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DESLOCAMENTOS DO FEMININO – QUEM TEM MEDO DE CASSANDRA RIOS?
Danielly Christina de Souza Mezzari (Unesp/Assis)
Fernando Silva Teixeira-Filho (Unesp/Assis)
[email protected] Resumo Este trabalho se propõe a apresentar algumas discussões provenientes do
desenvolvimento de uma tese de doutorado1 que tem como objetivo problematizar
binarismos ainda presentes no campo da psicologia tomando como ponto de partida
e de intersecção as obras da escritora brasileira Cassandra Rios. Apresentaremos
mais especificamente uma discussão acerca da literatura enquanto um dispositivo
político que possibilita a criação de novos mundos sensíveis. e dos efeitos que as
ficções lésbicas podem produzir no sentido de ressignificar tradições e existências.
Apostamos nas lesbianidades enquanto um lugar possível de ocupação política e de
produção de uma crítica da história literária. Por fim, acreditamos que as obras de
Cassandra Rios podem ser um lugar potente de ressignificação e de deslocamento
acerca das representações até então vigentes sobre o corpo feminino e o corpo
lésbico.
Palavras-chave: Psicologia; Literatura; Lesbianidades. Introdução Cassandra Rios foi uma escritora brasileira nascida em 1932 em São Paulo.
Publicou seu primeiro livro com 16 anos financiado por sua mãe que, a seu pedido,
nunca chegou a lê-lo (Vieira, 2014). A escritora ganhou rótulos tais como o de “a
escritora mais proibida do Brasil” entre os anos de 1950 a 1980 (Pereira, Messeder,
2013) tendo quase a totalidade de sua obra censurada durante a época da ditadura
1 Este trabalho é proveniente do financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) n. do processo: 2017/26305-3.
mailto:[email protected]
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militar. Cassandra Rios é considerada pioneira na escrita de livros que traziam
personagens lésbicas como protagonistas. Ainda que já existissem obras publicadas
no Brasil sobre lesbianidades, a escritora foi a primeira a fazer das lesbianidades o
cerne da maior parte de suas obras.
A literatura é uma categoria que se estabelece no século XIX e que “exerce
seu poder enquanto um saber específico, que passa a ser valorizado enquanto um
valor estético, à uma escrita valorativa, ao cânone literário por assim dizer [...]
(Vieira, 2014, p. 44-45). Mas a literatura é também, como nos explica Vieira, uma
instituição ambígua, que pode transgredir suas próprias regras, desestabilizá-las,
tendo em vista a função que desempenha. Deleuze (1997) nos diz que a literatura
tem a ver com o inacabado, com o que está ainda por vir, por devir. E devir é nunca
chegar a uma forma pronta, estabelecida, mas sim encontrar uma zona de
vizinhança.
Laura Arnés (2016) pensa a literatura enquanto um dispositivo político que
possibilita a produção de novos mundos sensíveis e, a partir daí, de novas relações
com e entre os corpos. Para Polesso (2018) dizer que uma literatura é lésbica tem a
ver com compreender o mundo do ponto de vista de um sujeito complexo “em
história, política, gênero e estética, ou a partir da criação de personagens cuja
lesbianidade seja apresentada como característica” (p. 11). Apesar da potência que
há em reivindicar uma “literatura lésbica”, principalmente quando pensamos na
produção de novas representações ficcionais, autorais e também de fortalecimento
de um grupo social (Polesso, 2018), não podemos perder de vista as problemáticas
que uma tal categoria inevitavelmente suscita.
Gloria Anzaldúa (2009) nos explica que o termo “lésbica”, quando pensa em
sua experiência, é um problema porque diz respeito predominantemente a mulheres
brancas de classe média. Para a autora sua escolha em se utilizar de categorias
como “Chicana”, “poeta dyke-feminista” ou mesmo “lésbica” se dá por razões
diferentes das dominantes. Rotular-se tem a ver, nesta perspectiva, com não permitir
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que aspectos fundamentais de sua existência sejam omitidos, apagados ou
violentados. Nesse sentido, as ficções lésbicas2 (Arnés, 2016) não tem a ver com
uma produção identitária que reivindica critérios específicos de pertencimento a um
determinado grupo social. Como alega Laura Arnés (2016), ficções lésbicas
ressignificam e rearranjam tradições e, para além disso, produzem novas formas de
existências que tanto coexistem com estruturas dominantes quanto as tornam
obsoletas.
Para a autora as lesbianidades podem ser um lugar possível de ocupação
política e de leitura das opressões, bem como de produção de um pensamento
crítico da história literária. As ficções lésbicas produzem mapas de intensidades
(Arnés, 2016). Elas não se preocupam com origens, com um mito fundador, mas ao
invés disso possibilitam a criação de deslocamentos e de pontos de contato entre
fenômenos distintos.
