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ISSN 1676-1995

R454 Revista Tamoios. – Ano 1, n.1 (Jan/ Jun 2005) -

Rio de Janeiro : UERJ, FFP, Departamento de Geografia :

On line –

v.

Semestral.

1. Geografia - Estudos e ensino - Periódicos. I. Universidade do Esta-do do Rio de Janeiro. Faculdade de Formação de Professores. De-partamento de Geografia. II. Universidade do Estado do Rio de Ja-neiro. Núcleo de Apoio a Projetos de Extensão.

CDU 91(05)

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REITOR Nivaldo Nunes de Almeida VICE-REITOR Ronaldo Martins Lauria SUB-REITORA DE GRADUAÇÃO Raquel Marques Villardi SUB-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA Albanita Viana de Oliveira SUB-REITOR DE EXTENSÃO E CULTURA Maria Georgina Muniz Washington CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES Maricélia Bispo FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES – SÃO GONÇALO Claudio Barbosa da Costa DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA Charlles da França Antunes CONSELHO CIENTÍFICO Ana Clara Torres Ribeiro (IPUR / UFRJ) Antonio Thomaz Junior (UNESP— Presidente Prudente) Carlos Walter Porto Gonçalvez (IGEO / UFF) Julia Adão Bernardes (IGEO / UFRJ) Nelson Ferreira Fernandes (IGEO / UFRJ) Ruy Moreira (IGEO/UFF) Sandra Lencione (FFLCH— GEO / USP)

CONSELHO EDITORIAL Ana Valéria Freire Allemão Bertolino (DGEO / UERJ / FFP) Carla Maciel Salgado (DGEO / UERJ / FFP) Floriano José Godinho de Oliveira (DGEO / UERJ /FFP) Luiz Carlos Bertolino (DGEO / UERJ / FFP) Paulo Roberto Raposo Alantejano (DGEO / UERJ / FFP) CORPO EDITORIAL José Antonio Baptista Neto (DGEO-FFP-UERJ) Eduardo Karol (DGEO / UERJ / FFP) Editoras-chefe: Catia Antonia da Silva (DGEO-FFP-UERJ) Désirée Guichard Freire (DGEO-FFP-UERJ) Tradução e revisão Keilla da Fonseca Casimiro Arte da capa, Programação visual e diagramação Cássia Ribeiro

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SUMÁRIO

Editorial 04

Artigos

♦ A distribuição dos objetos geográficos e as suas representações espaciais

Andrelino de Oliveira Campos 06

♦ Mobilidade Intrametropolitana no Rio de Janeiro

Antonio de Ponte Jardim 18

♦ Por uma Geografia do Trabalho (Reflexões Preliminares)

Antonio Thomaz Júnior 33

♦Secularização e sacralização, desencanto e missão: questões atuais da qualificação do trabalhador na constru-ção do Brasil moderno

Catia Antonia da Silva 52

♦ Dialogando com os obsessivos do tempo

Guilherme Ribeiro 60

♦ Breves considerações sobre organizações não-governamentais

Eduardo Karol 67

♦ Crise e/ou ruptura da modernidade: questionamentos sobre estudos científicos e representação do mundo.

Luiz Alberto dos Reis Gonçalves 75

♦ A geografia e histórias em quadrinhos

Luiz Guilherme da Silva Coelho 84

♦ Presente e passado: a construção da territorialidade afro-brasileira e indígena na cidade de Goiás - GO

Rosemberg Ferracini 94

Sentido das coisas

♦ Formação do pesquisador: da curiosidade à criação

Ana Clara Torres Ribeiro 104

♦ A História da Geografia no Brasil

Manoel Fernandes de Sousa Neto 111

Opinião

♦ Reforma curricular do Departamento de Geografia na Faculdade de Formação de Professores da UERJ

Marcos Antônio Campos Couto 115

Monografias – Departamento de Geografia da FFP da UERJ 119

♦ Normas da Publicação 120

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EDITORIAL

Esta edição da Tamoios é especial. É a versão on-line, composta por nove

artigos, em que autores estimulam a reflexão sobre o fazer geográfico, o papel da ciência na compreensão social e espacial do mundo e as mudanças sócio-espaciais. Andrelino de Oliveira Campos faz uma releitura da teoria da Geografia, trabalhando com importantes categorias e conceitos fundamentais na formação do geógrafo-professor; Antonio Thomaz Júnior propõe um desafio: estudo onto-lógico da Geografia do Trabalho. Guilherme Ribeiro criou um texto desafiador, analisando os limites do historicismo. Catia Antonia da Silva traz para o debate geográfico a releitura de Weber à luz da análise do sentido das ações na constru-ção do Brasil moderno; e de Luiz Alberto dos Reis Gonçalves analisa a relação entre ciência e o projeto moderno, mediado pela representação do mundo. Estes autores buscam trazer a tona desafios analíticos sobre a construção do conheci-mento, o papel da Geografia, a prática de intelectuais, bem como desejam rom-per barreiras analíticas sobre o tratamento de novas problemáticas sócio-espaciais. O artigo de Eduardo Karol estimula a reflexão acerca do papel social das ONGs no contexto espacial da realidade brasileira. Antonio de Ponte Jardim apresenta processos importantes da urbanização da metrópole do Rio de Janeiro, referentes às tendências da mobilidade intra-metropolitana. Já o artigo de Luís Guilherme da Silva Coelho apresenta interessante análise sobre a relação entre espaço e cultura, mediada pela análise da produção-circulação-consumo das re-vistas em quadrinhos. Rosemberg Ferracini analisa, em seu artigo, a territoriali-dade afro-brasileira na construção de uma cidade histórica no coração do Brasil: a cidade de Goiás.

Em Sentido das Coisas há dois textos, Ana Clara Torres Ribeiro analisa de forma atualizada e profunda os desafios da curiosidade e da criação na forma-ção do pesquisador em contextos da educação comprometida com o humanismo e o pensamento crítico. Manoel Fernandes de Souza Neto comenta sobre a História da Geografia no Brasil, colocando em dúvida a historicidade contada pelos docu-mentos oficiais., No espaço Opinião, Marcos Antônio Campos Couto realiza, de-talhadamente, uma importante análise sobre o processo de reforma curricular do curso de Geografia no nosso Departamento, articulando-o à discussão geral do contexto brasileiro.

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A distribuição dos objetos geográficos e as suas representações espaciais

Andrelino de Oliveira Campos*

[email protected] Resumo

A Geografia, enquanto ciência, vive dentro de eternos conflitos internalizados no seu fazer. Pensando nesta perspectiva, entendemos que todos têm a responsabilidade de buscar novas saí-das. Entretanto, estas novas saídas estejam nas concepções que não foram bem compreendidas no ensino e nas pesquisas geográficas. É com este sentido que, apoiado sobretudo na obra de Mil-ton Santos, retomamos os estudos dentro do campo da metodologia geográfica como uma das pos-sibilidades de leitura do real. Neste sentido, entender a produção do espaço geográfico a partir da acepção concreto-abstrato de Santos, tendo analisando quatro categorias e conceitos que são in-dissociáveis: processo, estrutura, função e a forma. Contribuindo para o entendimento do movimen-to que o espaço e o tempo constroem a existência dos objetos geográficos.

Palavras-chave: Metodologia da Geografia; processo; estrutura; função; forma.

Abstract The Geography, as a science, lives inside of eternal conflicts inner its create. Thinking about this per-spective, we perceive that all has the responsibility of looking for new way out. Meanwhile, these way out news should be in the conceptions that, for one reason or other, were not well compre-hended along its history. With this meaning, especially supported in Milton Santos, which is retaken in studies of the field of the methodology of Geography as one possibility of the real reading. In this meaning, understand the production of the geographical space, from its acception real abstract hav-ing as an internal logical the four nun-distinctive moments: process, structure, function and form, as the way to understanding the movement of that space and time built in the existence of the geo-graphical objects.

Key words: methodology of Geography; process; structure; function; form.

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Introdução

Um debate que envolve a Geografia Humana e a Geografia Física deveria ser bem vindo em nossa disciplina. Entretanto, as dificuldades, ao longo do desenvolvimento da Geografia como disci-plina acadêmica, sobretudo logo após a Segunda Grande Guerra Mundial, em torno da Geografia Teórico-Quantitativa, afastou de vez as duas correntes, abrindo verdadeiros abismos teóricos. As linhas de pesquisas dificilmente estão aliadas, em função dos objetos e objetivos não se interagirem por não terem princípios comuns. Por outro lado, reafirmamos, pelo menos em decorrência dos dis-cursos, que há necessidades prementes de um esforço teórico e metodológico para superar a dico-tomia que nos jogam em campos distintos.

Nestes novos tempos, onde a valorização ambiental se faz cada vez mais presente na socie-dade, acreditamos que temos uma oportunidade impar de provocar um debate, no qual, possamos superar teoricamente algumas dessas dificuldades da relação entre Geografia Física e Geografia Humana. Desta forma, o espaço social através dos objetos geográficos (naturais ou artificiais, no dizer de M. Santos), juntamente com as representações desses objetos possam dar a unidade que tanto necessitamos.

O objetivo deste ensaio é continuar a provocação teórico-metodológica em torno de vencer a dubiedade de entendimento da sociedade, onde haja espaços para que possamos vê-la como nosso único objeto de estudo, apesar dos diferentes pontos de vistas. Porém, teremos que alertar ao leitor, que no âmbito de um ensaio, não há espaço para abranger todas necessidades de esclarecimentos das categorias envolvidas. Portanto, deliberadamente, optamos em trabalhar ao nível das represen-tações geográficas (especialmente esta) apenas com a forma e uma pequena discussão sobre es-trutura.

A primeira parte deste ensaio tratará do espaço social no contexto das diversas acepções de totalidades da sociedade. Nesta parte, estaremos discutindo o espaço social sobre a ótica de diver-sos autores, mas, sobretudo, M. Santos, David Harvey (1980, 1993), Alain Lipietz (1988), dentre ou-tros. Para o debate sobre totalidade, a principal fundamentação será construída tendo como base Karel Kosik (1976). Essa discussão tem muita importância, pois permite uma visão relacional da so-ciedade, complementando aquilo que se quer do espaço social.

A segunda parte nos ocuparemos do entendimento dos objetos geográficos através das for-mas e das estruturas, funções e processos espaciais, os conceitos defendidos por M. Santos, Jean-Paul Sartre, Henri Lefebvre, dentre outros autores.

A construção do espaço social como parte da totalidade

Pode-se pensar de várias maneiras o espaço, e é basicamente dele que se deve formular uma con-cepção correta quando se deseja compreender o fenômeno urbano e a sociedade em geral (HARVEY, 1980, p. 4). Entretanto, esta clareza, em quase todas escolas do pensamento geográfico, fica restringida pelo sim-ples fato de que há uma “naturalização” do conceito, como bem demonstra o autor quando afirma que: se tomarmos o espaço como absoluto, ele se torna uma “coisa em si mesma”1 com uma existência indepen-dente da matéria (p. 4).

Mesmo em sua concepção social, a discussão é muito complexa, pois, ao longo da história, vários foram os entendimentos legados pelas várias escolas geográficas, como aponta Corrêa (1995, pp.15-35). Da Geografia tradicional ⎯ doravante denominada clássica ⎯ à geografia crítica, a importância e as aborda-gens se multiplicaram, deixando um rastro de dúvidas, onde os mais diferentes autores de diferentes mati-zes buscam jogar luz para torná-lo, cada vez mais, explícito. Neste sentido, Corrêa, apoiado em Hartshor-ne, destaca que há uma associação entre a concepção de espaço absoluto e a visão idiográfica da realida-de, na qual em uma dada área estabelece-se uma combinação única de fenômenos naturais e sociais. É co-mo se cada porção de espaço absoluto fosse o locus de uma combinação única (unicidade) em relação à qual não se poderia conceber generalizações, nenhuma lei universal precisa ser considerada senão a lei geral da geografia de que todas as suas áreas são únicas (p. 19).

O espaço, em uma abordagem crítica, é considerado como uma instância da sociedade, ao mesmo título que a instância econômica e a instância cultural-ideológica (Santos, 1988, p. 1). Para

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Corrêa, apoiado em Lefebvre, o espaço é entendido como espaço social, vivido, em estreita correla-ção com a prática social. Esse não deve ser visto como espaço absoluto, vazio e puro, lugar por ex-celência dos números e das proporções, nem como um produto da sociedade, ponto de reunião dos objetos produzidos2, o conjunto das coisas que ocupam e de seus subconjuntos, efetuado, objetiva-do, portanto funcional (CORRÊA, 1995, p. 25).

Para Alain Lipietz, o espaço social, diferente da concepção lefebvriana, é essencialmente eco-nômico. Segundo ele (LIPIETZ, 1988, p.23), “o espaço social ou econômico é um “concreto-do-pensamento”, que reproduz no pensamento a realidade social na sua dimensão espacial.3 Avalia ainda o autor que o espaço socioeconômico concreto pode ser analisado em termos de articulação das espacialidades próprias às relações definidas nas diferentes instâncias dos diferentes modos de produção presentes na formação social. É preciso compreender bem que o espaço socioeconômico concreto se apresenta, ao mesmo tempo, como articulação dos espaços (econômico e jurídico), co-mo um produto, um reflexo da articulação das relações sociais e, enquanto espaço concreto já dado, como um espaço um constrangimento objetivo que se impõe ao desenvolvimento dessas relações.

A sociedade recria seu espaço sobre a base de um espaço concreto, sempre já dado, herda-do do passado (Ibid., p. 24-25). Essa concepção leva o autor a afirmar que “…a sociedade recria seu espaço sobre a base de um espaço concreto, sempre já dado, herdado do passado” (Ibid., p.25). Neste sentido, Lipietz compreende que toda relação, toda prática social se inscreve em uma totalidade concreta sempre já dada, que a determina como sua condição de existência, condição que, à medida que ela é material, tem uma dimensão espacial. Podemos dizer que o espaço social é um “momento” da reprodução social e é neste sentido que o espaço social em si é um reflexo das relações sociais. Este espaço em si é fundamento objetivo do espaço empirista, coespacial a si, onde se “desenrolam”, se “inscrevem”, se “desenvolvem” etc. as relações sociais (Ibid., p. 26).

Parece-nos que o autor não leva em consideração outros elementos que perpassam as rela-ções entre sociedade e espaço, complicando-se ao pensar na possibilidade apenas da herança re-cebida, como se fora uma naturalização do espaço. Esse se torna concreto (dotado de materialida-de) sem que haja uma mediação da abstração dessa categoria e o mundo das coisas.

Contudo, Harvey (1980) se insurge contra esta perspectiva economicista do espaço, que o transforma diretamente em concreto-do-pensamento, como pensa Lipietz. Harvey observa que o espaço gerou ou uma estrutura regional (por um processo que deve ser suposto mais do que enten-dido) para qual poderiam ser aplicadas determinadas estruturas imaginadas para o nível nacional, ou então gerou meramente custos de transporte que poderiam ser substituídos, em lugar de outros envolvidos no processo de produção. O espaço era simplesmente uma variável numa estrutura con-ceitual imaginada primitivamente para análise econômica a-espacial. Os cientistas e economistas regionais ainda demonstram predileção em considerar a economia e desconhecer o espaço (HARVEY, 1980, p. 16).

Como a concepção do espaço da sociedade necessita de intermediação entre as categorias sociológicas e espaciais, Harvey propõe que entendamos que a teoria geral da cidade deva relacio-nar de algum modo os processos sociais à forma espacial que ela assume (HARVEY, 1980, p. 14). Neste sentido, o autor pensa que se justifica a construção de uma ponte entre aqueles que possuem a imaginação sociológica, e os imbuídos de uma consciência espacial ou imagina-ção geográfica podem ser úteis à compreensão do espaço social. Assim, apoiado em Wright C. Mills, Harvey define imaginação sociológica como alguma coisa que possibilita seu possuidor a en-tender o mais amplo cenário histórico em termos de seu significado para a vida interna e a atividade externa de uma variedade de indivíduos.

O primeiro fruto dessa imaginação é a idéia de que o indivíduo pode entender sua própria ex-periência e medir seu próprio destino, somente localizando a si mesmo dentro de seu tempo; de que ele pode conhecer suas próprias possibilidades na vida, somente se tornando consciente das de todos os indivíduos nas suas circunstâncias. Por trás do uso da imaginação sociológica há sempre a urgência em conhecer o significado histórico e social do indivíduo na sociedade e no período no qual ele tem sua existência e seu ser. Esse caráter individual e ao mesmo tempo relacional da imagina-ção sociológica, nos coloca frente a uma situação abstrata, possibilitando o seu entendimento no campo da inter-subjetividade criadora de símbolos e fixadores de valores ao longo do tempo. A di-mensão espacial existente na consciência sociológica, o autor defende que não há como contrastar a imaginação sociológica à consciência espacial (HARVEY, 1980, p. 14).

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Assim, a imaginação geográfica, segundo Harvey, habilita o indivíduo a reconhecer o papel do espaço e do lugar em sua própria biografia, a relacionar-se aos espaços que ele vê ao seu entorno, e a reconhecer como as transações são afetadas pelo espaço que os separa. Isto conduz a reco-nhecer o relacionamento que existe entre ele e sua vizinhança, seu território. Isto leva a julgar a im-portância dos acontecimentos em outros lugares, a encarar e a usar, criativamente, o espaço, e a-preciar o significado das formas espaciais criadas pelos outros. O autor arremata, de maneira muito interessante, apontando que a distinção entre as imaginações geográficas e sociológicas é artificial quando a relacionamos aos problemas da cidade, sendo bastante real ao examinarmos os modos através dos quais pensamos a cidade (HARVEY, 1980, p.15).

As imaginações geográficas e sociológicas podem ser percebidas quando se aponta o espaço como lócus da reprodução das relações sociais de produção, isto é, reprodução da sociedade, base-ada fundamentalmente na formação sócio-espacial, onde a sociedade se torna concreta através de seu espaço, do espaço que produz. Essa concreticidade referida pelos autores encontra eco na con-cepção realista de espaço em Santos (1996, p. 6) quando diz que: o espaço pode ser definido como um conjunto indissociável de sistema de objetos (instrumento do trabalho) e de sistema de ações (práticas sociais)4. Modos de produção e espaço geográfico evoluem juntos, movidos por uma lógica unitária. Observa Harvey, que cada forma de atividade social define seu espaço. Daí, termos o con-ceito geográfico de espaço socioeconômico, o conceito espaço pessoal dos psicólogos e antropólo-gos. A articulação de uma filosofia adequada de espaço social é uma necessidade primária se dese-jamos entender a forma espacial da cidade e, já que, somente podemos entender o espaço social relacionando-o a alguma atividade social (HARVEY,1980, p.22).

Ao considerar o espaço social como resultado de uma atividade, abrindo maior possibilidade do que aquela apresentada por Lipietz, Harvey não incorpora a paisagem em sua análise. Assim, transforma a problemática, trocando apenas a flecha de direção. Ao invés de aceitar a determinação ambiental pro-posta pelos geógrafos clássicos ou a determinação econômica, ele troca pela determinação da atividade, considerando a única capaz de possibilitar a construção do espaço social.

A construção do espaço social, então, necessita ser compreendida de maneira mais “holística”, para usar uma expressão comum aos ambientalistas, onde um dado espaço urbano e a rede urbana pos-sam ser explicados e compreendidos dialeticamente: um nível de análise é aquele referente ao espaço ou rede em si, pois, é justamente nesta dimensão que podemos encontrar as diferenças que vão apontar que cidade ou rede “A” é diferente de “B”. Porém, se pensamos em esgotar as possibilidades nesta di-mensão, estaremos uma vez mais, como explica Kosik (1976), tomando a coisa pela coisa, não levando em consideração a sua interatividade. Portanto, será necessário para que possamos obter uma análise mais coerente com os propósitos da sociedade, considerar o espaço e a rede urbana como parte de uma totalidade maior, sem desvincular a possibilidade deles serem entendidos em suas particularidades, mas, colocando-os sobre determinação da totalidade maior: a sociedade.

A contribuição de M. L. de Souza (1995, 1997) torna-se importante, na medida que ele entende que o espaço social é, primeiramente, ou em sua dimensão material e objetiva um produto da transfor-mação da natureza (do espaço natural: solo, rios, montanhas, as cavernas etc.) pelo trabalho social5. Pal-co das relações sociais, o espaço é, portanto, um palco verdadeiramente construído, modelado, embora um grau muito variado de intervenção e alteração pelo homem, das mínimas modificações introduzidas por uma sociedade de caçadores e coletores (impactos ambientais fracos) até um “ambiente construído” e altamente artificial como uma grande metrópole contemporânea (fortíssimo impacto sobre o ambiente natural). Não é um espaço abstrato, mas um concreto, um espaço geográfico criado nos marcos de uma determinada sociedade (SOUZA, 1997, p.22).

Ainda segundo o autor, é preciso compreender o espaço para além de sua dimensão objetiva, pois ela também, ao longo da análise, limita o seu entendimento. Postula o autor, ao tecer outras considera-ções sobre o conceito em tela que, como qualquer realidade social, o espaço não é uma instância apenas objetiva; sua objetividade é também lida de forma (inter) subjetiva, sua materialidade é dotada de signifi-cações específicas para cada indivíduo (subjetivamente), mas que são, também, em certa medida, com-partilhadas por vários indivíduos ¾ intersubjetividade. Esta é o palco material e objetivo das relações sociais, o espaço, no contexto da experiência de sujeitos cognoscentes organizados em sociedade, é certa medida, “construído” (inter)subjetivamente: bairros, região, “terra natal” e pátria (SOUZA, 1997, p.22-23)

Das três concepções escolhidas de espaço social para esta discussão, duas são fundamentais: 1. a “atividade” que, de certa maneira, é o fator determinante do espaço social em Harvey, e 2. o fator eco-nômico que determina a concepção de espaço construído. Para Lipietz, as duas concepções fornecem um novo sentido à concepção material do espaço social. Para atender essa necessidade teórica, Souza

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pensa que um espaço natural, ainda que não propriamente transformado por um dado grupo, pode ser já considerado “social” a partir do momento em que, na mira de um projeto de colonização, ou pelo contrá-rio, protegido como reserva biológica, parque natural etc., foi já apropriado por um projeto social, passan-do a ser objeto de uma leitura determinada e recebendo uma finalidade (e sendo mapeado, enquadrado). Assim, não apenas o trabalho (a atividade), que produz materialmente o espaço social, “socializa” o es-paço natural; as representações deste são, em si, já uma forma de desnaturalização, ao significarem a sua captura pelo imaginário de uma sociedade e uma forma ou um projeto de apropriação (SOUZA, 1997, p.23). Aceitamos a posição do autor, pois elimina tanto a determinação econômica quanto a determinação vista a partir da atividade. Desta maneira, como defende o autor, a construção do espaço social é funda-mentalmente uma questão relacional, onde os objetos geográficos, exteriorizados pelas formas geográfi-cas, ganham funcionalidades de acordo com o interesse e o desenvolvimento técnico de cada sociedade. Por certo, um e outro para se constituírem parte do real depende do tempo (processo), combinam e formam a estrutura. Neste sentido, grosso modo, a reunião desses elementos forma uma unidade singu-lar: a totalidade.

O espaço social e o debate sobre as formas geográficas

O espaço social constituído a partir de um sistema relacional, onde as materialidades são for-madas pelos objetos geográficos que constituem em totalidades diversas, como espaço urbano, es-paço agrário, que podem, ao mesmo tempo ser subdivididas em totalidades menores, como uma cidade, um bairro, uma reserva florestal, um campo de trigo, de soja etc. Os objetos geográficos en-tendidos aqui, segundo a percepção de Milton Santos, como os elementos formais da estruturas, constituem a forma-conteúdo pelos quais a sociedade ordenará o espaço, dando-lhe significado ao qual interessa aos diferentes segmentos sociais (SANTOS, 1988, p.50).

Precisamos então, tecer algumas considerações sobre a categoria principal que englobam todas as outras: a totalidade, com a qual poderemos entender melhor a distribuição desses objetos geográficos e seus desdobramentos no espaço social.

Quando se pensa, por exemplo, em objetos geográficos urbanos, antes, estamos nos referin-do aos objetos que “naturalizamos” como pertencentes à cidade, mas que são também distribuídos no espaço agrário. Neste sentido, Henri Lefebvre considera que o tecido urbano, não designa, de maneira restrita, o domínio edificado nas cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da cidade sobre o campo. Nessa acepção, uma segunda residência, uma rodovia, um supermerca-do em pleno campo, fazem parte do tecido urbano. Mais ou menos denso, mais ou menos espesso e ativo, ele poupa somente as regiões estagnadas ou arruinadas, devotadas à “natureza”. Enquanto o aspecto do processo global (industrialização e/ou urbanização) segue seu curso, a grande cidade explodiu, dando lugar a duvidosas excrescências: subúrbios, conjuntos residências ou complexos industriais, pequenos aglomerados, satélites pouco diferentes de burgos urbanizados (LEFEBVRE, 1999, p. 17). Estas são, sem dúvidas, dimensões diferentes da totalidade.

Escreve Karel Kosik, que a dialética trata da “coisa em si”. Mas a “coisa em si” não se mani-festa imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um détour. Por este motivo, o pensamento dialético distingue entre re-presentação e conceito da coisa (KOSIK,1976, p.9). Como a coisa só tem sua representação no real pela qual distinguimos a sua aparência, não podemos a partir dela entender os processos que lhe dão sentido. Para o autor, a realidade se apresenta como o campo em que se exercita a sua ativida-de prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. No trato-utilitário com as coisas, o indivíduo em questão cria as suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade (Ibid., p.10).

Todavia, ressalta o autor, a existência do “real” ⎯ que reproduzem imediatamente na mente daqueles que realizam uma determinada praxis histórica, como conjunto de representações ou cate-gorias de “pensamento comum” ⎯ é diferente e muitas vezes absolutamente contraditória com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com seu núcleo interno essencial e o seu con-ceito correspondente. Por isso, a praxis utilitária imediata e o senso-comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e a reali-dade. A praxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é praxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes (ou fração delas) e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue (KOSIK, 1976, p.10).

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Devemos, então, ter em conta que os elementos do real são contidos por uma totalidade (LEFEBVRE,1971:162-3), porém não devemos nos ater a sua constatação enquanto aparência, pois essa não revela o seu processo histórico a relação de interdependência onde estão emersas.

A totalidade como uma categoria representa o real, englobando outras partes; outras instân-cias sociais. Do ponto de vista da totalidade, compreende-se a dialética da lei e da causalidade dos fenômenos, da essência interna e dos aspectos fenomênicos da realidade, das partes e do todo, do produto e da produção e assim por diante (KOSIK,1976, p.33-34).

Constatamos na essência da totalidade uma contradição em que resultam os entendimentos distintos do real. Se por um lado, observamos uma diferença fundamental entre a opinião dos que consideram a realidade como uma totalidade concreta, isto é, como um todo estruturado em curso de desenvolvimento e de autocriação (Kosik,1976, p.34), por outro lado, tem-se a posição dos que afirmam que o conhecimento humano pode ou não atingir a “totalidade” dos aspectos e dos fatos, isto é, das propriedades, das coisas, das relações e dos processos da realidade. Neste caso, a reali-dade é entendida como um conjunto de todos os fatos. Como o conhecimento humano não pode jamais, por princípio, abranger todos os fatos ¾ pois sempre é possível acrescentar fatos e aspectos ulteriores ¾ a tese da concreticidade ou da totalidade é considerada uma mística (p.34).

Na realidade, a totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido (p.35).

Neste sentido, apoiado em Santos (1979a), pode-se dizer que a organização do espaço social é parte do discurso do Estado (o qual pode representar um todo estruturado), significando muitas vezes meramente uma fachada científica para operações capitalistas. Pode-se estabelecer, a princí-pio, que essa organização do espaço social, além do significado que ela impõe aos objetos geográfi-cos, altera-os, (re)significando-os, possibilitando então a construção de uma nova visão sobre o es-paço urbano, que entende-se como parte do espaço social. Visto desta maneira, pensa-se que a nova aparência imposta à cidade leva os habitantes a uma praxis diferenciada imposta pelos novos significados que os objetos geográficos adquirem ao longo do tempo.

Qualquer totalidade espacial tem em seus objetos geográficos a sua materialidade a qual po-demos observar a partir de nossas percepções. Na cidade, os prédios, o arruamento, os automóveis e caminhões, os relevos de altitudes positivas ou negativas, os monumentos, e todos os demais ele-mentos que compõem a paisagem pertencem à totalidade imanente do espaço social e em particu-lar os seus desdobramentos, lidos no real como lugar, território etc. O conjunto ou parte desta totali-dade fixa valores, abre acesso ou impede a circulação de indivíduos pelo espaço, como, por exem-plo, as favelas cariocas, que pertencem a uma totalidade. O espaço urbano carioca, por outro lado, representa uma “excrescência” à medida que o acesso, de certa maneira, é restringido de acordo com os códigos e signos difundidos tanto por parte daqueles que tem suas as práticas sociais liga-das a esse espaço, quanto por aqueles que se encontram no entorno, que pensam as favelas se-gundo seus valores e códigos de condutas, ou seja, nos termos, por exemplo, definidos por Harvey por ocasião da imaginação sociológica acima exposta. A restrição aqui não pode ser vista apenas pela forma geográfica através dos objetos que configuram o espaço favelado, mas também pelos valores difundidos por aqueles que não vivem nas favelas. Da mesma maneira, podemos pensar os espaços públicos de uso privado, onde a circulação é excludente. Essa excludência por certo não encontra amparo nas normas que regem a conduta da sociedade, mas tanto os que tentam impedir quanto os impedidos lêem como fronteiras construídas em cima de um imaginário coletivo que foge às normas ou legislação estabelecida.

O jogo entre os objetos geográficos e as suas formas como representações espaciais

A forma espacial da cidade significa [na primeira aproximação conceitual] a localização de objetos, tais como casas, utensílios, rede de transporte etc., e políticas destinadas a afetar os processos sociais que existem na cidade ¾ isto é, as estruturas sociais e as atividades que interligam pessoas, que ligam organizações a pessoas, oportunidades de empregos a trabalhadores ou a pessoas desempregadas, be-neficiárias da assistência social aos serviços correspondentes6 (Harvey,1980, p.39). Entre o “jogo” esta-belecido dos objetos geográficos e suas formas nos dá a dimensão do real, ao qual estamos ligados em

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nossas práticas cotidianas. Neste sentido, conhecendo a forma, apenas pela sua impressão aparente, não atingimos os seus movimentos, mas apenas continuamos com a rigidez do objeto, ou seja, damos apenas com a sua aparência, sem nenhum movimento. Como se sabe que entre a concretude da matéria e a essência da mesma não há possibilidade da ligação direta, então entre ambas são necessárias as intermediações que possam deixar iluminado este movimento para dentro, que é realizado pela forma.

