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    561Quand la sociologie des sciences se saisit de la sociologie de lart

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 20, n. 3 p. 541-560, set./dez. 2005

    A TEORIA DAS RELAES SOCIAIS DE SEXO:um quadro de anlise sobre a dominao masculina

    Anne-Marie Devreux*

    Resumo: Este artigo expe o sistema conceitual elaborado na Frana,em torno do conceito de relao social de sexo. Mostra as ligaestericas entre, de um lado, as modalidades de ao ou as atividades

    dessa relao social, isto , a diviso sexual do trabalho, a divisosexual do poder e a produo de categorias de pensamento sexuadase, de outro lado, as propriedades formais das relaes sociais desexo: seu carter transversal, sua dinmica, seu carter antagnico.Essas propriedades so ilustradas por meio dos resultados depesquisas de campo efetuadas pela autora na rea da famlia, dotrabalho domstico e da armada ou, ainda, a propsito da sexuaoda memria. Igualmente, o artigo explicita a preferncia da autorapelo conceito de relao social de sexo, relativamente ao conceito derelao social de gnero.

    Palavras-chave: relao social de sexo, dominao masculina,categorizao de sexo, teoria sociolgica, epistemologia.

    Este artigo prope uma construo terica sociolgica: a teoriadas relaes sociais de sexo, elaborada na Frana1h pouco mais de

    vinte anos e para a qual contribu desde o incio. Recentemente,clarifiquei laos lgicos entre diferentes conceitos amplos utilizadosno domnio dos estudos sobre as mulheres, o gnero e as relaesentre os grupos de sexo.

    * Doutora em Sociologia, Pesquisadora HDR (Habilitada a Dirigir Pesquisas) do CentreNational de la Recherche Scientifique (CNRS), Paris. Est ligada ao LaboratoireCultures et Socits Urbaines, unidade mista CNRS e Universidade Paris 8.

    Este artigo retoma palestra feita em 7 de dezembro de 2004, no Ncleo de Estudose Pesquisa sobre e Mulher da Universidade de Braslia (NEPeM/UnB).

    Traduzido do francs por Ana Lisi Thurler.

    Artigo recebido em 23 jun. 2005; aprovado em 28 nov. 2005.

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    A sociologia das relaes sociais de sexo se distingue das teoriasde gnero e iniciarei minha exposio por esse ponto, que me pareceessencial para se compreender sua importncia terica e prtica.

    Desenvolverei, em seguida, o contedo do sistema conceitual dasrelaes sociais de sexo, isto , seus modos de ao e suaspropriedades formais. Em torno desse ltimo ponto, apresentareialgumas ilustraes selecionadas de meus trabalhos empricos. Narealidade, o fio condutor de minha pesquisa foi explicitar aspropriedades formais das relaes sociais de sexo.

    Gnero e relaes sociais de sexoNos estudos franceses em torno da dominao dos homens

    sobre as mulheres, gnero e relaes sociais de sexo no so conceitosopostos. Freqentemente so usados como sinnimos, mas, em meuentendimento, se distinguem sob muitos ngulos. Por diversas razesprefiro o conceito de relao social de sexo.

    O ponto mais importante reside na acentuao do fato de que

    as relaes entre os homens e as mulheres constituem uma relaosocial. O gnero diz mais das categorias, da categorizao do sexoque, para mim, o resultado da relao, uma das modalidades pelasquais a relao social entre os sexos se exprime, mas no toda arelao.

    No sentido marxista, uma relao social uma oposioestrutural de duas classes com interesses antagnicos. Com o estudo

    das relaes sociais de sexo assistimos a um enriquecimento domarxismo. Para esse campo de estudos, os sistemas de representao(o domnio do ideal, para retomar a expresso de Maurice Godelier,1984) so to importantes quanto as prticas da diviso do trabalho edo poder, to importantes quanto a dimenso material na dominaodos homens sobre as mulheres. Reciprocamente, o material toimportante quanto o ideal, o que rompe com a concepo expostapor Pierre Bourdieu sobre a dominao masculina (1998). Para ele,

    no caso da dominao masculina, as formas simblicas da dominaoso preeminentes. A opresso material admitida, mas deixada forada anlise. Pierre Bourdieu fez das formas simblicas da dominaoa totalidade heurstica da dominao masculina (Devreux, 2000).

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    Uma segunda razo leva-me a preferir o conceito de relaosocial de sexo ao de gnero: o primeiro nomeia explicitamente o sexoenquanto o segundo termo evita mencion-lo e o eufemiza. Ora, a

    referncia ao sexo biolgico parece-me essencial pois a classificaosocial dos indivduos, desde o nascimento, operada sob esse critrioou, mais precisamente, sob a representao social segundo a qualesse critrio de uma importncia primordial para classificar osindivduos. Psiclogas francesas feministas (Hurtig & Pichevin, 1986)demonstraram que classificar e definir os indivduos no nascimentopelo critrio da ausncia ou da presena do pnis constitui um ato

    social: essa reduo da identidade social ao pnis (ou no) umato social.2Cada nascimento d lugar a esse sinttico e fundamentalato social. Fundamental para cada indivduo e seu futuro, pois a partirdesse ato de classificao, sua trajetria comea sob o signo dadiferena e da hierarquia.

    A sociloga feminista Christine Delphy (2001) falou do pniscomo de um marcador da diviso social: portanto, o gnero

    precede o sexo,3

    deduz ela do fato de que as categorias declassificao pr-existem importncia real do sexo, pr-existem acada marcao individual. Concordo com ela. Considero, entretanto,mais claro dizer que a relao social constri-se em torno dessemarcador do sexo e, finalmente, que o sexo primordial, comorepresentao operadora dessa classificao.

