(Des)escrever a fissura: Llansol, Fontana, Janaína

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(Des)Escrever a fissura Há alguns anos, quando estudava o livro de arte moderna de Giulio Argan, me deparei com a obra “Conceito espacial: espera (1963)”, de Lucio Fontana, que me atravessou como atravessa o corte à tela. Um tempo depois, assisti ao filme “A pele que habito”, de Pedro Almodóvar, que me foi outro apelo à zona crítico-afetiva. Nesse período, desenvolvia um estudo cênico sobre a obra da poeta Ana Cristina Cesar, que ia exatamente em direção aos modos de uso e abuso do corpo poético. O bisturi do cirurgião Robert Ledgard lapidando e invadindo a pele que recriaria sua mulher morta me lembrou rapidamente a tela de Fontana e seu gesto radical de atravessamento do plano da pintura. A partir dessas referências, escrevi o seguinte poema: Essa pele que habito é em mim asa, dor, grito. É em mim a possibilidade fenda, Fontana rasgando os olhos e o mito, rasgando a pele de hábito, rasgando largo _rito. A pele habitada me desabita, me converte em ausência, aparece de visita vestindo um hábito vestido ela me encara, e aqui o preço: o olho da cara. Desabitada a pele a carne insiste faz-se vida toda músculo falta o toque, o choque, goteja sangue mas resiste.

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trabalho acadêmico Isadora Bellavinha

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(Des)Escrever a fissura

Há alguns anos, quando estudava o livro de arte moderna de Giulio Argan, me deparei

com a obra “Conceito espacial: espera (1963)”, de Lucio Fontana, que me atravessou como

atravessa o corte à tela. Um tempo depois, assisti ao filme “A pele que habito”, de Pedro

Almodóvar, que me foi outro apelo à zona crítico-afetiva. Nesse período, desenvolvia um estudo

cênico sobre a obra da poeta Ana Cristina Cesar, que ia exatamente em direção aos modos de uso

e abuso do corpo poético. O bisturi do cirurgião Robert Ledgard lapidando e invadindo a pele que

recriaria sua mulher morta me lembrou rapidamente a tela de Fontana e seu gesto radical de

atravessamento do plano da pintura. A partir dessas referências, escrevi o seguinte poema:

Essa pele que habitoé em mim asa, dor,grito. É em mim a possibilidade fenda, Fontana rasgando os olhos e o mito,rasgando a pele de hábito,rasgando largo_rito.

A pele habitada me desabita,me converte em ausência, aparece de visitavestindo um hábito vestido elame encara,e aqui o preço: o olho da cara.

Desabitada a pelea carne insistefaz-se vida toda músculofalta o toque, o choque,goteja sangue mas resiste.

Porém o hábito da pele à carne faltae desse desabitodesacostumada carnevê-se a dobra da feridaregenerar-se em pautavê-se cobrir retorcida a carne farta,uma pele úmida,

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hábil, recém parta.

A partir das imagens geradas pelo filme e pelo quadro de Fontana, o poema faz uma

leitura da poética de Ana Cristina Cesar para além da poesia escrita, pensando sua obra como uma

matéria que se constitui com um corpo habituado socialmente, mas que é também a quebra do

mito do corpo através da ferida, da fenda, do suicídio que se dá numa perfuração do mito e

anulação do corpo. Em Ana C. a relação com a tradição é sempre de fratura e abuso. A imagem de

Fontana recusa radicalmente toda ideia de “representação” do espaço por meio da pintura

tradicional, afirmando que qualquer coisa que se faça “é um fazer no espaço”1. O gesto de fratura

põe o espaço externo em relação com o espaço interno e a tela, nesse caso, se torna muito mais a

fenda do que a unidade do plano. Esse corte é o que permite o sangramento, ou seja, o líquido

que transita do interior para o exterior, do indivíduo para a cultura, mas também do exterior para

o interior, da cultura para o indivíduo – e que se realiza na arte como construção e desconstrução

do mito. Também o plano e o gesto do cirurgião plástico em “A pele que habito” se apresenta

como um atravessamento do mito tanto da morte como da pele protetora: a pele que se constitui

aí é exatamente aquela que tira o homem de si mesmo, que perde o homem em si. A pele habitual

é retirada e uma outra, artificialmente criada, recobre a carne exposta – há ferida, mas há também

resistência/sobrevivência: a carne adere à nova pele para se reumanizar. A verticalidade, o

atravessamento do plano (do corpo, da tela, da cena e do poema) é o que perfura, no gesto de

escrita, todas essas diferentes mídias num diálogo possível, por uma operação crítica do gesto

poético.

