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Dez MulheresMuitas Vidas

Scheilla GumesAdenor Gondim

SalvadorEditora CEBI2013

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CAPA, PROJETO GRÁFICO e EDITORAÇÃOMárcia Cruz e Ricardo Martins

EDIÇÃOScheilla Gumes

REVISÃOPaula Rios

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃOEliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184

REALIZAÇÃOBFDW, ELO Ligação e Organização, Comissão Pastoral da Terra

Este livro foi financiado com recursos de BFDW - Pão para o Mundo.

Copyright © BFDWPermitida a reprodução, desde que citadaa fonte/autoria.

CENTRO DE ESTUDOS BÍBLICOSCaixa Postal 1051 – B. Scharlau 93121-970 São Leopoldo - RS51 3568 [email protected]

D532 Dez mulheres muitas vidas / Scheilla Gumes e Adenor Gondim. – Salvador: CEBI, 2013. 114 p. : il.

ISBN 978-85-7733-210-6.

1. Mulheres - Relato de experiência. 2. Mulheres - Biografia. I. Gumes, Scheilla. II. Gondim, Adenor.

CDU 396

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“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.Guimarães Rosa

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SumárioApresentaçõesItinerárioSuperação - Miguelina de Oliveira Campos

Diálogo - Maria Ivanildes Lima Santos

União - Raimunda Alves Lima

Justiça - Ivani Vitanardi

Leveza - Leonora Brunetto

Determinação - Lindaura Zumack

Compromisso - Dorcina Rosa de Vieira Cruz

Solidariedade - Vera Maria Lobo

Esperança - Germana Benedita da Silva

Desejo - Camila Sales da Silva

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Apresentações

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Os perfis dessas mulheres pretendem, em conjunto, ofer-tar ao leitor um pouco da história de luta e permanência das camponesas no meio rural mato-grossense. Todas elas fazem parte da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Mato Grosso, Brasil.

A ideia de realizar este livro partiu do contato de aproxi-madamente oito anos do ELO Ligação e Organização com a Comissão Pastoral da Terra no Mato Grosso, em função do acompanhamento ao projeto que esta desenvolve e que é apoiado pela agência de cooperação internacional alemã, Brot fuer die Welt (em português, Pão para o Mun-do - PPM).

Nas assembleias, nas reuniões do Conselho Regional da CPT, nas visitas aos trabalhos de campo, foi se consolidan-do a certeza de que as mulheres têm um papel preponde-rante na busca pela garantia do direito à terra para nela viver e produzir. Paralelo a essa percepção, em função da política de promoção da equidade de gênero adotada por Pão para o Mundo, foi incentivado esse debate no interior da Pastoral.

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Mas essa proposta só faria sentido se as mulheres, prota-gonistas dessa história, compartilhassem conosco a com-preensão sobre a importância do registro de suas vidas. Como fazer isto? Tivemos a sorte de que o processo de organização das mulheres da CPT tenha levado à realiza-ção de um primeiro encontro específico destas, nos dias 02 e 03 de maio de 2013, oportunidade em que a ideia foi apresentada e discutida. A receptividade foi imediata.

Como então poderíamos por em prática a iniciativa? Em grupos organizados por microrregião (Araguaia, Baixa-da Cuiabana, Médio Norte, Norte), as próprias mulheres definiram os critérios e escolheram aquelas que as repre-sentariam, disponibilizando-se a compartilhar suas histó-rias, contar suas vidas e, por meio destas, a vida de todas aquelas companheiras que no seu cotidiano têm dito não ao latifúndio, a exploração do trabalho, a um modelo de desenvolvimento que exclui a maioria da população do acesso a condições dignas de vida e que compromete o futuro de nossa sociedade.

As mulheres, por sua vez, ao tempo em que representam tantas outras, são únicas. Com suas diferentes vivências, demonstram os possíveis caminhos de superação a serem trilhados. Cada região do estado tem suas peculiaridades e, objetivamente, percursos diferenciados de luta. Esses aspectos também são notados.

O produto que temos é, pois, o resultado de um esforço coletivo. De PPM, que partilhou conosco do quão funda-mental é esse registro para a história da resistência na ter-ra, que tanto tem apoiado nestes mais de 50 anos de atu-ação e se propôs a financiar os custos dessa empreitada. Da CPT Nacional e regional Mato Grosso que desde o início compartilhou do nosso desejo de retratar essas histórias e que se colocou a disposição para todas as necessidades decorrentes. Do Cebi, que, conhecendo, o projeto do livro, se interessou por editá-lo. De Scheila e Adenor, que fize-ram com que a ideia se materializasse, embarcando nesta viagem com enorme sensibilidade e respeito. De todas as entrevistadas, suas famílias e comunidades, que abriram suas casas, seu cotidiano. E, de todas as mulheres da CPT Mato Grosso, que, com sua lida diária, têm contribuído para construir uma sociedade justa.

A leitura não tem ordem determinada. Ler as histórias na sequência em que se apresentam é percorrer uma espiral de sentimentos e soluções palpáveis para nosso país.

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Seguros de que aqui vai algo bastante inspirador para o surgimento de muitas outras histórias, desejamos boa lei-tura.

Maria de Fátima Pereira do NascimentoELO Ligação e Organização

Mathias FernsebnerBrot fuer die Welt

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Palavra dentro da qual estou a milhõesde anos é árvore.Pedra também.Eu tenho precedências para pedra.Pássaro também.Não posso ver nenhuma dessas palavras quenão leve um susto...

Manoel de Barros

Estas mulheres feitas de palavras são árvores!

Frondosas, antigas, acolhedoras e generosas de dar a vida espalhando seus longos braços como aconchego de ni-nhos de histórias pessoais e comunitárias. Elas acolhem pessoas e gentes diferentes que na luta pela terra se fa-zem povo e encontram na sombra delas seu lugar de or-ganizar objetivos, redigir reivindicações e denúncias. Elas são sombra necessária no árido centro-oeste de enfren-tamento do latifúndio, do agronegócio, da lei injusta e da violência dos matadores.

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Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dor-cina Vera Germana Camila

Estas mulheres feitas de palavras são pedras!

Força e firmeza. Pedras comprometidas com seu lugar. Pe-dras que marcam o lugar e a terra conquistada com a per-manência da luta e sua vontade de ficar. Mas também são pedras de avoar, de se atirar, de tirar do lugar. Pedras em movimento, essas mulheres se “ajogam” na luta do povo e daí tiram a força necessária para enfrentar os poderosos, liderar processos difíceis, criar estratégias comunitárias e ficar.

Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dor-cina Vera Germana Camila

Estas mulheres feitas de palavras são pássaros!

Algumas vieram de longe, aves migratórias no centro-oes-te brasileiro. Vindas de longe ou de mais perto, contam a história da grande peregrinação que a luta pela terra de-senha, reinventando o mapa do modo mais rude e mais difícil. Algumas vieram pra serem missionárias e acabaram nascendo de novo no lugar e pertencendo a esta primeira geração que surge da luta e do amor pela terra. Outras são de perto mesmo, mas tiveram que “avoar” dos cená-rios sociais conhecidos e tradicionais para serem mulheres novas, de relações de poder novas.

Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dor-cina Vera Germana Camila

Estas mulheres feitas de palavras são susto!

Estas mulheres são susto! Elas conseguem, na prática, exercitar toda a agenda do movimento de mulheres e fe-ministas, articulando o mundo da casa e o da luta, pen-sando o mundo do trabalho e da casa como quem já sabe como é que se superam os machismos na casa, na rua, nas organizações, na política. Dos biscoitos e costuras às negociações e debates públicos... Nada é estranho a estas mulheres! Elas querem a casa, a família, o homem amado, a filharada e os netos... Mas não querem só o que é delas porque já descobriram que a luta de cada uma é a luta de todas. E assim elas vivem do que fazem e do que dizem. Elas vivem de amor porque é de amor que a luta é feita.

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Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dor-cina Vera Germana Camila

Estas mulheres feitas de palavras!

Este livro junta no texto mulheres que a vida juntou no centro-oeste brasileiro. Mulheres que ensinam as pala-vras necessárias para a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras organizações que encontram em suas histórias de vida os significados e as motivações de um projeto popular para o Brasil.

Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dor-cina Vera Germana Camila

... essas e tantas outras na luta pela terra.

Nancy Cardoso PereiraTeóloga Metodista

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Camila, Irmã Vera, Germana, Miguelina, Ivani, Irmã Leono-ra, Dorcina, Lindaura, Ivanildes, Raimunda. Não encontrei esses nomes em uma lista de telefones, de desaparecidos ou da bolsa família.

Eu as fotografei e ouvi a historia de cada uma. Historias de quem busca um lugar ao sol, começando dentro de casa ou da comunidade, acrescentando ao papel de apenas “dona de casa” a criação de associações, grupos de tra-balhos, participações em movimentos sociais de luta pela terra e sindicatos.

Buscam justiça quando a omissão é regra e contribuem para um velho-novo momento do campo. Tempo da luta pelas terras devolutas que pertencem ao povo brasileiro. Onde florestas são dizimadas pela soja, pelo milho, pelo boi, marginalizando, à força, os pequenos produtores que alimentam o Brasil e superpovoando as periferias das grandes cidades.

Entre essas mulheres, duas religiosas cujo foco da vida e do trabalho não é exclusivamente um lugar no céu. Mu-lheres que não usam o nome de Deus em vão e pelas suas

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ações colocam a própria vida em jogo. Brasileiras em pro-cesso de busca do que é ser e de seus direitos na terra. Onde a lei e a vida pouco importam para uns, mas é de vital importância para a própria nacionalidade.

Adenor Gondim

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Ouvir vozes por tantas vezes silenciadas enche os ouvidos da certeza de que não estamos apenas começando. As trilhas estão abertas. Há que se adentrar, tomar posse do caminho.

Não há desânimo nas páginas que seguem. Esse, com certeza, não é ingrediente usado por essas brasileiras nas suas receitas de fazer cidadania. Sensibilidade, paciência, confiança, certamente, sim.

O Brasil aqui visitado é sombrio quando o assunto são os direitos do povo. Ainda assim, elas se colocam na linha de frente e – sem metáforas – mostram a cara, em busca do adversário que quer se ocultar, que se faz invisível, doce cordeiro, mas avança feroz, hostil, destruidor.

O povo brasileiro tem face, braços fortes, muitos nomes. Está aprendendo a ter voz, a dizer de si, do seu lugar. Não quer fazer parte do inalcançável projeto de desenvolvi-mento que lhes foi imposto e que é sempre do outro.

Elas, que representam um tanto significativo do Brasil, querem apenas o que é seu.

Scheilla Gumes

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Cuiabá

Salvador-BA Cuiabá-MT

1

Viagem a Porto Alegredo Norte via Brasília

(Retorno mesmo roteiro)

Retorno para Cuiabá

ROTA 1

ROTA 2

Porto Alegredo Norte

10Canabravado Norte

11Nova Guarita6 Novo Mundo7

Terra Novado Norte

5

Acorizal2Jangada3

Nossa Senhorado Livramento

4

Sinop89 Juína

Cuiabá-MT Salvador-BA

Salvador-BA Brasília-DF

Acesso com Ônibus

2 Acorisal: Vera Maria Lobo3 Jangada (Comunidade do Mutum):

Germana Benedita da SilvaCamila Sales da Silva

4 N. Sra. do Livramento (Comunidade São Miguel):Miguelina de Oliveira Campos

6 Nova Guarita: Ivani Vitanardi

8 Sinop: Leonora Brunetto9 Juína:

Dorcina Rosa de Vieira CruzLindaura Zumack (Assentamento Gleba Iracema 2)

11 Canabrava do Norte:Maria Ivanildes Lima SantosRaimunda Alves Lima

Acesso com CarroAcesso por Avião

LEGENDA

ItinerárioMato Grosso

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SuperaçãoMiguelina de Oliveira Campos

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SuperaçãoMiguelina de Oliveira Campos já foi uma mulher tímida. Esse jeito fazia com que ela optasse, quase sempre, por estar longe de outras pessoas. Retraída, pouco falava. Até que descobriu todo o seu potencial e resolveu encarar a missão que o mundo lhe reservara.

Ela soma dois títulos honrosos: é a primeira mulher na região a presidir uma Associação de Produtores Rurais e, também, um Sindicato. Para exercer essas funções enfren-tou todo tipo de preconceito.

Tudo começou nas reuniões da igrejinha da comunidade, que é um lugar de referência muito forte no Sítio São Ma-nuel do Pari, onde vive. Foi dali que surgiram a coragem e outras ferramentas necessárias para as mulheres se orga-nizarem, se reunirem. Elas viram que a participação ativa da mulher na vida comunitária traz muitas melhorias para todos.

Formaram um grupo de mulheres, foram se fortalecendo e passaram a participar das reuniões da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Aguaçu Monjolo e de São Manuel do Pari. Começaram a expressar suas opiniões e

“quando a mulher não ocupa o seu lugar fica um lado pendente”

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assumir responsabilidades. Quando encerrou o mandato em vigência, Miguelina foi indicada para assumir a presi-dência da Associação.

Junto com ela, outras mulheres compuseram a nova dire-toria. Fizeram rifa, pagaram todas as multas e dívidas, co-locaram a documentação em dia e se tornaram lideranças de uma das duas únicas associações de produtores rurais, entre as 22 do município, aptas a concorrer a recursos pú-blicos.

Elas queriam acessar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Levantaram a produção existente e conse-guiram ajuda de um técnico para fazer o projeto. São dez produtoras que participam regularmente.

Nas suas andanças, participando de encontros e reuniões, ela ouviu falar de apoio a projetos para a formação de mu-lheres. “Muitas vezes, a gente não sabia dos nossos direitos”, diz Miguelina. Com o auxílio dos assessores da CPT, conse-guiram apoio da SAAP/FASE. Realizaram oficinas, intercâm-bio e participaram de reuniões em outros municípios.

Moedor de cana

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Com o terceiro projeto, conquistaram a estrutura para qualificar a produção da rapadura. A maior parte das fa-mílias da comunidade produzia a rapadura isoladamente. Segundo Miguelina, ficava cada uma no seu cantinho, sem conseguir avançar. Com um engenho maior e mais ade-quado, agora produzem e comercializam, coletivamente, a produção.

Nesse ritmo, Miguelina tornou-se presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Nossa Se-nhora do Livramento. Após o mandato como presidente, continua na diretoria, somando 12 anos de dedicação à luta pela terra no estado do Mato Grosso.

Depois que eu aprendi a falar um pouco, perdi a ver-gonha de pedir. Pra mim eu não peço não, mas para o bem de todos da comunidade. Com esses projetos, hoje têm várias mulheres aí que melhoraram sua auto-estima e viram que seu papel não é somente ficar atrás do fogão. Viram que podiam colaborar para melhorar a renda da família. Eu mesma, hoje, vejo o quanto sou importante na minha casa. Porque a família é um co-letivo e quando a mulher não ocupa o seu lugar fica um lado pendente. Porque cada um tem a sua função. Cada qual na família tem o seu trabalho. Aqui, nós so-mos agricultores e esse trabalho da roça, se você não fizer fica faltando. O período do sindicato me fez en-xergar que o fato de a gente estar na zona rural não nos torna diferentes das outras pessoas. Não temos condição de ter uma formação com graus elevados, mas a gente sabe muitas outras coisas. Sabemos o que a gente precisa. Aprendemos a ir a órgãos do governo, solicitar coisas. O sindicato me ajudou muito. A gente segue aprendendo. Nunca parei de aprender.

