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DESENVOLVENDO A COMPREENSÃO DO CAMPO MULTIPLICATIVO NO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL- ANÁLISE DO PROCESSO VIVIDO POR LEANDRO Sara Rodrigues Ferraz¹ Ana Cristina Ferreira² 1 Mestranda em Educação Matemática pela UFOP, [email protected] 2 Universidade Federal de Ouro Preto/Matemática, [email protected] Resumo Este artigo é um recorte de uma pesquisa de Mestrado em andamento cujo propósito é analisar o potencial e as limitações de um conjunto de tarefas construídas a partir da teoria dos Campos Conceituais de Vergnaud para a aprendizagem das noções de multiplicação e divisão de números naturais. Tal projeto tem como contexto/participantes uma classe do 6º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Ouro Preto. Dessa forma, apresentamos o processo vivido por Leandro ao longo de quatro meses de desenvolvimento do estudo. Os dados foram coletados por meio de tarefas propostas aos alunos (sondagem, listas de problemas, etc.), bem como por meio do diário de campo construído a partir da observação das aulas e entrevistas realizadas com o aluno. Os resultados evidenciam que o aluno que no início de 2015 parecia conhecer as operações de adição, subtração e multiplicação razoavelmente, porém, sem demonstrar compreender os procedimentos gradativamente, passou a selecionar melhor os algoritmos para resolver situações problema, mobilizar alguns conhecimentos necessários ao tratamento das diferentes questões que envolvem o campo multiplicativo, apresentar estratégias e procedimentos demonstrando ter reconhecido tais questões como pertencentes ao campo multiplicativo. Palavras-chave: Educação Matemática, Ensino Fundamental, Campo Multiplicativo, Teoria dos Campos Conceituais. INTRODUÇÃO A motivação para essa pesquisa surgiu durante a minha graduação. Como bolsista do PIBID, mantive contato com salas de aula, professores e alunos e, mesmo antes de iniciar a docência, percebi inúmeras dificuldades enfrentadas. Particularmente, me chamou a atenção o fato de que um número significativo de alunos ingressava no 6º ano do Ensino Fundamental sem o domínio das operações básicas, principalmente a multiplicação e a divisão. Também observei que tal situação não era muito distinta nos anos seguintes. Após me formar, comecei a lecionar, e, tanto em minhas classes quanto nas de colegas, verifiquei como era comum essa situação. Contudo, paralelamente, também observei que, usualmente, o trabalho com as operações elementares privilegiava as técnicas operatórias dos algoritmos, por meio de exercícios repetitivos, em detrimento da compreensão dos algoritmos e situações que pudessem ampliar o conhecimento acerca de tais operações. Essa metodologia não ajudava na superação dos problemas, mas antes, ao contrário, reforçava-os.

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DESENVOLVENDO A COMPREENSÃO DO CAMPO

MULTIPLICATIVO NO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL-

ANÁLISE DO PROCESSO VIVIDO POR LEANDRO

Sara Rodrigues Ferraz¹

Ana Cristina Ferreira²

1 Mestranda em Educação Matemática pela UFOP, [email protected]

2Universidade Federal de Ouro Preto/Matemática, [email protected]

Resumo

Este artigo é um recorte de uma pesquisa de Mestrado em andamento cujo propósito é

analisar o potencial e as limitações de um conjunto de tarefas construídas a partir da teoria

dos Campos Conceituais de Vergnaud para a aprendizagem das noções de multiplicação e

divisão de números naturais. Tal projeto tem como contexto/participantes uma classe do 6º

ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Ouro Preto. Dessa forma,

apresentamos o processo vivido por Leandro ao longo de quatro meses de desenvolvimento

do estudo. Os dados foram coletados por meio de tarefas propostas aos alunos (sondagem,

listas de problemas, etc.), bem como por meio do diário de campo construído a partir da

observação das aulas e entrevistas realizadas com o aluno. Os resultados evidenciam que o

aluno – que no início de 2015 parecia conhecer as operações de adição, subtração e

multiplicação razoavelmente, porém, sem demonstrar compreender os procedimentos –

gradativamente, passou a selecionar melhor os algoritmos para resolver situações

problema, mobilizar alguns conhecimentos necessários ao tratamento das diferentes

questões que envolvem o campo multiplicativo, apresentar estratégias e procedimentos

demonstrando ter reconhecido tais questões como pertencentes ao campo multiplicativo.

