Desigualdade na América Latina e no Caribe ... -...

44
Região da América Latina e do Caribe Relatório para 2003 Edição da Conferência. Outubro de 2003 Comentários são bem-vindos. Desigualdade na América Latina e no Caribe: Rompendo com a História? DAVID DE FERRANTI GUILLERMO E. PERRY FRANCISCO H.G. FERREIRA MICHAEL WALTON DAVID COADY WENDY CUNNINGHAM LEONARDO GASPARINI JOYCE JACOBSEN YASUHIKO MATSUDA JAMES ROBINSON KENNETH SOKOLOFF QUENTIN WODON

Transcript of Desigualdade na América Latina e no Caribe ... -...

Page 1: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

Região da América Latina e do Caribe Relatório para 2003

Edição da Conferência. Outubro de 2003

Comentários são bem-vindos.

Desigualdade na América Latina e no Caribe:

Rompendo com a História?

DAVID DE FERRANTI GUILLERMO E. PERRY FRANCISCO H.G. FERREIRA

MICHAEL WALTON DAVID COADY WENDY CUNNINGHAM LEONARDO GASPARINI JOYCE JACOBSEN YASUHIKO MATSUDA JAMES ROBINSON KENNETH SOKOLOFF QUENTIN WODON

Page 2: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

2

Sumário

Agradecimentos…………………………………………………………………….

1. INTRODUÇÃO ………………………………………...……………………………… 4 1.1. Estrutura conceitual……………….……………………….…….. 6 1.2. Conseqüências da grande desigualdade………….………………….... 13 A desigualdade é considerada intrinsecamente ruim …………………… 13 Uma grande desigualdade dificulta a redução da pobreza …… 16 A desigualdade impede o processo de desenvolvimento ………………… 18 1.3. Visão geral do relatório……………………………………………….. 22 2. DIFFERENT LIVES: INEQUALITY IN LATIN AMERICA AND THE

CARIBBEAN…………………………………………………………………………….

33 2.1. Some conceptual issues…………………………………………………... 34 2.2. Income inequality and beyond…………………………………………... 36 2.3. Inequality in Latin America and the Caribbean in

perspective……………………………………….. 55

2.4. Looking inside household income……………………………………….. 60 2.5. Inequality beyond income ………………………………………………. 70 2.6. Conclusions …………………………………………………………..….. 75 3. GROUP-BASED INEQUALITIES: THE ROLES OF RACE, ETHNICITY, AND

GENDER…………………………………………………………………………………

77 3.1. Who are the people of Latin America and the Caribbean?…………… 78 3.2. Conceptual framework………………………………………………….. 85 3.3. Inequality between individuals during the life cycle………………….. 90 3.4. Would income inequality decline if returns on human capital were

more equal?………………………………………………………………

106 3.5. Conclusions……………………………………………………………….. 118 4. TAXATION AND PUBLIC EXPENDITURES ON INEQUALITY: MYTHS AND

REALITIES……………………………………………………………………….

120 4.1. Taxes and distribution…………………………………………………… 122 4.2. Public social spending and distribution………………………………… 134 4.3. The potential for redistribution via taxes and spending…………….. 159 5. HISTORICAL ROOTS OF LATIN AMERICAN INEQUALITY…………………. 161 5.1. Factor endowments, inequality, and institutions…………………….. 161 5.2. The persistence of inequality: the Colonial period…………………… 165 5.3. The persistence of inequality post-independence……………………... 166 5.4. The 20th century…………………………………………………………. 177 5.5. The 21st century and beyond…………………………………………… 179 6. ECONOMIC MECHANISMS FOR THE PERSISTENCE OF HIGH

INEQUALITY IN LATIN AMERICA………………………………………………...

180 6.1 Framework………………………………………………………………... 180 6.2. Asset distributions: education and land……………………………… 183

Page 3: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

3

6.3. Job match quality……………………………………………………….. 191 6.4. Remuneration in the labor markets…………………………………… 196 6.5. Household formation…………………………………………………… 201 6.6. Fiscal redistribution…………………………………………………….. 204 6.7. Measurement-related issues……………………………………………. 210 6.8. Conclusions……………………………………………………………….. 215

7. STATE, SOCIETY AND DISTRIBUTION IN LATIN AMERICA AND THE CARIBBEAN…………………………………………………………………………….

218

7.1. Regime types, state-society relations, and political mechanisms of persistent inequality…………………………………………………………..

218

7.2. Democracy and distribution in Latin America: formal and informal constraints…………………………………………………………………….

225

7.3. Democracy and institutional conditions for redistributive transformations………………………………………………………………

231

7.4. Democratic decentralization and distribution………………………… 240 7.5. Conclusions……………………………………………………………….. 246 8. POLICIES ON MARKETS AND INSTITUTIONS…………………………………… 248 8.1. Markets and inequality…………………………………………………. 248 8.2. Inclusive labor policies and institutions………………………………… 261 8.3. Inequality and macroeconomic crises…………………………………... 264 8.4. Conclusions………………………………………………………………. 287 9. POLICIES ON ASSETS AND SERVICES 289 9.1. Education…………………………………………………………………. 289 9.2. Property rights, land, and housing……………………………………… 307 9.3. Infrastructure services and the distributional impact of

privatization………………………………………………………………

330 10. PRO-ACTIVE STATES: SMART INSTRUMENTS FOR REDISTRIBUTION…. 345 10.1. From primary to secondary distributions of income around the

world……………………………………………………...

345 10.2. Un-taxing the poor……………………………………………………… 351 10.3. Social assistance programs in Latin America: a mixed bag……….. 356 10.4. Smart transfers………………………………………………………… 360 10.5. Do conditional cash transfers work?……………………………….. 370 10.6. Conclusions and implications………………………………………….. 378

REFERENCES………………………………………………………………………………. 382

STATISTICAL APPENDIX………………………………………………………………... 407

Page 4: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

4

AGRADECIMENTOS

Desigualdade na América Latina e no Caribe: Rompendo com a História? é o resultado de um esforço conjunto que reuniu profissionais de diversas áreas, tanto do Banco Mundial quanto de outras instituições. O relatório foi orientado por David de Ferranti e Guillermo Perry, e preparado por uma equipe coordenada por Francisco H.G. Ferreira e Michael Walton. Participaram da equipe: David Coady (Instituto Internacional de Pesquisas sobre Política Alimentar - International Institute for Food Policy Research), Wendy Cunningham (Banco Mundial), Leonardo Gasparini (Universidad Nacional de la Plata, Argentina), Joyce Jacobsen (Wesley University), Yasuhiko Matsuda (Banco Mundial), James Robinson (Universidade da Califórnia, Berkeley), Kenneth Sokoloff (Universidade da Califórnia, Los Angeles) e Quentin Wodon (Banco Mundial). A preparação deste relatório se beneficiou em grande parte de duas reuniões com os autores e um grupo de consultores, no Rio de Janeiro, em agosto de 2002, e em Washington, em abril de 2003. O grupo de consultores era composto por Barry Ames, Richard Bird, François Bourguignon, John DiNardo, Patrick Heller, James Mahoney, Lant Pritchett, Judith Tendler e André Urani. Contribuíram também para este trabalho, os importantes comentários dos três principais revisores, Martin Ravallion, Ana Revenga e Michael Woolcock. As conclusões iniciais do relatório foram apresentadas em duas reuniões da Rede de Pesquisas sobre Desigualdade e Pobreza (Network on Inequality and Poverty - NIP), um grupo que atua sob os auspícios da Associação de Economia para a América Latina e o Caribe (Associação Econômica para a América Latina e o Caribe - Latin American and Caribbean Economics Association, LACEA), com a participação institucional do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco Mundial. Essas reuniões, que ocorreram em junho de 2003, foram organizadas respectivamente por Máximo Rossi, na Costa Rica, representando toda a Rede, e por Sebastián Galiani e Leonardo Gasparini, na Argentina, em nome da representação da Argentina da Rede. Embora este relatório seja o resultado de um esforço conjunto, os principais autores dos diversos capítulos são: Capítulo 1 - Francisco Ferreira, Guillermo Perry e Michael Walton; Capítulo 2 - Leonardo Gasparini; Capítulo 3 – Wendy Cunningham e Joyce Jacobsen; Capítulo 4 – Guillermo Perry e Quentin Wodon; Capítulo 5 – Kenneth Sokoloff e James Robinson; Capítulo 6 – Francisco Ferreira; Capítulo 7 – Yasuhiko Matsuda; Capítulos 8 e 9 – Michael Walton; e Capítulo 10 – David Coady e Francisco Ferreira. O relatório jamais poderia ter sido concluído sem a excelente colaboração de: Anna Crespo, nos Capítulos 1 e 3; Phillippe Leite, nos Capítulos 1 e 6; Jorge Balat, Matías Busso, Cecilia Calderón, Martín Cicowiez, Nicolás Epele, Federico Gutiérrez, Marcela Massini, Augusto Mercadier, Alejandro Támola e Julieta Trías (Centro de Estudios Distributivos, Laborales y Sociales, Universidad Nacional de La Plata), no Capítulo 2; Lucas Siga, no Capítulo 3; Rodrigo Suescun e Mariana Fajardo, no Capítulo

Page 5: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

5

4; Mayuresh Kshetramade, no Capítulo 6; Mary Fran Malone (Universidade de Pittsburgh), no Capítulo 7; e de Marcela Rubio Sánchez, nos Capítulos 8 e 9. Além dessas pessoas, Ruth Izquierdo, Adriana Rodriguez e Patricia Soto Cardenas ofereceram valioso apoio logístico durante todo o processo de elaboração do relatório. Os autores também gostariam de agradecer à dedicação de muitos profissionais do Banco Mundial, que forneceram contribuições específicas ou comentários. Entre eles citamos em particular Ana-María Arriagada, José María Caballero, Antonio Estache, Marianne Fay, Ariel Fizsbein, Vivien Foster, Daniel Kaufmann, Peter Lanjouw, Daniel Lederman, William Maloney, Ernesto May, John Redwood, Luis Serven e Mauricio Santamaría. Por fim, foi especialmente encomendado para este trabalho um grande número de estudos elaborados por Ângela Albernaz, Barry Ames, Richard Bird, Wendy Cunningham e Mauricio Santamaría, Ariel Fiszbein e Sebastian Galiani, Marina Halac e Sergio Schmuckler, Patrick Heller e James Mahoney, Valéria Pero, e Judith Tendler. Esses documentos estão arrolados no início da bibliografia. Os estudos, bem como a edição da conferência, poderão ser obtidos na Internet, no final de 2003, no site www.worldbank.org/laceconomist do Escritório do Economista-Chefe.

Page 6: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

6

Edição da Conferência. Setembro de 2003 Para ser colocado talvez no rodapé da primeira página do capítulo: Todas as tabelas e figuras mencionadas no texto, marcadas com um A, podem ser encontradas no Apêndice Estatístico, no final deste relatório.

Capítulo 1 Introdução e Resumo

Ao longo de todo o período compreendido pelos dados sobre qualidade de vida, que se encontram disponíveis, a América Latina e o Caribe (doravante denominados América Latina, neste relatório) foram as regiões do mundo que apresentaram o maior índice de desigualdade. Com exceção da África Sub-saariana, essa afirmação é verdadeira em relação à quase totalidade dos indicadores estabelecidos, desde renda ou gastos com consumo até a dimensão da influência e participação política, além da maioria dos resultados referentes à educação e saúde. Enquanto na região os 10% mais ricos usufruem de 48% da renda total, aos 10% mais pobres cabe apenas 1,6%. Por contraste, nos países desenvolvidos os primeiros recebem 29,1% da renda total, comparados a 2,5% para os 10% menos abastados.1 Os coeficientes de Gini coincidem com essas conclusões: apresentam a média de 0,522 na América Latina, nos anos 90, enquanto durante o mesmo período as médias para a OCDE, o Leste Europeu e a Ásia foram muito mais baixas: 0,342, 0,328 e 0,412, respectivamente.2 Essa tendência mostra a transferência de altas taxas de renda para os segmentos mais ricos da população em comparação às dos pobres. Na Guatemala, o coeficiente do decil mais rico em relação ao mais pobre era de 58,6 no ano 2000. No Panamá, esse índice declinou de 71,6, em 1991, para 53,5, em 2000. Mesmo o mais baixo coeficiente 10/1 da região em 2000 – 15,8 no Uruguai – é superior à maioria dos indicadores na Europa. (Por exemplo, a comparação mais próxima é o coeficiente de 12,2 na Itália.) Essas enormes diferenças na renda dos cidadãos de um mesmo país certamente implicam em diferentes graus respectivos de acesso a bens e serviços que as pessoas utilizam para satisfazer suas necessidades e desejos. No entanto, as disparidades se estendem muito além do consumo privado. Segundo Amartya Sen, existem profundas disparidades na liberdade ou capacidade de escolha que os diferentes indivíduos e grupos têm para levar a vida que escolheram para si, ou seja, fazer aquilo que julgam ser valioso. Os recursos privados e os padrões de prestação de serviços públicos afetam essa capacidade de escolha, enquanto a estrutura política e social incide sobre a possibilidade de participar de modo significativo na sociedade, influenciar nas decisões ou viver com dignidade. No tocante à educação, embora existam sistemas públicos na maioria dos países da América Latina, as disparidades nos resultados são tão evidentes quanto na renda. No México, a média de escolarização de uma pessoa no quintil mais pobre da população é de

Page 7: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

7

3,5 anos, comparados a 11,6 anos no quintil mais rico. Esses números provavelmente subestimam as reais diferenças educacionais, devido a marcantes variações na qualidade do ensino. Em muitos países, o aproveitamento educacional também difere segundo grupos de gênero, étnicos e raciais. Na maioria dos lugares, as diferenças entre homens e mulheres estão se tornando menos evidentes e apresentam até uma reversão entre grupos de jovens, mas ainda existem grandes disparidades em meio a pessoas com idade mais elevada. Na Bolívia, por exemplo, a média de escolarização a partir de 61 anos é de 4,1 anos para os homens e de 2,4 anos para mulheres.3 Os resultados da saúde também variam drasticamente ao longo da distribuição de renda, acarretando enormes impactos nas oportunidades e na qualidade de vida. No Brasil, as crianças nascidas nas famílias pertencentes ao quintil mais pobre da população apresentam três vezes mais probabilidade de morrer antes de chegar aos 5 anos do que aquelas nascidas no quintil mais rico. Na Bolívia, esse índice é quatro vezes mais alto, sendo a taxa de mortalidade das crianças abaixo de cinco anos no quintil mais inferior correspondente a 146,5 por mil nascidos vivos, ou seja, é tão alta quanto a média no Sul da Ásia. De fato, não é exagero afirmar que cada aspecto da vida é permeado por algum tipo de desigualdade. Uma família guatemalteca, cujos rendimentos a colocam no quintil mais pobre da distribuição de renda, tem em média três filhos, enquanto no quintil mais rico esse índice corresponde a 1,9. No primeiro núcleo familiar, 4,5 pessoas vivem em um cômodo, comparadas a 1,6 no segundo grupo. Na primeira família, a chance de acesso à água é de 57% e de 49% à eletricidade. As probabilidades correspondentes ao quintil mais abastado são de 92% e 93%, respectivamente. De qualquer modo em que sejam analisadas, as vidas dessas duas famílias têm muito pouco em comum. O verdadeiro significado da palavra cidadão difere para ambos os grupos. Na Guatemala, uma família pobre já experimentou, na pior das hipóteses, algum tipo de violência ou de repressão, e, na melhor das hipóteses, tem pouca consciência de sua cidadania e nas últimas décadas sofre as conseqüências do descumprimento da lei.4 Nesse País, as famílias pobres são predominantemente indígenas e vêm sendo exploradas e excluídas há muitos séculos, além de ser mínima a sua participação nas decisões locais e nacionais. Os 20% mais ricos da população são mais provavelmente brancos e seu sentimento de cidadania está em nível mais elevado. Apesar da Guatemala ocupar a extremidade superior dos países que apresentam maior desigualdade na América Latina e suas instituições políticas e sociais serem particularmente ineficientes e díspares, o panorama da maior parte da região, em termos quantitativos, é bem semelhante. É preocupante o fato de que mesmo nos países que se distinguem por uma maior eqüidade, segundo os padrões latino-americanos (como a Argentina, o Uruguai e a Venezuela), a mais recente tendência é de aumento da desigualdade, pelo menos em termos de renda. Neste relatório, o Banco Mundial estabeleceu três objetivos. Em primeiro lugar, os fatos serão determinados de acordo com a disponibilidade de dados. Os autores criaram uma série de conjuntos de dados por domicílio familiar, com a finalidade de construir um panorama atualizado das distribuições de renda e de outros indicadores da qualidade de

