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Deslocamentos diaspóricos e identidades transnacionais em Desirable Daughters e The Tree Bride, de Bharati Mukherjee Cleusa Salvina Ramos Maurício Barbosa Professora de língua portuguesa e literatura brasileira e portuguesa e língua inglesa no CEFET-AL, mestre pelo Programa de Pós- graduação em Letras e Lingüística (Fale/Ufal), com a dissertação "O Caráter Utópico da Busca Identitária em Duas Autoras Contemporâneas: Lya Luft e Bharati Mukherjee", e doutoranda também do PPGLL, desenvolvendo pesquisa sobre diásporas transnacionais, estudos de utopia e critica feminista.

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Deslocamentos diaspóricos e identidadestransnacionais em Desirable Daughters e The TreeBride, de Bharati Mukherjee

Cleusa Salvina Ramos Maurício Barbosa

Professora de língua portuguesa e literaturabrasileira e portuguesa e língua inglesa noCEFET-AL, mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística (Fale/Ufal),com a dissertação "O Caráter Utópico da BuscaIdentitária em Duas Autoras Contemporâneas:Lya Luft e Bharati Mukherjee", e doutorandatambém do PPGLL, desenvolvendo pesquisasobre diásporas transnacionais, estudos de

utopia e critica feminista.

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MUKHERJEE, Bharati. Desirable Daughters. Nova Iorque:Hyperion, 2002, 310 páginas, custa em tomo de 73 reais, e já podeser encontrado em algumas livrarias nacionais.

MUKHERJEE. Bharati. The Tree Bride. NewYork: Hyperion,2004, 293 páginas, tem o valor aproximado de 71 reais. Vale umadica: as edições acima citadas são as primeiras e por isso têm ocusto maior, mas algumas edições posteriores custam menos dametade do preço. Vale a pena conferir!

O cenário da literatura contemporânea tem sidotransformado pela crescente influência da globalização.Atualmente, os textos que cruzam as fronteiras das naçõese das culturas são, em grande parte, de autores/asconsiderados/as emergentes e que expressam uma miríadede vozes daqueles/as que, certa vez, foram considerados/as subalternos/as'. No topo desta nova onda e influêncialiterária, podemos encontrar autoras sul-asiáticas, emespecial, indianas, que começaram a se destacar no mundoliterário. Em particular, ressaltamos a produção da escritoraBharati Mukherjee que tem se destacado por tratar, emseus romances, da literatura da diáspora.

Bharati Mukherjee "diferentemente da maioria desuas colegas escritoras de ascendência asiática, é ao mesmotempo imigrante e cosmopolita global."' Ela se define comouma escritora americana de origem indiana e demarca suaescrita sob a ótica da tradição da experiência do imigrante,ao invés do enfoque na nostalgia e no expatriamento.

Mukherjee nasceu em 1940, em Calcutá, índia. Elamorou em Londres enquanto menina, retornando à índiaaos onze anos de idade, onde freqüentou, no início da faseadulta, as Universidades de Calcutá e Baroda. Apósganhar uma bolsa de estudos para a Universidade de low^a,na oficina de escritores, ela mudou-se para os EstadosUnidos e conheceu e casou-se com o romancista canadenseClark Blaise, em 1963. A princípio, os dois viveram emMontreal, onde Mukherjee juntou-se ao corpo docenteda Universidade Mcgill até 1973, quando ela e o maridoviajaram para a índia. Eles mantiveram diários de viagens

' GUEDES, Peonia V.

Uma Leitura Pós-

Colonial da Pós-

Modemidade; "História

de uma Esposa", deBharati Mukherjee. In:Mulheres e Literatura.

Anais. Rio de Janeiro:N1ELM,1998, p.3.

DeSLOCAMEMTOS OlASPÓRiCOS e íDENTIDADES TRA^SNAC(O^WiS EM DeSRABIIDaUGHTFFISE TwE TreeBííDE, de Bk.WATI MUKHERjEE

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^ Todas asiraduções

para o português são deminha autoria.

separados, os quais foram publicados em 1977 como DaysandNights in Calcutta.

O primeiro romance de Bharari Mukherjee,intitulado The Tíger's Daughter (1972). lida com odesapontamento sentido por uma expatriada em seuretorno à índia. Seu segundo romance. Wife{\915), contaa história de uma mulher psicologicamente maltratada quemata seu marido. A autora recebeu o prêmio nacional doscríticos (The National Book Critics Circle Award) por seuThe Middieman and Ocher Stories (1988). Escreveu suaprimeira trilogia com os romances Jasmine (1989). TheHolder of the World (1993) e Leave it to me (1997). E,atualmente, compõe sua segunda trilogia, ainda incompletacom Desirable DaughtersQTi^T) e The Tree Bnde (2004).

