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Desafios e potencialidades do uso dos registros paroquiais como uma fonte para pesquisa sobre imigração. Imigrantes russos em São Paulo nas décadas de 1920-1940. GT “Mobilidade Socioespacial das populações em uma perspectiva histórica” Svetlana Ruseishvili * Resumo O presente trabalho procura discutir desafios e potencialidades do uso dos registros paroquiais de batismos como uma fonte de dados sobre a população de imigrantes russos na cidade de São Paulo nas décadas de 1920-1940. Recorrer à análise de registros de batismos foi uma estratégia metodológica para averiguar dados obtidos por meio de outras fontes documentais. Para isso, foram investigados registros de batismos de duas paróquias ortodoxas russas existentes na cidade de São Paulo nos anos 1920-1940. Apesar do caráter fragmentado desses registros, a análise permitiu examinar duas características relevantes da população em questão: o número de indivíduos participantes no rito do batismo na igreja ortodoxa russa no período de tempo pesquisado e as principais regiões de procedência desses imigrantes. Esses dados foram fundamentais para contestar a imagem autoconstruída da comunidade russa em São Paulo como uma comunidade de imigrantes políticos, de camadas predominantemente urbanas, fugitivos do novo regime soviético instalado na Rússia após 1917. A análise de registros de batismos demonstrou que grande parte de imigrantes russos na cidade eram originários dos territórios fronteiriços do oeste do ex-Império Russo, provenientes do campo e vindos ao Brasil em busca de melhores condições de vida. Palavras-chave: Imigração; registros paroquiais; registros vitais; demografia histórica; russos. * Docente do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

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Desafios e potencialidades do uso dos registros paroquiais como uma fonte para pesquisa sobre imigração. Imigrantes russos em São Paulo nas décadas de 1920-1940. GT “Mobilidade Socioespacial das populações em uma perspectiva histórica”

Svetlana Ruseishvili* Resumo O presente trabalho procura discutir desafios e potencialidades do uso dos registros paroquiais de batismos como uma fonte de dados sobre a população de imigrantes russos na cidade de São Paulo nas décadas de 1920-1940. Recorrer à análise de registros de batismos foi uma estratégia metodológica para averiguar dados obtidos por meio de outras fontes documentais. Para isso, foram investigados registros de batismos de duas paróquias ortodoxas russas existentes na cidade de São Paulo nos anos 1920-1940. Apesar do caráter fragmentado desses registros, a análise permitiu examinar duas características relevantes da população em questão: o número de indivíduos participantes no rito do batismo na igreja ortodoxa russa no período de tempo pesquisado e as principais regiões de procedência desses imigrantes. Esses dados foram fundamentais para contestar a imagem autoconstruída da comunidade russa em São Paulo como uma comunidade de imigrantes políticos, de camadas predominantemente urbanas, fugitivos do novo regime soviético instalado na Rússia após 1917. A análise de registros de batismos demonstrou que grande parte de imigrantes russos na cidade eram originários dos territórios fronteiriços do oeste do ex-Império Russo, provenientes do campo e vindos ao Brasil em busca de melhores condições de vida. Palavras-chave: Imigração; registros paroquiais; registros vitais; demografia histórica; russos.

* Docente do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

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Os registros paroquiais, ou, como são frequentemente chamados na literatura

histórica, “registros vitais” (BASSANEZI, 2011, p. 90), são anotações previstas na

prática eclesiástica de algumas igrejas cristãs, que protocolam, de forma escrita, a

realização na paróquia dos três principais sacramentos: batismo, casamento e óbito.

Historicamente, as anotações da igreja possuíam uma importante função de controle

e de cálculo da população do Estado, especialmente nos tempos em que ainda não

havia censos populacionais organizados pelos governantes. Isso é principalmente

característico das sociedades europeias, nas quais o alcance das igrejas cristãs era

quase universal.

Assim, a abrangência dos registros vitais faz deles uma fonte excepcional de

dados tanto quantitativos como qualitativos para pesquisas histórias e demográficas.

Trabalhando de forma colaborativa, foram o demógrafo francês Louis Henry e o

historiador Michel Fleury os primeiros a chamaram atenção para as potencialidades

dos registros paroquiais como fonte de dados para a reconstrução das dinâmicas

populacionais na era “pré-estatística” (HENRY, FLEURY, 1956). No Brasil, foi a

historiadora Maria Luiza Marcílio (1973, 1977) 1 quem introduziu o método

desenvolvido por Henry nos estudos da demografia histórica, publicando, em 1973,

a sua tese sobre a população e o povoamento da cidade de São Paulo nos séculos

XVIII-XIX.

Na coletânea de artigos organizada por Maria Luiza Marcílio (1977) sobre a

disciplina, o historiador francês Jean-Pierre Poussou destaca a escassez de estudos

sobre as migrações antigas, tanto no âmbito da pesquisa histórica quanto

demográfica, devido, em grande parte, à dificuldade de obter fontes sistemáticas e

confiáveis. “Uma vez que esta [a Demografia], por definição, é uma ciência

quantitativa elaborada a partir de dados quantificáveis” (MARCÍLIO, 1977, p. 146), o

interesse do demógrafo é focado nas fontes “seriadas”, entre as quais os registros

paroquiais se destacam devido à sua divisão em registros de batismos, óbitos e

casamentos. Além disso, Poussou aponta que os dados de registros podem

igualmente fornecer elementos de caráter mais exploratório e qualitativo.

1 A pesquisadora desenvolveu sua tese de doutoramento em demografia histórica sobre a cidade de São Paulo (1973) sob orientação dos professores Henry e Fleury na França, cujo método aplicou em várias pesquisas posteriores, incentivando também sua utilização por outros pesquisadores brasileiros.

