DESENVOLVIMENTO MORAL E CONDUTA ANTI-SOCIAL: QUE RELAÇÕES?
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‐ A teoria de Kohlberg que pressupõe a primazia da cognição, ao definir o acto moral como aquele que segue um processo de raciocínio moral baseado em princípios de justiça, propondo seis estádios de desenvolvimento do raciocínio moral (ver Kohlberg, 1984a; 1984b);
‐ A teoria de Hoffman que define o acto moral mais em termos motivacionais do que cognitivos, enfatizando o papel da empatia, enquanto reacção afectiva perante o sofrimento ou necessidade do outro, que predispõe à ajuda ou acto moral (ver Hoffman, 1987; 1991).
A INTEGRAÇÃO DOS MODELOS DE HOFFMAN E KOHLBERG NA EXPLICAÇÃO DA MORALIDADE – O CONTRIBUTO DE GIBBS
Gibbs (1991a, 1994, 1995b) tem vindo a propor a integração dos modelos de Kohlberg e Hoffman a fim de melhor se explicar a conduta moral, ou seja, o autor considera que é a inter‐relação entre os princípios de justiça e os afectos empáticos que melhor permitirá compreender a natureza, não apenas das condutas morais, mas também das condutas anti‐sociais.
Segundo Gibbs (1991a, p.183) «as teorias de Kohlberg e Hoffman proporcionam contributos importantes e complementares para a nossa compreensão do desenvolvimento e motivação morais. O trabalho de Kohlberg enfatiza a construção progressiva, por parte do indivíduo, do significado da moralidade madura, e explica as motivações morais em termos de um processo de descentração que desencadeia prescrições de igualdade e reciprocidade, isto é, de justiça. O trabalho de Hoffman enfatiza a transmissão, por parte da sociedade, de normas morais através da interiorização e encara o afecto empático e as emoções com ele relacionadas como a base da motivação moral» Por isso, Gibbs (1991a; 1994; 1995b) tem vindo a propor que se integrem os dois modelos a fim de se ter uma compreensão mais alargada e profunda do desenvolvimento sociomoral e que se leve em consideração essa integração em investigações e estudos futuros.
Gibbs (1991a) começa por estabelecer uma comparação entre os dois modelos, no que se refere a dois aspectos centrais: «primeiro, o desenvolvimento da moralidade e especificamente o significado para os dois autores das orientações morais externas e internas; e, segundo, as interpretações cognitiva e afectiva da motivação moral» (p. 184).
Para Kohlberg (1984) o facto de ser possível verificar‐se uma orientação progressivamente interna no desenvolvimento moral não deve ser interpretada como uma interiorização de dados do ambiente, mas antes como um progresso no sentido da maturidade. Kohlberg (1984) salienta mesmo que seria mais correcto falar‐se de uma progressão do juízo moral do superficial para o profundo, do que do exterior para o interior do indivíduo (ver Gibbs, 1991a, p.185).
MARTINS, M. & Castro, F. (2007) Desenvolvimento moral e conduta anti‐social: que relações? In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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A moralidade interna resultaria, assim, de um processo de construção, por parte do indivíduo, a partir das oportunidades de descentração (“role‐taking”) que lhe vão sendo dadas ao longo da vida, na interacção, quer com a família, quer com o grupo de pares. Kohlberg não nega a importância das práticas educativas parentais no desenvolvimento moral da criança, tal como sugeridas por Hoffman, mas considera que a interacção com os grupos de pares, nas diferentes idades, desempenha um papel igualmente, senão mais importante, nesse desenvolvimento. A motivação para a conduta moral surge, assim, à semelhança do que acontecia no domínio cognitivo lógico, como uma necessidade de restaurar a igualdade e reciprocidade face a situações de injustiça. Gibbs (1991a) recorda a este propósito as expressões de Kohlberg e de Piaget, respectivamente, relativas ao mecanismo de actuação da motivação para as condutas sociomoral e puramente cognitiva. O primeiro autor afirmava que «violar a lógica e violar a justiça despertam os afectos» (Kohlberg, 1984, p.63) e o segundo disse que «a lógica é a moralidade do pensamento tal como a moralidade é a lógica da acção» (Piaget, 1932, p.398). A motivação para agir é pois encontrada no desequilíbrio, momentaneamente experimentado, ao nível das estruturas cognitivas ou sociocognitivas do indivíduo e do impulso natural para a restruturação, em um nível superior de maior integração e coordenação, de perspectivas, no caso do desenvolvimento sociomoral (ver Kohlberg, 1984; Gibbs, 1995b).