Palavras-chave: Educação Matemática, Ensino Fundamental, Campo Multiplicativo,

Teoria dos Campos Conceituais.

INTRODUÇÃO

A motivação para essa pesquisa surgiu durante a minha graduação. Como bolsista

do PIBID, mantive contato com salas de aula, professores e alunos e, mesmo antes de

iniciar a docência, percebi inúmeras dificuldades enfrentadas. Particularmente, me chamou

a atenção o fato de que um número significativo de alunos ingressava no 6º ano do Ensino

Fundamental sem o domínio das operações básicas, principalmente a multiplicação e a

divisão. Também observei que tal situação não era muito distinta nos anos seguintes.

Após me formar, comecei a lecionar, e, tanto em minhas classes quanto nas de

colegas, verifiquei como era comum essa situação. Contudo, paralelamente, também

observei que, usualmente, o trabalho com as operações elementares privilegiava as técnicas

operatórias dos algoritmos, por meio de exercícios repetitivos, em detrimento da

compreensão dos algoritmos e situações que pudessem ampliar o conhecimento acerca de

tais operações. Essa metodologia não ajudava na superação dos problemas, mas antes, ao

contrário, reforçava-os.

Ao ingressar no Mestrado Profissional em Educação Matemática da Universidade

Federal de Ouro Preto, me propus a investigar essa problemática e a buscar alternativas

para a mesma. Assim, procurei me aproximar da realidade ouropretana, buscando conhecer

melhor a situação dos alunos que ingressavam no 6º ano do Ensino Fundamental.

No início de 2014, convidei alguns colegas que atuavam, como eu, com 6ºs anos

em escolas estaduais de Ouro Preto para, juntos, realizarmos uma sondagem de

conhecimentos matemáticos (especificamente voltados para as operações de adição,

subtração, multiplicação e divisão de números naturais) em nossas classes. O propósito era

conhecer os conhecimentos que os alunos traziam consigo dos anos iniciais para melhor

planejarmos nossas aulas. Além disso, eu também procurava definir o foco do meu estudo.

Os resultados obtidos na sondagem indicaram que os alunos estão chegando ao 6º

ano do Ensino Fundamental nas escolas estaduais de Ouro Preto com sérias dificuldades

nas operações básicas, principalmente na multiplicação por dois algarismos e na divisão.

Além disso, observamos que os alunos apresentaram maior dificuldade nas questões que

envolviam situações problema.

Diante desse cenário, o desenvolvimento dessa pesquisa tem como principal

interesse analisar possíveis contribuições de tarefas construídas a partir da Teoria dos

Campos Conceituais para a aprendizagem de conceitos relacionados ao campo

multiplicativo.

A escolha da Teoria dos Campos Conceituais de Gerard Vergnaud se deve ao seu

poder explicativo em relação à compreensão dos campos conceituais e, em especial, à

dificuldades relacionadas à aprendizagem dos conceitos associados ao campo

multiplicativo.

Um campo conceitual é "um conjunto informal e heterogêneo de problemas,

situações, conceitos, relações, estruturas, conteúdos e operações de pensamento,

conectados uns aos outros e, provavelmente entrelaçados durante o processo de aquisição"

(VERGNAUD 1990, p.8).

Nessa perspectiva, nos interessa particularmente o campo conceitual das estruturas

multiplicativas, que vão além das operações de multiplicação e divisão, envolvendo

diversos conceitos necessários ao tratamento das diversas situações envolvidas nesse

campo. De acordo com Vergnaud (2014), numerosas classes de problemas podem ser

identificadas segundo a forma da relação multiplicativa, ou seja, as relações que

comportam uma de multiplicação ou uma divisão, de acordo com caráter discreto ou

contínuo das quantidades em jogo, de acordo com as propriedades dos números utilizados,

etc.