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Entre os pesquisadores em ciências sociais no Brasil, os registros paroquiais

já há algum tempo conquistaram espaço como fontes de dados para pesquisas

históricas. Entre os mais reconhecidos, vale destacar Gilberto Freyre (1966, p. Ixviii),

que no prefácio à primeira edição de “Casa-Grande e Senzala” menciona “os livros

de assentos de batismo, óbitos e casamentos de livres e escravos e os de rol de

famílias e autos de processos matrimoniais que se conservam em arquivos

eclesiásticos” entre as possíveis fontes empíricas para pesquisa da “história íntima

da família brasileira”.

A historiadora Anita Novinsky (1972), em sua pesquisa sobre a Inquisição e

os cristãos novos no Brasil, também se baseia nos dados colhidos em diferentes

tipos de registros populacionais que a Igreja Católica produzia para assegurar o

funcionamento da instituição da Inquisição nas Américas coloniais.

Em seu estudo sobre os colonos italianos em São Caetano em meados do

século XIX, José de Souza Martins (2003) chama atenção para as potencialidades

da análise de registros paroquiais em pesquisas sobre imigrantes. Ele aponta que as

paróquias vênetas, ao deparar-se com a maciça emigração de seus fiéis para a

América, introduziram em sua rotina eclesiástica um registro específico, Libro dello

Stato di Anima, onde devidamente anotavam os nomes daqueles paroquianos que

partiam para a aventura transoceânica (p. 31).

A pesquisadora brasileira Maria Silvia Bassanezi (2011) escreve sobre a

aplicação do método da demografia histórica nas populações migrantes e ressalta

as potencialidades do uso dos registros paroquiais nos estudos sobre migrações,

tanto históricas quanto contemporâneas. Segundo ela, a riqueza das informações

contidas nos registros vitais permite abordar, além das dinâmicas do crescimento

populacional, uma diversidade de aspectos da vida dos imigrantes, tais como a

história da família, da mulher, da escravidão, das mentalidades, a persistência ou

mudança nas práticas religiosas e culturais, as hierarquias sociais, a dispersão

espacial, a constituição de redes sociais, entre outros (BASSANEZI, 2011, p. 91-92).

Isso porque, além das informações numéricas (a quantidade dos ritos realizados), os

registros paroquiais contêm também dados nominativos (nomes dos batizados, dos

pais e das testemunhas, endereço, profissão e outros). Embora os registros das

paróquias não façam parte do corpus documental tradicional das pesquisas

sociológicas e/ou históricas, eles podem servir de fonte de dados alternativa em

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estudos que têm por objeto uma população pouco pesquisada ou propositalmente

“silenciada”.

Investigar uma população imigrante distante no tempo significa primeiramente

enfrentar desafios de caráter prático. Onde encontrar fontes de dados sobre esses

fenômenos, se não há mais indivíduos que possam contar algo sobre o

deslocamento vivido? Muitas vezes as informações que o pesquisador possui no

tempo presente são produtos de um longo e sistemático processo de reinvenção da

imagem de si pelos imigrantes. Não é raro que uma comunidade de imigrantes

preserve e projete uma imagem de si muito bem elaborada, sendo um fruto de várias

gerações e que frequentemente ignora ambiguidades e conflitos internos outrora

existentes. Fontes escritas, como jornais, revistas, diários, relatos autobiográficos,

entre outros, podem apresentar uma dupla deformidade. Primeiro, elas tendem a

produzir uma imagem idealizada sobre o ato de migrar e sobre a comunidade.

Segundo, a preservação de alguns registros escritos pela comunidade e o

esquecimento ou até mesmo a destruição dos outros pode colocar o pesquisador

diante de um corpus de dados inicialmente distorcido. O cruzamento das fontes

escritas com outras fontes de dados se torna assim imprescindível para uma

pesquisa histórica. Nesse momento, os registros vitais podem se tornar uma

alternativa preciosa para confrontar a história “produzida” pela comunidade

imigrante.

1. Os registros paroquiais na Igreja Ortodoxa Russa Como qualquer outra população imigrante, os russos em São Paulo das

décadas 1920-1940 não constituíram uma comunidade homogênea. Contudo, as

fontes de dados produzidas pela comunidade sugerem uma versão bastante pacífica

sobre a origem e o caráter da imigração russa na cidade. Foi para confrontar essa

imagem que os registros vitais das paróquias ortodoxas russas em São Paulo foram

fundamentais.

Assim como a Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa Russa tem a praxe de

registrar eventos vitais em suas paróquias. Na Rússia czarista, a regulamentação

dessa prática foi bastante tardia, comparada com a Igreja Católica - em 1702, o czar

Pedro Grande oficialmente obrigou as paróquias de Moscou a entregar relatórios

sobre batismos e óbitos à secretaria do patriarca da igreja. Porém, a prática regular

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de registros nas paróquias locais em todo o império se estabeleceu somente no

começo do século XIX (NEDZELIUK, 2011).

Tradicionalmente, a Igreja Ortodoxa Russa detinha monopólio religioso e um

poder absoluto sobre as populações do Império Russo. Do ponto de vista

administrativo, o alcance do poder da Igreja era muito maior e muito mais eficiente

de que o alcance do poder da administração czarista. Nesse sentido, a Igreja era

uma instituição indispensável para o governo do czar. Suas paróquias eram

onipresentes, seus sacerdotes se enquadravam na hierarquia definida e

subordinada ao Santíssimo Sínodo Governante, um órgão supremo da Igreja

totalmente submisso ao czar.