As representações criadas, a partir do objeto, não devem ser a mesma entre os diversos gru-pos sociais presentes em dada sociedade. A diferença se põe de acordo com os valores e os signos fixados, que são atribuídos aos objetos, como os monumentos responsáveis pela fixação de valores culturais, mas que precisam para a sua realização plena a fixação no espaço. Desta maneira, enten-de Jean-Paul Sartre, que ao tentar explicar uma das características da imagem – leitura do real -, pela qual mediamos o real e o seu conceito, o objeto torna-se correlativo de um certo ato sintético, que compreende, entre suas estruturas, um certo saber, uma certa “intenção” ao interpretar o real. A intenção está no centro da consciência: é ela que visa o objeto, isto é, que o constitui pelo que ele é (SARTRE,1996, p. 25). Então, quando a imagem do objeto é levada à consciência e há um reconhe-cimento dele como parte do real, então os valores também são trazidos à tona. Este movimento po-de ser manifestado no campo individual e também na dimensão do coletivo. Tal movimento, segun-do ainda o autor, se caracteriza quando produzo em mim a imagem de igreja, é a igreja que é o ob-jeto de minha consciência atual. Enquanto essa consciência permanecer inalterada, eu poderei mui-to bem dar uma descrição do objeto tal qual ele aparece como imagem para mim, mas não da ima-gem enquanto imagem (enquanto igreja). É preciso recorrer a um novo ato de consciência: é preciso refletir (p.15). Se pudermos entender esta alegoria e estendê-la no sentido de ampliar a compreen-são melhor do espaço social e de suas várias possibilidades, podemos então, pensar que os objetos geográficos ao serem vislumbrados em sua aparente fixidez no espaço não representam ainda o real, mas a aparência do que podemos perceber. Este raciocínio pode ser estendido para todos os objetos geográficos, porque, acreditamos, será a “coisa em si”, mas não deve ser a “coisa verdadei-ra”, ou seja, a essência. Os objetos geográficos são “fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar” (SANTOS,1996b, p.50), porém não podem determinar a sua própria transformação.

Para iluminar o embate entre o objeto e a sua representação (a forma), Sartre, apoiado em Descartes, vai entender que uma consciência reflexiva nos entrega dados absolutamente certos; o homem que, num ato de reflexão, toma consciência de “ter uma imagem” não poderia se enganar. De fato, a confusão é impossível: o que se convencionou chamar “imagem” dá-se imediatamente como tal à reflexão. Mas não se trata aqui de uma revelação metafísica e inefável. Se essas consci-ências se distinguem imediatamente de todas as outras, é porque se apresentam à reflexão com certas marcas, certas características que determinam logo um julgamento, “Eu tenho uma imagem”. O ato de reflexão possui, portanto, um conteúdo imediatamente certo que chamaremos de essência da imagem. Essa essência é a mesma para qualquer homem; a primeira tarefa do pesquisador é explicitá-la, descrevê-la, fixá-la7 (SARTRE,1996, p.15-6).

A discussão que tentamos gerar para compreendermos o objeto em estudo, se apóia em San-tos (1988, 1996a, 1996b, 2001). Uma primeira distinção apontada por ele diz respeito à proposta de alguns autores em separar o objeto das coisas. Enquanto estas são produtos de uma elaboração natural, os objetos seriam o produto de uma elaboração social. As coisas seriam um dom da nature-za e os objetos, um resultado do trabalho (SANTOS, 1996b, p. 52). Porém, Jacques Monod (1974) tem uma opinião reservada sobre essa classificação: “a diferença entre objetos naturais e artificiais aparece sem ambigüidade para todos nós”. É assim que as “rochas, montanhas, rios, e nuvens”, opõem-se a “uma faca, um lenço, um automóvel”, de um lado objetos naturais e de outro lado artefa-tos. Como a natureza é objetiva e não prospectiva, as coisas não podem ter propósito, nem projeto. Mas, ainda, Monod nos pede que analisemos essas idéias para chegarmos à conclusão de que tais julgamentos não são imediatos, nem estritamente objetivos (MONOD apud SANTOS, 1996b, p.52-53).

A imagem e a reflexão sobre a imagem têm a mesma correspondência da natureza objetiva e a prospecção, que, de certa maneira, encontra em Santos o ponto de equilíbrio quando escreve que a classificação mais intuitiva entre objetos e coisas está cada vez mais ligada aos objetos que to-mam o lugar das coisas. No princípio, tudo eram coisas, enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que as próprias coisas, dádivas da natureza, quando utilizadas pelos homens a partir de um conjun-to de intenções sociais, passam, também, a ser objetos. Assim a natureza se transforma em um ver-dadeiro sistema de objetos e não mais em coisas e, ironicamente, é próprio movimento ecológico que completa o processo de desnaturalização da natureza dando a esta um valor (SARTRE, 1996,

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p.53). Assim, Santos concluiu que, o objeto seria aquilo que o homem utiliza em sua vida cotidiana, ultrapassa o quadro doméstico e, aparecendo como utensílio, também constitui um símbolo, um sig-no. Neste sentido, há uma aproximação com Sartre, que lembra que o objeto é tudo aquilo que pode dirigir a nossa consciência (p.54). Ainda segundo Santos, a complexidade dos objetos aparece em dois níveis, como complexidade funcional ou como complexidade estrutural (MOLES ,1971 apud SANTOS, 1996, p.56).

Seria necessário entendermos um pouco mais sobre o objeto no âmbito da Geografia, ou se-ja, o objeto geográfico. Para tanto, continuamos a recorrer à obra de Milton Santos, que nos ensina: para os geógrafos, os objetos são tudo o que existe na superfície da Terra, toda herança da história natural e todo resultado da ação humana que se objetivou. Os objetivos são esse extenso, essa ob-jetividade, isso que se cria fora do homem e se torna instrumento material de sua vida, em ambos os casos uma exterioridade (SANTOS, 1996b. p.59). O autor considera que o espaço dos geógrafos (espaço social) leva em conta todos os objetos existentes numa extensão contínua, todos sem exce-ção, sem isso, cada objeto não faz sentido.

O enfoque geográfico supõe a existência dos objetos como sistema e não apenas como cole-ções: sua utilidade atual, passada, ou futura vem, exatamente, do seu combinado pelos grupos hu-manos que os criam ou que herdaram das gerações anteriores. Seu papel pode ser apenas simbóli-co (como os monumentos erguidos em determinada cidade), mas, geralmente, é também funcional (p.59-60), Um shopping-center, que através dos signos difundidos, acaba sendo um fator restritivo para determinada camada da população, desta feita, torna-se funcional no sentido de que servirá como um fragmentador espacial, onde uns serão mais aceitos pelos valores correlatos aos seus, que são encontrados tanto no interior da própria estrutura comercial, como na forma apresentada pela sua exterioridade. É uma barreira de cunho social, um desdobramento das relações entre clas-ses.

Santos questiona, será mesmo indispensável sair à procura de materialidade a que, com ex-clusividade, definiríamos como objetos geográficos, para bem circunscrever um objeto para a Geo-grafia? O autor acredita que a questão não é ontológica, mas está contextualizada em uma constru-ção epistemológica de um objeto de pensamento, a partir da província da experiência que nos inte-ressa. (SANTOS, 1996b, p. 62)

A partir dos questionamentos de Santos, perguntamos: o objeto geográfico tem a mesma re-presentatividade para todas as sociedades? Por certo, sabemos que não. O amadurecimento tecno-lógico e as intencionalidades demonstraram que cada grupo social poderá entender diferentemente a existência destes objetos, ou seja, a sua representatividade será diferenciada dentro de cada gru-po social, e também de uma sociedade para outra. Contudo, não podemos atribuir esta diferencia-ção com relação à percepção do objeto ao próprio objeto, mas de acordo com a representação do objeto, ou seja, a forma geográfica.

Agora, talvez, seja o momento de trabalharmos no intuito de entendermos objeto em um de-terminado conjunto, individualizando um dado espaço social. Como os fixos (objetos geográficos) permitem ações que modificam o próprio lugar (sistema de ações), e os fixos são resultado direto ou indireto das ações (intencionalidades) e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que, também, se modificam (SANTOS, 1988, 1996a, 1996b).

Os objetos geográficos e as suas formas no contexto do espaço social

Os objetos naturais e os artificiais, pensados inicialmente como coisas que estão fixas em determinado espaço social que têm a sua realização plena no espaço urbano, estão organizados de acordo com o espaço apropriado por cada grupo social. Diz-se que a configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturais existentes em dado país ou numa dada área, e pelos acréscimos que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais. A configuração territorial, ou configuração geográfica tem pois, uma existência material própria, mas a sua existência social, isto é, sua existência real, somente lhe é dada pelo fato das relações sociais (SANTOS,1996b, p.51). O conjunto dos objetos naturais e artificiais, tomados em dado espaço social, nos conduz a pensar em um sistema de objetos interagindo com sistema de ações, resultado da reflexão que podemos fazer

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sobre o sistema de objeto.

Os sistemas de objetos e os sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de obje-tos condicionam a forma (que veremos mais adiante) como se dão as ações, e, de outro lado, o sis-tema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos pré-existentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma (SANTOS, 1996b, p.52).

Cabe uma reflexão entre aquilo que M. Santos vem chamando de sistema de objetos e as considerações sobre o mesmo tema por Marilena Chaui. Escreve a autora que os objetos técnicos são criados pela ciência como instrumentos de auxílio ao trabalho humano, máquinas para dominar a Natureza e a sociedade, instrumentos de precisão para o conhecimento científico e, sobretudo, em sua forma contemporânea, como autômatos. Estes são objetos técnico-tecnológicos por excelência, porque possuem as seguintes características: são conhecimentos científicos objetivados, possuem em si mesmos o princípio de sua regulamentação, manutenção e transformação. Como conseqüên-cia, não é propriamente um objeto singular ou individual, mas um sistema de objetos interligados por comandos recíprocos (CHAUI,1995, p. 284-285). Ainda justifica a autora, esses objetos técnicos são sistemas que, uma vez programados, realizam operações técnicas complexas, que modificam os conteúdos dos próprios conhecimentos científicos (idem, p.285).

Obviamente, M. Santos em nenhum momento sugere que a técnica incorporada ao objeto se faça de maneira direta, mas é possível interligar o seu sistema de objeto e sistema de ações ao en-tendimento de Chaui, buscando compreender qual é a extensão da técnica na configuração espaci-al.

O espaço social, se entendermos como uma determinação relacional, como em Souza (1997), estrutura-se de acordo com o sistema de objetos geográficos que são fixados nos territórios. Será mais complexa aquela sociedade onde os objetos geográficos deterem maior incorporação de técni-cas resultantes do saber acumulado ou da intencionalidade proporcionada pelos investimentos ima-ginados com tal propósito, nos termos pensados por Santos (1988, 1994, 1994a, 1996b, 2001), por exemplo.

O espaço social neste sentido ganha uma amplitude que o eleva a uma das totalidades possí-veis para entendermos a sociedade, qualquer sociedade. Desta feita, o objeto geográfico é um ele-mento de suma importância para que possamos analisar o grau de transformação sócio-espacial verificada ao longo da história de um determinado grupo social. Podemos, no primeiro momento, ligar esta transformação à incorporação de técnicas aos objetos geográficos e, fundamentalmente, as representações decorrentes deles.

A forma, de maneira geral, é o limite exterior da matéria de que são constituídos um corpo e que confere a este um feitio, uma configuração, um aspecto particular. Mas essa definição não guar-da a historicidade que os diversos grupos sociais têm sobre ela. Isto porque ela não é a coisa em si, porém, o resultado da reflexão ou da prospecção que temos sobre o objeto. Procurando entender esta categoria, Marx, ao buscar a essência da mercadoria, começa pela sua exterioridade, na sua característica que pertence à natureza. O autor escreve que as mercadorias vêm ao mundo sob a forma de valores de uso ou de corpos de mercadorias, como o ferro, linho, trigo etc. Essa é a sua forma natural que estamos habituados. Elas são mercadorias, entretanto, devido à sua duplicidade, objeto de uso e simultaneamente portador de valor. Elas aparecem, por isso, como mercadoria ou possuem forma de mercadoria apenas na medida em que possuem forma dupla, forma natural e forma de valor (MARX, 1983, p.53)

A mercadoria, como todos os outros objetos, não pode ser explicada pela sua aparência, co-mo o linho, o ferro, o trigo, como são apontados pelo senso comum, mas pela sua representação que transcendem do real. Ainda segundo o autor, em direta oposição ao palpável e rude objetivida-de dos corpos das mercadorias, não se encerra nenhum átomo de matéria natural na objetividade de seu valor. Podemos virar e revirar uma mercadoria, como queiramos, como coisa de valor ela permanecerá imperceptível (MARX, 1983, p.54).

Como podemos perceber, Marx nos indica que a mercadoria como um objeto não perde sua objetividade em si, pois como coisa não pode ser explicada por sua própria existência, mas mediada pela forma, ou seja, entre o real (aparente) e a abstração, o conceito sobre a coisa (essência), há necessidade de alguma mediação.

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Por outro lado, na opinião de Massimo Quaini, Marx só entende a forma se enquadrada em seu movimento histórico, tendo em vista os modos de produção. Escreve esse autor, que Marx con-fere à relação social de escravidão não se configura como um modo de produção autônomo, mas como uma forma social secundária, um resultado necessário e conseqüente da comunidade, mesmo quando falsificada e modificada as formas primitivas de todas as comunidades e até se tornar a sua base (QUAINI,1979, p.102).

A forma ganha um sentido mais amplo, constituindo totalidades, onde há fixação de valores no interior de cada modo de produção, que por sua vez, são responsáveis pela representação do real através dos objetos e pelas técnicas presentes em cada momento histórico. O problema aqui é a universalização da forma, a qual nestes termos merece a rejeição de Santos (1996b). Os lugares apesar da sua universalização, pois pertencem ao mundo, não podem ser reconhecidos pelos atri-butos que são impostos por esta mesma universalização. Mas, por outro lado, poderão ser reconhe-cidos pela configuração e pelas práticas sociais particulares de cada um dos lugares.

Os objetos geográficos, elementos formais das estruturas, constituem a forma-conteúdo pelos quais a sociedade ordenará o espaço, dando-lhe significado ao qual interessa aos diferentes seg-mentos sociais. Entretanto, a forma não existe sem está enquadrada em um processo, que por sua vez, só poderá ser completado pela função que as formas exercem sobre o real. A forma, represen-tada pelos objetos geográficos, é a parte visível de uma coisa, como já vimos anteriormente. Segun-do M. Santos, a forma refere-se ao arranjo ordenado de objetos, a um padrão. Se tomado isolada-mente, temos uma mera descrição de fenômenos ou de um de seus aspectos num dado instante do tempo. A forma pode ser imperfeitamente definida como uma estrutura técnica ou objeto responsá-vel pela execução de determinada função. As formas são governadas pelo presente, e conquanto se costume ignorar o seu passado, este continua a ser parte integrante das formas (SANTOS, 1988, p.50-51).

Quando Santos se refere que, em geral, esquecemos que as formas não devem ser analisa-das apenas pelo seu presente, mas incorporá-las com as significações passadas, parece-nos que ele sugere um movimento, onde a saída do real para a abstração da coisa nos leva à forma, pois é ressaltada a temporalidade e, simultaneamente, cria a possibilidade de desvincular do objeto em si, ou seja, da coisa em si, da sua representação. Este fato possibilita pensar objeto em seu movimen-to para dentro, em busca da sua essência.

A realização prática de um dos momentos da produção supõe um local próprio, diferente para cada processo ou fração de processo; o local torna-se assim, a cada momento histórico (tempo), dotado de uma significação particular. A localização num dado sítio e num dado momento das fra-ções da totalidade social depende tanto das necessidades concretas de realizações da formação social quanto das características do sítio. Cada combinação de formas espaciais e de técnicas cor-respondentes constitui o atributo produtivo de um espaço e sua limitação. A função da forma espaci-al depende da redistribuição, a cada momento histórico, sobre o espaço total da totalidade das funções que uma formação social é chamada a realizar. Esta redistribuição-relocalização deve tanto às heranças, notadamente o espaço organizado, como ao atual, ao presente, representado pela a-ção do modo de produção ou de um de seus momentos (SANTOS, 1979a, p.16). Como o objeto perde o sentido em si mesmo, ele necessita interagir com outros objetos em determinado espaço em busca de unicidade, diferenciando-se de outras interações colocadas em outros espaços, ou melhor, de outros lugares para que possa ser identificado como uma única possibilidade possível de configuração espacial carregada de signos.

É possível olhar a forma espacial de uma cidade como determinante básica do comportamen-to humano. Esse “determinismo espacial é uma hipótese de trabalho daqueles planejadores físicos que buscam promover uma nova ordem social pela manipulação do ambiente espacial da cidade (HARVEY,1993, p. 34). A forma espacial tem função mais específica e mais duradoura. Para tanto o autor nos lembra que a cidade como um todo, mesmo a versão amorfa moderna, ainda possui a qualidade simbólica. Não é acidental que a cúpula da igreja e da capela pairam sobre Oxford (uma cidade criada na era do poder eclesiástico), enquanto, na era do capitalismo monopolista, são os edifícios Chrysler e o do Banco Chase, em Manhattan , que pairam sobre a ilha de Manhattan (p.22). No entendimento de Harvey, só é possível um avanço na análise do espaço, sobretudo do espaço social, se pudermos compreender as qualidades simbólicas dos objetos espacialmente e temporalmente localizados.

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Em sua síntese sobre a relação entre objeto e sua representação, Corrêa apoiado em M. San-tos escreve que a forma é o aspecto visível, exterior de um objeto, seja visto isoladamente, seja con-siderando o arranjo de um conjunto de objetos, formando um padrão espacial. Uma casa, um bairro, uma cidade e uma rede urbana são formas espaciais em diferentes escalas. Ressalta-se que a for-ma não pode ser considerada em si mesma (da mesma maneira que ocorre com o objeto), onde Santos (1996b) vislumbra-o contido em sistema de objetos, sob o risco de atribuir a ela uma autonomia de que não é possuidora. Se o fizermos, estaremos deslocando a forma para a esfera da geometria, linguagem da forma, caindo em um espacialismo estéril. Por outro lado, ao considerar-mos isoladamente a forma espacial, aprenderíamos apenas a aparência, abandonando a essência e as relações entre esta e aparência (CORRÊA, 1995, p. 28).

O espaço social é apropriado em diversas escalas, onde são construídos os mais diferentes territórios. No âmbito da Geografia clássica, era admitida apenas a possibilidade da justaposição territorial, onde a lógica do Estado era a conquista e manutenção do seu território. Neste sentido, para que pudesse existir um território, era necessário reconhecer e ser reconhecido pelos demais Estados. Porém, nos dias de hoje, além da lógica anterior, a superposição territorial é uma realida-de conceitualmente aceita, onde o território é um espaço (social) definido e delimitado por e a partir de relações de poder ou, dito de maneira mais precisa, um “campo de força” concernente a relações de poder espacialmente delimitada e operada sobre um substrato (espaço matéria) referencial onde vários grupos constroem seus territórios de acordo com os seus interesses e força política de cada um (SOUZA, 1995, 1997).

Algumas considerações

Entendemos que o sistema de objetos e o sistema de ações em conjunto com o espaço social podem ser instrumentos poderosos para possibilitar a Geografia Física e a Geografia Humana vincu-larem os seus campos de especificidades em busca de métodos que sejam comuns estes dois frag-mentos de disciplina. Sabemos de todas as dificuldades, mas por outro lado, não podemos nos fur-tar de provocar discussões dentro do que entendemos como a melhor possibilidade de avançar teó-rico-metodologicamente.

A Geografia, como já pensava Bernardo Varenius8 no século XVII, deve ser abordada como una, pois não tem sentido continuarmos as disputas teóricas para uma Geografia Humana sobrepu-jar a Geografia Física e, nem essa, aquela. Para finalizar, um outro argumento fundamental consiste no fato de que para o graduando em Geografia, seja em sua modalidade de licenciatura ou bachare-lado, os que destinam ao magistério do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, a dicotomia entre Geografia Física e Geografia Humana perde o sentido diante das amplas preocupações do ensino dessa ciência.

Notas

*Doutorando em Geografia, pesquisador associado ao Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD), Departamento de Geografia /UFRJ; Professor Assistente da UERJ/FFP— São Gonçalo.

1. Grifado no original. 2. O termo objeto será utilizado apenas como mais uma palavra, mas, no momento que considerar-mos adequado empreenderemos uma discussão conceitual. 3. O destaque é do próprio autor. 4. Práticas sociais têm o mesmo sentido explicitado por R. L. Corrêa, como as ações espaciais que resultam, de um lado, da consciência que o Homem tem da diferenciação espacial. Consciência esta que está ancorada nos padrões culturais próprios a cada tipo de sociedade e nas possibilidades téc-nicas disponíveis em cada momento, que fornecem significados distintos à natureza e à organização espacial previamente já diferenciada (1995,p. 35). Veja ainda Corrêa (1992, 2000). 5. A nossa preocupação é metodológica, no sentido que há necessidade de ultrapassagem da com-partimentação, cada vez maior entre a Geografia Física e Humana. Sabemos que a tradição, em geral, adquire força que não se rompe apenas com a intenção, porém, o debate em torno do espaço

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social abre esta possibilidade de discussão de uma geografia comprometida com a sociedade e mui-to menos com os anseios de cada pesquisador envolvido em suas pesquisas. 6. Nesta perspectiva, não podemos considerar que a forma, apesar de confundir, às vezes, com o próprio objeto, que ela possa deter materialidade, pois a oportunidade, o desemprego, por exemplo, não pertencem ao concreto-do-pensamento, não passam de abstração do real. 7. Destaque no original. Nesse, o autor faz referência única e exclusivamente ao trabalho de psicólo-gos. Entretanto, pensamos que ao vislumbrar um dado objeto geográfico, temos a primeira leitura que não deverá ser a definitiva, mas deverá ser perpassada por valores que construímos ao longo da vida. Isso nos leva a uma reflexão e posteriormente à essência. 8. Citado por Manoel Correia de ANDRADE (1987, p.45)

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Mobilidade Intrametropoliana no Rio de Janeiro*

Antonio de Ponte Jardim**

Resumo

O estudo centra-se em três dimensões do fenômeno da mobilidade intrametropolitana: a referente aos processos de exclusão e segregação sócio-espacial, resultado das diferenças econômicas, soci-ais e políticas, no interior do espaço metropolitano; a dimensão dos deslocamentos populacionais na metrópole em relação às migrações e à mobilidade residencial (a questão das escalas); a dimensão sócio-econômica dos deslocamentos populacionais na metrópole fluminense, durante os anos 80.

Palavras-chave: mobilidade intrametropolitana; migração interna; mobilidade residencial; Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Abstract

This study center in three dimensions of the phenomenon of the intrametropolitam mobility, to know, the dimension referent to the exclusion processes and social-spacial segregation, originating from economical, social and political differences, inside the metropolitan space, the dimension of the movement of the populations in the metropolis in relation to migration and the residential mobility (a scale questions); the dimension of the social-economic movement of the population in Fluminense metropolis, during the 80´s.

Key words: intrametropolitam mobility; movement of the populations; residential mobility; Fluminense metropolis.

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Introdução

A dimensão dos processos de exclusão e segregação sócio-espaciais no interior da metrópole fluminense. As mudanças ocorridas, durante os anos 80, na configuração da metrópole fluminense1 refletem os movimentos da economia e da sociedade no sentido de que a mobilidade espacial intrametropolitana, como movimento das classes sociais2, influiu no processo de adensa-mento demográfico, econômico e social, nas demandas sociais (equipamentos coletivos), na oferta e na demanda de força de trabalho e no consumo de bens e serviços e na cultura.

As explicações sobre esses processos sócio-espaciais têm seus fundamentos, grosso modo, a partir:

1 – das análises que explicam a influência das migrações na dinâmica de organização/desorganização e deterioração das cidades (PIERSON, 1970);

2 – das diferenças socioeconômicas entre migrantes e não migrantes, como expressão de movimen-tos transitórios de “ajuste” em que a inserção dos migrantes nas atividades urbano-industriais, como um elemento integrador e de ascensão social dos migrantes (GERMANI, 1971, 1974);

3 – de fatores histórico-estruturais como determinantes do desenvolvimento urbano-industrial (LOPES, 1973; SINGER, 1973);

4 – da mobilidade do trabalho determinada pela necessidade do capital (GAUDEMAR, 1977);

5 – da economia monetária, com ênfase no consumo e na racionalização do espaço urbano, onde o consumo, o intercâmbio e a gestão são elementos fundantes das práticas sociais e de suas diferen-ças sociais e sócio-espaciais no interior da metrópole;

Através da economia monetária, a cidade pode ser vista como: a) o lugar da produção da força de trabalho (casa-moradia e bairro); b) o lugar da produção (inserção da força de trabalho nas ativida-des econômicas); c) lugar de intercâmbio de bens e serviços. Neste sentido, a cidade passaria a ser o lugar da mobilidade e segregação sócio-espaciais, a partir de práticas sociais e econômicas, já que a mobilidade residencial expressa diferenças socioeconômicas e espaciais, numa sociedade de classes (HARVEY, 1985, 1993); 6 – de fatores explicativos relacionados à ordem contextual e valórica entre migrantes e não migran-tes; da inserção no mercado de trabalho; do tempo e residência; das condições socioeconômicas e culturais, como elementos diferenciadores/integradores na sociedade de classes (CASTRO et al., 1976);

7 – da valorização dos fluxos migratórios como expressão das interações espaciais, que gera a mo-bilidade do trabalho e a organização do consumo de bens e serviços, demarcando diferenças nos locais de residência e na estrutura espacial das classes sociais no interior da metrópole (JARDIM, 2001).

Ao estudarmos as migrações intrametropolitanas, como um caso particular da mobilidade es-pacial da população e do deslocamento das classes sociais no interior da metrópole fluminense, observamos que fluxos migratórios estavam associados ao fenômeno da “involução intrametropolita-na”3, relacionada ao aumento da segregação e da exclusão sociais, originária da mudança de princí-pios do modelo de desenvolvimento econômico e social brasileiro, a partir dos anos 80. Alguns as-pectos desse fenômeno podem ser constatados analisando-se os dados dos Censos Demográficos de 1980 e 1991, no sentido de que:

1 – as mudanças nas atividades econômicas e sociais influenciaram a migração intrametropolitana nos locais de origem e de destino;

2 – a renda média da PEA, como um dos elementos que refletem a estrutura de classes, nos possi-bilitou observar diferenças socioeconômicas significativas no interior dos fluxos migratórios intrametropolitanos4, durante os anos 80;

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3 – a análise dos fluxos migratórios intrametropolitanos nos permitiu fazer inferências sobre a ques-tão da segregação e da exclusão sociais, a partir da comparação entre os migrantes intrametropoli-tanos de baixa renda (com até 5 salários mínimos) e os de alta renda (com 20 salários mínimos e mais). A comparação entre os migrantes de baixa e de alta renda do município do Rio de Janeiro para os demais municípios metropolitanos e entre os municípios da chamada periferia metropolita-na, nos ajuda a inferir sobre o aumento das carências urbanas5, já que a heterogeneidade sócio-econômica dos fluxos demográficos, no interior da metrópole fluminense expressam o fenômeno de “involução intrametropolitana”, caracterizado pelo distanciamento das classes sociais, independente da condição migratória.

A mobilidade espacial da população associa-se aos movimentos da economia e da socieda-de, cujas mudanças podem ser observadas a partir do processo de reestruturação produtiva que compatibiliza mudanças institucionais e organizacionais nas relações de produção e de trabalho, bem como redefine os papéis dos estados nacionais e das instituições financeiras, visando a aten-der as necessidades de garantia de lucratividade (CORRÊA, 1997) das empresas capitalistas, na atual fase do desenvolvimento capitalista. Em relação ao social, se produz uma elitização do con-sumo e de mercados. Aumenta a competição intercapitalista mundial em relação à inserção dos no-vos mercados de consumo na economia global. No que se refere à escala local, ocasiona aumento das distâncias sociais, econômicas, observadas através da exclusão e da segregação sócio-espaciais.

O processo de reestruturação produtiva foi responsável pelas perdas na denominada coope-ração urbana6 - centrada na expectativa taylorista-fordista de que o emprego urbano-industrial daria as condições necessárias para a melhoria nas condições materiais de vida da população, como um todo. A promessa de um emprego estável garantiria o bem-estar social da maioria da população residente nas metrópoles nacionais. Esta crença perdurou até os anos 70, quando surgiram novas tecnologias produtivas e organizativas, centradas nos novos processos de automação. A nova or-dem do desenvolvimento capitalista fez com que aumentasse o desemprego, advindo da desquali-ficação da mão-de-obra, ocasionado pelo uso de novas tecnologias informacionais, responsáveis pelo aumento da competitividade produtiva, cujas conseqüências foi o aparecimento de uma nova pobreza urbana (CASTEL, 1998), que ganhou visibilidade no interior das metrópoles, via o aumento da segregação e da exclusão sociais no sentido de que:

1 – aumentaram as distâncias sociais observadas através das condições de renda, que indicam o aumento da segregação e da exclusão sócio-espaciais;

2 - surgiram processos de gentrificação (“enobrecimento” de novas áreas urbanas) com a criação de condomínios residenciais para a população de média e alta renda, inclusive na chamada periferia metropolitana;

3 – aumentaram as carências urbanas independentemente da localização geográfica (“núcleo” ou “periferia”), refletindo, assim, o processo e distanciamento entre as classes sociais no interior do espaço metropolitano.