    Do mesmo modo, prefiro falar em relaes sociais de raa

    para nomear o carter trivial, grosseiro e brutal dessas relaesque tambm hierarquizam os indivduos com base na cor da pele(outro marcador da diviso social entre os indivduos), mais do quefalar em relaes intertnicas (como se pode encontrar mais e maisfreqentemente na Frana). Na verdade, essa expresso mascara odio, a brutalidade e a superioridade da idia que o branco faz de simesmo em relao ao no-branco. De certo modo pode-se dizer queo branco da pele o pnis da raa: somos brancos ou no-brancos.

    Somos machos ou no-machos. Pode-se pensar na repulsa dosmachos aos no-machos. Por vezes, segundo eles, os homossexuaisou os transexuais.

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    Uma terceira razo leva-me a preferir o conceito relaosocial de sexo ao de gnero. Em francs a palavra gnero polissmica. Recobre uma definio vaga, incerta do conceito,

    segundo os pesquisadores ou segundo os atores, ou instituies que aempregam. Algumas vezes, o sexo do registro de nascimento (oproblema existe principalmente em ingls), outras vezes o gnerogramatical e, outras vezes ainda, a categorizao social. Em francsa palavra gnero possibilita que evitemos pronunciar a palavra sexoe de fazer referncia ao sexo (sex, em ingls), sexualidade. Asexualidade e o campo das relaes sexuais fazem parte do problemadas relaes sociais de sexo, mas no constituem a totalidade do

    problema.Penso que a utilizao do conceito de gnero permitiu s

    pesquisadoras francesas serem percebidas como menos agressivas,menos feministas, por suas instituies e por seus colegas homens.No chocando, elas pensavam chegar mais facilmente a um consensocientfico sobre a questo da dominao masculina, mantendo-se maispoliticamente corretas. De certa maneira, elas eram mais polidas,no nomeando nem a violncia e o antagonismo contidos na idia derelao social, nem o critrio um pouco animal de sexo. tambmo que permitiu, em minha interpretao, que pesquisadores homensingressassem nesta rea de pesquisa cientfica, tornada, assim, maisconsensual. Porque, um pouco como ocorre com o termo condiofeminina, o termo gnero evoca a idia de um problema socialsofrido pelas mulheres, de uma desigualdade social construda, masna qual os homens no seriam atores. Includos na construo degnero e defendendo sua situao, classificados como gnero

    masculino apesar deles, nada teriam a ver com os efeitos dessaclassificao. A relao social de sexo nomeia explicitamente aconfrontao entre duas classes de sexo. No pode haver relaosocial com uma categoria nica. No pode haver relao social semconfrontao.

    Uma vez colocadas essas preliminares terminolgicas, comofazer funcionar esse conceito de relao social de sexo na anlise

    sociolgica?E por que falar em relaes sociais de sexo no plural e, outras

    vezes, em relao social de sexo no singular? Na Frana, no

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    desenvolvimento do pensamento sociolgico feminista, a expressosurgiu no plural. Focalizemos, ento, a variabilidade das relaessociais de sexo, o carter varivel das formas que elas assumem.

    Tratava-se de designar o fato de que essas relaes no se limitavama uma s esfera, esfera da famlia, por exemplo, nem s relaeshomens/mulheres no mbito do casal conjugal. Tratava-se de falardas formas diversas assumidas por essas relaes, das formasmateriais na explorao do trabalho das mulheres, por exemplo, edas formas simblicas de opresso ligadas definio de imagensnegativas da mulher e de suas atividades. Assim apreendidas, as

    relaes sociais de sexo recobrem, ento, todos os fenmenos deopresso, de explorao e de subordinao das mulheres aos homens.E essa quantidade de formas e de fenmenos que se oferece comorealidade observao sociolgica.

    O conceito de relao social de sexo se firmou pouco a poucocomo uma ferramenta de anlise, representando a sntese tericadessas mltiplas dimenses da dominao masculina. No singular, uma representao cientfica que traduz a unicidade da lgica daorganizao do social que constitui essa dominao das mulherespelos homens e a irredutibilidade dessa dominao a outra relaosocial.

    Consagrei meu programa de pesquisa construo de umquadro terico que permitisse apreender essa lgica social complexa,decompondo o conceito de relao social de sexo em subcategoriasde anlise, tornando-o mais operacional. Se a pesquisa francesa nodomnio do gnero e das relaes sociais de sexo foi construdafreqentemente em colaborao com pesquisadoras organizadas emredes, essa perspectiva propriamente terica um feito de um nmerorestrito de pesquisadoras. necessrio acumular um grande nmerode resultados empricos, de concluses de pesquisas de campo e decomparaes, internacionais ou entre homens e mulheres, para podercomear a construir categorias de anlise vlidas para confrontaes

    de resultados.A construo do sistema conceitual que agora proponho decorre

    de trabalhos comparativos e dessas confrontaes. fruto de um

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    longo caminho terico destinado a fundar a definio de categoriasintermedirias de pensamento para apreender as relaes sociais desexo na complexidade do funcionamento social e apesar dessa

    complexidade , particularmente apesar da dificuldade que representaa articulao das relaes sociais de sexo com as relaes de classe,de raa ou de idade.

    A primeira grande relao sistmica que proponho a queexiste entre as atividades das relaes sociais de sexo e suaspropriedades formais. As primeiras so as modalidades de ao pelasquais essas relaes se exprimem: a diviso sexual do trabalho, adiviso sexual do poder e a categorizao do sexo ou a diviso dascategorias do pensamento sobre os sexos. As segundas, aspropriedades, so as caractersticas formais sob as quais essasrelaes aparecem no espao social, por meio do partilhamento desseespao em esferas ou campos, como a esfera do trabalho produtivo,da famlia, da escola, do poltico, etc. Trata-se do carter transversal(a transversalidade), do carter dinmico e do carter antagnico

    das relaes sociais de sexo, sobre os quais retornarei.Todas essas categorias de anlise atividades, diviso sexual

    do trabalho ou do poder, categorizao, propriedades formais,transversalidade, dinmica, antagonismo no mudamfundamentalmente nada relativamente ao funcionamento das relaessociais de sexo. Representam a decomposio terica dessefuncionamento, permitindo a apreenso desse funcionamento,

    possibilitam o conhecimento dele, a tomada de conscincia e, assim,podem tornar-se instrumento de mudana. Portanto, so categoriascognitivas e, como tal, instrumentos de mudana social.