Para Vergnaud (2014) um conceito não pode ser visto como o resultado de uma

definição e sim como um produto de experiências. Dessa forma, os conhecimentos

matemáticos traçam seus sentidos a partir de uma variedade de situações. Cada situação

não pode ser analisada com a ajuda de apenas um conceito e nem um só conceito nem uma

situação isolada dá conta de todo o processo de aquisição de um conhecimento, daí segue a

ideia de campos conceituais.

Portanto, as atividades desenvolvidas durante o processo da pesquisa de campo

foram fundamentadas nas diferentes abordagens apresentadas por Vergnaud para trabalhar

o campo multiplicativo. Além disso, havia a intenção de procurar, na medida do possível,

propor situações vinculadas ao cotidiano ou que pudessem promover reflexões acerca de

temas socialmente relevantes (ex. meio ambiente, consumo, etc). Apresento a seguir o

processo vivenciado por um aluno de 6° ano do Ensino Fundamental ao longo de quatro

meses.

DESCRIÇÃO DO PROCESSO VIVIDO POR LEANDRO

Leandro tinha 12 anos quando o projeto foi desenvolvido, logo, está dentro da faixa

etária considerada ideal para o 6° ano do Ensino Fundamental. Esse é seu primeiro ano na

escola onde desenvolvemos a pesquisa, uma vez que veio de outra escola pública, na qual

cursou os anos iniciais do Ensino Fundamental. É um aluno frequente, participante e não

apresenta problemas de indisciplina.

A escolha desse aluno se justifica pelo fato de ter participado de todo o processo da

pesquisa, tendo realizado as tarefas propostas nos quatro meses de trabalho.

O desenvolvimento das tarefas baseou-se nas diferentes abordagens propostas por

Vergnaud para o campo multiplicativo. Para ele, o campo multiplicativo se refere a um

conjunto informal e heterogêneo de situações, cuja análise e tratamento requerem uma ou

várias multiplicações e divisões, e um conjunto de conceitos e teoremas que permitem

analisar situações, como por exemplo, proporção simples e múltipla, função linear e não

linear, razão, quociente, produto de dimensões, combinação, função, multiplicação e

divisão (VERGNAUD, 1990, p.8).

É importante ressaltar que, antes de iniciarmos o projeto, realizamos uma sondagem

– conjunto de tarefas construído com base na Teoria dos Campos Conceituais – com o

objetivo de identificar os conhecimentos que os alunos do 6° ano traziam consigo a

respeito da multiplicação e divisão de números naturais no que diz respeito à resolução de

problemas e conhecimento do algoritmo.

Na sondagem, Leandro apresentou dificuldade em algumas classes de problemas

propostos, como por exemplo, produto de medidas e na resolução do algoritmo da divisão,

sobretudo na divisão por dois algarismos.

Nas primeiras atividades desenvolvidas, o aluno conseguia resolver os problemas

que envolvem proporção simples usando o raciocínio aditivo. Os problemas de proporção

simples "trazem situações em que se tem uma relação de proporcionalidade entre quatro

grandezas -duas a duas da mesma espécie- que estão relacionados por uma taxa entre as

grandezas de diferentes espécies"(Gitirana, et al 2014, p.55). Além disso, podem ser

distinguidas em situações de um para muitos, partição, cotição e quarta proporcional.

A seguir apresento, a estratégia usada por Leandro em um problema que envolve

proporção simples: Figura 1: Registro de atividade aplicada no dia 23/03 (Solução usando raciocínio aditivo)

[Fonte: arquivo pessoal da autora]

Nesse registro, Leandro demonstra ter compreendido o problema realizando ao

mesmo tempo uma correspondência entre a quantidade de óleo e o número de pedaços de

sabão produzidos, mas parece se sentir mais confortável com adições sucessivas que com

multiplicações.

Os registros produzidos são apenas ‘a parte visível’ do esquema, ou seja, a sua

produção matemática envolve operações de pensamento que podem ser mais bem

identificadas quando seu autor as explica. Sendo assim, o esquema é na maioria das vezes

uma construção mais ampla e complexa do que a apresentada no papel.