Ganhar coragem é também aprender a realizar desejos que parecem sonhos distantes e inalcançáveis. Por isso, Miguelina liderou uma mobilização e conseguiu o trans-porte para que 27 mulheres participassem da Marcha da Jornada de Luta das Margaridas, em 2011, em Brasília. “A gente só tinha o transporte mesmo. Fizemos as matulas pra ir. As farofas de frango e as comidas que não estra-gam rápido. Quando terminou a marcha, a presidente Dilma foi aos barracos falar com as mulheres. É inesque-cível”, diz.

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Não faltou fôlego para enfrentar todas as etapas de supe-ração pessoal. Mas isso não era o bastante. Ela precisou encarar os limites historicamente colocados na socieda-de para as mulheres, principalmente, para a mulher do campo. Até bem pouco tempo, as mulheres elegantes e vitoriosas eram as caladas, de olhos baixos, que sabiam se antecipar em atender os desejos dos homens e andar um passo atrás, em sinal de respeito.

Eu sofri muito preconceito, mas me deu mais força para lutar. Muitos homens falavam que Miro (o ma-rido) era bobo, porque me deixava sair. Como se al-guma mulher fosse propriedade do homem. Falavam que eu ficava por aí batendo perna e ele aqui dentro de casa. Eu ficava triste porque eu estava lutando por melhorias até para esse tipo de homem que falava isso. E para nós o movimento dos homens é conjunto. As mulheres deixam os homens participarem. Mas só vão os homens que não têm preconceito, que enten-dem que o movimento é deles também. Que entendem que as mulheres não estão lutando pra elas mesmas, mas para toda a família. Primeiro, a mística era com homens e mulheres. Depois, decidi-mos ter um momento só de mulhe-res, para ficarmos mais à vontade.

Produção coletiva: em casa e na comunidade

Por serem uma propriedade familiar, todos da casa trabalham no serviço. Miguelina é um braço forte em todas as etapas da produção. O forte da propriedade é a banana, comerciali-zada in natura e também como doce.

Na seca, quando as plantas sofrem, é época de aproveitar a cana. A ra-padura, agora feita coletivamente no Engenho da Associação, envolve também os homens. E os doces só as mulheres. Elas fazem, principalmente, o furrundu: tiram o melado da cana e

Cururu e Siriri são duas manifestações folclóricas da Região Centro-Oeste brasileira. Fazem parte dos festejos religiosos nas comunidades rurais e outras comemorações como casamentos e batizados

Câmara Cascudo, um importante folclorista brasileiro, afirma que o Cururu acontece como um peça de teatro, onde há momentos corretos para a apresentação de rezas e ladainhas. No Cururu, a música acompanha as orações, e, no Siriri, a música marca a dança.

Nas festas religiosas, o Siriri acontece após o Cururu. É uma dança realizada aos pares, e os passos executados pelos dançarinos são chamados de fornadas. Os homens tocam e puxam versos entoando a primeira parte da estrofe e o último verso cantado pelos outros participantes. As letras das músicas falam das coisas da vida de forma simples, alegre e triste. A coreografia da dança transmite o respeito e o culto à amizade.

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misturam com alguma fruta como coco, banana, mamão ou abóbora.

As feiras são um importante elemento de sustentação do grupo das mulheres. Além de vender os doces e artesana-tos e conseguir uma renda que vem direto para as suas mãos, a feira lhes ajuda a ganhar a confiança dos maridos. Por ser também um espaço de trocas solidárias, elas vol-tam para casa trazendo o que estava faltando no depósito.

Alegria e gratidãoA família é a bússola que lhe traz segurança e conforto. Uma alegria especial toma o semblante de Miguelina quando ela fala do marido e do filho mais novo, com quem divide o lar no momento, mas também do outro filho, da filha e do neto.

Mesmo conhecendo outras cidades, grandes e peque-nas, a casa, no campo, é o lugar para onde quer voltar a

cada vez que cumpre os seus deveres fora. Eles se veem como um grupo e tomam decisões juntos. “Se eu não estou, fica faltando minha opinião, as coisas não andam”.

Sem que ela percebesse, os seus de-sejos de mãe também foram se rea-lizando.

Quando eu ia para a Igreja, eu pen-sava que meus filhos homens, quan-do eles crescessem e se casassem, se eles constituíssem família, que eles considerassem as suas mulheres. Porque primeiro, o homem não vive sem a mulher. E como eu quero ser bem tratada pelo meu esposo eu penso que eles devem tratar bem suas esposas. Quero também que eles me vejam como uma lutadora, defensora dos mais necessitados. Um dia, eu nem sabia que eles pres-tavam atenção no que eu fazia, aí, teve uma reunião de jovens e eu ouvi o meu guri falando pros colegas que

Na coreografia básica da dança, as mulheres mexem as longas e coloridas saias com estampas florais e batem os pés descalços no chão, um ritual indígena que serve para afastar os maus espíritos. Os homens acompanham a toada e os passos com palmas e pisadas fortes. Usam sapatos porque fazem uma espécie de sapateado. O traje típico para os homens é uma calça mais folgada, camisa xadrez ou lisa, faixa de peão listrada, botina, chapéu de palha, faca na bainha, ajustada sob a faixa nas costas.

Há várias formas de se dançar o Siriri. No Siriri de Roda, os dançarinos tocam as mãos espalmadas do parceiro da esquerda e da direita, com movimentos rápidos. No Siriri de Fileira, as mulheres ficam à frente dos homens, e ambos batem palmas.

Fonte: http://www.marcosgeograficos.com.br/pdf/html.php?id=86

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ele considerava a mãe dele uma grande guerreira, por conta de tudo o que eu tinha passado de tantos pre-conceitos por estar à frente do sindicato e que consi-derava o pai dele como um grande ancião porque, pra ele, nossa vida é muito controlada. Porque ele vê que a gente troca tanta ideia e não precisa ter dinheiro, esse tipo de riqueza pra isso.

No Sítio São Manuel do Pari, vive uma grande família unida. E é em família que os momentos mais especiais de celebrar a forte amizade, descontrair e confraternizar acontecem: as festas. As festas são dedicadas aos santos de devoção. São um espaço, uma pausa para, com alegria, agradecer pelas conquistas. Miguelina e suas irmãs Maria Lina e Maria Helena herdaram dos pais o carinho que de-dicam a Santo Antônio, que deu nome à Paróquia e a São Gonçalo o mais adorado e presenteado.

Para ele, fazem uma festa grande. Todos dançam e cantam as toadas do cururu, no ritmo da viola de coxo, do ganzá e do sapateado. O siriri também segue o som da viola, mas ao invés do ganzá é acompanhado por um tambor de lata, “embrulhada” com um coro. “Aí é cantar, tocar e ba-ter o pé no chão”, dizem por ali.

Totalmente harmonizada com o mari-do Miro, ainda revira os olhos quando se lembra da primeira vez que o viu. É para ir a festas com ele que gosta de se arrumar. “Quando a gente tem uma vida controlada, as festas só têm gosto se for o casal. Só têm valor se a gente estiver junto um com o outro. Já bastam esses trabalhos em que a gen-te passa tempos fora e não dá mais pra ficar todo tempo junto”, diz ela.

O chão é a vida – terras de sesmarias

“Depois que eu fui para o Sindicato, eu já enfrentei tanta coisa que eu nem acredito que sou eu”. O equilíbrio en-tre o trabalho exaustivo e as atividades

Projeto VarreduraO Projeto Regularização Fundiária “Varredura” identifica, demarca e promove a regularização de terras públicas do Estado. O Projeto tem se concentrado, prioritariamente, na região conhecida como Baixada Cuiabana, envolvendo nove municípios (Acorizal, Barão de Melgaço, Chapada dos Guimarães, Cuiabá, Jangada, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Rosário Oeste, Santo Antônio de Leveger) e os municípios de Alto Paraguai, Arenápolis e Jaciara.

A Baixada Cuiabana é uma região densamente povoada por comunidades tradicionais, onde as posses passam de geração em geração, com atividade agrícola voltada à subsistência do produtor familiar e atendimento ao mercado regional com destaque na produção de farinha de mandioca e pecuária de corte.

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com a família e amigos é o combustível extra que Miguelina encontra para enfrentar os desafios que tem pela frente.

No município de Livramento, a zona rural é composta por 75% da população. A Comunidade de Santo Antônio, Sítio São Manuel do Pari, onde Miguelina vive há mais de 40 anos, é formada por 15 famílias. Faz parte de uma das 106 comunidades de famílias que vivem em terras tradicionais ou de Sesmarias na região. Considera como principal de-les uma maior organização para regularizar as áreas que ainda estão em conflito com o latifúndio. Não há conflito armado, mas há uma desigual disputa de forças.

Foi feita uma tentativa de regularização fundiária (Projeto Varredura/Governo do Estado). O trabalho não foi conclu-ído. O Governo do Estado requereu 22 comunidades tra-dicionais para fazer assentamento. Dentro disso, vieram os benefícios da construção de casa, mas o terreno não foi loteado.

Os agricultores não sabem explicar onde é o lote deles e continuam sem documentação. Antes, mesmo no nome de quem morreu há 80 anos, a família tinha o documento. E agora, o Estado requereu e disse que é dele.

Um passo importante para a emancipação é o entendi-mento de que os fazendeiros também não têm documen-to de posse das terras. Eles querem ganhar na força, com violência física ou impedindo as pessoas de trabalhar.

Os fazendeiros que se acham donos não vão largar tão fácil. E nós não vamos largar tão fácil. Aqui é o lugar onde a gente vive. A gente come do nosso suor, do que a gente planta. E eles, muitas vezes, nem estão por aí. Estão longe, mas de olho nessas áreas. Os pequenos têm direito ao lugar em que eles vivem. Minha vida está aqui. Se eu perder isso aqui minha vida perde o sentido. Minha raiz, minha sobrevivência tá aqui.

A mulher tímida cedeu espaço para outra: consciente dos seus propósitos e possibilidades, assertiva, carinhosa.

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DiálogoMaria Ivanildes Lima Santos

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DiálogoSete filhos e doze netos. Longa história vivida durante os seus 57 anos. Sempre na terra, no manejo do gado. Essas são marcas importantes na trajetória dessa mulher que não perde o ânimo diante das dificuldades. Seu lema é le-var a vida.

Ivanildes é mato-grossense nascida no Largo Grande, uma comunidade em Santa Terezinha. Veio com os pais e de ca-noa pelo Rio Araguaia, para Porto Alegre do Norte, na época chamada Beira Rio. Depois, foram até Canabrava do Norte.

Quando chegaram ali, não existiam estradas e nem pon-tes. Usavam canoa e andavam a pé. Conviveu com muito mato, índios e onça. Ainda se recorda de algumas famí-lias que chegaram depois: a família do Elias Bento, a de Jacobão, depois chegaram os Martins. E desses, o Joaquim tornou-se seu marido e pai dos seus sete filhos. Ivanildes que era Porto Lima, pessou a se chamar Maria Ivanildes Lima Santos.

Ela é uma mulher extremamente concentrada. Essa con-centração é uma mistura do jeito de ser contido. Mas não pelo aspecto negativo. Contido porque voltado para o es-

“nós não vamos matar ela agora porque ela está com as crianças”

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sencial. É rezadeira. Tem muita fé e ligação intensa com São Gonçalo.

Durante o período escolar das crianças, Joaquim ficava mais tempo no sítio e Ivanildes ficava com os meninos na sede do município – Canabrava do Norte –, para facilitar o acesso deles à educação formal. Nesse período, ela fre-quentou os bancos escolares e aprendeu a ler e escrever. Nos finais de semana e nas férias, ficavam todos no sítio.

A área onde está o sítio da família de Ivanildes – Setor Jandaia, Sítio Santa Fé – e de seus vizinhos foi invadida por um grupo anterior. Houve muito conflito. Quando tudo se aquietou, eles compraram o lote das mãos de outro posseiro, como eles.

Era muito difícil porque isso aqui era tudo só capim. O fazendeiro dava só capim pro gado comer. A gente plan-tava mandioca o vento vinha e tira-va tudo, derrubava tudo, arrancava porque não tinha mata pra poder aparar o vento. Banana, mandioca, tudo que nós plantávamos o vento carregava. Aí a gente foi deixando as árvores, ali pra frente, tem muita ár-vore, né, mas foi nós que deixamos. O fazendeiro continuou com o título e vendeu pra outro, aí esse outro fica toda vida ameaçando, dizendo que vai tomar. Quer que a gente pague outra vez. A nossa propriedade é pe-quenininha, não chega a 20 alquei-res, mas tem várias que têm muitas, né? Aí fica difícil, esse que tem muitas, nem incomoda de lutar pra conseguir o título porque tem muita terra, assim fica mais folgado, sem pagar imposto. Agora, a gente que tem a terra pequeninha tem vontade.

Eles não têm o documento de propriedade da área e não tiveram nenhum benefício do INCRA para se estabelecer. Ivanildes relata que o antigo fazendeiro, conhecido como Nelson, recebeu do governo outras áreas em Alta Flores-ta (há 500 km dali), mas não foi feita a transferência da propriedade.

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A noção de passado, presente e futuro de Ivani está atrela-da à família, à vida do marido, filhos e netos. Sua esperan-ça está neles. Falar deles lhe arranca um irresistível sorri-so, que se abre com os olhos, pondo forma a uma possível noção de infinito.

Grupo de mulheres – um ponto de viradaA misteriosa força das mulheres quando se tornam mães é manifestada na vida de Ivanildes. Ela diz que as crianças salvaram sua vida. Quando elas fundaram a Associação das Mulheres Sindicalizadas de Canabrava (AMAS), elas ti-nham um lote:

Encostado no lote do sindicato, aí caminhava meio junto, toda vida o grupo de mulheres com o grupo do sindicato, sempre os maridos participavam do sindica-to e as mulheres também. Construíram logo um bar-raquinho, mas caiu. Nós descuidamos daquele lote, aí uns rapazes falaram que iam ficar com nosso lote. Aí um dia eu levantei cedo, eu gosto de levantar cedo, nós marcamos pra ir capinar e os homens lá falaram que se nós fôssemos lá, nós não saíamos, mas eu achei que eles não tinham muita coragem de fazer isso, aí levan-tei cedo, chamei meus meninos, e eu fui. Peguei os três meninos e as enxadas e estava capinando e eles vie-ram e ficaram assim perto olhando e como eu cheguei primeiro que as outras e estava só eu mais os meninos, todos três pequenos eu fiquei com medo deles ataca-rem, eu falei: pai do céu, me proteja, ajuda que chega outras logo e aí eles ficaram ali e depois eu soube que eles falaram, eles até ficaram me olhando, depois, as mulheres foram chegando, as outras e eles saíram, aí eles falaram assim: nós não vamos matar ela agora porque ela está com as crianças.

Ivanildes foi convidada, em 2002, pela Comadre Joana, para participar de umas reuniões e discutir os problemas. Junto com isso, o trabalho compartilhado em forma de mutirão para ativar as hortas, fazer a farinhada.

Ela logo aceitou o convite. Elas já tinham uma experiên-cia anterior com o grupo das comadres, que trabalhavam na roça mesmo. Plantavam feijão, gergelim, mandioca. Diz que eram só as mais velhas e agora é um grupo de novas e velhas.

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No tempo do grupo das comadres, ela morava na cida-de. Vinha com os filhos pequenos a cavalo. “Era menino na cela, dois, três na garupa, e assim mesmo eu vinha pra reunião.”

Eu participava do outro grupo e aí tornei participar desse também. É muito bom pra as mulheres terem uma visão mais clara das coisas. Naquele tempo as mulheres eram muito desinformadas, pisadas pelos maridos e pelos outros mesmo, tinham muita dificul-dade de conseguir as coisas. Melhora tudo. Tanto a renda financeira como na mente, a sabedoria da gen-te melhorou muito. Se for uma mulher só fazer uma horta ela gasta muitos dias e se for um grupo, num dia, a gente faz uma horta e deixa prontinha. A gente já conseguiu cercar o quintal e no grupo cada um tem uma ideia. Às vezes, tem uma que não tem, a outra já chega e dá uma ideia e a gente melhora. Às vezes, uma coisa que está difícil, a outra já chega ali e tem uma visão mais clara, né?