Page 8: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

8

vida em vinte países da América Latina. Foi examinado o padrão das mudanças no panorama de três quartos desses países durante os anos 90. Com esse procedimento, os autores não só puderam observar os níveis e as tendências das distribuições de renda ou de outros indicadores por pessoa, mas também examinaram as diferenças de raça, étnicas ou de gênero entre os grupos. Além da renda privada, os autores consideraram os bens e serviços públicos, bem como a correspondente arrecadação de impostos para financiá-los. Em segundo lugar, os autores pesquisaram as raízes históricas das causas da extrema desigualdade na América Latina e os processos atuais que as reproduzem. Esse estudo levou ao questionamento das origens sociais, culturais e políticas da desigualdade que interagiram sistematicamente com os mecanismos econômicos. O terceiro e último objetivo é o exame de algumas das opções disponíveis aos formuladores de políticas da região para romper com esse longo histórico de disparidades que caracterizou os países estudados. Com base nessas hipóteses, são sugeridas políticas e orientações que podem ajudar a reformular as economias e as sociedades de modo a torná-las mais eqüitativas, sem prejudicar a eficiência econômica. Para prepararmos esta jornada, dividimos o restante deste capítulo em três partes. A primeira levanta a questão “Desigualdade em relação a quê?” e define o âmbito da preocupação e a estrutura conceitual. A segunda parte considera a pergunta “por que devemos nos preocupar?”. Finalmente, a terceira seção fornece um roteiro e a síntese do relatório. 1.1. Estrutura conceitual O conceito de desigualdade geralmente se refere a uma medida de dispersão em uma determinada distribuição.5 A maioria das análises econômicas se preocupa com a desigualdade na distribuição de uma medida de bem-estar individual, utilizando normalmente como elemento de substituição algum indicador de renda familiar (ou despesa com consumo) per capita. Levando-se em conta que cada vez mais o bem-estar apresenta muitas outras dimensões, as disparidades são discutidas em relação a outras variáveis, como educação, saúde, segurança e acesso a serviços essenciais.6 Além disso, os autores não estão preocupados exclusivamente com o bem-estar econômico. A distribuição do poder político, ou influência em uma sociedade, também é desigual, e essas “disparidades de influência” estão profundamente entrelaçadas às diferenças econômicas. Um dos temas considerados neste relatório é que as desigualdades na participação, na influência e no poder são provocadas pelas diferenças econômicas, constituindo-se em um elemento-chave para garantir a elasticidade e adaptabilidade dessas disparidades. É possível levar em conta não somente a distribuição dos resultados (como rendimentos, indicadores de saúde ou de segurança em relação à criminalidade), mas também a distribuição dos bens e das oportunidades. As oportunidades são determinantes essenciais dos resultados. De fato, há muito tempo, a visão dos estudantes de teorias da justiça social é de que a “igualdade” e a “justiça” são definidas com mais propriedade em termos

Page 9: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

9

de oportunidades do que de renda, porque esta última depende também de uma série de características humanas variáveis, como idade, gênero, talento, habilidade física, classe social e preferências. Sen (1992) afirma que é muito importante distinguir entre “realização” e “liberdade para realizar” ao analisar a extensão e o significado normativo das desigualdades.7 Entre as realizações, o autor destaca o ser e o fazer (ou as “funcionalidades”) que constituem o bem-estar, em vez dos meios necessários para se atingir o bem-estar, como renda e recursos. Essas realizações podem variar das mais básicas funcionalidades, como por exemplo “estar bem nutrido, impedindo assim desde a incidência de óbitos evitáveis e a mortalidade prematura, a outras mais sofisticadas, como por exemplo, o respeito a si próprio, estar apto a participar da vida na comunidade, etc.”. O “conjunto de possibilidades de escolha” representa a gama de funcionalidades potenciais que um indivíduo pode realizar, ou a “liberdade em geral que uma pessoa dispõe para conseguir o seu bem-estar”. Um tema básico neste relatório é que a profunda diferença na capacidade de escolha dos indivíduos e grupos na América Latina tem origem nas interações entre patrimônio e oportunidades econômicas, forças políticas e processos socioculturais. Um aspecto dessa linha de raciocínio refere-se à avaliação moral de quais diferenças são justas. Às vezes alega-se que as disparidades nos resultados, que podem ser moralmente ofensivas ou “socialmente injustas” quando causadas pela desigualdade nas oportunidades ou nas chances proporcionadas pela vida, que estão acima do controle de um indivíduo, podem ser menos censuráveis caso sejam decorrentes de escolhas feitas levando em conta o nível de esforço – como por exemplo, estudar ou trabalhar muito em vez de dispor de mais horas de lazer – ou em relação às diferentes necessidades.8 Talvez seja útil estabelecer a diferença entre o modo como as sociedades avaliam os resultados dos pobres comparados ao restante da distribuição. Provavelmente, pode-se estabelecer um amplo consenso sobre a maior importância de qualquer resultado que reduza o número de pessoas que vivem abaixo de um nível mínimo de renda (abaixo da linha de pobreza socialmente aceita) e que garanta o acesso de todos à educação básica, à saúde e aos serviços de seguridade social (com um mínimo de qualidade). Os governos do mundo inteiro já adotaram um forte posicionamento favorável a essas questões ao se comprometerem com as Metas de Desenvolvimento do Milênio, para orientar suas próprias ações e as das organizações internacionais. Em muitos países da região, amplas consultas levaram partidos políticos, organizações não-governamentais, o setor privado e outros agentes sociais a apoiar essas metas. É mais difícil estabelecer um consenso semelhante em relação à avaliação da uniformidade dos resultados ao longo de toda a distribuição de renda. No entanto, pode ser mais fácil formar amplas coalizões favoráveis à idéia da igualdade de oportunidades, ainda que esse conceito não tenha o mesmo significado para todos e seja mais difícil de operacionalizar (ver abaixo). Em muitos seções deste relatório (principalmente nos Capítulos 4 e 7), enfatizamos a necessidade da criação de coalizões eficientes para reunir os pobres, a classe média e as elites intelectuais em torno de políticas e programas que se

Page 10: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

10

destinem a reduzir a desigualdade e, especialmente, a pobreza. Talvez seja mais fácil agrupar essas categorias se os objetivos forem definidos em termos de redução da pobreza relacionada à renda (resultados), do acesso mínimo aos serviços essenciais (resultados) e da maior igualdade de oportunidades. Neste relatório assumimos que as distribuições dos resultados e das oportunidades são importantes e fornecemos dados para ambos os casos, deixando que o leitor faça o seu próprio julgamento social. Além dos diferentes pontos de vista sobre a avaliação, há também uma razão prática para a adoção dessa abordagem. Enquanto o tratamento que se baseia na liberdade de realização, ou nas possibilidades de escolha, apresenta importantes atrativos éticos e conceituais, ele também implica em alguns desafios significativos para a mensuração dos resultados. Sen argumenta que o uso de uma análise fundamentada nas possibilidades de escolha, para avaliar a liberdade de realização, terá que se basear fortemente na mensuração das verdadeiras realizações. O desafio da medição é ilustrado por meio da aplicação de um tratamento específico para a questão das oportunidades. Este exemplo se baseia na definição de oportunidade de Roemer (1998) que considera um conjunto de circunstâncias que afetam os resultados das pessoas, mas não dependem de seus próprios esforços ou decisões, e cuja determinação está fora de seu controle. No entanto, mesmo adotando essa definição conceitual aparentemente simples, tornou-se difícil a sua operacionalidade. O Quadro 1.1 apresenta os resultados de um estudo feito no Brasil em 1996, que se constituiu em uma tentativa de identificar empiricamente a parcela da desigualdade relacionada às oportunidades. O estudo enfatiza as dificuldades metodológicas e as percepções potenciais inerentes ao exame da desigualdade de oportunidades, que respondem por uma fatia considerável do alto nível de disparidade de renda no Brasil. Quadro 1.1. Medição da desigualdade de oportunidades no Brasil A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) é o principal instrumento de pesquisa domiciliar no Brasil. Em 1996, essa pesquisa continha um conjunto suplementar de perguntas sobre o nível de escolaridade e a ocupação dos pais dos respondedores, quando estes tinham 15 anos. Por meio desses dados, Bourguignon, Ferreira e Menéndez (2003) procuram decompor o total da desigualdade de renda em um componente que se baseia na disparidade de oportunidades observadas e em um resíduo. Roemer (1998) define as oportunidades como o conjunto de circunstâncias que está fora do controle de um indivíduo. A principal questão é delimitar o que está ou não dentro da esfera de controle de uma pessoa. Ao fornecer a base para essa determinação, Bourguignon, Ferreira e Menéndez (2003) estimam uma equação de Mincer ampliada para os salários, regredindo os rendimentos do trabalho de um indivíduo sobre diversas variáveis: uma constante, raça, escolaridade dos pais (média e diferença entre os pais), ocupação do pai, região de nascimento, anos de escolarização (linear e quadrática) e uma variável simulada, caso o indivíduo tenha migrado em algum momento de sua vida. Essas regressões foram avaliadas separadamente para homens e mulheres, tendo sido utilizado o procedimento de correção do viés seletivo de Heckman na última regressão. Em ambos os casos, a amostra se restringiu aos trabalhadores com idade entre 26 e 60 anos, que vivem em áreas urbanas do Brasil.

Page 11: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

11

Em seguida, os autores classificam as duas últimas variáveis (educação e migração) no âmbito dos esforços, supondo que estavam minimamente sob controle do indivíduo. As variáveis restantes são tratadas como circunstâncias. No entanto, a educação e a migração também podem ser afetadas pelas circunstâncias (por exemplo, os pais influenciam a educação de seus filhos). Para levar esse fator parcialmente em consideração, os autores regridem a educação e a migração sobre o vetor das circunstâncias e utilizam o processo de simulação de Monte Carlo para corrigir o viés de endogenicidade da resultante. Esse procedimento trata efetivamente a educação e a migração como decorrentes em parte das circunstâncias e em parte do esforço. Os autores criaram um sistema com esta aparência:

iii

iiii

vCEuECw

+=++=

δβαln

Nesta equação, w representa os rendimentos, C é um vetor das variáveis de circunstância observadas, E é um vetor das variáveis de esforço observadas, e u e v são determinantes não observados que podem em princípio se constituir em circunstância ou esforços. O método utilizado para estimar a desigualdade das oportunidades observadas nessa configuração serve para simular a distribuição da renda prevista quando se supõe que cada uma e todas as variáveis de circunstância são iguais a uma constante (por exemplo, uma c média) em ambas as equações do sistema. A desigualdade resultante não é obviamente devida a qualquer variação nas circunstâncias observadas. Em vez disso, ela pode se originar do esforço realizado e de quaisquer circunstâncias não observadas, como a riqueza da família, que deveria ser incluída em u e v. A desigualdade de oportunidades observadas – indicada por Θ – deve corresponder à diferença entre a disparidade de renda observada e a desigualdade simulada, quando as circunstâncias são iguais para todos: ( ) ( )cCyIyI =−=Θ . Os autores testam várias especificações e hipóteses sobre a natureza do termo residual v. Eles apresentam resultados para os ganhos e a renda familiar per capita, relativos às várias suposições. A Figura 1.1, abaixo, apresenta os resultados da especificação escolhida para os sete grupos mais ativos no mercado de trabalho brasileiro em 1996. A altura da barra corresponde à desigualdade de renda observada na renda familiar per capita, conforme a medição do índice Theil-T. A parte inferior (azul) indica a desigualdade residual, depois que as circunstâncias observadas foram equalizadas. A parte superior (vermelha) corresponde, assim, a uma estimativa da desigualdade de oportunidades observadas no Brasil em 1996.

Page 12: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

12

Figura 1.1 Estimativa da desigualdade de oportunidades como parcela da desigualdade total, 1996

0,44 0,511 0,489 0,499 0,489 0,459 0,455

0,294 0,261 0,28 0,278

0,2940,229

0,363

0

0,1

0,2

0,3

0,4

0,5

0,6

0,7

0,8

0,9

b1936-40 b1941-45 b1946-50 b1951-55 b1956-60 b1961-65 b1966-70 Grupos

Thei

l-T

Desigualdade residual Desigualdade das oportunidades observadas

0,803 0,805

0,779 0,7670,753

0,684

Fonte: Bourguignon, Ferreira e Menéndez, 2003.

