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1 Desafios políticos no campo da saúde mental na atual conjuntura: uma contribuição ao debate da IV Conferência Nacional Eduardo Mourão Vasconcelos Professor da UFRJ e militante do movimento antimanicomial Relator adjunto da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial 1) Apresentação A realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial, a se realizar no final de junho de 2010, representa para nós, militantes ativos do movimento antimanicomial e da reforma psiquiátrica, uma oportunidade impar para refletir sobre os passos já trilhados de nossa caminhada, para montar uma análise um pouco mais cuidadosa da conjuntura, para podermos identificar e criar estratégias mais adequadas para lidar com os desafios que temos pela frente, em uma estratégia que possa inclusive ir mais além das discussões internas da Conferência Nacional 1 . Este tipo de discussão é importante, pois no Brasil atual o locus de enfrentamento que as forças políticas mais conservadoras no campo das políticas sociais estão mobilizando não está propriamente nas instâncias formais de controle social, onde certamente temos hegemonia, mas sim na mídia, no Congresso, no Ministério Público, e diretamente nas esferas do executivo municipal estadual e principalmente federal. Podemos ter boas chances de bons resultados nesta IV Conferência, ela é importante, mas isso não nos assegura necessariamente a continuidade política de nossa estratégia de reforma. Assim, temos de consolidar bem nosso espaço na IV Conferência, mas também ir além, dando respostas efetivas para as necessidades de saúde mental da população e gerando legitimidade política para o enfrentamento que se dá nestas outras esferas da política pública e da sociedade civil. Este pequeno texto visa contribuir para esta discussão, sem fazer uma análise exaustiva e longa, e busca principalmente identificar alguns dos principais desafios e impasses políticos a enfrentar, com o risco de perdermos parte significativa do espaço político até agora conquistado, dependendo principalmente do resultado das eleições presidenciais de 2010, como também das possíveis respostas que dermos aos desafios e problemas do campo, alguns dos quais procuro sistematizar aqui. E para esse debate, é preciso fazer uma distinção de princípio, entre o plano do discurso político e institucional direto, para a gestão do SUS, para a mídia, para a população e para a mobilização mais ampla dentro do nosso movimento, no qual não se pode abrir espaço para muita 1 Do ponto de vista formal, este texto apresenta contribuições para a discussão do temário geral da conferência, “Saúde Mental, direito e compromisso de todos: consolidar, avanços e enfrentar desafios”, bem como para seus 3 eixos temáticos, a saber: I - Saúde mental e políticas de Estado: pactuar caminhos intersetoriais; II - Consolidando a rede de atenção psicossocial e fortalecendo os movimentos sociais; III – Direitos humanos e cidadania como desafio ético e intersetorial. Entretanto, a discussão que propõe é mais de fundo, no sentido de orientar uma análise mais clara da conjuntura e das questões mais sensíveis da sustentabilidade política do processo de reforma, no conjunto da sociedade e do aparelho de Estado. No decorrer do texto, porém, veremos que a relação específica desta análise de conjuntura com cada um destes eixos vai ser identificada mais claramente.

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Desafios políticos no campo da saúde mental na atua l conjuntura: uma contribuição ao debate da IV Conferência Nacion al

Eduardo Mourão Vasconcelos Professor da UFRJ e militante do movimento antimanicomial Relator adjunto da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial

1) Apresentação

A realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial, a se realizar no final de junho de 2010, representa para nós, militantes ativos do movimento antimanicomial e da reforma psiquiátrica, uma oportunidade impar para refletir sobre os passos já trilhados de nossa caminhada, para montar uma análise um pouco mais cuidadosa da conjuntura, para podermos identificar e criar estratégias mais adequadas para lidar com os desafios que temos pela frente, em uma estratégia que possa inclusive ir mais além das discussões internas da Conferência Nacional 1.

Este tipo de discussão é importante, pois no Brasil atual o locus de enfrentamento que as forças políticas mais conservadoras no campo das políticas sociais estão mobilizando não está propriamente nas instâncias fo rmais de controle social, onde certamente temos hegemonia, mas sim na mídia, no Co ngresso, no Ministério Público, e diretamente nas esferas do executivo municipal es tadual e principalmente federal. Podemos ter boas chances de bons resultados nesta I V Conferência, ela é importante, mas isso não nos assegura necessariamente a continu idade política de nossa estratégia de reforma . Assim, temos de consolidar bem nosso espaço na IV Conferência, mas também ir além, dando respostas efetivas para as necessidades de saúde mental da população e gerando legitimidade política para o enfrentamento que se dá nestas outras esferas da política pública e da sociedade civil.

Este pequeno texto visa contribuir para esta discussão, sem fazer uma análise exaustiva e longa, e busca principalmente identificar alguns dos principais desafios e impasses políticos a enfrentar, com o risco de perdermos parte significativa do espaço político até agora conquistado, dependendo principa lmente do resultado das eleições presidenciais de 2010, como também das possíveis re spostas que dermos aos desafios e problemas do campo, alguns dos quais pro curo sistematizar aqui . E para esse debate, é preciso fazer uma distinção de princípio, entre o plano do discurso político e institucional direto, para a gestão do SUS, para a mídia, para a população e para a mobilização mais ampla dentro do nosso movimento, no qual não se pode abrir espaço para muita 1 Do ponto de vista formal, este texto apresenta contribuições para a discussão do temário geral da conferência, “Saúde Mental, direito e compromisso de todos: consolidar, avanços e enfrentar desafios”, bem como para seus 3 eixos temáticos, a saber: I - Saúde mental e políticas de Estado: pactuar caminhos intersetoriais; II - Consolidando a rede de atenção psicossocial e fortalecendo os movimentos sociais; III – Direitos humanos e cidadania como desafio ético e intersetorial. Entretanto, a discussão que propõe é mais de fundo, no sentido de orientar uma análise mais clara da conjuntura e das questões mais sensíveis da sustent abilidade política do processo de reforma , no conjunto da sociedade e do aparelho de Estado. No decorrer do texto, porém, veremos que a relação específica desta análise de conjuntura com cada um destes eixos vai ser identificada mais claramente.

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ambigüidade e polêmica, e o plano de nossa reflexão teórica e política interna, mais restrita, em que precisamos analisar com realismo as possibilidades, as limitações estratégicas e as táticas de avanço em nossos objetivos na atual conjuntura. É nesse plano que estamos fazendo a presente reflexão, e daí sua apresentação em texto de circulação mais restrita, não publicado, que nos permite um pouco mais liberdade de discussão.

Além disso, trata-se de um texto em construção, e o autor, por sua vinculação prioritária com a universidade e a pesquisa, tem limitações em seu contato com a experiência concreta de gestão e com o cotidiano nos serviços. Esta é uma das razões adicionais pelo qual ficará muito grato por eventuais contribuições críticas e sugestões de mudanças, que levem ao aperfeiçoamento do texto e ao aprofundamento do debate. 2) Panorama do processo de reforma psiquiátrica e a lguns desafios atuais preocupantes 2.1) As grandes fases do processo de reforma psiqui átrica no Brasil :

Podemos identificar até agora 3 grandes fases no processo de reforma psiquiátrica no Brasil 2: 1.a fase: 1978 - 1992: denúncia, primeiras tentativas de controle e humanização da rede hospitalar, I Conferência Nacional de Saúde Mental (1986) e emergência do movimento antimanicomial (1987); 2.a fase: 1992 – 2001: II Conferência Nacional (1992), mobilização e conquista da hegemonia política do modelo da desinstitucionalização de inspiração italiana e início do financiamento e implantação dos novos serviços substitutivos; 3.a fase: 2001 - 2010 (?): III Conferência Nacional (2001), aprovação da Lei 10216 (2001), expansão e consolidação da rede de atenção psicossocial, e início da expansão da agenda política para novos problemas a serem enfrentados (crianças e adolescentes, abuso de drogas, etc).

Neste período mais recente, nos últimos anos, há sinais de excessiva institucionalização e burocratização dos novos serviços na rede de saúde mental, com forte precarização dos vínculos de trabalho e entrada massiva de uma nova geração de gestores e trabalhadores, muitos dos quais sem contato com a história e a experiência política e profissional que marcou o período de experimentação e mobilização dos períodos anteriores. E além de tudo, há a emergência de desafios urgentíssimos, alguns mais novos, outros mais antigos (mas com um nível de gravidade maior), compondo um quadro com sérios riscos políticos de regressão. Este quadro pode levar a rumos imprevisíveis na política de saúde mental no país, mas pode também constituir um estímulo para a renovação e aprofundamento da reforma psiquiátrica, se estes riscos forem devidamente avaliados e se pudermos realizar os ajustes táticos necessários, que possam viabilizar politicamente a continuidade do processo de reforma. 2.2) Os desafios colocados pela atual conjuntura po lítico-econômica e das políticas sociais

2 Para uma análise mais sistemática da periodização do processo de reforma psiquiátrica no Brasil, ver Vasconcelos (2008).