Se analisarmos com mais cuidado a situação, podemos inferir os teoremas em ação

– relações matemáticas que o aluno levou em consideração para resolver o problema

proposto – e os conceitos em ação – conceito-em-ação é uma categoria de pensamento

considerada como pertinente – utilizados pelo aluno. Tais elementos são componentes

essenciais na construção dos esquemas e, muitas vezes, não são explicitados pelos alunos.

Os teoremas em ação identificados nessa solução são o algoritmo da adição e a

correspondência entre 4 litros de óleo e 48 pedaços de sabão. Além disso, existem vários

conceitos-em-ação implícitos na compreensão dessa situação, porém, a solução

apresentada pelo aluno sugere o desenvolvimento dos conceitos-em-ação de soma,

composição, união, reconhecimento do estado inicial de parcelas a adicionar e valor limite,

etc. Naturalmente, esse teorema da adição e da correspondência funcionam porque de fato

a composição de 4 litros de óleo até completar os 28 litros associados a devida

correspondência feita pelo aluno entre a quantidade de óleo e a quantidade de pedaços de

sabão são simples de ser percebida, porém limitada pois não seria facilmente aplicada a

valores numéricos maiores.

No decorrer da pesquisa de campo, o aluno foi desenvolvendo competências e

habilidades que evidenciam uma evolução na organização de seus invariantes, o que

permitiu ao aluno usar estratégias mais econômicas, sendo capaz de optar pelo raciocínio

multiplicativo para resolver problemas desse tipo.

Apresentamos a seguir dois registros feitos por Leandro ao longo de algumas

semanas de trabalho: Figura 2: Registro da folha de atividade aplicada no dia 09/04 (Solução 2)

[Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora]

Nesse registro, Leandro usou dois procedimentos distintos. O primeiro deles, o

algoritmo tradicional da divisão e o segundo uma multiplicação que pode ter sido usada

como prova real. Essa solução sugere uma associação entre as operações de multiplicação

e divisão, o que dá indícios de uma compreensão da relação entre essas operações.

Figura 3: Trecho da Avaliação Bimestral aplicada no dia 14/04 [Solução 3]

[Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora]

Nessa atividade avaliativa, procurei abordar questões semelhantes (no sentido de

possuírem uma estrutura parecida) às que foram vivenciadas pelos alunos em sala de aula.

Meu intuito era avaliar o trabalho desenvolvido e planejarmos os próximos passos da

pesquisa.

Em relação à solução apresentada, é possível notar que o aluno apresenta como

procedimento o algoritmo da divisão e da multiplicação, o que representa uma mudança

significativa nas estratégias utilizadas anteriormente por ele. É possível identificar em seus

registros que os teoremas em ação passam a ser os algoritmos da divisão e multiplicação

(quando antes se restringiam ao algoritmo da adição). Também observamos uma

mobilização de conceitos em ação tais como proporção através da relação um para muitos,

razão, cotição, etc.

Os problemas de Produto Cartesiano envolvem o produto de duas ou mais

grandezas obtendo uma nova grandeza. As situações pertencentes a essa classe envolvem

por ex., cálculo de área ou de volume; combinações nas quais uma nova grandeza é obtida

como produto de duas ou mais grandezas, sem que uma dependa da outra.

Nessa classe de problemas, Leandro percorreu um caminho de tentativas, das

noções intuitivas que ele tinha de área, passando pela ideia de perímetro, chegando a uma

compreensão mais elaborada desses conceitos.

É importante destacar que antes de propor os problemas que envolvem cálculos de

área, procurei explorar com os alunos situações que envolvem a organização retangular

(ex. disposição de um espaço retangular em filas e colunas, disposição de azulejos na

parede, etc).

No instrumento de sondagem aplicado no dia 23/02 propus uma questão

envolvendo configuração retangular. A seguir apresento o registro da solução desse aluno.

Figura 4: Trecho do instrumento de sondagem aplicada no dia 23/03 (Solução 4)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora.