0,750

Mesmo que várias circunstâncias importantes (como as relações sociais e a riqueza da família, o histórico cultural ou a qualidade da primeira escola freqüentada por uma criança) não sejam explicitamente controladas, a desigualdade de oportunidades ainda parece ser muito grande no Brasil. De acordo com essa medição, esses fatores são responsáveis por 36% a 45% da desigualdade total nos grupos de pessoas com mais idade e por 33% a 39% nos grupos mais jovens. Existe uma leve, porém perceptível, tendência de declínio na parcela de disparidades relacionadas às oportunidades, que parece intimamente ligada à redução do grau de transmissão entre gerações da desigualdade educacional. ________________________________________________________________________ De modo mais geral neste relatório, os autores observam que as oportunidades estão muito intimamente vinculadas a um grupo de bens do qual os indivíduos podem dispor, bem como a um conjunto de mercados aos quais eles têm acesso e às instituições que os circundam. Por essa razão, o estudo apresenta informações sobre a distribuição dos bens individuais e do acesso a serviços e mercados, além de discutir o funcionamento de diversas instituições formais e informais, que possivelmente afetam as oportunidades das pessoas. Listamos os índices de desigualdade para uma ampla série de resultados e bens, incluindo a distribuição de renda familiar e despesas de consumo per capita, renda individual, salários por hora, horas de trabalho, acesso a diversos serviços públicos, anos de escolarização, propriedade fundiária e terra cultivada, além de outras variáveis. Os autores não tentam classificar, por exemplo, os progressos educacionais como um bem nem como resultado, porque obviamente essas referências se encaixam em ambas as categorias. A educação, como a saúde, afeta a produtividade e a remuneração do

Page 13: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

13

trabalhador e, por isso representa o capital humano. Entretanto, como Sen (2000) e outros autores sustentam, a saúde e a educação também são importantes em si, ambas como funcionalidades e determinantes das possibilidades de escolha. Essa afirmação é igualmente verdadeira para o poder e a influência: os direitos políticos intrinsecamente valiosos e, como tal, podem ser considerados resultados com um valor próprio. Todavia, eles são igualmente importantes enquanto possibilidades de escolha que influenciam o conjunto de oportunidades disponíveis aos cidadãos. Oportunidades, bens e resultados também estão relacionados de modo indefinido. Este relatório não tenta fornecer um tratamento exaustivo dos determinantes da desigualdade. Afinal, como acabamos de afirmar, mesmo uma “simples” disparidade de renda está relacionada à pulverização na distribuição de todos os rendimentos. Essa distribuição é determinada no âmbito do equilíbrio geral das complexas economias modernas, nas quais ocorrem simultaneamente as imperfeições do mercado, informações incompletas, interações estratégicas e processos políticos. Posicionando-se além da economia estática, as instituições que mediam vários desses processos econômicos têm antigas raízes históricas e refletem padrões culturais que estão profundamente arraigados. A pretensão de discutir exaustivamente as causas da desigualdade é, certamente, um atalho para o fracasso. A Figura 1.2 apresenta de modo esquemático uma estrutura geral muito simples da interação circular entre as distribuições de bens e oportunidades, poder e influência na sociedade, rendas e outros resultados. A distribuição (conjunta) dos bens e oportunidades é ilustrada na parte superior. Esses bens incluem não apenas a riqueza material e financeira, como terra ou ações, mas também as benesses do capital humano, como a educação. Os indivíduos podem herdar alguns desses bens, mas outros são produzidos ao longo da vida. A educação é de particular interesse, pois constitui para a maioria das pessoas o principal bem produtivo, que é basicamente adquirido no início da vida. Os indivíduos escolhem a maneira de utilizar esses bens nos mercados específicos que os remuneram. A poupança financeira retorna juros ou dividendos nos mercados de títulos ou de ações. A terra gera lucro por meio de aluguel ou juros, e o capital humano é recompensado nos mercados de trabalho. A combinação das receitas provenientes da remuneração dos bens nesses diferentes mercados se agrupa para formar a renda individual. A renda familiar primária depende do modo como os indivíduos se reúnem para formar o domicílio e de como as decisões são tomadas em relação ao tamanho da família e à sua composição. Finalmente, a renda secundária também é afetada pelos impostos e transferências monetárias, agrupados aqui como redistribuição pública. Esta é uma maneira muito estilizada de determinar a renda familiar per capita, mas que se mostra útil para nossas tentativas de compreender onde – ao longo da cadeia de bens, mercados, famílias, instituições e governos – alguns países latino-americanos geram mais desigualdade que outros.9 Esse processo será analisado com mais profundidade no Capítulo 6. ________________________________________________________________________ Figura 1.2. Uma estrutura conceitual simples

Page 14: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

14

Bens e Oportunidades Mercados Formação da família Instituições da Redistribuição pública governabilidade Poder Instituições sociais e Resultados (e Rendas) políticas ________________________________________________________________________ Esses processos econômicos não ocorrem em um vácuo. Em cada etapa do caminho, eles são mediados pelas instituições sociais e políticas, consideradas de modo muito amplo como detentoras das regras e normas de comportamento da sociedade, e também por instituições mais específicas que regulam formal ou informalmente os mercados ou afetam os governos.10 Nessa categoria incluímos a organização “macroinstitucional” da sociedade e dos mecanismos socioculturais, que decorrem das interações entre os diferentes segmentos em um núcleo social, principalmente aquelas entre grupos dominantes e minoritários. Como enfatizaram os sociólogos Charles Tilly e Pierre Bourdieu, os últimos são essencialmente relacionais e estão profundamente interligados com a organização da produção econômica e a estrutura de poder. O ordenamento social e os processos socioculturais constituem fontes de grandes “desigualdades de influência” nos diferentes grupos ou de disparidades em sua capacidade de moldar e influenciar suas condições de vida.11 Por sua vez, as instituições formais e informais não são imutáveis nem indiferentes à economia. A renda e a riqueza - ou o “poder econômico” – estão intimamente ligadas ao poder político, à influência e à participação social, representados aqui por meio do vínculo entre renda e poder, e mediados por instituições políticas e processos socioculturais. Na Figura 1.2, os processos econômicos na hipotenusa do triângulo e os instrumentos sociais e políticos nos outros lados do triângulo resumem de modo sucinto a grande tradição da economia, das ciências políticas e da economia política de forma bastante reduzida. Essa figura é considerada em mais detalhe nos Capítulos 6 e 7, e os aspectos relevantes das diferenças entre os grupos (de acordo com raça, etnicidade e gênero) são discutidos no Capítulo 3. Além disso, o poder pode ser utilizado para moldar as realidades econômicas de várias formas diferentes. Apesar da mágica da mão invisível, os mercados nunca funcionam realmente de modo independente das instituições reguladoras ou das atividades intencionais dos diferentes grupos que detêm maior ou menor poder político sobre o

Page 15: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

15

mercado – um tema enfatizado por Adam Smith.12 Em um nível mais básico, é necessária a aplicação da lei e da ordem para garantir os direitos de propriedade das pessoas que vendem e das que compram. Em um nível mais complexo, vários mercados (especialmente os financeiros e os de “conhecimento intensivo”) estariam muito incompletos, ou ausentes, na falta de instituições reguladoras ou de aplicação da lei, que asseguram os direitos dos credores, investidores ou inovadores. Mesmo no contexto da visão mais minimalista dos governos (ou seja, na tradicional perspectiva de Hobbes, Locke e Nozick), sempre houve espaço para um estado “vigilante”. À medida que os produtos primários e os mercados nos quais eles são comercializados tornam-se cada vez mais complexos – passando, por exemplo, da venda de maçãs em um mercado rural ao crédito para microempresas ou aos derivativos financeiros – também aumenta a necessidade de proteger os direitos de propriedade e de corrigir falhas de informação e outras deficiências dos mercados. As agências reguladoras das finanças, os fiscais das condições laborais nos mercados de trabalho e os investigadores antitruste são exemplos de instituições da governabilidade por meio das quais os sistemas políticos fornecem uma estrutura para as atividades dos mercados e criam os processos econômicos e seus resultados. No Capítulo 8, são considerados alguns dos mecanismos políticos disponíveis para aumentar a igualdade nos mercados e em outras instituições. A política também afeta a distribuição dos bens, por meio da redistribuição direta (como a reforma agrária ou os processos de privatização), dos impostos e dos subsídios (a provisão direta de serviços de educação e saúde, por exemplo) ou de regulamentações que facilitam o acesso à informação, ao crédito e ao seguro. Em geral, os incentivos econômicos oferecidos aos agentes são influenciados pelas forças políticas, por meio de mecanismos que podem variar de impostos e subsídios à proteção dos direitos de propriedade e do ambiente geral de investimento. Por sua vez, os incentivos econômicos estabelecem taxas de acumulação diferentes, que também influenciam o modo de evolução da distribuição dos bens. Algumas opções de políticas relacionadas a essa distribuição são discutidas no Capítulo 9. Por fim, os governos afetam inevitavelmente a distribuição da renda familiar disponível em vista da necessidade de financiar suas operações. Os impostos servem para arrecadar a receita que mantém as instituições reguladoras discutidas acima, mas também podem financiar vários serviços e transferências redistributivas, em espécie (como a provisão de educação ou assistência médica gratuita) ou em dinheiro (por exemplo, o seguro-desemprego ou diversos subsídios em dinheiro). O Capítulo 10 considera algumas opções de políticas nesse setor. Ao tratar as políticas como provenientes de um determinado contexto social, cultural e político, que reflete uma distribuição específica de poder, influência, distribuições subjacentes de renda e riqueza, os autores reconhecem que as políticas não são projetadas a partir do nada. A utilidade dessa contribuição ao debate político será aperfeiçoada pelo reconhecimento de que o contexto da sociedade impõe importantes restrições sobre o que pode ser feito, e ajuda a moldar as preferências sobre os resultados esperados. Como

Page 16: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

16

indica a Figura 1.2, os programas que emanam das instituições sociais e políticas influenciam as oportunidades econômicas disponíveis às pessoas e os processos de mercado dos quais elas participam. Essa “causalidade circular” entre riqueza, renda e poder, mediada pelas instituições, evolui ao longo do tempo e da história. A posição de um país em um momento específico é essencialmente determinada pelas distribuições iniciais dos bens, assim como pela história das instituições que existem nos dias de hoje. O Capítulo 5 apresenta um breve estudo das raízes históricas da desigualdade na América Latina. Embora seja essencial reconhecer a importância da história e das instituições políticas e sociais existentes, para evitar falhas nos projetos, o excesso de fatalismo é incorreto e contraproducente. A proposta de programas sem a compreensão da história e do contexto específico leva com freqüência ao fracasso. No entanto, a afirmação de que nenhum programa deve ser sugerido porque o seu surgimento se dará de modo endógeno, a partir de instituições historicamente predeterminadas, desconhece o importante papel da ação social e política intencional nas significativas mudanças institucionais e políticas, o que pode levar ao fatalismo e ao imobilismo. O tema central deste relatório é que a causalidade circular que sustenta a elasticidade da desigualdade pode ser alterada pelas forças econômicas e pela influência social dos diferentes grupos (ver em particular o Capítulo 7). Os autores acreditam que os formuladores de políticas dos países poderão buscar uma ruptura com a longa história de disparidade persistente na elaboração de programas que promovam a eqüidade em todos os setores da sociedade. Eles também crêem que as chances de sucesso são maiores se esses elaboradores de políticas tiverem uma profunda compreensão histórica das instituições e das normas que estruturam as sociedades. 1.2. As conseqüências da grande desigualdade Antes de embarcar em um volume inteiro sobre a desigualdade, talvez valha a pena fazer uma pausa e perguntar: “Por que devemos nos preocupar?”. A missão do Banco Mundial é ajudar os países a eliminar a pobreza. Contudo, a pobreza e a desigualdade, ainda que relacionadas, são problemas muitos diferentes. Por esse motivo, é legítimo indagar por que o Banco Mundial deveria se interessar pela desigualdade. Estas são as três principais razões:

• A população e os governos nos países clientes do Banco Mundial não gostam da desigualdade – tanto de renda quanto de oportunidades.

• Para um determinado nível de renda média, um patamar mais elevado de desigualdade significa, em geral, maior pobreza. Para um crescimento específico na renda média, uma desigualdade maior implica numa taxa mais lenta de redução da pobreza, o que é ainda pior.

• As evidências sugerem que, além de uma redução mais lenta da pobreza para cada ponto percentual adicionado à taxa de crescimento da economia, a grande desigualdade de oportunidades e de renda também diminui o índice de

Page 17: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

17

crescimento. No limite, a combinação desses dois efeitos pode fazer com que os países com altos índices de desigualdade considerem difícil, ou mesmo impossível, escapar da miséria.13 Existem também comprovações de que a desigualdade está associada à maior predominância de conflito e violência, o que pode impedir uma economia de responder de modo eficaz aos choques macroeconômicos.

Cada uma dessas três questões é discutida abaixo. A desigualdade é considerada intrinsecamente ruim Tanto em economia quanto na filosofia política, existe uma suposição consensual de que um incremento unitário na renda de um pobre deve ser considerado mais valioso do que o mesmo aumento incidindo sobre a receita de uma pessoa mais rica. Essa visão normativa foi inicialmente associada aos pensadores utilitaristas, datando da época de Jeremy Bentham, que atribuiu esse fato à propriedade de que as utilidades aumentam com a renda e o consumo, porém a uma taxa decrescente. Essa propriedade da “utilidade marginal declinante” é coerente com a preferência pela igualdade, mas não é sua única causa. Além dessa consideração, há também o consenso entre os economistas sobre os fatores do bem-estar social que atribuem mais valor aos aumentos das utilidades (e, por isso, da renda) para os pobres do que para os ricos1. Outros pensadores, como John Rawls, extraíram motivos (mesmo em graus mais elevados) de aversão à desigualdade em diferentes fontes éticas e filosóficas. Embora seja motivada pela ética, o fato é que a aversão à desigualdade ou, inversamente, a preferência pela eqüidade tem predominado na perspectiva (embora sem consenso) da filosofia política e das teorias de justiça social. As evidências recentes sugerem que esse ponto de vista não se restringe ao debate intelectual refinado. As pesquisas de opinião sustentam a visão de que a maioria dos latino-americanos está descontente com a extensão da desigualdade que existe na região, o que é consistente com o que os economistas chamam de funções “côncavas” do bem-estar social. Em 2001, os resultados de uma enquete conduzida em toda a região pelo Latinobarómetro, um projeto de opinião pública estabelecido no Chile, indicam que, em média, 89% dos latino-americanos consideram a distribuição de renda em seus países injusta ou muito injusta. Com exceção da Venezuela, não houve nenhum país onde menos de 80% das pessoas inquiridas tenha respondido afirmativamente a essas categorias. A Figura 1.3 mostra os resultados disponíveis em 17 países.

1 Em jargão técnico sobre a “concavidade” das funções do bem-estar social

Page 18: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

18

Figura 1.3: Percepções sobre a eqüidade da distribuição de renda na América Latina

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Venezuela Uruguai

Peru Paraguai

Panamá Nicarágua

México Honduras

Guatemala El Salvador

Equador Costa Rica

Colômbia Chile Brasil

Bolívia Argentina

Média

Muito justa Justa Injusta Muito injusta

* Fonte: Latinobarómetro (2001). Respostas à pergunta: "Você considera a distribuição de renda … ?"

Esses altos níveis de desaprovação da distribuição de renda causam preocupação. Eles fazem com que a grande maioria da população pense que a divisão da renda nacional é injusta. Não seria surpreendente se esse ponto de vista também implicasse em uma maior falta geral de sentimento de propriedade ou de confiabilidade em todo o conjunto de instituições responsáveis pela distribuição de renda. Na verdade, outras pesquisas de opinião indicam que o nível de credibilidade das instituições na América Latina é excepcionalmente baixo. A primeira razão pela qual o Banco Mundial deve se importar com a desigualdade é bem simples: os clientes do Banco compartilham essa mesma preocupação. A desigualdade torna as pessoas infelizes e reduz sua confiança nas instituições nacionais. Uma grande desigualdade dificulta a redução da pobreza A segunda razão pela qual os governos e as instituições internacionais devem se preocupar com os altos níveis de desigualdade é que eles estão associados a elevados índices de pobreza. Essa afirmação é verdadeira em dois sentidos diferentes, porém relacionados entre si. Em primeiro lugar, a carência crescerá quando a linha de pobreza em uma determinada sociedade estiver abaixo da distribuição da renda média e a desigualdade aumentar, de modo que (a) a média se mantenha inalterada, e (b) os rendimentos que estiverem abaixo da linha de pobreza sejam afetados pelas transferências de renda. A Figura 1.4 ilustra essa situação: se a sociedade se deslocar da distribuição menos desigual A para outra mais desigual B, e ambas apresentarem a mesma média, a incidência da pobreza aumentará da área C para C + D.

