Deslumbramentos com a poesia de Ana Cristina

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Deslumbramentos com a poesia de Ana Cristina Reinaldo Moraes Quando conheci Ana Cristina ela apenas descia uma escada. Foi o suficiente para eu me apaixonar. Baby magrelinha, o sol não podia adivinhar: era inverno e era Paris. O que aconteceu com a minha paixão não interessa. Se quiserem mesmo saber, não aconteceu grande coisa no plano do tangível. Em todo caso, os poetas são copuláveis através dos versos. E ela me deu, naquele frio “gozozo” de 1979, os dois livrinhos de poesia que havia editado até então – “Cenas de Abril” e “Correspondência Completa”, ambos de 79, agora saindo do prelo da Brasiliense, junto com o “Luvas de Pelica”, de 80, concebido e confeccionado na Inglaterra, e o inédito “A Teus Pés”, que dá nome à reunião da poesia impressa de Ana Cristina. Quando a conheci, ela fazia o segundo mestrado de sua carreira universitária, em literatura inglesa, numa faculdade de Essex, perto de Londres. Estava passando férias em Paris. Era encantadora, dona de um sotaque carioca aveludado e de uma prosa tão elegante que fazia meu vinho ou conhaque parecerem um interminável chá das cinco. Não fui capaz de impedir que ela entrasse num ônibus e voltasse para Essex, dali a alguns dias. Me deu um beijinho de despedida na gare. Ai. Foi-se a poeta, restaram os versos. Caí de boca. O primeiro que li foi o “Correspondência”, mini-livro amarelinho do tamanho da palma da mão, menos os dedos. Ali só havia uma carta, inaugurada por um “my dear” e encerrada com

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Deslumbramentos com a poesia de Ana Cristina

Reinaldo Moraes

Quando conheci Ana Cristina ela apenas descia uma escada. Foi o suficiente para eu me apaixonar. Baby magrelinha, o sol no podia adivinhar: era inverno e era Paris. O que aconteceu com a minha paixo no interessa. Se quiserem mesmo saber, no aconteceu grande coisa no plano do tangvel. Em todo caso, os poetas so copulveis atravs dos versos. E ela me deu, naquele frio gozozo de 1979, os dois livrinhos de poesia que havia editado at ento Cenas de Abril e Correspondncia Completa, ambos de 79, agora saindo do prelo da Brasiliense, junto com o Luvas de Pelica, de 80, concebido e confeccionado na Inglaterra, e o indito A Teus Ps, que d nome reunio da poesia impressa de Ana Cristina.Quando a conheci, ela fazia o segundo mestrado de sua carreira universitria, em literatura inglesa, numa faculdade de Essex, perto de Londres. Estava passando frias em Paris. Era encantadora, dona de um sotaque carioca aveludado e de uma prosa to elegante que fazia meu vinho ou conhaque parecerem um interminvel ch das cinco. No fui capaz de impedir que ela entrasse num nibus e voltasse para Essex, dali a alguns dias. Me deu um beijinho de despedida na gare. Ai. Foi-se a poeta, restaram os versos. Ca de boca.O primeiro que li foi o Correspondncia, mini-livro amarelinho do tamanho da palma da mo, menos os dedos. Ali s havia uma carta, inaugurada por um my dear e encerrada com um beijo Julia. Carta escrita no se sabe pra quem: pessoa muito amiga, homem ou mulher, quem sabe ela mesma, pois afinal era seu nome, Ana Cristina, que constava do sobrescrito a capa do livrinho. Autora destinatria de uma carta escrita por sua prpria personagem. Fragmentos de histria exemplar de moa culta, clase e desbundada, frestas de intimidade, estilo elptico de quem supe no leitor um possuidor da chave de todas as significaes ocultas no texto. Irnica e sensvel. Alma vibrtil de carioca Zona Sul, numa ambincia dos late seventies. Confessando por exemplo, que estava cheia do namorado, isto me pareceu condenao definitiva do mascchetto militante e liricide dos anos 70. Aquilo foi um toque pra mim: a modernidade mudara de feio, a pitoniza-poetisa estava dando um altssimo bizu pra moada, num texto ultra-sinttico, s desdobrvel depois de vrias leituras, mas nunca esgotvel.No Cenas de Abril, que, se no me engano, o primeiro livro dela, encontrei mais fragmentos da histria prefigurada na Correspondncia. Entre o fato mencionado ou sugerido e o fato calado estava instalada a poesia. Certas imagens, de to cerradas, davam a impresso que o seu significado se perdera num passado de amores intensos, complexos, que o leitor apenas intui. Escritura ambgua referindo-se a vivncias deslizantes. Fascinante. To Ana Cristina, to aquele sorriso claro e delicado dela sob olhos sarcsticos e ligeiramente devassos. A elegncia de Ana est bem longe do melfluo. Vejam: Acordei com coceira no hmen. No bid, com espelhinho, examinei o local. No surpreendi indcios de molstia. (...) Passei pomada at que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa, murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta ponta do Arpoador.No vo pensar que o resto segue nesta toada; no, tem de tudo: lirismo nostlgico (Recuperao da Adolescncia sempre mais difcil ancorar um navio no espao), metafsica (Quisera dividir o corpo em heternimos medito aqui no cho, imvel txico do tempo), saboro cabotinismo (Estou bonita que um desperdcio), e tudo mais que tem atravessado o papo dos poetas pelos sculos afora. Tem personagens, Clia, ngela, Jack Kerouac, Binder e outros, reais, inventados, reinventados, que surgem como fotografias sem explicao, mas densas de vida, flagradas num lbum priv pelo olhar bisbilhoteiro do leitor.Well, se isto fosse uma resenha competente eu deveria falar das afinidades de poesia/prosa de Ana Cristina com escritores de lngua inglesa Whitman, na parte franca e discursiva; Emily Dickinson, na concisa e elptica; Katherine Mansfield (de quem Ana excelente tradutora) nas sondagens em profundidade da anima e cuore feminina. Sem contas os brasucas todos Murilo Mendes e Manu Bandeira em especial onde ela foi debicar lirismos moda da casa. Precisava tambm situ-la devidamente nas quests feministas (que eu desconheo, ou quase) e no panorama da poesia marginal carioca, onde ela ocupa posio de mximo destaque na ala culta, ao lado de Chico Alvim. Sei que esses poetas apearam faz tempo dessa classificao de marginais, mas esse outro papo.Faltou falar do Luvas de Pelica, penltimo de seus trabalhos, onde (no resisto) sou citado num verso admirvel: A paixo, Reinaldo, uma fera que hiberna precariamente; e do A Teus Ps, livro-ttulo da opera omnia de Ana, que ainda no degustei devidamente. So falhas a serem corrigidas por exegeta de maior astcia no ramo. Eu sou apenas um eterno deslumbrado com a poesia, a prosa e a pessoa da carioca.

Folha de So Paulo Domingo, 21 de novembro de 1982 Ilustrada 7o. caderno 61.