Como forma de explicar os princípios que causaram a perda da cooperação urbana e os pro-cessos de exclusão e de segregação sócio-espaciais ocorridos no interior da metrópole fluminense, a partir dos anos 80, fundamentamos a nossa leitura:

1 – na sociologia clássica, que estava preocupada com a coesão social e a solidariedade; com a integração entre os homens, ao nível do microcosmo (SIMMEL, 1983) e com as representações co-letivas, a partir da “concepção de mundo”, dos valores (WEBER, 1987). Estas preocupações funda-mentaram os princípios sociológicos da Escola de Ecologia Humana de Chicago, responsável pela explicação inicial do crescimento e desenvolvimento das metrópoles urbano-industriais;

2 – nos fundamentos do contrato social, como base de legitimidade do Estado moderno, voltado para gestão dos bens comuns e elemento de garantia da felicidade e da igualdade dos homens pe-rante a lei e progresso econômico e social. Estes fundamentos legitimaram o Estado capitalista, como regulador das bases contratuais, especialmente em relação às garantias sociais e políticas, entre elas o direito ao trabalho (SANTOS, 1999), princípio regulador do capital-trabalho. Constituin-do-se, assim, como instituição de garantia da “democracia do trabalho e do consumo”, cujas bases se consolidaram na concepção taylorista-fordista do Welfare State, triangulado pela regulação do Estado sobre a relação capital-trabalho.

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Entretanto, o aumento da diferenciação social, econômica, política e cultural, originária da sociedade de classes, centrada no consumo de novos bens e serviços, contribuiu para o fim da “democracia do trabalho” (TOURAINE,1998), já que os seus princípios estavam baseados na oferta de produtos homogêneos voltados para o consumo de massa. A reestruturação produtiva, iniciada nos anos 70, nos países capitalistas centrais, passou a privilegiar as demandas diferenciadas, pela população de média e alta rendas, de produtos e serviços especializados, o que possibilitou um no-vo formato na estrutura de classes no interior da sociedade capitalista urbano-industrial e da diferen-ciação na composição da oferta de bens e serviços, que ganharam uma nova dimensão.

O entendimento da ruptura da cooperação urbana, advinda da reestruturação produtiva, im-plica no conhecimento da multiplicidade de escalas vivenciadas pelos indivíduos, cujos significados de liberdade, igualdade, subjetividade, justiça, solidariedade, adquirem novos significados e passa-ram a significar coisas díspares, em termos de necessidades e especificidades no interior da socie-dade de consumo de massa, especialmente no interior das metrópoles. Surgiram condomínios resi-denciais fechados que passaram a ser um indicador da segregação sócio-espacial da população de média e alta rendas, a partir dos anos 80, na metrópole fluminense.

A dimensão da mobilidade residencial e a questão da migração intrametropolitana – as esca-las do fenômeno migratório

As evidências empíricas demonstram que os estudos sobre a mobilidade residencial e migra-ção intrametropolitana apresentam novas dimensões analíticas, entre as quais três questões são fundamentais na explicação do fenômeno de exclusão e segregação sócio-espaciais:

1. A orientação teórico-metodológica de base empírica

No Brasil, os estudos sobre a mobilidade residencial foram fortemente influenciados pela Es-cola de Ecologia Humana de Chicago, cujo eixo analítico dava ênfase, no geral, à influência da mi-gração no processo de organização/desorganização e deterioração das grandes metrópoles. Num segundo momento, surgiram as explicações sobre as diferenças socioeconômicas como processo de ajuste, via inserção dos imigrantes nas atividades urbano-industriais, como elemento integrador na sociedade urbana-industrial, via ascensão social. Com o desdobramento dessas explicações, surgiram, a partir dos anos 70, análises sobre diferenciais entre migrantes e não-migrantes como forma de qualificar as migrações dentro da estrutura produtiva e de consumo nas metrópoles brasi-leiras. De modo geral, a preocupação dos pesquisadores era explicar as condições de ascensão e mobilidade dos migrantes, numa sociedade de classes. Este modelo tinha suas bases explicati-vas nos estudos da Escola de Chicago, que no final dos anos 50 evidenciou os primeiros aspectos do esgotamento do modelo de desenvolvimento fordista-keynesiano, centrado no consumo de bens padronizados, que limitava as escolhas para os estratos médios e de alta renda. No Brasil as análises baseadas na sociedade de bem-estar social, advinda do desenvolvimento industrial fordis-ta-keynesiano, deixaram de privilegiar os diferenciais entre migrantes e não-migrantes, como ele-mentos de diferenciação e interação socioeconômica dos migrantes internos, especialmente no inte-rior das metrópoles brasileiras, no início dos anos 80.

Frente à crise dos paradigmas explicativos dos deslocamentos populacionais no interior das metrópoles, centrados no desenvolvimento urbano-industrial, assim como as especificidades dos países latino-americanos começam-se, partir dos anos 60, a ressaltar as diferenças históricas, so-ciais, políticas, econômicas e étnicas que determinam o desenvolvimento das respectivas socieda-des latino-americanas.

As primeiras análises particulares, de cunho histórico-estrutural, sobre a configuração e evolu-ção do padrão de estudos sobre a mobilidade residencial, surgiram das críticas à Escola de Ecologia Humana de Chicago, como padrão norteador do desenvolvimento urbano-industrial do capitalismo ocidental. Essas críticas permitiram rediscutir a questão deterioração dos centros metropolitanos, causados pela migração interna, assim como a visão de que as periferias nas metrópoles latino-americanas seriam, por natureza, o locus da classe operária, independente da condição migratória

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(BALÁN, 1973; LOPES, 1973; SINGER, 1973; MAUTNER, 1999).

O entendimento dos processos de diferenciação sócio-espacial, originária da luta travada pe-las classes sociais, em relação ao acesso aos equipamentos urbanos e sociais, faz com que se torne necessária a busca de outros fatores explicativos sobre os deslocamentos populacionais no interior das metrópoles. Os estudos sobre a mobilidade residencial e os deslocamentos migratórios ganharam novas dimensões escalares.

2. A delimitação do tema – migrações intrametropolitanas

Faz-se necessário distinguir, então, entre mobilidade residencial, migração e mobilidade espa-cial, como aspectos diferenciadores dos deslocamentos populacionais no interior das metrópoles. A primeira é definida, a princípio, como a mudança da população dentro da cidade (como unidade polí-tico-administrativa, o município, ou seja, entre bairros de uma mesma cidade); a segunda, como deslocamento de pessoas entre unidades político-administrativas (PAVIANI et al., 1988). Segundo Pinto (1974, p. 57), o dicionário demográfico define migrante como “uma pessoa cuja divisão territo-rial de residência ao início de um período de observação difere da divisão territorial de residência de dito período”. Portanto, corrobora para diferenciação feita entre migrante e mobilidade residencial. E, finalmente, a mobilidade espacial tem um sentido muito mais amplo que a de migração, englo-bando tanto os deslocamentos de longa distância, referentes às migrações, quanto os de curta dis-tância, referentes à mobilidade residencial. O que define é a mudança de uma localização a outra no espaço: engloba a mobilidade residencial e as migrações, independentemente dos limites políti-co-administrativos, circunscritos pela ação pública, em suas diferentes dimensões, que se legitima através da força de lei, no sentido de “homogeneizar” e “excluir” diferenças internas objetivando a (re)conquista do território, delimitando-o como instância de atuação político-administrativa: o municí-pio.

Cabe-nos perguntar se a diferença entre migração e mobilidade residencial é somente uma questão de divisão territorial político-administrativa. O processo de periferização dos municípios das cidades-capitais metropolitanas (o conhecido processo de suburbanização) e a própria periferização dos municípios circunvizinhos a essas metrópoles (o processo de conurbação) são somente uma questão de mobilidade residencial ou de migrações intra-urbanas? Ambos se confundem e fazem parte da mobilidade residencial da população, da mudança de lugares de residência, entre cidades, que é um aspecto predominante nos deslocamentos populacionais nos países latino-americanos.

3. A questão dos parâmetros escalares das migrações

Ressalta-se que é importante que se estabeleça outras dimensões analíticas sobre as migra-ções intrametropolitanas e os seus fatores determinantes. Delimitar a mobilidade residencial ao ní-vel micro (intra-unidade administrativa) é enquadrá-la no marco político-administrativo local, sem considerar as diferentes dimensões da totalidade. É reduzir os múltiplos processos que intervêm nos deslocamentos populacionais aos limites físicos do controle político-administrativo do território. É estabelecer fronteiras aos processos constituintes das práticas sociais e existenciais da popula-ção que ultrapassam as fronteiras municipais. É delimitar os movimentos de população como ele-mentos formadores da expansão, suburbanização e segregação sócio-espacial a uma fronteira polí-tico-administrativa. É reduzir as práticas sociais aos interesses políticos e econômicos vigentes num determinado momento histórico.

Os estudos sobre a mobilidade residencial têm sido enfocados, de modo geral, a partir: a) da influência migratória para a cidade e seus impactos socioeconômicos e b) do movimento de pessoas no espaço intrametropolitano como fator de expansão, suburbanização, exclusão e segregação só-cio-espacial.

Ambos os eixos analíticos deveriam se complementar e não se excluem, ao nosso ver, pelo fato de que a migração não é um movimento caótico e desorganizado. Encontra-se referenciada

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nas estratégias socioeconômicas, culturais, psicológicas, de lazer, ao ciclo de vida e à reprodução existencial da população (CUNHA, 1994), independente da classe social. Ideologicamente não se diferenciam quanto às aspirações, mas na prática a migração está limitada ao acesso às condições materiais.

A mobilidade residencial está ligada a processos multi-escalares que, independente do recor-te analítico, abrangem diferentes níveis de explicação e interpretação não dissociados entre si. Des-considerar as várias escalas do fenômeno migratório é explicar as causas pelas conseqüências, as aparências em vez da essência (LEFEBVRE, 1977).

Outra dimensão da mobilidade espacial da população é o processo de urbanização. Este se dá, basicamente, pelo crescimento demográfico, via nascimentos e migrações, pelos deslocamentos intra-urbanos e intrametropolitanos e também pela incorporação de áreas rurais às urbanas, respon-sáveis pelo processo de adensamento demográfico e social. Há uma relação direta entre adensa-mento demográfico e social, no que sentido que refletem novas formas de relações sociais e de tra-balho que, por sua vez, estão relacionadas à divisão social do trabalho e ao processo de diferencia-ção social e econômico (a exclusão e segregação sócio-espacial). Portanto, à geração e ao aumen-to da diferenciação social e econômica, assim como com a ruptura da cooperação urbana.

O deslocamento da população no espaço metropolitano reflete a estrutura econômica e social desse espaço, assim como as condições desses deslocamentos, indicando novos rearranjos sociais e econômicos, conformando novos espaços existenciais7. Novas áreas são incorporadas à metró-pole, novos rearranjos familiares e demográficos se estabelecem a partir de certas condições socio-econômicas. Portanto, novas formas espaciais e temporais são estabelecidas a partir da mobilidade da população. São as novas formas existenciais que tornam visíveis os processos de exclusão/inclusão, segregação, “enobrecimento de novas áreas residenciais” (“gentrificação”) e de pobreza, entre outros fenômenos sociais existentes na atual fase de desenvolvimento do capitalismo.

A dimensão dos deslocamentos intrametropolitanos e seus aspectos socioeconômicos e es-paciais

A mudança na concepção do modelo de desenvolvimento capitalista contribuiu para a atual crise dos paradigmas sobre o fenômeno migratório (SIMMONS, 1991), cujas explicações podem ser dadas a partir das transformações ocorridas na organização da produção e do trabalho, de base taylorista-fordista. A ênfase anterior, fordista, estava dada no processo de integração dos migrantes à sociedade de consumo e, portanto, a questão do tempo de residência no município, em voga nos Censos Demográficos brasileiros de 1970 e 1980, significava a duração socialmente necessária pa-ra incorporação à estrutura produtiva e a mobilidade social (ascensão social) na sociedade de con-sumo de massas.

Os elementos constitutivos do processo migratório – duração, distância e situação polítco-administrativa, representam a essência do controle das migrações laborais na organização tayloris-ta-fordista do trabalho. No pós-fordismo, há necessidade de se repensar as dimensões temporais e espaciais da migração, já que mudaram as possibilidades e as temporalidades das migrações em-bora o seu controle político não. Há necessidade de se repensar a questão das subjetividades que redefinem e se manifestam para além das condições de trabalho.

Há que se pensar, ainda, a duração relacionada ao tempo social, pelo fato de que represen-ta “um conjunto de possibilidades existentes num determinado momento da história” (SANTOS, 1988). É a partir da duração que o tempo nos transforma, demarca diferenças e ressalta identida-des, já que o tempo é uma das dimensões da organização social. Os diferentes momentos da vida correspondem, também, às diferentes condições existenciais, no interior da metrópole, num determi-nado momento histórico.

Já o conceito de temporalidade é reconhecido como forma diferenciada do tempo e do acon-tecer social, se faz presente, de modo seletivo, nos acontecimentos particulares. A temporalidade, como acontecimento histórico, dá especificidade aos acontecimentos ao mesmo tempo em que os diferencia. É através da temporalidade que podemos observar as realidades concretas do mundo, em suas diferentes formas, a partir da organização e da estrutura social, portanto, as diferentes tem-poralidades constitutivas das classes sociais demarcam diferenças significativas nas condições de

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vida de cada estrato socioeconômico em particular.

A distância, como realidade relacional, necessita ser repensada pelo fato de refletir as rela-ções dos homens entre si, configurando a sociedade a que pertencem. Deste modo, a distância, como realidade relacional, demarca diferenças sociais, econômicas e políticas, independente da condição migratória. A distância (re)dimensiona e dá sentido aos fluxos migratórios, em relação as suas origens e aos seus destinos. A distância aproxima e separa. Na aproximação está a continui-dade e/ou a afinidade de cultura de origem e sua reprodução no lugar de destino. Na separação há uma tendência à ruptura, na medida em que há a possibilidade da aquisição de novos valores e padrões de comportamento no lugar de origem.

A situação do controle político-administrativo sobre as migrações necessita ser repensada, a partir das diferentes formas como é exercido sobre os migrantes geralmente pobres. Repensar o político-administrativo, como instância de poder oriundo das relações entre o político e o social, as-sim como as suas diferentes formas de se legitimar como ação do poder público, a partir de diferen-ças sociais e econômicas (BOURDIEU, 1989). Por sua vez, são as diferenças que justificam o pro-cesso de integração/exclusão no local de origem e/ou de destino, assim como ressaltam as identida-des coletivas (migrantes ou não) que demarcam o lugar de residência.

As categorias duração, temporalidade e situação político-administrativa devem ser revistas a partir dos princípios norteadores das teorias da modernização e das novas concepções de desenvol-vimento econômico e social, como forma de se resgatar as mudanças de escala do fenômeno mi-gratório, que se reflete no comportamento individual, organizacional do trabalho urbano-industrial. Os paradigmas vigentes já não são suficientes para explicar as mudanças dos indivíduos de um lu-gar a outro.

Entretanto, a instrumentalização e o controle das migrações continuam vinculados à situação político-administrativa, que controla e legitima as condições de classe, através do poder político que se faz presente através do poder econômico, independente da condição migratória.

A partir das diferenças nas relações sociais e políticas, a questão da proximidade e a da dis-tância propiciam diferentes ações, numa sociedade de classes. Não são as fronteiras político-administrativas que separam a migração da mobilidade residencial, embora sirvam para “controlar” o social, o diferente, migrante e não-migrante, mas as práticas políticas de gestão do território, cujo controle se legitima através do jurídico. As práticas sociais vão além das fronteiras político-administrativas. Os processos de interações espaciais em suas diferentes dimensões culturais, polí-ticas e sociais representam diferentes escalas da mobilidade espacial da população.

Assim, os fluxos migratórios intrametropolitanos, como processos constituintes das interações espaciais, podem ser também analisados a partir de diferentes escalas, que traduzem as diferentes dimensões do acontecer social, que vai além das fronteiras político-administrativas.

As fronteiras político-administrativas se por um lado controlam e se diferenciam como gestão do poder local, por outro, as práticas sociais, econômicas transcendem as respectivas fronteiras, pelo fato de fazerem parte de uma totalidade metropolitana, cuja diferenciação, em seu interior, está marcada pelos processos de segregação e exclusão sócio-espaciais, advindos da nova ordem soci-al e econômica. Entretanto, reproduzem as suas especificidades através das interações espaciais, em suas diferentes escalas. Estes processos podem ser observados nos deslocamentos populacio-nais no interior da metrópole fluminense, com maior intensidade, a partir dos anos 80.

Mobilidade populacional intrametropolitana: principais centros de atração populacional entre 1980 e 1991

Os dados do Censo Demográfico de 1991 mostram que, grosso modo, existiam durante os anos 80, três grandes fluxos migratórios no interior da metrópole fluminense que, de acordo com as suas condições socioeconômicas, revelam o movimento de “expansão do núcleo na periferia”, da “nuclearização da periferia” e da “periferização da periferia”. Esses fluxos demográficos reprodu-zem os movimentos da economia e da sociedade que, por sua vez, refletem os deslocamentos das classes sociais no interior do espaço metropolitano (Tabela 1 e 2).

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Tabela 1

Condições de Renda dos Migrantes do Rio de Janeiro entre 1980 e 1991

INDICADORES DE RENDA

Imigrantes Intrametro- politanos entre 80-91

Imigrantes Intrametro- politanos no Rio de Janeiro entre 80-91

Principais destinos dos emigrantes do Rio de

Janeiro entre 1980-1991

Niterói

Nova Iguaçu

Duque de Caxias

São Gonçalo

S.J. De Meriti

Nilópolis

% da PEA até 1 SM 7,0 4,3 3,2 9,5 7,4 5,3 5,2 4,5

% da PEA residente 5,0 3,6 3,3 8,3 6,1 5,8 5,9 4,9

% da PEA até 5 SM 63,8 45,6 31,9 75,4 72,0 61,5 73,4 66,4

% da PEA residente 53,2 43,9 37,1 78,8 68,7 63,3 69,0 63,7

Renda Média da PEA (em SM)

7,5

25,4

30,4

4,2

4,6

5,9

4,7

5,2

Renda Média da PEA residente (SM)

10,9

16,1

29,0

46,2

5,0

5,6

4,9

5,4

Renda Média da PEA com 20 SM e mais (em SM)

57,1

148,8

122,0

30,9

33,5

36,1

37,7

27,7

Renda Média da PEA residente com 20 SM e mais (em SM)

68,0

85,3

129,6

32,4

32,1

34,6

31,9

30,4

Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 1991.

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Tabela 2

Condições de Renda dos Migrantes do Rio de Janeiro entre 1986 e 1991

INDICADORES DE

RENDA

Imigrantes Intrametro- politanos

entre 86-91

Imigrantes Intrametro- politanos

entre 86-91

Principais destinos dos emigrantes do Rio de Ja-neiro

entre 1986-1991

Niterói

Nova Iguaçu

Duque de

Caxias

São Gonçalo

S.J. De

Meriti

Nilópo-lis

% da PEA até 1 SM 7,0 3,3 3,0 9,7 6,8 3,6 4,5 5,7

% da PEA residente 3,6 3,3 8,3 6,1 5,8 5,9 5,9

% da PEA até 5 SM 67,8 46,2 28,7 75,6 71,5 61,1 76,5 59,5

% da PEA residente 43,9 37,1 71,1 68,7 63,3 69,0 63,7

Renda Média da PEA (em SM)

7,4

13,0

30,2

4,3

4,7

6,5

4,9

6,1

Renda Média da PEA residente (SM)

16,1

29,0

46,2

5,0

5,6

4,9

5,4

Renda Média da PEA com 20 SM e mais (em SM)

56,5

72,2

110,7

31,3

33,6

51,5

47,2

27,1

Renda Média da PEA residente com 20 SM e mais (em SM)

85,3

129,6

129,6

32,1

34,6

31,9

30,4

Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 1991.

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A “expansão do núcleo na periferia”, refere-se aos emigrantes do município do Rio de Janeiro, com renda média e alta que passaram a residir em Niterói, Nova Iguaçu, Duque de Caxias e São Gonçalo. Já a “periferização do núcleo” está associada aos imigrantes intrametropolitanos que pas-saram a residir no município do Rio de Janeiro que ganhavam até cinco salários mínimos (U$484,61 dólares americanos), em setembro de 1991; corresponde ao aumento e adensamento da população residindo em favelas e o distanciamento socioeconômico entre os bairros do município da capital fluminense. Finalmente, a “periferização da periferia”, refere-se às trocas populacionais entre os mu-nicípios da chamada periferia metropolitana que, apesar da imensa maioria da população envolvida nessas trocas ser de baixa renda, apresentava também diferenças econômicas e sociais no interior dos fluxos migratórios, assim como em relação à população residente, quer seja no “núcleo” ou na “periferia” metropolitana (Tabela 3 e 4).

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Tabela 3

Migrantes entre os principais municípios da periferia metropolitana,

segundo indicadores de renda entre 1980-1991.

Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 1991

INDICADORES DE RENDA

Migrantes

Intrametropoli-tanos

Entre 80-91

Migrantes

Residentes

em são

Gonçalo

com origem

em Niterói

Migrantes

Residentes

em Nova

Iguaçu

com origem

em Duque de

Caxias

Migrantes

Residentes

Em Nilópolis

Com origem

Em Nova

Iguaçu

Migrantes

Residen-tes

Em Nova

Iguaçu

Com ori-gem

Em S.J. de

Meriti

% da PEA com até 1 Salário Míni-mo

7,0 5,3 9,5 4,9 9,6

% da PEA residente com até 1 SM

5,0 5,8 8,3 4,3 8,3

% da PEA com até 5 SM 67,7 61,5 75,4 63,7 75,2

% da PEA residente com até 5 SM

53,2 63,3 71,8 57,6 71,8

Renda Média total (em SM) 7,5 5,9 4,2 5,4 4,2

Renda Média da População resi-dente com até 5 SM

10,9

5,6

4,6

6,0

4,6

Renda Média da PEA com 20 e mais SM ( em SM)

57,1

36,1

30,8

27,7

30,9

Renda Média da PEA da popula-ção residente com 20 e mais SM (em SM)

68,0

34,6

32,4

30,4

32,4

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Tabela 4

Migrantes entre os principais municípios da periferia metropolitana,

segundo indicadores de renda entre 1986-1991

INDICADORES DE RENDA

Migrantes Intrametropo-litanos Entre 86-91

Migrantes Residen-tes em são Gonçalo com ori-gem em Niterói

Migrantes Residentes em Nova Iguaçu com origem em Duque de Caxias

Migrantes Residentes Em Nilópo-lis Com ori-gem Em Nova Iguaçu

Migrantes Residen-tes Em Nova Iguaçu Com ori-gem Em S.J. de Meriti

% da PEA com até 1 Salário Míni-mo

7,4 4,2 8,3 3,7 12,4

% da PEA com até SM 67,8 56,6 84,4 60,2 82,5

Renda Média total (em SM) 4,9 6,8 3,3 5,3 3,7

Renda Média da PEA com 20 e mais SM ( em SM)

24,2

35,6

-

31,0

26,7

Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 1991

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Com a análise das Tabelas, podemos conclui-se que não se pode tratar os movimentos mi-gratórios como homogêneos, mesmo em áreas segregadas (de alta, média e baixa rendas), pelo fato de que a mobilidade da população intrametropolitana corresponde aos movimentos da economi-a e da sociedade. Portanto, esses movimentos refletem a estruturação das classes sociais no inte-rior da metrópole, cujas distâncias podem ser observadas através da heterogeneidade socio-econômica dos deslocamentos da população, cujos processos constitutivos mostram e denunciam a nova dinâmica de segregação e exclusão sociais, numa sociedade de classes.

Portanto, não faz sentido comparar migrantes com população não migrante, como categorias isoladas e auto-explicativas, já que os migrantes fazem parte da totalidade metropolitana e de seus processos constitutivos de mudança, pelo fato de que os migrantes são parte de uma estrutura e movimento das classes sociais. Neste sentido, os migrantes intrametropolitanos refletem as mudan-ças constitutivas da economia e da sociedade fluminenses, nos anos de 1980, a partir da nova or-dem econômica caracterizada pelo fenômeno da “involução intrametropolitana”, como expressão do fim da cooperação urbana e do aparecimento da segregação sócio-espacial da população de média e alta rendas, via o “enobrecimento” da chamada periferia metropolitana e do “empobrecimento” da cidade do Rio de Janeiro.

Notas

* Síntese dos principais aspectos da tese de doutorado em Planejamento Urbano e Regional – IP-PUR-UFRJ – “Mobilidade Intrametropolitana – o caso do Rio de Janeiro”, defendida em setembro de 2001 - apresentada no I Seminário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios do Rio de Janeiro, UERJ, de 25 a 27 de junho de 2002

** Doutor pelo Instituto de Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e Pesquisador do IBGE

1. A metrópole fluminense refere-se ao município do Rio de Janeiro e aos demais municípios metro-politanos compostos por: Duque de Caxias, Itaboraí, Itaguaí, Magé, Mangaratiba, Maricá, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi, São Gonçalo e São João de Meriti. No Censo Demográfico de 1991 a metrópole fluminense representava a segunda do país, num conjunto de 9 Regiões Metropo-litanas. Atualmente, há no país um total de 26 regiões metropolitanas.

2. Para nós, os movimentos de população no espaço refletem os movimentos da sociedade, pelo fato de estarem relacionados com estruturas políticas, econômicas, sociais e históricas que implicam em relações de classe que, por sua vez, condicionam a forma como a sociedade produz seus bens e serviços. Assim, a configuração da produção e da distribuição de bens e serviços é produto de uma determinada estrutura de classes e não o contrário. Neste sentido, os indivíduos, independen-temente da sua condição de gênero, de migração, etc., estão condicionados por valores e ideologias que prevalecentes, numa determinada configuração social, os orientam na forma de produzir e re-produzir as respectivas existências, num determinado momento histórico. Portanto, são os valores predominantes que, expressos através da ideologia, condicionam a forma como as pessoas se ori-entam no mundo (na sociedade). Neste sentido, a estrutura de classes regula a forma como os indi-víduos se inserem na produção, distribuição e consumo de bens e serviços (POULANTZAS, 1971)

3. A “Involução Intrametropolitana” refere-se à redução de possibilidades tradicionais de sobrevivên-cia dos pobres no interior das metrópole. Esta redução é reconhecível através de indicadores de segregação e exclusão sociais. Portanto, reflete diferenças sociais, econômicas e políticas em rela-ção ao acesso e à satisfação das demandas básicas da população pobre. Como forma de apreen-der as dimensões desse processo os indicadores de renda, instrução, inserção nas atividades pro-dutivas, infra-estrutura urbana e domiciliar espelham diferenças sociais, econômicas e políticas. A “Involução intrametropolitana” está, então, associada aos aumentos das distâncias sociais e econô-micas existentes no conjunto da população metropolitana, a partir dos anos 80 ( RIBEIRO, 1997).

4. Os fluxos migratórios intrametropolitanos correspondem ao número de trocas de pessoas, indivi-dualmente ou em grupo, entre um determinado município, num determinado tempo, geralmente, entre o período intercenstiário, são chamados também de correntes migratórias, quando associa-das à idéia de quantidade de pessoas envolvidas no deslocamento de um lugar a outro. Os fluxos

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migratórios correspondem aos “ movimentos” e a “circulação de pessoas em função da distribuição de bens de serviços e de consumo. Confundem-se, então, com as interações espaciais. 5. As carências urbanas expressam a vontade de um indivíduo por algo determinado e faz parte de um sistema de carências que configura como unidade ecológica no qual os agentes humanos se movem (FORACCHI, 1982). A participação dos indivíduos num sistema de carências está associa-da a valores previamente determinados pela estrutura social. Assim, as carências referem-se às atividades dos sujeitos na elaboração de seus sentimentos e vivências referentes às suas expectati-vas de acesso ao consumo de bens e serviços socialmente diferenciados. 6. A perda da cooperação urbana está associada ao aumento das distâncias sociais e do rompimen-to dos laços sociais, advindos das mudanças ocorridas nas relações sociais e do trabalho, cujas influências implicam em novas formas de convívio e de relações societárias (RIBEIRO, 1997,SENNET, 1999). 7. Os espaços existenciais estão relacionados a produção da existência e aos custos vitais da popu-lação (PINTO, 1974). O ser humano, como produtor da existência, produz o seu território, o seu modo de existir. Entretanto, o sujeito da criação do território não é o indivíduo, mas a população, o coletivo, que cria e recria as condições necessárias para desenvolver o seu processo vital, cuja cria-ção resulta do trabalho executado sobre o território que depende, por sua vez, das condições técni-cas e sociais em que o trabalho é realizado. O espaço vital não representa somente uma dimensão territorial mas uma área existencial, um modo de existir; não é uma quantidade de território, mas o modo humano de existir, associado aos processos de produção e reprodução da existência. Referências Bibliográficas

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Por uma Geografia do Trabalho! (Reflexões Preliminares)*

Antonio Thomaz Júnior ** [email protected]

Dedicatória: Para Misael Goyos: (pelo aprendizado do irmão mais velho!)

Resumo

Ontologicamente prisioneiro da sociedade, o trabalho, em todas as suas dimensões, é a base do auto-desenvolvimento da vida material e espiritual. A Geografia do Trabalho põe-se em cena, para responder as perguntas em relação à realidade. Dessa forma, se não existe diferença em rela-ção ao objeto, é para a ação do sujeito que as atenções se voltam. Isto é, em sua expressão geo-gráfica, o trabalho pode ser entendido tanto em nível da relação metabólica homem-meio, quanto na dimensão da regulação sociedade-espaço, nas suas diferentes manifestações (assalariado, autôno-mo, informal, domiciliar, terceirizado, etc.). Isso implica, pois, necessariamente, na discussão das localizações, que não se limitam ao imediato, ao visível. As categorias de base da Geografia (paisagem, território e espaço) farão as mediações necessárias, atendendo os desafios postos pelo sujeito, no esforço contínuo de teorização para a concreção de uma Geografia do Trabalho.

Palavras-chave: trabalho; Geografia; espaço; luta de classe; emancipação social.

Abstract:

Ontologically prisoner of the society, the work, on all its dimensions, is the founding base of the auto-development of the material and spiritual life. The Geography of the Work puts itself in scene, to answer the questions regarding the reality. Thus, if there is no difference relating the ob-ject, it is in the action of the subject that the attentions turned to. In its geographical expression, the work can be understood either at the level of the metabolic relationship men-environment, or in the dimension of the space-society regulation, in its different manifestations (wage-earner, autonomous worker, informal, domiciliary, third part, etc). This implies, then, necessarily, in the discussion about the locations, which are not limited immediately to the visible. The base categories of Geography (environment, territory and space) will to the necessary mediations, attending the challenges put by the subject, which in a continuous effort of theorization to the concretization of a Geography of the Work.

