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[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano I - nmero 1 - teresina - piau julho/agosto de 2009]

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dEsEnrEdoSano I - nmero um julho agosto 2009 ISSN 2175 3903

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expedienteeditores Adriano Lobo Arago Wanderson Lima design e programao visual Adriano Lobo Arago conselho editorial Adriano Lobo Arago Alfredo Werney Lima Torres Carlange Lobo de Castro Cleber Ranieri Ribas de Almeida Herasmo Braga de Oliveira Brito Jos Wanderson Lima Torres Newton de Oliveira Lima Roselany de Holanda Duarte Sebastio Edson Macedo

imagem desta edio foto de Adriano Lobo Arago contatos [email protected] [email protected]

As opinies, fundamentaes tericas e adequao vocabular so de exclusiva responsabilidade dos respectivos autores.

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ndiceano I - nmero um julho agosto 2009 ISSN 2175 3903

entrevista Ismail Xavier, 05 poesia Danilo Bueno, 12 Sebastio Edson Macedo, 15 prosa de fico M. de Moura Filho, 18 traduo Borges, em 1941, sobre Citizen Kane traduo de Wanderson Lima, 24 Michel Deguy traduo de Sebastio Edson Macedo, 27 ensaio O rio como recurso humanizador na poesia de Joo Cabral - Andr Pinheiro, 29 Sobre o Sr. Cludio Assis e seus filmes - Andr Renato, 37 Don Giovanni: a tragdia do humano - Newton de Oliveira Lima, 41 A crise da poesia brasileira contempornea - Ranieri Ribas, 47 Burtonland - Wanderson Lima, 61 resenha Constante Florinda - Antonia Pereira de Souza, 64 artigo Msica na literatura: extratos musicais na construo de sentido do texto potico Alfredo Werney, 69 A representao da mulher nos romances Atravs da vida e Angstia de Amlia Bevilqua Glacilda Nunes Cordeiro, 84 Os alicerces filosficos do formalismo e a nova retrica: circunstncias e construo de verdades - Gilton Sampaio de Sousa e Roselany de Holanda Duarte, 92 Pardia: gnero ou estilo? - Florita Dias da Silva, 105 A msica de Luiz Gonzaga no territrio da inveno das tradies - Jonas Rodrigues de Moraes, 119

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Depois de um nmero experimental, em que se reeditou antigos textos sados em amlgama, dEsEnrEdoS tem sua estria definitiva. A linha editorial permanece aberta e plural, primando, sobretudo, pela qualidade dos trabalhos. So textos, os que aqui se encontram, de variados temas e linhas tericas. Como se props no editorial da nmero zero, dEsEnrEdoS se encaminha, preferencialmente, para o debate que envolve as artes e as cincias humanas, com preferncia para temas que envolvam literatura e cinema. O leitor ter aqui essa confirmao atravs de textos de gneros variados artigos, ensaios, resenhas abordando temas e obras ligados a cinema, poesia, romance, pera e cano. Pode tambm conferir, nas sesses destinadas criao artstica, poemas de poetas de diversas latitudes e tendncias, contos e fotografias de uma inslita viagem. Some-se a isto tradues de textos de Jorge Luis Borges e Michel Deguy. Por fim, no se pode deixar de citar com orgulho a entrevista indita com Ismail Xavier, um dos grandes crticos de cinema da atualidade. Enfim, um incio animador para uma revista que espera, com muito trabalho, contribuir para o crescimento cultural do pas. Fiquem vontade para sugerir, criticar, participar.

Os editores

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uma entrevista com

Ismail Xavierpor Wanderson Lima e Alfredo Werney5

Ismail Xavier formou-se em cinema pela ECA (Escola de Comunicaes e Artes da USP) em 1970. Fez mestrado em Teoria Literria na USP, sob orientao de Paulo Emlio Salles Gomes e doutorado em 1980, sob a tutela de Antonio Candido. Seu ps-doutorado veio em 1986, na Graduate School of Arts and Science, da New York University. professor da ECA-USP desde 1971, tendo lecionado tambm em universidades estrangeiras, entre elas a Universidade de Nova Iorque (1995), a Universidade de Iowa (1998) e a Universit Paris III - Sorbonne Nouvelle (1999). Dentre suas obras, podemos destacar Discurso cinematogrfico: a opacidade e a transparncia (1977), Serto Mar: Glauber Rocha e a esttica da fome (1983), A experincia do cinema (org., 1983) e Allegories of underdevelopment: aesthetics and politics in brazilian modern cinema (1997). A presente entrevista nasceu de aps um contato de um dos entrevistadores (Alfredo Werney) com Ismail em So Paulo. Acertou-se a base da entrevista e as perguntas foram enviadas por e-mail. As respostas de Ismail Xavier denotam sua generosidade intelectual, bem como uma capacidade mpar de articular o conhecimento das operaes estticas do cinema com os contextos de produo dos filmes.

ALFRED HITCHCOCK

Alfredo Werney / Wanderson Lima - Professor Ismail Xavier, comecemos a entrevista tratando de um assunto polmico: a questo da autoria no cinema. Quando observamos, por exemplo, uma seqncia como a do assassinato de Marion Crane em Psicose (Alfred Hitchcock, 1960), a trilha sonora nos leva a sentir toda a brutalidade do crime atravs das fortssimas e agudas notas dos violinos em sincronia com as punhaladas. Em grande parte, o sucesso da seqncia se deve ao msico Bernard Herrmann, que se contrapondo a Hitchcock decidiu musicar o momento mais violento do filme. At que ponto o diretor o autor de uma obra cinematogrfica?

Ismail Xavier - Vocs, na pergunta, sugerem, e com razo: a rigor, o diretor no autor pleno de um filme, dado que obra de colaborao. Por outro lado, ao longo da carreira de um cineasta, a crtica tem encontrado marcas que se reiteram - um estilo,

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um talento, uma temtica - e vo construindo um ncleo que permite atribuir a ele grande parte da criao e dos efeitos de sentido produzidos. O que tem convencionalmente gerado a atribuio de autoria, por um jogo poltico de valorizao dos diretores e por uma questo de economia: ter um nome por trs do ttulo facilita o trabalho da crtica, e mais justo que este nome seja o do diretor, pelo seu papel decisivo, do que o do produtor (com excees) ou o do roteirista (a h polmica, como sabemos), ou mesmo o do fotgrafo. De qualquer modo, as responsabilidades diferem conforme o tipo de produo, podendo ser maior ou menor, dentro de uma ponderao sempre complicada: h autores que o so porque concentram tudo em suas mos, e h os que o so porque conseguem deixar forte marca mesmo em situaes de produo industrial. Para voltar ao exemplo de vocs, claro que muito do mrito da seqncia (assim com o de muitas outras) pode ser atribudo ao compositor. Mas resta ainda ao cineasta a prerrogativa de ter sabido escolher o colaborador ideal e ter sabido criar a situao para que este mostre as suas qualidades. Cabe ao diretor conseguir o melhor resultado dos atores, do fotgrafo, do montador, do compositor da trilha, do editor de som; cada um deles um co-autor. Mas se quisermos a figura do maestro da orquestra o candidato mais forte o diretor. AW/WL - Nas primeiras linhas de sua introduo edio brasileira das entrevistas Hitchcock/ Truffaut, o sr. versa sobre o j citado assassinato de Marion Crane. Nesta seqncia, observamos que a montagem deixa de ser to-somente um processo de encadeamento dos elementos da diegese, para desempenhar um papel central, de grande expressividade. A violncia das punhaladas no corpo da personagem como o senhor bem ressalta na sua introduo nos transmitida pela articulao rpida e recortada dos planos. A montagem parece se transformar na prpria coisa representada. O senhor poderia falar mais sobre este tipo de montagem?6

IX - A fora das imagens est na sua capacidade de sugesto, no no que efetivamente do a ver de modo explcito. Numa seqncia montada, a fora das relaes criadas entre as imagens, bem como a sntese obtida no conjunto, definem o efeito e o sentido da representao. O essencial a capacidade de criar um fato que nunca est, explicitamente, na tela. O fato se cria, no se mostra. Este o princpio de um cinema de montagem, embora haja tambm um cinema que v em outras direes. Hitchcock, a seu modo, um cineasta da sugesto pela montagem, assim como Eisenstein o cineasta da construo grfica de um discurso visual, pela montagem. AW/WL - Em 2005, o sr. gravou dois DVDs para os Grandes Cursos Cultura na TV. Trata-se de cinco palestras em que o sr. discute o cinema de Alfred Hitchcock. Sabe-

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se que muitos intelectuais norte-americanos consideraram o diretor londrino um cineasta tecnicista, um realizador de truques cinematogrficos e de obras superficiais. Os crticos franceses da Cahiers Du Cinema reclamaram do preconceito contra o diretor de Vertigo. Francisco de Almeida Salles, endossando a opinio dos franceses, afirmou sobre Hitchcock: A sua obsesso no o efeito formal, o ritmo, a mecnica do filme, mas o homem (...). Qual a sua opinio sobre esta polmica?7

IX - Concordo com Almeida Salles e os franceses, e acredito que hoje muito raro algum recusar a Hitchcock a condio de um dos maiores autores da histria do cinema. Ele rene uma reflexo sobre nossas disposies psicolgicas mais fundas (que esto no centro do jogo visual e sonoro que ele arma) com uma reflexo sobre o prprio cinema e a fico enquanto lugares de verdade, no no sentido de contar histrias reais, mas no sentido de mobilizar as paixes mais intensas, fazendo de seus filmes uma anatomia de certas obsesses que trata de forma to iluminadora quanto a melhor literatura. de uma coerncia estilstica exemplar, mas preciso captar a sua ironia. MSICA E CINEMA AW/WL -. Na histria do cinema, como se sabe, fomos brindados com parcerias inesquecveis de cineastas com msicos: Eisenstein/ Prokofiev, Hitchcock/ Bernard Herrmann, Srgio Leone/ Ennio Morricone, Kieslowski/ Preisner, e, mais atualmente, Spielberg/ John Willians, Inharrit/ Santaolalla para citar algumas das parcerias mais significativas. Como o senhor compreende o papel da msica na construo do discurso cinematogrfico? O sr. acredita que a msica pode ser decisiva na construo de sentido de uma cena? IX- A msica ser sempre decisiva na construo de sentido de uma cena, desde que esteja inserida num cinema que pensa os vrios canais de expresso da forma mais lcida possvel. Nem sempre isto acontece, ora porque se pensa o som como algo adicional que vem depois da imagem e no to importante (postura redutora), ora porque no se consegue o bom dilogo entre diretor e msico, razo pela qual, assim como acontece com a fotografia, e mesmo a montagem, os bons diretores preferem parcerias que possam favorecer a convergncia das criaes. Quando tudo se conjuga bem, criam-se as parcerias inesquecveis. CINEMA DE RETOMADA

AW/WL - Professor Ismail, se nos propusssemos a fazer uma lista dos mais importantes filmes brasileiros de fico da atualidade, quais no poderiam faltar?