A presença da paróquia na vida cotidiana dos russos era permanente. Para

qualquer mudança na estrutura da família havia um rito religioso determinado, cuja

realização era minuciosamente registrada pelo pároco nas atas específicas. Assim,

o matrimónio, o nascimento de filhos, o óbito, a transferência para outras paróquias

etc, eram fixados pelo sacerdote por escrito. Além dos registros de sacramentos e

ritos ligados à família, faziam-se registros de número de confissões e de comunhões

realizadas periodicamente na paróquia. Todos esses registros tinham por objetivo

monitorar a participação da população na vida da paróquia, assim como produzir

dados sobre as populações locais do país imenso e disperso. As informações

registradas nos livros paroquiais englobavam, portanto, a quase totalidade da

população pertencente à paróquia. Em conjunto, esses registros são fontes de

dados importantes para uma reconstrução histórica da população do Império Russo.

Os registros da igreja foram suprimidos e substituídos pelos registros civis

logo após a revolução bolchevique de 1917. Um dos primeiros decretos do poder

soviético, datado de 18 de dezembro de 1917, desvinculou a função dos registros de

casamentos, nascimentos e óbitos da Igreja Ortodoxa e criou um instituto civil de

registros da população. Além das instruções gerais sobre o novo procedimento do

registro dos eventos vitais, o decreto exigia de todas as instituições eclesiásticas e

administrativas responsáveis pelos registros da população no antigo regime entregar

as atas aos centros locais do poder soviético2. Dois meses mais tarde, em fevereiro

de 1918, o governo bolchevique proclamou a separação do Estado da Igreja

Ortodoxa, desapropriou e nacionalizou todos os seus bens e proibiu todas as

2 Decreto de 18 de dezembro de 1917, sobre casamento civil, filhos e manutenção de livros de registros. Disponível em http://istmat.info/node/28231 (em russo). Acesso em 20/07/2017.

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organizações religiosas de possuir bens e de constituir figura jurídica3 . Dessa

maneira, a Igreja Ortodoxa foi uma das primeiras instituições do regime czarista a

perder formalmente suas funções de controle e de cômputo da população. Contudo,

as atas produzidas pela Igreja antes da tomada de poder pelos bolcheviques

continuavam a valer e circularam no país ainda durante muitos anos.

Entretanto, esse não foi o fim da Igreja Ortodoxa Russa. Embora tenha

perdido o seu poder, as suas funções e o seu alcance, ela continuou sua existência

na Rússia soviética, sob permanente controle e vigilância do governo bolchevique.

Após a Revolução e ao longo da consequente guerra civil que terminou no final de

1922 pela consumação do poder dos bolcheviques, cerca de dois milhões de

cidadãos do ex-Império Russo deixaram o país (GOUSSEFF, 2008, p. 54). Assim,

uma parte significativa da Igreja Ortodoxa foi transferida para a Europa, onde no final

dos anos 1920 os bispos exilados criaram uma estrutura eclesiástica paralela,

chamada Igreja Ortodoxa Russa no Exílio4. Essa instituição era uma continuidade,

nos ritos e nas práticas, da Igreja Russa do antigo regime, e assumiu as principais

funções dela, inclusive o registro dos eventos vitais dos imigrantes russos. Ao longo

das décadas de 1930 e 1940, a Igreja Russa no Exílio se instalou em todos os

países europeus e asiáticos, onde havia forte presença de imigrantes russos, e

começou a exercer um papel importante na vida dessas comunidades. No Brasil, a

primeira paróquia da Igreja Ortodoxa Russa no Exílio surgiu em 1926, em São

Paulo, em resposta ao crescimento do número de imigrantes vindos dos territórios

do ex-Império Russo.

2. Corpus de dados: registros paroquiais de batismos das paróquias ortodoxas russas em São Paulo nos anos 1920-1940

Foi com o intuito de melhor conhecer e compreender quem eram esses

migrantes que deixaram a Rússia e se instalaram no Brasil na segunda metade da

década de 1920, que procedeu-se à consulta dos livros de registros das paróquias

3 Decreto de 20 de janeiro (2 de fevereiro) de 1918, sobre a liberdade de consciência, sociedades religiosas e eclesiásticas. Disponível em http://www.hist.msu.ru/ER/Etext/DEKRET/religion.htm (em russo). Acesso em 20/07/2017.4 Para mais informações sobre a criação da Igreja Ortodoxa Russa no Exílio vide Ruseishvili, 2016, pp. 304-306.

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russas em São Paulo. Os dados sobre a entrada desses imigrantes nos portos do

Brasil são fragmentados e carecem de sistematização. Dessa maneira, as atas

paroquiais puderam servir como uma “porta de entrada”, fornecendo informações

exploratórias sobre as datas, as procedências e as estimativas numéricas da vinda

desses imigrantes.

Há atualmente três paróquias ortodoxas russas ativas na cidade de São

Paulo. Como o objeto da pesquisa eram os imigrantes russos em São Paulo na

primeira metade do século XX, mais precisamente após a Revolução de 1917 e até

o fim da Segunda Guerra Mundial, foram destacadas as paróquias criadas no

intervalo de tempo pesquisado. Dentre as três, duas foram estabelecidas1 nas

décadas de 1920-1930. A paróquia São Nicolau, em 1926, com localização no

centro de São Paulo, e a paróquia Santíssima Trindade, em 1930, com uma igreja

construída no bairro Vila Alpina5.

Após uma análise preliminar da qualidade das atas preservadas por essas

paróquias, foram selecionados apenas os livros de registros de batismos. Esses se

mostraram uma fonte de dados mais completa por vários motivos.

Primeiro, pelo fato de haver centenas de registros de crianças batizadas

anualmente, contra algumas dezenas de registros de casamentos ou óbitos. Ao que

tudo indica, a prática religiosa de batizar os recém-nascidos persistiu com mais força

e duração entre os imigrantes russos do que a prática de casamento religioso e dos

ritos fúnebres. A dispersão dos russos pela cidade de São Paulo e uma forte

miscigenação das novas gerações com a população local católica fez com que os

casamentos raramente fossem registrados nas paróquias ortodoxas. No contexto de

vida fora da Rússia, o ato de celebrar esses eventos vitais na igreja passou a ser

voluntário e, em muitos casos, implicava algumas dificuldades para os envolvidos. O

número anual de registros de óbitos era ainda mais modesto, comparado com os

registros de casamentos.