Key words: work; geography; space; class fight; social emancipation

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Introdução

Se a sociedade, tal como é, não contivesse ocultas, as condições materiais de produ-ção e circulação necessárias a uma sociedade sem classes, todas as tentativas de cria-las seriam quixotescas (K. MARX, 1983 p. 96).

Somente o trabalho tem, na sua natureza ontológica, um caráter claramente transitório (G. LUKÁCS, 1995).

Diante do desafio de refletir sobre o que pensamos e entendemos ser Geografia do trabalho, se impôs o recurso a digressões e mediações imprescindíveis. Tudo isso para que pudéssemos ini-ciar nosso ensaio orientando os seguintes questionamentos: que trabalho é esse? A Geografia a que se refere é aquela que aprendemos nos bancos escolares? Existem afinidades entre Geografia e trabalho? Como a temática do trabalho deverá ser investigada e “lida” pelo olhar do geógrafo, a “leitura” geográfica?

Isso já seria suficiente para aguçar um debate interno muito proveitoso, porém frágil de refe-renciais teórico-estruturais nesse campo da investigação científica, para este momento.

Ao assumirmos esses limites, e sobretudo nossas limitações, não vislumbramos apresentar um roteiro a ser seguido pelos pesquisadores em Geografia, envolvidos com a temática do trabalho. Tampouco imaginamos que seria necessário fazermos afirmações prévias, desamparadas das pes-quisas, se a Geografia do trabalho deve ter esse ou aquele perfil, essa ou aquela marca. E mais, se realmente é um tema a ser abordado pela Geografia, ou ainda, como sugerem alguns desavisados, se o trabalho é um tema geográfico. Propomo-nos, sim, a lançar algumas reflexões preliminares ao debate.

Tanto interna quanto externamente à Geografia, as indefinições, as precipitações e os precon-ceitos eclodiram exemplarmente. De um lado, internamente, se prescreve com antecedência (como é de praxe), o que deve e o que não deve ser Geografia do trabalho, quase sempre (ou invariavel-mente), antecedido pela boa-nova, o que é Geografia ou se o que se está fazendo ou se pretende implementar é ou não Geografia. As afirmações prévias do que é e o que pode ser isso ou aquilo, sem antes experienciar as dificuldades da lida, portanto, sem se darem a chance de efetivamente praticizarem a análise geográfica em respeito à temática do trabalho, particularmente em torno dos assuntos que normalmente se transformam em problemas de pesquisa (situação, mobilidade, orga-nização, exclusão, etc.) nas diferentes modalidades do trabalho de investigação (monografias, dis-sertações de mestrado, doutorado), eis a cultura que ainda é dominante em nossa disciplina, que remonta desde os sistematizadores.

Estes muito se empenharam em nos cultuar a necessidade da definição anterior do objeto da Geografia, depois reformulado ao longo do tempo, mas negado por outros que, amparados no lega-do do materialismo histórico e dialético, entenderam que o objeto de cada ciência é a realidade, po-dendo pois, essa ser observada por diferentes olhares. Como reza a boa tradição marxista, isso ne-cessariamente promoveria o retorno à totalidade, e do ponto de vista metodológico e epistemológi-co, haveria a priorização da relação sujeito-objeto e o primado do sujeito enquanto centralidade da práxis do conhecimento. No entanto, todo esse esforço já materializado em muitas décadas de pro-dução geográfica não foi capaz ainda, de autonomamente sugerir o primado do conhecimento com base na práxis investigativa.

Por outro lado, externamente, comparecem avaliações que do inusitado ao incabível, questio-nam se o trabalho deve ou pode ser objeto de estudo da Geografia, de todo modo, ainda prevalece o elemento surpresa, muitas vezes tingido de indignação: o que tem a ver a Geografia com o traba-lho? Assunto abordado por sociólogos, historiadores, cientistas políticos, economistas, etc., de sor-te também nos apresentamos.

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Geografia e trabalho: passos e contra-passos

De posse dos apontamentos iniciais, destacamos algumas questões metodológicas e epis-temológicas, centralmente guiadas pela tentativa de compreender a Geografia do trabalho sob a razão ontológica do ser social que trabalha, com o propósito de participarmos de um debate que julgamos imprescindível para a Geografia e que requer nossas atenções para quais as categorias e o universo conceitual próprio da Geografia. De posse disso, como operacionalizar as categorias de base da Geografia (paisagem, território, lugar e espaço) a fim de que se façam as mediações necessárias? Entendemos que há uma linha direta de comunicação dessa questão rumo ao atendi-mento dos desafios postos pelo sujeito, que no esforço contínuo de teorização, a partir das experi-ências da práxis das pesquisas, referendadas por dentro da dinâmica da sociedade, as faces e interfaces do mundo do trabalho sinalizarão a importância de cada uma delas para a concreção de uma Geografia do trabalho, que seja fundada na compreensão histórica do trabalho, (tanto no âm-bito da materialidade quanto da subjetividade), a partir das formas e faces do espaço que o regula, ou seja, no seu metabolismo societário.

Até onde se sabe, Pierre George (1979,1969, 1973)1 foi um dos pioneiros a representar em nome de uma pretensa Geografia do trabalho um princípio analítico. No entanto, muito mais voltado às atividades de trabalho, ou no limite, uma Geografia do emprego. Porém, se recorrermos à estru-tura fundante desse raciocínio, chegaríamos a Vidal de La Blache, que atrelou à noção de trabalho o ato transformador capaz de permitir ao homem extrair do meio (habitat) as condições e os meios de vida. O trabalho, estreitamente vinculado à órbita das relações econômicas, aqui circunscrito ao sentido de força-de-trabalho, era responsável pelos requerimentos dos modos de existência e que teoricamente esteve na cimeira do conceito de gêneros de vida. De todo modo, poderíamos, ao menos apontar, que enquanto base fundante do discurso, o trabalho na Geografia foi entendido co-mo mediação e não como tema central.

Sempre que o trabalho compareceu nos compêndios, estudos, relatórios de viagens, livros didáticos e toda a produção acadêmica que atravessa o tempo, portanto considerando-se uma plêia-de plural de enfoques, os geógrafos focaram dois aspectos, quase sempre clivados. Em concordân-cia com Moreira (2001), lembraríamos: 1) a relação sociedade – natureza ou homem – meio, porta-dora de compreensões diversas, a começar pelo perfil, definições e características para cada uma das partes do todo e, 2) a dimensão da organização espacial da sociedade. Há uma longa trajetória a ser considerada, desde os primórdios da sistematização da disciplina no final do século XVIII e início do século XIX2.

Por ora, podemos inferir que desde priscas eras o trabalho foi entendido de diferentes for-mas. Como mediador das transformações que o homem promovia na natureza, base, aliás, do re-corte positivista que dá liga às Geografias e que sacramentou a dicotomia entre o que viria cimentar o discurso geográfico escolar: paisagem natural, paisagem humanizada3; somente em meados do século XX ganha a cena a formulação primeira natureza e segunda natureza herdada de uma deba-te enraizado nas ciências sociais.

Já no pós II Guerra, a Geografia está contaminada pelo projeto burguês, que requeria estudos capazes de sugerir a racionalização do ímpeto industrial (entendido como necessidades humanas ou de toda humanidade), com a utilização racional dos recursos naturais para fazer funcionar o ma-quinário fabril capitalista que se espalhava para além do território americano, europeu e japonês. Fiel ao expansionismo imperial do capital, portanto à mundialização da mais-valia em monta jamais vista, e todo o complexo de relações contraditórias específicas ao mundo do trabalho, especialmen-te os impactos sobre o movimento operário, a Geografia desse período apenas identificava o pro-cesso de trabalho, as ações humanas, fetichizadas sob o manto da cegueira do positivismo que to-mou conta de toda a história da Geografia.

Através do trabalho, então, se realizam as mediações para assegurar os meios de vida entre duas faces historicamente clivadas (sociedade-natureza). Fonte de inspiração para os demais cor-pus científicos, a Geografia também contaminada pelo positivismo (nas duas diversas fundamenta-ções), se distanciou da refundição do homem com a natureza (MOREIRA, 1987).

É por dentro desse caminho que os geógrafos edificaram as Geografias, que, de todo modo, se preocuparam em entender os liames entre o ambiental e o social, que através dos conceitos de espaço vital, gênero de vida, habitat, paisagem, espaço ganharam notoriedade.

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Se pudéssemos puxar uma linha na história, o trabalho na Geografia, invariavelmente, esteve (des)sintonizado da sociedade como parte do processo social movido pela fúria reprodutiva do capi-tal, ancorada na extração de mais-valia e da vinculação do trabalho abstrato ao empreendimento societário reinante, portanto distante do pacto de classes que a burguesia orquestrou para consoli-dar seu projeto de dominação. Fora também da natureza, enquanto elemento distante do corpus natural e visto somente como atividades humanas, tendo em vista que o homem já estava fora da natureza. Nem lá, nem cá, o trabalho (des)situado geograficamente, o que Moreira (1987) denomi-nou de “homem atópico”, alienado do processo social de produção e obliterado pelo estranhamento - diante das amarras sociais que lhe impedem viver a integridade da existência social - consolida-ram-se/fragilizaram-se as compreensões que se referenciaram a entendê-lo como objetividade reifi-cada ou um mero fator material de produção.

Herdeiros desse processo nos pegam a todos de susto, a renovação que se inicia na Geogra-fia brasileira a partir da década de 1980 que nos estimulou ao longo de todos esses anos, a refletir sobre os limites de ordem teórico-metodológica que nos impediam de compreender o trabalho na sua totalidade social, ou seja, considerando o processo dialético que unifica as dimensões ambiental e sócio-espacial, como faces do mesmo conceito.

Com as atenções voltadas, então, para a dialética do processo social, o trabalho sob o enfo-que geográfico, é compreendido por nós, pois, como expressão de uma relação metabólica entre o ser social e a natureza, sendo que nesse seu ir sendo ou em seu vir a ser está inscrita a intenção ontologicamente ligada ao processo de humanização do homem. A dupla linha de ação entre a idea-ção, a previsibilidade (a finalidade), enfim a teleologia (inexistente na natureza), e a materialidade fundante (causalidade), formam uma conexão interativa4 que solda a práxis ontológica do trabalho diante do agir societal.

Já em nível superior à protoforma da práxis social, o trabalho é resultado de um pôr teleológi-co através do qual o ser social cria e renova as próprias condições da sua reprodução5. O trabalho como fonte primária da articulação entre causalidade e teleologia é um processo entre atividade hu-mana e natureza que se sintetiza na célula do ser socia6. Ao sabor da formulação presente em Lu-kács (1979, p.4):

A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente sepa-ratório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica.

É nesse processo de auto-realização da humanidade através do trabalho ao longo dos tem-pos, que reconhecemos o conteúdo do metabolismo social do capital, que faz com que sociedade e natureza e as mediações que governam essa relação dialética, sejam “lidas” pela Geografia como base fundante da compreensão da polissemia do trabalho no mundo atual ou a polissemização da classe-que-vive-do-trabalho.

Assim, ora mais ênfase à relação homem-meio, ora à organização espacial, a tecitura da soci-edade vai sendo construída, sendo que o trabalho como ato teleológico redefine constante e contra-ditoriamente o processo social e o espaço geográfico. Entendemos que a Geografia do trabalho deve chamar para si a tarefa de apreender o mundo do trabalho através do espaço geográfico, en-tendido, pois, como uma das características do fenômeno, e da rede de relações categoriais/teóricas/escalares, ou seja, a paisagem, o território e o lugar de existência dos fenômenos, num vai e vem de múltiplas determinações.

Dessa forma, ganha dimensão analítica o conceito de metabolismo societário do trabalho, constructo desse complexo processo de relações que habita o mundo do trabalho, que através das pesquisas nos propomos apreender/interpretar geograficamente.

As marcas de um pretenso discurso!

É importante asseverar que internamente à Geografia, a temática do trabalho se restringe a alguns pesquisadores que individualmente e/ou em Grupos de Pesquisas nascentes estão ingres-sando nesse debate7. Isso nos despertou desde o início para a necessidade de fortalecermos vias

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de comunicação com pesquisadores de outras áreas do conhecimento, particularmente com os soci-ólogos.

Nossa pequena experiência recobre pouco mais de uma década de atividades8, sendo que poderíamos reservar os últimos seis anos como expressivos da dedicação à temática do trabalho, tanto à frente de projetos individuais, mas, sobretudo, na orientação de pesquisas, tanto em nível de Graduação, quanto de Pós-Graduação, através do Grupo de Pesquisa, “Centro de Estudos de Geo-grafia do Trabalho” (CEGeT)9. Fato é que, no final dos anos 90, estendemos relações com pesqui-sadores espanhóis10, estreitamos interlocução com pesquisadores da UNICAMP11, da UNESP/Marília12 e da Universidade Estadual de Londrina13, e atualmente essa integração se faz com mais capilaridade no âmbito da pesquisa, do intercâmbio de idéias, etc.

É recorrente lembrar que o CEGeT ao longo dos últimos cinco anos nos possibilitou realizar a interlocução com os demais pesquisadores sobre a temática do trabalho, especialmente através da I e da II Jornada sobre o Trabalho14. Sem contar que tudo isso se liga às atividades que desenvolve-mos junto ao Centro de Memória, Documentação e Hemeroteca sindical “Florestan Fernan-des” (CEMOSi)15.

Em “Por uma Geografia do Trabalho!” pretendemos chegar até o público interessado, para fazer valer a vontade de ampliarmos a interlocução, focando internamente as fileiras da Geografia, e socializar os primeiros resultados do Projeto de Pesquisa “Território em Transe”. Não somos candi-datos a pura e simplesmente protagonizar uma nova nomenclatura interna à Geografia, com recorte temático para a questão do trabalho. Nesse nível, o jogo das vaidades não nos permitiria apreender o conjunto interdeterminado de experimentos que se fundamentam nas transformações presentes ou em curso na dinâmica do modo de produção capitalista e particularmente no trabalho, que sinali-zam desdobramentos diferenciados, porém capazes de mesclar distintos processos produtivos; for-mas diferenciadas de contratação; novas relações interfirmas e estratégias de desverticalização, focalização, etc.; fechamento de unidades produtivas em determinadas regiões e sua transferência para outras; projetos organizativos e de ação política de matizes também distintos e que requalifi-cam e redimensionam a territorialidade da sociedade e da luta de classe.

Não seria, portanto, um mero jogo de palavras ou qualquer possibilidade surpreendente de nos apropriarmos da nomenclatura Geografia do Trabalho que nos sentiríamos autorizados a com-preender a complexa trama de relações e a abrangência dos rearranjos produzidos em todos os setores da atividade econômica mediante o contínuo processo de (re)divisão técnica do trabalho que expressa diferencial, territorial e socialmente a magnitude da turbulência que está impactando pro-fundamente o mundo do trabalho16. Antes, pois, esse texto, como já apontamos anteriormente, está limitado às investigações concluídas e em consecução junto ao CEGeT, base aliás das reflexões teóricas, é antes, pois, um exercício que requer de nós, o reconhecimento das limitações para que possamos nos envolver com a superação.

Mais do que isso, assistimos a imposição de novas fissuras impressas à fragmentação do tra-balho e a decorrente polissemização que espelha as múltiplas clivagens que marcam a classe traba-lhadora e o movimento operário na virada do século XXI, tendo em vista a magnitude do complexo processo de reestruturação produtiva do capital que é alavancado pela busca incessante da compe-titividade e das vantagens competitivas, num contexto marcado pela mundialização do capital e pela difusão das políticas neoliberais, que contam, no caso brasileiro com o servilismo do staff estatal e toda a horda conservadora que dava sustentação ao governo FHC.

Geografia da estrutura societária do trabalho

É recorrente apontarmos que o processo de reestruturação produtiva do capital provoca um extenso conjunto de modificações no âmbito do trabalho e isso remete a profundas alterações no espaço e no território (como categorias de uso interligado), portanto, nas diferentes escalas de análi-se. Esses referenciais teóricos nos põem na linha de frente para captarmos o movimento através das suas contradições, pelo viés da sua dimensão espacial.

A partir dos anos 80 que, no Brasil, se manifestaram os primeiros impulsos do processo de reestruturação produtiva, mas foi a partir do início da década seguinte que este processo atingiu nova amplitude e profundidade, momento em que as inovações técnicas e organizacionais assumia-

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ram um caráter mais sistêmico em todo o circuito produtivo dos diversos setores econômicos. No entanto, guardando traço de semelhança em relação à busca da competitividade do capital e a ado-ção de novos padrões organizacionais e tecnológicos compatíveis.

Nesse percurso, quanto mais aumentam a competitividade e a concorrência intercapitalista, mais desastrosas e cruéis são as conseqüências para o trabalho, para a classe-que-vive-do-trabalho.

Para as preocupações deste ensaio, destacamos duas, que são, efetivamente, baluartes da barbárie hodierna. De um lado, a precarização, a dilapidação e a (des)efetivação extremadas e sem paralelos da força humana que vive-do-trabalho, e por outro lado, a degradação crescente do meio ambiente afeta, direta e conseqüentemente, a relação metabólica entre o homem e a natureza. A vinculação desses elementos à lógica societal ancorada na produção de mercadorias, na extração de mais-valia e, portanto, na valorização do capital nos remete, então, ao conceito de metabolismo societário do trabalho.

A espacialização da reestruturação produtiva faz-nos apreender o quão emblemático é para a classe-que-vive-do-trabalho a intensificação das transferências de atividades produtivas, a exemplo das fábricas localizadas no ABC paulista, que também nos revela exemplarmente as mudanças im-plementadas no seu interior para adequar a participação de fornecedores externos à nova territoriali-dade da produção/distribuição/circulação/consumo. Sem contar, a adoção da estratégia “relações de clientes” 17 entre setores da fábrica, o que põe em questão os limites da divisão técnica (territorial) do trabalho internamente à planta fabril e, conseqüentemente, a atuação das comissões de fábrica e porque não dizer dos sindicatos. Isso atinge estágio ainda mais sofisticado na linha da flexibilização da produção e, por sua vez, das relações de trabalho com a terceirização18. Sem contar que a deslo-calização industrial ou a “descentralização geográfica” 19 reabre o debate sobre a política industrial, tributária e fiscal 20.

Essa reorganização espacial do parque fabril, a divisão de instalações industriais em minifábri-cas e os desdobramentos para o que se consumou nos condomínios industriais, consórcio modular, promoveu fantasticamente o processo de produção capitalista, que pari passu capturou a subjetivi-dade operária para dar ordem à flexibilização das funções e a para a polivalência.

Isso influenciou diretamente na minimização da heterogeneidade tecnológica presente no se-tor automobilístico, especialmente quando se considera a indústria de autopeças, fazendo avançar as limitações do toyotismo restrito 21 [Círculos de Controle de Qualidade (CCQ’s) e o just-in-time/Kanban], mediante a introdução de inovações de produto e de processo relacionadas ao processo de difusão da microeletrônica22, ou seja, viabilização dos sistemas [Computer Aided Design (CAD)/Computer Aided Manufacturing (CAM)/Comando Numérico computadorizado (CNC), Controladores Lógico-Programáveis (CLP), Máquina-Ferramenta a Comando Numérico (MFCNC)], robôs, just-in-time, celularização da produção, intensificação da terceirização, sistemas de qualidade total com a adoção de Controle Estatístico de Processo (CEP), enfim, tudo referenciado no toyotismo sistêmico23 que influenciou sobremaneira na mudança do padrão de gestão do trabalho, através de métodos mais participativos/cooperativos, da revisão das estruturas de cargos e salários, e da valo-rização dos setores de recursos humanos.

O caráter mais sistêmico da reestruturação produtiva repercute diretamente sobre o trabalho, produzindo resultados diferentes para o conjunto dos países, mas o estigma de subordinado e de-pendente enquadra o Brasil numa condição subalterna. Em linhas gerais, poderíamos apontar o se-guinte: 1) A desproletarização do trabalho industrial fabril, típico do fordismo; 2) A ampliação do as-salariamento no setor de serviços; 3) O incremento das inúmeras formas de subproletarização, de-correntes do trabalho parcial, temporário, domiciliar, precário, subcontratado, “terceirizado”; 4) Verifi-ca-se, também, que todas essas formas que redimensionam a heterogeinização do trabalho têm, na crescente incorporação do trabalho feminino no interior da classe trabalhadora, expressão, em espe-cial, quando se pensa em termos da expansão do trabalho precarizado, “terceirizado”, sub-contratado, part-time, etc.; 5) Intensificação da superexploração do trabalho, através da extensão da jornada; 6) A exclusão de trabalhadores jovens e “velhos” (acima de 45 anos), do mercado de tra-balho; 7) A expansão do patamar de trabalho infantil, em especial nas atividades agrárias e extrati-vas.

A isso se somam os condicionantes que atuam de forma concomitante, que são de um lado, os duros ataques à legislação trabalhista que ameaçam seriamente os direitos adquiridos e que ci-

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mentam a pétrea estrutura social que impede a efetivação do ser social em sua amplitude/plenitude ontológica (o estranhamento), e que também influenciam, por outro lado, na ampliação da franja dos excluídos que engordam as fileiras dos ocupantes de terra, dos desempregados estruturais e da horda de trabalhadores e famílias inteiras que perambulam de lugar a lugar em busca de emprego, colocação, os errantes do fim do século 24 da sociedade flexível e desregulamentada.

É oportuno destacar que o processo de reestruturação produtiva no Brasil, enunciado nas po-líticas neoliberais está, de forma crescente, induzindo o crescimento e o alargamento do setor infor-mal que inclui empregados e desempregados, sendo que diferentemente das atividades autônomas que outrora recebiam essa caracterização. Isto é, o setor informal não é mais um simples depositá-rio de força-de-trabalho que atua autonomamente25. Ao contrário, essa autonomia é quebrada e gra-dualmente cede ao comando do capital que faz com que seu circuito se realize dentro dos marcos do circuito capitalista de produção, diretamente ligado e subordinado ao setor formal. As atividades informais não são apenas permitidas, mas vêm sendo incentivadas, visto que conduzidas mais de perto pelo capital, podem ser até mais lucrativas que as atividades formais26, tendo em vista os dife-rentes nexos (integração/subordinação) que mantêm com a expansão e acumulação de capital, uma vez que também liberam os empresários das relações de assalariamento e em decorrência, dos custos sociais fundados no vínculo empregatício.

De todo modo, chama atenção a profunda reformulação que ocorre no âmbito do trabalho. Do trabalho domiciliar (mediante a vigorosa extensão da reificação a todos os planos da vida humana, juntando no mesmo espaço de relações exploração e dominação), à camelotagem (dimensão plural da extrema fluidez da garantia da sobrevivência), passando por todas as demais formas de expres-são do trabalho informal, percebemos que a informalidade não só se complexificou, mas ampliou sua esfera de abrangência e se encontra vinculada às novas formas de organização da produção.

De um lado, é digna de registro a ofensiva destrutiva do capital, tendo à frente o Estado brasi-leiro nos últimos anos, particularmente no alvorecer do século XXI, em relação aos direitos trabalhis-tas conquistados pelos trabalhadores e pelas entidades vinculadas ao movimento operário e sindical em particular.

As conquistas alcançadas pelos trabalhadores no (limitado) texto constitucional de 1988 estão seriamente abaladas com as iniciativas de desregulamentar aspectos importantes do contrato de trabalho, como o desnecessário registro em carteira, em nome do barateamento do custo do traba-lho, escudado pela campanha nacional “Custo Brasil”, em nome da garantia de emprego, sendo que a segunda metade da década de 90 foi um dos piores momentos para os trabalhadores brasileiros e para os tais empregos.

Mais recentemente, a palavra de ordem no âmbito dos corredores democráticos do Planalto e nos labirintos do Congresso Nacional é “flexibilizar” a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A investida dos setores hegemônicos já garantiu vitória parcial para essa empreitada destrutiva do capital sobre a classe trabalhadora, tendo em vista a fila para a segunda votação na Câmara dos Deputados o projeto 5.483, propondo modificações no artigo 618, que prescreve a prevalência de acordo negociado entre capital e trabalho (as partes), em detrimento dos direitos assegurados no código, por exemplo: FGTS; 130 salário; salário-família; licenças maternidade e paternidade; des-canso semanal remunerado; aviso prévio proporcional; adicionais de insalubridade, periculosidade e penosidade; contrato precário de trabalho por tempo indeterminado, etc. Setores da imprensa, os porta-vozes de plantão das classes dominantes e parcelas expressivas do sindicalismo inscritos no propositivismo à imagem e semelhança da Força Sindical, não se cansam em apregoar que as re-formas nas leis trabalhistas é o entulho do populismo getulista que precisa ser varrido e são inexorá-veis para o bem de todos e para a modernização das relações de trabalho no Brasil.

É preciso afirmar que o ataque ao artigo 618 está focado para retirar do texto constitucional as principais conquistas dos trabalhadores durante todo o período que sucedeu 1978, quando o novo sindicalismo emerge e repõe na ordem do dia um conjunto de reivindicações dos trabalhadores sub-sidiadas pelas greves que sacudiram os porões da ditadura e fizeram nascer novas expectativas para a classe-que-vive-do-trabalho. Portanto, a luta do movimento sindical e dos trabalhadores em particular para inserir no texto constitucional nada mais do que títulos de proteção, estão na alça de mira dos liberais e dos defensores de um Brasil grande. Cenas típicas de barbárie ainda nos assus-tam 27 .

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Por outro lado, talvez o mais importante aspecto do ponto de vista da regulação social, é que quase tudo que até meados dos anos 80 era considerado ilegal, como vínculo de trabalho sem carteira assinada ou sem registro, contrato temporário, instabilidade, jornada com duração variável, ganharam não somente a dimensão da legalidade, mas também da chancela da legiti-midade. Sob o crivo das práticas flexíveis, se consumam avaliações fundadas no falso argumen-to de que toda a regressão em relação às conquistas trabalhistas é benéfica, pois um número maior de empregos pode ser garantidos.

O duro golpe que o Estado, o Congresso Nacional e os setoriais sociais alinhados com o me-tabolismo do capital planejam desferir contra a classe-que-vive-do-trabalho, ultrapassa o foco central deste ensaio, o que merecerá nossa atenção em outra oportunidade, mas poderíamos assegurar o quão destrutivas serão para os trabalhadores, e particularmente para o movimento sindical, as refor-mas em curso na legislação trabalhista estão ligadas às mudanças provindas do processo de traba-lho.

Podemos, seguramente, asseverar que na virada do século XXI, sob a hegemonia financeira, o capital amplia seu arco de efetivação enquanto relação social, não mais restrita ao mundo fabril e nos impõe considerar um espalhamento de realizações da expropriação/dominação/apropriação do trabalho. O mundo do trabalho não se restringe mais à fábrica, tampouco a fábrica é o mundo do trabalho; o trabalho tem seu sentido ampliado, revelando-se polissêmico. Em tempos de globa-lização outros códigos e arranjos espaciais se apresentam para serem decifrados28.

Poderíamos apreender desse processo, como nos indica Moreira (1998), que “cada tempo da história é marcado por uma forma de organização espacial da sociedade”. Conseqüentemente, sob a nova sociabilidade imposta pelo capital, nos dias de hoje, a classe trabalhadora é mais complexa e ampliada que o proletariado industrial (tradicional), dos séculos XIX e XX.

Entender a classe trabalhadora, diante dos desdobramentos do complexo da reestruturação produtiva, a polissemia do trabalho, requer que consideremos como parte integrante: a) O conjunto dos trabalhadores que vivem da sua força de trabalho; b) Aqueles com certa autonomia em relação à inserção no circuito mercantil, como os camelôs; c) Os trabalhadores proprietários ou não dos mei-os de produção e inclusos na informalidade, como as diferentes modalidades do trabalho familiar na agricultura e que são inteiramente subordinados ao mando do capital; d) Da mesma forma, os cam-poneses com pouca terra e que se organizam em bases familiares; e) O conjunto dos trabalhadores que lutam por terra, inclusive os camponeses sem terras, posseiros, meeiros e; f) Todos os demais trabalhadores que vivem precariamente junto às suas famílias, da produção e venda de artesanatos, pescadores, etc.

Enfim, essa definição de classe trabalhadora nos permite compreender a malha social com-plexa que reflete a característica principal da organização espacial do nosso tempo, ou seja, o conteúdo contraditório da luta de classes e os elementos estruturantes da relação capital-trabalho.

O desvendamento do ordenamento territorial resultante da processualidade social é o que nos permitirá entender o significado dos fenômenos nos lugares. Assim, acreditamos que a concreção de uma Geografia do trabalho fundada na compreensão histórica do trabalho e conseqüentemente, na estrutura espacial que o regula, possa nos permitir dialogar com a comunidade interessada (trabalhadores, sindicalistas, pesquisadores, estudantes, etc.), sobre os rumos do mundo do traba-lho no âmbito da luta emancipatória.

As travagens do processo social: características espaciais do poder de classe do capital

No estudo anterior29, pudemos investigar em profundidade o exercício do poder do capital so-bre o trabalho, a partir do que denominamos de gestão territorial do capital, considerando, pois, o processo de alienação do trabalho como elemento fundante da hegemonia de classe. Assim, a ges-tão do capital sobre o território pode ser vista como sendo sua própria autogestão territorial, que tem como limite a abrangência da estrutura empresarial, diferentemente do trabalho que se vê e se “lê” na razão fragmentária da divisão técnica do trabalho e por via de conseqüência a partir do formato corporativo delimitado pela CLT e refletido na própria existência dos sindicatos30. A configuração territorial (alienada) resultante, nos mostra que o trabalhador além de estar alienado do produto do seu trabalho, está também alienado da sua identidade com o semelhante (ser social), não se reco-nhecendo mais como proletário, mas como bancário, motorista, químico, professor, etc. Por outro

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lado, o sindicato ao expressar-se territorialmente, aliena-se triplamente, ou seja, fracionado como categoria, delimitado territorialmente com base na determinação legal (municipal) imposta pela CLT e consoante à localização da empresa.