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As enormes dificuldades que temos enfrentado na luta pela reforma psiquiátrica e pela reforma sanitária no Brasil significam na verdade um desafio com dimensões muito mais amplas: o processo de universalização das políticas sociais em contexto periférico ou semi-periférico, como no Brasil, vem se dando em plena crise das políticas de bem estar social no plano mundial, ou seja, sob a hegemonia e expansão de um longo ciclo histórico de políticas neoliberais, com suas estratégias de precarização das políticas sociais públicas e de induzir desassistência. As dificuldades no avanço do SUS, da assistência social, do ECA, e demais políticas sociais não são fruto apenas do descalabro do governo Collor e dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, bem como das ambigüidades e limitações políticas e da ampla desmobilização/despolitização dos movimentos sociais que o governo Lula estimula, mas também de traços estruturais do capitalismo como um todo e particularmente em sua periferia, no qual avança o desemprego massivo, a miséria, a violência, a focalização das políticas sociais, a precarização dos vínculos de trabalho tanto no setor público quanto privado, e o abuso de drogas e a violência, com suas fortes implicações no campo da saúde mental. Reformas psiquiátricas e seus serviços substitutivos sofrem fortemente em conjunturas neoliberais em praticamente todos os países, inclusive na Comunidade Européia, como o que vem ocorrendo hoje na Itália, particularmente sob governos conservadores como o de Berlusconi, como detalharemos um pouco mais abaixo.

Em conjunturas difíceis com esta, é preciso reconhecer um primeiro aspecto importante: as conquistas feitas no processo de consolidação das políticas sociais universais em geral em nosso país, e em particular no SUS e no processo de reforma psiquiátrica, dependem fundamentalmente da presença e da ação política de movimentos, atores e forças sociais comprometidos com os interesses popular-democráticos, que pressionam de fora e ocupam os espaços possíveis de luta e gestão dentro do aparelho de Estado, para garantir o financiamento e a implantação das novas políticas e programas. Assim, no nosso campo da saúde mental, se salienta a importância histórica e da contínua ação política de nossos dois movimentos sociais mais importantes: o movimento antimanicomial , com base maior na sociedade civil, em trabalhadores e principalmente usuários e familiares, e o movimento de reforma psiquiátrica , mais amplo, e com articulações mais institucionais, no campo universitário, dos trabalhadores e principalmente na gestão estatal. Quando diminui o espaço político neste campo institucional e no Estado, o movimento antimanicomi al ganha ainda mais importância, por que tem mais autonomia para mobilizar forças na sociedade para pressionar de fora o Estado . Isso ocorreu, por exemplo, após a I Conferência Nacional, quando foi criado o próprio movimento, e em 2009, na Marcha dos Usuários em Brasília, forçando o Conselho Nacional de Saúde a autorizar a IV Conferência Nacional. Entretanto, a atual conjuntura ainda nos requer avaliar melhor outras de suas facetas e paradoxos, particularmente no tocante à sua avaliação e à estratégia teórico-política que sustenta a ação no processo de levar a reforma psiquiátrica avante em um contexto mais global como este. Um primeiro risco, a meu ver, está na própria desconsideração de certas limitações estruturais que temos hoje para realizar mais integralmente o processo de reforma neste contexto, a partir de algumas visões reducionistas dos processos históricos de reforma psiquiátrica. Uma das possibilidades é se fazer uma análise histórica simplista da psiquiatria convencional e biomédica, como se constituísse apenas um dispositivo de poder-saber e de segregação/normatização cultural e social facilmente desmontável e superável de forma isolada. Esta visão tende a subestimar a enorme dificuldade na sociedade contemporânea e na atual conjuntura neoliberal, particularmente em países periféricos e semi-periféricos, de se gerar cuidado social na esfera privada e pública. Isso se manifesta por exemplo em uma estrutura familiar em profunda mudança, com laços que o sociólogo Zygmunt Bauman chama de cada vez mais “líquidos” e com vínculos interpessoais cada vez menos duradouros. Além disso, cresce o número de idosos e de pessoas que moram sozinhas no conjunto da população, aumentando ainda mais a demanda por cuidado socializado na sociedade. Na área pública, as condições estruturais descritas acima criam

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obstáculos duros para a produção de um sistema intersetorial e integrado de bem estar social e de direitos humanos, capaz de oferecer cuidado social personalizado e salvaguardas de direitos na comunidade, particularmente para todos os indivíduos que apresentam alguma forma de fragilidade ou dependência. Estes obstáculos não inviabilizam avanços, como vimos acima, e os processos de conquista requerem a mobilização de uma enorme vontade política pelos movimentos sociais, na sociedade civil e em todos os níveis de governo. Um exemplo disso hoje, no Brasil, está no próprio setor saúde, que apesar de todos os esforços do movimento sanitário, não garante hoje aos nossos usuários da saúde mental um acesso adequado aos serviços clínicos básicos. O nosso SUS hoje é marcado, entre outras coisas, por dificuldades estruturais de financiamento, difícil acesso, precária resolutividade, e baixa capacidade para absorver novos desafios. Em contextos com estes, as análises históricas em outros países e no próprio Brasil demonstram que toda vez que eventualmente conseguimos eventualmente aumentar mais o patamar de benefícios e serviços apenas no campo da saúde mental, ela vira desaguadouro de outras mazelas sociais, o que acaba gerando psiquiatrização de problemas societários mais amplos. Outras vezes, a desconsideração deste contexto mais amplo se alia a uma visão voluntarista e politicista, pela qual bastaria conquistar o poder político institucional e ter vontade política para acelerar o fechamento dos leitos manicomiais e a sua substituição por uma rede de serviços de atenção psicossocial, para que o processo ocorra efetivamente. Essa perspectiva tende ao desconhecimento dos limites históricos, e dos problemas econômico-políticos e gerenciais mais amplos, e da forma como se manifestam nos diversos níveis de governo, em um sistema descentralizado de políticas sociais, aspectos que precisam ser analisados com mais cuidado, para se lidar bem com os desafios que temos em conjunturas como a atual. Por exemplo, para além da esfera nacional, as políticas sociais com base na gestão regional e local apresentam avanços mais significativos quando temos governos estaduais e municipais sucessivos com maior compromisso político com os interesses populares. Por exemplo, grandes estados, cidades e distritos como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, além da vasta complexidade típica das grandes áreas metropolitanas, têm sido palco de contínuos governos estaduais, municipais e distritais conservadores, aprofundando a imensa dívida social com suas populações e gerando enormes dificuldades para os movimentos sociais e forças de esquerda buscarem reivindicar e garantir a implementação das políticas sociais universais de forma minimamente satisfatória. Por outro lado, estas mesmas características desfavoráveis da presente conjuntura social e política têm nos levado a perceber melhor a necessidade inexorável da articulação intersetorial de políticas e programas. Em primeiro lugar, ela visa, do ponto de vista epistemológico, teórico e ético-político, inserir as nossas lutas da saúde mental no campo mais geral da conquista dos direitos sociais de cidadania e por uma sociedade mais justa e solidária. Em outras palavras, avanços mais significativos e amplos na saúde mental só serão possíveis se conseguirmos avançar a luta popular-democrática no seu conjunto, o que implica em condições de vida/trabalho e políticas sociais mais condizentes com os interesses históricos da maioria da população. Em segundo, a articulação intersetorial busca garantir uma maior efetividade das ações públicas, ao reconhecer a complexidade e multidimensionalidade dos problemas e dos caminhos para se atingir a integralidade do cuidado, articulando investimentos e ações interdisciplinares e multiprofissionais concretas de várias linhas de política social em um campo específico e vice-versa. Veremos no seguimento deste texto exemplos de como a busca de respostas urgentes e complexas para várias necessidades em saúde mental requerem esta articulação intersetorial para garantir bons efeitos destes programas e ações. Em terceiro lugar, ela busca construir alianças políticas interinstitucionais, particularmente entre atores e forças popular-democráticas, passando por cima da tradicional fragmentação financeira, institucional e política típica dos aparelhos modernos do Estado, notadamente em uma conjuntura neoliberal marcada pela maior escassez de recursos e por uma maior competição entre as diferentes agências por essas fontes de financiamento. Essas alianças, mesmo aquelas “costuradas” inicialmente por cima, no plano federal, têm um enorme potencial de se difundirem para baixo, nos níveis institucionais inferiores, atingindo também a ponta dos serviços junto à população. Outras vezes, são as