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IX - Vou considerar atualidade o perodo 1995-2008, a da chamada retomada. E vou, com certeza, compor um elenco insuficiente que exigiria acrscimos. o risco de sempre. Terra estrangeira (Walter Salles), Assim nascem os anjos (Murilo Salles), Um cu de estrelas (Tata Amaral), O invasor (Beto Brant), Baile perfumado (Caldas e Ferreira), Estorvo (Ruy Guerra), Lavoura arcaica (Luiz Fernando Carvalho), Miramar, So Jernimo e Filme de amor (Jlio Bressane), A ostra e o vento (Walter Lima Jr), Amores (Domingos de Oliveira), Dois crregos (Carlos Reichenbach), Amlia (Ana Carolina), Cronicamente invivel (Srgio Bianchi), Bicho de sete cabeas (Las Bodansky), Cidade de Deus (Fernando Meirelles), Amarelo manga (Cludio Assis), Desmundo (Alain Fresnot), Contra todos (Roberto Moreira), Cinema, aspirina e urubus (Srgio Gomes), O cu de Sueli (Karim Anouz), Corpo (Rubens Rewald & Rossana Foglia), Cano de Baal (Helena Ignez) e um ou outro mais que me escapa no momento. CINEMA DE ARTE X CINEMA DE INDSTRIA AW/WL - A partir das idias inovadoras de Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Tcnica, muito se discutiu, e ainda se discute, sobre a relao entre Arte e Indstria, Arte e Mercado. Fredric Jameson, em entrevista Folha, afirmou que est desaparecendo a fronteira entre a produo econmica e a vida cultural. Cultura negcio, e produtos so feitos para o mercado, disse o pensador. Na modernidade, observa Jameson, lutou-se bravamente contra a mercantilizao da cultura; a realidade ps-moderna, porm, inelutvel: a cultura tornou-se mercadoria. Nesse contexto, para o senhor, ainda faz sentido a bipartio (como muitos querem) do cinema em cinema de arte e cinema de indstria? IX - Esta bipartio teve origem nas polmicas da vanguarda no incio do sculo XX e no pode ser tomada como um absoluto. Tinham e tm razo os cineastas que apontam as frmulas gastas e a cautela da indstria em sua ansiedade pela comunicao (que muitas vezes atrapalha a arte que no propriamente comunicao, mas o ato de problematizar a comunicao, questionar nossos automatismos). Mas tm razo os crticos que recusam esta bipartio como separao entre o bem e o mal, pois o valor pode estar dos dois lados da fronteira. Creio ainda ser til a utilizao destes rtulos como apontadores de tendncias, sem atribuio dogmtica de valor s porque um cineasta se proclama do lado do cinema de arte, pois pode se dar o contrrio. E tambm tendo conscincia de que a menos de um segmento bastante reduzido de filmes efetivamente experimentais que buscam outros circuitos tudo mercadoria, e cinema de arte uma estratgia de marketing como outras. A rigor no so categorias estticas; so armas de polmica e frmulas rpidas de situar um produto que no dispensam a anlise caso a caso.8

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ALEGORIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO AL/WL - Fredric Jameson, em Third World Literature in the Era of Multinational Capitalism, aponta a alegoria como a forma que define a produo artstica do outrora chamado terceiro mundo, enquanto o pastiche, rplica ps-moderna da pardia, definiria a produo do primeiro mundo. Em que ponto(s) sua concepo de alegoria convergente com a de Jameson e em que ponto apresenta diferenas?9

IX - Em meu livro Allegories of underdevelopment, publicado nos Estados Unidos, comentei a diferena entre a minha posio e a de Jameson. No Alegorias, analiso a relao entre os filmes brasileiros dos anos 60 e distintas formas de se entender a alegoria, seja com referncia aos gneros clssicos, seja com referncia ao evangelho, alegoria barroca (esta, sim, a partir de Benjamin) e alegoria moderna. A alegoria nacional faz parte do meu percurso e eu a vejo sendo praticada em diferentes pases (nos USA, na Europa, na sia, na Amrica Latina). Jameson se preocupa com este tipo de alegoria nacional quando a fico que acompanhamos, ou seja, a experincia das personagens, referida ao contexto nacional, como representativa de um estado de coisas na sociedade. Ele exagera e diz que nos pases do primeiro mundo tal alegoria no mais seria uma prtica relevante, sendo, portanto, uma caracterstica da literatura e do cinema do Terceiro Mundo. Minha resposta, e tambm a de Robert Stam, que escreveu sobre o assunto, foi apontar a presena de alegorias nacionais no cinema e na literatura dos USA e da Europa. Em verdade, a discordncia no uso que ele faz da idia de alegoria nacional (num sentido bem amplo) no seu diagnstico da situao atual da fico. INTEGRAO DE LINGUAGENS AL/AW - Podemos afirmar que, em certo sentido, a qualidade esttica de uma obra cinematogrfica resulta da integrao e do equilbrio formal de vrios elementos: som, luz, cenrio, roteiro, atores, dentre outros. Dessa maneira, coerente se premiar fragmentos de um filme, como melhor msica, melhor fotografia, melhor roteiro, etc.? As premiaes dos festivais, como o Oscar, realmente atestam a qualidade artstica de uma obra? IX - Tenho problemas com premiaes, mas temos de reconhecer que foi uma funo da crtica desde os festivais das peas trgicas na Grcia antiga. Com todos os problemas, uma forma de apontar quem ou qual funo contribui mais para a qualidade de um filme. O resultado final depende da integrao, mas h aspectos da obra que resultam mais felizes do que outros.

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GLAUBER ROCHA

AW/WL - Suas leituras de Glauber Rocha acentuam a dialtica, presente no estilo barroco dos filmes daquele cineasta, entre a metafsica religiosa e a idia do Homem-Sujeito da Histria. Esta tenso dialtica, porm, como apontam seus10

estudos, esmaece nos filmes feitos a partir dos anos 70, quando a materialismo histrico suplantado pela religio. A partir da o sagrado passa a dar o tom dos filmes e a esperana de revoluo advm prioritariamente da reorientao da tradio popular afro-brasileira, do profetismo bblico e do catolicismo rstico. Como essa reorientao filosfico-existencial repercutiu na qualidade dos filmes do grande cineasta baiano? Como se explica o fato de Glauber ter deixado, a partir de O drago da maldade contra o santo guerreiro (1969), de dar prioridade idia do Homem-Sujeito da Histria, j que neste momento a questo do nacional se complexifica com o processo de urbanizao? Basta lembrarmos que Torquato Neto e Caetano Veloso, do movimento Tropicalista, neste mesmo contexto, propem uma neo-antropofagia.

IX - Na minha leitura, desde seu primeiro longa, Barravento, Glauber expressa esse movimento duplo de atribuir ao homem a condio de sujeito da histria e, ao mesmo tempo, armar o seu jogo de modo que a prpria lgica da histria depende da fora do que a prpria religio do oprimido afirma, mesmo quando este mostra seus limites. Deus e o diabo proclama que a terra do homem, mas todo o seu estilo afirma uma teleologia da histria que de inspirao bblica, de tipo proftico, um mundo em que a ao humana se encaixa num esquema que, por ser dado, permite certezas. Em Terra em transe, temos o drama barroco que a expresso exasperada do desencanto provocado pela derrota poltica, desencanto aliado convico de que to cedo nada poder acontecer no teatro corrosivo da histria dominada por foras indesejveis. A partir de O drago da maldade, o teatro da revoluo como promessa passa a ser trabalhado como algo que, estando presente e evocado em seus filmes, est fora do centro da histria. Est numa condio marginal de que deve ser retirado. Ele passa a trabalhar a dolorosa crise da histria tal como antes concebida. Nesta crise, preciso identificar as foras vivas, o que tem potencial de transformao: o drama passa a opor a decadncia (pulso de morte) dos poderosos dignidade (pulso de vida) dos oprimidos, o que traz a religio popular para o campo da revoluo, pois vista como expresso inconsciente da rebeldia. Aqui, embora em total acordo com a antropofagia como mtodo de criao, Glauber manteve sua postura reticente face ao universo urbano, sem dvida, mas sem nunca deixar de reconhecer o lado trgico desta sua no reconciliao com a cidade, fonte dos aspectos mais dolorosos desse sentimento de crise de longo prazo que dominou o seu cinema. interessante ver o seu olhar para a cidade de Roma no filme Claro, e seu olhar para Braslia em A idade da terra, obra que traz a imagem

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desta esperana camponesa (de longo prazo) que se sabe soterrada por um monumental faz-de-conta das elites, o qual ele desenha com muita ironia, mas nem sempre, neste filme, com a fora tpica do seu cinema. A metfora da cidade como pedra e tmulo muito expressiva; a elite local expe seu jogo de mscaras de forma extraordinria. Mas o espetculo da religio que se justape a tal descalabro s encontra seu ponto de articulao na voz do prprio Glauber que intervm para proferir o que eu chamo de sermo do planalto, expresso corajosa da crise. Voc me pergunta sobre a questo da qualidade esttica. Para mim, Terra em transe a obra maior de Glauber, quando o movimento de cmera, o gesto dos atores, a retrica dos discursos, a montagem vertical som-imagem, o estilo indireto livre na composio da narrativa, tudo concorre para a criao de um espao cnico extraordinrio: temos a criao de palcos suspensos em que Glauber redefine o estatuto do teatro dentro do cinema e desenha com muito vigor a sua viso barroca da histria.11

________________Alfredo Werney arte-educador, msico e pesquisador, autor do livro Reencantamento do mundo: notas sobre cinema (2008). Wanderson Lima poeta e professor, doutorando em literatura comparada pela UFRN, autor de Morfologia da Noite (2001) e Bal de Pedra (2006).