Então, enquanto o capital se vê e se “lê” na abrangência do empreendimento econômico, o trabalho se vê mediante a fragmentação corporativa das especializações e das profissões/atividades, e se “lê”, já no plano da subjetividade através dos filtros do ordenamento territorial que prescreve os limites da compreensão operária. Em síntese, o sindicato, instância coletivo/corporativa do trabalho alienado, expressa-se territorialmente como ordenação territorial resultante do fracionamento do trabalho em categorias, assentado por fora do embate da relação capital x tra-balho, quando se limita ao cenário do conflito visto e imposto pelo Estado. A esse respeito, mesmo que lhe sirva de referência à territorialidade das empresas e a elas estejam materialmente ligados, nelas estão alienados, culminando com a corporificação categoria-território. É como se pensásse-mos que “seu” território (base territorial) só é, aparentemente, “seu”, pois fracionado corporativa-mente enquanto representação (alienado no binômio sindicato-território) e enraizado na delimitação do empreendimento capitalista, move-se, portanto, no território do capital - legitimado pelo Estado -, condição e pressuposto para o controle e subordinação do trabalho pelo capital.

Concentrando-nos, por ora, na amplitude e na complexidade da questão do trabalho sob o capitalismo, especialmente com amparo nas recentes pesquisas, podemos admitir que a sociabilida-de contemporânea, muito mais fetichizada do que períodos anteriores, reafirma a lógica destrutiva do sistema produtor de mercadorias31, ancoradas, portanto, na vigência do trabalho estranhado.

O estranhamento entendido sob o referencial indicado por Lukács, segundo Antunes (1999, p. 193) como sendo “a existência de barreiras sociais que se opõem ao desenvolvimento da individuali-dade em direção a omnilateralidade humana”, o capital ao mesmo tempo em que pode, munido “pelo avanço tecnológico e informacional, potencializar as capacidades humanas, faz expandir o fenômeno social do estranhamento” (Antunes, 1999, p.193). Essa espacialidade é o ponto cardeal para que possamos compreender por que a classe trabalhadora não foi beneficiada desse mesmo desenvolvimento tecnológico para a realização de uma subjetividade cheia de sentido. Depreende-mos disso que ao mesmo tempo em que a capacidade humana (intelectual) pode crescer com o desenvolvimento tecnológico, o mesmo não ocorre com os indivíduos, como argumenta Lukács (1978, p.23), “são sacrificados”.

Nada mais convincente do que os fatos registrados nos quatro quadrantes do globo, que impi-edosamente amargam os indicadores sociais, tais como: a superexploração do trabalho, as irrever-síveis e canhestras taxas de desemprego (estrutural), as formas flexibilizadas de contratação, os diferentes arranjos que exprimem a diversidade das expressões da precarização (informalidade, terceirização, part time, etc.). Enfim, sobre essa barbárie são edificadas as barreiras sociais que impedem internamente à estrutura societária do capital, a plena realização de uma vida cheia de sentido e emancipada32 para a classe-que-vive-do-trabalho.

Seria o mesmo que dizer que a sociedade contemporânea é movida predominantemente pela lógica do capital, pelo sistema produtor de mercadorias e que o trabalho abstrato cumpre o papel decisivo na criação de valores de troca. Então, quando se fala em crise do trabalho, está se falando da crise do trabalho abstrato. Sabemos, pois, que no universo da sociabilidade produtora de merca-dorias, o valor de uso das coisas é minimizado, reduzido e subsumido ao seu valor de troca.

É absolutamente necessário qualificar a afirmação genérica de que há uma crise no trabalho ou crise na sociedade do trabalho. Ou seja, temos que esclarecer se se trata de uma crise da socie-dade do trabalho abstrato ou se estamos diante de uma crise do trabalho também em sua dimensão concreta, enquanto elemento fundante do intercâmbio social entre os homens e a natureza (LUKÁCS apud PAULO NETTO, 1983).

Como já afirmamos, nesse processo de auto-realização da humanidade, de desenvolvimento do ser consciente em relação ao seu agir instintivo e à natureza, temos o trabalho como referência ontológica fundante da práxis social. Em síntese, ontologicamente prisioneiro da sociedade, o traba-lho, em todas as suas dimensões, é a base fundante do autodesenvolvimento da vida material e espiritual, sendo que circunscrito à sua forma concreta, garantiria a realização de uma vida cheia de sentidos, emancipada para o ser social que trabalha.

Diante disso, não podemos concordar com a tese do fim do trabalho ou da perda de sua

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centralidade33, tampouco com o fim da revolução do trabalho. Enquanto perdurar a sociedade ca-pitalista, seria praticamente impossível imaginar a eliminação da classe-que-vive-do-trabalho en-quanto vigorarem os elementos constitutivos da estrutura societária do capital. Efetivamente, o que se vê não é o fim do trabalho, mas sim a continuação desmedida da exploração do trabalho, sob novas exigências da lei do valor e, portanto, uma nova gestão societal gerida por novos refe-renciais, impulsionados e sacramentados no interior do processo de reestruturação produtiva do capital, como tratamos anteriormente.

No entanto, é importante ponderar que o debate político, ideológico e científico, partidário, etc., instalado em torno da centralidade ou não do trabalho, nem de longe poderá ser esgotado nesse momento. Objeto das nossas investigações, todavia, é possível adiantar que o que deve ser considerado é que “a sociedade do capital e sua lei do valor necessitam cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais das diversificadas formas de trabalho parcial, par time, terceiriza-do” (ANTUNES, 1999, p.119). Já para Coriat (1994), o aspecto principal nesse debate é que o taylotismo está sendo capaz de responder à regulação social (ameaçada e em crise, sob os mol-des taylorista-fordista) e, portanto, reaver os patamares de produtividade, incluindo os trabalhado-res para o centro de um novo pacto entre as classes sociais, ou um novo compromisso de equilí-brio social. Outros autores, como Antunes (1999), Harvey (1993), Alves (2000), mostram que o metabolismo social do capital, visto a partir das formas de organização/controle do trabalho inspi-radas no toyotismo e as formas daí combinadas, recolocam em cena novas questões à explora-ção do trabalho e que estão impactando fortemente as instâncias organizativas e políticas.

Assim, precarizado e complexificado, o mundo do trabalho expõe um cenário polêmico. Muito se fala do fim do trabalho, todavia é o emprego que está moribundo, ou seja, com a diminuição do operariado industrial tradicional, temos ao mesmo tempo a desproletarização do trabalho manual, a heterogeneização, a subproletarização do trabalho, ou ainda sob o impacto da flexibilização e dos efeitos das derivações do talylorismo-fordismo para o toyotismo ou formas combinadas, bem como outras formas de organização do processo de trabalho, o que Beynon (1998) denomina de operários hifenizados, aqueles que se enquadram em trabalho-parcial, trabalho-precário, trabalho-por-tempo, trabalho-por-hora. Importa afirmar que por conta disso há um aumento da classe-que-vive-do-trabalho em bases intensamente precarizadas.

Isso configura uma nova materialidade do trabalho que não exaure na mudança ocupacional, em particular, diante das hordas de trabalhadores desempregados, mas atua diretamente na sub-jetividade do trabalhador, nos seus referenciais culturais, de classe, de gênero, etc.

Como resultado das transformações e metamorfoses que recobrem o mundo do trabalho, sinteticamente referido pela subproletarização e pelo desemprego – especialmente pela pequena distância existente entre ambos – podemos afirmar que os desdobramentos para o universo sim-bólico dos trabalhadores e particularmente dos desempregados são seriamente afetados. Esse assunto é central, pois, na prática, os trabalhadores desempregados são proletários que vivem a radicalidade da despossessão, no entanto, a fragilidade dessa radicalidade se expressa no fato de que a partir da sua exclusão da ordem do capital, são incapazes de articular um movimento eman-cipatório para além do capital. Os trabalhadores desempregados afirmam a sociedade do traba-lho, mesmo sendo a materialização da negação do trabalho (empregado).

O caráter excludente do capital também tem sinalizado uma tendência sui-generis. Ou seja, a própria centralidade do trabalho abstrato produz dialeticamente a não-centralidade do trabalho, a partir do momento em que presenciamos o crescente contingente de excluídos do trabalho vivo, que depois de dessocializados com o desemprego, vão ao encontro da ressocialização nas esferas iso-ladas do não-trabalho, particularmente nas atividades de formação34, de benevolência, e de servi-ços, ao encargo, na maioria dos casos, de ONG’s, entidades sindicais, entidades de assessoria35 (ANTUNES, 1999).

Isto em nada desloca a centralidade do trabalho sob nenhum argumento em defesa do seu descentramento, tendo em vista que a emancipação que se anuncia nos dias de hoje é efetivamen-te, um conjunto de ações ou mais propriamente, uma revolução emancipatória no trabalho, do traba-lho e pelo trabalho.

Assunto distante da Geografia do dia-a-dia, queremos salientar que a emancipação (libertadora) do trabalho passa necessariamente, pelo desestranhamento, caminho esse que terá

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como ponto de partida o trabalho humano, uma vez que o estranhamento manifesta-se historica-mente, como objetivação e apropriação. A classe trabalhadora não somente estará se opondo ao poder do capital, “mas transcende a si mesmo e a este último, na medida em que emancipa o traba-lho do seu jugo” (RANIERI, 2001,p. 9).

Esse é, na verdade, um empreendimento societal difícil, pois a dessocialização do trabalho na sociedade do capital, a alienação, o estranhamento que consolidam as clivagens e a heteroge-neização que marcam a classe trabalhadora, é colocada em xeque em detrimento da retomada do princípio do pertencimento de classe.

Geografia do Trabalho: um recorte analítico!

Tomando por base o constructo do edifício societário que vivenciamos, acreditamos que a complexa trama de relações contraditórias que qualificam o mundo do trabalho nessa virada do sé-culo XXI, mesmo com a fragmentação interna à seara sindical, a heterogeneização e as clivagens corporativas, é possível vislumbrar a emancipação social a partir das diferentes frentes de ações internas ao mundo do trabalho, que representam as novas formas de confrontação social contra o capital (revoltas, rebeliões, explosões sociais, greves, etc.). No caso brasileiro despontamos o uni-verso de luta pela terra, particularmente no âmbito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)36 e no caso mexicano, o movimento de Chiapas37. Em outras palavras, considerando o universo plural do mundo do trabalho, de forma significativa e expressiva socialmente, esses exem-plos nos permitem reconhecer a identidade da classe trabalhadora como segmento social potencial-mente mais representativo do sentimento anticapitalista.

No entanto, é importante precisar que são os trabalhadores que vivenciam diferentes estágios da subproletarização (hifenizados, domésticos, terceirizados, subempregados, informais, campone-ses com pouca terra, trabalhadores sem terra, etc.), juntamente com os desempregados, enfim os segmentos mais precarizados e excluídos, portanto, dessocializados pela expulsão do trabalho, são, hoje os sujeitos que vergam as ações mais ousadas. Distantes do processo de criação de valores e subjugados da sociabilidade do capital estão muito mais propensos a manterem de pé o sentimento anticapitalista em evidência.

É em torno das ações concretas (ocupações de terras, caminhadas, marchas, ocupações de prédios públicos, etc.) que se expressam os principais momentos da revolta e da resistência da clas-se trabalhadora diante do metabolismo do capital no momento vigente, apesar de inúmeros fatos acontecerem, a imprensa não noticia, dado o nível de comprometimento com o status quo. Muito mais à frente dos partidos políticos e das centrais que um dia brandiram qualquer interesse ou vín-culo com a classe trabalhadora, o MST e também outros movimentos sociais, como o MAB (Movimentos dos Trabalhadores Atingidos por Barragens), o MPA (Movimento dos Pequenos Agri-cultores), representam hoje frações significativas da vanguarda da classe-que-vive-do-trabalho, pro-va é a programação do II Fórum Social Mundial, recentemente realizado em Porto Alegre, e as idéi-as defendidas pela Via Campesina38.

Contrariamente, os segmentos da classe trabalhadora mais qualificados e intelectualizados que estão inseridos nos setores mais tecnologizados e com maior participação no processo de cria-ção de valor, não apresentam o mesmo poder de resistência anticapitalista. Como nos diz Antunes (1999, p. 217): “Contraditoriamente, são esses setores mais qualificados os que sofrem de modo mais intenso o processo de manipulação no interior do espaço produtivo e de trabalho”. O fato de experienciarem maior envolvimento e subordinação à dinâmica (re)produtiva do capital, não se tra-duz, do ponto de vista da consciência de classe, em ações emancipatórias. O grau de manipulação e dominação em execução com as mudanças incutidas na organização do processo de trabalho, através do toyotismo e suas gradações (fundamentalmente através da apropriação do saber operá-rio pelo capital)39, e mesmo outras formas de gestão do trabalho, apelam para a participação do tra-balhador como parceiro em defesa da empresa.

A ameaça constante da substituição de trabalho vivo por trabalho morto tem promovido pro-fundas fissuras na subjetividade operária, com reflexos para a organização sindical em todos os ní-veis da estrutura corporativa: dos sindicatos, às confederações e, também em nível das centrais. A veracidade do desemprego, diga-se, arma secular do capital para o efetivo exercício do controle e da dominação sobre o trabalho, agora se expressa de forma mais agressiva e ampla, sendo um dos

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principais instrumentos da regulação capital-trabalho em poder do capital, sendo que em vários ca-sos com o beneplácito do Estado. Em alguns casos a defesa do emprego a qualquer custo e todos os desdobramentos do processo em questão, tem redefinido profundamente a luta do trabalho no âmbito sindical. A título de exemplo, poderíamos recorrer à recente crise que abateu diretamente a Volkswagen (São Bernardo do Campo), no segundo semestre de 2001, que contou com a participa-ção do Sindicato dos Metalúrgicos, portador do estilo propositivo40 e conciliador, aliás, perfil que está equalizando de forma geral o universo sindical, tendo à frente os sindicatos cutistas e os demais vinculados à Força Sindical e às duas CGT’s. Certamente, estamos diante de um processo histórico que contradiz de forma radical o período do ressurgimento do movimento sindical e operário no Bra-sil, no início dos anos 80. O amalgama de posições conciliadoras hegemonizam a sociabilidade pre-sente no universo sindical brasileiro, repercutindo no cenário eleitoral de agora, plasmando interes-ses outrora radicalmente divergentes, mas com sintonia fina na busca do resultado do pleito. É o que se assiste diante das alianças que se processam entre o Partido dos Trabalhadores e os de-mais partidos conservadores e liberais e, por via de conseqüência, entre a CUT e a Força Sindical.

Todos esses fatos nos indicam não ser compatível com o tamanho dos desafios que se colo-cam ao mundo do trabalho ou particularmente à classe trabalhadora, que não observemos os dife-rentes elementos e perfis dos segmentos da classe-que-vive-do-trabalho. Isto é, as características espaciais desse processo que revela um novo universo das confrontações contra a lógica destrutiva do capital e particularmente a tradução disso em ações concretas e os conteúdos tático-estratégicos específicos, é o que vai nos permitir entender a dinâmica territorial da relação capital-trabalho e as demais formas de expressão da luta de classes. Em outras palavras, as formas específicas que a sociedade se organiza nos lugares, portanto, o conteúdo de cada expressão social que mescla ele-mentos e fatores do mundo do trabalho é o que nos vai permitir compreender o universo das contra-dições imanentes à sociabilidade contemporânea.

Para ilustrar, poderíamos pensar em alguns dos principais aspectos mais freqüentes: a) trama de relações que fundamentam as vias de comunicação entre as diferentes faces da subproletariza-ção e a conseqüente desterritorialização dos trabalhadores nos centros urbanos; b) a subproletariza-ção e a luta pela terra nos centros urbanos, mas fundamentalmente no campo pela abrangência e expressividade política, social e territorial; c) o processo de desterreação que redefine os desloca-mentos da classe trabalhadora pelo território (intra e interurbano, intra e inter-campo e campo-cidade); d) a magnitude e o conteúdo do processo que tem na heterogeneização do trabalho seu componente principal, particularmente com a crescente incursão da mulher no mercado de trabalho (e todas as implicações sobre o gênero humano), de forma especial sob relações absolutamente precarizadas, que têm no trabalho domiciliar41 ancoradouro seguro para a extinção de setores intei-ros das unidades produtivas, no caso das indústrias de confecção, do vestuário, alimentícias, etc.

Essa nova Geografia do trabalho nos põe atentos às investigações e ao debate teórico.

Marcos e marcas de um novo discurso

A tentativa de dar respostas a perguntas que se apresentam no âmbito do trabalho nos reme-te a um esforço de compreensão teórico-prático com vistas à realização dos cruzamentos internos à tríade metodologia, epistemologia e ontologia, para efetivarmos uma “leitura” geográfica do trabalho. As dimensões desses cruzamentos e os requerimentos específicos que cada assunto demanda, nos colocarão atentos para as mediações necessárias para a concreção da análise geográfica do traba-lho.

O que nos propomos focar está circunscrito à pluralidade de combinações e contradições fun-dadas na sociedade do capital. As bases societárias que das diferentes combinações emanam, re-velam por dentro da dinâmica do processo social, o mundo do trabalho, portador de complexas rela-ções com características espaciais e expressões territoriais que nada mais são do que os marcos do tempo-espaço da relação capital-trabalho e as derivações e desdobramentos daí decorrentes, ou seja, o metabolismo societário do trabalho.

Sob os diferentes arranjos do metabolismo societário, temos, então, os formatos que a socie-dade expressa territorial e espacialmente. Os conseqüentes significados que desses cenários extraí-mos, que recortamos para estudar (analisar geograficamente), expressam consoante à especificida-de dos lugares, a magnitude e o conteúdo da trama de relações combinadas e contraditórias que enquanto (des)naturalização, (des)terreação e (des)territorialização42, nada mais são do que o movi-

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mento plural de edificação do mundo do trabalho e o seu devir ontológico. Em termos metodológicos seria o mesmo que focarmos o fenômeno do trabalho no sentido da dinâmica geográfica, e o fenô-meno geográfico como dinâmica do trabalho, num vai-e-vem dialético que nos permitiria apreender o conteúdo e o significado espacial e territorial do metabolismo societário da sociedade do capital, sendo, pois, o espaço, estrutura, a categoria abarcante que referencia o uso interligado com o terri-tório, recorte de domínio ou dimensão locacional do domínio. Seria o mesmo que dizermos que o território deve ser visto no âmbito do espaço, e o espaço como instância na qual vai se mover o ato analítico do território (MOREIRA, 2001c).

Disso podemos entender que a face espacial do trabalho tem no processo social sua significa-ção primeira. Dados os limites deste texto, a título de exemplo, poderíamos assumir que a base constituinte da classe operária (trabalhadores vendedores da força-de-trabalho), está a (des)terreação do campesinato. As conseqüências espaciais desse processo, (que coincide com a acu-mulação primitiva de capital), da proletarização à formação do exército industrial de reserva, base fundante do universo operário-fabril, também ganham as outras esferas do mundo da produção de forma geral.

Encima do no cenário mercantil, por excelência fundado na produção/extração de mais valia, o capital tece dialeticamente seu mundo (re)construindo relações de subordinação, de controle e de mando, que fundamenta a relação capital-trabalho. E desse mundo, no interior da luta de classes que também somos chamados ao desafio de entendermos a (des)territorialização dos atores sociais envolvidos nesse processo, que na rabeira da expansão do parque fabril à escala planetária, anunci-a uma fase específica do capitalismo. Depois de ultrapassada a fase concorrencial da era imperialis-ta, o capitalismo monopolista constrói um universo de relações que desde o início do século XX edi-ficou o deslocamento constante dos trabalhadores de um lugar a outro, num vai-e-vem sem fim. Es-se processo sempre foi acompanhado da resistência do trabalho, ora dos camponeses para não saírem da terra, ora dos já proletarizados trabalhadores, para não perderem o emprego, vide a rica história do movimento operário e camponês nos quatro cantos do planeta.

Ao recorrermos ao caso brasileiro, notamos que se num dado momento a desterreação signifi-cou a expulsão de milhões de camponeses e índios da terra rumo aos centros urbanos, em momen-to recente a desterritorialização dos trabalhadores proletarizados em geral, mas, sobretudo, urba-nos, que expressa a cisão do vínculo empregatício ou perda do emprego, move parte desses traba-lhadores ao retorno a terra43, sendo, então, a fração majoritária vagueia de lugar a lugar em busca de novas colocações, sendo que para garantir seu sustento se enquadram em diferentes atividades urbanas, que exprimem formas assalariadas, semi-assalariadas, autônomas, mas todas reunidas no quadro da precarização do trabalho44.

Esse contínuo e conflituoso processo de (re)territorialização do trabalho também apresenta faces específicas em relação ao retorno à terra, ou ainda, a permanência na terra, mas não mais como proprietário, posseiro, arrendatário, parceiro, mas como assalariado, assentado, ocupante, etc.

Vimos que a face espacial e o conteúdo territorial da inserção do trabalho no processo social capitalista só podem ser entendidos se levarmos em consideração as contradições imanentes e ter-mos na totalidade o referencial para o empreendimento analítico. Seria o mesmo se disséssemos que os recortes estanques que ora correspondem às especializações, ora se confundem com sub-áreas, ou até disciplinas, podem nos impossibilitar compreender a dialética do processo social45.

Assim, se focarmos a realidade brasileira, com as atenções voltadas para explicarmos deter-minadas características do mundo agrário, seja o processo de luta pela terra, através das ocupa-ções e dos enfrentamentos com os latifundiários e com o Estado; seja a mudança tácita do Estado e de setores da intelectualidade orgânica que apostam na necessária mudança de foco da questão agrária para o desenvolvimento rural46 (e todas as implicações sociais, políticas e espaciais de cor-rentes); seja as formas de organização dos camponeses, se através da instância sindical ou dos movimentos sociais populares, bem como as formas específicas utilizadas para a viabilização dos assentamentos e da produção, via inserção mercadológica; seja a inserção do trabalho assalariado na agricultura ou particularmente nas atividades agroindustriais tecnificadas e as formas de organi-zação dos trabalhadores (associações, sindicatos, cooperativas de trabalho); seja a expulsão, a des-terreação das comunidades indígenas e a sua (des)integração social através dos diferentes meca-nismos, ao circuito da produção mercantil; enfim todas as derivações e combinações desse cenário, não podemos dissociá-las do metabolismo societário (destrutivo) do capital47.

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Da mesma forma, quando voltamos a atenção para o mundo urbano, quando se põem em cena situações diferenciadas em relação à inserção do trabalho e suas decorrentes territorialidades: desde as formas clássicas do trabalho assalariado, passando para o expressivo contingente de pro-letários que não podem mais ser entendidos como assalariados tradicionais porque são diaristas ou ganham por produção, por metas, etc.; as formas vigentes do trabalho informal e suas diferentes faces (domiciliar, camelotagem, etc.); as cooperativas de trabalho; o deslocamento constante dos trabalhadores sem-teto e a luta por moradia, não obstante o distanciamento da “leitura” entre o mo-mento da produção e da reprodução da força de trabalho, o que repercute na fragmentação organi-zativa da classe trabalhadora para reivindicar moradia e salário como coisas distintas e incomunicá-veis; o realce do componente gênero48, particularmente com o ingresso crescente de mulheres no mercado de trabalho, cada vez mais flexibilizado e precarizado; a configuração do mercado de tra-balho dual, de um lado composto por esses segmentos precarizados e por outro, com os setores que ganham a dimensão de altamente especializados, etc.

Enfim, nos sentiríamos impossibilitados para entender o conteúdo e a característica espacial do mundo do trabalho sem que considerássemos as contradições da processualidade social que marcam, fundamentalmente, o intercambiamento e as determinações em todos os níveis escalares da dimensão do trabalho, entre o urbano e o agrário, entre o material e o imaterial, entre o produtivo e o improdutivo, entre formal e o informal, etc. Ou seja, há uma complexa trama de relações que imprime certa plasticidade à nova sociabilidade expressa na dinâmica da sociedade, a espacialida-de. Para tanto, o trabalho nas mais diferentes inserções e formas de exercitação ontológica não po-de mais ser entendido em si, deslocado das ligações e relações societárias e das mediações soci-ais que proclamam seu redefinir constante.

Então, como desconsiderar para a explicação dos conflitos sociais em torno da luta pela terra no Brasil os elementos condicionantes do edifício social como um todo49? Tornam-se ineficientes e inconsistentes as explicações que nesses casos se circunscrevem à concentração fundiária, à trucu-lência dos latifundiários, etc., e não leva em consideração a estrutura societal como um todo, a dinâ-mica das classes sociais, o conteúdo e o significado da luta de classe, o grau de organização do movimento operário, enfim, as fissuras e clivagens presentes no mundo do trabalho, a polissemiza-ção, etc., sob a matriz, por muitos de nós defendida, como síntese de múltiplas determinações.

Não apostar nisso nos distanciaria de uma possível compreensão da realidade viva do mundo do trabalho e de qualquer possibilidade de enxergarmos as alternativas e possibilidades de unifica-ção orgânica internamente à classe-que-vive-do-trabalho, com vistas à sua emancipação social.

A Geografia pode contribuir sobremaneira para o desvendamento das manifestações territori-ais do processo social, possibilitando-nos o entendimento das transformações no mundo do trabalho a partir dos rearranjos espaciais que dão formas e contornos e se fundamentam sobre conteúdos sociais diversos, ou seja, enquanto processo histórico de construção e transformação, que por sua vez, substantiva-se em ordenamento territorial diferencial. Isso nos permite concordar com Santos (1994. p. 132-134), quando assevera que uma sociedade só existe se ela existe geograficamente.

A Geografia do trabalho se põe em cena, assim como as demais disciplinas ou ramos do co-nhecimento científico, para responder as perguntas em relação à realidade, sabendo-se, pois, que a temática do trabalho, assim como a sociedade de maneira geral não é exclusiva ou restrita a nenhu-ma delas. Inicialmente focado na dimensão do território, recorte de domínio do espaço, é possível reconhecermos por dentro da dinâmica da sociedade as diversas faces e interfaces do mundo do trabalho. Em outros termos, intentamos, num só movimento, a partir da ordenação territorial do fenô-meno, movimentar-nos tanto do ponto de vista da escala territorial (e as generalizações daí decor-rentes), quanto da escala categorial, isto é, do que entendemos ser o “jogo” das determinações.

Todavia, somente através das pesquisas será possível apreendermos as especificidades da dinâmica do trabalho nos diferentes lugares e conseqüentemente, quais os significados da subjetivi-dade que (re)definem ações, posturas, alianças políticas, pactos e projeto de sociedade dos traba-lhadores, particularmente do movimento operário e dos movimentos sociais de maneira geral. As dificuldades para a compreensão das travagens que impossibilitam a “leitura” do mundo do trabalho para além do capital, é o que nos motiva a dar seqüência às investigações do metabolismo societá-rio do trabalho, ou seja, as complexas e múltiplas determinações presentes no mundo do trabalho.

Este ensaio nos permitiu reafirmar que a Geografia do trabalho vem para somar aos demais que entendem ser possível através do conhecimento científico contribuir para a compreensão da sociedade do capital e compromissada com a construção de uma nova sociabilidade do trabalho para além do capital50. Desnecessário seria reinventar o intelectual orgânico!

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Notas ∗ Esse texto é produto das investigações viabilizadas através do Projeto de Pesquisa “Território em Transe: Metabolismo Societário do Capital e as Mutações no Mundo do Trabalho”, financiado pelo CNPq, na alínea Produtividade em Pesquisa (PQ), que iniciado desde março de 2001. Foi apresen-tado, em versão preliminar no IV Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação em Geografia - ANPEGE, e em respeito à atual versão, durante as atividades do IV Colóquio Internacional de Geo Critica, realizado junto à Universidade de Barcelona, com o apoio financeiro da Fundação de Ampa-ro à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no período de 27 a 30 de maio de 2002, onde se encontra disponibilizado no site: www.ub.es/geocrit ∗∗ Professor dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação da FCT/UNESP/Presidente Prudente; Pesquisador 2C do CNPq; Coordenador do Grupo de Pesquisa “Centro de Estu-dos de Geografia do Trabalho” (CEGeT) < www.prudente.unesp.br/ceget >; Coor-denador do Centro de Documentação, Memória e Hemeroteca Sindical “Florestan Fernan-des” (CEMOSi). E-mail: [email protected].

1. Cf. “Populações Ativas” (1979), “Sociologia e Geografia” (1969), “Geografia Ativa” (1973) e “Geografia Econômica” (1973). 2. O aprofundamento sobre os autores que na Geografia tiveram peso na formulação e sistematiza-ção do arcabouço teórico-metodológico e epistemológico será objeto das nossas atenções para po-dermos dimensionar com a precisão que o assunto merece, as relações com a temática do trabalho. O ensaio “Território Minado: A Emancipação do Trabalho em Questão”, em elaboração, deverá con-ter as primeiras sensações dessa pesquisa que está sendo viabilizada através do Projeto “Território em Transe...”. 3. Na obra seminal “Por uma Geografia Nova”, Milton Santos apresenta reflexão de grande fôlego sobre essa questão.

4. Em Lukács (1995) encontramos reflexões preciosas sobre essa questão. Autor responsável por obra destacada sobre a compreensão marxiana da ontologia do ser social, nossos primeiros passos nessa literatura estão sendo primorosos para a compreensão das contradições presentes no mundo do trabalho. Ver ainda Mézáros (1993,1999, 2002).

5. Cf. Lukács, 1979. 6. Carlos Nélson Coutinho e Sérgio Lessa nos oferecem uma rica “leitura” da Ontologia do Ser Soci-al de Lukács, em “Lukács, a Ontologia e a Política”. In: Antunes, R., e Rego. W. L. (Orgs.). São Pau-lo: Boitempo, (1996). 7. Temos conhecimento de três agrupamentos em formação, um em torno do professor Ruy Morei-ra, junto a UFF; outro junto ao Professor Diamantino Pereira, na PUC/SP; e outro ligado ao Labora-tório de Geografia Humana, na USP, associado ao Grupo Krisis, sob a coordenação do professor Heinz Dieter Heidemann. 8. Na seqüência do trabalho de mestrado, sobretudo a partir da experiência de pesquisa com o dou-torado, seguida lado-a-lado pela assessoria sindical. 9. O CEGeT está credenciado junto ao CNPq e é hoje composto por 18 pesquisadores envolvidos em investigações de diferentes facetas do mundo do trabalho, sob o foco da “leitura” geográfica. A Revista Pegada nas versões impressa e eletrônica, bem como o site (www.prudente.unesp.br/ceget) se somam às ações conjuntas com o Centro de Memória, Documentação e Hemeroteca Sindical “Florestan Fernandes” (CEMOSi), que desenvolve atividades ao longo do ano e abriga acervo sindi-cal imprescindível para as pesquisas. 10. Em abril/maio de 1999 pudemos realizar estágio junto à Universidade de Santiago de Composte-la, através do Programa de Cooperação Internacional (PCI). 11. Sob a orientação do professor Ricardo Antunes, realizamos estágio de pós-doutorado no perío-do de julho de 1999 a agosto de 2000. 12. Sob a coordenação do professor Giovanni Alves, o Núcleo de Estudos da Globalização (NEG) se apresenta como instância de interlocução, base de realização de atividades acadêmicas, trocas de informações e de experiências, e já se anuncia a possibilidade de efetivação de projetos de pes-quisas conjuntos.