    As atividades das relaes sociais de sexo

    Na Frana, relaes sociais de sexo e diviso sexual do

    trabalho foram, por muito tempo, conceitos assimilados a ponto de serecobrirem totalmente e serem quase sinnimos, ou, ao menos, deterem a mesma capacidade de englobar todos os fenmenos sociais

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    ligados dominao dos homens sobre as mulheres (Kergoat, 2000).Por outro lado, as feministas historiadoras ou as cientistas polticastendiam a colocar, alm dessa diviso sexual do trabalho, a questo

    do compartilhamento do poder entre os sexos ou, mais precisamente,da excluso das mulheres das esferas do poder e da deciso. Alis,conforme os objetos de estudo, a opresso ideolgica e a inferiorizaosimblica dos valores ligados s atividades femininas passaram a seros valores primeiramente invocados na explicao dos fenmenosde reproduo das desigualdades entre os sexos.

    Meus trabalhos sobre trajetrias familiares e profissionais dehomens e mulheres, assim como minhas pesquisas sobre a socializaodos meninos e sua aprendizagem sobre a dominao masculina,levaram-me a renunciar a toda hierarquizao dessas diferentesexpresses das relaes sociais de sexo e a concluir, no atual estgiodos conhecimentos em Sociologia, que a diviso sexual do trabalho, adiviso sexual do poder e a categorizao do sexo podem ser tidascomo as trs atividades, as trs modalidades de expresso das

    relaes sociais de sexo, sem que seja possvel dizer que uma delas,em todas as esferas e em todos os momentos de desenvolvimento deuma sociedade, tem precedncia sobre as outras duas. As relaessociais de sexo exprimem-se simultnea e conjuntamente por essastrs modalidades. S o ponto de vista da pesquisa (ou o ngulo deaproximao dos objetos que construmos) muda. Essas trsmodalidades de diviso e de hierarquizao dos homens e dasmulheres, de sua atividade de trabalho, de seu poder e dos valores

    ligados a ambos constituem a relao social de sexo ela mesma,propriamente falando. Conjuntamente, essas trs modalidadesconstituem a relao social de sexo.

    A diviso sexual do trabalho, qual certas anlises tendem areduzir as relaes sociais de sexo, uma diviso social: a organizaosocial do compartilhamento do trabalho (e, portanto, tambm, doemprego) entre os dois grupos de sexo. Essa diviso sexual do trabalho

    atravessa toda a sociedade e articula os campos do trabalho produtivoe do trabalho reprodutivo. No os separa: ela os articula excluindo ouintegrando, segundo os momentos e as necessidades dos dominantes,

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    as mulheres esfera produtiva, devolvendo-as global ou parcialmente esfera reprodutiva. O trabalho reprodutivo, cujo reconhecimentocomo trabalho resultado de longas pesquisas feministas, diz respeito

    no somente ao trabalho domstico propriamente dito, mas, tambm,ao trabalho parental e a todas as tarefas de cuidados e de assumirresponsabilidades pelas pessoas (trata-se do care anglo-saxo).

    A diviso sexual do poder transversal pois, tambm ela,integra a relao social de sexo, conjuntamente com a diviso sexualdo trabalho e a categorizao do sexo. A pesquisa feminista mostrouque a repartio dos poderes entre os sexos no resultava deprocessos naturais ligados a capacidades fsicas dos homens e dasmulheres. Trabalhos sobre poltica, de um lado, e sobre violncia, deoutro lado, alimentaram uma reflexo sobre o sexo do poder edesvelaram mecanismos pelos quais os homens fundam a naturezado poder na diviso das funes produtivas (exercidas na esfera dotrabalho) e reprodutivas (exercidas na esfera da famlia). Assim, adiviso sexual do poder apia-se tanto sobre a diviso sexual do

    trabalho quanto sobre a categorizao, isto , a definio das categoriasligadas sexuao social. Por exemplo, a cidadania respectiva doshomens e das mulheres, isto , seus direitos e seus deveres perante acomunidade nacional, definida em funo do lugar que eles e elas,supostamente, ocupam na esfera do trabalho e na famlia. Em outraspalavras, tambm no corte que a sociedade instaura entre o domniodo pblico e o domnio do privado.

    A categorizao um terceiro modo de ao das relaessociais de sexo que se exerce conjuntamente com os dois primeiros.Cada vez que h diviso sexual do trabalho ou do poder, h criao ereiterao de categorizaes sexuadas. A primeira das grandescategorizaes sociais de sexo concerne, evidentemente, partiodos indivduos entre categorias de sexo, entre homens e mulheres.Seguiu-se toda uma viso do mundo organizada em um sistema deatributos, de normas, de valores, etc., fixando uma oposio entre o

    masculino e o feminino. Por exemplo, o trabalho parental efetuadopelas mulheres, em nome de sua funo biolgica na reproduo davida humana, h muito tempo foi qualificado como funo maternal,

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    sem que haja um equivalente masculino. Assim, a parentalidade, ligadaao fato parental de assumir a responsabilidade material das crianas,no adviria do domnio do social, mas derivaria da natureza maternal

    das mulheres.