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próprias experiências inovadoras locais que nos mostram novas direções possíveis de trabalho integrado para níveis mais amplos das políticas sociais. Portanto, este componente da intersetorialidade é, sem dúvida alguma, uma marca histórica diferenciada desta IV Conferência Nacional de Saúde Mental, que carrega no próprio nome institucional o complemento “Intersetorial”, e que portanto tem uma forte significação e uma enorme importância política. Neste âmbito, espero que os debates a serem gerados na organização da conferência, notadamente em seus Eixos 1 e 3 (“Saúde mental e políticas de Estado: pactuar caminhos intersetoriais” e “Direitos humanos e cidadania como um desafio ético e intersetorial”) possam reconhecer claramente este espaço possível para novos avanços que a intersetorialidade pode nos proporcionar, abrindo caminhos para o seu exercício e sua efetivação concreta em todos os níveis de governo, do nacional ao regional e local. Do exposto, este quadro de fundo deve orientar nossa reflexão, no sentido de balizar de forma realista as possibilidades de novas lutas, ganhos e conquistas, mas também de limites e dificuldades para nosso avanço. 2.3) Corporativismo médico e o avanço tecnológico: as implicações do novo capital simbólico e da reorganização política da psiquiatria biomédica no Brasil

No início do processo de reforma psiquiátrica no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, a psiquiatria convencional no país e no mundo oferecia um nível muito baixo de eficácia técnica e de qualidade de serviços. A proposta da desinstitucionalização de inspiração italiana e da atenção psicossocial significou portanto um confronto com uma psiquiatria já razoavelmente desacreditada, tanto do ponto de vista técnico-científico quanto ético-político, dado os horrores do sistema hospitalar e asilar, que compunha o centro do modelo assistencial que ela promovia na época. Podemos dizer que este quadro não sofreu mudanças estruturais no Brasil até o final da década de 1990, constituindo até então um período em que a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) apoiou de maneira inequívoca e explícita o processo de reestruturação da assistência.

O quadro mudou muito a partir da virada do milênio. A já longa deterioração das condições de trabalho profissional médico na área pública e privada e o fortalecimento das demais categorias do campo da saúde, que também vêm reforçando seus interesses corporativos 3, estimularam a luta dos médicos por melhores condições de trabalho, pelo controle legal, técnico e gerencial do mercado de trabalho e de seu mandato profissional, mobilizando os médicos para a luta corporativista pelo Projeto de Lei do Ato Médico (PL 7703/06, atualmente no Senado Federal, que estabelece as funções privativas da medicina). Este projeto é claramente contrário a todos os esforços interdisciplinares e intersetoriais que temos realizado para assegurar uma atenção integral em saúde e saúde mental.

De outro lado, a recente onda de novos exames e mapeamento cerebrais, de decodificação do genoma humano (e da eventual descoberta de pré-disposição genética, de novas formas de detecção precoce e de tratamentos potenciais para algumas nosologias específicas), do uso potencial de células tronco para tratamento de problemas somáticos, neurológicos e neuro-psiquiátricos cada vez mais variados, e de novas alternativas farmacológicas (por exemplo, dos neurolépticos da nova geração, mais caros mas com menores efeitos colaterais) vêm reforçando indubitavelmente o capital simbólico da

3 Em minha opinião, é preciso ter claro que, do ponto de vista dos objetivos da reforma psiquiátrica, não são só os médicos que apresentam características do profissionalismo e estratégias corporativistas problemáticas. Outras categorias profissionais também as têm, mas neste texto, pelo critério da relevância política na atual conjuntura, nos centraremos na medicina e em sua especialidade maior no campo da saúde mental, a psiquiatria.

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psiquiatria biomédica. Isto a aproxima ainda mais dos demais ramos da medicina, com seus processos típicos de intensa tecnificação, sofisticação, especialização e alto custo, dos modelos de prática clínica privada e empresarial, bem como das suas demandas corporativistas, componentes nos quais os interesses do complexo médico industrial (indústria farmacêutica, de equipamentos médicos e dos seguros e planos privados de saúde) são hegemônicos. Este novo contexto permitiu uma abertura de novas possibilidades de prática na clínica liberal e no mercado privado, com enorme autonomia e poder profissional para os psiquiatras. No entanto, quando se inserem no setor público, nossos serviços de atenção psicossocial os colocam em uma equipe interdisciplinar em nível de igualdade com os demais profissionais, com níveis baixos de incorporação tecnológica, e portanto sem a autonomia e o poder que têm no setor privado, gerando insatisfação e os induzindo a posições ainda mais defensivas e conservadoras.

Este posicionamento geral mais conservador da categoria médica e da psiquiatria já conquistou e consolidou espaços significativos nas instituições acadêmicas, científicas e de pesquisa, particularmente nas universidades e órgãos de fomento à pesquisa, como CAPES e CNPq, e na área parlamentar. De nosso ponto de vista, embora tenhamos feito algum esforço na criação de residências médicas em psiquiatria ou multiprofissionais, no sentido de recrutar e capacitar psiquiatras para nossos serviços, nossa tendência tem sido a de abandonar aos poucos o debate acadêmico e científico nos espaços, publicações e eventos específicos da psiquiatria, bem como de deixar de polarizar e ocupar o espaço necessário dentro da própria ABP.

A partir de 2006, as lideranças mais ativas da psiquiatria biomédica, com destaque para certos grupos paulistanos e para a ABP, retomaram sua militância em um patamar organizacional muito mais elevado (o que incluiu a contratação de empresa especializada em lobby político, institucional e cultural), gerando uma campanha anti-reforma aberta no campo político e cultural, parlamentar, no Judiciário (particularmente no Ministério Público), nos grandes meios de comunicação e nos principais executivos estaduais e municipais, e até mesmo nos conselhos de saúde. Há inclusive aí uma clara estratégia de se colocarem como alternativa para assumir a Coordenação de Saúde Mental no novo governo federal que se inicia em 2011. É importante lembrar que a influência deste setor não se restringe apenas às articulações políticas do PSDB e seus aliados, pois também tem fortes penetrações no PMDB e até mesmo no PT.

Há também mudanças significativas no conteúdo de debate colocado por estes setores. É claro que a questão política da oferta da internação e de demais serviços em instituições psiquiátricas especializadas constitui a questão de fundo principal do debate, mas o foco explícito da discussão é colocado em indicadores de efetividade, de resposta às necessidades da população, e em denunciar evidências de desassistência ou baixa qualidade dos serviços e programas. Assim, pelo menos explicitamente, não há um confronto e explícito direto com a perspectiva de desinstitucionalização ou com a nova lei psiquiátrica, mas sim dos resultados do processo, em termos de efetividade da rede de serviços e de sua capacidade para lidar com certas necessidades assistenciais da população, particularmente de alguns grupos sociais e de portadores de transtorno específicos, com enorme impacto na opinião pública, no parlamento, no Ministério Público e na mídia.

Assim, se na III Conferência a nossa ênfase temática estava voltada para garantir as linhas chaves da nova política de Estado no campo da saúde mental (o que corresponde ao Eixo 1 do temário agora proposto para a IV Conferência), hoje o debate principal se deslocou mais explicitamente para os resultados e a efetividade dos novos serviços, e os possíveis problemas de dessasistência ou baixa efetividade da rede hoje implementada, tema colocado no Eixo 2 do temário da IV Conferência (“Consolidar a rede de atenção psicossocial e fortalecer os movimentos sociais”). Neste eixo, as fragilidades ainda existentes em nossa oferta de programas e serviços estão mais claramente em foco, e nós temos que necessariamente enfrentar esta discussão. Entretanto, o chamamento para o debate, da

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forma como vem sendo feito pela psiquiatria biomédica organizada, está se dando para o campo da medicina com base em evidências, da epidemiologia e da avaliação de políticas, programas e serviços. Um exemplo desta ênfase no debate atual está na publicação Avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado de São Paulo, publicada recentemente pelo CREMESP (Lima, 2010). A meu ver, o avanço da produção científica e do debate no campo da avaliação de serviços é muito salutar para qualquer política social, mas é importante assinalar que está também em luta neste campo os paradigmas científicos que sustentam a avaliação. Se nós damos ênfase aos estudos predominantemente qualitativos e participativos (por exemplo, Pinheiro, 2007; e Campos, 2008), capazes de captar as mudanças mais sutis e profundas no processo histórico e clínico dos serviços, a psiquiatria biomédica ataca com estudos com ênfase quantitativa, epidemiológica e gerencial/administrativa, campo do qual, em minha opinião, não deveríamos descuidar e deixar apenas para a iniciativa deles.