Page 19: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

19

Pode-se questionar se o exemplo acima não é um tanto fabricado no sentido de que a dinâmica distributiva nunca ocorre de modo tão simples, no qual a desigualdade se altera e a renda média se mantém constante. Em vez disso, prossegue a argumentação, deve-se observar os reais indícios históricos que incidem sobre as mudanças distributivas, com o objetivo de identificar o efeito da desigualdade sobre as alterações na pobreza. Na verdade, esse é o procedimento aplicado por Bourguignon (2002) ao considerar uma amostra de 114 episódios em 50 países. Nesse amplo conjunto de mudanças na renda ou na distribuição dos gastos em vários países do mundo em desenvolvimento, o estudo confirma as conclusões anteriores de que taxas mais altas de crescimento econômico estão diretamente associadas a maiores índices de redução da pobreza.14 Contudo, o trabalho também conclui que esse impacto do crescimento sobre a pobreza (ou seja, a elasticidade de crescimento negativa da redução da pobreza) torna-se menor em valor absoluto à medida que aumenta a disparidade inicial. Em outras palavras, os países que apresentam maior desigualdade transformam um ponto percentual de aumento na renda familiar média em uma redução menor na incidência de pobreza, o que não ocorre nos países onde existe mais eqüidade. Inversamente, para se obter um declínio de um por cento no número de pessoas que vivem na pobreza, os países que apresentam maior desigualdade precisam crescer mais rápido do que os mais igualitários. Bourguignon (2002) estabelece analiticamente esse impacto negativo da desigualdade sobre a taxa de redução da pobreza no caso das distribuições log-normais, que constituem a forma mais comum de aproximação funcional para as distribuições de renda empíricas. Ao mesmo tempo, o autor encontra um forte apoio empírico (em várias especificações de modelos alternativos) para a relação negativa em sua amostra. Com base no mesmo conjunto de dados, a Figura 1.5, abaixo, ilustra o resultado básico: depois de controlar os níveis iniciais de renda, a elasticidade de crescimento da redução da pobreza aumenta (ou seja, torna-se menos negativa, sendo necessário mais crescimento para reduzi-la) juntamente com o coeficiente de Gini. O resultado é significativo em termos estatísticos no nível correspondente a 10%.

Page 20: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

20

Bourguignon (2002) conclui que “… a redistribuição de renda cumpre essencialmente dois papéis na redução da pobreza. A redistribuição permanente dos rendimentos diminui a pobreza de modo instantâneo, por meio do efeito descrito na Figura 1.3. Todavia, também contribui tanto para um aumento permanente na elasticidade de redução da pobreza, no que se refere ao crescimento, quanto, conseqüentemente, para acelerar sua diminuição, de acordo com uma determinada taxa de crescimento econômico” (p.14, enfatizar o original).

Figura 1.5: As elasticidades de crescimento tornam-se menos negativas com adesigualdade

-8

-6

-4

-2

0

2

4

6

8

25 30 35 40 45 50 55 60 65

Coeficiente de Gini

Elas

ticid

ade

ajus

tada

Εi = -2,2 + 0,05Ginii +εi

Valor P do Gini: 0,09

Nota: A elasticidade ajustada Ei é o resíduo de uma regressão simples da elasticidade empírica sobre a renda familiar média inicial utilizada na pesquisa.

Fonte: Bourguignon (2002), a amostra está incompleta em relação aos valores –10, +10 da elasticidade empírica.

Em um exercício semelhante, López (2003) corrobora a conclusão de que o valor absoluto da elasticidade de crescimento teórica da redução da pobreza (de novo supondo uma situação log-normal) diminui proporcionalmente à desigualdade e ao coeficiente entre a linha de pobreza e a renda média. Esses resultados são mostrados no primeiro painel da Tabela 1.1, abaixo. O segundo painel revela que a dimensão do efeito direto (isto é, instantâneo) da desigualdade sobre a pobreza também cai de acordo com a disparidade inicial. A Figura 1.3 representa o efeito côncavo da redução da desigualdade sobre a pobreza.

Page 21: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

21

LP a 0,3 0,4 0,5 0,6 0,33 -3,9 -2,1 -1,3 -0,8 0,50 -2,8 -1,6 -1,0 -0,7 0,67 -2,0 -1,2 -0,8 -0,5 1,00 -1,2 -0,8 -0,5 -0,4

LP a 0,3 0,4 0,5 0,6 0,33 5,2 3,3 2,4 2,0 0,50 2,5 1,7 1,3 1,2 0,67 1,2 0,9 0,8 0,8 1,00 0,2 0,2 0,3 0,4

a Linha de pobreza como parcela do PIB per capita * Fonte: López (2003)

Gini

Crescimento

Desigualdade

Tabela 1.1: Elasticidades teóricas da pobreza

Gini

A desigualdade impede o processo de desenvolvimento O terceiro motivo pelo qual as instituições que promovem o desenvolvimento devem se preocupar com a desigualdade é o indício de que essa situação pode provocar conseqüências negativas para todo o mecanismo do desenvolvimento e inclusive desacelerar o aumento das taxas de crescimento econômico. De fato, a desigualdade afetará possivelmente várias metas e processos de desenvolvimento – como a capacidade de resolver conflitos sem a utilização da violência e a habilidade de administrar com eficiência os choques agregados. Por isso, os efeitos sobre o crescimento devem ser considerados junto a outros aspectos que se inserem em uma categoria mais ampla dos impactos da falta de eqüidade sobre esse processo. Passemos ao estudo do crescimento econômico. Afinal, como na célebre frase de Robert Lucas: “Quando se começa a pensar no [desenvolvimento econômico], é difícil passar a outro assunto.”15 Enquanto nos anos 1960, 1970 e 1980 a maior parte dos estudos sobre crescimento econômico ignorava as considerações sobre distribuição da renda e da riqueza, nos últimos dez anos este assunto voltou ao centro das preocupações relacionadas ao desenvolvimento (Atkinson, 1997). Como ainda não existe um consenso sobre essa questão, é mais justo dizer que a opinião dos economistas tende para a visão de que um alto nível de desequilíbrio na renda ou nos bens está relacionado, por causalidade, a baixas taxas de crescimento da renda média. Existem duas principais razões conceituais para que isso ocorra. Em primeiro lugar, se os mercados de seguros ou de crédito apresentarem imperfeições, é possível que as pessoas dependam de sua riqueza inicial para tomar importantes decisões de investimento. Nesse contexto, talvez a população mais pobre não possa investir em projetos sociais eficientes

Page 22: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

22

(ou seja, lucrativos), ao mesmo tempo em que os indivíduos mais abastados recebem um ganho menor em relação ao dólar marginal de sua riqueza. As imperfeições no mercado de crédito se referem precisamente às razões das falhas na intermediação, o que impede que os ricos emprestem aos pobres e, com isso, possibilitem a ambos os grupos obter ganhos mais elevados. Os economistas se referem a essa situação – na qual ambas as partes podem auferir lucros sem o prejuízo de nenhuma delas – como alocação ineficiente de Pareto. Por que ocorreriam essas falhas nos mercados de crédito? Em grande parte porque os credores não dispõem de todas as informações que gostariam de ter sobre os tomadores de empréstimo e também porque os contratos podem não ser totalmente cumpridos. Como o custo de proteção dos contratos de crédito pode ser alto, as taxas de juros devem ser mais elevadas para os mutuários do que para os credores. Essa diferença pode implicar numa redução dos pedidos de empréstimo feitos pelas pessoas mais pobres. Se alguns projetos (como a educação de uma criança) necessitarem de investimentos globais mínimos, o resultado poderá ser um nível mais baixo de investimento agregado e um equilíbrio geral ineficiente (Galor e Zeira, 1993). As imperfeições do mercado de crédito também podem se manifestar por meio de requisitos colaterais. Se o montante dos empréstimos aumentar devido à caução disponível para um agente, os pobres ficarão mais uma vez em desvantagem. Algumas pessoas talvez não possam iniciar projetos com expectativa positiva de ganhos sociais, inclusive investimentos em capital humano, terra, moradia e capital físico, que levem à ineficiência. Na verdade, se muitos indivíduos se encontrarem nesse caso, poderá haver uma redução no índice salarial agregado, com outras implicações de longo prazo para o equilíbrio da economia (Banerjee e Newman, 1993). Uma terceira variável nesse contexto é a de que as pessoas que mais necessitam de empréstimos (ou seja, os pobres) se deparam com a iminência de uma alta dívida e se sentem muito desmotivadas a implementar seus projetos. Os credores racionam excessivamente os grandes empréstimos porque pode ocorrer o efeito de “comprometimento moral” em suas iniciativas creditícias (Aghion e Bolton, 1997). Argumentos semelhantes explicam como podem ser impostas restrições à participação dos mais desprovidos nos mercados financeiros e de seguros. Em resumo, os economistas criaram vários modelos em que a combinação de mercados financeiros imperfeitos e distribuições de riqueza desiguais levaram a resultados ineficientes, na melhor das hipóteses. A especificidade desses mercados pode variar, mas a questão essencial é que a falta de eqüidade gera alocações de recursos que não permitem aos pobres dispor dos meios para implementar projetos com expectativa de retorno social muito elevado, caso fossem realizados. Ao mesmo tempo, as pessoas com alto nível de renda recebem ganhos marginais mais baixos sobre a sua riqueza. Além disso, a desigualdade de renda e de riqueza, combinada com mercados financeiros ineficazes, também limitará a capacidade dos pobres de adquirir bens, como capital humano, terra e moradia, o que diminuirá suas oportunidades futuras e a possibilidade de reduzir o consumo quando ocorrerem grandes choques econômicos. Esses efeitos indiretos também tornarão menor o crescimento e o bem-estar de modo geral.

Page 23: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

23

A segunda razão conceitual que explica por que a desigualdade desacelera o crescimento envolve questões ligadas à economia política. Nas sociedades com altos graus de concentração de poder e riqueza, as elites podem ter mais liberdade de escolher as estratégias que beneficiam a si próprias em detrimento dos grupos de classe média ou de pobres. Na literatura de economia esse conceito tem sido tratado com freqüência em termos dos vínculos entre as falhas do mercado de crédito discutidas acima, que devem ser corrigidas por meio de ação pública eficiente. O custo privado da educação, por exemplo, pode ser reduzido de modo considerável (embora nunca eliminado) por várias ações do governo, como a oferta de ensino público gratuito, de boas estradas ou de transporte público até as escolas. Contudo, nas sociedades desiguais, nas quais o poder político está ligado à riqueza, talvez seja menos provável a escolha de programas que reduzam essas deficiências do que a opção pela alocação de recursos escassos para usos alternativos. Essa utilização indevida pode incluir o consumo privado dos ricos (por meio de impostos mais baixos) ou gastos públicos com outros programas que não alcancem os pobres (Bénabou, 2000). Um estudo inspirado numa corrente da economia política latino-americana caracteriza os vínculos entre as desigualdades política, de riqueza e de renda (Ferreira, 2001) da forma que se segue. Desigualdade de riqueza significa que algumas crianças freqüentam melhores escolas privadas, enquanto outras somente podem se matricular em escolas públicas de pior qualidade. As crianças que dependem do ensino público entram no mercado de trabalho com nível menos elevado de capital humano e, assim, recebem salários menores. Se as decisões sobre gastos públicos forem influenciadas pelos rendimentos, a real desigualdade de renda provocada pela grande disparidade educacional levará, por sua vez, a resultados políticos nos quais uma minoria mais rica e melhor preparada bloqueará as votações por maiores financiamento para as escolas públicas. O autor mostra que existem diversos equilíbrios em jogo nesse sistema, que fazem com que as sociedades onde a desigualdade de riqueza inicial é menor acabem sendo mais igualitárias do que aquelas que apresentam níveis de disparidade mais elevados. Além disso, uma mudança no regime político que leve a uma menor influência da renda sobre as decisões (ou seja, um processo de democratização como os que são discutidos no Capítulo 7) poderia implicar em uma mudança de equilíbrio nesse modelo. O resultado seria o deslocamento de um estado de menor bem-estar com elevada desigualdade para outro no qual predominassem a desigualdade e o bem-estar. Os mecanismos de ação utilizados pelas elites, que não atendem aos interesses de toda a população, podem ser mais difusos do que de fácil detecção nesses modelos econômicos. Uma linha de pensamento na ciência política e na sociologia – que é relevante para algumas partes deste relatório – estabelece que as elites ajudam a formar e perpetuar estruturas institucionais que se caracterizam pela combinação de governabilidade, pouca prestação de contas e níveis mais elevados de corrupção. Essas estruturas institucionais deficientes, em vez de representarem uma evolução organizacional imatura, podem ser funcionais para os ricos (Heller e Mahoney, 2003). Onde as instituições são mais fracas,

Page 24: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

24

os pobres sofrem mais, porque os ricos podem usar seu poder político e sua influência financeira para defender seus interesses (Glaeser, Scheinkman e Schleifer, 2002). Esses processos provocam fortes impactos adversos no crescimento de modo geral e em outros aspectos do processo de desenvolvimento. Os seguintes dados sustentam a hipótese de que uma grande desigualdade é prejudicial ao crescimento e à eficiência? A maioria dos estudos encontra um coeficiente negativo para a desigualdade inicial quando esse aspecto está incluído como uma variável explicativa nos modelos empíricos do crescimento. Ao regredir a taxa média de crescimento correspondente ao período de 1960-1985 sobre os coeficientes de Gini para renda e terra em torno de 1960, Alesina e Rodrik (1994) encontraram coeficientes significativos em termos estatísticos para ambas as categorias. Persson e Tabellini (1994) utilizam uma medição alternativa: a parcela de rendimentos acumulada no quintil intermediário da distribuição de renda como um substituto da igualdade. O coeficiente relativo a essa variável era estatisticamente expressivo e positivo, o que é compatível com os resultados de Alesina e Rodrik. Embora Perotti (1996) utilize um conjunto maior de países e faça testes sobre outras especificações, os resultados permanecem expressivos. Mais recentemente, esse consenso incipiente foi desafiado por Forbes (2000) com base na análise de um novo grupo de dados conhecido como conjunto de dados de “alta qualidade” de Deininger e Squire.16 Forbes encontrou uma relação positiva entre a desigualdade defasada e o crescimento. Contudo, existem várias razões para que essas descobertas, embora importantes, continuem a representar um ponto de vista minoritário entre os economistas. Em primeiro lugar, como a própria autora indica, esse estudo é diferente dos demais porque considera o efeito da desigualdade defasada no tempo em vez de um nível de desigualdade inicial fixa. Por esta razão, o impacto da interpretação tem um efeito de prazo mais curto. Em segundo lugar, foram levantadas questões sobre o conjunto de dados e a técnica econométrica empregada (ver Aghion et al., 1999). Por fim, outros estudos continuaram a encontrar coeficientes negativos expressivos para as medidas de desigualdade de patrimônio e riqueza nas regressões do crescimento. Por exemplo, Birdsall e Londoño (1997) utilizam um subconjunto dos dados de Deninger-Squire e concluem que “as desigualdades iniciais na distribuição de terra e de capital humano provocam um nítido impacto negativo sobre o crescimento econômico e que os efeitos são quase duas vezes maiores para os pobres do que para a população como um todo” (p.35). López (2003) adota uma abordagem econométrica semelhante à de Forbes e aos dados de Deininger-Squire. Ao considerar a natureza simultânea da determinação da dinâmica do crescimento e da desigualdade, ele não encontrou nenhum sinal de efeito do crescimento sobre a disparidade (acompanhando o trabalho de Ravallion e Chen, 1997, e de Dollar e Kraay, 2002), mas indícios estatísticos significativos de que a desigualdade inicial reduz o crescimento. Além disso, parece que os efeitos negativos de um alto nível de desigualdade sobre o desenvolvimento econômico não se restringem à eficiência e ao crescimento, embora esses aspectos sejam importantes. Uma visão mais abrangente do desenvolvimento inclui muito mais do que resultados per capita, levando-se em consideração, por exemplo, a