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Poesia

5 poemas de

Danilo Bueno12

diasas horas estralam poentes nos ponteiros - como ontem vivo dias inteiros hiato sucessivo eco dentro do gelo(Fotografias, 2001)

3seqncias sem escape outros fogem por tabuleiros, desterrado da ltima face, ponto cego de relgios construir o bito o corpo em si desabitado espelhos encarcerados nos opostos uma tbua viva no espao(crivo, 2004)

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centrotrinta e dois graus extremo de panfletos compro ouro escrito num jaleco (senhor de setenta anos) isto comrcio frase de efeito um corpo(crivo, 2004)

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montagemfundo para fragmentos, gros, pedras preciosas. visor ou labirinto. buracos para cascalhos, areia, depois. excluso de alguns nmeros, menos os primos. parte alta, cimo. diversos utenslios: percutir decompor dissolver refinar. objeto muito esburacado. vcuo chave sutileza. cada uma das barras de uma grelha (fornalhas). corpo trespassado, cigarros. crtica e diversas substncias finas. arame, fios. cribru tecido preparado para o bordado. ralo no bico dos regadores. tubos e seiva. fresta rima fisga desvo(crivo, 2004)

nenhuma brisasou o nico homem a bordo do meu barco ou clarinetes escalando tmpanos ou planos imateriais, cruzados ou antenas ainda que entorpecentes sejam paraso algum ou deitar-se no cho frio Bach rajando do rdio enquanto anjos despencam pelo cu de quietude ou um poema acima da mdia (os balces sucessivos sobre o rio) ou algum verbete jamais consultado (que em si tornou-se uma definio) ou olhar o bairro mais uma vez (como quem fica, no como quem parte) ou conectivos que sobraram, sem esperana qualquer narrativa de domingos ou sozinho, alguns livros, pensando em banquetes sonoros e espelhos sem mculas ou tanger cordas cardacas com palavras, apenas

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ou fechado cmodo, sem ar, insnia de tudo alm de pistes infernais na cabea ou janela voltada para o mar ou no pensar no pensar absolutamente essas coisas nem confessar assim sem apuro ou definitivo(Corpo sucessivo, 2008)

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____________________Danilo Bueno nasceu em Mau, So Paulo em 1979. Reside na cidade de So Paulo desde 2006. Publicou a plaquete Fotografias (Alpharrabio Edies, 2001) e os livros: crivo (Alpharrabio Edies e Fundo de Cultura do Municpio de Mau, 2004) e Corpo sucessivo (Oficina Raquel, 2008).

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Poesia

6 poemas de

Sebastio Edson Macedo15

dois acasos trsesperei muitas folhas cairem pela tua apario em meu correio diminu os olhos risquei ofertas de quarto e sala e foram ruas com pessoas de toda sorte desaparecendo em teu nome to pequeno no sou capaz de precisar o que escapou das iscas na minha sede nem mesmo o meu cabelo cortado ou no e a alameda esta tarde que tomei sem acaso para evitar o desconto dos teus compromissos posto como uma vida real entre outras vidas num recomeo decerto sei que fica repleta a hiptese da alegria remota a prxima estao por isso persiste diante de mim a rvore da tua serena mensagem simples como conviria a uma ltima caminhada junto at a conduo

ninhoeu alimento o contorno da tua porta so dois pombos adocicados de algodo e o penteado da madeira moura aberta no sustenido do passo no pouso da casa inteira em tua boca com ela que as crianas dormem voam para l e para c centenas de cantigas que trazem o solo para a flor e na flor as bochechas da tua mo eu banho a alegria do teu trampolim

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postallevo voc at o mirante pela beira mais tenra do morro para que se abram vista as primas tuas palavras sortidas a pino a contento no esmo breve de guardar o cendal levo voc pelas rudes fulores das mais haustas sazonas quela que ch me povoa revelar levo voc nas raras andorinhas horas nos paradeiros bordados num silncio solcito ao menor atestado do amor levo voc at hoje como se fosse de mim um sinal

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para o lado aposso ir era o sinal da minha soltura porta do abrao e vindo novas derivas perguntando se para casa havia o que fazer havia inteno riso qualquer cola era o sinal da tua agenda providenciada num relmpago rascunho e em segundos o elevador querido no era para segurar a minha boca tampouco ocupar o juzo com outro desejo menos desolado era o sinal que tinha apenas a minha soltura ao apagamento dos prdios e algum precipcio legvel no aperto de mo apertado deveras num acaso se eu quiser ligar posso com fitas e propsitos a minha casa vai houve a minha casa de ir a certa altura voc ps os olhos no empuxo das ruas nos demais

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raptoenamoro-te tctil rom em teu barro poente o ouro reboco que se movem telhas potes ripas at as gamelas latas de minha me tudo misturado num pilo de cor trago teu sabor tinta ponta da palavra prove

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pequeno da silvaos dias me deram sinais de chumbo no peito peo aos amigos desculpa pelo que fui de refm das nuvens no estou no esforo das sacudidelas de poeira s mas uma geral no corao que alm tive um um digamos acometimento uma paixo devastadora e etrea que no durou mais que o rudo das esperas e nelas esboroou pungido mais difcil se proteger e desacreditar do sol pondo vida na gua e destino nos dentes que me concede recuperar certos demovimentos artrias para esta cidade este flgido tempo de sinais? suturas?

____________________Sebastio Edson Macedo poeta, mestre em literatura portuguesa pela UFRJ, professor e ensasta.

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Prosa de fico

3 contos de

M. Moura Filho18

GENSICO Caudaloso rio flua das entrepernas, lmpido e quente. Quando a nau, tardia, invadiu o porto, o rio enrubesceu-se, e, depois de sons ininteligveis, o vermelho, em correnteza j tnue, viu-se com bolses viscosos e embranquecidos. O capito, finda a invaso, exausto, mas sentindo-se Deus, imaginou, equivocadamente, ter feito da cidadela uma mulher.

ACERTO DE CONTA Vergados o mindinho e o anelar. Mirou para imagem de Paulo com o mdio e o indicador tesos. O polegar arriou sobre o indicador. Um buraco, com bordas em chumbo, fez-se. Viu fragmento de osso e, em seguida, da testa, uma bica; escarlate, entre os olhos, em direo ao nariz. Pensou, neste instante, buscando a Smith & Wesson deixada por Paulo, que todas as pessoas so doentes.

CARNAVAL, CARNAVALEu vejo as pernas de loua Da moa que passa e no posso pegar T me guardando pra quando o carnaval chegar Chico Buarque

A bermuda de jeans e a camiseta verde. Calou os tnis. Virou-se. Encarou o espelho. Penteou-se. Ouvia Dont Let The Dragon Eat Your Mother, brother, de John McLaughlin. Jos entrou no quarto. Jos: Tamos no carnaval, cara! Ele: Eu sei. Jos: Ento? Ele balanou o corpo. Uma Gibson The Les Paul imaginria nas mos geis. Jos: O problema que no observamos as ra... Ele: Vamos. Saem. *** REINADO DE MOMO PALCIO DA FOLIA Edito Real Sua majestade, Rei Z Fortes, Primeiro e nico, no uso de suas intransponveis e irrevogveis transies legais

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Decreta Art. 1 - A partir de hoje reina a alegria e revogada a tristeza. Art 2 - Os descontentes com o Reinado de Momo devero ser confinados: a) nas praias de Luiz Correia ou Barra do Cear; b) em Sete Cidades; e c) nas matas de Timon e adjacncias. Art 3 - Nos clubes, todos devem pular, lpidos e fagueiros, juntos ou separados, porque a orientao do Rei de que sem alegria no d. Art 4 - Os condes e conselheiros do Reinado anterior considerem-se demitidos, pois no novo Reinado a bossa nova. Art 5 - As coroas devem abdicar mscaras e soltar os enxovalhos, uma vez que no atual Reinado toda mulher boa. Art 6 - Fica abolido o preconceito transao gay; afinal, todos so iguais no carnaval e nem sempre o saracoteio dos quadris homologa a placa. Art 7 - Os que sarem nas ruas, pensando ficar fora do trino momino, devero ser seqestrados e recolhidos ao Quartel General da Folia, na Avenida Frei Serafim, at a passagem do Trio Eltrico. Art 8 - Revogadas as disposies e indisposies em contrrio, o presente Edito Real entra em vigor na data de sua publicao. (Jornal O Dia, edio de 21/22 e 23 de fevereiro de 1982, pg. 7). *** Aqui Pegou. 18h15min. Jos, ele, a menina de culos e o cara de bigode de arame. Trs copos. Quatro garrafas. Jos: Quem homem no anda assim. Ele: Tudo brincadeira. Menina de culos: Li depoimento de um psiclogo que dizia o carnaval permitir ao individuo externar seus sentimentos reprimidos, o que somente possvel durante os trs dias desta festa orgaca, pois nos outros dias a sociedade possui um papel castrador em face daquilo que ela entende por atitudes amorais. Cara de bigode de arame: , quem homem no se veste assim. Nem no carnaval. Ele observou o voar assustado e trinados dos pardais sobre as rvores da Avenida Frei Serafim. Blocos de sujos, animados, vo e voltam, vo e voltam. Ele e Jos vem um bloco: Unidos do Esculacho. Todos com tnicas. Ele: o bloco dos artistas. Jos: Aquele cara ali artista? Ele: . Jos: Todos eles so artistas? Ele: No. Alguns que somente so veados. *** Uma garota, short de jeans e blusa com a inscrio University of California, encostada num Corcel II. Um cara de cala preta e camiseta no ombro, depois de observ-la por algum tempo, aproximou-se. Cara de cala preta e camiseta no ombro: Oi, Pussy.

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Garota de short jeans e blusa com a inscrio University of California: Hem? Cara de cala preta e camiseta no ombro: Voc Pussy! Garota de short jeans e blusa com a inscrio University of California: Voc est enganado. Eu no sou Pussy. Csar que no vem. O cara de cala preta e camiseta no ombro est bbado. Cambaleia ao afastar-se da garota que chamara Pussy. ***20

Numa cidade que se pretende civilizada, a polcia no acode aos desditosos habitantes martirizados por alguns engraados sem esprito que levam horas inteiras espancando peles dos zabumbas, quando as prprias que deveriam ser escovadas, uma vez que a autoridade consente semelhantes exibies grotescas, inqualificveis, dignas de zulus ou boais. (Revista Rua do Ouvidor, de 27/01/1900, citada por Chico Alencar no artigo Acabou o carnaval (mas faz muito tempo), publicado em O Pasquim, edio de 25/02 a 03/03/1982, pg. 7). *** Um corpo no cho. Ningum lhe d ateno. *** Danavam juntos, no danavam? Por que, ento, parou? Por que a olhou diferente? A moa: O que houve? O rapaz: No devia estar com voc A moa: Por qu? O rapaz: Voc sabe. A moa: O telefonema? O rapaz: A moa: Esquece, p. ( Fale. Talvez voc j tenha percebido. Pausa. Eu gos... Al? Voc est me ouvindo? Tou, sim. Fale Eu te a... Olha, voc um cara legal. Mas a ... Continue. Pausa A minha cor, n? Pausa. A minha cor, n? Afastara-se do orelho Sumiu na noite.) *** O moreno vestido como mulher e bucho forjado. Acompanhou-o avenida o vizinho, sarar franzino de boca torta e piscar constante do olho direito. O branco vestido com bermuda superestampada e camiseta azul, sem mangas. Saiu no Puma. O moreno vestido como mulher e bucho forjado divertia-se, seguindo qualquer bloco.