A atuação da grande mídia constitui uma boa ilustração deste novo poder de fogo do setor e de nossa fragilidade no novo foco do debate colocado pelo lobby da psiquiatria biomédica. Já temos 32 anos de lutas pela reforma psiquiátrica, os novos serviços e projetos representam hoje o status quo e deixaram de ter apelo para a mídia. Esta normalmente se pauta pelos apelos sensacionalistas, particularmente pelas denúncias de má assistência ou de negligência. Por outro lado, as denúncias na área de direitos humanos nos asilos remanescentes, que precisam continuar, hoje são menos comuns e também acabam resvalando em nós mesmos, responsáveis de certa maneira pela demora na sua desinstitucionalização. Além disso, em geral, não temos cultivado sistematicamente contatos na grande imprensa nacional, e me parece que isso se repete também na maioria dos estados, o que nos torna menos capazes de abrir um pouco mais de espaço e de pautar as nossas matérias positivas, ou para posicionamentos e artigos defensivos.

Para tentar concluir, podemos afirmar que nos fundamentos teóricos e ético-políticos da luta antimanicomial e dos processos de reforma psiquiátrica mais conseqüentes, não há possibilidade de concessões às linhas clássicas de assistência psiquiátrica que eles propõem, a não ser a alguns poucos setores que têm alguma flexibilidade e aceitam negociar suas pautas de valores e práticas profissionais para acomodar pelo menos parte das conquistas do modelo da desinstitucionalização e da atenção psicossocial. Entretanto, nestes 32 anos do processo de reforma psiquiátrica no país, o capital simbólico e a legitimidade social desta psiquiatria biomédica mud ou significativamente, gerando um novo quadro de poder político, que tem sido devidamente canalizado para uma ação organizada na sociedade civil e nos aparelhos de Estado, em esferas muito mais amplas que aquelas do controle social, no qual seu poder é razoavelmente contrabalançado em favor dos usuários do SUS. Assim, as perguntas que o atual quadro conjuntural nos coloca hoje podem ser então sintetizadas da seguinte forma: até quando será possível sustentar politicamente, de forma inteiramente intocada, esta estratégia de confronto aberto e global com o conjunto da psiquiatria biomédica, com seu potencial ascendente de legitimidade e hegemonia? Há alguma possibilidade tática de fazer algumas co ncessões e acomodar de forma parcial e isolada a sua presenç a, arrefecendo parte de seu ímpeto anti-reforma, sem abrir mão de nossa estraté gia principal? Este tema será retomado mais abaixo. 3) A agenda prioritária em saúde mental até agora, e os novos desafios mais urgentes Nossa maior prioridade desde 1992 até hoje tem sido a desmontagem e substituição gradual do parque hospitalar e asilar, recuperando os direitos de seus moradores de viver na

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cidade, com suporte adequado, bem como liberando os recursos (no início da década de 90, cerca de 96% deles eram destinados apenas ao sistema hospitalar) para a criação dos novos serviços de atenção psicossocial abertos na comunidade. A prioridade absoluta neste período foi portanto o grupo de usuários adultos com transtornos mentais maiores (quadros psicóticos em geral) e neuróticos muito graves, particularmente os antigos moradores dos hospitais/asilos, e em parte aqueles que chegam a nossos serviços emergenciais e que poderiam entrar na carreira de institucionalização. Apesar de todas as injunções advindas da conjuntura neoliberal e das próprias limitações políticas e econômicas dos governos federais, estaduais e municipais neste período, que colocaram inúmeras barreiras para a plena expansão e para um ritmo mais acelerado da reforma e de implantação dos serviços e programas, penso que um balanço geral de nossas conquistas assinalaria s em dúvida alguma um significativo sucesso de nossa estratégia de destinada à desativação dos leitos e da reinserção dos antigos moradores de hos pitais na vida social . Entretanto, há que se perguntar por outros grupos sociais e necessidades que também requerem atenção e que não constituíram alvo de nossas prioridades até agora, ou que nossa estratégia ainda não foi capaz de oferecer suporte suficiente ou adequado. Neste campo, há vários grupos e necessidades, mas o critério de escolha dos temas alencados abaixo é a sensibilidade e a urgência política , que estabelecem uma prioridade que não é propriamente epidemiológica, mas sim a da sustentabilidade política do processo de reforma psiquiátrica tanto no curto, quanto também no médio e longo prazo no país . Assim, não há qualquer pretensão de exaustividade na abordagem das necessidades gerais de nosso campo, e os tópicos a seguir tratarão apenas de tópicos que a meu ver merecem uma discussão mais aprofundada e respostas urgentes de nossa parte. 3.1) A atenção à crise :

O cuidado aos estados de crise mental aguda exige necessariamente a provisão de uma

rede de atenção integral, com disponibilidade de assistência contínua e intensiva, cujo maior desafio é constituído pelo acolhimento noturno, no formato de leitos. No nosso modelo de reforma psiquiátrica, estes devem ser providos no território e de forma articulada com a atenção diária e a atenção básica. Assim, a unidade mais adequada para estes leitos é o CAPS III, com funcionamento durante as 24 h do dia e nos fins de semana. Contudo, é possível pensá-los também na forma de leitos psiquiátricos em unidades de emergência ou em hospitais gerais (é importante distingui-los das chamadas alas psiquiátricas, que são muito mais problemáticas), desde que representem dispositivos regulados, supervisionados, e não busquem centralizar a rede de cuidados, que deve ser referenciada no âmbito dos serviços territoriais abertos. Nos casos de usuários com uso abusivo de álcool e outras drogas, já existe também no país a previsão em portaria de leitos de referência ad em hospital geral. Um rápido balanço da atual Coordenação de Saúde Mental constata que há um reconhecido déficit em todos estes tipos de leitos de atenção integral, apesar de apontar que essa percepção também é gerada por baixa efetividade e articulação da rede de saúde mental já existente (Ministério da Saúde, 2010a).

Entretanto, é fundamental avaliar a nossa oferta atual de leitos de atenção integral, no dispositivo que consideramos mais adequado para sua locação. Temos hoje em todo o país cerca de 48 CAPS III; os CAPS II estão abarrotados, têm dificuldades de atender a crise e estão fechados à noite e nos finais de semana; e estamos reduzindo naturalmente os leitos em hospitais especializados de curta permanência. Temos ofertado poucos leitos psiquiátricos de atenção integral em hospitais de emergência e hospital geral, na medida em que seu número não tem crescido muito além daqueles já instalados no início da década de 1990.

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Na expectativa de chegar imediatamente ao nosso obj etivo estratégico, ou seja, o CAPS III, reduzimos, congelamos ou deixamos sucatea r nossa retaguarda de leitos de atenção integral mais convencionais até então exist ente . Em outras palavras, esta transição no processo gradual de reforma implica em um gap (vazio) assistencial na área da atenção à crise , que ocorre principalmente nas grandes regiões metropolitanas, mas que atinge também cidades de médio/pequeno porte, gap este que tem ampla visibilidade social e veiculação na mídia escrita e falada. Este tema tem sido fortemente explorado pelo lobby da psiquiatria biomédica para criticar a reforma psiquiátrica brasileira.

Se aprofundarmos nosso olhar, há razões efetivas para preocupação. Hoje podemos estimar, pela experiência de alguns municípios paulistas mais comprometidos, que um CAPS III razoavelmente aparelhado, mas sem supérfluos, custa em média R$120.000,00 por mês, e exige uma enorme vontade política de gestores e profissionais para lidar com os desafios e a complexidade de sua tarefa. Além disso, um dos maiores desafios é manter o plantão de psiquiatria nas 24 h e 7 dias da semana, pelo custo ou pelas condições do mercado profissional. Na maioria das cidades de médio/pequeno porte, o número de psiquiatras disponíveis já é pequeno, ainda mais daqueles dispostos a trabalhar na atenção psicossocial, o que encarece ainda mais ou até mesmo inviabiliza o seu funcionamento como linha direta e principal para o atendimento da crise aguda, particularmente à noite e nos finais de semana. Por sua vez, nas grandes metrópoles, o número de CAPS III exigidos para uma cobertura adequada é elevado, e só algumas cidades com governos mais comprometidos politicamente, durante várias gestões, têm conseguido prover este nível de oferta de forma contínua. Assim, a rede acaba fazendo uso de alguns leitos psiquiátricos no hospital geral ou de emergência mais próximo ou, o que ainda é muito frequente, se recorre a hospitais psiquiátricos de agudos ainda remanescentes nas áreas de referência.