Page 25: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

25

habilidade institucional de um país em enfrentar choques econômicos e suas conseqüências, como a mudança nas relações de troca ou em uma importante taxa de juros externa. Rodrik (1999) sugere que os países que sofrem de divisões sociais mais difusas – de natureza étnica ou racial, de renda ou de classe – parecem não se ajustar aos grandes choques, bem como outras sociedades mais coesas e igualitárias. O mecanismo implícito nessas situações é que as instituições responsáveis pelo compartilhamento das cargas de ajuste funcionam pior nas economias em que as distribuições são mais desiguais. Para compreender o processo de ajuste ao primeiro choque de preços do petróleo em 1973, Rodrik (1999) regrediu a diferença entre a taxa de crescimento per capita durante os períodos de 1975–1989 e de 1960–1975. Ele encontrou um coeficiente negativo expressivo relativo à variável simulada correspondente à América Latina, sugerindo que a região sofreu mais com o choque (em termos de redução do crescimento ex post) do que os países desenvolvidos (ou mesmo que o Leste Asiático). Interessante é que esse efeito desaparece (ou seja, o coeficiente se torna insignificante) somente quando três aspectos específicos são controlados: a desigualdade de renda nos anos 70, a desigualdade na posse da terra e a taxa de homicídios, que servem como um substituto geral da predominância da violência ou da ineficiência na solução de conflitos em uma sociedade.17 Esse resultado é interpretado como uma indicação de que o alto índice de desigualdade na América Latina (quando comparado ao do Leste da Ásia, por exemplo) é em parte responsável na região pelo desempenho mais baixo do ajuste aos graves choques provocados pelas mudanças nas condições comerciais dos anos 70. As instituições não conseguiram fechar suas contas devido à incidência dos custos do ajuste. Nesse interim, aumentaram os déficits fiscal e de conta corrente, que representaram a causa das resultantes crises da dívida dos anos 80. Os Capítulos 5 e 7 detalham o vínculo entre um alto nível de desigualdade e instituições ineficientes, que pode parecer tênue nesse estágio e que é tratado de forma muito resumida em Rodrik (1999). Nesses capítulos, discute-se que as instituições latino-americanas, em diversas áreas, são fracas e caracterizadas por estruturas de poder desiguais. Esses aspectos tendem a acarretar níveis mais desfavoráveis de desenvolvimento e a perpetuar seus resultados desiguais. Retornando por um momento ao significado da variável correspondente à taxa de homicídios nas especificações de Rodrik, é importante observar que não é uma coincidência o fato dessa variável simular o efeito das variáveis de desigualdade omitidas na regressão do crescimento. Os indícios em vários países sugerem que uma grande disparidade está associada de modo expressivo e positivo à predominância da violência. Fajnzylber, Lederman e Loayza (2000) regridem as taxas de homicídio (do banco de dados da Organização Mundial de Saúde) sobre a desigualdade de renda (medida pelo coeficiente de Gini) e sobre diversas variáveis de controle, em um conjunto seletivo de dados temporais de cerca de 40 países e 140 a 190 observações (dependendo da especificação). Os resultados mostram que a desigualdade de renda é sempre positiva e

Page 26: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

26

muito significativa, e que assim permanece mesmo quando a disparidade educacional e a polarização de renda são acrescentadas como controles. O conflito social e a violência pessoal estão associados a níveis mais altos de disparidade, especialmente quando as instituições que administram o conflito e o estado de direito são ineficientes. Conseqüentemente, o balanço das evidências indica que os altos níveis de desigualdade de rendimentos e de riqueza observados na América Latina levam às seguintes situações:

• São considerados injustos pela grande maioria da população da região. • Desaceleram o ritmo do combate à pobreza na região por meio da diminuição da

elasticidade de crescimento da redução da pobreza. • Desaceleram o crescimento econômico e o próprio desenvolvimento. • Possivelmente impedem a habilidade da região em administrar a volatilidade

econômica e pioram a qualidade de suas respostas macroeconômicas aos choques que, infelizmente, continuam muito freqüentes.

• Aumentam a incidência de crimes violentos. Estas são as principais razões da importância em compreender melhor a desigualdade. A maioria dos habitantes e dos governos da região considera os níveis de desigualdade latino-americanos excessivamente altos. Eles gostariam de reduzi-los, tanto em termos de renda quanto de oportunidades. Além disso, essa diminuição provavelmente ajudaria os formuladores de políticas a se tornarem mais eficientes no combate à pobreza e na promoção de um desenvolvimento econômico mais abrangente. 1.3 Visão geral do relatório O restante deste relatório é dividido em três partes que detalham cada um dos objetivos descritos acima. A Parte I estabelece as características básicas da desigualdade na América Latina, levando em consideração a disponibilidade de dados. Como foi mencionado anteriormente, esta seção se baseia em 52 conjuntos de dados domiciliares de 20 países, compilados de 1989 a 2001. Para criar esses conjuntos de dados, mais de 3,6 milhões de pessoas foram entrevistadas por órgãos responsáveis pelas estatísticas nacionais e pelo Censo. As perguntas enfocaram as características demográficas, o estado da educação e da saúde, as ocupações e a renda, a família e os padrões de vida, o acesso aos serviços públicos e, em muitos casos, a propriedade. Além dessa fonte primária de dados, a equipe de pesquisadores para o relatório consultou uma extensa bibliografia de economia, sociologia e ciências políticas sobre a desigualdade na América Latina. Embora o relatório utilize de forma criteriosa os melhores dados disponíveis sobre a desigualdade na América Latina, é importante enfatizar as contínuas deficiências nas informações. Apesar do tradicional profissionalismo dos órgãos nacionais de estatística, existem imprecisões específicas nas pesquisas domiciliares da região. Por exemplo, a maioria das enquetes indaga sobre a renda auferida por uma pessoa, em vez de informar seus gastos. A renda é um indicador menos confiável de bem-estar material do que a despesa, devido à sua volatilidade intrínseca e à maior probabilidade de ocorrerem problemas de medição. Existem também as falhas bem conhecidas de adulteração dos

Page 27: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

27

índices, abaixo da realidade ou em menor quantidade, especialmente da renda e, de modo mais geral, não são obtidos nas pesquisas os dados relacionados aos domicílios mais ricos. Em teoria, os indicadores da pesquisa poderiam fornecer uma visão acima ou abaixo do nível real das desigualdades materiais ao longo do tempo. Essas questões relativas às informações constituem uma significativa agenda de trabalho futura, porque a exatidão dos dados é essencial tanto para a análise técnica quanto para o debate público. Esse aspecto é de particular importância para muitos países do Caribe. Apesar dessas advertências, os autores consideram que existem dados comparativos suficientes, referentes a períodos e a vários países, para se chegar a conclusões sobre o padrão e as tendências da desigualdade. O Capítulo 2 representa uma tentativa de resumir os dados provenientes de diferentes fontes, enfocando as distribuições de acordo com o seu tamanho e a freqüência. Em outras palavras, são apresentadas informações sobre as distribuições de diversas variáveis – como renda familiar per capita, valor do salário por hora, horas de trabalho, acesso à água encanada e taxas de vitimização – entre indivíduos ou famílias, que estão classificados do mais pobre para o mais rico, independentemente de outras características, como gênero, raça ou filiação política. Foram obtidos dois resultados principais. Em primeiro lugar, a desigualdade de renda (ou seja, o consumo de bens privados) é alta na América Latina, de acordo com os padrões internacionais e vem aumentando muito mais, em média, durante as últimas três décadas. No entanto, durante os anos 90, ocorreu uma leve desaceleração no ritmo dessa elevação, ficando abaixo dos aumentos nas economias de transição (embora ainda mais alta do que os índices relativos às economias asiáticas e da OCDE). Durante esse período, surgiu uma tendência convergente de disparidade na América Latina, ocorrendo uma queda nas taxas referentes às economias que apresentam os mais elevados índices de desigualdade (Brasil) e um aumento em relação a algumas economias originalmente caracterizadas por uma menor disparidade, como o Uruguai, a Venezuela e, de modo mais marcante, a Argentina. A segunda tendência mostra aumentos pronunciados no acesso aos serviços públicos (como eletricidade, telefones e água), bem como em alguns dos indicadores não-monetários de bem-estar e da capacidade de escolha (como média de anos de estudo, índices de alfabetização, expectativa de vida ao nascer e mortalidade infantil). Essas melhorias corroboram o ponto de vista daqueles que afirmaram que os anos 90 (e, de algum modo, mesmo os anos 80) não foram uma década perdida em todos os sentidos: muitos indicadores de bem-estar não-monetários continuaram a melhorar em vários países da região. Além disso, em muitos casos, é possível argumentar que, de fato, as melhorias decorreram das iniciativas públicas, nos casos em que houve provisão direta do Estado e uma privatização bem planejada.18 Embora a abordagem “anônima” implícita na análise da freqüência das distribuições dos indivíduos possa ser informativa, a pobreza e a desigualdade na América Latina apresentam importantes características relacionadas a grupos. Em particular, as disparidades raciais e étnicas têm profundas raízes históricas no início dos períodos

Page 28: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

28

coloniais, quando a demanda de mão-de-obra dos colonizadores europeus foi atendida por meio da opressão aos indígenas americanos ou pela importação em larga escala de escravos africanos.19 Além disso, as culturas dos vários grupos que formaram a América Latina estavam historicamente associadas a significativas diferenças de gênero. O Capítulo 3 aborda essas desigualdades com base em grupos diretamente relacionadas a raça, etnia e gênero. O capítulo avalia a literatura existente sobre este assunto e aborda determinados casos relacionados à raça (como no Brasil e na Guiana) ou à etnicidade (na Bolívia e na Guatemala), que se constituíram em fatores relevantes por meio dos quais pode-se pesquisar a estrutura complexa das disparidades étnicas e de gênero. Os autores concluem que as diferenças étnicas e de raça ainda são importantes para determinar os desequilíbrios no bem-estar e na capacidade de escolha, apesar de séculos de miscigenação dos grupos. Na maioria das sociedades sobre as quais dispomos de informação (sendo a Guiana uma exceção interessante), os povos indígenas e de origem africana se encontram em considerável desvantagem em relação aos brancos. Essa tendência é interpretada como decorrente de uma história de práticas de exploração e exclusão que persiste até hoje, apesar de não existirem mais as fontes legítimas de marginalização. Os indicadores de tendências são escassos, mas não está claro se houve uma significativa melhoria relativa no passado recente. Quanto ao gênero, a situação é bem diferente: na maioria dos países, as diferenças de gênero em termos de educação e renda são menores do que as detectadas entre grupos raciais e étnicos, e vem apresentando uma evolução expressiva na última década. Em alguns casos, como por exemplo, no tocante à escolarização e ao risco de violência, existe maior preocupação em torno das desvantagens do gênero masculino. Embora as diferenças intergrupais permaneçam importantes (com exceção da Guiana), concluímos que a maior desigualdade de renda e educação observada ocorre dentro de grupos definidos por raça, etnicidade e gênero. Essa conclusão indica a relevância de outros fatores (que incluem classe, localização e características individuais) para explicar as diferenças entre esses grupos desfavorecidos e as desigualdades entre os brancos. Além disso, as disparidades entre os grupos de brancos e não-brancos, em particular, são substanciais em relação a outros países onde os problemas raciais são significativos (como nos Estados Unidos). As questões étnicas e raciais tiveram um papel relevante na origem da desigualdade latino-americana e permanecem importantes nos dias de hoje. O Capítulo 3 busca também esclarecer os mecanismos pelos quais são reproduzidas as diversas formas de desigualdade com base na raça, na etnia e no gênero, enfatizando em particular a relação entre renda e educação. Mesmo dentro desse espectro relativamente estreito, foram identificados três diferentes processos, cada um deles com sua própria importância. Em primeiro lugar, uma certa desigualdade persiste devido à transmissão da educação entre as gerações: as crianças cujos pais têm um nível mais alto de escolarização tendem a ter mais instrução, enquanto os pais brancos (e os avós, etc.) têm mais anos de estudo que seus equivalentes não-brancos. Em segundo lugar, mesmo depois de se levar em conta a educação dos pais, os não-brancos parecem freqüentar a

Page 29: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

29

escola por um tempo menor, o aproveitamento é menor e seus empregos são piores do que os dos brancos. Por fim, a comparação entre os níveis educacionais e de emprego sugere que os não-brancos recebem salários menores em relação ao mesmo trabalho executado por brancos. (Uma série de razões econométricas explica por que não se pode afirmar que a causa disso é uma real discriminação da parte do mercado de trabalho, mas nenhum desses motivos pode excluir um fator que se baseia em evidências.) Essa tendência é compatível com o ponto de vista sociológico de que as desigualdades relacionadas a grupos se mantêm por meio de práticas e normas estabelecidas entre grupos dominantes e minoritários. Essas práticas resistem às mudanças formais ou legais destinadas a reduzir as fontes explícitas de desigualdade. O bem-estar não depende apenas da renda e da posse de bens privados. O acesso aos bens e serviços públicos também é de extrema importância e precisa ser financiado pela arrecadação de impostos ou por outras fontes de receita. O Capítulo 4 trata dessa questão. É evidente que os países são muito desiguais em termos da distribuição e da amplitude da participação do governo na economia de modo geral. As iniciativas de arrecadação de impostos são relativamente limitadas na maioria dos países da América Latina, o que, por sua vez, reduz a capacidade dos governos de utilizar os gastos públicos como um instrumento de redistribuição. Esse modelo pode ser interpretado como uma forma de contrato social implícito, no qual a elite e a classe média preferem pagar baixos impostos e depender menos dos gastos do governo com a sociedade. (Como parte dessa equação, muitas elites escolhem serviços privados em vez de públicos em diversas áreas, da escola à previdência social privada.) Em alguns países, principalmente o Uruguai e em menor escala o Chile e a Costa Rica, os impostos são medianamente altos e as provisões públicas são de alguma forma significativas e redistributivas. O Brasil se destaca como um caso em que existe um grande esforço de arrecadação de impostos e uma provisão pública muito desigual. No tocante à questão de quem paga os impostos, os problemas metodológicos confundem a análise de incidência e pouco se pode afirmar com segurança. Uma suposição razoável para facilitar o trabalho é que a maioria dos regimes fiscais é progressiva ou regressiva, de modo proporcional ou moderado, o que faz com que os pobres, a classe média e os ricos paguem cerca da mesma proporção de suas rendas em impostos. Esse fator torna muito mais importante o lado dos gastos na equação. Os indicadores confirmam, enquanto as análises históricas e políticas sugerem, que o acesso à maioria dos serviços alcança em primeiro lugar os ricos e depois os pobres. A incidência média de vários serviços, como saneamento e telefones, continua regressiva na maioria dos países da região. Todavia, a boa nova é que, durante os anos 90, a expansão do acesso aos serviços públicos foi normalmente, senão sempre, crescente. Em grande parte, a razão disso é simples: como os ricos já eram atendidos, só restavam os mais pobres para receber esses serviços. Contudo, em muitos casos, esse deslocamento também resultou de uma ação pública eficiente, bem-intencionada e deliberada. Deve-se lembrar sempre que a alternativa de não ampliar de modo algum a oferta de serviços públicos sempre esteve