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O branco do Puma bebia no Coisa Fina; loura, sentada em suas coxas, vez em quando levava-lhe boca um naco de carne. O moreno vestido como mulher e bucho forjado suado quando o dente comeou a doer. O branco do Puma balbuciou qualquer coisa no ouvido da loura. Saram. Bbado, com um litro de Mangueira na mo, deu um trago ao moreno vestido como mulher e bucho forjado. O branco do Puma, com a loura, na pista da avenida, num e noutro bloco. O moreno vestido como mulher e bucho forjado viu o branco do Puma e disse para o sarar franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: Aquele filho da puta me tirou o emprego e no me pagou direito. O branco do puma espremia a loura com fora. O moreno vestido como mulher e bucho forjado, referindo-se ao branco do Puma: Vou d um pau nele! Sarar franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: Deixa pra l, compadre. O branco do Puma continuava a espremer a loura. O moreno vestido como mulher e bucho forjado disse: Vamos esquecer. O branco do Puma pisou no p do moreno vestido como mulher e bucho forjado. *** Se as fantasias revelam, ento o carnaval mostra um mundo invertido, onde o pobre pode bancar o rico; e os donos do poder podem buscar uma aproximao como mundo dos homens, bancando pobres. Entrevistas com pobres que desfilarem de reis revelam esse xtase carnavalesco, quando algum pleno de anonimato social ganhou os aplausos, as atenes e os olhares de todos os segmentos sociais num desfile. Entrevistas com gente de classe mdia alta indicam precisamente o oposto: aqui, h um prazer como o de um arquiteto de sucesso de pisar de p descalo o asfalto da Avenida. (...) Quer dizer, eu continuo achando admirvel que uma sociedade no final do sculo XX ainda continue a celebrar suas relaes sociais utilizando essa regra de inverso e, assim fazendo, possa permitir e legitimar uma troca de lugar, ainda que essa troca seja burocratizada, controlada pelo Estado, fugidia e tenha data marcada. Porque, apesar de tudo, uma troca que permite vivenciar e justia e a igualdade, a liberdade, a vitria e a esperana. Esses ingredientes centrais de qualquer transformao social concreta. (Fragmentos do artigo Carnaval: o verdadeiro milagre brasileiro, de Roberto da Matta, publicado em O Pasquim, edio de 26/02a 04/03/1981, pg. 5). *** bicha. No. uma mulher. bicha. Porra! mesmo! Olha outra ali. ***

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Primeiro uma chuvinha fina. Parara. Pouco depois, como da vez passada, espectadores procura de abrigos. A maioria permaneceu na chuva incrvel, ouvintes. Nem a chuva que desaba sobre o centro da Cidade Verde consegue afastar os espectadores da Frei Serafim. A chuva aumenta cada vez mais o entusiasmo do folio. D mais gosto de se ver um carnaval assim. *** Ele e Jos tinham deixado numa mesa do Aqui Pegou a menina de culos e o cara de bigode de arame. Caminhavam lentamente. Jos no parava de falar. Ele viu a garota de short jeans e blusa com a legenda University of California. Ele: Ol, gracinha. Garota de short jeans e blusa com a legenda University of California: Pussy. Ele: Hem? Garota de short jeans e blusa com a legenda University of California: Pussy. Me chamo Pussy. Ele fez sinal para Jos. Garota de short jeans e blusa com a legenda University of California: Parece que ele se chateou. Ele: Um chato! *** Locutor do Posto n 2, da Secom: Ateno, Laura Maria. Ateno, Laura Maria. Sua me te espera aqui no Posto n 2. Comparea o mais breve possvel. *** Quem no conhece o carnaval no conhece o Brasil, e quem no gosta de carnaval no gosta da alma brasileira. O carnaval ainda feito pelo povo, j que a participao popular espontnea maior que qualquer interferncia dirigida, venha ela do poder pblico, de empresas privadas ou de qualquer pessoa diretamente interessada na festa. Essa manifestao espontnea to poderosa que mesmo durante as ditaduras impostas ao Brasil do Estado Novo ao perodo ps-64 conseguiu ser mais forte que a represso. O povo continua danando e cantando, porque para o povo brasileiro cantar to importante quanto sobreviver. (...) O morador do morro, quando encontra um vizinho no bar, no quer falar de suas desgraas. Prefere cantar sambas. Se tiver um pouquinho de sensibilidade, j faz um ritmo. Um pouco mais e improvisa em verso. Esse comportamento no morre com a ao de foras externas e garante a eterna sobrevivncia do carnaval. (Albino Pinheiro, fragmento de O carnaval eterno, revista Veja, n 703, pg. 90). *** Jos no bar. Trs garrafas vazias sobre a mesa. Pediu a quarta. Duas vezes levantara-se e fora ao banheiro. Fedorento. Cerveja esquentando no copo. ***22

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Populares cercavam um corpo no passeio da Avenida Miguel Rosa, em frente AFAL. O assassino agiu rapidamente. O homem corria com dificuldade e Violeta, sbrio, facilmente abateu-o. Conjectura-se que tudo aconteceu por causa de uma puta chamada Marg. Violeta, aps matar o homem, tirou da bolsa uma gilete e comeou a cortar-se, principalmente no antebrao esquerdo. Desesperado, deixou a peruca cair.23

*** As paredes desbotadas. Quase brancas. Cadeira de palha, bacia, jarra, penteadeira e cama. Pussy virou-se. Encontrou-se diante de um homem que lhe sorria. Espantada, protegeu sua nudez. Levantou-se rapidamente. Vestiu-se. Abriu a porta. Saiu. Na rua, duas senhoras, com teros e vus, caminhavam para a igreja. O sol h muito fora parido.

______________M. de Moura Filho nasceu em Floriano, em 1958. Contista do Grupo Tarntula, participou, entre outras, das coletneas Um dedo de prosa (Teresina, 1979), Novos contos piauienses (Teresina, 1984), Vencidos (Teresina, 1987) e Gerao de 1970 no Piau: contos antolgicos (Teresina, 2007). Veicula textos atualmente nos blogs Vida Noves Fora Zero e Confraria Tarntula.

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Traduo

Borges, em 1941, sobre Citizen Kanetraduo de Wanderson LimaEnquanto enxergou, Jorge Luis Borges foi um entusiasta do cinema. Para ele, o filme representava uma nova pica, apta a repor o herosmo deixando de lado pelo romance - que se psicologizou ou derivou para o experimentalismo lingstico -, alm de ser um meio de renovao das tcnicas narrativas. A influncia do cinema em sua tcnica narrativa data de seus primeiros contos, em Histria Universal da Infmia. Freqentemente, Borges apontava von Sternberg entre suas maiores influncias. Entre seus cineastas favoritos, conta-se, alm de Sternberg, Eisentein, John Ford, Chaplin, Hitchcock e Wyler.

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CITIZEN KANE (EL CIUDADANO)Originalmente publicado na revista Sur, 1941, Argentina.

Citizen Kane (cuyo nombre en la Repblica Argentina es El Ciudadano) tiene por lo menos dos argumentos. El primero, de una imbecilidad casi banal, quiere sobornar el aplauso de los muy distrados. Es formulable as: un vano millonario acumula estatuas, huertos, palacios, piletas de natacin, diamantes, vehculos, bibliotecas, hombres y mujeres; a semejanza de un coleccionista anterior (cuyas observaciones es tradicional atribuir al Espritu Santo) descubre que esas miscelneas y pltoras son vanidad de vanidades y todo vanidad, en el instante de la muerte, anhela un solo objeto del universo un trineo debidamente pobre con el que en su niez ha jugado! El segundo es muy superior. Une al recuerdo de Koheleth el de otro nihilista: Franz Kafka. El tema (a la vez metafsico y policial, a la vez psicolgico y alegrico) es la investigacin del alma secreta de un hombre, a travs de las obras que ha construido, de las palabras que ha pronunciado, de los muchos destinos que ha roto. El procedimiento es el de Joseph Conrad en Chance (1914) y el del hermoso film The Power and the Glory: la rapsodia de escenas heterogneas, sin orden cronolgico. Abrumadoramente, infinitamente, Orson Welles exhibe fragmentos de la vida del hombre Charles Foster Kane y nos invita a combinarlos y a reconstruirlo. Las formas de la multiplicidad, de la inconexin, abundan en el film: las primeras escenas registran los tesoros acumulados por Foster Kane; en una de las ltimas, una pobre mujer lujosa y doliente juega en el suelo de un palacio que es tambin un museo, con un rompecabezas enorme. Al final comprendemos que los fragmentos no estn regidos por una secreta unidad: el aborrecido Charles Foster Kane es un simulacro, un caos de apariencias (corolario posible, ya previsto por David Hume, por Ernst

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Mach y por nuestro Macedonio Fernndez: ningn hombre sabe quin es, ningn hombre es alguien). En uno de los cuentos de Chesterton - The Head of Caesar, creo -, el hroe observa que nada es tan aterrador como un laberinto sin centro. Este film es exactamente ese laberinto. Todos sabemos que una fiesta, un palacio, una gran empresa, un almuerzo de escritores o periodistas, un ambiente cordial de franca y espontnea camaradera, son esencialmente horrorosos; Citizen Kane es el primer film que los muestra con alguna conciencia de esa verdad. La ejecucin es digna, en general, del vasto argumento. Hay fotografas de admirable profundidad, fotografas cuyos ltimos planos (como las telas de los prerrafaelistas) no son menos precisos y puntuales que los primeros. Me atrevo a sospechar, sin embargo, que Citizen Kane perdurar como "perduran" ciertos films de Griffith o de Pudovkin, cuyo valor histrico nadie niega, pero que nadie se resigna a rever. Adolece de gigantismo, de pedantera, de tedio. No es inteligente, es genial: en el sentido ms nocturno y ms alemn de esta mala palabra.25

CITIZEN KANE (CIDADO KANE) Citizen Kane (cujo nome na Repblica Argentina El Ciudadano) tem ao menos dois argumentos. O primeiro, de uma imbecilidade quase banal, quer subornar o aplauso dos mais distrados. formulvel assim: um vo milionrio acumula esttuas, hortas, palcios, piscinas, diamantes, veculos, bibliotecas, homens e mulheres; semelhana de um colecionador anterior (cujas observaes tradicional atribuir ao Esprito Santo), ele descobre que essas miscelneas e pletoras so vaidades das vaidades, tudo vaidade e, no instante da morte, anseia um s objeto do universo: um tren devidamente pobre com o qual sua infncia brincou! O segundo argumento muito superior. Funde a recordao de Koheleth de outro niilista: Franz Kafka. O tema (ao mesmo tempo metafsico e policial, psicolgico e alegrico) a investigao da alma secreta de um homem, por meio das obras que construiu, das palavras que pronunciou, dos muitos destinos que estragou. O procedimento o de Joseph Conrad em Chance (1914) e do belo filme The Power and the Glory: a rapsdia de cenas heterogneas, sem ordem cronolgica. Opressivamente, infinitamente, Orson Welles exibe fragmentos da vida do homem Charles Foster Kane e nos convida a combin-los e reconstru-los. As formas da multiplicidade, da inconexo, abundam no filme: as primeiras cenas registram os tesouros acumulados por Foster Kane; em uma das ltimas, uma pobre mulher luxuosa e doente brinca no cho de um palcio, que tambm um museu, com um quebra-cabea enorme. Ao final compreendemos que os fragmentos no esto regidos por uma secreta unidade: o antiptico Charles Foster Kane um simulacro, um caos de aparncias (corolrio possvel, j previsto por David Hume, por Ernst

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Mach e por nosso Macedonio Fernndez: nenhum homem sabe quem , nenhum homem algum). Em um dos contos de Chesterton The Head of Caesar, creio , o heri observa que nada to aterrador como um labirinto sem centro. Este filme exatamente esse labirinto. Todos sabemos que uma festa, um palcio, uma grande empresa, um almoo de escritores ou jornalistas, um ambiente cordial de franca e espontnea camaradagem, so essencialmente horrorosos; Citizen Kane o primeiro filme que os mostra com alguma conscincia dessa verdade. A execuo digna, em geral, do vasto argumento. H fotografias de admirvel profundidade, fotografia cujos ltimos planos (como nas telas dos prrafaelistas) no so menos precisos e pontuais que os primeiros. Atrevo-me a suspeitar, no entanto, que Citizen Kane perdurar como perduram certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo valor histrico ningum nega, mas que ningum se resigna a rever. Padece de gigantismo, de pedantismo, de tdio. No inteligente, genial: no sentido mais noturno e mais alemo desta m palavra.26

___________________Wanderson Lima escritor e professor, doutorando em literatura comparada na UFRN.

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Traduo

2 poemas de

Michel Deguytraduo de Sebastio Edson Macedo27

JacentesEu no cesso de perder-te desde aquele quarto de hotel Onde nua e de costas tu me gritaste v embora Eu no me recordo mais da nossa discrdia, do meu erro S do papel, do curvo dorso, Da natureza morta do dia e do armrio, E de minha viva crena indolor de que eu iria te reencontrar.