Assim, enquanto para Kohlberg (1984) a orientação moral externa (um juízo moral superficial) reflecte a imaturidade ou o atraso do desenvolvimento sociomoral, para Hoffman (1984,1994) a orientação moral externa (uma orientação para as sanções externas) reflecte uma história de práticas educativas parentais predominantemente afirmativas de poder. A moralidade interna seria autoconstruída para Kohlberg e auto‐adoptada para Hoffman (ver Gibbs, 1991a).
Gibbs (1991a, p.207) considera que é plausível que, quer os processos de construção cognitiva, propostos por Kohlberg, quer os processos de interiorização moral através da socialização, propostos por Hoffman, contribuam para a formação de uma orientação moral interna. É curioso o papel que a cognição e o afecto desempenham na motivação da conduta moral, nas duas teorias. Enquanto que na teoria de Kohlberg (1984) a cognição é uma fonte de motivação primária e o afecto é secundário, para Hoffman (1991) o afecto empático é a fonte de motivação primária, sendo a cognição a secundária. Ambos os teóricos têm afirmações válidas sobre a questão. A construção cognitiva da atribuição de significado moral a uma situação vista como injusta, pode bem gerar a motivação moral, tal como o afecto empático desencadeado por uma vítima em sofrimento o pode também fazer. Pode ainda acontecer que as duas fontes de motivação entrem em conflito, isto é, a justiça e a empatia podem impelir a comportamentos opostos em situações de conflito de justiça distributiva em que, por exemplo, um indivíduo merece mais e um outro indivíduo, embora menos merecedor, está em situação de maior necessidade (ver Gibbs, 1991a, pp. 207‐208). Para obviar a este tipo de problema, Frankena (citado por Gibbs,1 991a, p. 208) propôs mesmo que a «justiça deva ser temperada pela beneficência quando uma decisão justa resulte num sofrimento grave, tal como a beneficência deve ser temperada com a justiça quando o acto
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beneficente resulte em grande desigualdade moral». Embora as duas fontes de motivação possam estar em conflito, Gibbs (1991a, p.208) considera que «elas estão intimamente ligadas e frequentemente são compatíveis, e embora a cognição tenha um importante papel na motivação para corrigir injustiças, a empatia tem um papel crítico na intensidade e persistência do esforço para assegurar o bem estar da vítima/receptor de ajuda» e eventualmente pode ter um papel no desencadear de emoções que poderão depois conduzir ao raciocínio por princípios.
Por tudo o que foi exposto, Gibbs sugere que a descentração cognitiva com a aplicação dos princípios de justiça e o afecto empático são, provavelmente, ambas fontes de motivação primária no desencadear da conduta moral. Do mesmo modo, os conceitos de construção do significado moral e socialização moral, não seriam incompatíveis mas dois aspectos que se interligam no desenvolvimento moral dos indivíduos (ver Gibbs, 1991a, 1995b).
O referido autor considera ainda que os dois aspectos discutidos ‐ raciocínio moral baseado em princípios de justiça e empatia ‐ são importantes não apenas na compreensão da conduta pró‐social, mas também na compreensão da conduta anti‐social. Mais ainda, é de opinião que esses dois aspectos devem ser ambos levados em consideração quando se pensa na elaboração de programas de educação moral ou reeducação social (ver Gibbs, 1987;1991b,1994, 1995a).