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13. O Professor Ariovaldo Oliveira dos Santos, do Departamento de Sociologia da UEL também está organizando Grupo de Pesquisa sobre a temática do trabalho com seus alunos da graduação e da Pós-Graduação. 14. A esse respeito em “Condição Pós-moderna”, do geógrafo anglo-americano David Harvey (1993), temos uma obra referencial. Lembramos também que em outro Ensaio pudemos desenvol-ver uma linha de reflexão sobre esse assunto. Ver Thomaz Jr., (1994). 15. O CEMOSi também está sob nossa coordenação. Referimo-nos às Exposições Temáticas, Me-sas de Debates, etc. Mais detalhes, ver: www.prudente.unesp.br/cemosi 16. Nos anos 60 Pierre George propôs uma Geografia do trabalho que se ateve exclusivamente aos cuidados estatísticos do que poderíamos entender como sendo uma Geografia do emprego e as inúmeras atividades de trabalho. 17. Cf. Leite, 1994. 18. Idem nota 14. 19. Essa expressão é encontrada com muita freqüência na literatura que trata da (re)localização e distribuição industrial. 20. Vide as disputas intercapitais que estão sendo escudadas pelos burocratas de plantão do staff dos governos estaduais e municipais, congressistas e em alguns casos pelos próprios chefes do executivo, que equivocadamente levou a alcunha de Guerra Fiscal. 21. A esse respeito, ver; Alves, 2000. 22. Em experiência anterior, quando da elaboração da tese de doutorado, pudemos estudar os efei-tos desse processo na agroindústria canavieira em São Paulo. Ver: Thomaz Jr., 1996. 23. Cf. Alves, 2000. 24. Essa expressão foi tomada de empréstimo da professora Maria Aparecida Morais Silva, autora do belíssimo livro “Os Errantes do fim do Século”. São Paulo: Editora da UNESP, 2000. 25. Para mais detalhes, ver: Malagutti, 2001. 26. É o que estamos constatando mediante pesquisa em curso internamente ao CEGeT, através do projeto de doutorado “a Geografia da Informalidade e da Precarização do Trabalho no oeste Paulis-ta”, sob nossa orientação. 27. O recente ensaio “A Dignidade Roubada e a Barbárie: Um Espectro Ronda nossas Vi-das” (2002), pudemos discutir mais amplamente alguns elementos que estranhamente fazem recru-descer a barbárie social. 28. A farta literatura sobre globalização nos estimula a citar os principais autores que contribuem para enriquecer a compreensão do momento atual e os impactos para o trabalho ou para a classe trabalhadora: Santos (1994), Moreira (2001) e Alves (2001). 29. Referimo-nos à tese de doutorado “Por Trás dos Canaviais os Nós da Cana” (1996). Está previs-to para o mês de maio de 2002 o lançamento desse trabalho pela Editora Annablume/FAPESP. 30. No ensaio “’Leitura’ Geográfica e Gestão Político-Territorial na Sociedade de Classes” (1998), pudemos desenvolver especificamente essas idéias.

31. Cf. Mészáros, 1999. 32. Cf. Antunes, 1999, p.193. 33. Os autores que mais se destacam como defensores da tese do descentramento, são dentre ou-tros: Gorz (1982), que exprime sua posição em adeus ao proletariado; Habermas (1987 e 1992), em “Crítica a Razão Comunicacional”; Offe (1986), que defende a idéia da perda da centralidade do tra-balho; Robert Kurz (1993), que polemiza com a idéia do fim do trabalho, mas mantendo posiciona-mento crítico de grande profundidade à sociedade do capital. 34. Tivemos a oportunidade de desenvolvermos esse assunto no ensaio “Qualificação do Trabalho”: Adestramento ou Liberdade?”, Thomaz Junior, 2000. 35. Esse assunto será abordado especificamente no ensaio “Território Minado: Trabalho e Emanci-pação Social”, que se encontra em desenvolvimento. 36. Sobre as ações específicas e a trajetória do MST, ver: Fernandes, 2000. 37. Cf. Navarro (1997). 38. Cf. Via Campesina, Linhas Políticas, s.n.t. 39. Sobre essa questão ver: Antunes, 1995 e 1999, e Alves, 2000. 40. Sobre o sindicalismo propositivo ver: “Trabalho e Globalização: A Crise do Sindicalismo Proposi-tivo”, de Ariovaldo de Oliveira Santos. Londrina: Práxis, 2001. 41. A esse respeito em “Trabalhar em Casa”, de Marta Tathy Oliveira, temos um belíssimo trabalho que nos permite compreender com precisão o universo do trabalho domiciliar, a partir de diversos exemplos. 42. Cf. Moreira, 2000.

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43. Thomaz Junior, 2000. 44. Essa questão pudemos desenvolver em Thomaz Junior, 2001 45. Tivemos a oportunidade de tratar esse assunto de forma especial no ensaio “A Geografia, os Geógrafos e as Fronteiras Disciplinares. Os Desafios para a compreensão das transformações do Mundo do Trabalho na Virada do Milênio”. Cf Thomaz Junior, 1999. 46. Essa questão foi abordada especificamente por Gomez (2002), em sua dissertação de mestrado recentemente defendida e por nós orientada. 47. Cf. Bihr, 1998. 48. Encontra-se em desenvolvimento três projetos de pesquisa que se voltam à questão de gênero, sob nossa orientação, sendo que as atenções recaem para o cenário sindical, como também para o âmbito da luta pela terra, através dos Coletivos de Gênero e Comissões de Mulheres. 49. Esse assunto é desenvolvido no ensaio “Desenho Societal dos Sem Terra no Brasil”. Cf. Thomaz Junior, 2001. 50. Vide Thomaz Jr., 2000.

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Secularização e sacralização, desencanto e missão: questões atuais da qualificação do trabalhador na construção

do Brasil moderno*

Catia Antonia da Silva** [email protected]

Resumo:

Em diversos campos discursivos, observa-se, na década de 1990, questões relativas aos pro-cessos econômicos e sociais do Brasil moderno e buscam-se modelos de outros países para criar o "Brasil do futuro", constituindo-se conjuntos de ações modernizadoras, que reconhecem na qualifica-ção profissional o caminho privilegiado para a inserção do Brasil na economia globalizada e na atual modernidade (ambiente de inovações tecnológicas, culturais e sociais). Um destes campos (discursos e intervenções sobre a qualificação profissional) é construído por representantes de tra-balhadores que participaram do projeto que criou o PLANFOR – Plano Nacional de Qualificação Profissional. O artigo busca analisar este campo, reconhecendo-o como elemento fundamental de elevação das condições concretas do mundo real relacionado à ética e estética e ao sentido ao es-tar no mundo (imanência e transcendência) no contexto da globalização.

Palavras-chave: Brasil moderno; modernização da ação; qualificação profissional; projetos hege-mônicos.

Abstract

The theoretical subject presents questions relating to economic and social processes in modern Brazil during 90´s, which search models from others countries in the direction of the formula-tion of the “Brazil of the future”. It is a question about, yet, an assembly of modernization actions, which recognizes the professional qualification as the distinguished way for the insert of Brazil in a globalization economy and in the actual modernization (environment of technological cultural and social innovations). One of this field (Theory and practices) presented from labored representative share, among lines, with the hegemonic project relating to the professional qualification as the funda-mental element in the elevation of the concrete conditions in real world, relation ethics and aesthetics and give meaning in be in a world, in the context of globalization, with create deep limits, when its search for an other modernization model.

Key words: Modern Brazil; professional qualification; modernization actions; project hegemonic.

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Introdução

A modernização do Brasil constitui em antigo caminho para a problematização da rela-ção sociedade-espaço presente na literatura acadêmica discussões políticas de formação da República, nos planos recentes de governo e nos ideários de empresários sindicalistas. Tra-ta-se de projeto moderno engendrado pelo pensamento científico e pelo debate político em busca da secularização – colonização do futuro - sendo, ao mesmo tempo, o resultado de diferentes patama-res de modernização produzidos por intenções e práticas na construção do Brasil moderno.

Quando falamos em qualificação profissional estamos nos remetendo a um dos processos de modernização que busca alterar a capacidade cognitiva do trabalhador ou a construção intelectual do futuro trabalhador, intencionando transmitir conhecimentos e técnicas que o permita estar apto para o trabalho. Assim, torna-se fundamental entender a qualificação profissional como uma expres-são da ação modernizadora, inscrita no processo amplo da modernização cultural, tecnológica, eco-nômica e territorial.

A temática da modernização é abrangente e complexa, porque se refere às intervenções so-bre a sociedade e o espaço assim como às mutações que têm como sentido o desencantamento do presente e desejo de que o futuro, uma vez construído, possa ser melhor que o presente e o passa-do. A modernização, que se inscreve de forma profunda nas raízes culturais de nosso país, está presente no pensamento de intelectuais e políticos da direita e da esquerda, dos mais progressistas aos mais conservadores. Está presente até, de certa forma, nos “homens comuns”. Referimo-nos a mutações abrangentes, fenômenos expressivos da ocidentalização do mundo e/ou da seculariza-ção, conforme analisam Weber (1999a, 1999b ) e Marramao (1997).

O presente texto tem a intenção de analisar debates e projetos apresentado pelo Seminário: Trabalhadores e Programa Brasileiro da Qualidade e produtividade (DIEESE, 1994), ocorrido na década de 90 que teve, como impulsos transcendentes, o desencantamento pela qualificação profis-sional, a mutação das condições presentes e a busca pela construção de novas propostas de mo-dernização, fundamentada na sacralização da ação e na secularização – colonização do futuro do país.

Este evento faz parte do campo discursivo da qualificação profissional instaurado no país, nos anos 1990, por agentes de diferentes instituições representantes do tripé: trabalho, capital e Estado. Este campo gravita em torno do descompasso entre a característica da economia (modernização tecnológica e nova demanda de mão-de-obra), a baixa escolaridade e capacidade profissional dos trabalhadores urbanos brasileiros. Como entender o sentido das ações desses a-gentes, principalmente, o dos sindicatos? Na procura de orientação analítica sobre o agir consulta-mos a obra de Weber (1987, 1999a, 1999b).

A compreensão weberiana: em busca do método reflexivo do sentido da ação

Modernização e secularização são categorias-chave propostas por Max Weber (1987, 1999a, 1999b) para a compreensão sociológica das sociedades capitalistas. Estas categorias são funda-mentadas por ideários (espírito) transcendentes e imanentes que orientam ações e intenções, que buscam a colonização do futuro. A secularização é intenção e realização de práticas de colonização do mundo, de construção de tempo-espaço.

A secularização é orientadora da modernização, que é concebida pelo autor como ação transformadora da vida social e, podemos considerar a modernização como ação produtora do es-paço geográfico. O espaço é entendido por nós como condição material, onde a vida se realiza. É resultado e condição para a orientação de projetos de ocidentalização do mundo.

Neste contexto analítico, a ocidentalização do mundo é ação racional e dominadora que tem a intenção de colonização do futuro. É dinâmica de intervenção sobre este mundo – mundanização, que tem origem nas alterações advindas da crise da teologia cristã-católica no fim da Idade Média -

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e como predominância do racionalismo técnico-científico na explicação do e no agir sobre o mundo.

O racionalismo articulado à profunda transformação nas formas de organização do trabalho, sob o modo de produção capitalista, caracteriza-se por aquilo que Max Weber (1999b) denominou de racionalismo ocidental, contendo três acepções: racionalismo da sociedade, racionalismo da cul-tura e o racionalismo da personalidade1. Na compreensão weberiana, essas acepções têm estreita relação entre si, já que não são apenas os interesses que impulsionam o homem a organizar sua vida de modo prático-racional, mas, sobretudo, a interpretação que faz do mundo.

Assim, o agir reformador ou transformador (modernização) tem como pressupostos questões de imanência - conjunto de elementos imediatos e de interesses que orientam a ação - o agir eco-nômico, político e social - e questões de transcendência, referentes à necessidade sentida pelo ho-mem de assumir uma posição unitária nos confrontos do mundo (visão de mundo que lhe dá senti-do à ação e à vida).

Weber reconhece elementos essenciais do racionalismo: As idéias que constroem o sentido de estar no mundo e de ser sujeito da história por meio da ação e da intervenção sobre a sociedade. Os interesses que dizem respeito à necessidade do homem assumir de forma imanente sua posi-ção no mundo. A relação entre idéias e interesses, de um lado, e a organização burocrática, de outro, ditada pela necessidade do homem construir a sua relação com o mundo por meio do cálculo de vantagens e desvantagens associadas à ação.

Weber, portanto, auxilia, amplamente, o entendimento das grandes mudanças articuladas à construção e reconstrução do espaço, da sociedade e da cultura capitalista neste início de século e a compreensão do sentido das ações de agentes, tais como as confederações sindicais e o DIEE-SE, conforme veremos mais adiante.

O reconhecimento do racionalismo em sua relação com a transcendência (idéias que dão sentido ao agir) e a imanência (interesses e calculabilidade que conduzem a ação) é essencial à compreensão do processo de modernização territorial e de modernização cultural.

Em geral, a modernização é desejada por todos, tendo como pressuposto a idéia de que a mudança trará mais benefícios do que malefícios, em uma conjuntura social amplamente divulgada como de crise. Muitas inovações surgem aparentemente como agir sem sentido ou como prática sem consciência, o que nos leva a tentar desvendá-las, em seus vínculos com a modernização.

Apresentaremos a seguir uma proposta de qualificação profissional feita por representantes de trabalhadores nas câmaras setoriais existentes nos anos 90, averiguando o sentido de suas a-ções na construção do Brasil moderno.

As câmaras setoriais e o debate da modernização: Seminário Trabalhadores e o Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade

O seminário: Trabalhadores e o Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade, ocorrido em Campinas - SP, nos dias 30 e 31 de agosto e primeiro de setembro de 1993, marcou um mo-mento importante da relação sindicato-Estado-empresa no país. O movimento sindical (representado pela CUT e pelo DIEESE) que há tempo se dedica ao estudo das inovações tecnoló-gicas, da reestruturação produtiva e das questões relativas à qualidade, produtividade, competitivi-dade e terceirização, participou ativamente da organização e da realização deste seminário.

Por outro lado, havia uma conjuntura política favorável ao movimento sindical, em decorrência da democratização do espaço público. Foram constituídos fóruns como as Câmaras Setoriais, o Pro-grama Brasileiro da Qualidade e Produtividade (PBQP); o Programa de Apoio à Capacitação Tecno-lógica da Indústria (PACTI); o Conselho Consultivo dos Trabalhadores para a Competitividade (CTCOM); o Programa de Educação para a Competitividade da FINEP – Fundação Nacional de Fi-nanciamento de Estudos e Projetos e o Estudo de Competitividade da Indústria Brasileira (ECIB), apenas para citar os mais diretamente relacionados ao tema tratado aqui.

Estes fóruns tiveram a participação das Centrais Sindicais. No caso, mais específico do Pro-grama Brasileiro da Qualidade e Produtividade (PBQP), desde 1993, o movimento sindical brasileiro,

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por meio do DIEESE, coordenava a Comissão de Valorização do Trabalho e do Emprego – CVTE. Neste seminário, a comissão avaliou todas reuniões e todos encontros ocorridos em 1991 e 1992.

Os intelectuais que participavam do Seminário averiguaram a denominada mutação no mundo do trabalho e forneceram análises com referência à crise da economia e mudanças da técnica, con-forme pode-se verificar a seguir.

Difusão da Terceira Revolução Industrial, a partir do final dos anos 70, que se intensifica em decorrência da crise estrutural vivida pelo capitalismo nesse período. Essa crise, relacionada com o esgotamento do padrão de regulação fordista, teve três característi-cas principais: 1. o fim do padrão monetário internacional, construído após a 2a Guerra, na esteira da estabilidade do dólar; 2. o esgotamento do padrão de industrialização nor-te-americano, que era, basicamente, um modelo de difusão dos setores da chamada Segunda revolução Industrial e 3. o colapso do Estado de Bem-Estar social (...) (DIEESE,1994, p.36).

A grande problemática atribuída à inserção do Brasil na nova revolução industrial refere-se à alteração da relação capital-trabalho, como pode ser observada no parágrafo a seguir:

Assim, ao final dos anos 70, havia no país um parque industrial complexo, com eleva-do grau de competitividade. Esse crescimento industrial não resultou, porém, num pro-cesso de homogeneização social, semelhante ao dos países centrais. O Brasil perma-neceu com baixos salários e políticas sociais e fiscais de pequena eficácia. A legisla-ção do trabalho, por sua vez, não incorporou o contrato coletivo, nem a atuação do sindicalismo no local de trabalho. Em suma, o país não se tornou uma democracia in-dustrial, nos moldes dos países centrais (ibid., p. 37).

Realiza-se a leitura da nova revolução a partir do modelo italiano, sueco e japonês, sendo, porém, reconhecido que:

[...] não existem modelos universais e nessa medida, transponíveis a outro país. É pos-sível sim criar formas de resolução dos problemas de competitividade industrial e de desenvolvimento econômico próprias ao país, levando em conta as experiências inter-nacionais. (Ibid, p.37).

A partir desta perspectiva, os participantes deste seminário apresentam o modelo japonês de organização do trabalho, da produção e da empresa. Reconhecem que a organização do trabalho e da empresa constitui a parte do modelo japonês mais facilmente transferível, enquanto conjunto de métodos e técnicas: just-in-time/kaban, círculos de controle de qualidade (CQ), controle estatístico de processo (CEP), controle de qualidade total (CQT). O uso de tais métodos "faz-se no interior de uma organização de trabalho em grupos e se funda na polivalência que consiste na multifuncionali-dade entre fabricação/manutenção/controle de qualidade/gestão da produção” (Idem, p. 40). Esta multifuncionalidade é maior ou menor segundo o sexo, a qualificação, a situação de emprego e o ramo industrial, como, por exemplo: "(...) no Japão, encontramos esse tipo de multifincionalidade mais desenvolvida na indústria metalúrgica que na indústria de vidro ôco" (Ibid, p.41).

Os autores do documento acreditam que a organização em grupos de trabalho e a polivalên-cia são menos facilmente transferíveis, pois são práticas culturais tornadas possíveis no interior do sistema de emprego japonês, que permitem tanto o trabalho em grupo e a polivalência quanto for-mas de envolvimento e mobilização dos trabalhadores em torno dos objetivos propostos pela empre-sa.

Além disso, argumentam que essa participação é possível devido a três tipos de fatores: (1) o envolvimento dos trabalhadores - a hierarquia gerência-chefias-trabalhadores é menos acentuada, em comparação com os países ocidentais, porque a colaboração entre diferentes categorias de tra-balhadores é facilitada pela relação de confiança e de cooperação técnica; (2) pontuam que há fato-res extra-empresa que explicam a hierarquia menos acentuada de funções: o Japão, que conheceu desde os anos 60 períodos longos de progresso técnico e de crescimento econômico sustentado, com aumento dos salários reais, é um dos países de menor concentração de renda do mundo (o oposto do Brasil); (3) o terceiro fator é constituído pelo estímulo ao envolvimento dos trabalhadores no funcionamento da empresa japonesa, fato obrigatório. Por estarem sempre sujeitos a perderem compensações salariais e os benefícios, os trabalhadores submetem-se ao modelo de relações inte-

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rindustriais, em vigor no Japão, estando, por isso, permanentemente sob o risco de ser deslocado para empresas fornecedoras terceirizadas, onde os salários são baixos e benefícios sociais e pres-tígios são reduzidos. Esta ameaça constituiria característica essencial do modelo japonês; garantin-do a continuidade do envolvimento do trabalhador nos programas de qualidade e produtividade e, de maneira mais ampla, nos sistemas participativos da empresa, inclusive através do sindicato, onde todos os assalariados participam, com exceção da chefia.

Quanto às críticas feitas ao Brasil, os autores do documento afirmam que os programas de governo relativos à qualidade e à produtividade, orientam-se por nesse modelo japonês. No entan-to, diferentemente da experiência japonesa, que valoriza o papel do trabalhador no processo de pro-dução, as propostas do governo brasileiro teriam como preocupação exclusiva, a qualidade do pro-duto e dos processos industriais.

Pode ser observada, portanto, a adesão dos representantes dos trabalhadores à difusão do modelo japonês no Brasil, sendo salientado o fato de que os consultores de empresas que aprego-am a adoção do programa de controle de qualidade total o fazem porque crêem que, apenas com a adoção de certos métodos e técnicas utilizados nas empresas japonesas, obtém-se qualidade do produto final. Em contraste, os participantes deste seminário acreditavam que a qualidade depende, fundamentalmente, do envolvimento do trabalhador no processo de trabalho e na produção. Quanto ao processo de adaptação e da difusão de novos métodos, que visam a qualidade na indústria brasi-leira, observam que estes métodos dependem, em larga medida, do desempenho dos operários en-volvidos diretamente na produção. Por isso, um certo número de empresas analisadas no seminário teria realizado tentativas de envolvimento de trabalhadores nas novas práticas, através de uma série de modificações nas relações de emprego no trabalho (DIEESE,1994, p.46).

Por outro lado, segundo os registros deste seminário, pesquisas acadêmicas e análises reali-zadas pelo DIEESE têm apontado para a contradição entre qualidade e quantidade. A exigência por parte das grandes empresas é pela produção de mercadorias, seguindo o padrão internacional de qualidade, mas está presente também nos ideais dos empresários a exigência por um perfil de tra-balhador que garanta lucratividade através da quantidade, isto é, produtividade.

Quanto à produtividade, a ANACT - Agência Nacional pela Melhoria das Condições de Trabalho2 distinguiria a produtividade clássica - baseada no posto de trabalho e na ope-ração - da nova produtividade fundada, na comunicação e na relação intersubjetiva (...) não há na realidade uma substituição pura e simples dos critérios de quantidade pelos de qualidade, mas ambos passam a coexistir, trazendo conseqüências que devem ser administradas pelos produtores diretos (Ibid., p. 47).

Quanto à questão da qualidade, o último item apontado, nos anais do seminário, apresenta as conseqüências dos novos modelos de qualidade para o trabalhador, considerando-se a organização do trabalho na empresa e a formação profissional.

Segundo os registros do seminário, a preocupação com a qualidade na linha da produção significa claramente maior responsabilidade, que requer maior experiência e formação profissional. A circulação de informações no interior da empresa, entre as diferentes áreas da hierarquia é apon-tada como um dos facilitadores das políticas de qualidade e produtividade na empresa japonesa.

(...) evidentemente, tais processos - maior formação e comunicação no interior da em-presa - são inegavelmente fatores positivos. Entretanto, sem um controle real do pro-cesso, podem ocorrer conseqüências negativas dessa maior responsabilidade sobre a saúde mental e física do trabalhador. O trabalhador com qualidade no Japão coexiste, por exemplo, com um padrão de um número de horas trabalhadas e com a prática de círculos de controle de quantidade muitas vezes em horas extras não remuneradas (Ibid., p.47).

Embora haja reconhecimento dos problemas no modelo adotado no Japão, os autores brasi-leiros não abrem mão das táticas e dos conteúdos que permitem alcançar produtividade e qualida-de. Na verdade, apesar de todo o esforço para valorizar o trabalhador, o centro da ação e do senti-do do seminário não é o trabalhador e, sim, o empresário e a empresa, o que nos permite ver que

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há a sacralização da empresa, constituindo-se num processo que orienta tanto instituições que re-presentam os interesses dos assalariados como o Estado, de forma abrangente, que as práticas do setor público devem ter eficácia, qualidade total e produtividade, tal como ocorre nas ações estrita-mente econômicas. Aliás, Weber (1999a) já indicava a tendência à racionalização exacerbada da ação no mundo: prática racional dirigida a fins imediatos.

Em busca de entendimento mais profundo da qualificação profissional como projeto moder-no

A década de 90 foi, de fato, um período conjuntural fértil para a formulação e a experimenta-ção de novos projetos de construção do Brasil moderno. Sem dúvida, a qualificação dos trabalhado-res teve (e tem) centralidade nestes projetos. A qualificação profissional parece constituir-se numa arena temática que tem elos muito fortes com a economia (competitividade e produtividade), com a tecnologia, com a inserção do Brasil na globalização, com o desemprego, com a criação de oportu-nidades em contexto de crise e com a menor responsabilidade do Estado e das empresas na ga-rantia do emprego.

Esta visão da qualificação profissional indica a configuração de um novo sistema técnico e sistema de ações, no qual o saber do trabalhador é um elo forte entre os objetos técnico e tecnológi-co e as ações, tornando-se forma social programada para gerar novas formas de agir.

As câmaras setoriais e o Seminário configuram-se como sistemas de ações, criando contex-tos de debates, com objetivos imanentes e transcendentes, sobre a formação educacional dos tra-balhadores baseada nos sistemas técnicos criados em outros patamares de modernização.

Importantes atores das centrais sindicais e da academia científica, no tratamento da qualifica-ção e da construção do Brasil moderno, demonstram desencantamento com relação ao presente e apresentam questionamentos relativos à falta de escolaridade da população trabalhadora brasileira, ao mesmo tempo, que apontam para o desiderato por uma sociedade totalmente escolarizada e pa-ra o encantamento com o futuro, apoiando-se em modelos europeus, americanos e, mais recente-mente, o japonês. Acreditam que estes modelos de modernização são a solução para implementar a modernidade no país.

Podemos identificar o limite das análises sobre a relação entre a qualificação profissional e a modernização do Brasil urbano que decorre do enfoque e do sentido atribuído ao trabalho, à econo-mia e à técnica, que são vistas como inquestionáveis na reflexão sobre a profissionalização (SILVA, 2002). O problema estaria, assim, na desqualificação do trabalhador e não no modelo de desenvol-vimento, e no modelo de economia e de técnica empregada na organização do trabalho. Até que ponto, porém, esse paradigma radicalizado da racionalidade ocidental será o melhor na construção social e espacial do Brasil moderno, dentre outras formas possíveis de racionalização técnica e cul-tural?

A análise de mudanças precisa ser realizada com cautela e com apoio em referências filosófi-cas (MARCUSE, 1998) e teórico-empíricas, visto que os riscos de investigar o trabalho como um mero fator ou como custo, tornando o trabalhador uma categoria na análise da Ciência Economia. É necessário aproximarmos da compreensão do sentido dessas mudanças para a vida dos homens comuns, o que impediria a compreensão superficial do conteúdo propositivo da atual modernização brasileira. A modernização atual altera a relação ensino-trabalho. O entendimento dessa alteração requer um estudo mais sistemático do papel do espaço e da cultura, como orientações conceituais que indicam adesão, tensão e conflito entre inovações tecnológicas e exclusão social, entre novas profissões, desemprego e empregabilidade, e entre valores éticos e valores imediatistas ou econo-micistas presentes na leitura sobre o trabalho, a produção e transmissão do saber.

Marcuse (1998) nos chama a atenção para o tema do trabalho, demonstrando a tendência à redução dos seus sentidos quando tratado, restritamente, no campo da administração econômica. Esta tendência deve-se, segundo ele, ao contexto atual da cultura moderna em que, o trabalho per-de a sua referência original do fazer-humano, fazer emancipatório do homem. Perde-se, assim, o “conceito geral de trabalho”. Conforme analisa o autor:

Quando o eu começa pelo fazer acontecer de sua existência (Dasein), encontra um

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mundo que é o mundo de outra existência: com plenitude e conformação de uma vivaci-dade que não é sua, que sempre é do passado e simultaneamente, ainda, efetivamente presente – um mundo de dispositivos, instituições, empreendimentos, todos públicos, de natureza política social e econômica, meios de produção e objetos de consumo, utilida-des, obras de arte etc., de divisões e formações espaciais e temporais gerais, que per-manece como um todo, a obra de uma existência, inclusive em todas as novas criações. (loc. cit., p.27).

Esta vivacidade exterior, no contexto atual, inscreve-se no ritmo da inovação no espaço, ori-entado pela cultura do consumo, que impõe pragmatismo ao trabalho, impedindo a reflexão do senti-do e do significado do fazer (trabalho) humano. Assim, o acontecimento da existência humana – do fazer e do saber – subordinado, cada vez mais, às relações econômicas de dominação, isto nos en-sina Ribeiro (1998), apresenta a força hegemônica do paradigma administrativo no controle das rela-ções societais (sociedade e Estado).

Da mesma maneira, Max Weber (1987) identifica o sentido das ações no contexto da ética capitalista, demonstrando a vocação profissional como valor positivado de sustentação das condi-ções materiais (a imanência) e das condições do estar no mundo e colonizar o futuro (transcendência). A participação ativa dos trabalhadores na construção da Política Nacional de Qua-lificação Profissional (PLANFOR) é feita a partir desses seminários, onde expressam claramente o desencantamento em relação ao presente (primeira metade da década de 1990) e a crença na po-sitividade da profissionalização. Os sentidos de suas ações e reflexões apontam forte semelhança aos outros projetos apresentados pelo Estado e por representantes de empresários (SILVA, 2002).

Conclusão

Há limites no projeto hegemônico de qualificação dos trabalhadores no Brasil, cuja gênese é a valorização da vocação profissional. Este projeto tem, como base, o outro (países centrais). Trata-se de um espelho e de encantamento pelo novo (futuro). A racionalização do ensino tem sido pro-posta como ação calcada no outro como espelho. Esta ação, pouco humilde, desconhece possibili-dades da nossa realidade, dos nossos homens e mulheres comuns, como afirma Milton Santos: “os homens lentos, sujeitos de outra temporalidade e de outra espacialidade” (1996). É importante iden-tificar caminhos possíveis na existência do Brasil urbano e investir em processos embrionários e-mergentes na sociedade.