5 A paróquia São Nicolau nasceu como uma reunião de fieis, imigrantes russos, que para celebrações litúrgicas alugaram um salão no centro de São Paulo, na rua Jorge Azem, nos arredores do parque Dom Pedro II. Alguns anos depois, a pequena igreja foi transferida para outro salão alugado na rua Epitácio Pessoa, 29, no bairro da República, também no centro de São Paulo. A construção da sede própria, com uma igreja no estilo clássico russo, existente até hoje, se concretizou apenas em 1939, na rua Tamandaré, 710, no bairro da Liberdade. A paróquia Santíssima Trindade, diferentemente dessa primeira, teve início com a construção de uma pequena igreja, num terreno adquirido, em outubro de 1930, pelo sacerdote russo de Buenos Aires no bairro distante, de difícil acesso e ainda predominantemente rural, chamado Vila Alpina.

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Além disso, as atas de batismos contêm mais informações nominativas que

podem lançar luz sobre diversos aspectos da vida dos imigrantes em questão.

Desde o século XIX, as atas de registros de batismos continham os seguintes

grupos de dados:

1. Dados sobre o registro: número (dividido por meninos e meninas), data, local e

nome do sacerdote;

2. Dados sobre o batizado: data de nascimento, nome, sexo;

3. Dados sobre os genitores: nome, sobrenome, estamento e confissão dos pais;

4. Dados sobre os testemunhas (padrinhos escolhidos pela família, geralmente um

homem e uma mulher, que não podem ter relações de parentesco entre si): nome,

sobrenome;

5. Outros dados: filiação (filho legítimo/ilegítimo), se morreu logo após o ato e outros.

Entretanto, com a transferência de uma parte da Igreja Ortodoxa Russa para

o exterior após a Revolução, a prática de registros e o seu conteúdo foram se

adaptando naturalmente às exigências do contexto migratório. Embora a paróquia

continuasse a se estruturar conforme as práticas dos tempos pré-emigração, as

novas condições sociais dos imigrantes precisavam ser consideradas.

Consequentemente, os registros de batismos passaram a indicar a região geográfica

de procedência de ambos os genitores. Além disso, outras informações sobre a

família começaram a ser incluídos nos registros: a religião dos genitores, as

ocorrências de re-batismo (ou seja, se a criança fora inicialmente batizada em uma

outra religião e migrou para a ortodoxia), etc. Mais tarde, já nos anos 1940,

acrescentou-se também a indicação do número da certidão de nascimento da

criança, exigência da modernidade administrativa, com informações sobre o bairro

do nascimento e, consequentemente, da residência da família.

A primeira paróquia ortodoxa russa em São Paulo, a de São Nicolau,

mantinha seus registros paroquiais desde a sua fundação, em 1926. Todos eles

estão preservados até hoje na Catedral Ortodoxa São Nicolau, em São Paulo. Os

primeiros cadernos destinados aos registros dos eventos vitais foram

confeccionados pelo próprio pároco, em um caderno formato ofício, preenchido à

mão. Geralmente, nos primórdios da existências das paróquias ortodoxas em São

Paulo, a responsabilidade sobre a organização e a manutenção dos livros de

registros pertencia exclusivamente ao sacerdote-pároco. Era ele quem escolhia

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quais informações deveriam constar nas atas. Dessa maneira, as atas registradas

nessa paróquia no período de 1926 a 1930 contêm maior número de informações

relevantes sobre a família. É possível observar que o pároco julgava necessário

registrar, naquele início da vinda dos russos a São Paulo, não apenas informações

básicas tradicionalmente incluídas nos registros, mas também o estamento ou a

profissão dos genitores e dos testemunhas, a nacionalidade e/ou local de

procedência e de origem, com detalhamento minucioso.

A partir do início da década de 1930, o local de procedência dos indivíduos

não era mais descrito em detalhes, mas indicava-se apenas o país de origem.

Contudo, informações sobre a origem social e estamental dos indivíduos continuava

a fazer parte das preocupações do pároco e dos imigrantes que participavam do

sacramento, como vimos no exemplo de um registro de 1930: “Número do registro: № 85. Data de nascimento: 21/09/1930. Data de batismo: 24/10/1930. Nome: Aleksandr. Estamento, nome, sobrenome e confissão dos genitores: Coronel dos guardas do regimento dos couraceiros da Sua Majestade Imperatriz Maria Fedorovna Aleksandr von Baumgarten e sua esposa Maria Petrovna, nascida Mirkovitch, ambos de confissão ortodoxa. Nome, sobrenome dos testemunhas: Junker da Suprema Corte Conselheiro de Colégio Petr Mikhailovitch Mirkovitch e a viúva do coronel Olga Alekseevna Birshert, nobre hereditário Rittmeister Fedor Ioannov von Geine e Eugênia Mikhailovna Vorotilova. Sacerdote: Konstantin Izraztsov”6.

A partir de 1940, as atas passaram a ser feitas em outro formulário, impresso em

tipografia local, em idioma português. Esse formulário não previa espaço para

registro detalhado da nacionalidade e da procedência dos genitores, assim como de

sua origem estamental. Dessa maneira, com a introdução de tal formulário, as

informações sobre a procedência geográfica e social dos genitores e testemunhas

passaram a ser cada vez mais escassas, até que fossem completamente ignoradas

a partir do final de 1947.