Partindo do pensamento de Aby Warburg, faz-se aqui duas propostas: a primeira sugere

uma leitura artisticocultural baseada no Atlas Mnemosyne, isto é, na possibilidade de

reconfiguração e bricolagem das obras de arte e de cultura num amálgama expressivo que não se

conforma às formas tradicionais e pré-estabelecidas da crítica de arte com pauta eurocêntrica; a

segunda quer pensar o símbolo como “um 'intervalo', uma espécie de no man´s land no centro do

humano”2, a ciência que se articula como uma “iconologia” do intervalo que “trabalha sem cessar

o tormento simbólico da memória social”. Visando o quadro de Fontana e o pensamento de

Warburg, escrevi o seguinte poema:

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Conceito espacial: espera (1963)

já não há mais muito a dizer.

o que há é árido.

o que há, não há propriamente.

há uma planície

caatinga

secura

há uma terra desbotada

talvez um ou outro grão

de areia

a reduzir-se

vão.

mas há.

um gesto brusco que se imprime

memória

um gesto faca

furo e fenda

tela a fora

um corte que te atravesse

espaço

e desmorone a espera num rastro

num só traço de um abismo que se abre

e tudo mais seja possível

e haja

na aridez

enfim

uma várzea.

No sentido das propostas que fiz a partir do pensamento de Aby Warburg, o poema que

escrevi com os olhos no quadro de Fontana acabou por operar a memória de um dos tormentos

sociais da cultura em que vivo – tormento vastamente pensado pelas mais diversas formas

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artísticas no Brasil. A planície seca e árida do quadro do pintor italiano, com uma pequena textura

granulada, me remeteu ao sertão brasileiro onde a caminhada dos retirantes custa muito até

encontrar alguma via de possibilidade, algo vivo. Imaginando um migrante que saia da

extremidade superior esquerda ou da extremidade inferior direita do quadro e começa a andar,

por muito tempo, o que há, “não há propriamente”. O movimento inicial do poema corresponde a

esse trajeto em direção a alguma coisa (não se sabe ainda o quê) através de um terreno que se

estende numa morte aparentemente infinita. Esse movimento que traço no poema vai na direção

oposta do olho em relação ao quadro. Quando olho, minha visão é diretamente sugada para o

abismo da fenda, esse atravessamento do infinito que leva a uma zona fora do quadro, mas que só

se realiza dentro dele [o infinito no finito] Isso porque a experiência da arte visual, em especial a

pintura (já que a escultura sempre terá um lado escondido, e o cinema, como arte visual, nunca se

mostrará todo de imediato) é uma arte que se apresenta em totalidade, de uma só vez – o

impacto visual da pintura se dá por um lance de olhar (um lance de dados). No entanto,

especificamente nesse trabalho de Fontana, ao se mostrar inteiramente, o quadro não se revela

inteiramente. Há nele a zona negra da fratura, o que há de pintura nele (o que ele pinta, trama,

articula) é exatamente a fenda onde não há tinta, mas há possibilidade. Considerando que o modo

de aproximação a uma obra de arte depende completamente da forma dessa obra, percebi que

para conseguir o efeito de surpresa que a fenda do quadro gera no olhar, era preciso, com o

poema, traçar a zona do quadro onde não há fenda, mas apenas a secura de uma cor sem cor, de

uma pintura sem imagem, de um quadro sem representação. Nesse sentido, vale recuperar o

texto “A tarefa do tradutor”, de Walter Benjamin.

