Determinação do tema de pesquisa

4
DETERMINAÇÃO DO TEMA DE PESQUISA Anna Maria Marques Cintra Pesquisadora do IBICT RESUMO A escolha de um tema de pesquisa depende dos valores do pesquisador, de sua relação com o universo. Em qualquer nível, a pesquisa exige independência, criatividade e a integração do tema no dia a dia do pesquisador. Os guias para pesquisas auxiliam na parte forma/. Entretanto não existe e é pouco provável que venha a existir um método que permita a reconstrução lógica de novas idéias. Descritores.-Pesquisa cientifica; Determinação do tema de pesquisa. "Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a miséria da existência humana". Brecht Decidir sobre um tema de pesquisa é tarefa relativamente fácil para quem está envolvido numa determinada área. Entretanto aquele que se inicia na vida científica tem de suportar o conflito entre a aquisição de novos conhecimentos e os prazos acadêmicos. Em muitos casos falta tempo e experiência para uma boa opção. Na tentativa de encontrar coordenadas que nos dêem a dimensão do problema, faremos algumas reflexões sobre ciência e pesquisa científica. O procedimento científico, segundo Nagel 1 , orienta-se, simultaneamente por três princípios: o controle prático da Natureza, o conhecimento sistemático e seguro dos fatos e um método próprio. Sem muito esforço, podemos imaginar que o controle prático da Natureza leva ao avanço tecnológico e a uma melhoria das condições de vida, embora com o risco de ser o cientista tomado como uma espécie de feiticeiro. Em virtude da complexidade do Universo, cabe ao cientista encontrar formas para organizar o conhecimento, para descobrir os fenômenos. E isto é feito através de raciocínio sistemático. Os fenômenos a serem estudados para controle devem ser submetidos a uma metodologia bem definida, que corresponde a um caminho delineado para a execução de uma pesquisa. Paradoxalmente, a ciência que persegue objetivamente um conhecimento sistemático e seguro dos fatos, está continuamente por se fazer e só a existência de um método garante o controle ordenado do Universo, uma vez que os fenômenos são tratados por raciocínios que seguem, aproximadamente, os mesmos princípios de objetividade e testabilidade. É, no entanto, a própria objetividade que impõe o estado sempre provisório de todo o conhecimento. Mesmo com os riscos de feitiçaria, por razões éticas, não podemos aceitar a ciência pela ciência 2 , pois se o homem busca através do raciocínio organizar de alguma forma os fenômenos do Universo, há de ser para dominá-los, para conhecer-lhes as regras e assim orientar sua relação com e no Universo. Identificar algo como objetivo de pesquisa não é das coisas mais difíceis. A dificuldade maior reside em manter coerentemente um tratamento metodológico rigoroso. Daí que freqüentemente o comportamento científico acaba sendo confundido com o rigor metodológico, em detrimento da importância do objeto, do tema e do próprio conhecimento produzido a partir da pesquisa* Longe de nós tentar colocar em dúvida a importância do método. O que julgamos indispensável, no * "O 'método' procura explicar o seu objeto, quer ser o 'caminho' de descoberta do seu 'objeto', mas. . . já é hora de pensar num 'método' que leve em conta o seu 'fracasso metodológico' como momento necessário ao seu próprio êxito". — KOTHE, Flávio R. Caminhos e descaminhos da crítica; encontro marcado com Heidegger. Reflexão, Campinas, 4(15) -.71, sat./dez., 1979. Ci. lnf., Brasília, 11 (2): 13 - 16, 1982. 13

Transcript of Determinação do tema de pesquisa

Page 1: Determinação do tema de pesquisa

DETERMINAÇÃO DOTEMA DE PESQUISA

Anna Maria Marques CintraPesquisadora do IBICT

RESUMO

A escolha de um tema de pesquisa depende dosvalores do pesquisador, de sua relação com ouniverso. Em qualquer nível, a pesquisa exigeindependência, criatividade e a integração do tema nodia a dia do pesquisador. Os guias para pesquisasauxiliam na parte forma/. Entretanto não existe e épouco provável que venha a existir um método quepermita a reconstrução lógica de novas idéias.

Descritores.-Pesquisa cientifica; Determinação dotema de pesquisa.

"Eu sustento que a única finalidade da ciência estáem aliviar a miséria da existência humana".