Em nosso sistema tripartite, o governo federal repassa um terço do custo do CAPS III, e os governos estaduais e municipais assumem o restante da conta. Na verdade, no quadro atual, só municípios muito engajados politicamente conseguem conquistar o apoio financeiro de seus respectivos estados, ou assumem sozinhos os dois terços do custo do serviço, dado que hoje poucos governos estaduais têm contribuído financeiramente para a manutenção direta de serviços de atenção psicossocial. Lembramos que ainda convivemos com um problema político estrutural de financiamento do SUS, que o governo Lula tem jogado para debaixo do tapete. Em outras palavras, no presente quadro político e econômico, tanto do g overno federal em curso e do quadro mais geral da conjuntura internac ional de hegemonia neoliberal, como vimos acima, quanto da maioria dos governos estadua is e municipais, a expansão necessária de serviços de atenção integral à crise mais efetivamente substitutivos do hospital apresenta impasses estruturais .

Na Itália neoliberal de Berlusconi, os depoimentos a que tivemos acesso apontam no sentido de que o recurso mais frequentemente encontrado para lidar com o sucateamento dos serviços substitutivos vem sendo fazer uso prolongado e massivo dos leitos psiquiátricos em hospital geral, com algumas características similares aos antigos hospitais psiquiátricos. Isso claramente perverte o que, no modelo da reforma, seria apenas um dispositivo muito temporário e pontual de admissão, com rápido reenvio do usuário ao serviço de atenção psicossocial aberto, na sua área de referência de moradia e vida.

O que fazer neste quadro? Que estímulos e dispositivos podemos utilizar para estimular e aumentar a capacidade dos CAPS II existentes de acolher a crise? Que medidas realistas de caráter político, normativo e de suporte financeiro podem ser pensadas para estimular o crescimento do número dos CAPS III e sua capacidade de atender a crise nas 24 h do dia e nos fins de semana? Como podemos comprometer de forma mais clara os governos estaduais no financiamento direto de serviços substitutivos? Contudo, seria possível ignorar as limitações

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estruturais e conjunturais indicadas e manter apenas a expectativa de que os CAPS III se espalhem por todo o país? Que estratégias de transição podemos traçar no curto e médio prazo, tanto no nível macro, com também para cada e stado e município, para cobrir o gap assistencial indicado, em relação aos leitos de at enção integral ? Quais os demais dispositivos menos comprometedores podem ser acionados positivamente? Há medidas arquitetônicas, de regulação, de monitoramento e de integração com a rede de atenção psicossocial capazes de tornar os leitos em hospital de emergência ou hospital geral 4 menos iatrogênicos, ou eles já estariam condenados de antemão no modelo da reforma que queremos? 3.2) A atenção a indivíduos desfiliados socialmente e com uso abusiv o de drogas:

Trata-se de estratos sociais geralmente caracterizados por: - um alto nível de desfiliação social (combinação de perda ou forte fragilização de laços relacionais/familiares com desemprego de longa permanência), que muitas vezes leva à situação de vida nas ruas; - histórias pessoais e comunitárias (algumas vezes de duas ou três gerações) com elevado nível de segregação urbana e social, violência cotidiana, criminalidade, exploração sexual de crianças e adolescentes, e mortes violentas (na sua maioria são moradores de favelas ou bairros sem estrutura urbana adequada, com presença regular de organizações do tráfico de drogas); - sérias dificuldades para ter acesso ou para seguir a carreira escolar, ou para adquirir capacitação para o trabalho, que seriam capazes de criar alguma perspectiva de um futuro de vida melhor; - índices elevados de uso abusivo de álcool e outras drogas.

Estes grupos da população normalmente desconhecem, ou não têm acesso, ou certamente têm muito medo dos serviços de saúde men tal e de assistência social existentes, e uma das razões principais disso está no próprio autoritarismo freqüente da intervenção pública neste campo . O problema é mais agudo nas grandes regiões metropolitanas, mas hoje se difunde também para a maioria das cidades de médio porte do país.

A atual disseminação epidêmica do crack no país vem agudizando e espalhando ainda mais rapidamente este problema, com alta visibilidade social e na mídia, e com muitos casos com níveis elevadíssimos de deterioração psíquica e cognitiva, particularmente entre as crianças e adolescentes.

No âmbito privado, familiar e comunitário, o nível de dramaticidade colocado pelo uso contínuo da droga é altíssimo, pois o seu usuário, para manter o consumo, muitas vezes passa a vender os bens da família, a traficar, a cometer pequenos crimes, a morar na rua, a se prostituir, etc. As estratégias usadas pelas famílias e comunidades para lidar com tais situações lembram aquelas utilizadas em relação aos loucos antes da própria existência histórica da psiquiatria como profissão, ou seja, antes do século XIX: o cárcere privado nas casas, a prisão policial, a eliminação física, o abandono nas ruas ou em áreas remotas, etc.

4 Há algumas experiências interessantes no país de número bastante reduzido de leitos psiquiátricos em hospital geral que merecem uma avaliação mais rigorosa. Uma delas é a de Belo Horizonte, que funciona de forma bastante integrada aos SERSAMs, nome que lá é dado aos CAPS III.

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Isso sem levar em conta, nos casos frequentes de dívida com o tráfico, a humilhação, perseguição, ameaças ou morte efetiva do usuário pelos traficantes, que podem também envolver medidas violentas de cobrança de pagamento ou de retaliação violenta contra a sua família. Outras vezes, os usuários de crack são os próprios pais, o que leva a abandono ou negligência no cuidado dos filhos, ou induzi-los também ao consumo. Ambas as possibilidades implicam no aumento vertiginoso do contingente de crianças e adolescentes supervisionadas ou assumidas integralmente pelos Conselhos Tutelares, que por sua vez se dizem despreparados para lidar com os desafios qualitativos e quantitativos da nova situação.

Assim, o impacto desta realidade para a população é enorme, e também tem forte apelo na mídia, no parlamento e na justiça 5. Vários destes casos vêm sendo divulgados regularmente na mídia, com amplo impacto na opinião pública e forte desgaste político para os gestores de programas e políticas de saúde mental/drogas e para a perspectiva da reforma psiquiátrica. Em muitos casos, é preciso reconhecer um exagero significativo dos grandes veículos de comunicação, claramente induzido e instrumentalizado pelos setores organizados da psiquiatria biomédica, criando espaço para a reivindicação de serviços tradicionais de internação. Entretanto, o impacto real e o sofrimento na população não devem ser subestimados, como atestam claramente nossos colegas que atendem nos serviços e programas dedicados a esta população.

É importante reconhecer que não estamos paralisados, e há vários anos que já tínhamos lançado algumas iniciativas claras neste campo: os CAPS ad (álcool e drogas); os serviços ambulatoriais especializados; a atenção básica em saúde e os programas de redução de danos. A partir de 2009, a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde lançou o PEAD (Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção de Álcool e outras Drogas), dirigido para os 100 municípios mais populosos do país, com mais de 250 mil habitantes, as capitais e 7 municípios de fronteira 6. Entre estes últimos, vale ressaltar a originalidade da experiência hoje ainda inicial dos 12 projetos de consultórios de rua, montados em várias cidades do país, que procuram ativamente as áreas urbanas de maior consumo de crack. Além disso, há algumas experiências iniciais de CAPS ad 24 hs, um dispositivo capaz de sustentar melhor casos de cuidado mais intensivo e contínuo, bem como CAPS ad com serviços residenciais integrados.

Entretanto, a mensagem que vem da rede de serviços é de que estas iniciativas ainda são poucas, de que estamos despreparados e de que temos dificuldades estruturais para lidar com os desafios colocados pela difusão do crack, e esta fragilidade vem constituindo munição para a atual campanha dos setores anti-reforma psiquiátrica no país. Nossa abordagem em saúde mental se baseia particularmente nos princípios de valorização da autonomia do sujeito, de um mínimo de intervenção involuntária, de atenção em ambiente não restritivo, e em apoio farmacológico capaz de diminuir os sintomas mais agudos a níveis mais toleráveis no curto prazo, o que por sua vez diminui a pressão por formas de contenção espacial e institucional, bem como possibilita o próprio sujeito a assumir gradualmente a busca de novas direções em sua vida. Particularmente em relação ao crack, a pergunta que se levanta é a seguinte: nossa abordagem reconhece efetivamente a gravidade, a

5 Neste terreno, a justiça brasileira já foi mobilizada fortemente neste processo de judicialização dos encaminhamentos, em despachos de juízes que, na maioria da vezes, obrigam a internação compulsória na rede de serviços públicos existentes ou em convênios com iniciativas filantrópicas ou do Terceiro Setor. 6 As medidas se destinam a ampliação do acesso, qualificação de profissionais, articulação intra/intersetorial e promoção da saúde, dos direitos e enfrentamento do estigma (Ministério da Saúde, 2010b).