Ao pensar a tarefa da tradução de um texto de uma língua pra outra, Benjamin apontará

que há sempre algo que não é traduzível, comunicável, e que é exatamente nesse intocável que o

tradutor deve focar. Duas línguas nunca terão equivalência completa e, desse modo, interessa

mais uma tradução do que lhe é essencial – mas não comunicável – do que aquilo que se pode

comunicar. A partir daí, o crítico alemão trará a diferença entre o visado, e o modo de visar. O que

a língua original de um texto apresenta é um “modo de visar” um determinado “visado”. Interessa

ao tradutor a constituição de uma nova forma de visar para alcançar o mesmo visado, já que

jamais, em outra língua, será possível constituir a mesma forma de visar. Pensando que o

procedimento de leitura de uma obra de arte visual por um poema é também uma forma de

tradução, há aí, novamente, a necessidade de se constituir uma nova forma de visar. Se

assumimos que a poesia, num caráter oposto ao da pintura, se apresenta sucessivamente, ou seja,

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pela sucessão de palavras e não por sua apresentação total imediata, fez-se necessário, no

processo de composição do poema homônimo ao quadro, a articulação de um outro modo de

visar que, novamente em oposição a pintura, precisou apontar primeiro o que não se vê a priori

no quadro de Fontana – seu terreno, sua cor, sua textura – para só depois evidenciar a fenda, e

desse modo obter a surpresa da fenda – que no quadro é a primeira impressão que se obtém.

Desse modo, a fenda, no poema, só se apresenta posteriormente como um gesto de

memória, um pulso “mnemosyne” que remonta a possibilidade da várzea a surpreender o

retirante – enfim, uma possibilidade de alguma vida, algo que irrompe em meio a secura do

quadro, do poema, da experiência. Algo que atravesse a forma de tratar a pintura apenas por sua

planaridade, a poesia apenas por sua comunicabilidade linguística; pois há algo de escultura na

tela fraturada; há algo de tinta e textura na poesia; há sempre uma sobra, um excesso de uma arte

em direção à outra. Afinal, segundo Derrida em seu livro “Torres de Babel”, toda língua, todo

sentido é non-sense, é deserto, e é somente através dessa ausência de sentido e de uma tentativa

de construção de sentido que se pode constituir alguma linguagem. O poema, num gesto oposto

ao do quadro, tenta, pela apresentação do que não é fenda, dar sentido ao corte feito na tela, ao

rio que atravessa a seca.

Para falar do Livro, feito, sendo, escolho o ato falho, talvez inconscientemente crítico de

Janaína, que num gesto de dobra, de tensão entre as páginas, forma a palavra-valise (ainda que já

gramaticalmente instituída): fendo. À poética da falha que insiste, e repete, é preciso lançar um

olhar atento. A espacialidade impressa da expressão, feito, sendo, com a pertinência da vírgula

como nervo central, e o equilíbrio de letras em cada lado, pensando a materialidade da letra, da

palavra, da página, é a correspondência do próprio livro em sua forma. [exemplificar com o livro e

o escrito feito sendo dividido nas duas abas]. Quando se tem nas mãos um livro novo, pouco ou

nada lido, o mesmo resiste à abertura: não se pode planificar o livro, ele não cede à forma da

mesa, há nele uma tensão que o induz a fechar-se, como se o leitor, para lê-lo, precisasse de uma

dose a mais de esforço, de desejo, precisasse tencionar as mãos na insistência do aberto. É preciso

segurá-lo, forçar a abertura, e não é fácil abrir um livro. [exemplificar]. Quando há uma tensão

paralela entre o desejo do livro de recolher-se e o desejo do leitor de abri-lo, como numa queda

de braço sem vencedor, o que se tem é a entreabertura, o semiaberto, o entrevisto, que esconde

parte das letras, das palavras, da página: tem-se o “fendo”, a fenda, a falta, um lugar onde o livro

não se escreva: não se pode dar a ler um livro por inteiro. [exemplificar].