Brecht

Decidir sobre um tema de pesquisa é tarefarelativamente fácil para quem está envolvido numadeterminada área. Entretanto aquele que se iniciana vida científica tem de suportar o conflito entre aaquisição de novos conhecimentos e os prazosacadêmicos. Em muitos casos falta tempo eexperiência para uma boa opção.

Na tentativa de encontrar coordenadas que nos dêema dimensão do problema, faremos algumas reflexõessobre ciência e pesquisa científica.

O procedimento científico, segundo Nagel1,orienta-se, simultaneamente por três princípios:o controle prático da Natureza, o conhecimentosistemático e seguro dos fatos e um método próprio.

Sem muito esforço, podemos imaginar que o controleprático da Natureza leva ao avanço tecnológico e auma melhoria das condições de vida, embora com orisco de ser o cientista tomado como uma espéciede feiticeiro.

Em virtude da complexidade do Universo, cabe aocientista encontrar formas para organizar oconhecimento, para descobrir os fenômenos. E istoé feito através de raciocínio sistemático.

Os fenômenos a serem estudados para controle devemser submetidos a uma metodologia bem definida, quecorresponde a um caminho delineado para a execuçãode uma pesquisa.

Paradoxalmente, a ciência que persegueobjetivamente um conhecimento sistemático e segurodos fatos, está continuamente por se fazer e só aexistência de um método garante o controle ordenadodo Universo, uma vez que os fenômenos são tratadospor raciocínios que seguem, aproximadamente, osmesmos princípios de objetividade e testabilidade.É, no entanto, a própria objetividade que impõe oestado sempre provisório de todo o conhecimento.

Mesmo com os riscos de feitiçaria, por razões éticas,não podemos aceitar a ciência pela ciência2, pois se ohomem busca através do raciocínio organizar dealguma forma os fenômenos do Universo, há de serpara dominá-los, para conhecer-lhes as regras e assimorientar sua relação com e no Universo.

Identificar algo como objetivo de pesquisa não é dascoisas mais difíceis. A dificuldade maior reside emmanter coerentemente um tratamento metodológicorigoroso. Daí que freqüentemente o comportamentocientífico acaba sendo confundido com o rigormetodológico, em detrimento da importância doobjeto, do tema e do próprio conhecimentoproduzido a partir da pesquisa*

Longe de nós tentar colocar em dúvida a importânciado método. O que julgamos indispensável, no

* "O 'método' procura explicar o seu objeto, quer ser o'caminho' de descoberta do seu 'objeto', mas. . . já é hora depensar num 'método' que leve em conta o seu 'fracassometodológico' como momento necessário ao seu próprioêxito". — KOTHE, Flávio R. Caminhos e descaminhos dacrítica; encontro marcado com Heidegger. Reflexão,Campinas, 4(15) -.71, sat./dez., 1979.

Ci. lnf., Brasília, 11 (2): 13 - 16, 1982. 13

Page 2: Determinação do tema de pesquisa

Determinação do tema de pesquisaAna Maria Marques Cintra

entanto, é aliar o rigor metodológico a uma avaliaçãoda relevância da pesquisa, pois questões de totalirrelevància, como conhecer a cor da camisa dosuniversitários brasileiros em dia de prova, podereceber tratamento rigoroso.

". . . o ponto inicial de uma pesquisa não podee não deve ser a metodologia, mas antes arelevância do problema". 3

Assim, antes de qualquer coisa, torna-se necessáriodecidir sobre os problemas que devem ser pesquisadose é preciso observar que essa capacidade dediscriminar entre o relevante e o irrelevante não nosvem da ciência. Esta "só nos pode oferecer métodospara explorar, organizar, explicar e testar problemaspreviamente escolhidos" 2.

A escolha prévia do problema depende dopesquisador. É em função de seus valores, de suarelação com o universo que nascem seus temas depesquisa. Isso é que faz do ato de pesquisa um atopolítico.

E no caso específico da pesquisa acadêmica, como sepassam as coisas?

Uma tese de doutorado assim se define por servolumosa, ou por ter algumas qualidades inerentes àpesquisa científica?

Temos visto com freqüência que um mesmo tipo depesquisa serve a mestrado ou doutorado. E adiferença está, muitas vezes, no volume de dadosanalisados.

Não podemos concordar com critérios apenas devolume. Na prática, o que ocorre é que hádissertações de mestrado com traços nítidosde uma tese e vice-versa, acorrentadas apenas porrazões meramente formais da vida acadêmica.