As reuniões acontecem na segunda sexta-feira do mês. Elas se encontram durante a semana para que todas pos-sam ir. Existia um problema de transporte e agora elas pe-gam carona no ônibus escolar.

Elas querem conseguir alguns cursos para as meninas mais novas. Segundo Ivanildes, as “filhas das raízes” gostam de ficar no grupo. As raízes são Joana, Raimunda. Como as meninas cresceram vendo as mães fazerem esse trabalho, elas querem continuar.

“A minha filha mesmo, a Gleudina, ela é secretária do gru-po, ela se formou agora, fez faculdade, se formou em Di-reitos Humanos, mas ela não quer sair da roça. Ela quer trabalhar na roça. A gente sente muito orgulho daquelas que seguem”. O fato de se reunirem para trabalhar em grupo e conversar traz resultados impressionantes.

Como mulher eu era muito desinformada, eu achava que a gente tinha que cuidar só da casa, dos filhos e nem bem saber cuidar deles eu não sabia, né? A pes-soa que é criada muito na roça ela não tem muita edu-cação pra falar com a criança, educar e com o marido também, aí com as reuniões a gente vai compreenden-do, entendendo as coisas. Tem mais participação. Mas

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com o grupo de mulher foi que a gente foi tendo in-formação. Quando a gente está numa reunião, que eu vejo mulher falar que não se entendeu com o marido, que foi preciso separar, aquilo me dá uma tristeza, que não souberam controlar os dois. Porque o meu no co-meço também ele não dava muito apoio, mas aí a gen-te tem que saber conquistar a pessoa pra poder convi-ver. Graças a Deus hoje é o que vocês estão vendo, ele me ajuda pra eu poder ir e ele tem o maior interesse.

Um resultado que, provavelmente, não está organizado em dados é, certamente, a diminuição da violência domés-tica e outras violências que assolam as populações nas

regiões em que há conflito agrário. É o ganho do diálogo como ferramenta para a dissolução de conflitos.

A capacidade que elas ganharam de se posicionar, reivin-dicar seus direitos, pedir proteção, denunciar injustiças foi também um canal para conquistar o respeito e a confiança dos maridos. “No começo, eles sempre desconfiam quan-do a gente quer sair de casa. Não ajudam muito”.

Conferindo o feijão que o

filho preparou enquanto ela

era entrevistada

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No caso dela, foi um acontecimento muito triste que aju-dou a chamar a atenção de Seu Joaquim para o sentido dos grupos de mulheres nas comunidades. Era um mo-mento em que a polícia estava muito violenta em Cana-brava do Norte. Logo que o município foi fundado. E elas conseguiram interferir.

Um irmão do Joaquim foi massacrado, a polícia esta-va assim... muita revolta, né? Batia em todo mundo, qualquer coisinha eles batiam e meu cunhado viu. Ele tava na estrada de animal, viu e correu, não podia ter corrido né? Porque ele não devia nada, mas ele pe-gou e correu, aí quando ele correu eles atiraram nele porque disse que ele estava correndo que ele estava devendo alguma coisa. E estava errado em correr mes-mo porque ele não devia nada, né? Pra que correr? Aí ficaram seguindo ele até que um dia pegaram ele e bateram demais, judiaram demais, ele chegou a vomi-tar sangue. Só porque correu. Aí, a família teve aquela dificuldade. Mas aí, nós mandamos uma carta naque-le tempo até pro Dante de Oliveira, ele era deputado naquele tempo, nós mandamos uma carta em nome do grupo das comadres que socorressem o povo. Aí, o Dante mandou socorro. Foi o grupo das comadres que ajudou naquele tempo.

O nome do sítio, Santa Fé, foi sugerido por ela. E a fé é real-mente presente na casa. Segundo ela, toda família precisa ter um santo para festejar. Primeiro pensaram em festejar todos os santos e rezar no 1º de novembro. Mas ela sofreu com uma alergia que quase ceifou sua vida e, acredita que se livrou do problema graças a São Gonçalo.

Um dia Joaquim me levou daqui lá pra rua, cheguei lá fui pro balão de oxigênio, estava ruim demais, aí naquelas crises me dava vontade de apegar com São Gonçalo, meu pai tinha muito apego em São Gonçalo, aí parece que alguém me falava, se eu fizesse um voto de fazer a roda de São Gonçalo eu ia sarar, na mesma hora, eu pensava, quem? Não existe mais, eu vi, era pequena que eu vi, mas falavam que se eu não fizesse eu não sarava. Até que eu falei assim, eu vou fazer esse voto, eu vou caçar alguém que vai saber, aí tem um rapaz lá na rua que ele tira muita divindade, aí lembrei na ideia, falei: Edilson vai me ajudar. Aí fui lá e falei:

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Edilson, você vai me ajudar a fazer uma promessa com São Gonçalo, tenho que fazer uma roda de São Gonça-lo, mas não sei mais quem canta. Aí ele falou: eu canto. Eu falei: quanto você cobra? Ele falou: não, não cobro. É só você reunir o povo. Aí eu fiz e o povo gostou. Agora todo ano eu faço, a reza e a roda de São Gonçalo dia 1º de novembro. Todo mundo com as camisas de manga comprida, vestido largão.

CuraIvanildes tem o dom da cura. Além de ser a rezadeira do terço mais comprido da comunidade, ela reza quebrante, arca caída, as costas de cobra e fabrica muitos remédios com as ervas medicinais que cultiva em casa.

Ela tinha uma vizinha, a finada Dôca, que era rezadeira e que “passou” seus conhecimentos. O que sabe sobre as ervas do cerrado deixou impressionada a Irmã Érica, que foi até Cascalheira para ministrar um curso sobre remé-dios caseiros.

Irmã Érica falou assim: eu encabulei com essa Iva-nildes, como que ela conhece tanta erva do cerrado, fiquei calada, mas pensei só comigo, você não me co-nhece, que eu fui criada no mato. Hoje em dia, o povo não aprende muito, né? Hoje em dia, é só estudo, estu-do, estudo, o povo não tem muito prazo, né?

Hoje, ela acredita no diálogo. Em uma boa conversa para solucionar a maior parte dos problemas. O jeito como rompeu o silêncio e aprendeu a se posicionar, falar, ne-gociar, reivindicar é comovente. Ivanildes é um exemplo revelador da superação de séculos de silêncio imposto às mulheres. “Basta conversar, hoje em dia, só uma ligação, liga pra outra e já consegue”.

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UniãoRaimunda Alves Lima

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UniãoRaimunda Alves Lima, mora há 20 anos no setor Maná, município de Canabrava. Tem 57 anos. Nasceu em Goiás, mas veio menina para São Félix do Araguaia, onde foi cria-da pela mãe, que era agricultora. Os olhos rasgados não deixam passar despercebida a sua descendência direta dos Carajás.

Casou-se, tiveram seis filhos. Foram para Canabrava para se livrar da malária que ameaçava as crianças. Dedicada à família, Raimunda é visivelmente apaixonada pelo marido, Placides, com quem está casada há 42 anos. Ele nasceu na Bahia, em uma cidade chamada Formosa do Rio Preto. Foi para o Mato Grosso com 40 dias de nascido.

O corpo de menina esconde a trajetória de vida que lhe permite hoje ter nove netos. Entre as marcas inevitáveis da vida, ela guarda a lembrança do período em que um dos fi-lhos adoeceu e perdeu os dois rins. Viveu com ele em Goiâ-nia, longe de toda a família, para ter acesso à hemodiálise. Até que conseguiu o transplante, quando ele recebeu um rim do irmão e ficou bom.

Raimunda participa do grupo de mulheres há três anos e o considera como algo seu. “A gente faz parte de uma família.

“Vou pagar só um mês pra ela, pra ela aprender a fazer o nome, pra quando ela for casar saber assinar”

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A gente trabalha junto, trabalha em mutirão, é uma coisa muito importante pra nós. Viajamos, trabalhamos juntos fazendo farinha, bordando, fazendo croché”. Foi do conse-lho fiscal da Associação e agora é vice-presidente.

A mulher que se dedicou por tantos anos à casa e aos fi-lhos, o que não é pouco, ganhou novos desafios e respon-sabilidades. Ela tem espírito empreendedor. Preocupa-se com a agenda do grupo, em organizar as reuniões, prepa-rar o que vai ser levado para a feira. Os encontros também são um espaço para elas falarem de si. Conversar sobre a saúde e estabelecer laços contínuos de ajuda mútua.

O trabalho coletivo, em regime de mutirão, qualificou a produção e melhorou a renda das famílias. Além disso, as mulheres ganharam autonomia, porque o recurso que ar-recadam é administrado por elas.

As habilidades individuais são somadas e ganham maior expressão. A produção tornou-se constante e elas orga-nizaram uma feira em Canabrava. Primeiro, vendiam os produtos da horta. A feira cresceu e ficou conhecida como a Feira do Grupo de Mulheres de Canabrava.

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Junto com os produtos cultivados, passaram a oferecer arte-sanatos, doces, crochê, queijo, requeijão. “Nós temos o bar-racão, nós temos a farinheira... Têm vezes que nós ficamos até um mês reunidas lá no barracão fazendo farinha. Sai farinha, puba e polvilho. Preparamos biscoitos, bolos, beiju”.

E o aprendizado coletivo foi muito além de aperfeiçoar suas técnicas. Em grupo, aprenderam também a arte de dialogar, trocar ideias, chegar a consensos. “No grupo apa-recem várias ideias, cada uma tem uma ideia. Às vezes, eu vou até pensando uma coisa e quando eu chego lá as companheiras falam as ideias delas e aquela minha não precisa, porque aquelas ideias já estão valendo a coisa que a gente vê que é boa pra gente”.

Diante de alguma dificuldade financeira a mulherada não se aperta. “Quando nós estivermos aperreadas, vamos ver o que nós fazemos, e aí, vamos fazer uma galinhada, uma festa, uma pamonhada, nós temos que resolver, né? Aí a gente faz, reunidas, é bom, né?”

Ela nasceu em 13 de dezembro e por isso, é devota de San-ta Luzia. Gosta de Santo Antonio e participa dos festejos realizados para São Sebastião na comunidade.

Ah, a festa de São Sebastião aqui a gente não tem mas-tro, não tem a bandeira, não solta aquele giro, que tem lugar que é assim... aqui não, só a gente combina a festa, tem leilão, tem bingo, a gente sai pedindo na co-munidade as coisas pra festa, aí, um dá uma leitoa, um dá um bezerro, um dá um frango, outro traz fran-go assado, aí na hora põe aquele leilão, aí, tem a missa e depois tem a festa e o leilão pra arrecadar coisa pra arrumar a igreja, que, agora mesmo, nós temos que arrumar um poço, fazer uma cisterna pra nossa igreja, aí, a gente reuniu sábado pra ver o que nós vamos fa-zer. Aí, nós vamos fazer mutirão, porque nós não fize-mos festa esse ano, esse ano nós não fizemos o festejo, todo ano a gente faz, mas esse ano não deu, a gente não pôs na cabeça pra fazer, mas esse ano que vem agora nós vamos fazer, fé em Deus.

Alegria de todo diaA união que tanto valoriza fora de casa é também o que dá o tom do cotidiano do seu sítio. Ela e o marido colhem

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sementes crioulas, entregam polpas de frutas nos colégios. Criam algumas cabeças de gado, galinha, peru, pato, porco.

Morar na roça e não criar nada você não tem graça, que são as coisas da roça, são as criações, é um peru, é o porco. Pra mim, é a alegria que eu tenho, me sinto feliz de estar com meus filhos ainda todos vivos, minha mãe, meus irmãos. Eu estar bem com meu esposo. De estar aqui na roça ainda forte, dando conta de fazer alguma coisa, de estar plantando...

O cultivo das frutíferas é feito em um sistema chamado de casadão. Vários tipos de frutas são plantados juntos. Ace-rola, goiaba, murici e as diversas frutas do cerrado como o buriti, são usados para preparar deliciosos doces e licores, além da polpa de fruta.

Ela sente muito por não saber ler. Aprendeu com a mãe que as meninas só estudavam para assinar o nome na hora do casamento.

Era escola particular, aí ela pagou pra meu irmão, uns seis meses pra meu irmão, que é o mais velho, pra ele aprender, porque ele era homem. A Raimunda não.

No preparo das sementes

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Vou pagar só um mês pra ela, pra ela aprender a fazer o nome, pra quando ela for casar saber assinar. Aí, eu estudei só um mês quando eu era nova. Aprendi a fazer o nome rápido, até a professora: ê a Raimunda quer casar porque já está fazendo o nome. Era a con-versa dos mais velhos, dos pais.

Agora, Raimunda está estudando na comunidade, mas diz que já não consegue se dedicar tanto porque fica muito envolvida com os bordados e com as coisas da casa. Sonha com aposentadoria, mas não quer nem saber de parar de trabalhar. Só quer acalmar um pouco o ritmo e equipar melhor a chácara para facilitar o dia a dia.

A intenção do grupo de mulheres, quando foi fundado, era a de melhorar a alimentação dessas famílias e criar um es-paço de conversa para elas.

Nós não vamos tirar da nossa boca pra levar pra feira, porque nós precisamos nos alimentar melhor. A gente leva daquilo que sobra. Se por acaso: ah, meu canteiro tá pequeno. Só dá pra nós comer isso mesmo, não dá pra levar pra feira, vamos plantar outra. Naquele tem-po, parecia que a gente não pensava assim de plantar a horta, de fazer o doce pra nós vendermos. Por acaso, às vezes, eu tenho a horta aqui, eu tenho as verduras, mas aí, eu já preciso comprar outras coisas, aí, a gente leva pra feira e aquele dinheiro já compra outras coi-sas que você precisa em casa. E também, na hora que você quer comprar uma coisa, um remédio, uma rou-pa, não precisa estar: ô marido, me dá aí um dinheiri-nho. Você já tem o seu dinheirinho da feira. Ele que me pede, fala: cadê o dinheiro da feira? Eu falo: não, deixe meu dinheiro, eu tenho que comprar outras coisas. É bom demais. É coisa muito boa. Um grupo organiza-do. Nós não estamos organizadas porque nós estamos muito longe umas das outras. Mas no dia que nós nos reunimos pra trabalhar, a gente trabalha junto.

Raimunda, que admite estar aguardando a aposentadoria, é extremamente ativa. Ela também faz parte do grupo de idosos. Está preparando a encenação da Roda de São Gon-çalo para apresentar em uma festa tradicional de São Félix do Araguaia. Em nenhum momento demonstra cansaço, desânimo. Ela tem um brilho especial nos olhos. Será o

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amor? Amor, sim! Mas um amor maior, fraterno, que nos ata ao mundo com leveza e esperança.

Depois do grupo de mulheres e da rede semente, levo uma vida que a gente não se sente sozinho. Você sabe que você tem mais alguém ao redor de você. Além de eu e ele têm mais minhas companheiras, os maridos das minhas companheiras que são todos amigos, né? E qualquer coisa a gente se reúne. Muito mais impor-tante que a gente ficar, que nem têm muitas aí, minhas cunhadas, filhas, as filhas eu falo: vamos pro grupo! É muito bom. Aquele dia que você tá em reunião você conta caso, você ri, você fica alegre, você esquece tudo, certas coisas da vida, e aí, é uma coisa assim muito boa.

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JustiçaIvani Vitanardi

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JustiçaIvani Vitanardi nasceu no distrito de Protásio Alves, muni-cípio de Nova Prata, Rio Grande do Sul. Aos quinze anos, os pais dela venderam as terras no Rio Grande do Sul e foram para Santa Catarina. Ali, compraram terra também. Sempre trabalharam na roça.