GisantsJe ne cesse de te perdre depuis cette chambre d'htel O nue et dtourne tu m'as cri va-t'en Je ne me rappelle plus notre querelle, ma faute Mais le papier, ton dos courbe, La nature morte du jour et de l'armoire, Et ma croyance indolore debout que j'allais te revoir

Quem o queFaz tempo que tu no existes mais Face por vezes clebre e suficiente Como te amo Nem sei Faz tanto tempo Eu te amo com indiferena Amo que d raiva Por omisso por murmrio por covardia Com obstinao Contra toda verossimilhana Eu te amo te perdendo para perder Esse eu que se recusa a ser demovido como somos Na popa (esta varanda encrustada no sal) Ex-quem de costas arrastado entre duas guas O que agora Boca castigada Boca castigada corao palpitando a rbita Uma questo que vara tudo o outro em vo

Qui quoi

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Il y a longtemps que tu nexistes pas Visage quelquefois clbre et suffisant Comment je taime Je ne sais Depuis longtemps Je taime avec indiffrence Je taime haine Par omission par murmure par lchet Avec obstination Contre toute vraisemblance Je taime en te perdant pour perdre Ce moi qui refuse dtre des ntres entran De poupe (ce balcon chantourn sur le sel) Ex-qui de dos tran entre deux eaux Maintenant quoi Bouche punie Bouche punie cur arpentant lorbite Une question tout frayant en vain le tiers

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____________________Apesar de atuar como poeta, filsofo e professor de literatura, Michel Deguy (n. 1930, Paris) autor de uma obra que desloca os encontros entre estas diferentes instncias discursivas e recupera para o nosso tempo um estranhamento afetivo e uma pluralidade formal cuja matria nos ser sempre cara: o corao do homem comum na avalanche indiferente da linguagem. Com essa insero tico-esttica, Deguy recebeu dois importantes prmios literrios franceses, o Grand Prix National de la Posie, e o Grand Prix de Posie de l'Acadmie Franaise. H no Brasil uma antologia de poemas seus traduzida por Paula Glenadel e Marcos Siscar (7Letras/Cosac&Naify). Sebastio Edson Macedo poeta, mestre em literatura portuguesa pela UFRJ, professor e ensasta.

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ensaio

O rio como recurso humanizador na poesia de Joo Cabralpor Andr Pinheiro

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H uma forte tendncia em considerar Joo Cabral de Melo Neto um dos autores mais racionalistas da literatura brasileira. De fato, o poeta sempre esteve atento construo do poema e procurou escrever uma lrica objetiva, clara e racional aspectos que lhe renderam o ttulo de engenheiro da linguagem. Adepto das idias difundidas pelo poeta francs Paul Valry (para quem a poesia deveria ser planejada da mesma maneira que um arquiteto desenha a planta antes de executar a casa), Joo Cabral ressentiu aos perigos de uma literatura muito fcil. Ademais, o prprio poeta alimentou a fama de ser um homem frio, recluso e avesso ao sentimentalismo piegas. Esse cruzamento de aspectos biogrficos e bibliogrficos certamente contribuiu para a solidificao do mito cabralino. claro que a dicotomia estabelecida entre a razo e a emoo foi superada h muito tempo, mas o grande nmero de ensaios crticos voltados para o aspecto racionalista da obra de Joo Cabral d a falsa impresso de que o poeta criou um sujeito lrico desprovido de sentimentos. Uma leitura mais verticalizada de sua obra, no entanto, revela a humanidade com que o autor aborda as suas matrias poticas, sobretudo quando se refere a temas nordestinos. Para que se comprove essa diretriz, basta verificar o grande nmero de poemas empenhados em fazer uma leitura da memria cultural do Nordeste; alguns elementos tpicos dessa regio (como a rede, a msica dos violeiros, as frutas tropicais e a literatura de cordel) so abordados de um modo bastante compassivo, revelando a identidade mantida entre o sujeito e a cultura da qual faz parte. A recordao das experincias sertanejas e o tom ertico com que o poeta descreve algumas paisagens tambm ratificam o sentimento humano dessa obra. Diga-se de passagem, a representao de alguns espaos caractersticos da regio Nordeste constitui um ponto forte nesse processo de humanizao, uma vez que o poeta utiliza a paisagem (normalmente personificada) para traar um perfil da sociedade nordestina e para tecer as suas crticas ao sistema poltico que a rege. O canavial, por exemplo, foi a imagem encontrada para retratar o anonimato da populao pobre; atravs da caatinga e da pedra o poeta explora a falta de assistncia social em relao aos problemas da seca; e o rio foi a fonte utilizada para se discutir a desigualdade social e a luta pela sobrevivncia. Embora o rio no seja uma paisagem exclusiva do Nordeste (j que pode ser encontrado em qualquer parte do mundo com condies favorveis sua nascente), no h dvida de que ele tem uma importncia muito grande para essa regio; na verdade, as cidades mantm intensa relao com os rios que banham suas

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terras, j que eles geralmente atuam na economia e na estrutura social da regio. O caso sertanejo ainda mais delicado, pois a gua do rio adentrou no imaginrio popular e se tornou uma espcie de substncia sagrada para as pessoas que vivem cercadas por terra seca. O rio um espao geogrfico to marcante no serto que mesmo durante a estiagem comum encontrar indivduos cavando cacimbas na terra com a esperana de que um milagre lhes restitua a gua tragada. Evidentemente, no se rejeita o fato de que a seca atinge apenas uma parte da regio Nordeste; por outro lado, h discursos que acentuam a imagem do sofrimento com o intuito de criar uma identidade nordestina. No entanto, qualquer pessoa que tenha tido uma experincia mais densa como serto reconhece a forma objetiva que subsidiam os muitos discursos sobre essa realidade. De qualquer forma, o serto presente na obra cabralina uma criao esttica, com leis e estruturas prprias. O rio figura como uma das imagens mais recorrentes na poesia de Joo Cabral e est fundamentalmente ligado s condies de vida nas regies mais pobres. Dessa forma, o leito fluvial proporciona ao poeta a possibilidade de abordar as cenas desastrosas da seca, a fuga dos retirantes para o litoral e a situao desumana do mangue. atravs do rio que Cabral realiza a maior parte de suas denncias sociais e, conseqentemente, revela o aspecto humanizador de sua obra. Com efeito, a preocupao com a populao pobre um ndice de que o poeta lhe dedica algum sentimento afetuoso; no mnimo, sente a necessidade de trazer a pblico a condio de misria em que vive parte de seu povo. como porta-voz de um grupo social, portanto, que Joo Cabral instaura uma vertente antropolgica em sua poesia, o que o faz superar o formalismo ingnuo e o intelectualismo hermtico a que sua obra estava fadada. O co sem plumas o primeiro livro em que as denncias sociais aparecem de forma mais declarada. O poeta extrai da ambientao sombria do mangue um acervo de imagens expressivas e atravs dele compe um quadro cruel do lugar e dos seus habitantes. No resta dvida de que o sujeito se sente tocado diante da revelao de que um homem pode freqentar um ambiente com condies to adversas vida: Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, inquietao de faca que h nos peixes. Jamais se abre em peixes. Abre-se em flores podres e negras como negros. Abre-se numa flora suja e mais mendiga como so os mendigos negros. Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro.(O co sem plumas, 1950) 30

No mangue, o rio vai perdendo a beleza proporo que as flores apodrecem; a gua deixa de ser fonte vitalcia para se transformar numa espcie de cemitrio aterrorizador, j que a natureza esmaece e cobre de luto todo o ambiente. Dessa forma, os homens que freqentam a podrido do mangue parecem antes restos de mortais do que qualquer outra coisa; a dramaticidade com que a cena descrita ratifica a indignao do poeta diante das condies lastimveis da vida dessas pessoas. Joo Cabral no descarta, contudo, a possibilidade de transformao; a esperana de que a situao pode melhorar constitui uma espcie

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de sentimento utpico que caracteriza parte de sua produo de cunho social. Os versos finais de Morte e vida severina so exemplares para mostrar a expectativa com que o eu-lrico espera ver revertida a situao lastimvel do serto brasileiro: E no h melhor resposta que o espetculo da vida: v-la desfiar seu fio, que tambm se chama vida, ver a fbrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, v-la brotar como h pouco em nova vida explodida mesmo quando assim pequena a exploso, como a ocorrida como a de h pouco, franzina mesmo quando a exploso de uma vida severina.(Morte e vida severina, 1954)

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As imagens fluviais tambm aparecem de forma bastante expressiva no poema Na morte dos rios; seus versos transmitem um sentimento angustiante, pois embora a gua seja uma substncia extremamente necessria ao corpo humano, as pessoas descritas no texto nunca a alcanam. Mais uma vez, o rio o recurso imagtico utilizado para registrar a condio humana de uma dada populao. De acordo com o texto, a carncia de gua foi responsvel pela animalizao do ser humano; no h dvida em afirmar, portanto, que para Joo Cabral o rio corresponde prpria vida: Desde que no Alto Serto um rio seca, o homem ocupa logo a mmia esgotada: com bocas de homem, para beber as poas que o rio esquece, e at a mnima gua; com bocas de cacimba, para fazer subir a que dorme em lenis, em fundas salas; e com bocas de bicho, para mais rendimento de seu fossar econmico, de bicho lgico. Verme de rio, ao roer essa areia mmia, o homem adianta os prprios, pstumos.(Na morte dos rios, A educao pela pedra, 1966)