Page 30: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

30

em pauta, de maneira que mesmo uma limitada expansão progressiva representa um desenvolvimento positivo. Não obstante, os problemas continuam. Na educação, por exemplo, embora a matrícula no ensino fundamental venha crescendo mais rápido entre os pobres do que entre os ricos em quase todos os países, não existe um padrão bem definido de freqüência no ensino médio na maioria dos países, sua evolução é na verdade desigual e apresenta um crescimento mais rápido entre os filhos das famílias mais abastadas. Como o retorno econômico da educação superior é mais alto e crescente (enquanto os resultados do ensino fundamental e médio são menores e decrescentes), é necessária uma atuação pública mais eficiente para remediar essa situação. Esse fenômeno parece ocorrer em qualquer serviço cujo índice de acesso inicial é baixo. Nos setores de infra-estrutura com cobertura reduzida, como as telecomunicações na maior parte da região e a energia elétrica, nos países mais pobres, a expansão desses serviços apresentou a tendência de favorecer primeiro os grupos mais ricos. Nos locais em que a classe média e os ricos já eram atendidos, a expansão se tornou mais progressiva. Os países de renda média são bons exemplos de abastecimento de água e de suprimento de energia e saneamento.

Embora o ritmo geral da oferta de serviços essenciais vá dos grupos mais ricos aos mais pobres, a América Latina tem uma experiência significativa na utilização de mecanismos seletivos de prestação de serviços. Alguns programas são muito bem-sucedidos no atendimento aos pobres, mas sua abrangência tende a continuar reduzida. Parece haver uma compensação entre o direcionamento eficiente e o grau de cobertura dos programas, mesmo entre os pobres. Essa compensação pode ser em parte devida a dificuldades administrativas, mas também possivelmente resultante das interações com as instituições políticas e econômicas. Como o Capítulo 7 indica, existe a necessidade de se obter um amplo apoio para uma política progressiva. Por esse motivo, talvez seja necessário vincular ou “incorporar” os programas seletivos a outros de abrangência universal, que também beneficiam a classe média. O vínculo entre a expansão da cobertura de educação básica e de saúde e as transferências em dinheiro para os pobres, que são condicionadas à manutenção das crianças na escola e às visitas aos serviços de saúde, por exemplo, faz sentido em termos de eficiência (porque de outra forma os pobres talvez não solicitassem esses serviços devido aos altos custos de oportunidade) e também sob o ponto de vista da sustentabilidade política. Por fim, o modelo histórico de gasto social tem estado muito afastado da excelência em relação ao ciclo econômico. As despesas sociais por indivíduo pobre são de fato muito pró-cíclicas em quase todos os países da América Latina, ou seja, os recursos se apresentam escassos exatamente quando são mais necessários. Esse modelo não é exclusivo da região e é fácil de compreender os processos políticos que podem levar a esse resultado. No entanto, o fato é que esse modelo permanece insatisfatório de modo intertemporal e deve ser alterado. Com base nos fundamentos factuais estabelecidos nos três capítulos anteriores, a Parte II volta-se para as causas e determinantes da alta e persistente desigualdade na América

Page 31: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

31

Latina. O Capítulo 5 apresenta um longo panorama das raízes históricas dessas disparidades. O argumento central é que as origens do problema não podem ser compreendidas sem uma análise do período inicial da colonização nos séculos XVI e XVII e da subseqüente evolução das interações entre os fatores econômicos, políticos e socioculturais. Durante a colonização, grande parte das riquezas naturais da América Latina levou à produção de mercadorias consideradas de alto valor nos mercados internacionais: ouro e prata nos países andinos e na Nova Espanha, que eram abundantes em minerais, bem como açúcar e outros produtos agrícolas tropicais, no Brasil e em outras colônias com vastas extensões de terra. As tecnologias dominantes para extração mineral e a agricultura demandavam mão-de-obra intensiva. Entretanto, como nessas colônias as taxas de mortalidade eram altas entre os povoadores europeus, não ocorriam grandes influxos de imigração espontânea. A escassez de mão-de-obra atribuiu um alto valor à subjugação e exploração dos trabalhadores nativos onde estivessem disponíveis, ou à importação de escravos africanos. Alguns países latino-americanos constituíram exceções a essas tendências, como a Argentina, a Costa Rica e o Uruguai. Esses países tendiam a apresentar menos divisões sociais no período colonial e, de fato, desfrutaram de processos de desenvolvimento mais igualitários durante um longo período de suas histórias. (Na Argentina, houve um aumento acentuado na disparidade nas últimas duas décadas, mas a Costa Rica e o Uruguai permanecem relativamente igualitários, de acordo com os padrões latino-americanos.) Nos dias de hoje, as raízes da desigualdade na América Latina são consideradas como provenientes do simples contraste inicial entre um pequeno grupo de dignatários europeus, que detinham o poder sobre vastas extensões de terra e imensos recursos naturais, e uma população composta de trabalhadores empobrecidos, contratados para prestar serviços ou escravizados. O fato de a desigualdade persistir ao longo dos anos – tendo sobrevivido à independência do poder europeu e à abolição da escravatura (bem como a outras formas de trabalho forçado) – está mais ligado à influência política das elites e à grande flexibilidade das instituições sociais, culturais e políticas hierárquicas e não-igualitárias que, com o passar do tempo, se desenvolveram e adaptaram conforme a necessidade. O Capítulo 6 trata dos aspectos econômicos das experiências mais recentes na região e conclui que o “excesso de desigualdade” dos países latino-americanos, em relação ao restante do mundo, não pode ser explicado por uma única razão. Sua origem parece estar contida na forte interação entre distribuições desiguais de capital humano (como o aprendizado formal) e os mercados de trabalho, nas quais os ganhos para o capital humano são raramente altos. Embora essa combinação de fatores explique muitas das causas, o excesso de desigualdade também se baseia nas tendências sociais, como a maior propensão dos latino-americanos a se casarem com pessoas do mesmo nível educacional (e talvez da mesma renda). Isso também é resultante da atuação do governo: os Estados latino-americanos cobram, em média, menos impostos que a maioria dos outros países. O gasto com itens de incidência progressiva, como o ensino fundamental, é menor do que a

Page 32: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

32

média internacional. Além disso, os sistemas de previdência social e outras transferências de renda tendem a ser mais regressivos na América Latina do que em outros países. O Capítulo 7 analisa alguns dos mecanismos políticos e socioculturais por meio dos quais tantos países da região parecem ser controlados pelas elites e, por essa razão, não atendem com freqüência às necessidades dos pobres ou de outros grupos minoritários. Na prática, a proposta é considerar os fatores econômicos analisados no Capítulo 6 sob um prisma diferente, que seja compatível com o modelo de causalidade circular entre os processos econômicos, políticos e socioculturais esquematizados na Figura 1.1. Embora os fatores sejam muito díspares, existem basicamente dois tipos de explicação para que as principais mudanças ocorridas nas duas últimas décadas não tenham resultado em condições mais eqüitativas em termos de influência ou de resultados. Em primeiro lugar, os “fatores macroinstitucionais” se referem ao modo de incorporar os grupos minoritários às políticas municipais e estaduais, com uma relativa predominância de vínculos políticos com formas verticais, caracterizadas por estruturais personalistas, clientelistas e corporativistas. Essa tendência contrasta acentuadamente com as alianças mais horizontais encontradas em grupos minoritários constituídos durante períodos comparáveis na Europa, tendendo a perpetuar a influência predominante das elites nos níveis nacional e local. Em segundo lugar, os processos socioculturais (forjados por uma longa história de interações entre os grupos) resultaram em práticas, normas e propósitos dos grupos dominantes e minoritários, que geraram o que o antropólogo Arjun Appadurai (em trabalho a ser lançado) caracterizou como “termos de reconhecimento” desiguais, que complementam as disparidades nas estruturas políticas e econômicas. Esse modelo é ilustrado pelos altos níveis de cruzamento ordenado (ou seja, não randômico) observados no Capítulo 6, e pela persistência de grandes defasagens entre os grupos de origem africana e indígena, mesmo depois que as exclusões legítimas terem sido removidas, conforme discutido no Capítulo 3. O Capítulo 7 também considera os casos de mudanças institucionais, com o objetivo de analisar o que pode ser feito para solucionar a desigualdade. O período pós-democrático no Chile é o exemplo de uma aliança mais abrangente dos agentes sociais que criou uma base importante para a busca de um caminho mais igualitário. Na década de 90, essa iniciativa exerceu pouco impacto sobre os altos níveis de desigualdade – refletindo o poder subjacente das forças econômicas que determinam a renda – porém produzindo um efeito substancial sobre a eqüidade dos gastos públicos. De fato, uma análise que fez estimativas com base em um conceito mais amplo de bem-estar, incluindo os rendimentos privados e uma projeção do valor da despesa pública, observou um declínio geral nos níveis de desigualdade nos anos 90 (Bravo, Contreras e Millan, 2002). Também são promissores alguns casos de mudanças locais, em níveis subnacionais, como por exemplo, em Porto Alegre, no Brasil, ou em Bogotá e Pasto, na Colômbia. Onde ocorreu um ciclo virtuoso de práticas, este foi associado a uma melhor e mais aberta governabilidade, à maior transparência, a mudanças na cultura da cidadania, à eficiente mobilização dos grupos minoritários e, em alguns casos, à participação das associações comerciais locais. Contudo, a importância desses processos localizados

Page 33: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

33

continua limitada, se não forem apoiados por um ambiente nacional propício. Essas novas tendências reduziram as desigualdades de participação e de influência, que têm caracterizado de modo geral a política e as sociedades na América Latina. Com base nos assuntos discutidos nos Capítulos 4 a 7, a Parte III deste relatório considera algumas das opções disponíveis de políticas reservadas aos governos (e, em alguns casos, aos agentes da sociedade civil) da região, que podem ser aplicadas com o objetivo de reduzir a desigualdade e suas conseqüências negativas. Essa abordagem se enquadra na estrutura da Figura 1.1, acima. Embora sejam enfocadas nesta seção algumas áreas específicas das condições econômicas e políticas, essa análise complementa a discussão dos processos políticos e socioculturais realizada no Capítulo 7. Apesar de não parecer existir uma compensação significativa entre o crescimento agregado e a desigualdade – uma menor disparidade pode acarretar um maior crescimento – talvez haja importantes compensações em relação a políticas específicas. Este relatório busca iniciar o mapeamento dessas trocas equilibradas. O Capítulo 8 se volta para os mercados e as instituições. Como esse assunto é muito amplo em sua abrangência potencial, são abordadas apenas as conseqüências distributivas de três importantes aspectos de formulações ou de reformas políticas recentes: as reformas estruturais dos anos 90 (ou seja, a liberalização comercial e financeira, a abertura das contas de capital, a reforma fiscal e a privatização), as instituições do mercado de trabalho e a gestão das crises macroeconômicas, com especial ênfase sobre a solução das crises bancárias. A pesquisa na literatura específica e a comparação dos resultados indicam que não existe nenhum modelo geral associado ao impacto das reformas estruturais sobre a desigualdade. O balanço da avaliação é que as mudanças voltadas para o mercado foram provavelmente associadas a um nível mais alto de má distribuição de renda, porém seus efeitos não são abrangentes nem expressivos em termos estatísticos. De um ponto de vista mais amplo, a desigualdade tem se adaptado notavelmente a várias experiências políticas, desde a industrialização com substituição de importações a práticas populistas e reformas orientadas para o mercado. É possível chegar a mais conclusões quando mudanças específicas são consideradas individualmente. Parece correto afirmar que a estabilidade dos preços gerada pelas reformas fiscais resultou em uma redução do desequilíbrio. Do ponto de vista distributivo, a privatização provocou um aumento de acesso dos pobres aos serviços públicos, por meio da expansão de sua cobertura; mas às vezes essas pessoas não foram atendidas em razão dos impactos negativos dos preços.20 Além da distribuição desigual da educação, a liberalização comercial foi associada ao aumento da disparidade de salários, porque essa abertura levou à adoção mais rápida de novas técnicas e processos de produção que demandavam um uso intensivo de mão-de-obra qualificada. Contudo, à medida que o sistema educacional atende à maior demanda por instrução, parece estar ocorrendo um nivelamento na desigualdade salarial, exemplificado pelos casos do Chile e do México, que são as duas economias da região que apresentam maior integração internacional.