Gibbs (1987, 1991b) estudou especificamente o caso de adolescentes delinquentes e explicou a conduta anti‐social com base no modelo de desenvolvimento que integra os contributos de Kohlberg e Hoffman, tendo mesmo sistematizado um programa de intervenção com vista ao tratamento de jovens delinquentes (ver Gibbs, Potter & Goldstein, 1995).
AS RELAÇÕES ENTRE A MORALIDADE E A CONDUTA ANTI-SOCIAL
Gibbs (1991b, 1994, 1995b) salienta a importância de, quando se estuda a relação entre juízo e conduta morais, considerar‐se o que o autor designa por distorções cognitivas, pois estas parecem desempenhar um papel crucial no aparecimento e manutenção da conduta anti‐social em adolescentes.
As distorções cognitivas «são atitudes ou crenças não verídicas que estão enraizadas na pessoa e na sua conduta social. O viés egocêntrico constitui com efeito uma distorção cognitiva natural na criança pequena (...) a persistência desta distorção egocêntrica na adolescência coloca o indivíduo em alto risco no sentido do comportamento anti‐social, dado o tamanho, força, independência, impulsos sexuais e capacidades do ego dos adolescentes» (ver Gibbs, 1995b, pp.43‐44).
Assim, Gibbs (1991b, p.95) sugere que os adolescentes que manifestam o distúrbio da conduta anti‐social (no sentido da DSM IV) apresentam um atraso no seu desenvolvimento sociomoral, no sentido em que evidenciam um grau pouco
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vulgar de viés egocêntrico, isto é, uma orientação moral centrada no eu e um juízo moral imaturo (do tipo previsto pelos estádios 1 e 2 de Kohlberg e de Gibbs). Este dado apresenta ainda alguma polémica, pois alguns autores não encontraram diferenças significativas ao nível do raciocínio moral de delinquentes e não delinquentes. Nomeadamente, Fonseca (1993) em um estudo com a escala de Kurtines & Pimm que avalia as dimensões Piagetianas de heteronomia e autonomia moral, não encontrou diferenças significativas entre jovens delinquentes e não delinquentes, e entre crianças com distúrbios da conduta anti‐social e crianças sem esse distúrbio. O esclarecimento desta questão torna‐se pertinente quando pensamos nas implicações que tal facto pode ter no tratamento de jovens delinquentes e na prevenção das condutas anti‐sociais.
Apesar de tudo, tal como avaliados pelas medidas de produção do desenvolvimento moral (com a M.J.I. de Kohlberg & Colby, 1987; ou com o SRM‐SF de Gibbs, Basinger & Fuller, 1992), encontram‐se percentagens significativamente mais elevadas de delinquentes ou jovens com desordem da conduta anti‐social nos estádios 1 e 2, por comparação aos estádios mais maduros e por comparação aos restantes jovens. Porém, segundo Gibbs (1991b,1994), o atraso no desenvolvimento sociomoral, só por si, pode não conduzir a conduta criminosa ou anti‐social severa, a menos que certos processos defensivos desempenhem o seu papel. Assim, associadas ao atraso de desenvolvimento sociomoral, aparecem certo tipo de distorções cognitivas que reforçam a centração no eu e inibem os mecanismos da empatia e da culpa de actuarem no sentido da inibição da conduta anti‐social e da desactivação da conduta pró‐social. Nas palavras de Gibbs (1991b, p. 98): «É preciso considerar que, teoricamente, todos os indivíduos, mesmo os que evidenciam atraso no desenvolvimento sociomoral possuem: algum grau de predisposição empática (uma vez que esta seria uma predisposição com raízes biológicas e inata); e uma motivação para manter a autoconsciência ou evitar a dissonância cognitiva entre o autoconceito e o comportamento. E particularmente, quando o dano infligido aos outros é óbvio e difícil de ignorar, os jovens envolvidos na conduta anti‐social podem sentir tensão psicológica proveniente da: a) culpa incipiente, sentida a partir da empatia despertada pelas pistas salientes do mal‐estar da vítima; e b) dissonância cognitiva entre a conduta que é injustificadamente prejudicial aos outros e um autoconceito que prescreve que não se deve prejudicar os outros sem justificação. É precisamente na defesa contra a tensão provocada por estes inibidores potenciais da conduta anti‐social, que o jovem anti‐social congela o seu atraso no desenvolvimento, através da elaboração e recurso a certas distorções cognitivas que servem os interesses do eu egoísta»