Para isto, torna-se indispensável reconhecer que, na construção do Brasil moderno, existem riscos de ruptura social em relação aos excluídos dos processos da modernização mas são também amantes da modernidade. As rupturas sociais ocorrem porque estas possibilidades não são reco-nhecidas pelos setores hegemônicos.

As rupturas e cisões no tecido social poderão ocorrer (e já estão ocorrendo) diante da aguda superficialidade que acompanha a imposição de modelos externos pelos gestores do paradigma administrativo (RIBEIRO, 1998), cujo sentido se orienta por impulsos globais, que dependem da arti-culação estratégica entre interesses locais aos dos agentes internacionais (RIBEIRO E SILVA, 1997). Desse modo, a qualificação profissional tem sido uma ação com o compromisso de estimular o consumo de técnicas, sem compromissos com os sentidos mais amplos do trabalho. Trata-se do agir efêmero, o ter de fazer algo por fazer em meio à globalização e à crise brasileira. É necessário criar novo projeto do moderno para o país, projeto que reconheça a totalidade das possibilidades dos homens comuns e que esteja comprometido com a construção de um outro sentido de seculari-zação (colonização do futuro) e de modernização, o que significa romper com a força da hegemonia dominante, compromissada com a globalização e os ideais neoliberais.

Notas

Este texto é fruto de reflexões da Tese de Doutorado: SILVA, Catia Antonia da - QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL NA CONSTRUÇÃO DO BRASIL URBANO MODERNO: Secularização e socieda-de, Modernização e espaço. Rio de Janeiro: PPGG/UFRJ, julho de 2002.

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**Dra. em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2002. Docente Adjunto do Departamento de Geografia da FFP (UERJ).

1. Max Weber (1987) analisa a ética protestante, elemento central do espírito do capitalismo. Sua análise aponta para o entendimento da imanência e da transcendência do agir social, orientado pela ação racional e pela necessidade de colonização do mundo.

2. A sigla da instituição é traduzida pelos autores e consta desta maneira nos Anais do seminário.

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Dialogando com os obsessivos do tempo

Guilherme Ribeiro * [email protected]

Resumo

A proposta deste artigo é destacar como o espaço vem sendo interpretado por determinados cientistas sociais, dentro da perspectiva de sublinhar sua importância acerca de seu caráter singular, dotando-o da capacidade de ser, simultaneamente, ativo e passivo na construção da História.

Palavras-chave: espaço; tempo; inércia dinâmica; Geografia; História.

Abstract

The aim of this text is to emphasize how the space has been interpreted by some social sci-entists, inside of the perspective to underline its importance about its singular character, endowing it with the capability of being, at the same time, active and passive about the history construction.

Key words: space; time; dynamics inertia; Geography; History.

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Introdução

Buscamos identificar alguns dos principais cientistas sociais que podem ser caracterizados

como “os obsessivos do tempo”, refutando toda e qualquer tentativa de análise que inclua o espaço como uma categoria essencial na apreensão do processo histórico. Tendo em mente que o artigo não dá conta de uma série de leituras, e a obra de Edward Soja (1993) torna-se a principal referên-cia de nossa análise. A problemática estudada tem como campo de reflexão o marxismo ocidental, destacando o reino do historicismo e a servidão da espacialidade, a relação estabelecida entre a Geografia e o Marxismo, a Geografia e a História.

Num segundo momento, faremos a discussão sobre a categoria espaço, procurando identifi-car sua concepção predominante no âmbito das Ciências Sociais e reconhecer seus principais as-pectos. A seguir, refletiremos sobre a natureza do espaço geográfico, sublinhando-o através de sua especificidade, numa tentativa de contribuir para o debate a cerca da epistemologia da Geografia.

Dialogando com os obsessivos do tempo

Soja destaca como principais representantes do historicismo marxista, C. Wright Mills, Peter Saunders, Ann Markusen, Henri Bergson, Georg Lukács, os economistas neoclássicos e, sem som-bra de dúvidas, o próprio Marx (SOJA, 1993), enquanto Löwy, que analisa a natureza do pensamen-to historicista, também destaca Georg Lukács, além de Karl Korsch, Antonio Gramsci e Lucien Gold-mann (LÖWY, 1998).

O ponto de partida dado por Soja é o sociólogo C. Wright Mills, para quem o estudo social só pode ser apreendido através da História, isto é, de uma seqüência, de uma biografia; a compreen-são do que se passa ao redor do indivíduo, de suas experiências e das de outros indivíduos deve situá-lo dentro de seu período.

Entretanto, na concepção de Mills, o período não está em lugar algum; não há uma Geografia em sua imaginação sociológica. O tempo é a categoria circundante das relações sociais, e o espaço é sempre recôndito, ausente, morto. Segundo Mills (Apud SOJA, 1993, p.21), “(...) Nenhum estudo social que não retorne aos problemas da biografia, da história e de suas intersecções na sociedade completa sua jornada intelectual”. Nessa perspectiva, questões como onde o indivíduo nasceu, vi-veu e morreu, e porque sua história aconteceu num dado lugar ou como esse lugar1 condicionou suas relações na sociedade, não são em absoluto questões relevantes, mas apenas o fato de como o tempo atua na sociedade.

Soja aproveita as afirmações de Mills e detecta primeiramente o distanciamento da História em relação à Geografia; a noção de que os acontecimentos e a imaginação sociológica deste autor negligenciam o espaço são sublinhadas. No espaço, a Geografia não representa sequer o palco das ações humanas; a História é o tablado e a ação ao mesmo tempo. Mesmo reconhecendo que esta ciência tem tido um papel central na disputa contra o status quo, impõe-se uma revolução no modo de pensar os acontecimentos e na maneira como eles se dão. Em outras palavras, dotar a História do monopólio da teoria crítica é ignorar a potencialidade contida numa explicação singular que con-jugue tempo e espaço simultaneamente, pois, na prática, eles já se fundiram, não havendo como tratá-los separadamente (SANTOS, 1993).

Como podemos traduzir as censuras feitas por Soja? Seu intuito é claro: essa revolução dar-se-á através da convocação do espaço como uma categoria cujo potencial emancipatório é indis-pensável. Quando o espaço é tratado como recôndito, desapercebidamente também há um outro processo paralelo a este: a manutenção do status quo (SOUZA, 1995). Assim sendo, uma interroga-ção se impõe: Até que ponto a negação do espaço ratifica o poder instituído?

Um dos aspectos que devem ser ressaltados, no tocante à obra de Soja, é o fato de que a contribuição da História e sua relevância são uma referência constante; essa insistência, embora possa parecer desnecessária, não é. Confessar a História significa, na maioria das vezes, a nega-ção de explicações desprovidas de nexo, infundadas; em suma, a-históricas. Contudo, essa atração

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pode ser fatal. Conforme ele mesmo assinala:

Tanto o atraente discernimento crítico da imaginação histórica quanto a sua necessidade con-tinua ser vigorosamente defendida contra as mistificações desvirtuadoras contribuíram para a sua asserção exagerada como historicismo (SOJA, 1993, p. 22-23).

Ainda nesse primeiro momento, ele aproveita para repensar o próprio conceito do que seja o

historicismo e seus desdobramentos, numa concepção bastante original do termo2, além de revelar um aspecto deveras particular: quando vozes isoladas começavam a enxergar e discutir o espaço, no final dos anos 60, o historicismo desempenhava o papel da linguagem científica da época. A pos-sibilidade da inserção da dimensão espacial no cerne da teoria crítica era, então, um passo para a não-aceitação entre seus pares; admiti-la significava não ser compreendido pelos demais. O tempo era a condição para ser insider, e o espaço, outsider no meio acadêmico3. Este foi o caso, p. ex., de Foucault.

Procurando expor as mudanças de enfoque incorporadas pela Geografia marxista pós-moderna, Soja (idem, p. 84) assinala os esforços de Harvey, Massey e Smith no intuito de realçar o caráter geográfico do materialismo, embora Soja confessa que o desenvolver de suas próprias con-siderações não sejam tão significativas quanto suas observações iniciais. Todavia, as reações a essas novas atitudes e posturas de determinados autores ainda provocavam choques de increduli-dade e ignorância. Incredulidade, porque não havia por parte dos obsessivos do tempo a percepção ⎯ já tão evidente em alguns ⎯ do alcance e da relevância do espaço; e ignorância, por achar que este se constituía em algo peculiar, exótico; supérfluo.

Soja (1993) cita Peter Saunders que, partindo desse ponto de vista, tenta a todo custo nos convencer de uma “sociologia urbana não-espacial”. Seu conselho para os sociólogos urbanos é de uma convicção que impressiona:

Desde a obra de Robert Park, no início deste século [XX], os sociólogos urbanos vêm desen-

volvendo visões teóricas que foram minadas pela tentativa insistente de adaptá-las a uma preocu-pação teórica com o espaço. É hora de nos livrarmos dessa camisa-de-força teórica. É hora de co-locar o espaço em seu lugar, como um fator contingente a ser considerado nas investigações empí-ricas, e não como um fator essencial a ser teorizado em termos de suas generalidades. É hora de a teoria social urbana desenvolver uma focalização clara de algum aspecto da organização social do espaço, e não de tentar manter uma ênfase supérflua na organização espacial da sociedade. É ho-ra, em suma, de desenvolver uma sociologia urbana não-espacial que, embora reconhecendo a importância empírica das disposições espaciais, não procure elevar essas disposições à categoria de um objeto teórico distinto (Apud SOJA, 1993, p. 87, grifo nosso).

Que afirmação insólita a de Saunders: colocar o espaço em seu lugar! Como isso pode ser possível? Por que a categoria espaço não pode ser objeto de teorizações e análises? O espaço é sempre o mesmo, isto é, não haverá diferentes recortes espaciais passíveis de conceituação? A reflexão sobre a dimensão espacial que nos circunda representa mesmo uma camisa-de-força teóri-ca?

Analisando detalhadamente a citação anterior, é possível perceber nitidamente que ela é in-trinsecamente contraditória, na medida em que é impossível delinear o urbano a-espacialmente. Ou o urbano não é um recorte no espaço?

As possibilidades interpretativas de uma articulação entre o tempo e o espaço, rompendo com posturas parciais e tendenciosas, são efetivamente obliteradas por Saunders. Seu raciocínio nos permite capturar a exata dimensão da subordinação do espaço nas Ciências Sociais, numa re-sistência fortemente armada contra uma conotação espacial na Sociologia Urbana, vista por ele co-mo limitadamente temporal e histórica.

É hora, isso sim, de materializarmos as sucessões, as seqüências, as construções e des-construções, o devir; em suma, a História em algum lugar. Teorizar sobre esse processo, que por sua vez está distante de ser casual e aleatório significa declarar a necessidade da materialização da História no espaço e do espaço na História, reconhecendo inequivocamente que a construção do espaço é determinada pelos interesses das classes dominantes; é hora, sim, de materializar o tem-po em um determinado espaço e refutar a noção de que este é algo irrelevante. O espaço “está em múltiplos lugares”, ou seja, sua apropriação faz parte da reprodução e da sobrevivência do capitalis-

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mo desde que este o percebeu como categoria fundamental para sua manutenção. Diante deste panorama, a pergunta a ser feita é: quando chegará o tempo do espaço? Outra interrogação que se impõe: o espaço não faz parte da História e não é, também, História, visto que é uma construção humana?

O tempo do espaço não chegará jamais para a economista Ann Markusen – citado por Soja -, nem tampouco para os economistas neoclássicos, cujas posturas revelam a primazia do tempo e a subordinação do espaço. Sua leitura de Harvey detectou um aspecto típico da ciência burguesa, atribuindo características aos lugares e as coisas, isto é, ao espaço, ao invés de se “ater à dinâmica de um processo como foco analítico” (Apud SOJA, 1993, p.128).

Então o espaço não é merecedor de um foco analítico? Ou o espaço não é um processo? Desconsiderá-lo, sim, não seria uma maneira de negligenciar o poder que o mesmo possui, contri-buindo para a reprodução da classe burguesa? Não seria essa produção uma necessidade para a sobrevivência da burguesia enquanto classe, e não um mero aspecto contingente4 ? Como admitir as apropriações dessa categoria pelo capitalismo como uma mera coisificação?

Para nós, considerar a produção do espaço como um mero aspecto ambiental, “natural”, e não apreendê-la como uma estratégia de acúmulo de capital, agilizando a captura da mais-valia, é fundar-se numa ótica que admite as trocas comerciais e a circulação, dentre outros aspectos, como independentes das conseqüências da produção do espaço, e que tal produção também independe do sistema econômico como um todo. Aqui, outro axioma de nossa pesquisa se impõe, nos conven-cendo de algo imperceptível em Markusen e outros autores: o de que toda produção é, inequivoca-mente, uma produção de espaço (SANTOS, 1978). A partir desse quadro, nossa dúvida é como in-serir tal consideração na economia política marxista, se o que vemos são posições inexoráveis co-mo a exposta acima5 ?

Se Markusen desconhece a relação necessária entre a produção do espaço e a reprodução do capitalismo, é nítida a diferença de análise, de postura diante do real, entre sua afirmação e o novo olhar proposto por Neil Smith, entrelaçando a Geografia (“o ambiente construído”) e a Econo-mia no intuito de afirmar a inequívoca apropriação capitalista do espaço:

O capital é continuamente investido no ambiente construído com o fito de se produzir mais-valia e expansão da base do próprio capital. Mas, da mesma forma, o capital é continuamente reti-rado do ambiente construído de forma que ele possa se deslocar para outra parte e se beneficiar com taxas de lucro mais altas (SMITH, 1988, p.19).

Outro alvo de críticas são os neoclássicos. A seu respeito, Soja afirma que estes, assim co-mo em outras nuances do positivismo e funcionalismo, também negaram o espaço; “(...) seus teóri-cos mais influentes (...) produziram, orgulhosamente, visões de uma economia despolitizada, que existia como se estivesse (...) na cabeça de um alfinete (...)” (Soja, 1993, p.42-43), embora a dimen-são temporal fosse posta num plano indispensável para o entendimento do capitalismo. Embora não enfoque sua dimensão espacial, Moreira (1993, p.98-99) não mede esforços na crítica à economia neoclássica, admitindo mesmo sua ausência de historicidade, na medida em que considera o mer-cado como algo natural, dado. Se a própria historicidade é negligenciada, como falar, então, de es-pacialidade?

Em Henri Bergson, um “míope espacial” que estimulou a subordinação dessa categoria na última metade do século XIX, o tempo é o dinâmico, o revelador do real, sendo o espaço visto de maneira estanque, repartida; deveríamos realizar um verdadeiro “exorcismo espacial” se levarmos em consideração a fala de Lefebvre, que afirma que Bergson “joga todos os pecados no espa-ço” (Apud SOJA, 1993, p.151).

O tratamento dicotômico dado a estas categorias influenciou também a Lukács e muitos ou-tros historicizadores durante o século XX. Lukács concebia o espaço não de modo irrelevante, inú-til e indispensável, como os autores vistos anteriormente. A singularidade da percepção lucaksiana reside na idéia de que a luta de classes, a consciência de classe seria obstaculizada por uma di-mensão espacial. Segundo Soja:

Essa forma de anti-espacialismo talvez tenha encontrado sua mais rígida codificação na History and Class Consciouness (História e Consciência de classe), de Lukács, onde a consciência espacial é apresentada como a epítome da reificação, como a falsa consciência, manipulada pelo Estado e

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pelo capital para desviar a atenção da luta de classes (Ibid., 1993, p.109)

Como admitir esse raciocínio como verdadeiro? Essa é uma noção que não se justifica sob quaisquer condições, pois uma provável emancipação da classe proletária não passaria apenas e restritamente pelo entendimento da História da luta de classes, mas sim pela compreensão de como o modo de produção capitalista contemporâneo se utiliza, se apodera e organiza o espaço para difi-cultar o reconhecimento dos trabalhadores enquanto classe antagônica aos seus interesses. Recen-temente, Harvey demonstrou sem maiores esforços como as novas configurações espaciais produ-zidas pelo regime de acumulação flexível funcionaram como uma estratégia que impossibilitou o fortalecimento e mesmo a formação dos sindicatos (HARVEY, 1992). Por acaso os sindicatos não se constituem como um dos pressupostos fundamentais para a consciência de classe? Compreen-der a organização espacial não seria um handicap de relevância inquestionável para as demandas dos proletários?

Ainda sobre Lucáks, de maneira interessante e curiosa é a interpretação de sua célebre frase "A verdade está na totalidade" (Apud HOBSBAWM, 1988). Se este filósofo não percebe o espaço como fazendo parte da totalidade, podemos concluir, portanto, que para ele a totalidade é uma ca-tegoria a-espacial. Estado e pelo capital para desviar a atenção da luta de classes (Ibid., 1993, p.109)

Como admitir esse raciocínio como verdadeiro? Essa é uma noção que não se justifica sob quaisquer condições, pois uma provável emancipação da classe proletária não passaria apenas e restritamente pelo entendimento da História da luta de classes, mas sim pela compreensão de como o modo de produção capitalista contemporâneo se utiliza, se apodera e organiza o espaço para difi-cultar o reconhecimento dos trabalhadores enquanto classe antagônica aos seus interesses. Recen-temente, Harvey demonstrou sem maiores esforços como as novas configurações espaciais produ-zidas pelo regime de acumulação flexível funcionaram como uma estratégia que impossibilitou o fortalecimento e mesmo a formação dos sindicatos (HARVEY, 1992). Por acaso os sindicatos não se constituem como um dos pressupostos fundamentais para a consciência de classe? Compreen-der a organização espacial não seria um handicap de relevância inquestionável para as demandas dos proletários?

Ainda sobre Lucáks, de maneira interessante e curiosa é a interpretação de sua célebre frase "A verdade está na totalidade" (Apud HOBSBAWM, 1988). Se este filósofo não percebe o espaço como fazendo parte da totalidade, podemos concluir, portanto, que para ele a totalidade é uma cate-goria a-espacial.

O espaço a-histórico e o espaço histórico

Entretanto, não basta fazer uma crítica aos “obsessivos do tempo” se não houver uma refle-xão acerca da natureza do espaço, pois se não identificarmos suas características e propriedades como reclamaremos das apropriações feitas até então?

Se a Geografia é a ciência que o reconhece como seu principal objeto de estudos, cabe à mesma realizar uma efetiva “radiografia” do espaço geográfico, afirmando a especificidade dessa ciência diante da sacramentada concepção de espaço conhecida pela Filosofia e pelas Ciências Sociais.

Estamos nos referindo ao espaço absoluto newtoniano, cuja principal característica é o dis-tanciamento, a separação em relação à matéria; dessa forma, constitui-se como algo anterior a toda e qualquer produção humana; não é um dado da existência do Homem; não se afirma como um ins-trumento empírico de comprovação, pois, se é “descolado” da matéria, pertence primordialmente, à consciência humana, existindo de maneira autônoma e independente do Homem. Se para Aristóte-les era correto pensar o espaço como um simples acidente da matéria, para Newton o espaço ⎯ como também o tempo ⎯ representava uma mera abstração; algo em si mesmo (SMITH, 1988, p.114).

Para Newton, a matéria se apresenta no tempo e no espaço; se sua forma de conceber o espaço é manifestamente objetiva, então não há como conjugarmos a matéria e o espaço unidos, somente em separado. O espaço é, portanto, um vazio, um receptáculo das ações humanas; um

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vácuo onde a matéria se apresenta de maneira mecanicamente determinada, todo o universo foi posto em movimento e continua funcionado como uma máquina governada por leis imutáveis. Uma das razões pela qual Newton vislumbrava o espaço dessa forma deve ser encontrada no fato de que a extensão era tida como uma de suas propriedades inerentes, onde este era ilimitado e homogêneo em sua totalidade, indiferente aos processos que ocorriam em seu âmbito, embora abarcasse toda e qualquer forma de existência.

Destarte, o espaço é visto como um mero palco e reflexo das ações humanas, da sociedade como um todo; um grande receptáculo da História, do acontecer. Em síntese, algo desprovido de significado e secundário na apreensão do movimento da matéria, e é exatamente sob esta perspec-tiva que resulta a pouca importância dada pelos autores expostos anteriormente ao espaço.

Entretanto, os esforços contemporâneos de determinados geógrafos, com destaque para Mil-ton Santos, lançaram novas luzes sobre a natureza do objeto da Geografia. Particularmente, desta-caremos neste trabalho a noção de inércia dinâmica (Santos, 1978), que nos permite distingui-lo inequivocamente da concepção newtoniana, revelando sua efetiva importância na compreensão do processo histórico.

Para ele, o espaço é um produto do trabalho, uma construção histórica das sociedades em seu constante movimento de mutação. Todavia, sua produção acaba dotando-o de uma propriedade bastante singular: sendo inteiramente práxis e intencionalidade, ele acaba por influenciar a imediata ação humana que virá a seguir. Em outras palavras, o espaço não é apenas fruto da construção humana, mas também um condicionante da mesma. Se o Homem age sobre o espaço, este tam-bém atua sobre ele.

Como sugere Santos:

[Sartre] diz que do mesmo modo que ‘o prático-inerte rouba minha ação... muitas vezes ele impõe uma contrafinalidade.’ Quando se trata do espaço humano, não se fala mais de prático-inerte, mas de inércia dinâmica. A representação é também ação e as formas tangíveis participam do pro-cesso tanto quanto os atores (idem, p. 137).

Portanto, o espaço influi e condiciona, de certa maneira, no movimento da sociedade; na pró-pria práxis humana. O espaço roubaria a ação, admitindo determinadas condições que, antes de sua produção, não seriam possíveis e que não foram previstas anteriormente.

Empiricamente falando, podemos citar a tradicional área de concentração das indústrias auto-mobilísticas no Brasil, o ABCD paulista. Tal concentração, que atendia às demandas de mercado das diversas multinacionais aí instaladas, acabou funcionando como uma condição para a manifes-tação das necessidades da classe proletária, cujo resultado concreto foi a criação e o fortalecimento dos sindicatos. Atualmente, o que se observa é que tais empresas simplesmente abandonam ou reduzem suas operações no ABCD, instalando-se em outras frações do território que os mantenha distantes de tais empecilhos.

Por que isso aconteceu? A resposta nos parece inequívoca: se, num primeiro momento, uma série de fatores locacionais impeliu a produção do espaço pelas multinacionais na fração do territó-rio em questão, atendendo aos interesses do modo de produção capitalista, a posteriori tal produção mostrou-se contrária aos mesmos, impossibilitando a continuidade de suas operações e obrigando a retirada total ou parcial daquelas instalações. Assim, a produção do espaço não se apresentou co-mo um aspecto fundamental na História do ABCD, mesmo que tenhamos clareza que, em última instância, nada disso teria acontecido se a mobilização da classe proletária não transformasse o panorama?

Ainda que tal proposta não seja assimilada sem problemas, chegando mesmo a ser recusada por alguns (Souza, 1988), cremos que esta é a principal característica do espaço geográfico. Se para a Geografia a inércia dinâmica de seu objeto deve ser o norte da reflexão, no âmbito das de-mais Ciências Sociais não há como negligenciá-la e continuar tratando o espaço de forma irrelevan-te e contingente.

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Notas

*Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e mestrando do curso de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF). 1 Entendido obviamente o lugar como uma parte do espaço produzido pela praxis humana, e não como um conceito natural, ambiental, destituído da lógica do modo de produção capitalista. 2 O historicismo é uma “(...) contextualização histórica hiperdesenvolvida da vida social e da teoria social, que obscurece e periferaliza ativamente a imaginação geográfica ou espacial. Essa definição não nega o poder e a importância extraordinários da historiografia como modalidade de discerni-mento emancipatório, mas identifica o historicismo com a criação de um silêncio crítico, com uma subordinação implícita do espaço ao tempo, que tolda as interpretações geográficas da mutabilidade do mundo social e se intromete em todos os níveis do discurso teórico (...)” (SOJA, 1993, p.23). 3 “E quando alguns dos mais influentes críticos sociais da época davam uma guinada espacial ousa-da, isso não apenas costumava ser visto pelos não-convertidos como algo inteiramente diferente, mas os próprios executores da virada preferiam, muitas vezes, abafar suas críticas ao historicismo, a fim de serem minimamente compreendidos” (SOJA, 1993, p.24). 4 Acerca das categorias necessidade e contingência, consulte: CHEPTULIN, Alexandre. A Dialética Materialista – Categorias e Leis da Dialética. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982. 354p. 5 Para uma discussão sobre a economia política e sua relação com o espaço, ver: MARTINS, Sér-gio. Crítica à economia política do espaço. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri, DAMIANI, Amélia Lui-sa, SEABRA, Odete (orgs.). O espaço no fim-de-século: a nova raridade. São Paulo: Contexto, 1999. p. 13-41.

Referências Bibliográficas

CHEPTULIN, Alexandre. A Dialética Materialista. Categorias e leis da dialética. São Paulo: Alfa-Omega, 1982. 354p.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992. 349p.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios: 1870-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 546 p.

LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimen-to. 6ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 1998. 219p.

MARTINS, Sérgio. Crítica à economia política do espaço. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri, DAMI-ANI, Amélia Luisa, SEABRA, Odete (orgs.). O espaço no fim-de-século: a nova raridade. São Paulo: Contexto, 1999. p. 13-41. MOREIRA, Ruy. O Círculo e a Espiral: a crise paradigmática do mundo moderno. Rio de Janeiro: Editora Obra Aberta, 1993. 142p.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec, 1978. 236 p.

⎯⎯⎯⎯. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico-Científico-Informacional. São Pau-lo: Hucitec, 1993. 190p.

SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual: natureza, capital e a produção de espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. 250p.

SOJA, Edward. Geografias Pós-Modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. 324p.

SOUZA, Marcelo José Lopes de. "Espaciologia": uma objeção (Crítica aos Prestigiamentos Pseudo-Críticos do Espaço Social). Terra Livre. São Paulo, nº 5, p. 21-45, 1988.

⎯⎯⎯-. O Território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias de, CORRÊA Roberto Lobato, GOMES Paulo César da Costa (orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 77-116, 1995.

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Breves considerações sobre organizações não governamentais

Eduardo Karol* [email protected]

Resumo

As organizações não-governamentais aparecem atualmente como um agente social capaz de atuar e resolver questões seculares pouco solucionadas pelo Estado. Trata-se de um contexto social e político baseado nas referências ideológicas dos limites do papel do Estado e sua dificuldade na formulação de novas propostas. Estas propostas são vistas como produtos mais realizáveis, dada a capacidade fluida e criativa dos agentes sociais. Busca-se aqui, analisar a gênese, as característi-cas gerais das ONGs e sua relação com a realidade brasileira.

Palavras-chave: Organizações não-governamentais, Estado moderno, participação, representação social.

Abstract

This study centers in three dimensions of the phenomenon of the intrametropolitam mobility, to know the dimension referent to the exclusion processes and social-spacial segregation, originating from economical, social and political differences, inside the metropolitan space, the dimension of the movement of the populations in the metropolis in relation to migration and the residential mobility (a scale questions); the dimension of the social-economic movement of the population in Fluminense metropolis, during the 80´s.

Key words: Non government organization (NGO); modern states; participation; social representati-on.

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Introdução

O espectro não-governamental ronda a literatura especializada, a mídia e a fala do mais sim-ples indivíduo. A materialização desse espectro traduz-se em organização não-governamental, ou simplesmente ONG. O intuito é de refletir sobre essas organizações, que se apresentam como no-vos atores na constituição da sociedade civil. Temos também como objetivo, disponibilizar informa-ções para que os professores dos vários níveis escolares possam trabalhar sobre o tema, de forma que superem opiniões pré-concebidas. Começaremos por indagar como surgem as organizações não-governamentais e para que? Apresentaremos um breve relato das ONGs no Brasil e finalmente como atuam.

Como surgem as ONG’s e para quê?

A expressão “Organizações Não-Governamentais“ - ONG’s, surge no cenário político do pós-guerra, quando a ONU - Organização das Nações Unidas, passou a ser a instituição normatizadora da “ajuda” aos países destruídos pela Guerra Mundial. A “ajuda”, denominada Cooperação Interna-cional, proporcionou o surgimento de experiências de participação e de exercício da cidadania em países da Europa e provocam o no surgimento de vários tipos de associações que em muito se dife-renciavam das organizações governamentais1.

Nos países do Sul, o surgimento das ONG’s deu-se de forma diferenciada, mesmo estando no marco da Cooperação Internacional. Organização Não-Governamental parece ter sido um termo empregado sem muitos critérios de análise. Segundo Rubem César Fernandes:

Na América Latina, Brasil inclusive, é mais abrangente falar-se de ‘Sociedade Civil’ e de suas Organizações. Este é um conceito do século dezoito que desempenhou papel im-portante na filosofia política moderna, sobretudo entre autores da Europa continental. Designava um plano intermediário de relações, entre a natureza, pré social, e o Estado, onde a socialização completar-se-ia pela obediência a leis universalmente reconheci-das. No entendimento clássico, incluía a totalidade das organizações particulares que interagem livremente na sociedade (entre as quais as empresas e seus negócios), limi-tadas e integradas, contudo, pelas leis nacionais. O conceito foi recuperado na América Latina no período recente das lutas contra o autoritarismo (como, aliás, também na Eu-ropa de Leste). A literatura hegeliana de esquerda foi instrumental neste sentido, tendo Gramsci como principal referência. O marxismo de linhagem italiana contribuiu, assim, para que a intelectualidade de esquerda reconsiderasse a questão da autonomia da "sociedade civil", com suas inúmeras instituições, frente ao Estado. Ocorre, no entanto, que o uso recente trouxe uma importante transformação no escopo do conceito original. Fala-se hoje das "organizações da sociedade civil" (OSCs) como um conjunto que, por suas características, distingue-se não apenas do Estado mas também do mercado. Re-cuperada no contexto das lutas pela democratização, a idéia de "Sociedade Civil" serviu para destacar um espaço próprio, não governamental, de participação nas causas cole-tivas. Nela e por ela, indivíduos e instituições particulares exerceriam a sua cidadania, de forma direta e autônoma. Estar na "Sociedade Civil" implicaria um sentido de perten-ça cidadã, com seus direitos e deveres, num plano simbólico que é logicamente anterior ao obtido pelo pertencimento político, dado pela mediação dos órgãos de governo (RUBEM CÉSAR FERNANDES, 2000. Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br ,capturado em 07/08/2000).