Ao comparar o homem com um verme, o poeta mostra que, em algumas circunstncias, a seca pode causar a cessao dos seus direitos humanos mais elementares. Para figurar a dramaticidade dessa situao, Joo Cabral recorre a um discurso de acentuada expressividade (alis, recorrente na sua produo de cunho social); desse modo, o poeta preza por manter uma relao entre a matria potica captada e o recurso lingstico que a descreve. curioso perceber tambm a identidade que os indivduos mantm com o ambiente no qual esto inseridos; no se trata, evidentemente, de uma concepo determinista da realidade, mas antes de um recurso utilizado para acentuar o tom dramtico da pea e para compor a unidade do conjunto. Todas essas solues mostram que Joo Cabral procurou criar um bloco coeso, com realidade estruturalmente planejada. O rio, nesse caso, designa a situao de misria que ronda as terras descritas, mas tambm est ligado a um sentimento de resistncia e esperana, claramente percebido na imagem dos lenis freticos. O rio um objeto potico to importante na obra de Joo Cabral que ele j aparece como matria onrica em seu primeiro livro. Ainda que as guas fluviais no possam ser tomadas com o mesmo teor sociolgico que aparecem em O co sem plumas, j se v delineada nesse volume de estria a fora com que emergiriam as imagens aquticas na lrica cabralina:

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Mulheres vo e vm nadando em rios invisveis. Automveis como peixes cegos compem minhas vises mecnicas.(Poema, Pedra do sono, 1942)

Pedra do sono uma obra de orientao surrealista, movimento de vanguarda que pretendia alcanar uma representao do inconsciente humano. No fragmento transcrito acima, o rio instaura uma ambientao mgica em torno do sujeito e faz com que brote seus sonhos mais secretos. Talvez seja por esse motivo que a concepo abstrata das guas permanece intacta na sua mente, independente da permanncia da imagem. Mas as guas fluviais no escapariam capacidade alqumica de Joo Cabral de Melo Neto, que costuma transformar a realidade cotidiana em estranha e requintada laborao potica. O poema As guas do Recife, por exemplo, explora um carter inusitado do rio, j que o poeta primeiro o associa a um touro e depois a um lutador que desafia o mar em uma queda de brao. Embora esse rio no tenha as caractersticas daqueles encontrados no alto serto (que permanecem secos durante a maior parte do ano), ele tambm retrata o trabalho penoso no mangue, uma cena j bastante comum no litoral nordestino: 1. (Os dois touros) O mar e os rios do Recife so touros de ndole distinta: o mar estoura no arrecife, o rio um touro que rumina. Quando o touro mar bate forte nele h o medo de no ficar, de ter sado, de estar fora, de quem se recusa a ser mar. E h no outro touro, o rio, entre mangues, remansamente, mil manhas para no partir: anda e desanda, ainda, sempre. Mas se so distintos na ao mesma a razo de seu atuar: tentam continuar a ser da gua de aqum do arrecife, antemar. 2. (A queda de brao) Eis por que dentro do Recife as duas guas vivem lutando, jogando de queda de brao entre os muros dos cais urbanos. A que mar porque, obrigada, saltou o quebra-mar do porto vem, cada mar, desafiar a gua ainda rio para o jogo. A gua que remonta e a que desce travam ento uma queda de brao: aplicadamente e em silncio, equilibradas por espaos.

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Um certo instante esto imveis, nem mar alta nem baixa, ao par; at que uma derruba e vence, e ao vencer, perder: se exilar.(As guas do Recife, Museu de tudo, 1975)

Na primeira segmentao do texto, Joo Cabral compara as duas guas (fluviais e martimas) com a natureza de um touro, segundo assinala o subttulo atribudo a essa parte. No deixa de ser curiosa a escolha de um boi para designar as guas, uma vez que esse animal constitui a base da pecuria brasileira e remete imediatamente s touradas praticadas na Espanha, pas por cuja cultura Joo Cabral nutria grande afeto. Percebe-se de imediato, portanto, que o poeta est trabalhando com uma matria intimamente ligada a um vis emocional. Ademais, a imagem do boi possui um carter expressivo dentro da moderna poesia brasileira, principalmente depois que Drummond a utilizou para sintetizar a herana rural do pas e para representar a solido do indivduo em meio ao desenvolvimento catico das grandes cidades: solido do boi no campo, solido do homem na rua! Entre casas, trens, telefones, entre gritos, o ermo profundo.(O boi, Jos, 1942)

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Na formatao de seu texto, Joo Cabral enfoca algumas diferenas entre as guas do rio e as guas do mar. O poeta personifica as matrias concretas com o intuito de desvendar o sentimento humano que existe por trs dos objetos, sem se dar conta que o prprio indivduo quem atribui humanidade matria circundante. As distines feitas entre as duas guas esboam uma espcie de hierarquia social, j que o mar est associado s riquezas litorneas ao passo que o rio remete condio penosa das terras sertanejas. Na obra de Joo Cabral, o rio comumente identificado com a pobreza nordestina ou com as condies desumanas em que vivem os habitantes do mangue. Dessa forma, os dois touros no poderiam apresentar o mesmo carter porque eles tiveram uma formao dspar e vivem em condies bem diferenciadas: o rio corre o risco de se estagnar a qualquer momento, enquanto o mar tem um mundo abundante na sua frente. por esse motivo que o rio parece ter uma natureza mais frgil, como se estivesse sendo constantemente ameaado pelas adversidades da realidade exterior. Diga-se de passagem, a imagem de um rio personificado aparece pela primeira vez no volume O rio, grande poema de estrutura narrativa que mantm alguns pontos de contato com As guas do Recife. Trata-se tambm de um indivduo que deixa as suas terras, mas diferentemente do que ocorre com o poema aqui analisado, em O rio as guas desejam desesperadamente encontrar o litoral na esperana de que ele lhe d melhores condies de vida. Mas o que chama a ateno nesse livro o modo humanizador com que o poeta apresenta a viagem das guas; na cena descrita abaixo, por exemplo, num gesto de solidariedade, o rio cumprimenta com gosto os rios/amigos encontrados ao longo do percurso, j que reconhece neles a mesma situao dramtica em que vive. importante lembrar que o rio no annimo como o canavial; ele tem um cdigo que o identifica e o destaca das demais guas. De certo modo, essa identidade fluvial comprova a importncia das imagens aquticas para o processo de humanizao na obra de Joo Cabral de Melo Neto: Sempre pensara em ir caminho do mar. Para os bichos e rios nascer j caminhar. Eu no sei o que os rios tm de homem do mar; sei que se sente o mesmo

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e exigente chamar. (...) Os rios que eu encontro vo seguindo comigo. Rios so de gua pouca, em que a gua sempre est por um fio. Cortados no vero que faz secar todos os rios. Rios todos com nome e que abrao como a amigos.(O rio, 1953)

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De certa forma, a caracterizao dessas guas indica a supremacia dos povos litorneos e a fragilidade dos habitantes do serto; o mar apresentado como um touro violento, impiedoso e passa por cima de qualquer obstculo anteposto em seu caminho, ao passo que o rio descrito como um animal mais calmo e ponderado. No entanto, se as guas fluviais parecem ter um carter depreciativo por conta dessa mansido, por outro lado elas possuem a qualidade de refletir sobre as suas aes; de serem mais sensatas com as escolhas tomadas. Pode parecer estranho associar intenes to humanas a esses elementos minerais, mas as personificaes utilizadas pelo poeta apenas visam enfatizar sentimentos dicotmicos existentes entre dois tipos distintos de gua a tranqilidade (marcante na imagem do rio) e o tumulto (importante caracterstica do mar). Na segunda estrofe, Joo Cabral desenvolve uma srie de idias voltadas para o sentimento de humanizao. Apesar de o destemido touro mar aplicar golpes fortes contra as paredes do cais, ele no se livra do medo que o atormenta as. O medo um estado afetivo suscitado pela conscincia do perigo, prova de que mesmo os seres mais brutos tm suas aes regidas pela emoo. Tambm se encontra subentendida nessa atitude do mar a vontade de preservar a sua integridade e de manter-se prximo de um universo familiar. Na verdade, o mar tem medo de adentrar numa realidade diversa daquela a que ele est habituado, pois os perigos que o esperam podem causar danos irreparveis. Talvez seja por esse motivo que o filsofo Gaston Bachelard considera o salto na gua como uma porta de entrada para um mundo desconhecido:Na verdade, o salto no mar reaviva, mais que qualquer outro acontecimento fsico, os ecos de uma iniciao perigosa, de uma iniciao hostil. a nica imagem exata, razovel, a nica imagem que se pode viver, do salto no desconhecido. No existem outros saltos reais que sejam saltos no desconhecido. O salto no desconhecido o salto na gua. o primeiro salto do nadador novio. [1]

Se a segunda estrofe do poema foi dedicada s guas do mar, na terceira estncia Joo Cabral se volta exclusivamente para a imagem do rio. Primeiro, o poeta o situa geograficamente (entre mangues) para deixar bastante claro que nem todos os rios possuem a fisionomia sobre a qual ele vai discorrer. As guas do mangue parecem perder o escasso alento sobrevivente ao longo curso pelas terras sertanejas, tamanha a quietude que ronda o local; por isso mesmo, sente-se nelas uma conotao mais penosa do que aquela vislumbrada no semblante do oceano. Diga-se de passagem, Joo Cabral explorou a imagem do mangue de modo to proeminente, que ela ainda figura em um poema de Crime na calle Relator, ltimo volume em que aparecem temas nordestinos. Em A aventura sem caa ou pesca, o poeta retrata a experincia de um menino que costumava pescar na podrido do mangue; reaparece, portanto, o contraste estabelecido entre a anunciao constante da morte (sintetizado no ambiente de lama) e a esperana de se alcanar uma vida mais prspera e justa (sinalizada nas imagens do peixe e da criana):

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O Parnamirim com sua lama, e mais lama que rio ele , limitava o quintal do fundo (at l alcanava a mar). A porta que o Parnamirim, que hoje coberto no se v, passa ao ir ao Capibaribe o vo da Ponte do Vintm. Explorar o Parnamirim, leito de lama quase pez, era a aventura de um menino (bem onde um desastre holands).(Aventura sem caa ou pesca, Crime na calle Relator, 1987)