Era comum, nas famílias dos pequenos proprietários ru-rais – agricultores que vivem do que produzem no manejo da terra – as crianças com cinco, seis anos de idade, no turno oposto ao da escola, acompanharem os adultos nes-ses afazeres. Foi assim com Ivani, que estudou até a sexta série e diz que gostava muito. Só não foi adiante porque os pais não tiveram condição.

Quando se casou, ela e o marido trabalharam com ar-rendamento. Não tinham terra própria. Passavam longos períodos em terras de terceiros, sob contrato. Em 2002, surgiu vaga de trabalho no garimpo, no Mato Grosso, por causa do ouro. O marido, Ivo, decidiu ir. Ela, para não com-prometer o casamento, deixou os pais, irmãos e outros fa-miliares e o acompanhou.

Dona Ivani tem fala simples e pensamento organizado. É uma mulher grande, alta, elegante. Com olhar doce e

“Ele ficou com tudo que nós tínhamos: panela, roupa. Eu saí só com a roupa do corpo, só com a roupa do corpo”

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acolhedor. Ele, homem comprido, de corpo rígido e lon-gilíneo. Formam um belo casal: mestiço, tipicamente bra-sileiro.

Seu Ivo fala pouco. O contrário de Dona Ivani. Ela é ques-tionadora. Crítica e indignada, sem ser rancorosa. Sua dis-posição e energia estão voltadas para fazer girar a roda da vida. A prova disso é a superação de um câncer de mama. Mas, além de muita disposição, quer que esse giro seja perpassado por respeito e justiça.

Já no Mato Grosso, ele ia para o garimpo e ela, com as crianças, não tinham para onde ir. Ficou um tempo na sede do município – Nova Guarita – para que os pequenos tivessem acesso à escola. Antes, no sul, ela trabalhava em um posto de saúde. Em Nova Guarita passou a trabalhar como doméstica.

Pagavam aluguel e viviam com muita dificuldade. Essa queda brusca na condição de vida da família fez que ela se somasse aos sem-terra. Dona Ivani descobriu que qualida-de de vida, para ela, é no campo.

“Eu queria ter as coisas do sítio pra comer. Roça só é difí-cil pra quem não gosta de trabalhar. Nós sempre fomos acostumados, a comer carne de porco, frango, ter a vaqui-nha de leite, ter o queijo, ter a nata da gente, as coisinhas assim. Então pra mim, a cidade não me serve”. Por isso, abandonou tudo e foi para um acampamento em busca de terra para, nela, trabalhar e viver.

Agora, tem 60 anos. Sete deles vividos no Projeto de As-sentamento (PA) Renascer, Lote 21, que pertence à comu-nidade Frei Galvão, no município de Nova Guarita. É ali que recebe filhos e netos para os sagrados almoços de confra-ternização aos domingos.

O jeito expansivo deixa perceber a felicidade que sente com a conquista, quase definitiva do seu sítio. A área é, ainda, um projeto de assentamento do INCRA. Os lotes es-tão marcados, mas ainda não têm energia elétrica e o re-curso para a construção das casas não foi disponibilizado.

Mesmo assim, a rotina no campo e o manejo da terra são uma mola propulsora em sua vida. Ela e o marido não são aposentados. O resultado do trabalho dos últimos sete anos já é visível, mas Seu Ivo trabalha fora para comple-

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mentar a renda do casal. Produzem parte dos alimentos que consomem. Não precisam comprar carne, leite, man-dioca, frango.

Plantaram muitas mudas de árvores frutíferas. Elas fazem sombra para plantas rasteiras como feijão, andu e outras. As frutas são destinadas ao consumo próprio e à venda. Plantam cupuaçu, banana, laranja, pocã, limão. A sombra também é importante para o gado.

Junto com isso, já iniciaram um pro-jeto de reflorestamento com mudas de árvores nativas. Ivani faz parte do grupo das mulheres e da diretoria da associação. Elas assinaram um proje-to para capacitar trinta mulheres para o cultivo do mel. Elas estão, agora, batalhando pelo projeto de hortas co-munitárias.

Quanto ao abastecimento de água, em sua propriedade corre um riacho. Eles pretendem adquirir um motor a combustível para bombear a água. Por conta dos trabalhos externos de Seu Ivo, é Dona Ivani quem puxa a água através de baldes, para a manu-tenção da casa, do cachorro, gato, das galinhas, para tudo.

No momento, a ausência de energia elétrica é um limitador da autonomia financeira deles. Com a idade, já não

suportam enfrentar certos serviços, sem algum suporte. “Eu desisti da horta porque não aguentei mais, machuquei o joelho esses dias e não consegui mais puxar água. É difí-cil uma pessoa com 60 anos puxar água.”

Ivani nem pensa em se acomodar. Com os recursos da aposentadoria e dos projetos, junto com os aprendizados dos cursos, pretende ampliar a área plantada e a quanti-dade de animais da criação. Pensa até em fazer as hortas com recurso próprio:

Se sair a aposentadoria, eu vou fazer uma horta irri-gada pra a gente vender verdura. Com dinheiro nosso mesmo. Porco então, não tem que chega. A gente não

D. Ivanildes e Sr. Ivo

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pode vender tudo, né? Nós temos nossos filhos tam-bém que moram na cidade. Os três são casados, mas aí, se mata pra nós tem que matar pra eles também. Todo fim de semana eles vem pra cá, então a gente cuida pra não vender todos os leitões. Mas se fosse vender, ixi! Não tinha quantia que a gente não vendia.

Ivani tem três filhos. Todos escolheram profissões urbanas e vivem com suas famílias na sede do município Nova Gua-rita. A família é muito unida e se ajuda mutuamente. Nos finais de semana, os dois filhos homens decidiram que vão ajudar Seu Ivo com a retirada da lenha, para poupar Dona Ivani de alguns serviços mais pesados.

A relação entre ela e Ivo também é harmonizada. Ela diz que eles nunca brigaram. Sempre conversam e decidem tudo juntos. Se discordarem, sabem esperar. Desde que começou o acampamento Ivani participa dos movimentos. É preciso viajar, ficar fora de casa. Nas primeiras vezes, ele demonstrou dúvida, mas nunca disse para ela não ir.

Quando tinha que viajar de repente, ele dizia: ah, mas pra tudo tem jeito, vai! Já que já andou muito pode ir de novo mais um pouco. Ele não é de dizer você não vai. Também, eu não saio sem falar pra ele. Eu já dei-xo sempre bem claro. Até um dia, um dos agentes da CPT veio me buscar pra ir a um encontro em Colider, cidade próxima. O marido estava lá na fazenda traba-lhando. Eu falei: não, não vou não! Eu estava até ali na estrada caçando uma vassoura pra varrer o pátio. Ele falou assim: não, mas Dona Ivani, a Dona Leonora está esperando a senhora lá, vamos lá! Aí eu fiquei indecisa, pensativa porque eu não tinha falado nada pra Ivo. Aí eu vim, escrevi um bilhete. Letra pequena ele não enxerga, tem que ser umas letras bem grandes. Peguei um papel, escrevi umas letras bem grandonas, onde que eu tinha ido e colei contra o rádio, porque nós te-mos uma mania que quando entra dentro de casa já liga o rádio. Colei contra o rádio e ele foi ler. De noite, quando nós voltamos: conseguiu ler? Ele falou assim: quando eu vi a casa fechada imaginei que tu tinha ido pra algum lugar. Mas ele não me proíbe não, e ele não tem ciúme de eu sair junto com meus companheiros, não. Ele já conhece quem a gente é, então, é bem legal assim.

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Eles aguardam o material do INCRA para construírem sua casa. Não sabem por que o recurso não foi disponibiliza-do. E a energia elétrica deveria ter alcançado o assenta-mento como parte do Programa Luz para Todos do Gover-no Federal.

Atualmente, na área que ocupa com mais sete famílias nunca teve conflito direto com os fazendeiros vizinhos. Não houve enfrentamento direto, pistoleiros. Mas na justi-ça teve muita disputa.

Uma vez o fazendeiro fez uma montagem com foto como se eu estivesse queimando um boi ali no fundo. Na verdade, foi assim: o boi morreu da capação e o ca-seiro dele viu que meu marido estava botando a lenha pra queimar, veio pedir pra queimar o boi. Na hora, tava aqui outro rapaz que cuidava da outra fazenda e que tinha vindo chamar meu marido pra trabalhar, onde ele trabalha até hoje. Aí, esse rapaz ouviu tudo e falou assim: deixa aí que de tarde eu venho com o tra-tor. Não bota fogo não! Por causa da seca. O desgraça desse fazendeiro foi e fez uma montagem eu botando fogo no boi e eu fui chamada no juiz em Cuiabá. Qua-se morri lá dentro. Meu Deus do céu, quando eu vi a foto no nosso processo e era eu mesmo, não era outra pessoa não. Nunca deixei meus companheiros fazerem nada pro fazendeiro, nem pro caseiro. Eu queria aque-la paz, nós queríamos era a terra, não era brigar ou fazer desordem, não. Eu não queria isso aí, mas ele na justiça, ele brigou muito.

As brigas eram sempre na justiça. Ivani teve outro enfren-tamento com o juiz da Vara Agrária, na época. O povo tem consciência de que o correto é ir para a justiça. Mas confia, desconfiando, já que a lógica que rege a construção desse país, é histórica e repetidamente desfavorável ao pobre.

Eu perguntei: vocês vão documentar a terra pra ele? Ele falou assim: não, é terra da União, nós não pode-mos documentar pra fazendeiro nenhum não. Eu digo: então, porque que nós não temos direito? Porque que o senhor quer tirar nós daqui pra dar terra pra ele? Ele não me respondeu. Ele não quis me responder. Foi bem ali na frente da casa... ele não me respondeu. Só que, sei lá, eu acho que a justiça, quando cai muito dinheiro, né? A justiça fica balançando, quer o dinheiro

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também, né? Não pode ver dinheiro. Só que eu acho que tinha que ser bem diferente, né?

De quem é o direito?A indignação toma conta da voz e dos gestos de Ivani quan-do ela se recorda das diversas situações de conflito, injusti-ça e violência que enfrentou desde que passou a atuar no movimento de luta pela terra no estado do Mato Grosso.

A começar pelos Direitos das Mulheres. Em uma proprie-dade agrícola, a renda é da família. A profissão da mulher não é reconhecida. Como o padrão é o homem ser consi-derado o chefe da casa, muitos homens decidem sozinhos o que vão fazer com a renda que é fruto do trabalho delas também. Então, a mulher precisa de alguma garantia nes-se sentido.

Considera também que a juventude abandona o campo porque ninguém está se preocupando em criar alternati-vas para os jovens. “Eles querem estudar, querem ter uma renda, querem ter autonomia”.

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Mas as violências e injustiças passam por situações de ex-cessiva brutalidade. Muitas vezes, as pessoas são expulsas dos acampamentos pelos “guachebas” dos fazendeiros. Ivani se recorda de uma vez em que:

O fazendeiro, no dia 12 de outubro, dia de Nossa Se-nhora Aparecida, às nove e meia da noite, veio com uma turma de guaxeba¹ e tirou nós dos nossos bar-racos embaixo de um temporal tão grande, chuva tão forte, segurou nós das 21h30 até as 3h30 da madru-gada em cima de um caminhão embaixo de chuva sem nada pra se cobrir e despejou nós lá na cidade de Nova Guarita. Ele ficou com tudo que nós tinha, pa-nela, roupa, eu saí só com a roupa do corpo, só com a roupa do corpo. Eles ficaram com tudo das pessoas, não devolveram nada, entramos na justiça e até hoje nós não ganhamos nada, nada, nada. E a terra é da União também, né?

Histórias desse tipo se repetem a todo tempo. É uma bri-ga em que o mais forte que dispõe de recursos e armas ameaça, amedronta, aterroriza e mata os que vão para o enfrentamento. “A Justiça não prendeu ninguém até agora. Por isso, que eu digo que os sem-terra não têm valor ne-nhum, porque como é que pode que só sem-terra morre, fazendeiro não morre e ninguém faz nada por nada”.

A crueldade não tem limites. Dá a sensação de estar em outra época da história, em que valia a lei do olho por olho, dente por dente. Outro caso alarmante foi o do envenena-mento da comunidade do lote 10, chamada Toca da Onça. Eles tinham plantação organizada e forneciam alimenta-ção escolar. Perderam tudo!

Os fazendeiros compram a lei. As terras são da União. E por que o Estado, o governador, os deputados não decidem isso? Eles deviam decidir. Olha que nem aque-la área ali na frente que desmatou tudo, arrancou tudo fora o capim, ali é lavoura, vão plantar soja. Nós vamos ser prejudicados. É terra da União ali também, do Esta-do. Agora ali eles vão fazer lavoura, o veneno vai pas-sar (...) 24h por dia e os coitados ali no acampamento sofrendo. Como que o governo, como que o INCRA dei-xa fazer isso aí? De que jeito que eles arrumam docu-mento pra fazer isso? Por isso, que eu estou indignada com a justiça. Qualquer coisinha que a gente vai fazer

1. Guaxeba é a forma como nessa região do Brasil são conhecidos os capatazes. Mandatários dos grandes fazendeiros, que ameaçam os agricultores familiares.

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precisa muito documento, precisa muita coisa e nunca dá certo, sempre falta uma coisinha, falta outra e um empurra pra outro e como é que pro fazendeiro não tem isso? Por quê? Por isso, que eu queria saber. Isso aí que eu queria saber. Por que fazendeiro consegue”.

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LevezaLeonora Brunetto

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LevezaLeonora Brunetto é pequenina, delicada e gentil. Os gestos sutis, assim como a voz, são precisos, sem faltas ou sobras. Seu aspecto frágil esconde a força de uma mulher valen-te. Perseguida e vigiada durante 24 horas, já escapou pelo menos duas vezes de atentados à sua vida.

Uma mulher que enfrenta as ameaças, os próprios medos e a crueldade humana para lutar pelo que acredita. Sa-bedoria ou poder? Não dá para saber ao certo. Talvez, as duas coisas. Mas é, certamente, a leveza que a faz escapar ilesa de tantas situações limite.

Irmã Leonora é filha de italianos. Os avós paternos, antes da Itália, viveram na Tchecoslováquia. Os pais pisaram em terras tupiniquins, junto com a primeira leva da imigração italiana, no final do século dezenove.

O pai, bebê recém-nascido, e a mãe, uma menininha de pouco mais de um ano, aportaram em Porto Alegre. Dali, suas famílias andaram por três meses mato adentro até chegar em Charqueadas, lugar onde se estabeleceram. Foi lá que, em 22 de outubro de 1945, nasceu Leonora Brunetto.

“Aquele dia era pra eu e ele morrer na ponte, mas ele veio na frente e morreu”

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Formou-se professora no Rio Grande do Sul e exerceu a profissão por 18 anos. Já era religiosa e missionária. Des-de cedo, seus finais de semana eram dedicados aos en-contros com pessoas ligadas a sindicatos de trabalhado-res rurais e com a “juventude da roça”. “Meu pai tinha o sangue da luta. Se estivesse vivo, certamente estaria no movimento social”, diz Leonora, convicta das escolhas que definiriam sua vida.

“O que anima a gente é a partilha que eles têm. Se al-guém não tem o que comer o outro chama e dá o que comer. E também a intimidade, de família, de chegar na casa do outro e pedir. Às vezes eu me desanimo. Mas, quando eu olho para o povo, penso: não! Não dá pra parar.