Em comentário no Des Moine Register de outubrode 1994, ela diz considerar-se uma escritora pós-colonial.e não multicultural. Ela prossegue afirmando que o"multiculturalismo enfatiza as diferenças entre as herançasraciais, o que tanto tem freqüentemente levado àdesumanização do diferente. E a desumanização leva àdiscriminação que. em última instância, pode levar aogenocídio". [Multiculturalism emphazises the differencesbetween racial heritages. This emphasis on the differenceshas too often led to the dehumanization of the different.And dehumanization leads to discrimination. Anddiscrimination can ultimately lead to genocide.]^

Mukherjee está completamente desinteressada napreservação das culturas, na santificação da tradição, nasobrigações com o passado; pelo menos ela não estainteressada nos aspectos nostálgicos de tal preservação.

A natureza da identidade indiana é significativa paraaqueles que vivem na índia. Mas. também é importantepara a ampla diáspora indiana mundial. Os indianos nãovêem contradição alguma entre serem cidadãos leais aopaís no qual se estabeleceram e onde estão social epoliticamente integrados, e ainda conservarem um sentidode filiação e companheirismo com a índia e seus/suascompatriotas. Como é freqüentemente o caso com

Leitura . Maceió, n.41, p. 239-247. «an./jun. 2008

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emigrantes, em geral, a diáspora indiana também apresentaum sentimento de orgulho, respeito próprio e dignidadepela cultura e tradições de sua terra natal.

Assim como o sentimento desenvolvido pelosemigrantes, em seus movimentos diaspóricos, aspersonagens femininas criadas por Bharati Mukherjee sãocapazes de viver num mundo no qual o indivíduo existenão apenas como um ser unificado, mas também como umsujeito múltiplo, unido à fronteira alguma, e compossibilidades infinitas de construções identitárias. Em suatrilogia ainda não concluída, Mukherjee apresenta oprocesso identitário como sendo contínuo, em eternatransformação e nunca plenamente completo. Tara, aprotagonista, nascida e criada em Calcutá, se muda paraSão Francisco, aos dezenove anos, para um casamentoarranjado por seus pais com um jovem indiano que estudana Universidade de Stanford. Ao invés de haver um conflitocultural, Tara abraça imediatamente a cultura norte-americana (estadunidense), aproveitando as oportunidadesoferecidas a ela e assimilando ao máximo a sociedade aoseu redor.

Tara se vê através de lentes em eterna mudançacultural. Tal percepção implica na escolha entre a aceitaçãoou rejeição de determinados aspectos da cultura indiana eestadunidense. Enquanto continua a desenvolver novasfacetas identitárias, ela percebe que nunca serasimplesmente norte-americana ou indiana, mas reconhecese dispersa entre essas categorias de identidade.

Tara é a narradora: ela escreve a história de suafamília e de si própria. Enquanto ocorre um desdobramentodesse processo, ela adquire a percepção da criação desua própria consciência como construto cultural. Aodocumentar a história de sua família. Tara registra a cnaçaode sua identidade, a influência de fatos do passado e dacultura na construção da consciência de seu presente, utive o tempo, a motivação, e mesmo a paixão paraempreenderestahistória. Quando meus amigos, meu i io,ou minhas irmãs me perguntam por que, eu digo que estou

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explorando a construção de uma consciência" [I have hadthe time, the motivation, and even the passion to undertakethis history. When my friends, my child, or my sisters askme why, I say I am exploring the making of aconsciousness.] {Desirable Daughters, p. 5).

Tara começa sua narrativa com a história de

sua ancestral, que é também seu homônimo - TaraLata, igualmente conhecida como a "noiva da árvore".Esta introdução é ambientada na índia, em 1879, deacordo com o calendário britânico, ou no ano de 1285,

para o calendário hindu, ou ainda 1297 para omuçulmano. É a crônica de um casamento arranjadode uma noiva-criança, de apenas cinco anos de idade,que é rejeitada pela família do noivo, quando o jovemé picado por uma cobra antes da cerimônia docasamento. A breve narrativa dessa história serve paralocalizar o/a leitor/a no passado, arraigado nas raízesda história familiar de Tara.

O termo "a noiva da árvore" (The Tree Bride) podeser melhor entendido mediante a compreensão daimportância dos rituais do casamento face à tradição hindu.Tradicionalmente, o casamento hindu pode durar até cincodias, e inclui cerimônias pré - e pós-casamento. Existemdiversos rituais de boas-vindas entre as famílias e depedidos de proteção divina. A cerimônia do casamentoem si começa com a recepção do noivo pela família danoiva. A mãe da noiva marca a testa do noivo com um pó

vermelho, que a religião hindu também associa à boa sortematrimonial. Noiva e noivo são levados a uma tenda, onde

acontece o casamento. O pai da noiva a entrega ao noivo,dando as mãos a ele, significando seu consentimento. Asmãos da noiva são amarradas às do noivo, e as pontas desuas roupas também são amarradas, simbolizando os laços

matrimoniais. O casal deverá dar sete voltas em torno deuma fogueira acesa no centro do local da cerimônia,enquanto fazem o juramento de amar e cuidar um do outro.Quando as voltas são completadas, os noivos estãocasados. As duas famílias, ainda se reúnem em outras

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brincadeiras tradicionais evocando saúde, riquezas efertilidade para o novo casal.