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Nos versos seguintes reaparece a idia de que as guas fluviais evitam o contato com guas de outra natureza para que seja mantida a sua identidade. Com efeito, o rio no quer caminhar porque sabe que ele deixaria de ser rio ao adentrar no volumoso oceano. O temor da partida, portanto, corresponde ao anseio de manter-se ntegro, o que no significa falta de determinao por parte do rio. Para fechar o primeiro bloco do poema, Joo Cabral de Melo Neto aproxima as duas imagens aquticas que at ento vinham sendo apresentadas sob ngulos divergentes; segundo o poeta, as guas tm em comum o fato de resistirem s dificuldades impostas pelo meio. Com isso, parece evidente que, independente da classe social e dos interesses prprios, a vida figura como o elemento mais expressivo para a composio de uma potica. Ainda cabe observar que, como alguns dos obstculos mencionados no texto so obras capazes de dominar os impulsos da natureza (cais, quebra-mar e arrecife), no seria exagero afirmar que a poesia de Joo Cabral, em determinados momentos, se configura como uma espcie de fuso entre a racionalidade e a emoo. Se na primeira parte do poema Joo Cabral apresentou um perfil geral dos personagens, na segunda ele se volta com mais nfase para as aes por eles realizadas. O ngulo de observao focado no movimento aqutico valoriza os impulsos humanos da natureza, uma vez que a corrente das guas transmite uma intensa sensao de vida. Os versos iniciais retomam a idia que aparecera no fim do bloco precedente a luta das guas para manterem-se vivas. evidente que h uma denuncia social subentendida nessa imagem, pois quando Cabral afirma que as guas precisam trabalhar duramente para sobreviverem, ele se refere antes s pessoas que vivem nos ambientes por onde essas guas passam. No entanto, importante observar que o poeta escolhe justamente uma prtica esportiva do gosto popular para assinalar uma situao to dramtica. Por isso mesmo, quando as guas esto jogando a queda de brao, elas parecem se divertirem ao mesmo tempo em que resistem s atrocidades do meio. Por outro lado, no se pode deixar de notar a referncia prpria cidade do Recife no meio dessa tenso, um lugar que teve que enfrentar muitos combates at se transformar em uma respeitada metrpole. A luta das duas guas, portanto, pode simbolizar o Recife de uma forte tradio cultural regionalista, mas tambm voltada para o cosmopolitismo e para o anseio da universalidade. As duas guas lutam pelo mesmo objetivo, mas o mar sempre apresentado de modo provocador, tanto que ele quem toma a iniciativa de chamar seu rival para o combate. H uma espcie de soberania nos contornos do oceano, como se a vastido e a posio geogrfica privilegiada lhe dessem a coragem necessria para superar qualquer problema; de fato, o mar delineado por Joo Cabral gil e passa sem dificuldade pelos obstculos do caminho. Como h uma diferena fisionmica muito grande entre os dois lutadores, tudo levaria a crer em uma vitria

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irretorquvel do mar; no entanto, as guas antes se divertem com essa exposio agonal, at porque o jogo uma atividade muito praticada como recurso ldico. Nas duas ltimas estrofes do poema, Joo Cabral de Melo Neto narra os detalhes da equilibrada luta travada entre o mar e o rio. No h favoritos, pois cada lutador resiste s atrocidades do meio de acordo com a experincia adquirida ao longo do curso/vida; ou seja, a prpria configurao social impe s guas um modo de combater os problemas com os quais se deparam.36

Por fim, interessante observar que o poeta anuncia a presena de um vencedor, mas no menciona seu nome, como se preferisse no tomar partido por nenhuma das guas (at que uma derruba e vence). Mais curioso ainda a inverso dos valores atribudos vitria, que passa a ter uma conotao um tanto negativa nesses versos. No poema, a vitria no pode ser apreciada como uma conquista porque a gua recebe uma espcie de exlio como prmio; nesse sentido, se a expatriao o grande prejuzo anunciado por Joo Cabral, fica bastante evidente que a permanncia das guas em seu habitat natural corresponde a um desejo de luta pelas causas comuns a um determinado grupo social. Conforme mostrado, a imagem do rio fundamental para que Joo Cabral de Melo Neto desenvolva temas referentes s adversidades do mangue e trgica sobrevivncia dos homens em terras sertanejas; dessa forma, a representao das guas fluviais subsidia o poeta na leitura crtica do sistema sciopoltico da regio. Mais do que isso, atravs da personificao do rio, Joo Cabral alcana um modo de composio diverso daquela tendncia concretista de seus primeiros livros, j que ele se distancia um pouco da superfcie rasa dos objetos e encara de perto a alma existente dentro da matria; assim, o objeto sensvel ganha pulso e movimento, confirmando a tendncia humanizadora de sua obra.

[1] BACHELARD, Gaston. A gua e os sonhos. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 172.

_________________ Andr Pinheiro doutorando em Literatura comparada pela UFRN.

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ensaio

Sobre o Sr. Cludio Assis e seus filmespor Andr RenatoE eis que Baixio das Bestas, a mais nova prola do realizador de Amarelo Manga (2003), leva o prmio de melhor filme no 39 Festival de Braslia. O filme anterior debute do Sr. Assis foi, a seu tempo, unanimidade no mesmo festival, levando os prmios do pblico, do jri oficial e da crtica.

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Sabe, s vezes me d a impresso de que, no Brasil, estamos vivendo um cenrio de literatura fantstica, algo extrado de Lewis Carroll, Jorge Lus Borges ou Gabriel Garca Marquez. No que o fato me seja inconcebvel, mas vem-me com a violncia de um tapa o absurdo (no sentido surreal da palavra) de que tal artista e suas obras sejam assim to ovacionados. Tenho em mente Amarelo Manga, que eu vi embora, pelo que se comenta, Baixio das Bestas vai tambm no mesmo caminho estilstico e ideolgico.

Eu gostaria de fazer muitos comentrios sobre a figura do Sr. Cludio Assis e sobre os seus filmes, mas no o farei. Tenho medo. Assim, no falarei do absurdo que um artista ideologicamente preso como se fosse a uma camisa-de-fora a filosofias e estticas que j esto datadas em 150 anos e ultrapassadas h, pelo menos, 80 anos. O cinema do Sr. Cludio Assis lembra-me muito claramente os piores vcios dos piores imitadores e epgonos de mile Zola e do nosso conterrneo Alusio Azevedo. Toda a pequenez de pensamento, a esterilidade gratuita e o inevitvel preconceito no qual acabaram caindo muitos autores do chamado Naturalismo literrio, cegos por sua f intransigente nas formas mais torpes do Determinismo, do Darwinismo Social e do Niilismo tambm se aplicam de maneira exemplar ao cinema do Sr. Cludio Assis. Como se pode levar to a srio um artista assim to apegado a ideologias altamente questionveis em seu excesso radical e, mais do que isso, sectrio? O Sr. Cludio Assis no radical; ele sectrio. Percebe-se nitidamente isso no seu cinema e em sua postura e atitudes pessoais. A inteligentsia do Cinema Nacional, a crtica e o jri dos grandes festivais (se no tambm o pblico) precisam ter, pelo

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amor de Deus, esse discernimento! Mas acho que besteira eu apelar para Deus, pois o Sr. Cludio Assis, com certeza, deve achar a mera idia de Deus uma besteira de gente ignorante e alienada; assim, eu corro o srio risco de ele e (ou) os seus fs me acusarem de intolerante religioso conservador e moralista. Oh, cus! Por isso, eu no falarei nada.38

Tambm

no falarei

do

absurdo

que

nossa

inteligentsia

estar

aparentemente to perdida numa espcie de limbo tico e moral (sinal dos tempos modernos e ps-modernos?) a ponto de chamar de enfant terrible um homem que simplesmente mal-educado, mal-criado, intolerante, vestindo com orgulho um pensamento ideolgico datado, superficial e preconceituoso, e, repito, sectrio? Desde quando essas coisas todas viraram chiques? Temos aqui um homem extremamente auto-indulgente, ego-manaco, intolerante e risivelmente pueril a ponto de exercer o modelo maduro de conduta que simplesmente desqualificar a pessoa de qualquer um que ouse se opor a suas obras e idias (s vezes com profundas e explcitas ofensas, como no caso do cineasta Hector Babenco, que foi chamado simplesmente de imbecil). Aos que vaiaram sua mais nova preciosidade no Festival de Braslia ele chamou de culpados. Quer dizer: ou somos todos condescendentes para com o Sr. Cludio Assis, ou somos os seus inimigos declarados e desonrados. Ser que assim a coisa? Essa atitude me lembra daqueles polticos mais viciosos, gente da estirpe de Paulo Maluf. Desde quando passamos a confundir um homem assim com um artista que no faz concesses? (apenas cito expresses usadas na imprensa para elogiar o Sr. Cludio Assis).

Um parntesis: isso muito me lembra, na poca da universidade, aqueles estudantes profissionais (na verdade agentes de partidos polticos ultra-radicais infiltrados nos centros acadmicos para promover a revoluo) que imediatamente taxavam de pequeno-burgus qualquer um que se opusesse ao fato de eles freqentemente interromperem as aulas para anunciar e promover manifestaes e greves estudantis. O pior que chamam o Sr. Cludio Assis de corajoso. Meu Deus do cu! Ser que no se entende de maneira alguma que uma postura realmente corajosa, crtica e prolfica, daquelas que sacodem o estabilishment, ajudam-nos a tomar conscincia e revolucionar para rumos melhores, envolve muito, mas muito mais do que ficar berrando palavres vontade, xingar quem no concorda com as suas prprias idias, mostrar na tela de cinema um boi sendo morto a golpes e dizer por a que o ser humano apenas sexo e funes fisiolgicas? (saiu da prpria boca do Sr. Assis esse grande aforismo da sabedoria do Naturalismo literrio do sculo XIX e de suas ideologias de base; esse homem inacreditvel!)

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A atitude pessoal, ideolgica e artstica do Sr. Assis seria tambm preocupante, porm, mais compreensvel, se fosse oriunda de um adolescente de 15 ou 16 anos. Mas em um homem maduro... Concordo plenamente que para revolucionar, para mostrar de maneira livre e crtica certas coisas que as pessoas precisam ver, necessrio ou minimamente interessante, s vezes, procurar chocar. O artista responsvel deve fazer o seu pblico sair da posio por demais cmoda do cotidiano e refletir sobre outros aspectos e fatos da vida e do mundo. Grandes obras de arte chocam de maneira radical e exemplar. Contudo, h que se ter um discernimento. O choque nunca, jamais deve ser gratuito; muito menos em favor de idias e mensagens altamente questionveis no sentido tico e (ou) moral. Pois bem, no me parece ser exatamente este o caso do cinema do Sr. Cludio Assis. Amarelo Manga, sob o (justo e at louvvel) pretexto de mostrar de modo contundente o pior aspecto do ser humano, da vida e do mundo especialmente o brasileiro , e assim conscientizar e libertar a mente do seu espectador, acaba, no fundo do seu decorrer, servindo apenas de veculo ideolgico e panfletrio viso mais abjeta da existncia, fruto bem pessoal da mente de seu diretor. O filme comete o mesmssimo engano dos romances naturalistas: ao invs de utilizar filosofias como instrumento para se compreender uma determinada realidade, acaba-se manipulando e deturpando a realidade para se encaixar melhor quelas filosofias, crendo-se que com isso elas sero provadas empiricamente. No passa de propaganda ideolgica do tipo mais pobre (e, repito, referente a ideologias altamente questionveis, o que ainda pior). A diferena entre o Sr. Cludio Assis e um artista de verdade que este ltimo constri uma piscina realmente profunda, que faz o seu pblico ficar assombrado com a escurido misteriosa de suas guas e ansioso (ainda que com medo) por mergulhar nelas e desvendar o seu fundo; j o realizador de Baixio das Bestas (parece o ttulo de algum romance da sub-literatura folhetinesca da blle epque) constri uma piscina extremamente rasa, mas turva as suas guas com tintas escuras para faz-las parecerem profundas. Quem tentar mergulhar nelas vai quebrar a cara...39

A parte do meu pensamento que se apega filosofia, sociologia e psicanlise, sentiu-se bastante ofendida em ver Amarelo Manga. Minha inteligncia fica to ofendida quanto ao acompanhar certas campanhas do marketing poltico ou do religioso. A estupidez a mesma na esquerda e na direita; isso o que poucos parecem perceber. Repito: natural se os filmes de Cludio Assis agradarem a adolescentes revoltados, mas esse cinema no resiste a um pensamento e gosto mais maduros.