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urgência e o alto nível de suporte exigido pelo qua dro de “fundo do poço” colocado pela dependência neuro-químico/subjetiva e pela sín drome de abstinência geradas pelo crack, bem como pelo nível baixo de eficácia d os recursos farmacológicos hoje disponíveis e pelo longo prazo para seu tratamento?

Em conseqüência desta gravidade e de nossa dificuldade de lidar com o problema, as clínicas e comunidades ‘terapêuticas’ têm se proliferado, organizadas por agremiações religiosas (notadamente os evangélicos), pelo setor privado, filantrópico ou Terceiro Setor. Algumas delas contam com convênio e financiamento público, mas na maioria das vezes não passam pelo devido monitoramento, e há muitas denúncias de violência institucional contra seus usuários. Além disso, geralmente não contam com formas mais efetivas de integração com a rede de atenção psicossocial que garantam a continuidade do projeto terapêutico após a alta, tornando-as muitas vezes ineficazes, com altíssimos índices de re-incidência. Uma amostragem aleatória e impressionista da porta de entrada de uma destas poucas clínicas conveniadas com governo estadual no Rio de Janeiro mostrou que 20% das internações em dezembro de 2009 se davam por ordem judicial, e que a maioria delas era a ped ido do próprio indivíduo , como último recurso para algo que ele sozinho, a família e os serviços de caráter ambulatorial, de redução de danos ou de atenção psicossocial sem leitos de atenção integral não conseguiam oferecer saídas eficazes.

Quais são as nossas alternativas para esta situação? Poderemos nos manter distantes e frívolos diante de tanto sofrimento da população em geral e dos indivíduos e famílias envolvidos? Podemos simplesmente lavar as nossas mãos, dizendo apenas se tratar de demandas institucionalizantes ou manicomializantes? Ou ainda, regredindo nossa plataforma assumida na III Conferência Nacional, como se faz hoje em alguns locais do país, ao se dizer que o problema não deve ser da saúde mental, remetendo-a para outras áreas de política social (assistência social, segurança, etc)? Qual é na verdade a base de nossa ética: acompanhar e produzir o suporte necessário aos nossos cidadãos, seja qual for a situação, ou apenas nossos princípios, por si mesmos, sem a devida consideração das demandas e do sofrimento real da população?

Estamos oferecendo efetivamente e na escala desejada, leitos de atenção intensiva e integral para os momentos de desintoxicação e de crise de abstinência ? Sabemos que a simples oferta de leitos é ineficaz sem a continuidade do tratamento intensivo na rede de atenção psicossocial, mas negar a sua importância intrínseca, quando devidamente integrada a uma atenção psicossocial de base territorial, é não reconhecer a gravidade do quadro em que vivemos. Nesta direção, qual é o nosso posicionamento em relação à atenção integral lotada nas comunidades terapêuticas hoje existentes? Existiria alguma possibilidade de considerá-las como uma alternativa conjuntural de cuidado, se devidamente planejadas, reguladas e monitoradas, além de cuidados e controles especiais para acompanhar as admissões involuntárias, e a continuidade direta do tratamento na rede de atenção psicossocial? Ou temos condições de prover toda a oferta necessária de leitos de atenção integral nos dispositivos que consideramos mais adequados? Não tenho respostas para todas estas perguntas, mas penso que devemos investir imediatamente na discussão para respondê-las, nestes eventos de organização da IV Conferência.

Além disso, de meu ponto de vista, penso que pode ser interessante investir na idéia de ampliar o PEAD através de força-tarefas regionais e municipais , com autonomia relativa mas com apoio e supervisão das respectivas agências federais, de forma intersetorial e que inclua a voz dos usuários e familiares, capazes de avaliar melhor e rapidamente a situação e montar projetos piloto de novas medidas preventivas e assistenciais integradas, no plano local e regional. É claro que a prioridade é aprofundar e ampliar as iniciativas de

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nosso próprio campo e plataforma, não só de redução de danos, mas também incluindo nesta rede os serviços de atenção mais complexa e as várias iniciativas já indicadas acima ligadas ao PEAD. Penso ainda que é preciso reforçar alternativas como os serviços residenciais acoplados a nossos CAPS ad, com alto nível de suporte psicossocial, capazes até mesmo de acolher temporariamente pessoas de outras regiões, com problemas de estímulo ao consumo ou de segurança em sua própria comunidade, em moldes similares aos programas de proteção de testemunhas. 3.3) Violência social, catástrofes e a atenção aos trans tornos psiquiátricos menores :

No início do processo de reforma brasileira, tendo em vista a necessidade central da substituição dos serviços quase exclusivamente hospitalares, inclusive para a liberação de recursos para serviços extra-hospitalares, a prioridade foi claramente dada aos adultos com transtornos mentais maiores. Entretanto, há uma prevalência alta e crescente de transtornos menores na população, com diversas especificidades quando se considera as clivagens de geração (crianças, adolescentes e idosos), gênero (por exemplo, a depressão em mulheres), etnia e outras minorias sociais (por exemplo, a população indígena). Entretanto, é necessário assinalar uma prioridade comum e inequívoca neste campo, pois se destaca no país o número crescente de pessoas acometidas por quadros de estresse pós-traumático, ansiedade, fobias e pânico, a maioria deles fortemente associados à violência cotidiana na vida social na atual conjuntura, particularmente nas grandes cidades, bem como a eventos catastróficos como enchentes, deslizamentos de terra, tempestades violentas, etc. Há alguns estudos de prevalência de transtornos psiquiátricos em locais específicos no Brasil, mas incapazes de fornecer um perfil recente e abrangente para todo o país (Mello et al, 2007). Contudo, alguns dos dados existentes são persuasivos para mostrar a gravidade do problema: a) apenas para as fobias, em São Paulo, se estima que 5,4% da população desenvolverá alguma forma de fobia no espaço de um ano (Mello et al, 2007: 129); b) em relação ao transtorno de estresse pós-traumático: - embora não existam estudos empíricos para o Brasil, se estima que 3,8% da população desenvolverá o transtorno no período de um ano; - tivemos em 2002, em todo o país, 130 mil mortes violentas, e este dado permite estimar que cerca de 800 mil pessoas entraram apenas naquele ano para o rol do que a literatura chama de “vítimas ocultas”, ou seja, os pais e mães, filhos, cônjuges, irmãos e amigos mais próximos, os mais atingidos pela morte violenta de uma pessoa querida (Soares et al, 2006: 26); - na cidade do Rio de Janeiro, mais de 103 mil pessoas tiveram mortes violentas entre 1979 e 2001, e considerando a subnumeração, este número deve ter superado 110 mil pessoas. Deste total, se estima que as pessoas que tiveram marcas profundas pode chegar a 600 mil, e outra quantidade equivalente sofreram marcas significativas (idem).

Como o nosso sistema público de atenção em saúde mental vem respondendo a este

desafio? Os poucos ambulatórios existentes no país apresentam uma estrutura inadequada e provisão insuficiente. Por outro lado, há algumas importantes iniciativas em saúde mental na atenção básica, o que inclui vários dispositivos, entre os quais a terapia comunitária. Apesar de uma relativa precariedade da informação existente sobre a produção e a qualidade dos atuais programas e serviços nesta área, os poucos dados disponíveis nos permitem constatar que os dispositivos hoje ofertados não têm sido suficientes tanto do ponto de vista

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da quantidade, da cobertura geográfica como também do nível de complexidade ou do cuidado mais especializado exigido em vários tipos de casos mais desafiadores.

Neste campo, a psiquiatria biomédica vem investindo fortemente em ambulatórios especializados por diagnóstico. A experiência que mais têm chamado a atenção nesta direção é a paulista e particularmente a paulistana atual, chamada de AMAS, que integra grandes universidades, como uma iniciativa articulada em associação com o governo Serra. Lembramos que até o presente momento, em fevereiro/março de 2010, ele é ainda o pré-candidato a presidente com maior índice de intenção de votos.