Envolvida com a luta pela terra no Mato Grosso há 13 anos, ela sempre esteve ligada ao campo. O cheiro da terra impregnado nos sentidos desde a infância é a inspiração e o guia dessa senhora que, por toda a vida, desbravou os rincões do Brasil na luta pela terra e pelos direitos das mulheres e da juventude.

No começo dos anos 80, Leonora recusou o convite da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, da qual faz parte, para trabalhar como missionária na Áfri-ca. Um oceano era distância demais para ficar entre ela e seu pai doente. Em troca, aceitou ir para Presidente Ken-nedy, Tocantins (na época, Goiás). Não era um lugar tão distante, mas também, não menos desafiador.

Chegando lá, assumiu a paróquia local. Começou, então, a trabalhar junto com a Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Foi uma época de guerra”, lembra ela. Naquele período, muitos posseiros foram assassinados. A Irmã chegou a ir para a cadeia, junto com outros jovens que faziam parte da luta pela terra. Trabalhou, durante um tempo, com o Padre Josimo, que foi assassinado.

Depois dessa empreitada, o Maranhão surgiu como pró-ximo destino. Passou a viver entre quilombolas e ribeiri-nhos, sempre no meio rural, e com o trabalho focado na formação de lideranças jovens. “Foi uma luta bem forte. Conseguimos uma terra que era ocupada pelo grande e fa-moso Sarney”. Fazia parte de áreas da União, ilegalmente ocupadas, que foram desapropriadas pela justiça.

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Os missionários vão para onde são chamados. As mu-danças de endereço continuaram e, sem perder o ritmo, Leonora foi transferida do Maranhão para o Rio Grande do Norte. Lá, encontrou um pouco de tranquilidade, traba-lhando com a juventude e as mulheres em hortas, e produ-ção de remédios caseiros. Desse período, resultaram onze grupos juvenis organizados.

Viveu também em Brasília, quando trabalhou com o Mo-vimento Sem Terra. ficou nos acampamentos e participou de um ano de formação da juventude do MST. Foi então, que a Congregação solicitou que ela fosse para o norte de Mato Grosso. “Quando eu cheguei, existiam muitos acam-pamentos. Paupérrimos. Em Novo Mundo, em Nova Canaã do Norte”, conta.

Em todos os lugares por onde passou a serviço da luta pela terra, Leonora viu e enfrentou agressões. Mas garante que em nenhum deles viu tanta violência como Tocantins e Mato Grosso. “Aqui no Mato Grosso, o agronegócio tomou conta. Tudo é pouco pra eles”, argumenta.

Em nenhum momento, Leonora naturaliza a violência. A sua indignação é explícita, firme, quase palpável. Mas os muitos anos de luta também a ensinaram a consciência das dificuldades, dos limites e as muitas formas de encarar os desafios.

Essa semana eu parei na frente do mandante que pa-gava 90 mil reais a quem desse fim na minha pessoa. Eu fui lá e falei com ele. Nós nem comentamos nada sobre isso. O que eu disse é que nós precisamos lutar e assentar o povo. Precisamos de terra para assentar o povo.

Enfrentar tudo isso é mesmo uma marca da sua condição de existir. E, certamente, vem daí a clareza dos caminhos a serem trilhados na direção de afirmar os direitos do povo à reforma agrária.

Quando chegou ao Mato Grosso, então com 55 anos, Irmã Leonora atendia os 18 municípios da região Portal da Amazônia, norte do estado. Pediu ajuda ao Movimento de Pequenos Agricultores e ao Movimento dos Atingidos por Barragens para alcançar o primeiro passo que consi-dera básico: formar gente. “Não dá pra fazer nada sozinho.

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Quando eu vi que não tinha lideranças, tive que sair em busca de ajuda”.

Para estruturar um trabalho e começar a formar as lide-ranças, começou a organizar grupos da Pastoral da Ju-ventude Rural e grupos de mulheres, com muito apoio da equipe central da CPT.

As mulheresEm meio às comunidades e aos grupos do Portal da Ama-zônia, encontrou muito sofrimento. Viu mulheres sendo espancadas, sem o direito de sair de casa, de ir e vir. Mais uma vez, dedicou-se ao fortalecimento delas que, junto com a juventude, são o fio condutor do trabalho de Leono-ra. “Eu, pessoalmente, sempre vi que onde tem a mulher de frente, vai. E sempre digo a elas: tragam suas filhas”.

Mesmo a Pastoral da Terra, que tem um trabalho amplo e muito recente com o recorte de gênero, reconhece a im-portância da participação feminina, já que os avanços são muito grandes quando as mulheres estão envolvidas na luta pela terra e nos projetos para a permanência nela.

Mesmo diante da minha Igreja, que traz em certas situações da bíblia mais uma força para o machismo, sempre vi o sofrimento de muitas mulheres. Ouvi muitas histórias tris-tes, diante das quais não consigo ca-lar, não consigo parar. Por mais que a gente queira parar, não para.

Há grupos organizados de mulheres nos acampamentos em Nova Canaã do Norte, Nova Guarita, Panorama e no assentamento em Canarinho e Terra Nova (comunidade de São Pe-dro). Elas produzem pães, bolachas, sucos, horta irrigada, ajudam a escola agrícola. A próxima etapa é fazer pães para a merenda escolar.

Além de produzir de forma organi-zada, as mulheres estão à frente nos

“Vou te contar uma história que me mostra a força, a grandeza que a mulher tem:

Quando nós conseguimos uma área chamada de “Cinco Mil”, um tal de Chapéu Preto chegou à noite, entre meia noite e uma da madrugada. Ele chegou com dois caminhões, acordou todo mundo. Teve homem que saiu pelos fundos e entrou no mato. Sabe o que as mulheres fizeram? Nem eu acredito. Elas saíram dos barracos com as crianças, foram para frente dos caminhões e falaram para os fazendeiros:

– Você pode colocar nós no caminhão, mas todas nós.

Elas fizeram uma fila e colocaram os filhos de colo no colo e os maiorzinhos na frente delas.

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momentos mais duros. Quando vão fechar uma rodovia, elas estão junto. Vão para a porta do INCRA, da CGU. En-quanto isso, os maridos começam a assumir mais os filhos e ter algumas tarefas domésticas. O machismo diminui também a partir das formações em gênero.

Organização dos gruposDepois de tantos anos de atuação no Mato Grosso, tanto tempo dedicando-se à formação de gente interessada, Le-onora conta com orgulho como os grupos estão organiza-dos – ainda que, como ela mesma alerta, às vezes, pessoas enviadas pelo agronegócio se infiltrem nos espaços para contaminar e tentar desfazer a coesão da articulação.

Em primeiro lugar, está a formação, em que os acampados (ou assentados) discutem gênero, modos de produção e associativismo coletivo. Então, os grupos se organizam e, em geral, são estimulados a formar uma associação. Com o CNPJ, acessam recursos públicos do Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), principalmente.

Com a comercialização coletiva, passam a participar de eventos, feiras e integrar redes, como a Rede de Econo-

mia Solidária. Fortalecidos pela ca-pacidade de gerar riqueza e atuação em conjunto, começam a participar de instâncias de representação e ter atuação política regular. “Um acam-pamento que se envolve com a luta faz muita diferença”, assegura a Irmã Leonora.

AtentadosA luta pelo direito à terra cobra um pre-ço alto. Em 2013, houve dois tiroteios no acampamento de Novo Mundo. Durante a noite, um bombardeio. Pes-soas foram atingidas; crianças, ater-rorizadas. No dia seguinte, os acam-pados mostravam as mãos cheias de projéteis. As mulheres deixaram o acampamento e ele se desarticulou.

– Pode matar todas nós e jogar no caminhão. – Eram umas 20 mulheres, mais ou menos – Primeiro você mata nós (sic) e as crianças. Aí você pode jogar no caminhão. Mas vocês primeiro vão matar os nossos filhos e depois a gente. Porque aí, a gente tem certeza que a mãe foi e o filho foi.

Um homem tinha ficado. Quando eles viram isso, eles [maridos] foram voltando, voltando e se juntando.

Ele podia ter atirado e matado todinhas. O fazendeiro arrancou o carro e foi embora. Acho que o pistoleiro não funcionou. Teve que sair. Tinha muita criança de colo e pequena”.

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A condição de liderança na região transformou o cotidiano de Leonora Brunetto, que passou a ter os passos vigiados, vinte e quatro horas por dia. A missionária já figurou até em uma publicação da ONU, como integrante de uma lis-ta de 10 ativistas pelos direitos humanos sob proteção no país. Até mesmo a entrevista para esta publicação ocorreu em local público, sob muita tensão. Segundo a missionária:

É difícil. Não é fácil. Para mim, é muito difícil. Não pelo fato de ser vigiada 24 horas por dia. O que estou fa-zendo e o que não, onde estou... Todo mundo sabe. Mas não tem como parar. Difícil é quando você olha a situação do povo, essa miséria. Que um dia tem o que comer no outro dia não sabe se tem.

Há uns dois anos, tentaram explodir o seu carro. Na época, havia um conflito em Marcelândia, na Gleba Maicá, onde foram despejadas 85 famílias. “Tinha uns guachebas¹ en-volvidos no meio da polícia. As casas foram arrancadas, colocaram fogo. Os agricultores perderam o trabalho de dez anos”, conta Valdir Seze, voluntário da CPT e acampa-do em Nova Canaã do Norte. Leonora acompanhava essas famílias. “Um dia”, conta Valdir,

Leonora precisou passar numa estrada que não tinha desvio. Ela estava dirigindo e vinha no carro com mais dois rapazes. Esbarrou num pacote, que explodiu em-baixo do carro e estourou três pneus. Ela foi com o car-ro dançando e parou 300m à frente na casa de uma pessoa. E o pior: os caras que colocaram os explosivos vieram oferecer ajuda. A vida da gente é isso aí.

Em outro momento, no Maranhão, escapou de uma em-boscada armada em uma ponte. Moradores da região desconfiaram e correram para avisar. Um colega, que saiu antes acabou morrendo. “Aquele dia era pra eu e ele mor-rer na ponte, mas ele veio na frente e morreu. Eu consegui desviar o caminho. Passei por uma barquinha, num ponto bem acima. Não passei pela ponte”, narra, emocionada.

Apesar da tensão sempre presente, Leonora permanece jovem: cheia de anseios, esperanças e olhar novidadeiro a cada dia. O mesmo olhar é tranquilo, alegre. Típico dos que confiam na vida.

1. Guaxeba é a forma como nessa região do Brasil são conhecidos os capatazes. Mandatários dos grandes fazendeiros, que ameaçam os agricultores familiares.

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Medo de morrer? Olha, medo, medo a gente tem. A gen-te sempre olha... Quero viver mais! Mas pela causa o medo fica para trás. O que já aconteceu e foi bom é maior do que o que não aconteceu. Se eu disser que não tenho medo estou mentindo. Mas Deus dá coragem!.

Na semana em que foi realizada a entrevista com Leonora, aconteceram algumas rodadas de negociações entre justiça, representantes dos latifundiários grileiros e mediadores dos acampados. Esse acordo buscava assentar 250 famílias. Os fazendeiros estavam cedendo 10% das áreas da União que eles usam. O destino dessas terras são famílias que há mais de 10 anos vivem embaixo da lona. Após muitas tentativas, entende-se que esse acordo é a melhor solução para evitar que haja mais mortes. “Se houver conflito, vai ser muito pior pra eles, porque eles são os culpados. Eles estão evitando que haja conflito”, diz Leonora.

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DeterminaçãoLindaura Zumack

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DeterminaçãoLindaura Zumack pouca gente sabe quem é. Mas se per-guntar por Baixinha, rapidamente você chega à casa dessa mulher. Ela é bem baixinha mesmo. Mas quando abre a boca, ecoa uma voz aguda e firme. Um gigante aparece na sua frente.

Olha com seriedade. Parece um teste, para intimidar. Sem abrir mão desse modo que é praticamente um recurso de sobrevivência, sabe ao mesmo tempo tornar a vida leve e engraçada. Adora ler. Devora com os olhos tudo que lhe cai nas mãos. Além da Bíblia, os favoritos são os romances. Mas, ressalva: “Gosto de ler tudo!”

Baixinha tem 57 anos e se aposentou como agricultora. Há 18, mora em Juína, na Gleba Iracema 2, Sítio Toca da Onça. Juína está na divisa com Rondônia. Situa-se inteiramente dentro do bioma Amazônia e é cidade-polo da microrre-gião do Aripuanã, no Mato Grosso.

Às gargalhadas, conta como escolheu o nome para o sítio. Dá para perceber um pouco da sua personalidade. “Em Minas, tem o Atlético Mineiro, que é Toca do Galo, Toca da Raposa é o Cruzeiro. Aí, eu falei, bom, aqui é mata e na mata tem onça. Aí, pensei: Toca da Onça”.

“Ele queria escravizar essas pessoas, aqueles pobrezinhos que não tinham entendimento iam continuar trabalhando”

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A Gleba Iracema é uma comunidade muito organizada e agradável. Tornou-se uma referência por conta do Torneio do Leite (ver box), uma festa que mobiliza produtores de toda a região. Lindaura diz que está em um pedacinho do paraíso e que agora sonha com a chegada da internet.

Mas para encontrar o paraíso, percorreu muitas estradas. Compara sua vida a uma novela em que um novo capítulo se escrevia a cada dia. Ela é mineira. Cresceu e se casou em Minas. Vestido branco, igreja, civil, tudo a que tinha di-reito. Viveu 13 anos de um casamento de princesa.

O casamento terminou e provocou uma mudança radical na vida de Lindaura e de seus quatro filhos. “Depois que acaba o respeito é como um vaso, você quebra ele, você cola, mas fica a rachadura, não é o mesmo. O casamento é assim, no meu entender. O vaso. Você tem que fazer de tudo pra não deixar o vaso cair e quebrar”.

No caso dela, restaram os cacos e um imenso amor pelos filhos. Lindaura encarou a vida após a separação com a força misteriosa de quem tem o coração ferido. E, justa-mente por conta dessa ferida, desconfiava do próprio co-ração: “Você tem que ir pela cabeça porque o coração trai”. Fala do ex-marido, já falecido, com cuidado.

Eu não permiti nunca que meus filhos falassem do pai. Eu dizia sempre: ele não foi bom esposo, mas vocês não têm nada a ver com isso, é seu pai. Amanhã, se ele precisar, vocês vão cuidar dele. Eu não queria que nada de mal acontecesse não, eu acho que quem ama não mata, não fere, eu acho que cuida, quer que a outra pessoa seja feliz.

Duro recomeçoEla resolveu ir para Rondonópolis, no Mato Grosso, onde morava sua irmã mais velha. E as crianças não abriram mão de ir junto. “Foi tudo conversado com eles. Eu disse: a mãe, de patroa, de dama, vai passar a empregada. A mordomia que vocês têm não vão ter mais”.

Torneio LeiteiroO Torneio Leiteiro, realizado pela Associação dos Trabalhadores Rurais da Gleba Iracema (ASTRAGI) é um acontecimento que movimenta a economia e a cultura da comunidade. Teatro, música e dança compõem a programação da festa que reúne produtores de toda a região. É um concurso e ganha a vaca que produzir mais leite. Como pano de fundo, são trabalhadas questões relacionadas ao tratamento do gado, como a ração orgânica, uso mínimo de remédios, para, além de aumentar a quantidade, produzir leite com qualidade. Lindaura e os filhos são importantes lideranças na organização do torneio.

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Para fixar residência e iniciar vida nova, escolheu Pedra Preta, pequena cidade próxima a Rondonópolis. Rapida-mente, fez amizades e nunca lhe faltou trabalho. Foi boia--fria, até conseguir emprego como cozinheira em uma fa-zenda de soja.