    Esse trabalho de categorizao operado por meio das relaessociais de sexo consiste em dar e fixar como verdade definies sociais: estabelecer o que um homem e o que umamulher; estabelecer o que trabalho e o que no o ; o que produoe o que no o . Estabelecer, tambm, o que normal para umamulher e o que no o ; estabelecer o que possvel para uma mulhere o que no o ; estabelecer o que socialmente aceitvel e o que desvalorizvel, etc. Tal trabalho de categorizao assimtrico: aposio dominante dos homens dispensa estabelecer o que omasculino, pois o masculino a norma de referncia. necessrio,para essa dominao masculina, ditar o que no suficientementeviril (por exemplo, com relao homossexualidade) para consolidara norma de referncia.

    Essas trs atividades so, portanto, uma decomposio doconceito de relao social de sexo e correspondem, na anlise, aprivilegiados pontos de vista. Como vimos anteriormente, para certaspesquisadoras, a diviso sexual do trabalho constitui a relao socialde sexo e de poder, sendo as categorias de sexo decorrente dessaprimeira estruturao do social. Assim, o poder seria a conseqnciada diviso sexual do trabalho produtivo e reprodutivo. Pessoalmente,

    considero que tal concepo pode corresponder a certos momentos,a certos estados das relaes sociais de sexo, mas pode tambmbloquear o pensamento, uma vez que, a priori, foi decidida uma talhierarquizao entre as expresses das relaes sociais de sexo.Parece-me que isso impede a utilizao da teoria das relaes sociaisde sexo em outras sociedades, alm daquelas sociedades onde otrabalho assalariado o motor de parties sociais. Por exemplo, otrabalho de categorizao, isto , a atividade simblica das relaes

    sociais de sexo, a atividade de classificao hierarquizada entrehomens e mulheres e seus respectivos atributos, parece-me, s vezes,mais importante do que a diviso sexual do trabalho como mecanismo

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    das relaes sociais de sexo. No Afeganisto, esconder as mulheressob o chador e mat-las se uma mecha de seus cabelos ficar mostra, quer dizer: esta mulher vale somente como propriedadede um homem, mesmo que ela nada faa como trabalho.

    A teoria das relaes sociais de sexo, como a apresento,pretende ter um alcance heurstico universal na decifrao dos fatossociais relativos opresso das mulheres, ou seja, dominao doshomens sobre as mulheres.

    As propriedades formais das relaes sociais de sexo

    Em referncia realidade das expresses de relaes sociaisde sexo, que so as atividades de diviso e de categorizaoexplicitadas anteriormente, as propriedades formais constituem umarepresentao cientfica que visa permitir balizar o funcionamentoespecfico dessas relaes no emaranhado de fatos sociais e,

    notadamente, de apreender sua evoluo.

    A transversalidade das relaes sociais de sexo

    A primeira dessas propriedades foi posta em evidncia graass pesquisas sobre as articulaes entre sistema produtivo e esferafamiliar (Lesexe du travail, 1984). Ela diz respeito transversalidade

    das relaes sociais de sexo. Essa propriedade indica, ao mesmotempo, que se pode encontrar essas relaes em ao por toda partena sociedade e que sua lgica coloca em relao ou articula todosos campos da sociedade. Por exemplo, ela coloca em relao otrabalho profissional e a famlia, o trabalho profissional e a sade, apoltica e o trabalho, a poltica e a famlia, e mesmo a poltica e asarticulaes entre trabalho e famlia, ou ainda, o exrcito e a famlia,etc.

    Essas relaes podem operar por toda parte, significandoisso que se pode descobri-las agindo mesmo l onde somente uma

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    categoria de sexo est fisicamente representada. Em pesquisa comhomens convocados para o servio militar (quando o recrutamentono havia ainda sido suprimido na Frana), demonstrei que as relaes

    de sexo operavam na diviso do trabalho, na repartio dos poderese nos processos de categorizao, mesmo que as mulheres estivessemfisicamente ausentes da esfera militar (Devreux, 1992, 1997). Asrelaes sociais de sexo podem tambm agir em ambientesexclusivamente masculinos. A descoberta dessa caracterstica dasrelaes sociais de sexo permitiu romper com a idia de que essasrelaes dizem respeito somente, ou sobretudo, s relaes entre os

    homens e as mulheres no seio da famlia ou, pior, no mbito do casalconjugal.

    A idia de transversalidade das relaes sociais de sexo seimps, entretanto, aps um conjunto de trabalhos sobre as articulaesentre a funo dita reprodutiva e a funo produtiva das mulheres.Parti da hiptese de que, em uma sociedade como a sociedadefrancesa, que dispe dos meios de controle dos nascimentos, no se

    poderia compreender as escolhas das mulheres em matria defecundidade (nmero de crianas, momento dos nascimentos,espaamento entre os nascimentos, etc.), se no se estudassesimultaneamente seu estatuto sob o olhar do mundo do trabalho e,eventualmente, seu lugar nesse mundo.

    A sociedade francesa uma sociedade relativamente livre doponto de vista do acesso contracepo e ao aborto. As decises

    individuais em matria de fecundidade so determinantes do nvel denatalidade. At o final dos anos 70, os especialistas das cincias sociaisassociaram a questo da reduo da natalidade ao fato de as mulheres,decidindo se inserir no mercado de trabalho, colocarem em risco onvel de sua fecundidade e, por conseqncia, a reproduo dasociedade. Era a poca em que os poderes pblicos buscavamdiversas frmulas atraentes para manter as mulheres em casa econseguir que elas produzissem o famoso terceiro filho, que garantia

    a renovao das geraes. Era um ponto de vista que considerava otrabalho profissional das mulheres na dimenso de uma atividade eno seu contedo real: trabalhando as mulheres estavam, sobretudo,

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    ausentes de casa. Era como se o seu trabalho profissional no tivessecontedo, nem condies materiais ou financeiras de execuo, nemsentido ou interesse prprio para as mulheres.