A partir daí, podemos sugerir uma leitura outra de Cassandra que esteja
preocupada em produzir processos de minoração em uma língua maior. De acordo
com Pereira (2013), Cassandra Rios não dá conta de romper absolutamente com
modelos vigentes à época acerca das lesbianidades, tendo em vista sua ânsia em
produzir imagens de lésbicas que pudessem ser aceitas. Para tanto, a autora acaba
por essencializar a homossexualidade, produzindo também processos de exclusão
(Pereira, 2013). No entanto, podemos perceber também, ainda de acordo com
Pereira, desejos e movimentos de subversão na escrita Cassandriana. Messeder e
Pereira (2013) ao analisarem as obras “Eu sou uma Lésbica”, “A serpente e a Flor” e
“O gamo e a gazela” pontuam que no universo Cassandriano as lésbicas masculinas
sempre aparecem a partir do olhar de outras personagens. Em “Eu sou uma
Lésbica”, por exemplo, a personagem Flávia assim descreve outra mulher:
2 Para Laura Arnés o termo “ficção” se refere a construções discursivas, ideológicas e imaginárias que fundam o campo social enquanto o termo “lésbica” deve ser pensado enquanto um complexo entramado de percepções e expressões, práticas, localizações e movimentos. Enquanto posição e não essência.
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Como eu supusera: uma machona, como as que eu já vi na rua e que me causavam repulsa e aversão. Metida a homem, andar de fanfarrão, impostando a voz, sacudindo as pernas arreganhadas, como se tivesse um enorme saco entre elas, gesticulando, falando do seu caso como se falasse de uma mulher-objeto. (RIOS, 2006, p. 67).
Já em “As Traças”, podemos notar um certo deslocamento no diálogo travado
entre Andréa e Rosana: “- Rosana, vamos embora, isso é o fim do mundo. Essas mulheres assim vestidas, andando desse jeito, o que pensam? Que são homens? Aquela grandalhona parece chofer de caminhão. Meus Deus, será que não sabem ser lésbicas sem imitar homens? Rosana suspirou e olhou de lado, pôs a cabeça para fora do carro, deu ré, esterçou e saiu. -Já olhou para mim? Já conseguiu me imaginar de vestido? - Vejo você todos os dias de saia. - E o que pareço? - Uma mulher. - Não me acha esquisita? Não acha que fico melhor de calças compridas? - Bem, de certo modo, sim. Mas não vêm ao caso, você não tem a aparência dessas que acabamos de ver. - E que tipo tenho? Andréa sentiu-se encurralada. (RIOS, 2005, p. 150).
Apesar de a personagem Rosana aparecer no romance por meio da
descrição de Andréa, neste diálogo podemos perceber uma tentativa de deslocar a
figura da lésbica masculina de um lugar de pura abjeção e, ao mesmo tempo, de
apresenta-la enquanto uma existência possível, ainda que a partir de um lugar
bastante demarcado.
Considerações finais Acreditamos que pensar acerca das configurações de lesbianidades criadas
pela autora pode nos ajudar a problematizar processos de subjetivação
contemporâneos das lésbicas do nosso país. Ao reconfigurar o modo de abordar
questões relativas à sexualidade das mulheres Cassandra possibilita reconfigurar
também práticas e desejos. Preciado (2002), em suas análises sobre o dildo, afirma
que ele é transgressor não por permitir às lésbicas adentrarem o paraíso do falo,
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mas sim por escancarar o fato de que tanto a masculinidade quanto a feminilidade
estão sujeitas a tecnologias sociais e políticas de produção e controle. A “extração”,
em forma de dildo, do órgão que instaura um corpo como naturalmente masculino
pode ser vista como um ato de desconstrução da heterossexualidade enquanto fruto
da natureza (Preciado, 2002). Na mesma direção, acreditamos que a obra de
Cassandra Rios pode nos ajudar a desconstruir os pressupostos binaristas nos
quais fundamentalmente se apoiam os saberes psicológicos.
Referências
ANZALDÚA, G. Queer(izar) a escritora – Loca, escritora y chicana. Trad.: Tatiana Nascimento. In: KEATING, AnaLouise (Ed.). The Gloria Anzaldúa Reader. Durham: Duke University Press, 2009. p. 163-175.
ARNÉS, L. Ficciones lesbianas: literatura y afectos em la literatura argentina. Buenos Aires: Madresilva, 2016.
DELEUZE, G. A literatura e a vida. In: DELEUZE, G. Crítica e Clínica. Trad.: Peter Pál Pelbart – São Paulo, Ed. 34, 1997. PEREIRA, A. G. P. As disposições da lesbianidade na ficção As Traças, de Cassandra Rios'. 2013. 89 f. Dissertação (Mestrado em Crítica Cultural) – Universidade do Estado da Bahia, Alagoinhas. PEREIRA, A. G. P.; MESSEDER, S. A. Narrativas subversivas: imagens de uma política da subjetividade na literatura de Cassandra Rios. In: III Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades. Salvador-BA, 2013. Disponível em: http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2013/06/Narrativas-subversivas-imagens-de-uma-pol%C3%ADtica-da-subjetividade-na-literatura-de-Cassandra-Rios.docx POLESSO, N. B. Geografias lésbicas: literatura e gênero. Criação e crítica, n. 20, 2018. PRECIADO, B. Manifiesto contra-sexual. Trad: Júlio Diaz y Carolina Meloni. Editorial Opera Prima, Madrid. 2002. RIOS, C. As traças. Org: Rick Santos – São Paulo: Brasiliense, 2005. RIOS, C. Eu sou uma lésbica. 2 ed. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006.
VIEIRA, K. M. A. “Onde estão as respostas para as minhas perguntas?”: Cassandra Rios – a construção do nome e a vida escrita enquanto tragédia de folhetim (1955-2001). 2014, 235 f. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Recife-PE, 2014.
http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2013/06/Narrativas-subversivas-