De facto, o criminologista Stanton Samenow (citado por Gibbs, 1994, p.17) verificou que «mesmo o mais severo e duro dos criminosos evidencia alguns sentimentos de empatia genuínos pelos outros, embora superficiais e ocasionais». Assim, apesar de ser provável que o desenvolvimento da empatia também tenha algum atraso no seu próprio desenvolvimento (tal como conceptualizado por Hoffman e para além do atraso decorrente da associação com o atraso moral), Gibbs (1991b) sugere que o processo das distorções cognitivas actua como
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mecanismo inibidor quer da empatia, quer da responsabilização pelos actos nos jovens delinquentes.
O viés egocêntrico e o pensamento centrado nas necessidades do eu frequentemente encontrados em jovens com desordem da conduta anti‐social podem considerar‐se distorções cognitivas primárias (com pensamentos do tipo: desejo algo, logo é legítimo que o obtenha), mas logo surgem, associadas a estas, as distorções cognitivas secundárias, ou racionalizações, ou erros de pensamento, ou falsas crenças ou falsas concepções, segundo expressões já utilizadas por outros autores (e.g., Ellis, citado por Gibbs, 1991b).
Aliás, outros autores já tinham constatado algo de semelhante à ideia das distorções cognitivas. Nomeadamente, Dodge & Frame (1982) constataram que as crianças mais agressivas tendiam a atribuir exagerada e excessivamente intenções hostis aos seus pares, mesmo em circunstâncias nas quais essa atribuição não era lógica, nomeadamente em situações ambíguas. Crick e Dodge (1994) consideram que as crianças agressivas reactivas cometem um erro atribucional de hostilidade, relativamente às intenções dos pares, numa situação de interacção social não ameaçadora.
No seu trabalho com jovens delinquentes, Gibbs (1991b, p. 95) encontrou predominantemente duas categorias principais de distorções cognitivas secundárias: a exteriorização e deslocação da culpa (“externalization of blame”) e a etiquetagem ou categorização (“mislabing”), com minimização da humanidade do outro.
A exteriorização da culpa consiste num processo de racionalização defensivo que atribui a culpa do dano infligido à própria vítima. Gibbs (1991b, pp.100‐101) apresenta alguns exemplos esclarecedores do modo de actuação desse mecanismo: quando um jovem justifica o assalto a uma loja, dizendo que a culpa foi do proprietário que não tinha activado o alarme; ou justifica o assalto a uma casa particular, dizendo que a porta da mesma não estava bem trancada, atribuindo também neste caso a culpa ao próprio proprietário, vítima do assalto. Este mecanismo, de exteriorização da culpa, é frequentemente também utilizado em casos de violação, em que a vítima é vista como tendo feito algo que justifica a violação, ou como tendo provocado a conduta agressiva. O processo visa inibir quer mecanismos cognitivos (e.g., responsabilização pelos próprios actos) quer mecanismos afectivos (e.g., empatia pela vítima), que são inibidores da conduta agressiva mesmo quando não se verifica um atraso do desenvolvimento. A conduta anti‐social não é um corolário imediato do atraso de desenvolvimento sociomoral, pois ser deficiente mental não implica envolvimento em conduta anti‐social, porque nesse caso existe a actuação dos mecanismos afectivos da empatia. Só quando o atraso no desenvolvimento se associa às distorções cognitivas, que inibem os mecanismos afectivos de actuar, se manifesta a conduta anti‐social. Gibbs (1991b) verificou mesmo que alguns delinquentes eram capazes de apresentar raciocínio do estádio 3 e, eventualmente, do estádio 4 do
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desenvolvimento moral (embora fosse uma percentagem reduzida), sendo nestes casos específicos que a actuação das distorções cognitivas era mais acentuada.