A outra paróquia ortodoxa russa existente na cidade de São Paulo desde

1930 também praticava o registro de batismos nos mesmos padrões. Embora o

sacerdote possuísse grande liberdade em organizar as atas e incluir nelas as

informações que desejasse, os registros das duas paróquias apresentam uma

grande semelhança, que pode ser explicada tanto pela continuidade do modus

operandi, quanto pela atuação de um único sacerdote nas duas paróquias

6 Junker da Suprema Corte e Rottmeister são categorias militares do Exército Imperial Russo. Conselheiro de Colégio era uma das posições de funcionários públicos da administração czarista, de acordo com a Tabela de Patentes do Império Russo introduzida pelo imperador Pedro, o Grande em 1722. A tabela completa pode ser consultada em Segrillo (2016, p. 139).

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paralelamente. Assim, no período entre 1930 e 1939 a paróquia não possuía um

sacerdote exclusivamente responsável por seu funcionamento e todos os

sacramentos, bem como as atas de registros, eram administrados pelos sacerdotes

vindos da paróquia São Nicolau. A paróquia Santíssima Trindade passou a ter seus

próprios registros de eventos vitais a partir de 1939, quando um sacerdote russo,

vindo direto da Europa, foi nomeado pároco fixo pelo bispo da Igreja Ortodoxa

Russa no Brasil.

Vale observar um outro fato relevante que se refere à localização das atas de

registros dessa paróquia. Diferentemente de todos os outros livros de registros

paroquiais que são preservados nos arquivos das respectivas paróquias, as atas da

igreja Santíssima Trindade referentes aos anos 1939-1947 encontram-se dentro do

prontuário do Departamento Estadual de Ordem Política e Social – Deops - do

sacerdote Dimitri Tkatchenko, antigo pároco dessa igreja, investigado pela polícia e

expulso do Brasil em 19487.

É possível constatar que as atas de batismo do sacerdote Tkatchenko possuem

grande número de sacramentos realizados fora da cidade de São Paulo,

principalmente nas colônias agrícolas no interior do Estado de São Paulo. As

colônias, conhecidas como “eslavas”, Baliza, Santo Anastácio, Represa, São

Jerônimo, Sete de Setembro, Sete de Maio, Costa Machado, Feiticeira8, e outras,

constam no livro com uma certa periodicidade. A preocupação dos dirigentes da

Igreja Ortodoxa Russa, radicada na cidade de São Paulo, com os imigrantes

ortodoxos residentes nas áreas rurais distantes da capital resultava em

deslocamentos regulares dos sacerdotes para essas localidades. Todos os

sacramentos ministrados junto aos imigrantes das colônias agrícolas eram

registrados nas atas com indicação do nome da colônia agrícola atendida – mais

uma fonte de dados preciosa para uma reconstrução histórico-demográfica.

Dessa maneira, foram localizados, sistematizados e analisados 13 livros de

registros paroquiais, referentes aos registros de batismos, realizados em duas

paróquias ortodoxas russas em São Paulo, e nas colônias agrícolas no interior do

estado, no período entre 1927 e 1945.

7 Prontuário Deops n 94561 – Dimitri Tkatchenko, compreendendo 4 volumes. Arquivo Público do Estado de São Paulo. 8 A maioria dessas colônias localizavam-se na Estrada de Ferro Sorocabana, na região do município de Presidente Prudente.

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3. Principais desafios à sistematização e à análise dos dados contidos nos registros de batismos

Como aponta Bassanezi (2011, p. 99), os registros paroquiais “se prestam tanto

às análises de caráter qualitativo como quantitativo; análises em nível micro ou

macro e, em sendo uma fonte nominativa (pois trazem nomes das pessoas) se

prestam a cruzamentos entre si e com outras fontes nominativas ou não”. Nessa

perspectiva, a estratégia da sistematização dos dados contidos nesse corpus

documental é definida, em princípio, pela problemática da pesquisa, assim como

pela própria qualidade e consistência desses dados. Para prosseguir com a

interpretação o pesquisador precisa contar com a existência de outras fontes

qualitativas ou quantitativas e fazer escolhas metodológicas considerando essas

múltiplas variáveis.

As escolhas metodológicas sobre a sistematização dos dados foram

condicionadas pelas seguintes características das atas de registros encontradas:

1. Caráter fragmentário do conjunto total dos dados nas atas. Isso significa que a

mesma informação pode se apresentar sob formas diferentes em diferentes atas.

Por exemplo, os dados sobre a região da procedência dos genitores pode conter

informações completas em alguns anos, e em outros indicar apenas cidade ou país.

Ao mesmo tempo, diferentes fichas individuais podem conter tipos de informações

diferentes. Por exemplo, enquanto umas contêm dados sobre o estamento dos pais,

outras indicam a profissão, ou ignoram essas informações por completo. A falta de

padronização das atas dificultou a sua sistematização quantitativa. Por outro lado,

ela abriu espaço para existência nas atas de dados qualitativos muito relevantes

para a pesquisa.

2. Desconhecimento do grau da representatividade quantitativa. Não foi possível

descobrir o quão representativos são os dados sobre o número de crianças

batizadas por ano em comparação com o número total dos imigrantes russos na

cidade e considerando a sua taxa de natalidade. Em outras palavras, não é possível

descobrir qual foi o número de crianças nascidas de pais russos na cidade que não

foram batizadas nas paróquias ortodoxas. Já que é difícil estimar se a prática de

batizar as crianças permaneceu universal ou foi marginal para a população imigrante

russa, a quantidade dos batismos realizados por ano pouco ou nada nos diz sobre o

número de imigrantes russos residentes na cidade na época estudada.

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Em vista disso, uma análise puramente quantitativa poderia dificilmente ser

heurística para estudar a população em questão. Contudo, as informações contidas

nas atas de registros ainda podem ser analisadas enquanto dados qualitativos,

indicando várias características da população estudada, como práticas religiosas,

origem e hierarquias sociais, procedência geográfica, tendências de natalidade,

relações de parentesco etc. Considerando que a análise de registros de batismos foi

realizada no estágio exploratório da pesquisa, um dos aspectos mais importantes

era a procedência geográfica e o perfil social dos imigrantes atendidos pela Igreja

Ortodoxa Russa em São Paulo no período entre 1927 e 1945.