    Entrevistas com mulheres ativas e mes de famlia confirmaramque a vida profissional das mulheres e seu ambiente de trabalho tm,ao contrrio, importncia capital na determinao do tamanho de suadescendncia e, portanto, sobre sua fecundidade. As condiesoferecidas maternidade no trabalho (Devreux, 1986) desempenhamum papel na deciso de ter ou no um filho. Desde que as mulheresquiseram trabalhar, a participao na produo passou a ser paraelas garantia identitria para alm de ter uma profisso e paraalm do peso econmico , e a escolha da maternidade tornou-sedependente das condies da vida profissional delas. Minhaspesquisas, desenvolvidas junto a mulheres de diferentes categoriassocioprofissionais e em diversos ambientes de trabalho, mostraramque a produo da vida humana muito mal integrada produo debens e servios, a despeito de a sociedade francesa se dizer muito

    protetora da maternidade e do nascimento. Salvo em certos ambientesde trabalho muito feminilizados, nos quais a maternidade contribuipara relaes de solidariedade com as mulheres grvidas, a maioriadas mulheres sofre muito fortemente a contradio estrutural entresua funo reprodutora e sua funo produtora. As mulheres de nveissuperiores, que esto em postos de forte responsabilidade, retardarosuas maternidades e, algumas vezes, decidiro, finalmente, por umnmero de filhos inferior ao que teriam desejado. As operrias no

    tero outra soluo para levar sua gravidez a termo do que sair daproduo. Quando as condies para a guarda de seus filhos se tornamexcessivamente difceis e onerosas, elas caem em empregos precriose com horrios flexveis para compatibilizar um lugar no mercado detrabalho e o desempenho de suas funes maternais. Umas sodesestabilizadas em seu projeto reprodutivo; as outras, em sua funoprodutiva.

    Pesquisas que desenvolvi junto a pais mostraram que, para oshomens, ao contrrio, a paternidade, geralmente, fortalece seu estatutoprofissional. Segundo estudos estatsticos (Fermanian & Lagarde,

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    1998), mais eles tm filhos, mais investem no domnio profissional ese ausentam da vida familiar, deixando de assumir a responsabilidadematerial, real, dos filhos e melhorando seu estatuto profissional. Nosrelatos de vida de pais que entrevistei, constatei, tambm, que a minoriados homens que verdadeiramente partilhava com as mes o trabalhoeducativo e os cuidados com os filhos apresentava a tendncia de teruma trajetria profissional que se aproximava da trajetria dasmulheres mes e ativas: por exemplo, eles sofriam atrasos nascarreiras, relativamente a outros homens, eram excludos de horriossuplementares e tinham suas remuneraes menores do que as

    remuneraes dos homens que no participavam, na vida cotidiana,da educao de suas crianas.

    A propsito das articulaes entre a trajetria profissional e atrajetria familiar, demonstrei que a diviso sexual do trabalho operade maneira transversal nos domnios do trabalho e da famlia.Confrontando esses resultados com os de outras pesquisadoras, foi

    possvel demonstrar que todos os domnios da sociedade so atingidospela transversalidade das relaes sociais de sexo. Foi a razo pelaqual pesquisei, a seguir, como se articulam as trajetrias familiar,amorosa, escolar e pr-profissional com a experincia do serviomilitar no processo de socializao dos meninos pelo exrcito, com oalistamento militar. Retomarei mais adiante aos resultados desseestudo.

    A dinmica das relaes sociais de sexo

    A importncia da questo da dinmica prpria das relaessociais de sexo surgiu quando foi colocada a interrogao sobre areproduo social e a dinmica das hierarquias entre os sexos namudana social. Em Sociologia, a idia de reproduo social recobre,freqentemente, a idia de uma reproduo do idntico, enquanto amudana social mais freqentemente percebida em sua dimensode progresso social. Ora, a mudana social pode se dar tanto nosentido do progresso, quanto no sentido da regresso social. No

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    funcionamento de uma relao social, o sentido de mudana nopode ser apresentado antecipadamente, pois ela resultado da relaode fora entre os dois grupos envolvidos.

    Relativamente dominao masculina, socilogos nofeministas e algumas vezes at feministas freqentemente pensamser a melhoria da situao das mulheres o nico processo de mudanadigno de interesse. Entretanto, numerosos fenmenos de regressosocial com referncia mulher, por toda parte no planeta, so,periodicamente, constatados por meio das observaes sociolgicas ainda que a interpretao desses resultados no ocorra no sentido

    do consenso social, mesmo em pases desenvolvidos como a Frana. necessrio, portanto, que a pesquisa feminista em cincias sociaistrabalhe nos dois sentidos: no estudo do progresso social e no estudoda regresso social no que diz respeito situao das mulheres.

    Falar da dinmica das relaes sociais de sexo implica queessas relaes se desenvolvem segundo sua prpria lgica, mesmoque essa lgica esteja em interao com aquelas de outras relaes

    sociais, sejam de classe, de raa ou de gerao. Isso significa queelas no evoluem somente porque a relao capital e trabalho semodificava, como durante muito tempo os marxistas supunham. Oprogresso social em favor das classes trabalhadoras no significa,automaticamente, o progresso em favor das mulheres, enquantomulheres dominadas pelos homens: a degradao do mercado detrabalho, por exemplo, freqentemente conduz a uma degradaoacentuada no nvel de emprego para as mulheres, pelas desigualdadesde sexo e pela inferiorizao social das mulheres.

    Coloco em evidncia, particularmente, o carter dinmico dasrelaes sociais de sexo, o carter moderador ou impulsionador damudana, por meio de um estudo sobre o trabalho da memria emrelatos biogrficos de homens e de mulheres. Trata-se de anlisesecundria do material das investigaes sobre maternidade epaternidade que mencionei anteriormente. Quando realizei essapesquisa sobre a memria, ela constitua objeto de estudo original naSociologia francesa. At ento, a memria era um tanto o domnioreservado dos historiadores, particularmente dos historiadores usando

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    fontes orais. Em Sociologia, Maurice Halbwachs (1925) abriu umcaminho, mostrando que os determinantes do funcionamento damemria so sociais: situam-se nas experincias vividas no presente,

    que do a essa memria seus quadros sociais.