Na verdade a tese de doutorado deve marcar o grandesalto do principiante para a vida de pesquisadorindependente e, desta maneira o mestrado tem de sertomado como um exercício que abarca desde a opçãotemática e o rigor metodológico, até o envolvimentopessoal em relação ao tema.

Trata-se, pois, de uma fase de iniciação à pesquisa,portanto, à vida científica. E partindo da definiçãomesma de mestrado, observamos, em linhas gerais,que os orientadores assumem posições diversas.

Para alguns, a dissertação de mestrado deve versarsobre assunto de interesse do orientador.

Normalmente ele responde por uma ou maispesquisas, sendo possível escolher um aspecto sobre oqual se dedicará o mestrando.

Para outros, o mestrado, como fase de aprendizado,deve demonstrar segurança metodológica, sendosecundário o próprio tema. Desta forma, o aspectobásico a ser considerado é o cumprimento dedeterminadas etapas, supostamente indispensáveis aotrabalho científico.

Outros ainda, entendem que a dissertação já deveconter em germe a disposição do novo pesquisadorpara associar firmeza metodológica a uma açãocriativa.

Evidentemente, é em decorrência da concepção doorientador que acontecem os temas e mesmo a formado trabalho acadêmico, que vai desde os formatoscalcados em modelos prévios, onde tudo épré-determinado, até a uma liberdade total, marcadapela inserção dos componentes tidos como básicos —objetivos, metodologia, hipóteses — em situações forados modelos.

Vale lembrar que para decisões relativas à parteformal, o principiante dispõe de vários guias, de sortea poder escolher aquela forma mais adequada a seutrabalho e a seu gosto pessoal.*

Mas para decidir sobre o tema de pesquisa, a menosque o orientador forneça um assunto, o principiantenão encontra nenhuma orientação específica.

Mas seria possível elaborar com certa precisão umroteiro que levasse à descoberta do tema?

Embora haja bons exemplos de trabalhos oriundos dodesenvolvimento de parte de pesquisas do orientador.

* Destacamos, entre vários trabalhos, os de:ACOSTA HOYOS, Luís E. Guia practica para Ia investigación

y redacción de informes. 2. ed. Buenos Aires, Paidós,1972.

ASTI VERA, Armando. Metodologia da pesquisa cientifica.Porto Alegre, Globo, 1973. 223 p.

CASTRO, Cláudio de Moura. Estrutura e apresentação depublicações cientificas. São Paulo, Mc Graw-Hill,1976.

A prática da pesquisa. São Paulo, Mc Graw-Hill, 1977.MANZO, Abelardo J. Manual para Ia preparación de

monografias. Buenos Aires, Humanitas, 1973.SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho

científico. 3. ed. São Paulo, Cortez e Moraes, 1978.SPINA, Segismundo. Normas gerais para os trabalhos de grau;

breviário para o estudante de pós-graduação. SãoPaulo, Fernando Pessoa, 1974.

14 Ci. Inf., Brasília, 11 (2): 13 - 16,1982.

Page 3: Determinação do tema de pesquisa

Determinação do tema de pesquisaAna Maria Marques Cintra

julgamos que a dissertação de mestrado deve propiciaralgumas condições que posteriormente serão exigidasdo pesquisador independente. Por isso vemos comosalutar ao desenvolvimento da vida científica, que omestrado sirva de exercício, de sorte a permitirexperiência tanto a nível metodológico, quanto anível de definição do tema, ou mesmo de validade depesquisa.

Nossa concepção tem um pressuposto básico:qualquer pesquisa, em qualquer nível, exige dopesquisador um envolvimento tal, que seu objeto deinvestigação passa a fazer parte de sua vida. Ou opesquisador assume o problema que se dispõe aaclarar como seu, integrando seu dia a dia, ou apenascumprirá preceitos acadêmicos.

Mas aqui entram dois novos conceitos de difícilexploração: independência e criatividade.

Acreditamos que só é possível independência depesquisa, na medida em que o pesquisador assumecom liberdade seu objeto de análise e submete-o, porensaio e erro, a uma verificação.

A criatividade, por seu turno, manifesta-se na escolhado tema (originalidade), ou na tradução do resultadoda análise em linguagem verbal.

Mas tudo isso pouco nos ajuda a perceber como sechega ao tema de pesquisa.