Quais as estratégias e alternativas que temos para lidar com este desafio? Não há dúvidas de que temos que aprofundar e expandir nossos programas e estratégias de saúde mental junto à atenção básica. De forma similar, os serviços ambulatoriais devem ser repensados, não só na sua integração com o restante da rede, particularmente com a atenção básica e com os CAPS, mas também em sua estrutura e oferta interna. Nesta última área, se destaca a necessária quebra da rigidez da recepção/acesso inicial e da marcação de consultas regulares muito espaçadas, bem como dos tratamentos psicoterápicos de longo prazo similares ao modelo da clínica privada. As experiências mais inovadoras apontam para a necessidade da oferta de dispositivos mais dinâmicos e flexíveis de acolhimento a novos usuários e aos muitos problemas e imprevistos apresentados pelos usuários regulares, cuja resposta muitas vezes não pode esperar por consultas marcadas para 2 ou 3 meses depois. Além disso, também indicam para a necessidade de se oferecer dispositivos grupais mais variados de atendimento, que podem incluir a psicoterapia de grupo, a terapia comunitária e os grupos de ajuda e suporte mútuos (Vasconcelos et al, 2008b). Ganha destaque também a urgência de uma melhor integração com a rede de atenção psicossocial voltada para transtornos maiores, pois os ambulatórios podem significar também uma alternativa para o tratamento de pessoas com um nível mais avançado de estabilização, ajudando a desafogar os CAPS.

Em minha opinião, mesmo que não possamos fazer de imediato um investimento maciço neste campo, dadas as dificuldades estruturais da atual conjuntura, como assinalamos acima, é fundamental investirmos imediatamente no debate e em experiências-piloto que mais tarde poderão constituir modelos mais consolidados para uma expansão massiva destes serviços na rede de saúde mental.

Além disso, aqui podemos levantar uma pequena hipótese para reflexão. O ambulatório constitui uma modalidade de prática profissional razoavelmente próxima à clínica privada típica dos psiquiatras, no campo da medicina liberal, oferecendo também um ambiente flexível para a incorporação de novas tecnologias. Além disso, representa um dispositivo com menor impacto em termos de um eventual fomento ao processo clássico de institucionalização psiquiátrica. Nas grandes cidades, um ambulatório público com alguns setores especializados por diagnóstico, em convênio com as universidades, não poderia ser um espaço possível para acomodar parcialmente a psiquiatria biomédica dentro do nosso sistema público de assistência psiquiátrica, sem maiores danos para a nossa estratégia mais global de reforma? Não poderia constituir um espaço controlado e supervisionado para uma incorporação de novas tecnologias, desde que supervisionado e com os riscos monitorados? Se isso for considerado plausível, a experiência paulista de ambulatórios especializados precisa ser avaliada de forma mais rigorosa para se planejar melhor a nossa estratégia de sua apropriação crítica. 3.4) O suporte aos familiares e suas demandas esp ecíficas, com especial atenção no caso do autismo:

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No âmbito privado, o peso cotidiano do cuidado ao portador de transtorno tende a recair nos familiares, e particularmente nas mulheres, que muitas vezes sacrificam seus projetos de vida e seu tempo diário para a produção do cuidado, com fortes implicações financeiras e psicológicas para elas e demais cuidadores, em um fenômeno que geralmente não tem visibilidade social. Este quadro se torna mais dramático tendo em vista as atuais transformações na estrutura da família, já indicadas acima, e dos papéis de gênero, com as mulheres participando do mercado formal de trabalho, sem a devida contrapartida dos homens assumirem as tarefas domésticas na mesma proporção. Isso sem dúvida alguma diminui estruturalmente a disponibilidade do cuidado social existente, capaz de sustentar o devido acolhimento e apoio a pessoas com alguma forma de dependência, no âmbito domiciliar e comunitário.

Neste contexto, na experiência internacional, os processos de reforma psiquiátrica tendem a encontrar sempre algum nível de oposição por parte de algumas organizações de familiares, no sentido de que a desinstitucionalização induziria necessariamente à privatização e ao aumento do peso do cuidado sobre os familiares e demais cuidadores. Entretanto, o volume desta oposição e a capacidade de apropriação e articulação política deste fenômeno dependem de vários fatores. Um dos aspectos centrais é a capacidade do processo de reforma oferecer suporte real para o cuidado direto e para lidar com o peso do cuidado, de gerar oportunidades para os familiares participarem dos serviços e do projeto terapêutico de seus filhos e para se organizarem, gerando relações de aliança com o serviço e os profissionais. Além disso, o processo também depende da abordagem profissional, pois frequentemente os familiares são confrontados com visões que os culpabilizam pelo transtorno ou que apenas descarregam a responsabilidade pelo cuidado em suas costas. E por último, temos também a possibilidade de um trabalho ativo de entidades representativas dos médicos e psiquiatras, bem como da própria indústria farmacêutica, no sentido de financiar e cooptar associações de usuários e familiares do campo da saúde, para que sirvam de correia de transmissão de seus interesses, como por exemplo estimulando a reivindicação de fármacos caros ainda não disponíveis nos serviços públicos. Esse processo está efetivamente ocorrendo em algumas áreas da saúde e saúde mental no Brasil.

Não temos um quadro preciso de toda esta realidade no país, mas a parca literatura produzida sobre o assunto (Vasconcelos, 2008a e 2009) indica um baixo reconhecimento do problema e um baixo volume de iniciativas efetivas neste campo. A fragilidade da maioria das atuais associações de usuários e familiares no Brasil, mostrada em pesquisa já publicada sobre o tema (idem), indica um nível muito baixo de protagonismo pelos serviços de atenção psicossocial e pelos atores sociais mais relevantes nesta área. Esse quadro abre um espaço de fragilidade política que é muito facilmente aproveitado por algumas associações de familiares já tomadas por posturas conservadoras e apoiadas pela psiquiatria biomédica, em sua campanha contra a reforma psiquiátrica.

Entretanto, é preciso reconhecer que o ativismo anti-reforma de entidades como a Associação de Familiares dos Doentes Mentais (AFDM), no Brasil, não pode ser avaliado apenas como puro conservadorismo ou apenas como resultado do suporte financeiro que lhe é dado por entidades da psiquiatria convencional, pois em parte, são porta-vozes de demandas reais que precisam ser reconhecidas. Nesta mesma linha de argumentação, temos outro exemplo nas críticas à reforma em depoimentos recentes do poeta Ferreira Gullar na mídia, como pai de uma pessoa com transtorno mental. Elas são significativas para nós, particularmente por partir de alguém que compartilha uma experiência de vida e uma visão de mundo de esquerda. É claro que existem alguns agravantes no caso específico da AFDM, pois ela mobiliza seus quadros e a insatisfação mais nas camadas médias, que geralmente têm planos de saúde, tendem a utilizar os serviços psiquiátricos particulares, têm

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resistência a se misturarem à clientela mais empobrecida dos CAPS, e já possuem naturalmente maior capacidade de dar visibilidade social e política a esta insatisfação, além do próprio suporte financeiro e institucional prestado pela psiquiatria conservadora.

Outro caso de importância política nacional hoje no Brasil é o da rede de associações de familiares de autistas . Os elos da rede das AMA ’s, normalmente denominados cada um de “Associação dos Amigos dos Autistas”, foram fundadas a partir da experiência pioneira iniciada em 1983 em São Paulo, tendo a Associação Brasileira de Autismo (ABRA ) sido fundada em 1987. Esta experiência é relatada em livro (Cavalcante, 2003), e neste ano de sua publicação, sua organização já constituía uma rede de 28 associações organizadas por pais e 19 entidades distribuídas em 13 estados e no Distrito Federal. Uma das marcas peculiares da ABRA é seu forte protagonismo nos dispositivos de controle social, notadamente no plano nacional, atuando no âmbito dos conselhos nacionais de saúde, de assistência social, dos direitos das pessoas com deficiência e da criança e do adolescente 7. Hoje, sua atuação não confronta diretamente a política de reforma psiquiátrica, mas vem fazendo uma forte campanha de crítica à oferta de cuidado aos portadores de autismo nos atuais CAPS i, reivindicando que as especificidades da atenção a estas pessoas implicariam na provisão de serviços especializados, dedicados apenas a eles. Não temos condições de avaliar esta discussão no âmbito deste texto, mas certamente este é um tema que merece ser enfrentado com a devida atenção e cuidado nos vários eventos ligados à IV Conferência.