Dessa maneira, as informações contidas nas atas de batismos foram

sistematizadas em um banco de dados informatizado, priorizando as informações

sobre a quantidade anual de batismos em cada paróquia e sobre a região de

procedência dos pais de crianças batizadas.

A análise dos dados priorizou, num primeiro momento, a estimação do número

geral de fieis envolvidos na prática de batismo na Igreja Ortodoxa Russa e o

conhecimento da procedência geográfica desses imigrantes. Em seguida, as

informações de caráter qualitativo, como ocupação, estamento, relações de

parentesco, local de residência etc, foram cruzadas com dados obtidos por meio de

outras fontes documentais e renderam interpretações relevantes sobre o objeto da

pesquisa.

4. Principais resultados: número anual de batismos e região de procedência dos imigrantes russos A sistematização das informações descritas acima revelou algumas

tendências quantitativas da participação da população imigrante russa nos

sacramentos da Igreja Ortodoxa. Conforme indica o gráfico 1, o maior número de

batismos realizados pelos párocos da igreja São Nicolau aconteceu no período entre

1928 e 1939, atingindo seu auge nos anos 1928 e 1929. O decréscimo do número

total anual de batismos realizados nessa paróquia nos anos posteriores a 1939 pode

por um lado relacionar-se à efetivação regular da paróquia Santíssima Trindade, da

Vila Alpina, devido à vinda de um pároco dedicado exclusivamente a ela, que fez

com que um número significativo de famílias inicialmente atendidas pelos párocos

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de São Nicolau migrasse para essa nova paróquia, mais próxima aos bairros

paulistanos com maior concentração dos imigrantes ortodoxos; e por outro também

à concorrência com os outros ritos religiosos, cuja popularidade cresceu entre as

populações de imigrantes russos no contexto da sua inserção no Brasil.

O gráfico 2 evidencia justamente essas últimas considerações. Após a vinda

do pároco para a igreja da Santíssima Trindade em 1939, o número de batismos

realizados ficou dividido entre as duas paróquias. A partir de 1943, um número muito

maior de batismos era realizado nessa paróquia em comparação com o centro

diocesano da Igreja Ortodoxa Russa situado na igreja de São Nicolau no bairro da

Liberdade. No entanto, o número geral dos batismos realizados nas duas paróquias

juntas não decresceu, o que indica uma migração da população de uma à outra

paróquia e não uma diminuição geral do número de fieis.

Gráfico 1. Número de batismos realizados por ano na paróquia ortodoxa russa São Nicolau, São Paulo, 1927-1945. Fonte: Atas de registro de batismos da paróquia ortodoxa russa São Nicolau, São Paulo.

144

296283

207

153

101

117

74

134

116

182

128

100

5868

55

3440 40

0

50

100

150

200

250

300

350

1927 1928 1929 1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945

Núm

erototaldeba

-smosre

alizad

os

Ano

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Esses dados sugerem algumas considerações fundamentais para

reconstrução do perfil dos imigrantes russos nesse período. A primeira diz respeito à

distribuição dessas populações pelos bairros de São Paulo. Conforme já indicavam

outras fontes documentais, sem terem, contudo, apontado uma dimensão exata do

fenômeno, a maior parte dos imigrantes originários do ex-Império Russo se instalou

nos arredores do bairro Vila Prudente, nas colinas do rio Tamanduateí, no final da

década de 1920. Naquela época, esse local ainda era pouco povoado, semi-rural e

periférico, pouco servido pela infraestrutura urbana. Por esse motivo, os terrenos

apresentavam preços acessíveis e condições de pagamento favoráveis para

imigrantes recém-instalados na cidade. No período em que a única paróquia

ortodoxa russa funcionava no centro de São Paulo, os moradores dessas áreas

enfrentavam deslocamentos demorados para participar dos ritos da Igreja. A partir

do início do funcionamento regular da paróquia mais próxima, esses fiéis

naturalmente passaram a frequentá-la, sendo que a paróquia do centro acabou

sendo frequentada pelas camadas mais abastadas dos imigrantes russos, que

possuíam recursos para se estabelecerem no centro da cidade.

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Gráfico 2. Comparação do número anual de batismos realizados nas paróquias ortodoxas russas São Nicolau e Santíssima Trindade. São Paulo, 1927-1947. Fonte: Atas de registro de batismos das paróquias ortodoxas russas São Nicolau e Santíssima Trindade.

De um modo geral, somados os números das duas paróquias, entre 1927 e

1947, foram batizadas, no total, 3216 pessoas, sendo que a maior ocorrência de

batismos por ano aconteceu entre 1928 e 1930, tendo em média 262 batismos por

ano, e entre 1943 e 1946, com 169 batismos em média por ano.

O segundo tipo de dados quantificáveis a partir da fonte estudada é a

procedência geográfica dos imigrantes. Para isso, foram priorizados os dados sobre

a localidade de origem dos pais das crianças batizadas. Cada localidade foi reduzida

à grande região geográfica, conforme a divisão administrativa vigente no ex-Império

Russo. Finalmente, cada indivíduo foi atribuído a uma das 5 principais regiões que

constavam nas atas de batismos: Bessarábia (território dividido hoje entre Romênia,

Moldova e Ucrânia), Volínia (pertencente à Polônia após a Revolução bolchevique),

Bukovina (pertencente à Romênia após a Revolução bolchevique), Lituânia e Rússia

(“Grande Rússia”, tradicionalmente compreendida como territórios que coincidem ao

mapa atual da Rússia, sem o Cáucaso, incluindo o leste da Ucrânia e a

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

20

5646

62

124140

103

162

107

144

296283

207

153

101117

74

134

116

182

128

100

5868

55

34 40 40 34 32

0

50

100

150

200

250

300

350

192719281929193019311932193319341935193619371938193919401941194219431944194519461947

Núm

erototaldeba

-smosre

alizad

os

Ano

ParóquiaSan5ssimaTrindade

ParóquiaSãoNicolau

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Bielorrússia). Esses procedimentos resultaram em generalizações demonstradas

nos gráficos 3 e 4.