O problema trazia as seguintes informações: a parede continha 16 azulejos no

comprimento e 14 na altura. Leandro apenas somou os números fornecidos. Sua resposta

tanto pode sugerir que o aluno levou em consideração apenas a troca de azulejos de uma

fila e uma coluna, não analisando a composição de toda a parede, quanto pode significar

que o aluno não compreendeu a situação e apenas aplicou aos numerais disponíveis (dados

do problema) o algoritmo que lhe pareceu mais adequado.

Ao longo do trabalho, outras situações envolvendo organização retangular foram

exploradas. Gradativamente, o aluno vai demonstrando maior habilidade na resolução

desse tipo de problemas. Figura 5: Registro da folha de atividade aplicada no dia 07/04 (Solução 5)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

A questão acima foi proposta aos alunos depois de terem sido exploradas os

problemas que envolvem a organização retangular em que o todo é desconhecido. Dessa

forma, ela pode ser entendida como uma variação desse tipo de problema em que o total de

cadeiras e a quantidade de cadeiras por fila é conhecida é deseja-se descobrir a quantidade

de filas necessárias.

Procuramos explorar as atividades que envolvem organização retangular antes de

propor questões envolvendo cálculo de área. Ao apresentar uma situação problema

envolvendo o cálculo de área, observei que Leandro não havia resolvido por não saber o

que era área (conforme nos explicou). Tal observação me mobilizou no sentido de

proporcionar situações aos alunos que lhes permitissem compreender essa noção.

Aproveitei o interesse e a solicitação de alguns alunos de uma atividade relacionada

ao futebol e propus uma situação problema. Apresento a seguir, os registros de Leandro

para as mesmas.

Figura 6: Registro de folha de atividade aplicada no dia 05/05 ( Solução 6)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

O aluno utiliza o algoritmo da multiplicação, multiplicando cada uma das

dimensões do campo por dois, uma vez que os lados do campo dois a dois possuem as

mesmas medidas. Ele parece considerar a ideia de perímetro ao utilizar essa estratégia,

contudo, até esse momento, as noções de área e perímetro ainda não haviam sido estudadas

formalmente.

Assim como Leandro, a maioria dos alunos desconhecia a noção de área. Propus

então uma tarefa na qual utilizamos papel quadriculado para representar retângulos de

dimensões dadas (4 x 8, 5 x 9, 3 x 4). Em seguida, discutimos a quantidade total de

quadradinhos contidos em cada retângulo. De modo breve, mas articulado ao trabalho,

apresentei as noções de área e perímetro. Continuei a discussão explorando o piso da sala

de aula, contando as lajotas do chão com os alunos, propondo a construção de um desenho

para representá-lo, etc.

Retomei então a atividade da área do campo de futebol. Apresento a seguir o trecho

da conversa com os alunos no qual Leandro se manifesta demonstrando suas concepções a

respeito do cálculo de área. _ Pessoal, se lembram da questão do campo de futebol? Como que calcula a área do

campo de futebol, então? Diz a pesquisadora.

_ Ô professora, mais o campo de futebol não é quadriculado! (responde Leandro sentado

no fundo da sala).

_ Sim, Leandro! No desenho não está quadriculado, mas é como se estivesse dividido em

pedaços de 1 metro de comprimento por 1 metro de largura (explica a professora com o

auxílio de um desenho feito no quadro representando o campo de futebol).

_ Eu já entendi. Então, professora, não é só contar os lados duas vezes como eu tava

pensando! É como se fosse o espaço todo

_ Sim, quando você faz da forma que fez antes, está levando em consideração só o contorno

do campo, nesse caso chamamos de perímetro.

Em seguida, propus algumas situações problema para os alunos.

