto do aparecimento dos grupos lésbicos em seu meio, absorve individualmente as ativistas lésbicas de então enquanto esvazia politicamente a questão lésbica. Quase duas décadas e meia depois, esse mesmo MF volta a absorver a organização lésbica brasileira, agora como apoiadoras da visibilidade lésbica (sic). Na verdade, trata-se de um dos casos mais deslavados de cooptação e aparelhamento de um movimento por outro de que tenho notícia. Só para citar dois exemplos mais acintosos dessas ações: na caminhada lésbica de Sampa, em 2005, se viram mais bandeiras sobre o aborto do que bandeiras com temas lésbicos na avenida. No último SENALE, em Recife, viu-se a princípio, como propostas de temas para as mesas do encontro, novamente o aborto e os direitos sexuais e reprodutivos. Isso sem falar que o evento foi organizado por grupos como o Fórum de Mulheres de Pernambuco e, como se soube posteriormente, teve, em sua comissão organizadora, até mulheres heterossexuais, enquanto, ao mesmo tempo, não aceitou a presença de mulheres transexuais. Por fim, vem se notando também, nos últimos 3 anos, uma inflação repentina de grupos lésbicos, todos, contudo, se identificando também como feministas.

Aqui, cabe um aparte, antes de encerrar este artigo que já se estende além de seus propósitos. O Movimento Feminista não é o Movimento Lésbico. Embora o Movimento Lésbico, em todas as partes do mundo, principalmente na América Latina, tenha muitas vezes intersectado ou tangenciado o Movimento Feminista, sua história e suas protagonistas não são as mesmas, o que fica evidente principalmente quando lembramos da política de despolitização da questão lésbica que o MF manteve durante décadas. Outrossim, o Movimento Lésbico é composto, internacionalmente, além de lésbicas que se identificam como feministas, de lésbicas radicais, separatistas, políticas, de buches e femmes, lésbicas BDSMistas, lésbicas queer e de uma maioria de lésbicas que não está afinada com nenhuma tribo política, mas que, a seu modo, sempre foi mais visivelmente lésbica do que as feministas homossexuais jamais conseguiram ser nem no movimento que sempre carregaram nas costas.

CONCLUINDO

Como disse no início desse artigo, meu objetivo foi tornar visíveis as distorções históricas que se seguiram ao real lançamento do dia da visibilidade lésbica, tendo em vista que essas distorções violam a história da organização lésbica no Brasil, seus fatos e sua evolução natural.

Resumindo, a principal distorção histórica, que passou a ser repetida exaustivamente principalmente depois de 2004, é de que o dia da visibilidade lésbica teria sido tirado por uma plenária de mais de 100 ativistas lésbicas, em 1996, quando em 1996 não havia sequer 6 grupos lésbicos no país inteiro. Outra distorção, decorrência da primeira, é a de que o dia da visibilidade lésbica teria sido celebrado desde 1996, ao ser lançado, quando de fato passou a ser celebrado apenas em 2003 para contrapor-se ao dia do orgulho lésbico.

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Tais fatos podem ser tranqüilamente levantados por qualquer pesquisador(a) que se disponha a rastrear essa história buscando registros dessas supostas mais de 100 ativistas lésbicas e de onde e como foram celebrados os dias da visibilidade lésbica antes de 2003. Seguramente, encontrará atividades públicas e visíveis de 2003 para cá, intituladas de visibilidade lésbica, mas antes só encontrará registros da primeira manifestação lésbica contra o preconceito e a discriminação que foi efetuada em 1983 num bar da capital paulistana chamado Ferro’s Bar.

Meu segundo objetivo, foi tornar visível a campanha difamatória e injuriosa armada contra as pessoas e as organizações que lançaram o Dia do Orgulho Lésbico em 2003, tendo em vista invalidar o dia e afetar a credibilidade de suas promotoras para, entre outras coisas, por exemplo, impedir que artigos como este, que denunciam estas distorções, sejam levados em consideração.

Cumpre finalizar lembrando que as razões para essas distorções têm motivações muito pouco auspiciosas que inclusive colocam em cheque o próprio espírito da luta de quem as produziu. Primeiro, provam a incapacidade dessas pessoas, que reivindicam da sociedade o respeito às diferenças, de respeitar as diferenças. Enquanto a motivação para a celebração do dia da visibilidade foram suas próprias qualidades intrínsecas, ele nunca saiu do papel. Quando se tratou de competir com outro dia e de, sobretudo, de tentar suprimir esse outro dia, o dia da visibilidade encontrou motivação para existir e expandir-se. Triste combustível esse.

E esse afã supressor parte do mesmo princípio que levou a tantos na história da humanidade a acreditar no Deus único, no partido único, em tantas outras balelas únicas, cuja unicidade sempre precisou ser mantida às custas de muitas guerras morais ou materiais. No caso dessa pendenga dos dias lésbicos, não fosse por esse afã supressor de inspiração claramente fascista, ambas as datas seriam comemoradas por umas e outras, mais por umas, menos por outras, mas ambas seriam celebradas sem traumas por transeuntes dos dois eventos.

No entanto, fica muito difícil para as promotoras do dia da visibilidade lésbica explicar porque elas não celebram a primeira manifestação de visibilidade lésbica ocorrida no Brasil em 1983. Fica difícil explicar porque não celebram a memória da ativista (Rosely Roth) que encarnou – como ninguém – o conceito que essas pessoas têm de visibilidade lésbica. Melhor apagar todos esses incômodos questionamentos apagando a lembrança do evento que os origina.

Infelizmente, o afã supressor das promotoras do dia da visibilidade acabou criando um clima totalmente hostil à convivência entre os eventos, descambando para um vale-tudo destrutivo onde prevaleceu até agora a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios e a máxima goebeliana de que uma mentira repetida mil vezes ganha foros de verdade.

Sabemos todos que há mentiras brancas cuja elucidação não vale a pena, pois as motivações que as criaram inclusive foram positivas. Há outras mentiras, no entanto, com as quais não podemos conviver assim como há princípios que não podemos barganhar. Que se comemore o dia da visibilidade lésbica não é um problema nem o objeto desse artigo, mas que ele pelo menos se sustente em sua realidade histórica e não em inverdades que atingem historica e moralmente muito mais do que a ele mesmo.

Miriam Martinho, São Paulo, 29 de agosto de 2006