Gráfico 3. Relação da região de origem dos pais dos batizados na paróquia ortodoxa russa São Nicolau, São Paulo. 1928-1947. Fonte: Atas de registro de batismo da paróquia ortodoxa russa São Nicolau.

Bessarábia78%

Volínia/Polônia9%

Lituânia0%

Rússia9%

Bukovina/Romênia1%

Outros3%

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Gráfico 4. Relação da região de origem dos pais dos batizados na paróquia

Santíssima Trindade de Vila Alpina, São Paulo. Anos 1939-1943. Em %. Fonte: Atas de registro de batismos da paróquia ortodoxa russa Santíssima

Trindade.

As duas figuras certificam que no período de 1927 a 1943 a maioria das

crianças batizadas nas igrejas ortodoxas russas eram filhos de pais oriundos da

Bessarábia (cerca de 70% de todas as crianças batizadas). Outras regiões na

fronteira oeste do antigo Império Russo também são representadas nos gráficos:

Volínia (território da Polônia após a Primeira Guerra Mundial), Bukovina (território da

Romênia), Galícia (dividida entre o Império Russo, o Império Austro-Húngaro e o

Reino da Polônia). Os imigrantes oriundos do principal território russo não eram

comparativamente numerosos. Desses, cerca da metade eram pessoas de origem

camponesa; outros eram provenientes de camadas urbanas das pequenas cidades

do sul da Rússia ou dos pequenos centros urbanos do interior do país. Algumas

poucas famílias eram originárias de camadas privilegiadas no regime czarista e dos

centros administrativos, como Moscou e São Petersburgo.

Bessarabia70%

Volínia6%

Galicia1%

Lituânia4%

Rússia1%

RegiãodeKiev2%

Bukovina2%

n/i5%

Outros5%

Brasileiros4%

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5. Interpretando os dados: uma versão diferente sobre a origem e o perfil dos imigrantes russos em São Paulo O descobrimento das regiões de procedência dos imigrantes russos

pesquisados foi um marco imprescindível para todo o andamento da pesquisa.

Primeiro, porque nenhuma outra fonte existente poderia revelar informações com

tanta precisão, quanto as atas de batismos, muitas das quais traziam até os nomes

dos vilarejos de origem dos indivíduos. Segundo, porque no contexto do momento

histórico em que a Rússia se encontrava nas primeiras décadas do século XX, a

origem geográfica dos indivíduos estava fortemente correlata com a sua origem

social. Em outras palavras, fazendo cruzamentos com outras fontes, é possível

estimar à qual camada social pertencia a maioria desses imigrantes russos que se

encontravam em São Paulo no final dos anos 1920 e ao longo da década de 1930.

Evidentemente, as deficiências dos registros de batismos como fonte de dados

qualitativa, discutidas acima, não permitem a elaboração de respostas precisas. Mas

a hipótese que eles permitem formular vem sendo alimentada e fortalecida por meio

de outras fontes de dados.

Como vimos, a maior parte das famílias atendidas pela Igreja Ortodoxa Russa

em São Paulo provinha dos territórios localizados na fronteira oeste do antigo

Império Russo. Toda a faixa da fronteira oeste do Império Russo com seus vizinhos

europeus sempre foi alvo de muitas disputas territoriais. Isso determinou uma

grande heterogeneidade das populações que viviam nesses territórios multiétnicos e

multinacionais. O historiador e sociólogo russo Teodor Shanin chama as fronteiras

oeste do ex-Império Russo de “periferias com um grande potencial revolucionário”

(SHANIN, 1997, p. 122). Sendo em sua maioria territórios incorporados ao Império

Russo ao longo do século XIX, as populações locais, não-russas, sofriam

repressões e discriminações por parte da administração czarista como parte das

políticas de “russificação” das fronteiras, especialmente após a ressureição da

Polônia nos anos 1830-1831. Com o crescimento do movimento revolucionário na

Rússia no começo do século XX, as elites intelectuais e os cidadãos comuns dessas

regiões almejavam uma oposição real ao governo do czar, motivados pelos

movimentos emancipatórios, tanto nacionais, quanto econômicos. Por sua vez, a

resistência dessas periferias era respondida por maior fortalecimento de

discriminações e de controle por parte do governo do czar. Essa tensão social fez

com que os movimentos revolucionários fossem muito mais eficazes nesses

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territórios, o que ocasionou uma rápida emancipação nacional em algumas regiões

após a tomada do poder pelos bolcheviques em 1917. Porém, a independência

trouxera mais incertezas políticas e econômicas, que se traduziam em rápida

deterioração das condições materiais de vida dos indivíduos, principalmente, das

populações russas, alocadas havia algumas gerações nesses locais, que passaram

a sofrer represálias econômicas e nacionais por parte dos novos governantes. Por

essa razão, a emigração para o Brasil foi uma estratégia oportuna de sobrevivência

para essa população, que vinha sendo alvo de propagandas dos agentes brasileiros

de imigração.

Conforme os dados apresentados acima, o maior número de famílias veio da

Bessarábia. Os dados do censo, realizado em 1897 ainda no Império Russo,

mostram que a Província da Bessarábia contava com 1 933 436 habitantes, entre

quais apenas 304 182, ou seja, cerca de 15%, residiam nas cidades (HISTORIA,

2002). Em outras palavras, a Bessarábia era uma região predominantemente rural.