Concordamos com Popper quando diz que "oconhecimento só começa a partir da tensão entreconhecimento e ignorância".4 De fato, só este tipo detensão permite a percepção de algo obscuro e justificanossa iniciativa em tentar clarear.

Evidentemente aquilo que já se sabe, que já seconhece, não precisa ser pesquisado. Emcontrapartida, nem tudo o que não se sabe deve serpesquisado.

Em A Prática da Pesquisa5, C. de Moura Castro indicatrês fatores que devem se associar para que aconteçaum trabalho de pesquisa: originalidade, importância(a que chamamos relevância) e viabilidade do tema.

Na verdade os três fatores estão de tal formaassociados, que o prejuízo de um põe em risco aprópria pesquisa.

Originalidade não se confunde com novidade, nãodecorre do fato acidental de ser nova ou inédita apesquisa. Original é o que vai às origens, à essência dascoisas6.

Importância liga-se à necessidade da pesquisa dar ouencaminhar uma resposta para determinada questãoprática ou teórica do homem, da sociedade, danatureza. A importância como fator associado àpesquisa científica, ressalta claramente o caráterpolítico da ciência. Não parece justo o pesquisadordedicar-se a um mero exercício inconseqüente.

Viabilidade refere-se ao tempo, aos custos, ao preparoespecífico do pesquisador, à obtenção de dados ebibliografia. A pesquisa inviável corresponde aenorme perda de tempo, tanto para o pesquisador,quanto para a sociedade.

Mas ainda estamos contornando o problema, semchegar à questão básica: como nasce o tema depesquisa?

Quando dissemos que tomávamos como pressupostoo envolvimento pessoal do pesquisador com suapesquisa, tínhamos claro que acima de tudo é precisogostar do que pesquisamos, já que durante longotempo será nosso ser inteiro que irá se voltar paraaquele objeto.

"É melhor começar, creio, lembrando aosprincipiantes que os pensadores mais admiráveisdentro da comunidade intelectual queescolheram não separam seu trabalho de suasvidas. Encaram a ambos demasiado a sério parapermitir tal dissociação e desejam usar cadauma dessas coisas para o enriquecimento daoutra. . . A erudição é uma escolha de comoviver e ao mesmo tempo uma escolha decarreira; quer o saiba ou não, o trabalhadorintelectual forma seu próprio eu à medida quese aproxima da perfeição de seu ofício".7

Com certeza poderíamos prosseguir com novasreflexões. No entanto a questão básica está em quenão haverá receitas ou modelos para a criaçãohumana, sob pena de ser decretada a sua morte.

Não existe ainda, e é pouco provável que venha aexistir, um método que permita a reconstrução lógicado nascimento de novas idéias. Desta forma, onascimento do tema de pesquisa é um trabalhoartesanal de criação que exige do pesquisador adescoberta de seus valores pessoais, umposicionamento crítico e inquieto diante do Universoe uma disciplina de trabalho que permita equacionarvalores pessoais com o objeto e o ato da pesquisa.

Ci. Inf., Brasília, 11 (2): 13 - 16, 1982. 15

Page 4: Determinação do tema de pesquisa

Determinação do tema de pesquisaAna Maria Marques Cintra

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 NAGEL, E. Ciência: natureza e objetivo. In:MORGENBESSER, S. Filosofia da Ciência.São Paulo, Cultrix, 1971.

- ALVES, R. Conversas com quem gosta de ensinar.2. ed. São Paulo, Cortez, 1981. p. 69.

. p. 67.

4 POPPER, K. A lógica das Ciências Sociais. Rio,Tempo Brasileiro, 1978. p. 14.

5 CASTRO, Cláudio de Moura. A prática da pesquisa.São Paulo, Mc Graw Hill, 1977. p. 5.

6 GOMES, R. Crítica da razão tupiniquim. 4. ed. SãoPaulo, Cortez, 1980. p. 24.

7 MILLS, W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro,Zahar. 1980. p. 211.

ABSTRACT

The choice of a research topic depends on theresearcher's own values, it depends on therelationship he keeps with his environment. At anylevel, a research project requires independence,creativity, and integration of the research topicwith the researcher's day-to-day life. Research Cuidescan help only with the development of the formalpart of a research project. But one does not fínd,and probably never will find, a method that leadsto the logical rebuilding of new ideas.

16 Ci. Inf., Brasília, 11 (2): 13-16. 1982.