A etiquetagem ou categorização consiste também num processo de racionalização defensivo, que faz com que se considere a outra pessoa (potencial vítima) como pertencendo a um grupo à parte, minimizando a sua humanidade ou merecimento a ser bem tratado. O mecanismo actua também através de uma re‐interpretação dos dados dos acontecimentos; por exemplo, numa situação de tráfico de droga, um jovem re‐interpreta a situação, afirmando que estava apenas ajudar um amigo, ignorando a ilegalidade do acto e os danos que poderá causar aos consumidores (ver Gibbs, 1991b, p.101).
Em suma, o atraso do desenvolvimento sociomoral dos jovens delinquentes consiste na persistência do viés egocêntrico, bem como de um juízo moral imaturo, radicados numa atitude que visa servir exclusivamente os interesses do eu. Quando o atraso no desenvolvimento sociomoral está associado a conduta anti‐social séria é provável que a ela estejam associadas as distorções cognitivas secundárias – exteriorização da culpa e etiquetagem. Estas têm um efeito inibidor dos mecanismos de responsabilização pelos próprios actos e da empatia pelas vítimas, provocando assim um efeito de congelamento ou fixação do atraso no desenvolvimento sociomoral nos estádios 1 e/ou 2. Estes dois aspectos – atraso no desenvolvimento sociomoral e distorções cognitivas – caracterizam não só o jovem anti‐social mas também o grupo de pares ou gang ao qual ele se pode associar e filiar (ver Gibbs, 1991b).
Barriga e Gibbs (1996) desenvolveram e validaram um questionário para medir as distorções cognitivas centradas no eu. Trata‐se do questionário «Como eu penso?» («How I think?» ‐ HIT), que engloba itens distribuídos por quatro grandes tipos de distorções cognitivas: viés egocêntrico; exteriorização da culpa ou culpabilização do outro; etiquetagem com minimização da humanidade do outro; e atribuição de hostilidade ao outro. Os itens foram também redigidos com base nos sintomas descritos na DSM – IV a respeito dos síndromas do distúrbio de conduta e do distúrbio desafiante de oposição.
O questionário HIT foi aplicado a três grupos de adolescentes: um primeiro grupo que cumpria pena num colégio de reeducação de menores; um segundo grupo de jovens de uma escola pública que apresentava problemas disciplinares; e um terceiro grupo de adolescentes de uma escola pública bem considerada na comunidade. Os resultados obtidos com o HIT permitiram discriminar entre o primeiro e o terceiro grupo. Contudo no que se refere ao segundo grupo este apresentava níveis baixos de delinquência (similares aos do terceiro grupo) mas apresentava níveis elevados de distorções cognitivas (similares aos do primeiro grupo). De qualquer modo, a validade de constructo do instrumento foi razoável, pois o HIT correlacionava com duas medidas de comportamento anti‐social registado pelo próprio e foi parcialmente eficaz na discriminação dos grupos de critério. Em suma, os resultados obtidos com o HIT foram globalmente consistentes com o modelo teórico atrás descrito (ver Barriga & Gibbs, 1996).