Além disso, até a queda da monarquia russa, em fevereiro de 1917, a Bessarábia

fazia parte do assentamento judeu (territórios, nos quais os judeus do Império Russo

podiam residir legalmente - proibidos de se fixar na zona rural, habitavam nas

pequenas cidades (BLAY, 2013, p. 61)). O censo de 1897 mostrou que quase 12 %

da população da província eram judeus. Vale apontar que, além dos imigrantes

russos, entre cerca de 29 000 imigrantes da Bessarábia que chegaram ao Brasil no

período de 1920 a 1927 (RUSEISHVILI, 2016, p. 110-111), havia também um

número expressivo de judeus (BLAY, op.cit., p. 61).

Tendo em vista o contexto social, político e econômico nessas periferias do

ex-Império Russo no momento da emigração coletiva, é possível supor que aqueles

imigrantes que constam nos registros de batismos da Igreja Ortodoxa Russa em São

Paulo pertenciam às camadas dos pequenos proprietários rurais e camponeses.

Todas essas revelações que a análise das atas de batismos trouxe à

pesquisa dialogaram com mais um fenômeno, apontado por outras fontes

documentais pesquisadas. Os documentos impressos produzidos pela comunidade

russa ao longo da primeira metade do século XX em São Paulo projetam uma

imagem da comunidade como um produto de esforço coletivo de imigrantes

políticos, refugiados do regime bolchevique, oriundos das camadas urbanas e

pertencentes às classes de “intelligentsia”, ou seja, camadas com alto nível de

formação e capacidade de produção intelectual. Enquanto isso, os registros

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paroquiais transmitem um retrato social diferente. Visivelmente, a maioria dos

imigrantes russos em São Paulo não eram refugiados solitários, mas eram famílias

extensas, originárias do campo ou de pequenos vilarejos, vindos ao Brasil não em

busca de um refúgio, mas em busca de melhores oportunidades de vida.

A convivência desses dois grupos de imigrantes muito diferentes em suas

origens, motivações e estratégias de inserção no novo país de residência resultou

em uma estratificação intensa, muito bem estampada nas atas de batismos da Igreja

Ortodoxa. É preciso lembrar que a igreja na Rússia sempre foi uma instituição que

exercia forte influência sobre as camadas populares. O próprio sacerdote possuía

um grande prestígio na comunidade e na paróquia e era formador de opinião e uma

referência para os paroquianos. Assim, por meio das atas de registros paroquiais, a

minoria, formada por imigrantes de camadas privilegiadas na Rússia pré-soviética,

aliados a alguns sacerdotes da Igreja Ortodoxa Russa em São Paulo, transmitia e

recriava no solo brasileiro a antiga ordem de dominação sobre uma maioria

silenciosa. Foi justamente no universo da convivência na igreja que as antigas

relações de estratificação e hierarquias sociais se reativavam, embora já tendo sido

niveladas na prática pela sua condição imigratória. Dessa maneira, os batizados não

eram apenas filhos nascidos no Brasil de imigrantes vindos da Rússia – para a

comunidade eles continuavam sendo filhos dos “camponeses de Bessarábia”, do

“nobre hereditário”, do “Coronel dos guardas do regimento dos couraceiros da Sua

Majestade Imperatriz Maria Fedorovna” ou da “viúva do general”.

Nesse caso, os registros paroquiais se revelaram como uma fonte qualitativa

de um valor imprescindível para a pesquisa, tendo oferecido um rico material, não

apenas sobre a origem dos imigrantes russos em São Paulo, mas também sobre as

formas de estratificação social intracomunitária praticadas na “colônia russa” em São

Paulo nesse período.

6. Traçando outros caminhos: potencialidades dos registros de batismos para aprofundamento dos conhecimentos sobre os imigrantes russos em São Paulo na primeira metade do século XX Conforme exposto acima, as escolhas metodológicas quanto à sistematização

dos dados contidos nos registros paroquiais de batismos foram motivadas pelo

estágio inicial dos conhecimentos sobre o objeto da pesquisa, assim como pelo

cronograma restrito, estipulado para a realização de todo o projeto de doutorado.

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Essas escolhas metodológicas ocasionaram algumas falhas nos dados obtidos, que

referi acima. Algumas delas poderiam ser evitadas (ou poderão ser consertadas)

adotando-se outra metodologia de sistematização. Por exemplo, mencionei acima

que a falta de informação sobre a taxa de natalidade entre diferentes grupos de

imigrantes russos pode ter distorcido algumas interpretações sobre o número total

dos imigrantes atendidos pelas paróquias ortodoxas russas. Isso porque na

metodologia adotada não foram consideradas famílias, mas apenas casos concretos

de batismos. Assim, um pai que batizou vários filhos nos anos diferentes entrou na

contagem de indivíduos atendidos pela paróquia mais de uma vez. Essa distorção

poderia ser revertida por meio da criação de um banco de dados nominativos

informatizado, que consideraria nome e sobrenome de cada indivíduo. Fazendo-se

um cruzamento nominativo, outros dados relevantes podem ser produzidos, como,

por exemplo, o número médio de filhos por família dependendo de sua região de

origem; o movimento migratório dos indivíduos entre as duas paróquias ortodoxas

na cidade, assim como as trajetórias de migração das famílias das colônias

agrícolas no interior do estado para a cidade de São Paulo. Além disso, uma base

de dados nominativa poderá sugerir caminhos de abordagem de uma problemática

adjacente, a dos imigrantes russos nas colônias agrícolas. Cruzando-se os nomes

dos indivíduos que constam nas atas de batismos com outros documentos

relacionados à permanência e às atividades desses imigrantes no interior do estado,

é possível traçar um perfil socioeconômico e cultural (principalmente no que se

refere à mudança/persistência das práticas religiosas) dos imigrantes russos

encaminhados para as lavouras agrícolas – uma população ainda pouco

investigada.

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