Figura 7: Registro da folha de atividades aplicada no dia 25/05(Solução 7)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

O procedimento apresentado por Leandro é representado através do algoritmo

tradicional da divisão nas letras a e b, e da multiplicação na letra c. Para resolver esse tipo

de situação ele parece utilizar vários conceitos implícitos como o de razão, relação parte

todo, multiplicação e divisão. Figura 8: Registro da folha de atividades aplicada no dia 25/05(Solução 8)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Em seguida, propus uma situação semelhante, porém, com uma lajota em formato

diferente. Meu objetivo era perceber como o aluno organizaria seu pensamento em busca

da solução da situação proposta. Dependendo da forma como a lajota fosse disposta no

chão da cozinha, poderia ser necessário fazer recortes na peça, mas é possível observar que

Leandro usou as mesmas estratégias apresentadas na solução da questão apresentada

anteriormente. Ou seja, o aluno dispôs a peça no espaço apresentado, encontrou a

quantidades de lajotas enfileiradas no maior e menor lado da cozinha através do algoritmo

da divisão e em seguida calculou o total de peças necessárias para cobrir todo o piso

através do algoritmo da multiplicação.

No dia 29/05 propus novamente uma questão envolvendo cálculo de área, porém,

desta vez, envolvendo números decimais.

Figura 9: Imagem caderno de Leandro (Solução 9)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Leandro utiliza o algoritmo da multiplicação, o que sugere uma compreensão do

problema e certo conforto em relação à operação, porém, comete um erro no

desenvolvimento do algoritmo esquecendo do "vai um" ao multiplicar pelo segundo

algarismo.

Os problemas de combinatória são outros tipos de situações que dão significado à

multiplicação. Porém, assim como os problemas envolvendo o cálculo de área, também

eram desconhecidos para os alunos que não demonstravam ter lidado com esse tipo de

situação antes.

Procurei, ao longo do desenvolvimento do trabalho de campo, proporcionar aos

alunos algumas experiências com esse tipo de situação. Também sugeri o uso de desenhos

que representassem as situações descritas como uma forma de ganhar compreensão acerca

desse tipo de problema e usei material em algumas tarefas.

Na maioria das atividades propostas, pedi aos alunos que explicassem como

pensaram para fazer. E, embora saibamos que nem sempre é possível expressar através de

palavras ou representações aquilo que se pensa, me parece que os registros de Leandro

oferecem pistas acerca de suas estratégias e raciocínio. Leandro, inicialmente, parece

resolver situações em envolvem combinatória contando as possibilidades 1 a 1, como se

observa em suas justificativas a seguir. Figura 10: Imagem do instrumento de sondagem aplicado no dia 23/03 ( Solução

10)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

A contagem é uma estratégia comum usada por muitos alunos, assim é importante

que eles desenvolvam esquemas que lhes possibilite reconhecer esses problemas como

situações que envolvem o raciocínio multiplicativo. No caso de Leandro, na sondagem

aplicada no início do ano, não é possível afirmar que o aluno reconhece tais situações

como articuladas a multiplicação, uma vez que ele não faz o uso de uma representação para

auxiliá-lo e apresenta respostas diretas que não me permitem perceber claramente o

raciocínio envolvido, como ilustrado a seguir. Figura 11: Imagem do caderno de Leandro (Solução 11)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

No presente estudo, não era meu propósito trabalhar com todas as classes de

problema possíveis no campo multiplicativo por questões de tempo e pelo grau de

complexidade de algumas delas. Contudo, procurei proporcionar aso alunos o contato com

situações variadas, mesmo que envolvessem noções não abordadas formalmente. A maior

ênfase, entretanto, estava nas classe proporção simples, comparação multiplicativa e

produto de medidas.

Outro aspecto a ser destacado é que assim como as outras classes de problemas, os

que envolvem combinatória existem variações, na presente pesquisa não nos preocupamos

em aprofundar nessas questões uma vez que elas demonstram certa complexidade,

exigindo tempo e maturação, além disso esse tipo de situação demonstrou ser novidade

para a maioria dos alunos e sentimos seria necessário explorar outras classes de problemas

que ainda precisavam ser amadurecidas por boa parte dos alunos.