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IMPLICAÇÕES DAS TEORIAS COM VISTA À IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMAS DE INTERVENÇÃO COM JOVENS DELINQUENTES
Estas descobertas conduziram Gibbs (1991b, 1994) a sistematizar algumas implicações da teoria descrita para o tratamento de jovens delinquentes. Aliás, conduziram o referido autor a trabalhar, em conjunto com outros autores especialistas nesse domínio, na elaboração, implementação e aplicação de um programa ‐ o programa EQUIPAR ‐ que visa o tratamento e recuperação de jovens delinquentes (ver Gibbs, Potter & Goldstein, 1995).
Gibbs (1991b,1994) considera que, uma vez que os jovens delinquentes têm um atraso no desenvolvimento sociomoral (relativamente àquilo que era esperado para a sua idade), ao qual se associam as distorções cognitivas já descritas, qualquer programa de reeducação de jovens com desordem anti‐social deve levar em consideração esses aspectos e tentar remediá‐los ou ultrapassá‐los de alguma forma.
O facto dos jovens terem um atraso no desenvolvimento sociomoral implica que precisam de vivenciar um meio sobre‐enriquecido com oportunidades de descentração social (“role‐taking”), de modo a estimulá‐los a avançar para níveis mais profundos e elaborados de raciocínio moral. Isto é, aos sujeitos devem ser dadas oportunidades de considerar as perspectivas dos outros e de coordená‐las com a sua própria perspectiva. Isso implica adaptar duas estratégias importadas dos estudos de Kohlberg: uma micro‐intervenção ao nível da discussão de dilemas hipotéticos e de vida real; e uma macro‐intervenção no sentido de reestruturar a instituição de modo a permitir a participação, de todos os que nela vivem, nos processos de elaboração e cumprimento de regras, isto é, uma abordagem de comunidade justa (ver Gibbs, 1991b, p. 102‐103).
A respeito desses aspectos, Gibbs (1991b) cita as investigações de Arbuthnote e Gordon, e de Niles (citado também por Sprinthall & Collins, 1994), que consistiram em micro‐intervenções com jovens delinquentes e que conduziram a ganhos sobretudo ao nível do raciocínio moral. Porém, os ganhos ou melhorias ao nível da conduta eram mais controversos e, por vezes, inexistentes. Esse dado tem levado Gibbs (1991b,1994) a enfatizar a importância de combater ou corrigir as distorções cognitivas, no âmbito dos programas de reeducação de jovens delinquentes.
Para combater as distorções cognitivas secundárias, o autor recomenda fundamentalmente duas técnicas (aliás, já utilizadas por Vorrath & Brentro, citados por Gibbs, 1991b), a saber: reverter ou inverter, isto é, recolocar a responsabilidade pela acção no próprio indivíduo, em vez de se permitir que ele exteriorize a culpa e a atribua às vítimas da sua própria acção; e recategorizar ou re‐etiquetar, isto é, contrapor à tendência do jovem anti‐social para as representações e interpretações ao serviço de si próprio, outras interpretações da
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realidade mais ajustadas. Isto significa, por exemplo, conduzir o jovem a atribuir valor de força e maturidade ao acto de dar e receber ajuda, em vez de atribuir esse valor às condutas agressivas, como é típico desses jovens (ver Gibbs, 1991b; Gibbs, Potter & Goldstein, 1995).
Deve‐se ainda combater as distorções cognitivas primárias, confrontando os jovens com o efeito das suas acções sobre os outros, de modo a torná‐los conscientes do dano que provocam nas vítimas (uma técnica similar à indução, sugerida por Hoffman para uma educação parental eficaz). O confronto dirige a atenção do jovem para a mágoa que inflige aos outros, possibilitando, assim, o reaparecimento de respostas empáticas inibidoras da conduta agressiva (ver Gibbs, 1991b; Gibbs, Potter & Goldstein, 1995).
Gibbs, Potter & Goldstein (1995) elaboraram um programa de intervenção que inclui as ideias e técnicas já descritas, complementando‐as com abordagens e técnicas que têm vindo a ser utilizadas na reeducação de jovens delinquentes, por vários especialistas desse domínio. O programa foi designado: Programa EQUIPAR, no sentido em que os autores pretendem motivar e equipar, ou apetrechar, os jovens delinquentes a ajudar‐se uns aos outros e a si próprios e, também, a viver em sociedade de forma social e emocionalmente ajustada.