Page 34: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

34

O Capítulo 8 também assinala que o mercado de trabalho e as instituições de previdência social na América Latina (como os sindicatos, a legislação do salário mínimo e os direitos trabalhistas) protegem os interesses dos empregados no setor formal em detrimento dos trabalhadores informais e dos desempregados. No entanto, ao contrário das instituições semelhantes nos países da OCDE, as pessoas empregadas no setor formal raramente representam a maioria da classe trabalhadora. Em quase todos os países, uma grande parte dos indivíduos pobres trabalha no setor informal (ou são autônomos) e não são protegidos pelos benefícios formais, pelas normas do salário mínimo ou por sindicatos. Além disso, os trabalhadores organizados às vezes praticam com eficiência uma forma de “retenção de oportunidades” ou de proteção de seus privilégios, o que pode limitar a abrangência das reformas em prol da igualdade. Os exemplos abrangem os esforços para proteger as aposentadorias e pensões do setor público no Brasil e a resistência de alguns sindicatos de professores às reformas para elevar a qualidade da educação básica, que poderiam beneficiar todas as crianças. O planejamento das reformas políticas e das instituições do mercado de trabalho representa um processo complexo que está fora do escopo deste relatório. Em seu lugar, será proposta apenas uma mensagem política geral sobre a necessidade de uma estrutura laboral e de previdência social mais inclusiva e menos distorcida. Por outro lado, essa estrutura deve procurar estender os direitos trabalhistas básicos e a proteção da previdência social a todos os trabalhadores, ao mesmo tempo ampliando a flexibilidade da mão-de-obra, em especial nas áreas onde existem grupos que dispõem de privilégios significativos e arraigados. Essa abordagem é compatível com o papel ativo dos sindicatos nos ambientes competitivos, conforme ilustra um recente estudo de caso de uma organização sindical de trabalhadores rurais do setor hortifrutigranjeiro no Nordeste do Brasil. No Capítulo 8, uma das conclusões mais surpreendentes refere-se à amplitude e ao caráter regressivo dos custos fiscais dos mecanismos adotados para solucionar muitas crises bancárias recentes na América Latina. Durante as décadas de 80 e 90, as transferências de renda pública aos grandes depositantes e acionistas de bancos para solucionar as crises (ou seja, os socorros financeiros) corresponderam à ordem de 13% a 55% do PIB. Essas transferências foram financiadas por uma combinação de altos impostos e menos serviços e benefícios públicos. Como a incidência de todos os sistemas fiscais é geralmente proporcional (ou talvez ligeiramente crescente) e nos anos 90 a incidência marginal da expansão dos serviços foi tipicamente progressiva, essas transferências foram muito regressivas. É improvável que esses altos aportes financeiros regressivos para grandes devedores e depositantes - e de vez em quando para acionistas – tenham sido de fato necessários, a fim de evitar o colapso dos sistemas bancários. Em conseqüência, os autores defendem a adoção de regulamentações bancárias mais eficientes e cautelosas (inclusive normas e condições gerais anticíclicas relacionadas às combinações incorretas de moeda dos devedores), aliadas a uma melhor supervisão, além de instituições mais eficientes e eqüitativas para solucionar as crises bancárias, com o objetivo de limitar as futuras ocorrências desses episódios e os decorrentes custos fiscais elevados, bem como o uso regressivo dos fundos públicos.

Page 35: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

35

As economias latino-americanas permaneceram excessivamente vulneráveis às reversões nos fluxos de capital devido à combinação de níveis moderados a altos de dívida pública, ao fato de que grande parte da dívida está vinculada ao dólar e a outras moedas estrangeiras, aos baixos coeficientes tributários e de exportação, às regulamentações e supervisão ineficientes e prudentes, e a políticas fiscais pró-cíclicas. Isso implica que o melhor caminho para a política macroeconômica na região, do ponto de vista da redução da pobreza e da desigualdade, seria mais provavelmente o aumento da poupança do setor público e a adoção de práticas reguladoras e de controle “supercautelosas” no sistema financeiro, durante os períodos de bom funcionamento da economia, bem como economias mais abertas, desenvolvimento de mercados domésticos de capital de longo prazo, melhor gestão da dívida e aumento dos coeficientes tributários. Como esses objetivos levarão tempo para serem realizados, os autores recomendam a criação de superávits setoriais públicos, ajustados de modo cíclico durante um período de tempo nos países com elevadas cargas de dívida, com vistas a reduzir a vulnerabilidade a choques e a probabilidade de uma crise. Essa recomendação pode surpreender aqueles que equacionaram a governabilidade a favor dos pobres com déficits orçamentários. De fato, deve-se observar que os indícios são compatíveis com a necessidade de uma substancial ação do Estado - e de gastos públicos - para reduzir a pobreza, a desigualdade e várias fontes de deficiências na América Latina. Todavia, o financiamento dessas despesas não deve ser gerado por maiores déficits fiscais, que aumentam a probabilidade de crises inflacionárias, de balança de pagamentos e bancária, representando soluções extremamente regressivas. Em vez disso, outras devem ser as fontes de financiamento, a saber:

• O redirecionamento dos gastos existentes, entre os quais alguns são com certeza desperdiçados e muitos outros são regressivos.

• Impostos mais altos, no caso dos países com baixos níveis de arrecadação fiscal. As políticas fiscais pró-cíclicas são especialmente prejudiciais aos mais desfavorecidos, pois reduzem os gastos sociais por indivíduo pobre per capita, no momento em que são mais necessários. Será de grande importância para as metas de redução da pobreza e da desigualdade o estabelecimento de normas e instituições que permitam o bom funcionamento de políticas tarifárias anticíclicas, por meio da minimização dos problemas de política econômica e da assimetria de informações subjacentes às políticas fiscais pró-cíclicas. Essas medidas serão também relevantes para reduzir a possibilidade de crises, porque freqüentemente o viés pró-cíclico leva a tendências de déficit e a posturas tarifárias insustentáveis. Por fim, como as crises nunca poderão ser totalmente evitadas, é essencial a criação de mecanismos ex-ante eficientes e igualitários para solucioná-las, em especial no caso das potenciais recessões financeiras, com o objetivo de impedir as transferências de renda altamente regressivas e devastadoras, que caracterizaram a gestão da maioria das crises bancárias no passado.

Page 36: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

36

Mercados em bom funcionamento e instituições que promovam a inserção social são essenciais para proporcionar aos pobres as oportunidades que eles precisam e, por conseguinte, diminuir a desigualdade. No entanto, os mercados remuneram os ativos e por isso o Capítulo 9 analisa as políticas que podem reduzir a disparidade de bens, por meio do fortalecimento da base de ativos dos pobres. Como esse tema é muito extenso e mais uma vez foi necessário optar pelos aspectos a serem discutidos, o capítulo abrangerá a educação, a terra e o acesso aos serviços de infra-estrutura. A educação é o bem produtivo mais importante ao qual a maioria das pessoas sempre terá acesso. Além de seu impacto econômico, a educação também está intimamente ligada às desigualdades socioculturais. Um ensino mais eqüitativo contribui potencialmente de várias maneiras para práticas e resultados mais igualitários, apresentando duas grandes vantagens. Em primeiro lugar a sua distribuição pode ser ampliada sem a necessidade de desprover outras pessoas. Em segundo lugar, essa melhoria (que ocorre ao lado de aumentos nos níveis médios gerais de escolarização) tem efeito positivo sobre a eficiência e o crescimento. Por essas razões, parece óbvio que a promoção de mais e melhor educação deve ser a principal política recomendada para reduzir a pobreza e a desigualdade. Embora essa abordagem seja agora amplamente aceita pelos governos, sua implementação nem sempre tem sido fácil. Em particular, a “massificação” da educação parece estar ligada a novas formas de desigualdade, especialmente aquelas associadas a grandes variações na qualidade (e a uma qualidade média baixa) e à contínua prática das elites de abandonar os sistemas públicos. Apesar de diversas experiências, ainda não foi descoberta a formula mágica para elevar o nível educacional. Além disso, existem indícios de um consenso incipiente, que é favorável à educação superior em algumas partes da região. No Nordeste do Brasil, por exemplo, as elites empresariais tendem a ser favoráveis a limitar a educação à instrução básica, em apoio à política de baixos salários para se integrar à economia global (Tendler, 2002). Não está clara a extensão desse fenômeno, mas sua ocorrência talvez seja importante nas partes relativamente mais subdesenvolvidas da região. Na América Latina e no Caribe, as transições educacionais lentas e desequilibradas têm sido prejudiciais ao crescimento e à igualdade, devido à natureza mais profissionalizante das mudanças tecnológicas. Por outro lado, os grandes aumentos recentes na demanda por instrução também apresentam a oportunidade para uma recuperação mais rápida e eqüitativa dos sistemas educacionais na região. Nesse contexto, os autores sugerem que os países deveriam:

• Estabelecer um esforço cívico, que envolva os setores público e empresarial, com o objetivo de dar um salto significativo em direção à igualdade de cobertura e de qualidade em todo o sistema público de ensino fundamental e médio. Embora não exista nenhum projeto institucional específico para essa estratégia, as iniciativas bem-sucedidas provavelmente abrangerão mecanismos para aumentar a responsabilidade dos professores e das escolas. Esses incentivos podem ser

Page 37: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

37

condicionados aos resultados (como os cupons de crédito e os concursos no Chile), a financiamentos especiais para complementar os orçamentos escolares (como o programa FUNDEF no Brasil) ou à maior participação das comunidades locais (como o EDUCO em El Salvador). Essas experiências deverão ser acompanhadas de uma contínua avaliação das abordagens que exercem o maior impacto sobre o aprendizado dos alunos, a fim de garantir uma utilização eficiente dos gastos com educação.

• Combinar as iniciativas de oferta de ensino com incentivos à demanda, para

estimular as crianças a permanecer na escola, a exemplo dos programas Oportunidades (anteriormente Progresa), no México, e o Bolsa Escola, no Brasil. Essas medidas também podem atender ao objetivo de ampliar os sistemas de proteção social para os grupos mais pobres (ver abaixo).

• Facilitar a superação das restrições de crédito e de informação que limitam as

possibilidades dos filhos das famílias pobres de usufruir os altos benefícios privados do ensino superior. A expansão acentuada da oferta de crédito educativo, bolsas de estudo seletivas para estudantes das famílias mais pobres, exames de avaliação nacionais, programas de credenciamento e avaliação da mão-de-obra facilitaria muito a necessária expansão do ensino superior. Nesse contexto, uma maior recuperação de custos nas universidades públicas acompanhada de apoio orçamentário com base no desempenho seria um complemento importante para essas políticas. Além disso, existe à primeira vista um caso que precisa ser considerado nos programas de ação afirmativa, em especial aqueles destinados a grupos minoritários que são tradicionalmente excluídos, como os negros no Brasil. Entretanto, essas iniciativas podem resultar em uma forte reação negativa e na estigmatização dessas pessoas, e por isso precisam ser discutidas, planejadas e monitoradas cautelosamente.

• Investir em currículos que sejam apropriados e em professores qualificados para

lidar com educação multicultural, multirracial e multiétnica, além de fornecer educação bilíngüe nas áreas com forte presença de povos indígenas.

Ao mesmo tempo, ainda que os autores apóiem entusiasticamente essas propostas de ensino, a expansão e a melhoria educacional não devem ser consideradas como uma panacéia distributiva. Existem três razões para isso:

• Os benefícios da educação levam tempo, porque as crianças que se beneficiam de mais anos de aprendizado ou de melhores professores e bibliotecas nos dias de hoje entrarão no mercado de trabalho daqui a muitos anos. Além disso, quando os atuais estudantes forem inseridos nesse mercado, eles representarão uma gota no oceano das pessoas com mais idade, que receberam instrução num período anterior às reformas. Em outras palavras, para efetuar mudanças substanciais na composição da força de trabalho, as mudanças no ensino devem exercer impacto sobre vários grupos, a fim de que eles substituam outros mais antigos no mercado de trabalho com o passar do tempo.

Page 38: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

38

• Os resultados da educação são “convexos”, ou seja, níveis mais altos de

escolarização geram maiores benefícios, em especial no âmbito do ensino superior. Isso significa que à medida que aumentam os anos de escolaridade na curva de distribuição, a desigualdade de renda deve aumentar primeiro antes de diminuir, mesmo que o desequilíbrio educacional esteja em queda de um extremo a outro. Além disso, é muito provável que a expansão da cobertura do ensino médio e superior seja regressiva durante algum tempo nos países com baixos índices de acesso à educação.

• Parte da expectativa de impacto gerado pela expansão e melhoria no ensino sobre

a distribuição de renda resulta da previsão de menores ganhos gerados por maiores níveis de escolarização (à medida que a oferta aumenta) e do aumento dos ganhos da mão-de-obra menos qualificada (à medida que declina a oferta desses trabalhadores). Contudo, agora existem indícios significativos de que as mudanças tecnológicas nas últimas décadas tendem a valorizar os melhores profissionais no mundo inteiro, desse modo outras forças também afetam a estrutura dos resultados da educação; por essa razão, qualquer movimento contrário ao convexo pode ser mais lento do que o esperado.

O Capítulo 9 também considera dois outros bens essenciais: a terra agrícola, nas áreas rurais, e a habitação, nas áreas urbanas. Analisa as reformas agrárias incompletas na América Latina durante o século XX e sugere algumas políticas alternativas ou complementares que podem ser adotadas no futuro. Um tema interessante que surge simultaneamente à discussão sobre moradia urbana e propriedade rural é que o bem-estar pode ser ampliado, por meio da criação de mercados de crédito e de aluguel mais operacionais que, por sua vez, dependam de melhor proteção jurídica aos direitos dos proprietários de terra e dos credores. Em ambos os casos, deve-se enfatizar a oportunidade para a adoção do imposto territorial progressivo – que consiste efetivamente na taxação do aluguel da terra e, por esse motivo, apresenta características muito apropriadas de eficiência e eqüidade. Por fim, um importante conjunto de bens para a distribuição do bem-estar e dos processos de crescimento encontra-se nos setores de infra-estrutura. A solução das desigualdades envolve uma combinação judiciosa de provisão pública e de privatização, e esta última deve ser realizada num contexto regulador equilibrado. As questões referentes à privatização foram politizadas – por exemplo, nos casos da privatização malfeita da água em Cochabamba, na Bolívia, ou na desestatização da água sugerida no Peru. Este relatório propõe uma abordagem que leve em consideração a interação entre o planejamento da política e o contexto institucional. Em muitas áreas, pode haver continuidade da provisão pública – por exemplo, no abastecimento de água nas áreas rurais. Essas questões são análogas ao desafio de fazer com que qualquer serviço público atenda às necessidades de todos os cidadãos. Outras se constituem em casos potencias de privatização, especialmente quando o motivo for a eqüidade. Muitos serviços essenciais são parte de estruturas clientelistas e têm sido desiguais e ineficientes. A privatização tem a possibilidade de romper esse esquema, mas somente será bem-sucedida se tiver

Page 39: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

39

um bom planejamento. As características das desestatizações anteriores dos serviços públicos sugerem que, em sua maioria, levaram a um aumento da igualdade e à melhor qualidade do acesso. Os efeitos dos preços variaram caso a caso. Porém, existe também o risco de grandes benefícios recaírem sobre os oligopólios, se o controle for inadequado. A questão dos impostos é uma ponte para o Capítulo 10, onde são discutidas as políticas que têm efeito direto sobre os fluxos de renda, e não sobre os bens e as instituições. Existem três razões básicas para que os governos ainda precisem se preocupar com os fluxos de capital, mesmo tendo criado melhores mercados e instituições, e construído uma distribuição de educação e de outros bens mais eqüitativa. Em primeiro lugar, os governos prestam (e na maioria dos casos deveriam prover) muitos serviços, da manutenção da lei e da ordem a saneamento, saúde e educação. Alguns desses serviços podem ser financiados, em parte, pelas tarifas cobradas aos usuários; mas é possível que uma parcela mais elevada dos recursos necessários venha a ser proveniente dos impostos arrecadados basicamente sobre os fluxos de renda ou de gastos. Em segundo lugar, existe uma grande volatilidade agregada e idiossincrática na maioria das economias latino-americanas, devido à vulnerabilidade macroeconômica aos choques ou às altas taxas de rotatividade de mão-de-obra no mercado de trabalho. Como as pessoas de modo geral têm aversão a riscos (ou, mais precisamente, aversão a flutuações intertemporais no consumo), essa volatilidade é particularmente indesejável. Embora os indivíduos e as famílias se autoprotejam e façam seguros próprios, e existam mercados de seguros em bom funcionamento para determinados problemas, considera-se que no caso desses mercados não abrangerem outros tipos de imponderabilidades (como desemprego, problemas decorrentes da velhice ou flutuações na demanda das pequenas empresas), o grau de compartilhamento de risco disponível apenas por meio de previdência comunitária própria ou informal pode não ser satisfatória. Esse problema fornece a explicação para alguns sistemas públicos de seguro, como por exemplo, o seguro-desemprego, as aposentadorias básicas financiadas pelo governo dentro do sistema geral de previdência social ou algumas redes de segurança testadas e aprovadas. Essas considerações são de particular importância na maioria dos países latino-americanos que apresentam o que se pode chamar de “Estados de bem-estar incompletos”. Alguns tipos de seguro público são produto de formas parciais e verticais de incorporação do segmento formal das classes trabalhadoras no século XX. Eles combinam de forma característica os piores aspectos dos países que custeiam o bem-estar social na Europa e nos Estados Unidos, ou seja, cobertura incompleta, exclusão da maioria dos pobres e incentivos desfavoráveis (como por exemplo, aqueles relacionados ao crescimento e à flexibilidade do emprego). Como a proteção social é ineficaz fora do sistema formal, existe um grande incentivo para que as pessoas que nele estão incluídas defendam os seus (relativos) privilégios nesses Estados de bem-estar “incompletos”. Em terceiro lugar, a aversão à desigualdade (ou à pobreza) como opção social pode ser uma razão em si para transferências em dinheiro aos membros mais desprovidos da sociedade. Ainda que todas as reformas institucionais recomendadas tenham sucesso e as distribuições de bens se tornem mais eqüitativas, sempre haverá pessoas que, mesmo