Acredita que a oportunidade de ter uma terra própria para trabalhar e viver surgiu graças ao carinho dos amigos de Pedra Preta. Como sabiam que ela trabalhava na terra, perguntaram se ela gostaria de participar do Movimento Sem Terra:

Então, fiquei feliz em participar, porém nós fomos num movimento que não teve sucesso no princípio. E foi inva-dindo a “Itiratupã” que é Pantanal, mas foi mesmo para fazer uma pressão, não que ia ganhar lá, né? E sim, qualquer parte do mundo. Aí, fomos despejados de lá...

O grupo todo foi cadastrado pelo INCRA e estava aguar-dando serem assentados. Eram, aproximadamente, 500 pessoas. Receberam, então, a visita de uma liderança do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Juína, que ofereceu terras: “ele perguntou se a gente aceitava vir pra cá. Que era distante, mas que aqui tinha terra. Então, se nós qui-séssemos, ele já passava em Cuiabá, no INCRA, e avisava que a gente tinha aceitado”.

O INCRA selecionou 53 famílias, mas a conquista da terra não passa somente pela posse de um papel assinado. “Pra falar a verdade, a gente nem sabia onde estava. Nós vie-mos fechados dentro duma carreta, não dava pra esticar a perna, se você quisesse esticar a perna, tinha que ficar em pé. Eles soltaram a gente, dentro da mata, na beira do rio”.

Quando chegaram ao local destinado ao assentamento, a pessoa que tinha se identificado como representante do sindicato e fez toda a mediação junto ao INCRA, não dividiu as terras e reivindicou para ele a madeira. “Ele mandou os capangas acompanharem os caminhões pra intimidar, mas não pra fazer, porque a terra já era do INCRA, já esta-va negociada”.

Tiveram problemas com outra liderança. A pessoa que os ajudou com a viagem e mediações junto ao INCRA. Eles pagavam cada um, uma pequena taxa para esse homem. O valor era suficiente para custear despesas de aluguel, alimentação, transporte e ainda uma sobra.

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Mas ele mexia com tráfico, com coisas ilícitas. Ele que-ria escravizar essas pessoas, aqueles pobrezinhos que não tinham entendimento iam continuar trabalhando, aí eu falei: não, peraí! Agora você ganhou terra, foi o tempo todo muito bem pago. Então, peraí, aqui você não vai mexer com droga. Ele ameaçava por fogo, quem saísse do grupo, entendeu? Ele se achava ali...

Depois que a área foi loteada, os sítios foram se definindo e os aproveitadores foram expulsos. Estava posto o desa-fio: conseguir permanecer ali. Sobreviver às agruras pro-vocadas por outros seres humanos e pela natureza. Viver na terra e da terra.

Diante dessa crise de liderança, eles precisavam encontrar uma pessoa realmente comprometida com os interesses do coletivo. E notaram em Baixinha esse perfil. Ela foi elei-ta representante da comunidade. E vestiu a camisa. Arre-gaçou as mangas e foi em busca de projetos.

Começaram a preparar o terreno para os primeiros plan-tios de arroz, feijão e outros alimentos básicos, em regime comunitário. O INCRA dava a semente. Baixinha buscou cursos para capacitar os agricultores, a exemplo de apicul-tura, manejo de pasto, enxerto de mudas. Junto com isso, os financiamentos para viabilizar a produção.

Mas ao adentrar a mata, a malária pegou firme. Muita gen-te adoeceu e abandonou suas terras. Baixinha estava mui-to determinada. Conseguiu que o irmão Manuel assumisse as questões relacionadas à saúde. Ele tinha alguma expe-riência na área e providenciou para que a equipe da (na época) SUCAM¹ atuasse no local, erradicando a malária.

A liderança dela e de sua família foi fundamental em mui-tos momentos. E na organização dos espaços comunitá-rios, foi especial. Ela cedeu parte do seu lote para fazer a sede da Associação e da escola. Um dos filhos, Marquinho, foi o primeiro professor.

Parte das terras desse loteamento foi destinada a famílias de Juína. Mas eles não ocuparam os lotes porque o local não tinha estrutura nenhuma. Não foi simples para Bai-xinha se livrar da lista de urgências que tinha em mãos: conseguir estradas, posto de saúde, escola, alimentação escolar, transporte.

1. http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-funasa/sucam/

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E onde não tem gente, não vai progresso. Só vai pro-gresso onde tem número, porque o político vê isso e é certo, se tem gente, vai recurso, vai estrada, vai hos-pital, vai ônibus... Tinha que ter escola para as famí-lias de Juína virem morar aqui. Eu tive que conversar com meu filho, que tinha estudo, pra ele dar aula pras crianças. Aí, eu convenci a prefeitura, peguei os nomes, fui de lote em lote pegando os nomes num caderno, dos filhos que ainda estavam em Juína, pra vir estudar. Aí, que as famílias vieram.

Descobrir a vocação da propriedade ruralNo manejo da terra, descobriram que ela precisava de um investimento muito alto em adubos. Ela não é produtiva. Como se diz na linguagem do campo, “a terra tem que ser muito dobrada”. O terreno todo tem muita pedra e dava

uma doença no arroz que eles descre-vem como uma ferrugem, que quei-ma a palha. Não é uma terra viável para agricultura.

Tiveram, então, que descobrir a voca-ção de suas terras. Assim, além dos pequenos animais e hortas que pro-duzem para consumo próprio, eles criam gado de leite e abelhas. Ven-dem o leite, o bezerro macho e o mel. É uma comunidade muito bem suce-dida. Todos cresceram e têm estabi-lidade econômica. Realizam o maior torneio leiteiro da região.

A Toca da Onça produz galinha, ovos, mel, carne e leite. Comercializam o excedente desses produtos e, com a renda, adquirem os demais itens de sua necessidade. Lindaura se sente uma mulher realizada, vivendo em um pedacinho do paraíso. E isso se expressa em seus olhos e no sorriso farto. Tem quatro netos. O orgulho que sente pelos filhos se reflete nela

mesma. “Eu vejo muitas famílias construídas com pai e mãe, com tudo tranquilo, que não tem a estrutura familiar que eu tenho. Pra mim isso é uma riqueza, uma bênção”.

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Diz que tem muita mordomia e que não troca por nada a paz, a tranquilidade e o conforto da roça. Tem energia elé-trica, água gelada e carne fresca na geladeira. Ela mora em uma casa de alvenaria, extremamente agradável. Como já estava aposentada, quando saiu o material do INCRA, fez um empréstimo e ampliou a construção. Colocou cerâmica no piso e fez a varanda ao redor de toda a casa.

Porque morar na roça e não ter uma área pra por uma rede...Tem que ter uma rede, ou então essa fres-quinha para sentar assim e prosear. E eu gosto de fa-zer reunião, culto, receber pessoas, eu gosto de ver o povo, então fica legal ter uma área. Quando tem even-to aí na comunidade um bocado de gente vem, põe barraca aqui...

Valeu a pena!Sonha com a chegada da internet na Gleba Iracema. Mas o que ela mais gosta de fazer é viajar. Não se intimida com a possibilidade de envelhecer. Quer logo completar 60 anos para viajar de graça e conhecer todas as praias do nordeste.

Com as duas filhas casadas e os dois filhos homens em casa, ela se sente uma mulher quase livre. Eles são total-mente independentes, sabem se cuidar e, principalmente, sabem cuidar da mãe. Mas ela diz estar sempre pensando neles, quando sai de casa por uns dias.

O carinho e dedicação dos filhos fazem com que ela se sin-ta realizada, apesar de não ter um parceiro do lado. Mui-tas vezes, rejeitou a aproximação de outros homens, por conta dos filhos. Além de sentir-se cansada com a rotina exaustiva que tinha. Quando batia a solidão, não deixava de pensar nas filhas mulheres, ainda pequenas. E a ideia de ter um homem em casa logo desaparecia.

O pastor falou que eu devo arrumar um homem de Deus, não é todo homem que não presta. Falei: eu con-cordo, mas de repente vai me dar trabalho e não ale-gria, e aí? Quero deixar porque eu sou feliz assim. Eu viajo quando eu quero... Dizem que quando dá certo não tem problema. Um compreende o outro. Mas eu não achei essa pessoa. É difícil, mas eu sou feliz assim.

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CompromissoDorcina Rosa de Vieira Cruz

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CompromissoO que mais motiva Dorcina a superar os próprios limites é a certeza de que as mulheres devem ter seu próprio norte. E ela se coloca do lado de quem está disposta a colaborar para criar caminhos que permitam à mulher do campo se emancipar. E, o principal, ela acredita, é a formação para a consciência dos direitos e deveres. Para o exercício da cidadania.

Dorcina Rosa de Vieira Cruz tem 48 anos. Chegou em Juína com os pais, em 1985. Conheceu aquele que se tornaria seu marido nas reuniões da Pastoral da Juventude. Casou--se, estudou e vive na cidade que considera sua. Não tem filhos por conta da “pressão arterial descontrolada”.

Mas a sua energia maternal de doação e compromisso in-condicional com o outro foi muito bem canalizada. Dorcina é bastante criteriosa com a qualidade de vida no campo. Rejeita a ideia de que o campo é um paraíso, mas acha a cidade uma grande ilusão. Por isso, está interessada em estratégias e políticas públicas para tornar confortável a vida rural.

“Como que vai ficar esse povo lá no mato com os barracos de lona?”

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Para ela, conquistar a terra não é suficiente. Seu trabalho sempre esteve voltado para as estratégias de permanência ali. Muitas vezes, o trabalho no campo demora a dar retor-no financeiro. É lento e corre o risco de ser pouco lucrativo.

Depois de 25 anos de serviços prestados, três deles na co-ordenação geral da Associação, hoje, ela é uma assessora experiente. Uma mulher em busca constante. Quer mais formação, mais projetos. É sonhadora, criativa e inquieta. O mundo, na voz e nos gestos de Dorcina, mostra-se como um vasto rol de possibilidades.

E, claro, nesse mundo em que ela acredita, a mulher tem lugar de protagonista. Um lugar especial na estrutura da produção agrícola familiar. Acredita que a sede de estar no meio do povo trabalhando, buscando o melhor para si mesma e para a família está dentro da mulher.

Fica incomodada porque sabe que muitas mulheres ain-da se colocam diante dos homens sentindo-se inferiores. “Não é assim que a gente vai abrir um caminho pra nós, mas a gente tem que parar com esse negócio de pergun-tar pro homem... não é perguntar, a gente tem que ter as ideias da gente e pra isso, precisa de formação. Então, o que eu me preocupo muito mesmo e quero fazer uma es-pecialização pra me aprofundar é a questão da mulher”.

Mesmo diante de situações muito difíceis, Dorcina nunca teve dúvida sobre o seu trabalho e a necessidade de seguir em frente. E a força principal está, justamente, na capaci-dade das companheiras em resistir a toda sorte de agruras que se lhes apresentam para produzir, comercializar e vi-ver com dignidade como produtoras rurais.

Elas sabem fazer, mas precisam de tantas outras coi-sas pra chegar no mercado, que é isso que barra, é a burocracia que existe, porque precisa de CNPJ, precisa de registrar o produto delas, precisa de passar pela vigilância sanitária, precisa ter um escritório de con-tabilidade, nossa é muita coisa. Eu acho que a pala-vra-chave pra elas saírem desse negócio é além das políticas públicas pras mulheres, mas não chega na ponta é acessar a papelada. Os homens ajudam por-que elas trazem dinheiro pra dentro de casa... Mas eles ajudam, sim. O que os homens atrapalham é na hora de passear. Eles falam: ah, mas por que ir no passeio? Vamos descansar. Você sabe que os homens vão fazer

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a comida pras mulheres irem fazer formação? Muitas vezes, eu já fui nos encontros, ajudei as mulheres e os homens vão fazer o lanche, vão fazer a comida. Então, os homens não atrapalham, eles ajudam.

Essa aposta no envolvimento feminino com o que deseja e acredita está baseada em experiências muito concretas. Certa feita, a equipe divulgou pelo rádio e televisão local que seriam iniciadas as turmas de formação. O número esperado era de 150 mulheres. Prepararam tudo para 180.

Não tinha apoio de transporte, nada. E aí, no dia, foi chegando gente, foi chegando gente. Chegaram 628 mulheres. A gente olhava: o que nós vamos fazer com tanta mulher? Chamamos a coordenação e a equipe toda teve que reorganizar a estrutura. Uma vai pro mercado, outra vai pra papelaria. E aí, o local que a gente tinha arrumado não coube as mulheres ... Mas resolvemos tudo. Considero esse um grande exemplo do interesse das mulheres.

Ponto de viradaEra dezembro de 1990 e os agricultores ligados à CPT, em assembleia, constataram que o retorno financeiro do que produziam não estava voltando para a propriedade. Fica-va nas mãos dos atravessadores. Perceberam que precisa-vam de um outro modelo de organização para melhorar as condições de vida.

Decidiram comercializar, juntos, o que produziam. Preci-savam também de uma pessoa jurídica, que pudesse “res-ponder” pelo coletivo. Criaram em junho de 1998, Associa-ção de Juinenses Organizados para Ajuda Mútua (AJUPAM). Essa movimentação foi muito importante para o fortale-cimento das mulheres, que se envolveram e tiveram voz ativa em cada etapa.

Reuniram toda a produção e criaram um selo comum. Alguns tinham vinte sacas, outros cinquenta. Colocaram tudo em um caminhão e venderam em Maringá. Com o retorno das vendas puderam reinvestir e ampliar não só a quantidade como a qualidade dos itens comercializáveis como pupunha, guaraná, castanha, gergelim, salgadinhos de banana.

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Atualmente, fornecem para marcas consagradas de orgâ-nicos, como a Mãe Terra. Estão organizados e usufruem de qualidade de vida. Fruto do trabalho coletivo.

Dorcina conta que muita gente que vinha a pé, a cavalo, de bicicleta para as reuniões da Associação hoje vem de car-rão, de caminhonete ou um carro bom de passeio. Quem não tem carro, tem moto. E trocam todo ano. O cavalo é para o lazer no sítio.

Fui na comunidade Nossa Senhora das Graças visitar e a capela estava rodeada de carro. Gente do céu, há dez anos eu vim aqui... a capela era de madeira, uma capelinha assim, ou só o barracão, hoje é alvenaria. Tudo de piso, esse piso de cerâmica. Tudo iluminado, energia pra tudo quanto é lado, água pra tudo quanto é lado puxada na energia, a caixa de água lá.

Dorcina é hoje voluntária na Associação. Diz que está no sangue, não consegue se desligar dos grupos. Está, aos poucos, se envolvendo com a Rede de Economia Solidária: “eu estou assim, fazendo os contatos porque na hora que eles lá falarem que tem algum recurso, tem alguma coisa, a gente vai encaixando elas”.

Gleba IracemaOutra frente de trabalho fundamental para Dorcina foi a organização do Assentamento Gleba Iracema, que é hoje, uma comunidade exemplar. Ainda se lembra da chegada das famílias que vieram ocupar a área. “A gente acompa-nhou desde a época quando o pessoal veio lá de Rondonó-polis, uma carreta de pessoas. O INCRA chegou cinco anos depois para dividir os lotes”.

Não passou por situações de enfrentamento com risco de morte, mas considera que as negociações ali foram bas-tante conflituosas. “Negociação com fazendeiros e até o fa-zendeiro decidir que ia vender e o INCRA comprar mesmo de verdade”. Dorcina conta que, certa feita, tiveram que fechar a agência do Banco do Brasil, em Juína.

O PRONAF não vinha, não vinha e nem aquele recurso que o INCRA mandava que era pra começar a traba-lhar na terra. Eles não vinham e aí (...) como a gente

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vai ficar com esse povo lá no mato? Porque era mato, mato mesmo. Como que vai ficar esse povo lá no mato com os barracos de lona? Era bem difícil, não tinha como. Na época da chuva, não tinha nem estrada, também na época da seca, a estrada era horrível, mas pelo menos dá pra passar e na época da chuva não dava pra passar.