No programa citado, Gibbs conjuga as suas técnicas de promoção do desenvolvimento moral e correcção das distorções cognitivas (que equipam o jovem, segundo expressão de Gibbs), com abordagens que utilizam o grupo de pares enquanto grupo de ajuda mútua, nomeadamente através da promoção de uma cultura positiva do grupo de pares (PPC) para motivar os jovens para a mudança, transformando a influência negativa do grupo de pares numa influência positiva. Esta última abordagem havia sido utilizada por Potter com resultados limitados, na medida em que, embora motivados para mudar, nem sempre os jovens estavam preparados (equipados, na expressão de Gibbs) com as estratégias e competências sociais que lhes permitiam ajudar‐se uns aos outros eficazmente, reduzindo‐se, por vezes, essas tentativas a ameaças, gritos e intimidação. A conjugação das estratégias propostas por Gibbs (promoção do desenvolvimento moral e correcção das distorções cognitivas) com a prática de Potter (utilizar o grupo de pares enquanto grupo de ajuda mútua, para induzir uma mudança pela positiva nos jovens) permitia, respectivamente, equipar os jovens no sentido de serem capazes de se ajudar entre si, e motivá‐los para a mudança ao nível das condutas. O programa EQUIPAR incluiu ainda o ensino de técnicas de desenvolvimento e utilização de competências (“skills”) sociais para lidar com situações interpessoais tensas e problemáticas, técnicas de gestão da raiva e controlo pessoal (um contributo específico de Goldstein ‐ um dos autores que participaram na elaboração do programa) (ver Gibbs, Potter & Goldstein, 1995).
O programa desenrolava‐se ao longo dos cinco dias da semana, em sessões que oscilavam entre a uma hora e a uma hora e meia, com seis a nove jovens, e orientadas por um adulto. Abordavam em alternância várias componentes curriculares: educação moral, correcção de distorções cognitivas ou erros de
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pensamento, gestão da raiva, treino de competências (“skills”) sociais para lidar eficazmente com situações interpessoais problemáticas. Incluíam também sessões de ajuda mútua, baseando‐se no registo de problemas específicos e tentativa de contribuir para a sua resolução em grupo de auto‐ajuda (ver Gibbs, Potter & Goldstein, 1995).
O programa EQUIPAR consiste pois numa abordagem multifacetada, enfatizando múltiplas componentes e integrando‐as num todo coerente. O programa foi objecto de uma avaliação sistemática e controlada, numa instituição correctiva com 57 jovens delinquentes e, segundo os seus autores, provou ser bastante eficaz. Os ganhos obtidos com o programa situavam‐se quer ao nível de uma melhoria significativa das condutas no interior da instituição de reeducação, quer ao nível de uma diminuição da taxa de reincidência para menos de metade, nos jovens que tinham sido libertados um ano depois de participarem no programa (Gibbs, Potter & Goldstein, 1995).
O programa inclui dois instrumentos de avaliação principais (para além de várias “check lists” utilizadas no seu decorrer), a saber:
‐ O Social Reflection Questionnaire of the Sociomoral Reflection Measure – Short‐form (SRM‐SF), para avaliar a maturidade do juízo moral;
‐ O Inventory of Adolescent Problems ‐ Short‐form (IAP‐SF) que foi construído para avaliar as competências sociais dos adolescentes face a situações interpessoais problemáticas ou tensas.