Page 40: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

40

temporariamente, passarão dificuldades diante do risco e da incerteza, que são inaceitáveis para a sociedade. É há claramente mais probabilidade disso acontecer em uma situação – como é o caso da América Latina nos dias de hoje – na qual existe uma grande desigualdade de bens e as instituições não promovem a inserção social. O desafio para os formuladores de políticas é planejar transferências que atendam às pessoas incluídas na base da distribuição de renda, de forma que elas não sejam mantidas nessa posição por causa da falta de incentivos para trabalhar e investir. Os autores consideram um sistema fiscal em bom funcionamento como um ingrediente vital para a eficiência do Estado e não ousam antecipar o que afirma uma vasta literatura sobre finanças públicas nos países em desenvolvimento. Os latino-americanos deveriam orientar seus sistemas fiscais indiretos para a aplicação do imposto sobre valor agregado (IVA), onde ele ainda não exista. O novo regime de IVA deve apresentar uma estrutura de alíquotas simples que possa englobar isenções para alguns produtos (principalmente alimentos), uma taxa básica para a maioria das mercadorias restantes e outra mais alta para itens de luxo. Pode-se cobrar imposto sobre o consumo de produtos com grandes efeitos externos negativos, como tabaco, álcool e veículos motorizados, porém alguns deles (como os do querosene e do tabaco) são normalmente muito regressivos e levam à necessidade de equilibrar a eqüidade e outros objetivos. Também é importante o imposto de renda de pessoa física, cuja arrecadação é muito baixa na maioria dos países da América Latina em comparação a outras regiões. A estrutura do imposto de renda não precisa conter muitas alíquotas progressivas. O recente histórico das reformas fiscais na América Latina é bastante compatível com o consenso sobre a simplificação. As iniciativas para taxar um pouco mais os ricos devem abranger em grande parte o aperfeiçoamento da aplicação da lei e a eliminação das brechas na legislação fiscal, com o objetivo de reduzir a evasão de impostos. Essa proposta é particularmente adequada em relação ao imposto sobre a propriedade, que existe em muitos países, mas a receita de sua arrecadação é em geral muito pequena. Os esforços da reforma não devem se ater ao aumento dos percentuais desses impostos, mas à eliminação das isenções e ao planejamento de mecanismos de divulgação para melhorar a arrecadação e o cumprimento da lei. Um exemplo disso é a proposta de combinação das informações dos impostos territorial e sobre vendas no Brasil. Quanto às transferências de renda, o desafio mais amplo está na utilização de sistemas de proteção social mais justos e abrangentes. Os autores prevêem que várias transferências destinadas aos desempregados (como os regimes de seguro-desemprego que existem em alguns países da região) continuarão a ser efetuadas no futuro. Possivelmente, o papel das aposentadorias por idade para os mais pobres será mais importante, o que é demonstrado pelo bem-sucedido sistema de previdência rural brasileiro.

No entanto, este relatório se detém nas “transferências inteligentes”, que se destinam a grupos selecionados de acordo com a necessidade, e são efetivadas apenas quando os destinatários tiverem realizado um determinado conjunto condicional de ações que têm como objetivo aumentar, em vez de reduzir, os incentivos ao investimento em capital humano. O Capítulo 10 analisa o desempenho de algumas dessas transferências,

Page 41: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

41

como o programa Oportunidades, no México (anteriormente conhecido como Progresa), o Bolsa Escola, no Brasil, e a Red de Protección Social (Rede de Proteção Social), na Nicarágua. Por fim, este documento sugere o planejamento de abordagens alternativas para melhorar a gestão de risco das transferências condicionais em dinheiro, que têm potencial para fazer parte de um sistema de proteção social abrangente e eqüitativo. Além disso, como foi mencionado anteriormente, faz sentido combinar essas transferências condicionais em dinheiro com a expansão geral dos serviços de educação básica e de saúde, tanto do ponto de vista da eficiência (porque, do contrário, os pobres talvez não solicitem esses serviços, devido aos altos custos de oportunidade) quanto da sustentabilidade política dos programas seletivos.

**************************** Com o objetivo de concluir este capítulo de introdução, resumimos abaixo as principais mensagens do relatório. Em primeiro lugar, uma grande desigualdade influi no desenvolvimento. Isso ocorre por três motivos: inicialmente, porque as pessoas não gostam da desigualdade por motivos éticos, depois porque ela desacelera o ritmo da redução da pobreza, provocando grandes impactos a longo prazo e também pelo fato de que a desigualdade pode causar efeitos prejudiciais ao processo de desenvolvimento como um todo, sobretudo quando a sua interação ocorre com instituições fracas. Na verdade, a história da América Latina se caracteriza pelas relações mútuas entre uma grande desigualdade e instituições ineficientes. Em segundo lugar, a América Latina vem apresentando há muito tempo um grande desequilíbrio em várias dimensões. Essas desigualdades estão na renda, no acesso aos serviços públicos, na participação e influência, nos bens e oportunidades. De modo geral, as disparidades diminuíram no acesso aos serviços essenciais, porém o mesmo não ocorreu com a renda. Embora essa característica esteja presente em todos os grupos, as questões de gênero, raça e etnicidade sempre foram e continuam a ser importantes em relação às oportunidades e ao bem-estar na América Latina. A vida das famílias ricas e pobres em qualquer país da região tem pouco em comum em qualquer aspecto concebível. O verdadeiro significado de ser cidadão de um país é quase certamente muito diferente para ambos os grupos familiares. Em terceiro lugar, apesar dos eficientes mecanismos econômicos, políticos e sociais que perpetuam a desigualdade, existe espaço para ação por meio da influência política dos governos e dos grupos na sociedade. Existem programas disponíveis a serem postos em prática pelos governos, que ajudarão a reduzir as disparidades com pouco ou nenhum custo de eficiência. Uma liderança forte e amplas coalizões poderão implementar reformas em várias frentes, que permitam o rompimento com a longa história de desigualdades na América Latina e no Caribe.

Page 42: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

42

Estas são as quatro áreas potenciais de ação.

• Instituições políticas e sociais mais abertas. Como muitas desigualdades são causadas pela disparidade de influência, participação e poder, “bons” programas precisam ser incorporados a instituições políticas e sociais que sejam abertas, democráticas, transparentes e participativas, nos níveis nacional e local. É provável que essa perspectiva implique em uma combinação de esforços para reconhecer e inserir os grupos historicamente minoritários, em especial os negros e os indígenas. As ações nessa área são complementares às mudanças efetivas em todos os setores econômicos.

• Instituições e políticas econômicas mais eqüitativas. No setor

macroeconômico, a preocupação com a distribuição atribui um peso muito maior a uma eficiente gestão macroeconômica, porque as crises tendem a ser regressivas. Isso requer a criação de instituições e normas fiscais e financeiras prudentes para os bons momentos – permitindo assim políticas anticíclicas nos tempos difíceis – além de mecanismos mais transparentes e eqüitativos para solucionar as adversidades que possam surgir. Quanto às instituições microeconômicas, mercados mais amplos podem contribuir para baixar o nível da desigualdade. Esses mercados podem se concentrar na redução do coeficiente custo-benefício decorrente da formalização do trabalho, e em contrabalançar o apoio aos direitos laborais evitando uma grande rigidez nos mercados de trabalho. Além disso, a melhoria das instituições e das bases jurídicas (como por exemplo, a proteção aos direitos de propriedade dos credores e dos pequenos acionistas, a boa governabilidade corporativa, e uma regulamentação e supervisão prudente e eficiente) permitiria o desenvolvimento de mercados financeiros mais amplos e sólidos, o que aumentaria a possibilidade dos pobres de obter crédito para investimentos produtivos e aquisição de capital humano, terra, moradia e outros bens.

• Ampliação da propriedade de bens O maior acesso aos serviços públicos,

especialmente nos setores de educação, saúde e infra-estrutura, e a combinação da política agrária com a oferta de diversos serviços rurais são essenciais para mudar a estrutura de oportunidades vigente há muito tempo. Essas iniciativas, juntamente com a gestão de risco e as transferências de recursos vão necessitar de uma união de esforços para aumentar a arrecadação de impostos nos países onde essas taxas são baixas. O resultado disso tem o potencial de ser no mínimo moderadamente progressivo, se for fortalecido o IVA incorporado a taxas indiretas, a maior arrecadação fiscal de pessoas físicas e, em especial, dos impostos sobre propriedade.

• Uma reforma dos Estados de bem-estar elitistas e incompletos da região, para

que a gestão de risco e as transferências redistributivas (previdência e assistência social) abranjam uma parte maior da sociedade. Isso pode implicar no desafio a interesses arraigados e na expansão de programas que alcancem os pobres. Uma área em particular que tem chance de preencher o hiato existente nos sistemas

Page 43: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

43

atuais é a das transferências de recursos condicionadas à participação das camadas mais pobres da sociedade nos programas de investimento em capital humano e social. Se forem bem planejadas e integradas à oferta de serviços básicos, essas transferências em dinheiro condicionais podem formar a base para um sistema de proteção social e de gestão de risco verdadeiramente progressivo na América Latina.

Michael Walton C:\Inequality\Drafts\Chapter 1_September.doc September 11, 2003 6:59 PM

1 Médias não ponderadas da distribuição de renda domiciliar per capita em 1992. As estimativas se baseiam em Bourguignon e Morrison (2002). Ver a tabela A.17 no Apêndice Estatístico. 2 O coeficiente de Gini é uma medida padrão de desigualdade em uma distribuição. Varia de 0 a 1 e aumenta com a desigualdade. O valor zero corresponde a uma eqüidade perfeita e o valor um representa uma distribuição na qual uma única unidade recebe toda a renda e as outras não recebem nenhum rendimento. 3 Esses números se referem à pesquisa nacional de 1999. Ver a tabela A.25 no Apêndice Estatístico. 4 Ver em O’Donnell (1999) uma discussão do fraco sentimento de cidadania e, em Méndez et al. (1999), o alcance desigual do estado de direito na maioria dos países da América Latina. A mudança mais recente e simbólica na Guatemala foi a assinatura dos acordos de paz em 1996. No entanto, permanecem os padrões de exclusão social e de instituições ineficientes; ver World Bank (2002). 5 A maioria das medidas utilizadas na literatura de economia avalia a dispersão de acordo com determinados atributos desejáveis, conhecidos como axiomas da medição de desigualdade. Veja em Cowell (1995 ou 2000) uma discussão da questão das medidas. 6 Este relatório não abrange a análise multidimensional completa do bem-estar. Para obter mais informações sobre esse assunto, ver Bourguignon e Chakravarty (2003). 7As citações neste parágrafo são provenientes das páginas 4-5 e 150. 8 É vasta a literatura sobre as teorias de injustiça social. Ver uma pesquisa recente em Sen (2000). 9 Na tentativa de apresentar interações complexas em um diagrama tão simples, omitimos várias importantes direções da causalidade e os circuitos de informação. Os resultados do mercado e os mecanismos de redistribuição pública, por exemplo, afetam as distribuições de bens e os conjuntos de oportunidades apresentados aos agentes, bem como seus rendimentos e resultados. 10 Ver em North (1990) um tratamento clássico das instituições, bem como as normas e “regras do jogo”. 11 Ver uma análise em Heller e Mahoney (2003), os principais exemplos em Tilly (1999) e Bourdieu (1990), e uma discussão sobre a “desigualdade de influência” sob uma perspectiva cultural em Rao e Walton (publicação a ser lançada). Uma outra vertente da literatura econômica sobre medição de desigualdade trata do desenvolvimento da teoria e da medida de polarização. Essa teoria parte da informação conceitual de que a avaliação da relevância das desigualdades pelos indivíduos está vinculada às diferenças entre os grupos com os quais eles se identificam e os outros grupos dos quais eles se sentem alienados. Ver Esteban e Ray (1994). 12 Ver em Rothschild (2001) um relato significativo de como Adam Smith e outros pensadores iluminados se preocupavam muito com o uso indevido da influência desigual e sobre o papel da atuação intencional dos diferentes grupos na formulação da economia e dos resultados sociais. 13 Ver Ravallion (1997) 14 Esse resultado foi estabelecido para os mesmos dados definidos por Ravallion e Chen (1997). 15 Lucas (1988), p. 5. 16 Forbes também utilizou uma técnica econométrica diferente, que aplica o Método Generalizado dos Momentos (Generalized Method of Moments – GMM) de Arellano e Bond (1991). 17 Existem certamente outros fatores que influenciam os efeitos dos choques nos países, como o grau de abertura em geral, que tende a ser associado a impactos menores no longo prazo dos choques externos.

Page 44: Desigualdade na América Latina e no Caribe ... - …siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166... · Região da América Latina e do Caribe ... Comentários são

44

18 Um dos exemplos mais bem documentados abrange o amplo efeito da privatização dos serviços públicos de abastecimento de água sobre a redução da mortalidade infantil na Argentina, cujo impacto foi desproporcionalmente grande nas municipalidades mais pobres (Galiani, Gertler e Schargrodsky, 2002). É importante reconhecer as experiências bem-sucedidas, mesmo que os índices agregados de desigualdade de renda ainda que sejam crescentes em alguns países. 19 Existe uma sobreposição considerável entre o significado de raça e etnicidade – ambos são conceitos sociais e culturais e, nos casos abordados neste documento, estão associados ao status de minoria na América Latina. Seguimos a prática comum e empregamos o termo raça para nos referir aos indivíduos que se identificam ou que as sociedades identificam como latinos descendentes de africanos, e o termo etnicidade se refere aos grupos indígenas. O significado de gênero é também uma criação social, mas neste relatório a categoria se refere às diferenças biológicas de sexo. 20 Esse tema é discutido em mais detalhe no Capítulo 9.