Os exemplos citados acima mostram que, apesar da forte invisibilidade social dos fenômenos associados à produção do cuidado no âmbito familiar, este tema e suas demandas são capazes de emergir e se articularem com outros processos em curso no campo da saúde mental, ganhando legitimidade e enorme importância política e social. De meu ponto de vista, as demandas dos familiares precisam ser reconhecidas e valorizadas pelo campo da reforma psiquiátrica, e é de fundamental importância investir maciçamente em metodologias e abordagens de assistência em saúde mental adequadas para eles, em suporte e empoderamento dos familiares cuidadores, em iniciativas de educação popular, de defesa dos direitos, de suporte a projetos das associações, de inclusão digital destas associações e a seus projetos, etc (Vasconcelos, 2008 e 2009). Assim, os serviços podem oferecer suporte real para o cuidado direto e para lidar com o peso do cuidado, novas oportunidades para os familiares participarem dos serviços, do projeto terapêutico de seus filhos e se organizarem, gerando relações de aliança com o serviço e os profissionais. Em 2009, após reivindicações do movimento manicomial, o Ministério da Saúde procurou ouvir de forma mais qualificada estas demandas, criando o Grupo de Trabalho de Demandas de Usuários e Familiares , e algumas destas propostas estão sendo implementadas em projetos-piloto, em iniciativas nas quais tenho uma participação direta.

No entanto, estas propostas podem ser mais bem discutidas, estimuladas e desenvolvidas em cada serviço de saúde mental, em cada município, em todo o país, e as discussões a serem realizadas nos eventos ligados à IV Conferência Nacional constituem uma oportunidade importante de fomentar este reconhecimento e de levantar propostas para responder efetivamente a estas demandas. Além de aumentar a nossa cobertura a necessidades efetivas e reais no campo da saúde mental, estas iniciativas tendem, gradualmente e no médio prazo, também a diminuir a pressão política sobre a reforma psiquiátrica na opinião pública e na mídia, ao esvaziarem pouco a pouco as denúncias de desassistência, ou de que ela estaria privatizando e aumentando o peso do cuidado sobre os familiares e cuidadores.

7 Dados disponíveis no site da ABRA: http://www.autismo.org.br

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4) Pluralismo político e relação entre tendências políticas dentro do movimento antimanicomial Antes de terminar, gostaria de chamar a atenção para uma questão que é mais nossa, interna ao movimento antimanicomial, mas que tem repercussões e conseqüências para todo o processo político de sustentação da reforma psiquiátrica no país. Até 2001, tivemos um movimento antimanicomial razoavelmente unificado, com diferenças internas, mas que não se expressavam em tendências separadas. Naquele ano, houve uma divisão importante, que gerou pelo menos duas tendências mais importantes, a Rede Internúcleos e o Movimento da Luta Antimanicomial. Em tese, a existência de tendências é salutar, pois pluraliza, força o debate entre diferentes posições, aumenta a diversidade de pontos de vista, e isso pode efetivamente contribuir para o fortalecimento de um movimento social como um todo. Neste processo, emergem diferentes formas: - de analisar a conjuntura política e de conceber a estratégia, a tática e as ações políticas prioritárias e concretas; - de se avaliar e de se relacionar com os governos existentes e particularmente com as coordenações de saúde mental nos vários níveis do Estado; - de mobilizar recursos para fazer política; - de entrar em organizações da sociedade civil, dos profissionais e dos trabalhadores que possam dar suporte à luta; - de organizar internamente as forças e atores dentro de cada uma das tendências, com maior ou menor centralização diretiva, e verticalidade ou horizontalidade; - de realizar o debate e criticar as demais forças e tendências no movimento, bem como as forças de oposição. Assim, o pluralismo interno, em tese, pode efetivamente potencializar as forças de um movimento social, mas dependendo da forma como esse debate interno é realizado, pode também enfraquecê-lo. Em qualquer movimento social, isso pode acontecer, em tese, quando: - uma ou um conjunto separado destas forças passa a não reconhecer as demais, se colocando como a única ou a que deve prevalecer sempre, em quaisquer circunstâncias; - uma ou mais forças não reconhecem o direito à representação das demais tendências nos órgãos de controle social e nos eventos comuns do campo; - uma ou mais tendências não são capazes de realizar atividades comuns (unidade na ação), quando isso é necessário, particularmente nos momentos de mobilizar todas as forças para se contrapor aos opositores do movimento ou de ocupar o espaço político aberto para o conjunto do movimento nas demais instâncias de poder, etc; Atitudes como estas, em qualquer movimento social, geram competição política exacerbada, desconfiança, mal-estar, perda de energia psíquica e política que deveria ser dirigida para os objetivos mais amplos do movimento, desarticulação política nas ações comuns, e acabam não só enfraquecendo o movimento como um todo, como também oferecendo mais munição para os ataques das forças de oposição. Não nos cabe, em um texto como este, avaliar em que nível e como isso vem acontecendo hoje. Este tópico aqui é apenas um convite para auto-reflexão, visando a construção de um pluralismo mais saudável. Levantar o tema aqui parte do pressuposto de que todos somos capazes de colocar os objetivos comuns do movimento em um plano mais elevado, e avaliar internamente, individual e coletivamente, como estamos realizando hoje o debate interno entre as tendências, para que ele eventualmente não leve ao enfraquecimento do nosso movimento como um todo.

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5) Considerações finais Como indicado acima, este pequeno ensaio, escrito quase como um pensar em voz alta e ainda em processo de construção, visa contribuir com nossas discussões militantes no campo da luta antimanicomial. Como os leitores devem ter notado, não houve qualquer pretensão de esgotar os múltiplos desafios, necessidades e problemas do nosso campo da saúde mental, na medida em que busquei chamar atenção apenas para aqueles tópicos que considero prioritários e que a meu ver apresentam mais riscos para a continuidade do processo histórico de reforma psiquiátrica no país. Tenho plena consciência de que este texto possui aspectos polêmicos, e naturalmente espero receber críticas, sugestões e propostas para o seu aperfeiçoamento. Seu objetivo não é de gerar adesão e unanimidade, mas de servir de provocação para fomentar um debate cada vez mais qualificado e sistemático sobre a atual conjuntura política e os rumos da reforma psiquiátrica em nosso país. Este debate deve estar atento eticamente não só às necessidades mais urgentes da população, mas também à sustentabilidade e a continuidade da política de reforma, e deve ser necessariamente aprofundado no processo de organização da IV Conferencial Nacional de Saúde Mental – Intersetorial. Rio de Janeiro, março de 2010 Eduardo Vasconcelos Referências CAMPOS, RO et al (org) – Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos de narratividade. São Paulo, Hucitec, 2008. CAVALCANTE, FG – Pessoas muito especiais: a construção social do portador de deficiência e a reinvenção da família. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2003. LIMA, MGA (coord) - Avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado de São Paulo. São Paulo, Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP), 2010. MELLO, MF et al (org) – Epidemiologia da saúde mental no Brasil. Porto Alegre, Artmed, 2007 MINISTÉRIO DA SAÚDE/ SAS /DAPES – COORDENAÇÃO GERAL DE SAÚDE MENTAL, ALCOOL E OUTRAS DROGAS – Leitos de atenção integral em saúde mental em hospital geral: práticas de cuidado e articulação com a rede de atenção em saúde mental. Brasília, texto preparado para o XI Colegiado de Coordenadores de Saúde Mental, março de 2010a MINISTÉRIO DA SAÚDE/ SAS /DAPES – COORDENAÇÃO GERAL DE SAÚDE MENTAL, ALCOOL E OUTRAS DROGAS – Relatório de Gestão 2009. Brasília, texto preparado para o XI Colegiado de Coordenadores de Saúde Mental, março de 2010b PINHEIRO, R et al (org) – Desinstitucionalização da saúde mental: contribuições para estudos avaliativos. Rio de Janeiro, CEPESC – IMS/UERJ – ABRASCO, 2007.

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SOARES, GAD et al – As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006 VASCONCELOS, EM (org) – Abordagens psicossociais, vol II: reforma psiquiátrica e saúde mental na ótica da cultura e das lutas populares. São Paulo, Hucitec, 2008 VASCONCELOS, EM (org) – Abordagens psicossociais, vol III: perspectivas para o serviço social. São Paulo, Hucitec, 2009 VASCONCELOS, EM et al – Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental. Rio de Janeiro, Projeto Transversões (ESS-UFRJ), 2008b (disponível na forma digital, através de pedido ao e-mail: [email protected]). Sítios da Internet citados www.autismo.org.br (Associação Brasileira de Autismo)