    Esses materiais de pesquisa abordam a experincia do trabalhodomstico e parental entre homens e mulheres, eles mesmos pais,mas tambm filhos e filhas de seus prprios pais e mes. Se todas asmulheres entrevistadas realizam o trabalho educativo e de cuidadoscom os filhos, no grupo dos homens pode-se distinguir os homensque participam dessas tarefas daqueles que so, material econcretamente, descomprometidos.

    Comparando, por um lado, os homens e as mulheres e, de outraparte, o grupo dos homens participantes das tarefas domsticas eparentais com os homens no participantes, foi possvel revelar fortesdiferenas no modo pelos quais esses homens e essas mulheresrememoravam, no decorrer de suas prprias infncias, o trabalhoque seus prprios pais e mes realizavam.

    Assim, os homens que realizam hoje o trabalho domstico eparental tendem a se aproximar do grupo das mulheres medida queso muito mais capazes de colocar em cena, na exposio de suaslembranas, o trabalho realizado por suas mes no interior de suafamlia de origem. Ao contrrio, os homens hoje distanciados dascontingncias materiais da vida domstica e dos cuidados com osfilhos valorizam a figura paterna nas lembranas de sua famlia deorigem, omitindo-se de falar em sua me ou minorando visivelmentesua atividade: Minha me? Ah, ela no trabalhava. Entretanto,recompondo os elementos de sua famlia de origem na continuidadeda entrevista, constatava-se que a me desses homens, por um lado,efetuava todo o trabalho domstico da casa e, por outro lado, exerciauma atividade profissional sob os olhos mesmo da criana que agoraera nosso entrevistado, sendo a cuidadora das crianas no domiclio.

    Ao contrrio, quanto mais o pai desses homens estava ausente dafamlia pelo fato de seu super-investimento na esfera profissional(horas suplementares, retornos tardios casa), mais os filhos colocam-

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    no hoje em um pedestal simblico, transformam-no em uma figuramtica de uma autoridade superior, sendo o apoio para seu poderprecisamente a distncia dos problemas materiais cotidianos da

    educao das crianas.

    Conclu ser a atividade domstica presente dos indivduos queos torna capazes de rememorar o trabalho domstico realizado porsua me, em sua infncia. Esse resultado tal que os homens quehoje realizam tarefas domsticas adotam, para falar sobre isso, omesmo ritmo da palavra das mulheres. Um ritmo de discurso queencadeia verbos de ao, descrevendo a sucesso rpida das tarefas

    do trabalho domstico, em particular quando se trata de se ocuparcom as crianas: um discurso impregnado de referncias concretas,colado materialidade das aes, enquanto os pais hoje no-participantes evocam sua paternidade e a de seu prprio pai em termosmuito generosos, filosofando sobre a funo paterna e suaimportncia na ordem familiar e social. Os quadros da memria noso somente sociais. So tambm sexuados: eles so sociossexuados(Devreux, 1985).

    Do ponto de vista da questo da dinmica das relaes sociaisde sexo, essa pesquisa ilustrou um dos caminhos pelos quais sereproduzem as representaes dos lugares ocupados por homens emulheres na diviso sexual do trabalho domstico (e profissional).Ela permitiu compreender como se reproduzem ou se transformamas formas ideais das relaes sociais de sexo e como esse processoacompanha a mudana ou o imobilismo das prticas sociais.

    Como se v nesta rpida sntese, esta reflexo sobre a memriailustrou tambm o funcionamento da diviso sexual do trabalho, dopoder patriarcal na famlia e, enfim, da produo dos valores ligadosa atividades dos homens e das mulheres, isto , do trabalho decategorizao operado pelas relaes sociais de sexo.

    O antagonismo das relaes sociais de sexo

    O antagonismo das relaes sociais de sexo constitui umaterceira propriedade dessas relaes. No que concerne s relaes

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    entre homens e mulheres, no fcil admitir a idia de um antagonismode classe. Com efeito, essa hiptese sugere que os grupos de sexose opem por interesses radicalmente contrrios, mesmo que as

    relaes homens/mulheres mais visveis so feitas de amor, em todocaso, no interior da famlia. Mais ainda, essas relaes de amorsubentendem uma solidariedade conjugal que permite a realizaode projetos comuns, no sentido oposto do antagonismo de interesses,tais como: a educao dos filhos, a aquisio de uma casa, etc...

    Foi a demonstrao da opresso das mulheres no interior docasamento (Delphy, 1970, 1998) que conduziu idia de antagonismo.Como classe trabalhando gratuitamente para a reproduo da clulafamiliar, as mulheres vem seu trabalho explorado pelo conjunto doshomens, os quais agem no sentido da reproduo dessa diviso dotrabalho. No ponto de partida da anlise das relaes homens/mulheres, em termos de relaes sociais de sexo, encontra-se opostulado do antagonismo. De um ponto de vista terico, uma relaosocial supe o antagonismo entre os dois grupos, as duas classes que

    ela ope. Sem divergncia radical, sem oposio dos interessesrespectivos dessas duas classes, simplesmente no h espao parase falar em relao social.