Quanto à ancestral da protagonista, Tara LataGangooly, que tem sua cerimônia de casamentointerrompida quando a vida do jovem noivo é ceifada.Torna-se uma noiva incomum - após a rejeição pela famíliado noivo, tem seu destino selado. O pai de Tara, Jai KrishnaGangooly. realiza o casamento de Tara com uma árvoresagrada a fim de evitar o sofrimento e exclusão da filhacomo viúva, mulher nâo-casada (relacionado à maldiçao),ou ainda, alguém a ser evitada por trazer infortúnio e morteà sua família.

Num movimento estilístico, típico da narrativa deBharati Mukherjee, o/a leitor/a é subitamente trazido/aao presente, na Califórnia. Ocorre um salto temporal eespacial destoante que sugere um padrão não-ortodoxode tempo e espaço que permeará a narrativa. A estruturada história de Tara se movimenta do passado para opresente, de tal maneira que por vezes causa dificuldadeem distinguir o que aconteceu e o que está acontecendo.É a partir dessa perspectiva caótica que a protagonistadescreve sua história e há o desvelamento de suasmúltiplas identidades.

A personagem principal de sua trilogia, TaraChatterjee, lança um olhar retrospectivo, ao revisitar opassado de sua família, ao mesmo tempo em que vislumbrao futuro. Tara busca harmonizar-se com sua história e seulegado. Ela transita entre os dois mundos nos quais ela sedesloca: a índia e os Estados Unidos, o passado e o futuro.Ela desliza entre as identidades estadunidense e indiana.Tara Chatterjee coleta informações acerca de sua ancestral- "a noiva da árvore". Tara Lata. A protagonista tenta sereconciliar com parte de seu passado, de herança indiana,e sua vida enquanto norte-americana assimilada.

Podemos estabelecer uma relação entre TaraChatterjee e Jasmine, a protagonista do romancehomônimo de Mukherjee, que passa por diversastransformações que vão desde a menina do vilarejo

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tradicional, na índia, até a 'moderna' dona-de-casa e mulherdo banqueiro Bud, em lowa. Ambas oscilam entre suasidentidades. Essas mulheres possuem um carátercamaleônico, sendo capazes de se reinventarem a partirdos enfrentamentos que vivenciam em seus deslocamentoscransnacionais e intercontinentais.

Dessa maneira podemos compreender o conceitode "renascimento", atribuído pela autora aos imigrantesque, ao assumirem riscos a fim de se integrarem ao novolugar ao qual chegaram, têm sua cidadania modificada, sereinventam — estes ela chama de "renascidos". Bharati

Mukherjee se distancia da veneração da tradição.Observa-se isso em suas narrativas que envolvem aviolência acompanhada da revisão intercultural e damudança pessoal. Uma de suas mais famosas heroínas,Jasmine diz: "não há maneiras inofensivas, compassivasde nos refazermos. Nós matamos quem fomos para quepossamos renascer nas imagens de nossos sonhos" [Thereare no harmless, compassionate ways to remake oneself.We murder who we were so we can rebirth ourselves inthe images of dreams.] {fasmine, New York: Grove Press,1989, p. 29).

Podemos dizer que a identidade, dentro dasnarrativas dos romances Desirable Daughters e The TreeBríde, é maleável e incerta. Mukherjee desconstrói a noçãodo ser unificado e concreto ao sugerir que as diversascategorias que usamos para construir a identidade são elaspróprias indeterminadas. Os métodos da formação daidentidade e da criação da consciência pelas mulheres sul-asiáticas, entendamos indianas, em processos diaspóricoscontinuam a se desenvolver, e enquanto o desenvolvimentoda identidade domina o processo de assimilação, ascomplexidades emergirão nas futuras gerações diaspóricasque produzirão novos meios e mecanismos que irão redefiniro significado da(s) identidade(s) da mulher sul-asiática, emparticular, indiana, numa perspectiva global.

Ambos os romances apresentam seus enredosbrilhantemente entrelaçados: a história de três irmãs

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brâmanes, pertencentes à alta classe, nascidas em Calcutá,e conhecidas por sua beleza, extrema astúcia e privilegiadaposição social. As três mulheres têm nomes de deusas

hindus; Parvati, Padma e Tara. Podemos configurar asnarrativas como um retrato bastante expressivo de umafamília com traços ancestrais significativos, que tenta aomesmo tempo manter as tradições, harmonizando-as ao

mundo contemporâneo.As narrativas tecem suas tramas dentro e fora de

espaços geográficos e temporais. Há um convite à leitura,um mergulho num universo em que as fronteiras sedesfazem em prol do favorecimento de construçõesmaleáveis, que caracterizam o sujeito multifacetado eatemporal. Podemos dizer que Mukherjee constrói umretrato sem retoques da trajetória percorrida por essastrês mulheres, em dois continentes, numa jornada perigosaentre dois mundos: o velho e o novo, o mundo das tradiçõese o mundo das inovações tecnológicas. O resultado dessabusca merece ser desvendado.

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