Em síntese, é possível afirma que Leandro parte de um momento no qual usava o

raciocínio aditivo no tratamento das questões do campo multiplicativo, não dispunha de

todos os conhecimentos necessários ao tratamento dessas questões, demonstrava

insegurança ao usar o algoritmo da divisão para outro no qual compreende de forma mais

consistente as situações apresentadas, escolhe de modo mais adequado os algoritmos

necessários para resolvê-las, e evidencia um maior domínio dos algoritmos da

multiplicação e divisão. Além disso, as soluções apresentadas pelo aluno sugerem a

mobilização de conhecimentos necessários ao tratamento das questões que antes o aluno

não dispunha, como por exemplo nas situações que envolvem produto de medidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da trajetória percorrida por Leandro ao longo dos quatro meses de

trabalho evidencia a importância de colocar o aluno frente a uma diversidade de problemas

nas quais multiplicação e a divisão assumem significados diferentes, favorecendo a

ampliação de seu repertório de conhecimentos.

Além disso, ao considerar a construção do conhecimento matemático por parte do

aluno como foco da prática pedagógica, o professor se concentra em compreender como

pensa o aluno e quais são suas dificuldades para propor tarefas pertinentes e significativas

do ponto de vista da mobilização de saberes e aprendizagem matemática.

É possível perceber que o aluno demonstrou um desenvolvimento na sua forma de

pensamento o que lhe permitiu usar estratégias mais econômicas, passando a usar o

raciocínio multiplicativo e compreender de forma mais consistentes as situações

apresentadas.

Outro aspecto que merece menção é a dinâmica das aulas. Criar um espaço

frequente no qual o aluno possa refletir, trabalhar na resolução de problemas, explicar seu

raciocínio e aprender a argumentar, aliado ao hábito do professor de questionar mais que

responder diretamente se uma resolução está correta ou não, pode ser extremamente rico

para o desenvolvimento da autonomia, confiança na própria capacidade e para a própria

aprendizagem matemática.

O desenvolvimento dessa pesquisa tem trazido ganhos tanto em termos acadêmicos

e científicos quanto profissionais. Percebi, dentre outras coisas, a importância de socializar

e discutir diferentes estratégias usadas pelos alunos em busca da solução dos problemas

propostos, uma vez que esse momento possibilita aos alunos a valorização de

procedimentos próprios, bem como mudar a concepção do certo e errado.

De modo geral, o caso de Leandro sugere que é importante promover a reflexão por

parte dos alunos e proporcionar-lhes um ambiente educacional rico em oportunidades de

natureza variada, permitindo-lhes exercitar seu raciocínio e criatividade. Além disso, esse

estudo, embora não generalizável, evidencia a possibilidade de mudança e crescimento em

relação à compreensão e aplicação das operações básicas – em especial a multiplicação e a

divisão – bem como da leitura e interpretação de problemas por meio de tarefas simples,

porém, construídas com base em um referencial que valoriza a possibilidade de se se

envolver em uma variedade de experiências como caminho para construir a aprendizagem

em um campo conceitual.

REFERÊNCIAS

MAGINA, S.; CAMPOS, T; NUNES, T.; GITIRANA, V. Repensando Adição e

subtração: Contribuições da Teoria dos Campos Conceituais, São Paulo: PROEM,

2001.

MAGINA, S. Contribuições da Teoria dos Campos Conceituais para a formação de

Conceitos Matemáticos, 2001.

MOREIRA, M. A. A teoria dos campos conceituais de Vergnaud, o ensino de ciências e

a pesquisa nesta área. Revista Investigação em Ensino de Ciências, v.7, 2002, p.7-29.

GITIRANA, V.; MENDONÇA, T. M.; MAGINA, S.; SPINILLO, A. Repensando a

multiplicação e divisão: contribuições da teoria dos campos conceituais. 1. ed. São

Paulo: PROEM, 2014.

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Descartes. Recherches en Didáctique des Mathématiques, Vol. 10,nº 2, 3, pp. 133-170,

1990

VERGNAUD, G. A criança, a matemática e a realidade: problemas do ensino da

matemática na escola elementar. Gerard Vergnaud; tradução Maria Lucia Faria Moro. 3.

ed. Curitiba: Ed. da. UFPR, 2014.

BITTAR, M.; MUNIZ, C. A. A aprendizagem matemática na perspectiva da teoria dos

campos conceituais. 1. ed. Curitiba: CRV, 2009.