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O “fendo” de Janaína me remeteu, desde a primeira “falha”, à série do pintor italiano

Lúcio Fontana, intitulada Conceito Espacial. As telas monocromáticas recebem diversas incisões,

cortes, fendas, que podem remeter à cavidade vaginal ou a feridas, mas que antes de tudo é um

atravessamento do pictórico para o real, um atravessamento da tela que já não serve como

suporte para a representação, mas que é a própria apresentação da travessia, da transposição, do

infinito contido no finito. Fontana rompe com a bidimensionalidade própria da pintura, com a

tradição e a história que armam um campo de força simbólico na superfície da tela: “plano de

representação, superfície da projeção do imaginário, espelho opaco das coisas, espaço ilusório ou

concreto para a construção das figuras e dos ícones.” Cava, carcome como uma traça precisa a

“estrutura fechada do sistema da pintura, do sistema da arte, do sistema da cultura e abre às

regiões ulteriores do não-dito, do indizível, do não-representável.” O que há no quadro é a

apresentação da fenda – não a tinta, não o gesto do pincel, não o pintor ou a pintura mas o

espaço, o além, o abismo e o aberto, dobra vacante do infinito na tela. O observador do Conceito

Espacial perde de vista o que é tela, e é sugado pela profundeza da fenda, é instigado a ver o que

está por trás, oculto, é levado ao gesto da transposição, que é a passagem de um lugar a outro.

Maria Gabriela LLansol, por sua vez, entorno do texto, da escrita, do corpo a escrever,

constitui um traçado que rompe com a representação própria da narratividade do romance para

propor uma literatura sem mimese, a partir do que ela denomina como textualidade. A operação

de escrita que apaga a fogueira do “escrever conforme e gramatical” parece caminhar exatamente

no sentido da fenda, da fratura, do Livro (com maiúscula) em inúmeros livros, pela noção do

fragmento; e também no sentido verbal, do livro que fende o corpo de escrita, o corpo que

escreve, o corpo que lê. A forma ameaça a própria estrutura da linguagem: não mais fazer sentido

(enquanto compreensão), mas sim um fazer sentido, antes de tudo, sentir pelo corpo. A

textualidade llansoniana se dá através de um corpo a escrever, corpo a sentir, corpo ferido pelo

escrito, corpo fendido. O que escreve-se? Tudo escreve. E a escrita portanto se espalha

incessantemente na fenda infinita do mundo, afinal, como dirá Mallarmé, tudo no mundo é feito

para acabar em livro. A fenda, a dobra, a ferida; a tela, o caderno, o corpo: o livro: tudo que

escreve e, simultaneamente, o que resta, na lacuna do quadro-travessia, no furo da costura da

página, nessa renda de letras, frente ao lápis e ao estilete, o que se diz mesmo na impossibilidade

é o que não cessa de não se escrever.

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O gesto llansoniano de ferir a língua, de ferir a escrita, a letra, o corpo (essa dobra), de

matar o romance para que o romance não morra, me parece estar em sintonia com o gesto de

Fontana, que tira da pintura o que lhe é tradicionalmente próprio para que ela exista “a mais”, no

espaço, que transpõe, que leva ao fora, que dobra a tela, o outro, o estranho, o oculto, o que está

ali e além; me parece o gesto de Mallarmé de libertar o verso, de libertar o Livro para sua condição

só, material, independente de autor ou leitor, na tensão existencial de um livro que se quer fechar

ou abrir por vontade própria, ainda em gerúndio, já pronto, feito, mas ainda a escrever (como

chover tempestade), sendo; me parece o gesto de Janaína, ainda que falho, de ferir o próprio livro,

de forçar a abertura a contra gosto das páginas e perder-ganhar a fissura, de um livro que não

pode ser lido, que sempre será uma má tradução, que sempre será um erro de sintaxe, o Livro que

sempre a se escrever não está escrito, o gesto de contrair gramaticalmente os dois lados da dobra

– feito, sendo – para enfim, dobrar a língua sobre si mesma, a perder de vista seu significado já

dicionarizado para ganhar a dobra mutante da palavra criada: fendo.