O trabalho com o grupo de mulheres na Gleba Iracema também deu certo. Hoje, elas já estão beneficiando frutas, produzindo outros tipos de vegetação, licores e conservas, aproveitando as frutas locais.

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SolidariedadeVera Maria Lobo

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SolidariedadeInspirada nas vidas de São Vicente e Santa Luzia, a carioca Vera Maria Lobo abandonou o conforto da família de clas-se média para ganhar o Brasil, em defesa dos mais pobres. Renasceu por duas vezes: a primeira, na favela, e a segun-da, no meio rural, onde até hoje vive o sonho de construir um mundo cada vez melhor para as pessoas.

Descendente de orientais, Vera nasceu em meio ao frescor das montanhas de Petrópolis, no Rio de Janeiro, em 26 de abril de 1941. A mãe era filha de libaneses. O pai, sírio, veio para o Brasil durante a guerra de 1914. A lembrança da fresquinha Petrópolis não desapareceu. Até hoje, mais de 30 anos depois, sofre com o calor do Mato Grosso, onde fixou residência.

Teve seis irmãos e uma infância feliz. A casa era sempre movimentada pela presença de amigos. A mãe, D. Angeli-na, era dama de caridade. Em seu lar, valores como solida-riedade e partilha eram praticados e valorizados.

Ainda bem nova, Vera envolveu-se com a vida religiosa. Co-nheceu a pobreza dos morros de Petrópolis e pôde consta-tar o sofrimento do povo. Em meio às atividades religiosas,

“A mulher é exemplo. O que ela faz e conquista se espalha muito rápido para os outros.”

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conheceu a vida de São Vicente e Santa Luiza e sentiu ne-cessidade de se dedicar aos mais pobres.

Entrou para a Companhia das Filhas da Caridade, no Rio de Janeiro. Durante dez anos, morou no Colégio Santa Isa-bel, onde a formação adquirida fez reforçar o ideário de trabalhar pelo próximo. Acometida por um câncer linfático – Doença de Hodgkin – viu-se obrigada a voltar para casa e se recuperar.

Vera formou-se professora e achou que nunca seria outra coisa na vida. Entretanto ficava inquieta sempre que espi-chava os olhos para os morros da cidade e lembrava-se de tanta pobreza.

Chegou a ser convidada para acompanhar a formação das noviças, mas estar em uma casa fechada não a deixava muito satisfeita. Ocorreu, então, o Concílio Vaticano II, no início dos anos 60, trazendo a mensagem de aproximação entre a Igreja e os fiéis. Foi o ponto de virada em sua vida. Vera acredita que o concílio estimulou que a vida religiosa voltasse às origens, com um grande foco na dedicação aos pobres. Começava, assim, o movimento para a formação das Comunidades Eclesiais de Base no Brasil.

Uma nova VeraVera Lobo foi morar em uma favela no Rio de Janeiro, ex-periência que funcionou como um verdadeiro batismo:

Se na minha cidade eu tinha visto algumas coisas, na favela, então, desmontou tudo. Vi situações de muita pobreza, muita marginalidade, muito sofrimento. Ain-da mais que a favela ficava atrás do presídio Frei Cane-ca, que já foi desativado. Pelo caminho a gente via os presos, as fugas, que eram meio programadas. Muitas mortes, a gente sofria.

Não apenas a violência, mas a degradação da vida humana também bateu fundo em Vera, que àquela altura já estava na casa dos trinta anos. “Na entrada da favela tinha um lixão, aí você via, muitas vezes, gente tirando do lixo para comer, não tinha água”, conta. “Isso gerou uma revolução dentro da gente”.

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Essas experiências mexeram com as suas perspectivas de mundo. Aquele não era o mundo seguro e tranquilo da família, nem era tão organizado quanto o que teve no co-légio. Vera revisou os próprios conhecimentos. Achou que eles de nada valiam. Mas foi ali que percebeu o valor da presença, da ajuda mútua e descobriu o jeito de comparti-lhar o que sabia e ajudar os próximos.

Renascida, mais uma vezDepois da favela, em 1979, foi morar em Acorisal, Mato Grosso. Esse era um sonho muito antigo. Queria ser mis-sionária junto aos indígenas. “Só que a minha cabeça de missionária era terrível. Pensava que ia chegar aqui e de-finir como eles tinham que fazer as coisas”, lembra. “Na favela foi meu batismo e aqui foi a crisma, eu digo assim”.

Ela considera a Vera de hoje mais agradável que a de tan-tos anos atrás. Diz que a essência é a mesma, mas tornou--se capaz de compreender melhor o outro. E de se adap-tar aos imprevistos que surgem todo dia, ao que não está controlado, organizado. “Eu tive que passar por um novo processo de aprendizagem, no qual eu continuo, para en-

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tender a fala do povo. O jeito de falar, os termos que usa-vam. Aprendi a pedagogia para trabalhar a partir do que vinha do povo”.

No início dos anos 80, a equipe da Comissão Pastoral da Terra que já atuava naquela região lhe propôs uma parce-ria. O padre, que vivia em Acorisal, foi conhecer as comuni-dades eclesiais de base e articulou a vinda das irmãs para ajudá-lo nos trabalhos. “Ele conhecia todo mundo pelo nome. Articulava o grupo e nós ficávamos encarregadas dos encontros de formação de lideranças de comunidade. Isso foi algo que veio calar no coração do povo”, lembra a Irmã Vera Lobo.

A terra: Projeto Varredura Na época em que foi implantado o Projeto Varredura, a comunidade recebeu a visita das equipes do Instituto Na-cional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e do Ins-tituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT). A CPT propôs fazer três experiências para desenvolver uma proposta de reforma agrária, com os agricultores agrupados, segundo as características das suas terras: tradicionais (sesmarias), terras da união e outros.

A região onde atua a Irmã Vera é a de sesmarias. Com o Pro-jeto Varredura, as terras foram divididas em glebas que se-riam regularizadas como assentamentos. Houve muita difi-culdade de compreensão das famílias sobre esse processo, já que vivem em propriedades dos seus antepassados.

Mas muitas terras foram passadas de pai para filho, sem registros em cartó-rios. O Projeto Varredura previa a re-gularização dos proprietários. Assim, os filhos não puderam ter suas terras regularizadas, porque não tinham o documento de posse. E todas as sub-venções e financiamentos do governo brasileiro para a agricultura familiar não contemplam os filhos, que não estão regularizados.

Também surgiram problemas com a nova divisão dos lotes. Às vezes, a roça, a área de cultivo ficava muito

Festa da SementeHá dez anos, a Irmã Vera ajuda a organizar a Festa de Trocas de Sementes Crioulas, de Mudas de Plantas Medicinais e de Mudas de Árvores Frutíferas. É uma realização da Comissão Pastoral da Terra, em parceria com o poder público local, na Comunidade do Mutum. A Festa é um mote para um trabalho grande de criação de alternativas qualificadas para o homem, a mulher e o jovem do campo no campo.

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distante da moradia. Como fazer a divisão equilibrando tudo isso? “Foi muito trabalhoso, mas se conseguiu fazer. No final, aqui nessa área, deu certo”, conta Vera, satisfeita.

Viver da terra: as mulheresEra muito comum, na década de 80, a saída dos homens “válidos” (a partir de 14 anos), para as glebas na região Nortão. Iam para a construção de es-tradas, de cercas e outras obras de in-fraestrutura. Eram seis meses ou mais fora de casa. Voltavam fracos, doen-tes, com malária.

Voltavam para casa, passavam dois meses, faziam um filho e retornavam ao Nortão. O dinheiro que deixavam para armazém era pouco. As mulhe-res tinham que cuidar da casa, dos filhos e da roça.

Tudo passa pela terra, pelo cuidado com a terra. A mulher é exemplo. O que ela faz e conquista se espalha muito rápido para os outros. Não que os homens não façam as coisas e não estejam presentes, mas as mu-lheres são mais abertas ao trabalho

coletivo. As mulheres tem uma capacidade muito gran-de de trocar informações. Os homens fazem em outro nível e elas fazem nesse nível da miudeza. Elas não dei-xam a bandeira cair.

As mulheres davam continuidade ao regime dos mutirões para “dar conta do serviço”. A maior lavoura era a de man-dioca. Faziam a farinha de forma artesanal, de origem in-dígena. A primeira Casa de Farinha nasceu na comunidade da Barra do Buriti. Quem cedeu o pedaço de terra foram Dona Gregória e o marido.

Com o passar do tempo, os associados viram que o espa-ço era pequeno. Eles foram pegando o jeito de fazer tudo junto: decidir e depois realizar. Outras comunidades viram e seguiram o exemplo. Produziam mais e era menos can-

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sativo. Puderam vender um pouco melhor, ainda que per-maneça a questão do intermediário.

Também na Barra do Buriti, nasceu o primeiro Recanto das Mulheres. Uma sala pequena em que elas se reuniam para conversar. O primeiro grande assunto foi redescobrir os seus valores, a autoestima. Quais eram as qualidades das mulheres e quais as dos homens. Elas perceberam al-gumas semelhantes e outras não.

Outro assunto era o próprio corpo. A prevenção ao câncer de mama, o exame ginecológico, a mamografia... cada nova descoberta era rapidamente compartilhada com todas elas. No grupo, o conhecimento sempre foi algo coletivo.

Nessas conversas, as mulheres trocam experiências de vida. Contam o que sabem e gostam de fazer. Algumas co-meçaram a tecer redes, tapetes e cobertas de camisetas de malha que não serviam mais. Outras aprenderam a fa-zer xarope, pomadas com ervas medicinais.

Vera considera que duas coisas eram básicas para os gru-pos deslancharem: formação e organização. Sente-se feliz com os resultados do trabalho que deu sentido à sua vida. “Vejo que po-demos morrer em paz, porque temos continuadores. Não somos mais tão necessárias como antes”, garante.

A Irmã deseja que as novas mulheres assumam com toda a garra. Ela acre-dita que ser mulher traz possibilidade e oportunidade de transformar a re-alidade em que vivemos. Quer seja a realidade familiar, comunitária, social e do mundo. “Mesmo que seja um cis-quinho”, diz.

SonhosO povo no campo lida, sobretudo, com a vida, com a esperança. “Dizem que a gente não pode ter só um sonho. Tem que ter pelo menos mil. Para quando realizar um, ir logo em busca de ou-tros”. E ela sonha muito. Sonha alto. É quase uma oração na qual projeta

Alegria e pipoca: o nascimento da Associação dos Agricultores e Agricultoras da Comunidade de Mutum ‘Feito por nós’“Num desses mutirões, em que estavam se ajudando, elas se lembraram de mim e disseram que queriam minha ajuda. E eu fui. A reunião foi lá na Barra do Buriti. Aí eu fui falando: eu não sei nada para ajudar vocês. Eu posso escutar vocês e ver quem pode ajudar. Elas diziam: a gente só quer o seu apoio.

Aí elas disseram que queriam diminuir um pouco a dificuldade do trabalho com a farinha. Aí eu contei para o pessoal da CPT para ver se eles tinham alguma ideia. Eles vieram. Tinha também o Padre José Grassi, que não conhecia muito de farinha.

Elas mostraram tudo como elas faziam. O ralador que era uma lata furada... e ele

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seus desejos de sociedade mais igualitária, em que todos percebam os direitos que todos possuem.

Que a violência não cresça. Que o relacionamento en-tre as pessoas seja de mais estima, bem querer, menos competitividade, menos ganância. Que o deus dinheiro não seja o Deus.

Que tenhamos um Deus mais amoroso e libertador. Que haja não só a solidariedade nos momentos de tragédia, mas que seja algo do cotidiano. Que todos te-nham direito à saúde. Que não tenha morador de rua. Que não existam crianças ou mulheres prostituídas.

Que a natureza não seja usurpada de todos os bens que ela tem, mas que nos ajude com o pão de cada dia. Que a água seja um bem para todos. Que tenha também mais mulheres, acreditando no seu poder, na sua capacidade, na grande missão que têm de trans-formar seu entorno. Que elas possam realizar os so-

nhos e projetos em família. Que pos-sam ser felizes! ‘Ponto final’”.

fotografou tudo, para levar para a Itália para ver se conseguia algum recurso. Elas ficaram de conseguir um barracão. Elas falaram para os maridos e eles pensaram que era coisa de partido político. Aí não acreditaram. Disseram: quantos partidos prometem coisas e nunca aconteceu nada?

Então, combinamos de não discutir com os maridos. Vamos fazendo. Aí eles viram que elas iam mesmo e ajudaram. Atravessaram o rio para conseguir madeira. Nesse tempo, o José Grassi tinha chegado da Europa. Ele não conseguiu muito, mas descobriu uma instituição para a qual a gente podia apresentar um projeto. Aí teve que criar a Associação. As mulheres fizeram pipoca e distribuíram pra todo canto porque nascia uma associação. E foi feita com mulheres e homens”.

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EsperançaGermana Benedita da Silva

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EsperançaGermana foi incentivada pelo irmão, que era presidente do sindicato, a se envolver com a luta pela terra. Quan-do ela começou a participar das reuniões do sindicato, em 1994, o número de mulheres, era muito pequeno. Mas mesmo assim, enfrentou o desafio e chegou a fazer parte da diretoria.

Conheceu muita gente e saiu de certo isolamento comum às populações das áreas rurais no Brasil, pela falta de transporte, telefonia, estradas. Germana percebeu que o trabalho coletivo precisa ser muito interligado, conectado. Notou a importância de trocar informações, aprendizados, conhecimentos para a conquista dos seus direitos.

Essas vivências transformaram a vida dela. Extremamente calada, mal abria a boca. O compromisso com os compa-nheiros e companheiras, de socializar informações fez que ela superasse essa dificuldade.

O marido, seu Getúlio, não gosta de sair de casa, de via-jar e ficava inquieto quando os convites “do movimento” começaram a chegar para Germana. Mas essa mulher, de jeito sério e comprometido não deixou rastros de dúvida

“Eu não sei o que eu tinha, porque mesmo nessas condições aprendi a ler e escrever”

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sobre suas verdadeiras intenções. O companheiro logo percebeu que não precisava interferir. Ao contrário. Viu que se ajudasse, seria melhor para toda a família e para a comunidade.

Os filhos também perceberam a importância de dedicar um tempo da vida a adquirir mais formação, mais conhe-cimento e de socializar o que sabem. Os mais velhos esco-lheram profissões e trabalhos formais, com carteira assi-nada. Mas Camila, a mais nova, está seguindo os passos da mãe.

Em meio a muito trabalho e conquistas, devido a um pro-blema de visão, ela achou melhor se afastar, porque ficou preocupada em lidar com tantos documentos. Segundo ela, poderia “deixar passar” alguma coisa importante e prejudicar um companheiro ou companheira.

Dona Germana e seu Getúlio criaram os filhos somente com os frutos da agricultura familiar. Nunca tiveram outra atividade. Durante um bom tempo, o ponto alto da lavoura era a mandioca. Como a maioria das famílias locais, eles

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produziam farinha e com a venda do excedente da produ-ção, completavam a compra de mercado.

Com a queda da produção de mandioca, tiveram que criar alternativas de sobrevivência. Com as informações adqui-ridas nos encontros do movimento, fizeram o cadastro no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), para fornecer alimentação escolar. A polpa de frutas é o princi-pal produto fornecido pela família.

E, apesar de ter saído da diretoria do sindicato, o trabalho com o Grupo de Mulheres Feito por Nós não parou. Uma frente de trabalho capitaneada pelo Grupo, responsável por alavancar a Associação dos Agricultores e Agricultoras da Comunidade de Mutum ‘Feito por Nós’ é a padaria.