Gibbs, Basinger & Fuller (1992) constataram um facto curioso ‐ era possível diferenciar delinquentes de não delinquentes, ao nível do raciocínio moral, com testes de produção, mas não com testes de reconhecimento. Este dado parece sugerir que os sujeitos seriam capazes de reconhecer juízos morais mais maduros do que aqueles que eram capazes de emitir espontaneamente, ou seja, do que eram capazes de produzir por si próprios sem o recurso à leitura de alternativas. É preciso salientar a este respeito que nos testes de reconhecimento os sujeitos são confrontados com a leitura de alternativas representativas de todos os estádios, o que os poderia levar a escolher estádios ligeiramente acima daquele em que funcionam. Esta interpretação do facto parece, aliás, compatível com a ideia Kohlbergiana de que a maioria dos sujeitos é capaz de compreender o estádio imediatamente acima daquele em que se encontra, e fundamenta a ideia de que a mera exposição a argumentos de um estádio acima daquele em que os sujeitos funcionam, pode conduzir a níveis mais avançados de raciocínio moral (ver Blatt & Kohlberg, 1977).
Deste modo, pode dizer‐se que Gibbs, situando‐se ainda no quadro Kohlbergiano sobre o desenvolvimento da moralidade, ao integrar vários modelos teóricos na explicação do desenvolvimento moral, deu um contributo válido para a compreensão e resolução de questões sociais práticas, como sejam a reeducação de delinquentes, permitindo antever formas de prevenção da conduta anti‐social nos
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jovens, em contexto escolar, no âmbito das abordagens do desenvolvimento sociocognitivo combinadas com elementos das teorias psicanalíticas.
Diaz‐Aguado, M., Royo; P., Segura, & M., Andrés, M. (1996) desenvolveram programas de prevenção da violência escolar com adolescentes que levavam em consideração as componentes cognitiva (raciocínios, crenças e estereótipos associados à eficácia das condutas agressivas como forma de resolver conflitos); afectiva (atitudes e identificação com modelos adultos que valorizam a violência) e comportamental (falta de competência social para resolver conflitos de forma não violenta e experiência da violência) que pareceram revelar eficácia na prevenção das condutas agressivas e também apontam no sentido de uma maior eficácia dos programas que integram os contributos de diferentes modelos teóricos.
CONCLUSÕES
Gibbs sugeriu que para compreender as relações entre a moralidade e a conduta anti‐social era necessário integrar os contributos das teorias sociocognitivas com os contributos teóricos das correntes psicanalíticas e compreender o papel que determinadas distorções cognitivas ou racionalizações desempenham no desencadear das condutas agressivas. Sistematizou quatro grandes tipos de distorções cognitivas como estando associadas à conduta anti‐social, a saber: viés egocêntrico ou centração nas necessidades e desejos do eu de um modo que os direitos e necessidades dos outros são ignorados ou mesmo desrespeitados; exteriorização da culpa e culpabilização dos outros pela sua má sorte, condição de vítima; etiquetagem e minimização da humanidade do outro desvalorizando o dano causado, valorizando os actos agressivos e/ ou negando a humanidade do outro; atribuição de hostilidade às intenções do outro, pressupondo o pior nas situações sociais e nas intenções dos outros e assumindo a impossibilidade de mudar o comportamento. Contribuiu também para esclarecer como estes mecanismos interferiam com a inibição da empatia, bem como da responsabilização pelos próprios actos e eventualmente do raciocínio sobre princípios de justiça (ver Barriga & Gibbs, 1996, pp. 333‐334).
Esta conceptualização das relações entre o desenvolvimento moral e as condutas agressivas permitiu uma melhor compreensão dos mecanismos que lhes estão subjacentes, bem como a elaboração de programas de intervenção com jovens delinquentes que parecem ser eficazes na redução das condutas agressivas e na prevenção da reincidência. Este dado parece relacionar‐se com o facto de tais programas levarem em consideração as componentes cognitiva, afectiva e comportamental da violência e integrarem contributos de diferentes modelos teóricos (psicanálise, aprendizagem social e teoria sociocognitiva). Esta abordagem integrada parece também eficaz na prevenção da agressividade em contexto escolar.
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