    Os resultados empricos das pesquisas sobre a situao socialdas mulheres mostram claramente que, do ponto de vista do devir dadominao de sexo, os interesses dos homens e das mulheres opem-se radicalmente. Eles lutam para preservar os benefcios obtidos com

    a dominao sobre as mulheres e a explorao do trabalho delas.Elas lutam para se desembaraar dessa opresso e reduzir os efeitosdela sobre suas condies de vida, sobre sua liberdade e sobre suaintegridade fsica.

    importante registrar a necessidade do pensamento utpico(Riot-Sarcey, 1998) no estudo das relaes homens/mulheres emtermos de relaes sociais de sexo: o antagonismo tanto a expresso

    de uma luta, de uma relao de fora, quanto, teoricamente, estdestinado a desaparecer com o desaparecimento da opresso que aest em jogo. O horizonte utpico da luta das mulheres no o

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    desaparecimento dos homens (como pretendem caricaturas dopensamento feminista, com a famosa idia de guerra dos sexos, naqual, freqentemente, somente as mulheres parecem ser o brao

    armado, mesmo que a violncia de sexo, muitas vezes letal, seja ofato dominante), mas o desaparecimento da opresso de um gruposocial (o grupo dos homens) sobre um outro grupo social (o grupodas mulheres).

    A noo de antagonismo permite pensar em incluir na reflexoa dimenso de luta caracterizando a relao social de sexo. Essanoo revela uma dimenso freqentemente ocultada: os homenstambm lutam nessa relao social. Lutam s vezes violentamentepara preservar seus interesses de sexo. A urgncia cientfica, devidaao longo silncio que ocultou a questo do lugar social das mulheres tanto na Histria quanto na Sociologia, na Economia e nas CinciasPolticas , fez com que os primeiros trabalhos sobre os sexos fossemdedicados caracterizao da inferioridade das mulheres e pesquisadas causas dessa inferiorizao, em todos os espaos da sociedade.

    Desse fato, a dominao masculina tornou-se a dominao dasmulheres... Por quem? A resposta ora foi global (pela sociedade),ora ocultada pela referncia a supostos handicaps naturais dasmulheres, como a maternidade.

    O recurso noo de antagonismo no nega a existncia deoutros antagonismos sociais, entre raas e entre classes sociais.Permite, entretanto, compreender a luta especfica das mulheres e,

    sobretudo, a luta especfica dos homens e suas resistncias mudanasocial em favor das mulheres.

    Assim, o foco sobre o princpio do antagonismo levou-me aconstruir um programa de pesquisa sobre os homens consideradoscomo os atores dessa dominao das mulheres, por conseqncia,um programa de pesquisa dos homens como dominantes.

    Uma pesquisa sobre a socializao dos jovens homens noexrcito, na oportunidade do servio militar,4possibilitou, primeiro,mostrar como a aprendizagem da dominao masculina se apoiava

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    na transmisso do desprezo e do dio s mulheres pelos graduados,pelos homens adultos aos jovens convocados. Essa transmisso, esseensinamento dos valores masculinos vinculados a clivagens de sexo,

    operava-se em todos os momentos da vida militar. A anlise do materialda pesquisa evidenciou, particularmente, que os momentos fortesdessa transmisso ocorriam no manuseio das armas, ou seja,envolvendo o atributo mesmo do estatuto do militar. Por exemplo, osjovens alistados aprendiam com os adultos graduados que seu fuzildeveria ser vigiado como sua mulher e sempre mantido sob osolhos, sob pena de virem a ser derrubados por um inimigo,

    representando o rival, esse homem capaz de, a qualquer momento,apoderar-se de sua propriedade. Nessa aprendizagem, as mulhereseram desumanizadas e, claramente, tratadas como objetos. Alis, ostrabalhos domsticos necessrios para a manuteno dos locaismilitares eram oportunidade de aprendizagem da diviso sexual dotrabalho, pela qual se pretendia serem essas tarefas invisveis edesvalorizadas, devendo ser realizadas de forma repetitiva e semreconhecimento por seus beneficirios. O uso dessas obrigaes

    domsticas pelos graduados para definir as relaes hierrquicas eatestar o poder dos mais poderosos servia de vetor ao ensinamentoda diviso sexual do trabalho na famlia e dos valores sociais ligadoss tarefas realizadas habitualmente pelas mulheres fora da vida militar.Alis, no retorno a suas casas, os rapazes se distanciavam o maispossvel dessas tarefas, delegando-as sua me ou sua companheira(Devreux, 1997, 2002).

    Mais recentemente prossegui meu programa de estudo sobreos homens como dominantes com a anlise das mudanas na divisodo trabalho no interior da famlia, a partir da questo da participaoconcreta dos homens no trabalho domstico e parental. Aps, ligueios resultados desse estudo anlise dos argumentos dos grupos dedefesa dos pais divorciados em favor da igualdade dos direitosparentais. A noo de co-parentalidade, proposta por esses grupos

    masculinos, inclui a idia de que os encargos ligados educao eaos cuidados com os filhos, supostamente, so atualmente assumidostanto pelos pais, quanto pelas mes. Os dados sobre o uso do tempo

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    permitem demonstrar claramente que, entre casais casados ou no a repartio do trabalho parental e domstico ligado presenados filhos est longe de ser igual. Tendencialmente, as mulheres ainda

    fazem o dobro do trabalho domstico do que o realizado pelos homens.Com filhos pequenos, os pais franceses, em mdia, no assumemmais do que uma quarta parte do trabalho parental, isto , o conjuntode tarefas envolvendo cuidar dos filhos, acompanhar o trabalho escolarem casa, brincar com eles, transport-los para as diversas atividadesextra-escolares. Estamos, portanto, distantes de uma co-parentalidadeno sentido estrito e de uma igualdade de assumir as responsabilidades

    dos filhos pelos homens e pelas mulheres. Mesmo nas famliasmonoparentais, observa-se que pais vivendo sozinhos com seus filhos casos raros na Frana realizam menos trabalhos domsticos doque as mulheres em idntica situao. Pode-se deduzir disso que,com a separao do casal, subsiste uma certa desigualdade quanto aassumir responsabilidades pelos filhos e que viver s com um filhono tem a mesma significao prtica para um homem e para umamulher.