A padaria surgiu da necessidade da comunidade de con-sumir o pão fresquinho. Quando viram a possibilidade de, além de consumir o pão mais gostoso, melhorar a renda, que estava muito baixa, por conta da crise da mandioca, muitas famílias aderiram ao projeto.

O pão é produzido diariamente. Tem uma escala, com os responsáveis por cada dia. Uma taxa, proporcional à pro-dução, é dedicada ao “fundo” que criaram para manuten-ção de equipamento e de energia.

Quando tem bastante encomenda, cada família chega a receber mais de um salário mínimo no final do mês. Junto com a polpa de fruta e outros produtos, eles conseguem arrecadar mais de dois salários mínimos por mês. Além de melhorar a renda, economizam com o que deixam de comprar no mercado e melhoram a qualidade do que vai para a mesa.

Esse esquema, de ajuda mútua, é um dos segredos do su-cesso de Germana e sua família. Até mesmo os filhos que têm trabalho assalariado, fora da propriedade familiar, co-laboram financeiramente com o que precisa em casa.

Mesmo com das melhorias nas condições de vida da famí-lia, os sonhos e projetos de futuro não seriam tão impac-tantes, se não fosse a mudança de perspectiva de vida que o Grupo de Mulheres trouxe para Germana. Segundo ela, houve uma transformação da própria identidade.

Aprendi a conhecer quem eu sou. Me sinto mulher, não totalmente realizada, mas definida. Sei até aonde pos-

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so chegar porque muitos tropeções a gente leva por falta de saber lidar com as coisas, o que eu posso o que eu não posso. Colocar a mão até onde meu braço pode alcançar. É, ter uma segurança, uma definição própria, não ser levado, porque hoje o mundo está aí, não por dizer que eu sou uma pessoa já de idade pra não entrar nas coisas do mundo, né? Mas se a pessoa tem mais firmeza, ela fica mais segura desses atos.

Com todo o equilíbrio, força de trabalho e esforço indivi-dual, o êxito do empreendimento rural familiar se esbarra em políticas públicas. São abertas as linhas de crédito, mas não tem acompanhamento técnico.

Essa lacuna faz com que muitos produtores fiquem endi-vidados, porque quando ele consegue acessar o crédito, por falta de orientações técnicas adequadas, a lavoura não vai adiante.

Germana observa também que o investimento público é muito baixo por projeto.

Estive na secretaria de agricultura, reivindicando re-cursos para a recuperação das farinheiras e a resposta é que não tem recurso na pasta, então, fazer que nem assim, isso é uma parte que é uma parte de política pública porque pra nós não basta ter uma pasta da secretaria de agricultura, ter o secretário e não ter re-curso pra investimento, então, falta muito essa parte da vida no campo.

Cabeça erguidaPara ela, unidas, organizadas, as mulheres fazem muita di-ferença na luta para qualificar a permanência do homem e da mulher no meio rural. Mas Germana ainda se frustra com o comportamento de algumas companheiras. “Muita gente se apega no machismo para justificar o comodismo, a aceitação. Nesses casos é difícil”.

Germana não esmorece. Imagina que a vida dos 50 (anos) em diante não será igual ao que foi antes. Mas ela recorre à autoestima para não se curvar diante das dificuldades, dos problemas. Ela adquiriu a sabedoria de transformar os pro-blemas em molas propulsoras, que levam a vida para frente.

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Do tempo em que estudar não era prioridade, além de tudo, nasceu mulher. Muita gente da comunidade, da mes-ma geração que ela, ficou sem aprender a ler e escrever.

Fui ao encontro da professora e aprendi ler e escrever. Não tenho assim, conclusão concreta. Naquele tempo que nem colégio tinha, o professor vinha assim, pegava casa de família, dava aula uma semana, na outra se-mana já não tinha mais. Eu não sei o que eu tinha, por-que mesmo nessas condições aprendi a ler e escrever”.

Hoje, os estudos são prioridade em sua casa.

Hoje meus filhos eu sempre falo pra eles assim, que é pra eles estudarem, formarem, não que, ah, se você não estudar você não é ninguém, a partir do momento que a pessoa tem uma atividade ela é alguém na vida, mas assim, o estudo, hoje, já é uma forma de assegu-rar pra ele ter um mercado de trabalho. O estudo pra mim e pra eles é essencial”.

É um item tão importante na agenda de Germana que ela recomenda a toda juventude que está saindo do campo mais atenção a isso. E brada para que os meios oficiais também estejam atentos:

Eu diria para a juventude, assim, que tivesse pé no chão pra não arrepender depois, porque o futuro está aí e o futuro dos jovens é hoje, não é o amanhã. Pra mim o futuro deles já é pra estar acontecendo no hoje, não é falar que o jovem é o futuro de amanhã. O ama-nhã é o amanhã e eles já são o de hoje. Queria que eles tivessem pé no chão de que saísse, mas não por um abandono, mas por uma busca de uma formação, de repente de uma faculdade, de um curso a mais pra eles estarem tendo sua formação de profissional, numa área ou em outra...

Não para de fazer planos. E esses planos, totalmente co-erentes com a sua história de vida, envolvem bem mais gente que ela, o marido e os filhos.

Eu tenho o sonho de que a nossa escola tenha uma estrutura física pra lazer e mesmo pra a parte de com-plementação no estudo porque a nossa escola hoje ela

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obtém segundo grau completo pra conclusão de es-tudo, mas não tem uma estrutura física pra trabalho de matéria de educação física, então, quando têm os jogos competitivos, faz os times e saem pra competir lá fora e perde, e volta frustrado, eles voltam frustrados porque a estrutura física onde eles treinaram não se comparou com onde eles foram competir, então, isso eu tenho um sonho que seja uma hora trabalhada essa parte pra melhoramento do próprio lugar.

Germana sente que o produtor rural é pouco valorizado no Brasil. Mas não se arrepende de nenhuma das suas escolhas. Ao contrário. Ela diz que seu sonho é ter uma propriedade maior para produzir com mais variedade e deixar um pedaço de chão para os filhos. Na sua filha e companheira de trabalho, Camila, ela deposita boa dose de esperança de continuidade.

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DesejoCamila Sales da Silva

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DesejoEla é um tipo meigo. Aborda cada assunto de forma pensa-da e delicada. Fala baixo e devagar. Camila Sales da Silva é a filha mais nova de Dona Germana – importante liderança na Comunidade do Mutum, Jangada. A mãe é uma refe-rência importante para Camila, que em casa é chamada de Neide.

A falta de oportunidades para a juventude rural está resul-tando no envelhecimento da população camponesa. Ela é a representante das mulheres jovens da região, que de-sejam se qualificar como produtoras rurais e desenvolver projetos ligados à terra. Enfim, Camila é uma das poucas jovens brasileiras que ainda acredita na possibilidade de viver no campo.

Faz parte da primeira turma de formandos do curso de agroecologia oferecido no município de Jangada. Apesar de apontar uma série de faltas no curso, ela está muito empolgada. Acredita que com os novos conhecimentos poderá atuar melhor, tanto na propriedade da família, como em outros projetos de qualificação da produção ru-ral no município.

“Não tem que ter diferença de trabalho de homem e de mulher é só saber lidar com o trabalho que precisa ser feito”

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Sempre que aparecerem as oportunidades nós temos que agarrar, mas também não devemos esperar ape-nas oportunidade, nós também temos que adquirir, fazer as nossas oportunidades surgirem porque ficar parado e esperar também não faz diferença, nós te-mos que construir também. Ser os novos construtores.

Ela nota, por exemplo, que se houvesse mais acompanha-mento técnico, a produção melhoraria e surgiriam mais oportunidades para os jovens. “Muitos estão saindo para outras localidades em busca de emprego. Eu vejo que isso não é bom para os jovens porque ao invés de nós desen-volvermos nosso município, nós damos desenvolvimento a outras localidades, enquanto nós jovens podemos de-senvolver aqui”.

As lembranças da infância são de muitas brincadeiras, mas também de trabalhar junto com os pais no plantio e na co-lheita. Ela não tem nenhuma queixa dessa fase. Ao contrá-rio. Sente muito orgulho por saber lidar com a terra. Coisa a que muitos amigos não tiveram acesso.

Considera-se uma privilegiada. Porque ia para escola, brin-cava com os colegas, trazia os colegas também para roça,

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ajudavam a abrir as covinhas para plantar. “Tudo isso em forma de diversão, mas era uma oportunidade. Meus pais ensinaram desde pequena a lidar com a vida, trabalhar. Agora é a faculdade, né? Ver o que eu posso fazer”.

Ela não está muito decidida sobre os próximos passos. Quando criança, pensou em ser jornalista. Agora, está di-vidida entre agronomia ou alguma outra carreira ligada ao magistério. No fundo, o que ela quer é uma profissão que possa exercer com qualidade e colaborar para o desenvol-vimento da localidade em que vive.

Camila tem mais três irmãos. Os três têm curso superior. Em matemática e educação física. Quer fazer como a irmã que mora em Cuiabá, há quatro anos, mas vai voltar, assim que colar grau. Ela só não abre mão de participar do Grupo de Mulheres. Ir aos encontros, participar dos cursos, trocar experiências com outras jovens e também com as mulhe-res mais experientes.

Camila participou da Jornada Mundial de Juventude, no Rio de Janeiro. Ela já conhecia Brasília e Mato Grosso do Sul, mas nunca tinha viajado de avião.

Meus migos que estavam disseram assim: nós chega-mos na cidade maravilhosa. Eu pensei assim, bem que eu poderia vir estudar aqui no Rio de Janeiro e voltar pra lá. Eu pensei nisso, porque vi que é uma cidade bem estruturada. Mas nós fomos a passeio, é diferen-te de quando a gente mora lá, né? Aí, talvez se fosse morar, aí falava assim: ô, lá no meu município é bem melhor do que aqui.

Mesmo diante dos possíveis benefícios de um centro urba-no bem estruturado, Camila não se confunde.

Eu gosto daqui porque tem tudo bem natural. Lá é bem mais difícil porque tudo, pra gente sair tem que estar com dinheiro. Não que aqui onde nós moramos não tenha que ter, mas se nós sairmos aqui, conversamos com o vizinho e troca com alguma coisa. Lá, assim, vizinho, a gente pode até estar morando perto deles, mas sai pro serviço mal vê eles, fala um bom dia, boa tarde ou nem, às vezes, fala bom dia, boa tarde. Aqui é bom porque tipo, bem mais fácil de lidar com as pesso-as do que na cidade e, aí eu vejo que aqui é bem mais

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fácil. Porque, às vezes, a gente vê, só pela aparência: ah, bem que poderia morar lá, porque lá é muito me-lhor, tem mercado, tudo perto, mas não adianta ter mercado e não ter o dinheiro pra manter o que você quer. A estrutura depende bastante também, mas também tem que ver qual que é o melhor, porque não adianta sair daqui, morar na cidade e tipo, lá assim, o ar puro lá a gente não tem pra respirar igual nós te-mos aqui. Eu gosto de morar, gosto dos animais tudo, mas o que eu mais gosto é de ver o natural daqui, fazer também, tentar mudar aqui, o jeito de ser. Buscar no-vos projetos pra ver se tem melhoria, não de construir novos prédios porque isso daí também prejudica mui-to aqui, quando vem a chuva, não tem pra onde correr as águas, igual na cidade quando acontece chuva e não tem como as águas correrem, tem tudo assim, nós temos o pedacinho da nossa terra, tem como cultivar, vejo que é bom produzir, tirar o próprio alimento da sua terra, é bem mais saudável.

O laboratório que não teve na escola de agroecologia teve em casa. A família cultiva mandioca, milho, banana, ma-mão e outros.

Variedades. A monocultura é muito prejudicial aqui pra nós, não adianta plantar só uma cultura, nós te-mos que desenvolver pra ter várias culturas de plan-tações, até pra manter a família porque a maior parte do sustento daqui de casa vem é da padaria e daqui da agricultura familiar. Minha mãe faz entrega pra escola que é da agricultura familiar. Está sendo bem aceita.

Sobre a relação entre homens e mulheres no curso de agroecologia, ela fala sobre a importância de garantir que ambos tenham acesso ao mesmo tipo de conteúdo e à situação de aprendizagem. Para Camila, tudo que os ho-mens fazem as mulheres podem fazer. E vice-versa.

Eu acho que não tem que ter diferença de trabalho de homem e de mulher é só saber lidar com o trabalho que precisa ser feito. Já vi muitas mulheres estarem virando pedreira, trabalho que é do homem, elas tam-bém estão sabendo lidar com isso. Igual também fa-lam que comida é mulher que faz, os homens também, como meu pai mesmo, quando nós não estamos aqui

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ele que cozinha. Tem que não ter mais esse machismo dos homens.

Uma das atividades importantes no cotidiano de Camila é a padaria comunitária. É um empreendimento coletivo, to-cado pelas mulheres. Se for produtora rural, Camila quer ter um negócio próprio. “Até perguntei por que não estão pagando meu sindicato? Disseram que é porque estão es-perando ver se eu vou seguir esse tipo de profissão mes-mo ou uma outra profissão, como a de professora”.

Compara a sua vida à da mãe. Mesmo tendo que trabalhar, hoje encontra outro tipo de estrutura. Usa energia elétrica, água encanada. Mora em casa de alvenaria. O acesso à saúde ainda é muito ruim, mas era pior. “Eu ainda ouço falar que a vida ainda está muito ruim, mas pra mim eu vejo que está bom, porque pelo que minha mãe conta, que naquela época pra be-ber água tinha que pegar na cacimba, rumar na cabeça e agora a água sai na porta da casa, tem geladeira, tudo do bom e melhor. Não tem tudo, mas já considero bem mais fácil”.

Apesar de ser muito jovem, Camila de-monstra muita consciência das suas escolhas. Alerta que para viver na roça é preciso insistir, persistir. Mas é preciso também ter acesso à for-mação. Aprender as técnicas e contar com acompanhamento.

Camila confirma que quer voltar para a escola onde ela começou a estudar e também ter o tempo para trabalhar com agricultura familiar: “sendo professora, nem que for diretora, alguma coisa que eu consiga mudar a estrutura da escola e virar uma fazendeira, mas não uma fazendeira dos grandes latifúndios, e sim produzir alimentos saudá-veis”.

Os planos são incontáveis. Para a propriedade da família, para a escola... Mas ela não quer desistir do jornalismo. Casamento e filhos, só depois de concluir os estudos. Pen-

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sa que se for professora, depois que já estiver com um sa-lário, pode financiar a segunda formação e escrever sobre a sua região. “Quem sabe? O ENEM tá aí! Mas ainda tenho o sonho de ser professora e voltar pra cá mesmo”.

Muitos jovens saem em busca de trabalho porque acham que aqui agricultura familiar não dá rendimen-to, mas não adianta nada eles saírem pra ir em busca e, muitas vezes, eles saem da agricultura familiar, mas faz, às vezes, muito mais do que se estivessem na sua própria terra, saem pra trabalhar para os fazendeiros. Poderia estar dando rendimento aqui e eles saem pra fazer pra outro e aí, às vezes, não é nem o pagamento que era pra ser. Mas assim, tipo, fala assim: ah, eu es-tou pra Cuiabá. Acha que é bonito falar que está numa cidade, mas, às vezes, lá é bem pior do que aqui.

Camila, como toda jovem mulher, tem muitos desejos. Camponesa, usufrui das conquistas das tantas mulheres que vieram antes dela. Lutadoras que se arriscaram e rom-peram com certos ciclos de vida necessários à manuten-ção do status quo vigente.

Agora, Camila olha para o futuro de cabeça erguida. Preci-sa fazer escolhas porque a ela se apresenta um mundo de possibilidades.

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