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Outro parntesis: no quero incorrer no mesmo erro do Sr. Assis, por minha parte desqualificando as pessoas que apreciam os filmes desse diretor. Peo desculpas se meus argumentos parecerem ofensivos, mas o fato que: podemos apreciar a esttica desses filmes e alguma parcela de seu contedo; mas certas idias ali presentes e propagandeadas so intolerantes, desrespeitosas e anti-ticas. Essas coisas no podem ser apreciadas sem uma dose questionvel de condescendncia.40

Tambm fico ofendido como contribuinte, ao saber que filmes assim so feitos com a ajuda de verbas pblicas. Mas no vou falar aqui de critrios para a concesso de dinheiro pblico ao cinema, pois com certeza algum resmungar: censura!, chamando-me de repressor, autoritrio, etc.

Chama muito a ateno o atual estado da nossa inteligentsia. Ela cai de amores por um filme como Amarelo Manga, que no passa de um proselitismo descarado da forma mais superficial, intolerante, desrespeitosa e absolutista de um materialismo niilista (a cena em que o prprio diretor, como figurante, diz uma frase de efeito ao ouvido de uma moa evanglica que obviamente encarna ali TODOS os evanglicos , numa cena totalmente solta e gratuita no conjunto do filme, de um desrespeito gritante para com esse grupo social e religioso). Por outro lado, a inteligentsia promove um verdadeiro levante com todas as suas armas contra um filme como A Paixo de Cristo, de Mel Gibson, chamando-o precisamente de excessiva e gratuitamente violento, intolerante, desrespeitoso, absolutista,

proselitista, etc, ou seja, exatamente as mesmas caractersticas que apresenta o cinema de Cludio Assis. Realmente, no d pra entender. Na verdade, at d, mas eu prefiro me calar, pois eu j sei exatamente quais sero as crticas que receberei por isso, e quero evit-las. No darei trela a nenhum esprito malicioso. Como eu j disse, no falarei nada sobre o Sr. Cludio Assis e sobre os seus filmes, pois eu tenho medo dele. Tenho medo de que ele tambm chame a mim de imbecil, culpado, ou coisa pior.

___________________ Andr Renato mora em So Paulo-SP. professor de Literatura, faz fotografias e filmagens, como diz, "(semi)profissionais". Escreve sobre cinema para o Sombras Eltricas e para o Cinefilia.

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ensaio

Don Giovanni: a tragdia do humanopor Newton de Oliveira Lima

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A pera Don Giovanni, de Wolfgang Ammadeus Mozart, como criao de arte, representa o que Otto Maria Carpeaux denomina de obra de arte absoluta: contm em si a multiplicidade de significados, de expresses de contedos que podem ser interpretados como completude de sua possibilidade expressiva, vislumbrando-se as mais inusitadas interpretaes.

A crtica da forma e da linguagem musical da pera pr-gluckiana (barroca) empreendida por Mozart levou ao desenvolvimento de uma temtica textual libertada do acompanhamento da orquestrao atravs do libreto, desenvolvido por Lorenzo da Ponte, exprimindo uma linguagem independente, realmente trgica ou cmica varivel pela expresso do artista, como se pode exprimir em uma verdadeira msica de fundo simblico e teatral tal qual a pera. Assim, do ponto de vista formal-musical, Don Giovanni (como posteriormente a Flauta Mgica) representa a coroao do esforo mozartiano, dentro da trilha lanada por Gluck, de realizar a reforma da pera, separando-a em definitivo do bel canto operstico de origem italiana. A desenvoltura de Don Giovanni, de sua expresso lrica e tragicmica, de seu estilo formal e seu contedo expressivo, resume e possibilita o que seria a pera no Sculo XIX: criao do romantismo operstico com a influncia que causou na pera italiana. Pode-se dizer que da Flauta Mgica procede a pera alem, e de Don Giovanni advm a pera italiana no Sculo XIX. A influncia que Weber, Beethoven, Rossini, Verdi, Wagner, dentre outros, receberam do Mestre de Salzburg foi marcante.

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A Flauta Mgica, mais que Don Giovanni, representa os ideais iluministas e manicos de Mozart, porm, o drama existencial de Don Giovanni supera o daqueloutra pera, e a partir dele que iniciamos a anlise da significncia, para Mozart, do que se entende por espiritualidade.

O contedo do libreto da pera encarna a vida de Don Juan de Silva, proverbial e talvez lendrio nobre e aventureiro espanhol que teria seduzido milhares de mulheres por toda a Europa. Ora, a vida hedonista de Don Juan aparentemente expressa a falta de sentido do personagem, mero conquistador de mulheres sem maior interesse que os causos no muito originais de experincias sexuais e amorosas. No entanto, analisando-se do ponto de vista sociolgico, a pera reflete a crtica da sociedade estamental pr-industrial, onde a nobreza detinha o poder poltico e parcela do poder econmico e, mesmo em decadncia por sua crescente falta de funo social, ainda espoliava o campesinato e parte de uma casta de servos que ainda restava - Leporelllo, o servo de Don Giovanni, o emblema do povo explorado e degradado em sua conscincia pela servido incondicional ao amo. A crtica social da espoliao, Mozart resolve com a colocao do problema da efetividade da justia: as damas Dona Elvira e Dona Ana, auxiliadas pelo marido desta ltima, Don Otavio, empreendem um plano de vingana contra Don Giovanni por este haver matado o Comendador, que defendera a filha Ana da desonra contra ela assacada por Don Giovanni.

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O plano da justia ascendente sobre a individualidade pecadora refora a natureza dual da concepo da redimio dos pecados inserta na obra: se por um lado Don Giovanni punido no penltimo ato da pera com a condenao ao inferno, ele sofre, assim, a justia divina, que a concluso do plano de justia dos demais personagens contra ele, segundo plano de desenvolvimento inserido na pera.

A crtica da justia humana patente: somente a interveno divina pode ser a justa medida e eficaz punio contra Don Giovanni, que foge a todas as tentativas de captura e punio empreendidas por Massetto, Don Otavio, Dona Ana, enfim, os homens no vencem a astcia do mais sagaz dos humanos, Don Giovanni. Percebe-se a centralidade da contraposio entre humanismo e transcendncia espiritual: somente esta ltima d finalizao ao empreendimento do esprito subjetivo de por o mundo em ordem, de punir os maus e recompensar os bons, somente a Justia divina plenifica e completa a humana, o que expresso da incompletude humana em seu anseio por completar-se no orbe espiritual, como assevera Max Horkheimer (in A nostalgia do Totalmente Outro): Nostalgia de uma perfeita e

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consumada justia. Esta jamais ser realizada na histria; de fato, mesmo que uma sociedade melhor substitusse a atual desordem social, jamais reparada a injustia passada, nem eliminada a misria da natureza humana. A dramaticidade da penltima cena, com o dilogo entre Don Juan e o Comendador que volta para puni-lo, a expresso da tragdia da existncia da subjetividade, e a proposta de perdo do Comendador para Don Giovanni arrepender-se, seguida da recusa deste ltimo, revelam que at o fim ele foi o nobre perfeito: seguro de seus privilgios e de sua posio, no havia dor de conscincia em sua atitude, fez o que fez porque era um dever e privilgio de sua condio, a de moldar a realidade a seu talante; sentindo-se uma parte da natureza, no havia porque conceder plio justia divina: a conscincia crist de igualdade lhe era estranha.43

Assim, Don Giovanni representa o humano por excelncia, com todos os vcios, defeitos e exacerbaes a que a individualidade est sujeita, encontra-se ele em contraposio ao divino, moral, ao cristianismo. Ele a desordem e a imperfeio, imagem do homem e do mundo tal qual eles so, em contraposio ao ideal de perfeio e de ordem expressos religiosamente.

Don Giovanni a individualidade criadora e prxima da natureza com sua exuberncia e concepo aristocrticas da vida, sua imagem a representao do super-homem nietzscheriano, com a possibilidade de criar e destruir a realidade a seu talante, de recriar valores e transform-los em novos mediante sua objetividade inserta no mundo criativo da instintividade e da emoo. Don Giovanni e sua individualidade - a individualidade de todos ns superestimada, idealizada, a conotao exagerada, irracional e egosta da subjetividade. Aparentemente, somente isto se pode perceber das atitudes do nobre espanhol sedutor de mais de mil mulheres. Aqui comea a anlise do significado da outra face de Don Giovanni que Mozart buscava expressar, a face da valorizao da personalidade e dos valores nobres por sobre os valores plebeus, concedendo um entendimento nietzscheriano questo. Todavia, Don Giovanni representa bem mais, representa a individualidade humana em geral, a individualidade que quer se firmar a todo custo, contra a opresso, contra a alienao, contra a falta de sentido do cotidiano, contra a massificao da existncia, a pr-determinao da vida em moldes mercadologicamente acabados.

[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano I - nmero 1 - teresina - piau julho/agosto de 2009]

Don Giovanni, sua vida, sua obra, so um antdoto contra o cotidiano, contra o tdio, mas acima de tudo representam a alegria espontnea de viver, a despreocupao com os meios e os modos em prol da liberdade, em funo da existencialidade, do predomnio da busca de valores e momentos novos e criativos, so a oposio radical medianidade, mecanicidade e massificao; so o contraponto da falta de nobreza, de ausncia da largueza de esprito a que sociedade industrial relegou o homem moderno.44

Analisado por este ngulo, o fracasso de Don Giovanni a representao do fim da individualidade e a vitria da massificao. Quando Don Giovanni canta a liberdade na cena vinte e sete, ocorre uma diferenciao da liberdade cantada pelos coadjuvantes da pera na ltima cena, o que implica dizer que a liberdade dos mesmos foi a conquista da liberdade da vivncia e do estabelecimento da igualdade, ao passo que a de Don Giovanni era a liberdade aristocrtica da criao, da vivncia e criao de valores, tal como apregoava Nietzsche.

Alis, a formao iluminista de Mozart, expressa na glorificao da liberdade na ltima cena, na instaurao do reino da justia aps a derrota de Don Giovanni, a e