    A nova paternidade na Frana (e em outros pasesdesenvolvidos, McMahon, 1999) mais uma representao social doque uma realidade prtica, porquanto a dupla jornada de trabalhopermanece uma restrio concreta pesando fortemente sobre a vidadas mulheres e sobre sua carreira profissional. As tendncias descritasanteriormente, relativamente lentido das mudanas em assumirresponsabilidades materiais concretas na vida familiar pelos homens,

    ocorrem em um contexto em que as mulheres, mais e mais, vmassumindo uma vida profissional. Foi, ento, proposta uma polticafamiliar instituindo uma licena parental, com o que, h uma dcada,a taxa de atividade feminina comeou a baixar. Ainda que neutra doponto de vista do sexo, essa iniciativa governamental, permitindo, emprincpio, tanto ao pai quanto me suspender sua atividadeprofissional para criar um filho de menos de trs anos, revelou-se

    uma poltica de gesto do emprego feminino particularmente eficaz edesigual, pois, na realidade, os beneficirios dessa licena parentalso 99% mulheres.

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    Como se v, tudo contribui para a reproduo da diviso sexualdo trabalho na famlia. Nesse contexto, a reivindicao dos homens igualdade dos direitos parentais com referncia autoridade parental

    sobre os filhos e sobre a guarda deles aps o divrcio surge comoexigncia de concesso de direitos, independente de deveres a queesto ligados. Essa exigncia a expresso de uma relao de foracontra as mulheres mais do que uma prova de defesa dos interessesda criana, como anunciam esses grupos masculinos. Ocompartilhamento da autoridade parental sobre a criana, acordadaindependentemente do assumir a responsabilidade real dos cuidados

    de que ela precisa no cotidiano, torna-se o signo no de uma igualdadeentre os sexos, mas de uma no eqidade e da negao da importnciasocial do trabalho parental das mes. Mais ainda, alguns autoresanalisaram a reivindicao do compartilhamento da autoridadeparental e da guarda compartilhada como uma tentativa dos homensem manter o controle e o poder sobre as mulheres aps o divrcio,de conservar um direito de observar o cumprimento do trabalhomaternal (Dufresne & Palma, 2002).

    Tratando-se de uma relao social que coloca em presenaindivduos e grupos em relao a seu lugar na diviso do trabalho edo poder, grupos ativos na definio das categorias sociais para pensaras divises, por exemplo, na construo social das noes jurdicas, normal surgirem de suas anlises, fenmenos de resistncia de umae outra parte da relao. Como toda relao social, as relaes sociaisde sexo incluem uma luta incessante de dois grupos sociais agindo

    para melhorar suas situaes respectivas e suas possibilidades deinterferncia sobre a evoluo da sociedade, em seu favor.

    Concluso

    A proposio do quadro terico de anlise das relaes entreos sexos, feita neste artigo, visa superar o impasse metodolgico no

    qual pesquisas sobre os homens e as mulheres podem encontrar-sefechadas quando querem hierarquizar nveis da realidade social. Osdebates franceses ou no sobre as relaes entre homens e

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    mulheres e a diviso do trabalho entre os sexos esto plenos do desejode compreender o que sobredetermina essas relaes. A diviso dotrabalho o que rege o lugar social de homens e de mulheres, a

    inferiorizao delas, a dificuldade delas de acesso ao poder, oretardamento de sua carreira profissional? Uma repartio maisigualitria do poder poltico entre os sexos no garantiria, ao contrrio,uma diviso mais justa do trabalho e uma melhor responsabilidadepelos encargos com o trabalho de reproduo da vida humana entrehomens e mulheres? Mas tudo isso no , em ltima instncia, umaquesto de transformao das mentalidades e de hierarquias dos

    valores ligados s atividades femininas e masculinas? Os trabalhosempricos que articulam as diferentes esferas da vida dos homens edas mulheres, considerando as evolues sociais em termos deprogresso ou regresso e que, enfim, integram a dimenso de lutaentre os grupos de sexo permitem compreender que no h ordemprvia construo dos sistemas de valores, diviso do trabalho ediviso do poder entre os sexos.

    Anunciando as relaes lgicas entre os diferentes modos deao das relaes sociais de sexo, sem hierarquiz-las teoricamentea priori, e oferecendo os instrumentos metodolgicos para balizaressas relaes sociais para todos os espaos em que elas se exercem,o quadro de anlise proposto neste artigo me parece utilizvel parase estudar as desigualdades entre os sexos, os fatores sociais que asproduzem, sua evoluo e suas interferncias com outras relaessociais em diferentes sociedades compreendidas a aquelas que

    no repousam de modo prioritrio sobre a economia salarial ou aquelasque parecem definir o lugar das mulheres primeiramente por divisessimblicas.

    Notas

    1 E em outras regies francofnicas, como o Qubec.

    2 No original: cette rduction de lidentit sociale au pnis (ou non) est chaque fois un acte social.

    3 Le genre precede donc le sexe.

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    4 Na Frana, o servio militar obrigatrio foi abolido no incio de 2000.Minha pesquisa foi feita entre 1990 e 1991, em cinco regimentos doExrcito. Fiz mais de quarenta entrevistas. Busquei compreender, por um

    lado, porque alguns rapazes aceitavam prolongar a durao do serviomilitar alm do limite legal exigido; por outro lado, como a instituioformava esses jovens homens no somente do ponto de vista operacional,mas tambm no plano da socializao.

    Abstract:The theory of social relationship between sexes: a panel

    about men domination

    This article explains the french conceptualization of social relationshipbetween sexes. It sets out the theoretical links between ways ofaction of this social relationship as gendered division of work,gendered division of power and gendered categorization on the onehand, and, on the other hand, its formal features: it has a cross-society, dynamic and antagonistic action. Illustrations of thesefeatures are done through authors surveys of family, domestic work,army as well gendered memory. The article makes explicit the choiceof the author to use the concept of social relationship between

    sexes rather than gender.Key words: social relationship between sexes, men domination,gendered categorization, sociological theory, epistemology.

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