Pode-se dizer, deste modo, que o que se convencionou chamar de "Terceiro Setor"2 é um setor composto de organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, de âmbito não-governamental. Ele dá continuidade às práticas da caridade, filantropia e do mecenato, ou seja, práticas tradicionais que expandem seu sentido para outros domínios, devido, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas diferentes manifestações na socieda-de civil (FERNANDES, 1994).

No Brasil, no entanto, a legislação reconhece sob o termo “instituição sem fins lucrativos”, apenas aquelas organizações que não buscam o lucro. Atualmente, contudo, muitas organizações

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que se apresentavam como sendo organizações sem fins lucrativos se intitulam, ou buscam ser con-sideradas como, de caráter “não-governamental”.

Apesar do caráter dito “sem fins lucrativos”, é impressionante o volume de recursos financei-ros envolvidos nos trabalhos das ONG’s ou organizações filantrópicas de diversas finalidades soci-ais. Rubem César Fernandes, que estudou o tema apresenta uma reflexão interessante sobre a im-portância social do trabalho voluntário das organizações religiosas, apontando, assim, a economia que este trabalho proporciona, indiretamente, aos cofres do Estado.

Mesmo com a relativa indefinição sobre o significado do termo “Organizações não-governamentais”, o conceito passou a ser entendido como uma categoria de classificação de entida-des nascidas no interior da sociedade civil.

Quando surgiu, a denominação “organização não-governamental” nos documentos da ONU, seu objetivo era o de contrapor--se à denominação organização governamental. Sendo assim, o primeiro entendimento era de fácil identificação. Em nossos dias, a complexidade das relações insti-tucionais demanda maior clareza na definição do que seja uma organização não-governamental. Têm sido feitos esforços no sentido de se compreender melhor o fenômeno das organizações não-governamentais que vem se impondo à vida social, especialmente na atual situação histórica de fraqueza do sistema partidário e de desregulamentação do trabalho.

Uma das primeiras definições de Organização Não-Governamental encontra-se em Merle:

A sigla ONG indica todo agrupamento, associação ou movimento constituído de uma maneira durável por particulares pertencendo a diferentes países, tendo em vista o al-cance de objetivos não lucrativos3 (1981, p.275).

Já em Castro (1992) encontramos a seguinte definição:

As ONGs são possivelmente uma herança cultural do associacionismo civil e religioso das democracias liberais protestantes, mas agora com uma conexidade ampla e com um poder de fogo político muito maior. Ecoando e articulando interesses sociais locais, coletivos e populares em escala mundial, elas são o contrapeso inesperado da articula-ção transnacional dos grandes interesses econômicos e dos arranjos geopolíticos entre os Estados Nacionais (Ibid., p.19).

Localizando religiosa e politicamente as organizações não-governamentais numa origem re-mota que vai se atualizando, Castro mostra que estas são frutos de articulações e interesses defini-dos. Só que, ao mostrar a articulação de interesses de escala local com os de escala mundial, apon-ta as organizações não-governamentais como “o contrapeso inesperado”. Como vimos, contudo, a previsão destas já se encontrava em documentos de organizações e programas que articulariam interesses econômicos e geopolíticos. É, portanto, ingenuidade, acreditarmos que estas surgem “inesperadamente” ou, “espontaneamente”.

Scherer-Warren (1995, p.34), também estuda o fenômeno e propõe a seguinte definição:

Sintetizando, pode-se definir as ONGs como organizações formais, privadas, porém com fins públicos, sem fins lucrativos, autogovernadas e com participação de parte de seus membros como voluntários, objetivando realizar mediações de caráter educacio-nal, político, assessoria técnica, prestação de serviços e apoio material e logístico para populações-alvo específicas ou para segmentos da sociedade civil, tendo em vista ex-pandir o poder de participação destas com o objetivo último de desencadear transforma-ções sociais ao nível micro (do cotidiano e/ou local) ou ao nível macro (sistêmico e/ou global).Partindo do estatuto jurídico das organizações brasileiras, Scherer-Warren, vai definindo-as através das formas de relação estabelecidas entre atores, trabalhos reali-zados e público-alvo. Temos que considerar, contudo, que nem todas (ou quase nenhu-ma) as organizações preenchem todos os requisitos propostos na definição, pois sabe-mos que, na prática, muitas das organizações não-governamentais não estão interessa-das na transformação social.

O mesmo propõe Menescal (1996), quando nos diz que

[as]...ONGs podem ser atualmente definidas como o que eu chamaria de pressure

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groups sociais. Ou seja, como grupos de pressão que buscam por um lado influenciar e democratizar políticas governamentais para que essas supram de maneira mais exten-sa possível as necessidades da sociedade e de condições de vida iguais e justas no mundo todo e, por outro, movimentar a sociedade em que estão inseridas, utilizando-se de suas relações de solidariedade, na busca dessa democratização e influência política (MENESCAL,1996, p.28).

Estas duas últimas definições (de Scherer-Warren e Menescal) são limitadas porque exploram o campo de luta da sociedade civil organizada, não levando em consideração que atores destas ins-tituições têm interesses muito específicos.

As ONGs são, assim, instituições independentes. Não são uma parte integrante de estruturas maiores. Mesmo que uma pastoral, um departamento da universidade, um partido político ou um setor empresarial realizem eventualmente um trabalho do mesmo tipo, não poderiam ser considera-dos ONGs. Além disso, eles não são representantes de uma classe qualquer de indivíduos. O valor das ONGs vem do trabalho que realizam e não do segmento social que representam. Como observa Rubem César Fernandes (Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 07/08/2000), sindicatos, associações de bairro, e outras organizações que prestam serviços a seus membros talvez exerçam o mesmo tipo de atividade, mas não seriam considerados ONGs tampou-co. E não são agências de financiamento, o que as torna diferentes das Fundações. A proposta é fornecer serviços sociais que em geral não se auto-sustentam, daí as ONGs terem que sair à procu-ra de fundos em outros lugares.

Como se pode ver, existe uma série de traços contrastantes que tornam diferentes as ONGs: sendo entidades não-governamentais, sem fins lucrativos, elas não fazem parte de estruturas maio-res. Assim, também não são representativas, pois não financiam.

Outro ponto importante é que, sem as amarras das obrigações da representação, as ONGs não estavam limitadas a uma definição territorial e nem mesmo funcional. Podiam mover-se de um lugar a outro, de um grupo a outro, e até de um assunto a outro, sem restrições formais. Sempre que seus serviços fossem bem-vindos, ficavam e faziam o trabalho. Uma vez terminado o projeto, passavam para outro lugar ou para outra coisa. Essa mobilidade, claro, era bastante funcional para o papel de intermediário que iriam desempenhar entre as instituições globais e as organizações de base. (FERNANDES, 2000. Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 07/08/2000)

As ONG’s, por sua história e estilo institucional, têm que produzir projetos interessantes para possíveis financiadores, e esforçar-se para executá-los com sucesso, a fim de que se justifique um próximo financiamento de seus projetos. Para se sustentarem, necessitam de um bom desempenho, o que exige competências específicas num ambiente competitivo. Embora não seja este o “espírito” da organização, as ONGs “competem” por financiamentos de projetos junto aos potenciais financia-dores. Portanto, nas relações de interação locais, distinguem-se não apenas por suas conexões, como ainda pela tendência a adotar abordagens profissionais nas atividades sem fins lucrativos e em geral voluntárias. Portanto, ainda que de modo involuntário as ONG’s terminam por reintroduzir em seu trabalho a lógica da eficiência institucional4 no campo das ações sociais não-governamentais.

As ONG’s no Brasil

Sobre a caracterização no Brasil dessas organizações existem poucos estudos (Assumpção,1993, Fernandes, 1991, 1994 e outros), a maior parte deles de iniciativa de instituições de alguma forma ligadas às práticas de Organizações atualmente denominadas não-governamentais, como a FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, o IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas e o ISER - Instituto de Estudos da Re-ligião. Nestes estudos procura-se definir sua identidade e seus objetivos ou seja, afirmá-las como interlocutores no jogo político. Além disso, é preciso lembrar que, nos últimos anos, o tema Organi-zações não-governamentais, começou a ganhar destaque também em estudos acadêmicos, como os de (IBASE/PNUD, 1992), Gonçalves, (1996), Scherer-Warren (1995) e Gohn (1997).

As características principais das organizações que se originaram no Brasil a partir da

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década de sessenta, são seus traços assistencialistas e sua proposição como entidades que atuem fora da burocracia das organizações governamentais e da partidarização das entidades representativas da sociedade, metas nem sempre atingíveis, pois o movimen-to social é, como se sabe, marcado por clivagens. Esta concepção de ONG parte do modelo teórico cujo ideário primordial é o de não ser governamental, não ser partidário ou, em poucas palavras, estar e operar acima da sociedade e do social. Na prática, es-tas representações podem não passar de meias-verdades. Este fato é relevante, pois mostra que, embora tendo origem fora do Estado, como se verá, as ONG’s têm uma práxis comprometida com interesses ligados às políticas do Estado. Tal práxis se reali-za, por vezes, prescindindo de seu aparato e da representação legalmente pré-concebida nos códigos e normas sociais, fundamento do Estado Moderno.

As primeiras organizações brasileiras com características não-governamentais tiveram origem na Igreja Católica (como por exemplo, o CERIS - Centro de Estatística Religiosa e Investi-gações Sociais - criado em 1962, e o IBRADES - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, criado em 1968, ambos no Rio de Janeiro) e a partir da iniciativa de professores e pesquisadores da área acadêmica que buscavam criar um espaço alternativo para a produção do conhecimento, elaboração e realização de propostas e projetos junto ao movimento popular.

Na década de setenta, em função de uma ação política de oposição, resistência e denún-cia, surgiram novas organizações, que definiram seus objetivos influenciadas pelo contexto de resistência ao regime ditatorial sob tutela militar.

Nos anos oitenta, as organizações não-governamentais aumentaram em número e aquelas já existentes experimentaram os resultados dos projetos desenvolvidos nos períodos anteriores. Estas cumpriram, neste período, o papel de assessoria, preparando lideranças sindicais, organizan-do associações de moradores de bairros etc., que foram de fundamental importância para o movi-mento social. Foram chamadas, então, de organizações de “assessoria e apoio aos movimentos populares5”. Devemos lembrar, entretanto, que estes não foram o recorte privilegiado na década de 80. Outros temas, como mulheres, negros e ecologia foram, também, objeto de atuação6 e preocu-pação das ONG’s.

Nos anos noventa, as organizações experimentaram uma nova prática, tanto em relação ao Estado, quanto no âmbito da Cooperação Internacional7. O discurso ecológico8 passou a ser o amál-gama entre a necessidade de um novo modo de produção e a utilização dos recursos para isto. O que se propunha era, então, um novo modelo de desenvolvimento, não mais pautado na exploração da natureza, pura e simplesmente, mas que conseguisse combinar produção e preservação do meio ambiente. Neste momento, ganharam visibilidade as organizações não-governamentais que tinham, como objetivo, trabalhar a relação entre meio ambiente e desenvolvimento.

Como atuam as ONG’s?

Não obstante à indefinição do que sejam, as organizações não-governamentais existem (algumas há três décadas) e têm uma prática de inserção social que, a nosso ver, implica uma forma de rela-ção com o território. Muitas são as dificuldades para definir o que são; entretanto, podemos contar com duas certezas depois de sua investigação. São elas:

1 - Surgem no marco da Cooperação Internacional - isto é, estão previstas nos acordos entre os Estados Nacionais;

2 - Têm um papel estratégico no contexto de implementação do desenvolvimento sus-tentável.

Portanto, as organizações não-governamentais tanto podem operar no âmbito de um Estado a partir de e com os interesses estatistas, como podem operar na tessitura mais fina da sociedade10.

Estas organizações, para realizarem seus trabalhos, articulam várias escalas espaciais. Situ-am-se na escala local e fazem mediações em escalas nacionais e internacionais. Para a Geografia, é importante aprofundar a pesquisa e desvendar que tipo de mediações as ONG’s realizam.

Inicialmente, podemos indicar que muitas entidades buscam financiamento no plano interna-cional e realizam seu trabalho, por exemplo, numa comunidade de pescadores. As organizações

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estabelecem deste modo, uma rede de relações com outras organizações e agências financiadoras que perpassa vários níveis da configuração sócio-espacial.

A participação cidadã se dá a partir de vários caminhos possíveis. Suas origens mais profun-das estão nos espaços e interstícios da sociedade civil ou do que se convencionou chamar de “terceiro setor”, ou seja, estruturas que se construíram historicamente no interior de sociedades na-cionais. A grande ruptura das últimas três últimas décadas, reside na expansão, gradual e crescen-te, para a esfera internacional, deste compromisso com valores e causas de interesse público, antes experimentadas acima de tudo no nível local e/ou nacional. Este movimento de ampliação do alcan-ce da participação dos cidadãos para fora das fronteiras nacionais é expressão do fenômeno até então inaudito de construção consensual, pela comunhão internacional de valores, princípios e nor-mas de conduta de natureza universal que correspondem a direitos e necessidades básicas da hu-manidade. Temas como a proteção do meio ambiente e a defesa dos direitos humanos revelam um novo conteúdo na noção de solidariedade internacional, introduzindo, ainda as noções de “destino comum”, “cidadania global” e “gestão planetária”. (MIGUEL DARCY DE OLIVEIRA, 2000, Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 07/08/2000.

O crescimento e desenvolvimento do terceiro setor implica, portanto, sua crescente “profissionalização”, tanto no que diz respeito à inserção nos diferentes locais e grupos sociais, co-mo na utilização e capacitação de técnicos. Cada vez mais profissionais executivos de empresas privadas têm sido chamados ou apresentam-se para o trabalho voluntário nas ONG’s. Assim, a ad-ministração das ONG’s ou mesmo de todo o terceiro setor (o que inclui fundações, associações de cidadãos, entidades religiosas) vem deixando de ser espaço de ação de senhoras caridosas ou de aposentados. A profissionalização das entidades sem fins lucrativos tem atraído a migração de exe-cutivos qualificados do setor privado.

De fato, o crescimento do terceiro setor e a profissionalização são parecidos, mas existe uma diferença crucial: O terceiro setor não trabalha sob a lógica do lucro não existe visão de curto prazo. Existe a necessidade, primordial, da eficiência dos projetos. No caso, a velocidade dos processos é a maior distinção entre o RH e o terceiro setor. Nas empresas existe um caminho definido através do diagnóstico, planejamento e execução. No terceiro setor, existem alguns degraus a mais: o as-pecto político, a negociação e a arrecadação de recursos.

Este setor, inclusive, vem sendo encarado como novo mercado de trabalho para executivos. Duas competências são essenciais, segundo os especialistas, para a gestão das ONG’s e de todo o terceiro setor: conhecer a técnica de captação de recursos e o marketing da área. Na iniciativa priva-da é possível minimizar gastos para maximizar lucros. Já no setor estatal existem orçamentos e im-postos. No terceiro setor, entretanto, as fontes de recursos ficam a cargo da arrecadação de fundos. Uma boa rede de contatos, um influente conselho administrativo e trânsito livre pelo meio empresari-al são características indispensáveis. O marketing tem de ser eficiente na propagação da idéia de que a ONG vai produzir resultados e dar visibilidade às empresas que contribuem financeiramente para suas atividades.

Sendo assim, fica evidente que a localização espacial das ONG’s e os projetos a que se dedi-cam localmente, de modo simultâneo à sua relação com entidades internacionais de financiamento, influenciam fortemente suas atividades. Também seu modo de inserção, suas possibilidades técni-cas e de marketing, assim como de arrecadação local de recursos estão intimamente ligadas ao território e à territorialidade como categorias fundamentais na elaboração de projetos com perspecti-vas de sucesso. A presença do Estado em maior ou menor grau, o modo de produção local, o rela-cionamento entre os diversos grupos, inclusive de classe, a tradição e vários outros fatores delimita-dos ou limitados pela territorialidade, devem ser analisados para a melhor compreensão de como as ONG’s se inserem localmente e de que modo esta inserção é transformadora.

Notas

* O autor é Professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da UERJ.

1. Da Europa Continental vem o predomínio da expressão "Organizações Não Governamen-tais" (ONGs), cuja origem está na nomenclatura do sistema de representações das Nações Unidas. (Rubem César Fernandes, 2000 Disponível na Internet via em http://www.rits.org.br Capturado em 07/08/2000 ). 2. É um conceito, uma expressão de linguagem, entre outras. Existe, portanto, no âmbito do discurso e na medida em que as pessoas reconheçam o seu sentido num texto ou numa conversação. Pode-

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se dizer que o "Terceiro Setor" é composto de organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não-governamental, dando continuidade às práti-cas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato, expandindo o seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifes-tações na sociedade civil. Coube a John D. Rockefeller 3rd. cunhar a expressão 'terceiro setor' (third sector) num texto publicado em 1978. (Rockefeller 3rd apud Miguel Darcy de Oliveira, 2000, Dispo-nível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 07/08/2000).

3. Esta definição é muito abrangente e é pautada na Carta das Nações Unidas que, no seu artigo 71, estabelece que o Conselho Econômico e Social pode fazer consultas às Organizações Não-Governamentais credenciadas. 4. A suposta eficiência das ONGs é questão passível de discussões, que deveria ser julgada através de avaliações específicas (e "avaliação" vem se tornando, de fato, uma preocupação crescente no campo). Mas há um outro ponto especialmente relevante para nossas preocupações aqui: as ONGs, em virtude de suas características institucionais, tornaram-se um elemento chave para os planos de uma cidadania planetária. A dupla face (imersão local e conexão internacional), combinada à multi-plicidade de iniciativas e instâncias independentes, fornece instrumento oportuno e flexível para te-cer os fios comuns da cidadania na trama de um mundo heterogêneo e segmentado. Respeitados os limites estabelecidos pela linguagem dos projetos, as ONGs podem se movimentar por todo tipo de grupo e questão, mas não podem se permitir um afastamento do conjunto padrão de valores e regras veiculados pela cooperação internacional. Através das ONGs e de seus projetos, de forma solta, pluralista e dispersa, as ações locais interligam-se globalmente.

5. “Vantagens específicas trazem consigo problemas específicos. Nossos relatórios regionais levan-tam algumas dúvidas cruciais no que diz respeito às ONGs. Dependência de verbas estrangeiras pode inibir a busca de recursos locais. Engajamento numa pauta internacional pode provocar um preconceito "modernista" que aliena as ONGs das tradições autóctones. Em países mais pobres, as ONGs podem se transformar em instituições de grande importância e se afastar de seu papel como micro mediadores. O relatório da África, por exemplo, menciona situações onde as ONGs parecem mais atraentes aos financiamentos e ao pessoal qualificado do que o próprio Estado. Em todas as instâncias, é claro o desafio: como ir mais longe e mais fundo nas situações locais sem perder o significado internacional e vice-versa - como preservar a intenção universalista sem negligenciar os recursos e as experiências locais”. (Rubem César Fernandes, 2000 - Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 07/08/2000).

6. É nesta mesma década que nas disciplinas Sociologia e Geografia, o Movimento Social Urbano passou a ser objeto de vários estudos. Ver, por exemplo, Kowarick (1983) e Ribeiro (1982).

7. Nos anos noventas, observa-se uma modificação na Cooperação Internacional. Enquanto no pós-guerra a Cooperação tinha como atores o Estado, a empresa privada e as entidades financei-ras, nos anos 90 os atores são diversos setores da sociedade civil. É nesta nova acepção que toma-mos o termo.

8. Aquele que propõe utilização dos recursos com preservação.

9. Desenvolvimento sustentável foi definido pela comissão Brutland como sendo o desenvolvimento social, econômico e cultural que atende às buscas do presente sem comprometer as necessidades das gerações futuras. Esse conceito foi alvo de inúmeras críticas por ser vago e ambíguo, assim podendo ser interpretado de muitas maneiras.

10. “Entre as ONG mais atuantes de hoje estão as que prestam serviços diretos a indivíduos e co-munidades, que vão da saúde e educação à provisão de micro-crédito, ao treinamento vocacional e aos serviços profissionais”. BANCO MUNDIAL, 1997.

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Crise e/ou ruptura da modernidade: questionamentos sobre estudos científicos e representação do mundo.

Luiz Alberto dos Reis Gonçalves* [email protected]

Resumo

A crise da modernidade trouxe efeitos sobre o fazer das Ciências que são fatores impeditivos da realização das mais diferentes utopias construídas no interior dos mais variados projetos moder-nos. A busca por superá-las converte-se, então, na própria construção de uma outra utopia, com os mesmos sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade, diferenciando-se daquelas outras por seus patamares. Busca-se aqui, não estabelecer, definitivamente, estes novos parâmetros, mas ao me-nos esboçá-los. Palavras-chave: modernidade, projeto moderno, crise, representação do mundo.

Abstract

The crises of the modernity brings consequence about the create of the which are factors that are obstacles for the realization of the more different utopian constructer inner the different modern projects. The search of overcome the mention crises converted, then, in the construction of the other utopian, with the same dreams of freedom, equality and brotherhood, distinguishing from the others for it’s also various stairs the present articles without the pretension, in definitude , the others stairs, search, at learn, one sketch of the same.

Key words: modernity; modern projects; crises; representation of the world .

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Introdução:

A busca do fio de Ariadne

O desassossego está no ar. Estamos todos nos limites de espaço-tempo entre um presente inconcluso e um novo não iniciado. Ordem e desordem misturam-se nas possibilidades de catástro-fes pessoais e coletivas. Seriam as heranças/presságios do final/início de século? Ou seria, sem ligações com o tempo cronológico, uma crise a que fomos levados por nossos modos de pensar/agir?

O presente texto tem a intenção de refletir sobre o papel do pensamento científico na repre-sentação do mundo, indicando elementos para pensar o projeto moderno.

Desde a Era Clássica, a divisão materialismo X idealismo atormenta os pensadores. A Era das Luzes e, talvez, seu primeiro grande ícone – a Revolução Francesa de 1789 – libertou o homem do pensar/agir característicos do feudalismo. Entretanto, esse novo – e moderno – pensar/agir, que se estende ao nosso presente inconcluso está a demonstrar sua ineficácia. A Razão, principal lega-do da Era das Luzes, parece ter se esquecido de que o Novo Homem sente, tem vontades, ama e odeia. Aquela mesma Razão nos levou a um afastamento entre a vida e as idéias. O mesmo ocor-reu com a cartografia, ao se tornar filha direta da razão, conformou-se como técnica de representa-ção do espaço do Homem, neutra, despida de paixões.

O racionalismo Ocidental consolidou-se como hegemonia, com esse pano de fundo, tipificado pelos temores da indecisão entre o presente inconcluso e o futuro não iniciado, ressalte-se, um mo-mento de extrema riqueza pelas possibilidades que estão em aberto, como sair do labirinto que se configura na construção de um trabalho de pesquisa? Como encontrar o fio de Ariadne, a epistemo-logia condutora daquele mesmo trabalho diante de um momento de crise ou, como querem alguns, até mesmo de um tempo de ruptura com o racionalismo exarcebado do pensar/agir? A indagação espectral assombra todos aqueles que pretendem fazer ciência. É possível prosseguir ainda com questionamentos como o que se segue: que tipo de ciência desejamos ou é possível fazer, diante de tal quadro de crise e/ou ruptura daquilo que se convencionou chamar de modernidade? Como construir formas de representação do espaço –objeto despojado de concretude – incluindo as emo-ções dos representados e do representante?

Faz-se necessário, então, uma breve discussão sobre o significado e o legado do projeto do moderno e da modernidade e sobre aquilo que, até aqui, denominou-se como crise e/ou ruptura do pensamento científico para, em seguida, tentar erguer um arcabouço de idéias que contribua para uma saída do labirinto. São os objetivos aqui. Modernidade: nascimento, vida e morte (será?)

Inicialmente, faz-se imperioso reafirmar que o embate materialismo X idealismo não teve início somente na Era das Luzes. Desde a Grécia Antiga, a partir do século II a.C. e estendendo-se até o século VII, as mais diversas linhas de pensamento filosófico tornaram-se abstratas e empreenderam tentativas de expor o mundo de uma forma racional, em oposição às outras maneiras míticas de explicação.

Contudo, no século XVI, ao menos no mundo ocidental (judaico-greco-romano), um tipo de mentalidade vai sendo gestado para, afinal, no limiar do século XXI, atingir o seu apogeu e, ao que parece, também o seu momento mais crítico. É essa mentalidade, fundamentada em diferentes mo-delos de racionalidade que, invariavelmente, revestiam-se de um cunho instrumental, que é chama-da de projeto moderno ou de modernismos.

O projeto moderno, traz como utopia fundadora a idéia de libertação do homem de tudo aquilo que se apresentava como forças exteriores a ele próprio. Quer fossem forças naturais (ou fenôme-nos da Natureza), quer fossem entidades sobrenaturais, apresentou-se como a força de libertação, a força de jogar para o futuro toda a perspectiva daquilo que, idealisticamente, seria o bem para to-da a Humanidade. Pretendia superar e eliminar todas as máculas herdadas dos períodos anteriores e que, naquele momento, eram de memória mais viva, oriundas da Idade Média ou Idade das Tre-

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vas: obscurantismo, misticismo e superstição. Tal superação se daria pela imensa força da razão humana, a partir de então livre e autônoma diante daquelas mesmas máculas anteriores.

Contudo, esta libertação configurava-se em enorme problema para o homem das Luzes, já que este necessitava, nos mais diversos campos da vida, de uma nova maneira de pensar e, sobre-tudo, de diferenciar-se ante aos períodos anteriores. Este novo pensar – e, conseqüentemente, novo agir – deveria abarcar as formas de conhecimento (ciências) e as práticas sociais, políticas e econô-micas. Somente esta tarefa, por si só, gigantesca, não foi capaz de atemorizar o Novo Homem. Im-punha-se o atendimento de toda e qualquer necessidade básica da Humanidade. A partir de então, diversas utopias são estruturadas em torno dos parâmetros racionais estabelecidos pelo próprio No-vo Homem. Sem sombra de dúvidas, o discurso mais emblemático a retratar tais pensamentos é a frase idealista da Revolução Francesa de 1789: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Não importa discutir, pelo menos neste exato momento, a conclusão e conseqüente conquista plena ou não dos objetivos de tais utopias. Vale, entretanto, ressaltar, que as mesmas utopias apre-sentavam possibilidades não vivenciadas nos últimos períodos que antecederam as Luzes. Se elas reuniam sonhos ou ideais de vida em que as organizações sociais permitiriam o pleno acesso de todos aos bens materiais e, por conseguinte, à própria dignidade humana (por si só, um sonho pas-teurizador e equalizador das diferenças individuais), também abriam as possibilidades, diante do livre pensar e livre agir preconizados, de crítica a outras e diferentes – dentre as diversas – utopias.

Uma abordagem filosófica do tema modernidade é tarefa de extrema complexidade, e que foge ao âmbito e aos objetivos deste trabalho. No entanto, é necessário ressaltar aqui que o projeto moderno construído desde o período do Renascimento e construído (e em construção) no bojo da consolidação do Capitalismo, criou com diferentes facetas de racionalidade (cultural, tecnológica, social, política e espacial) a modernidade, entendida como ambiente da aventura, um tipo de experi-ência vital “experiências de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida” – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo (BERMAN, 1986).

E mais: “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor” (Berman, 1986). Ao torna-se a vida moderna efêmera e fugidia fruto do Capitalismo, a ciência, que é produtora e ao mesmo tem-po produto desta vida, abandona sua fé para se tornar coisa, corpo neutro em relação a sociedade, buscando ampliar a separação na relação sujeito-objeto.

Desse modo, “passeando” entre Francis Bacon e René Descartes, observam-se posições con-trastantes entre aqueles pensadores – ou modos de pensar sobre valores, conhecimento e socieda-de – que surgiam como oposição à metafísica oriunda da Igreja e do Estado. Se, já em seu nasci-mento, a modernidade traz projetos/utopias distintos, o mesmo ocorre naquilo que Hansen (1999, p. 9) denomina de “primeiro grande momento de auto-análise” e que é marcado, segundo o mesmo autor, pela Revolução Industrial e a nova fase do capitalismo, pela Revolução Francesa e pelo surgi-mento dos Estados modernos de características burguesas. Este momento de recriação, de crítica, de auto-análise e, portanto, um momento rico, tem, dentre os seus principais protagonistas, Imma-nuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Karl Marx segundo Harvey (1992) e Hansen (1999). De forma similar ao “passeio” entre Bacon e Descartes, aqui também é possível verificar profundas dife-renças entre as concepções de modernidade e de projeto de emancipação do Homem daqueles três pensadores.

Neste rápido caminhar sobre a “vida” da modernidade, seria ainda importante visitar Max We-ber, Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger e Michel Foucault, sendo os três últimos apontados por Jürgen Habermas (2000)

Na interpretação de Hansen, já existe um movimento na ciência que aponta para o fim do mo-dernismo e da modernidade.

Como precursores do movimento estético-filosófico hoje denominado pós-modernismo, cujo discurso apregoa o fim da modernidade pelo esgotamento de suas energias utópi-co-sociais, com o decorrente estabelecimento de um estado de Pós-modernidade (Ibidem, p. 10).

Seria, pois, a “morte” do projeto moderno? Uma tentativa de resposta que se converte na pró-

pria busca de uma fundamentação epistemológica é a tour de force do presente trabalho e que se espera, sem grandes pretensões contribuir nos limites das linhas deste artigo.

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Aqui interessa, então, não a discussão pormenorizada sobre cada um dos projetos utópicos ou a verificação sobre as suas respectivas evoluções para sociedades mais livres, equânimes, jus-tas e fraternas, mas sim, discutir a Grande Utopia chamada modernismo e seus reflexos sobre as ciências sociais em geral e sobre a ciência geográfica em particular, referindo-se ao sentido e signifi-cado das representações espaciais, como uma das representações do mundo.

O último baile do titanic (ou “Jamais fomos modernos”?)

“Jamais fomos modernos” faz menção ao livro de Bruno Latour (2000), acrescentando-lhe u-ma interrogação. Latour não indaga. Simplesmente, afirma que a modernidade nunca existiu porque seu conjunto de regras e formas de pensar/agir, por ele denominadas como Constituição, sempre foi incapaz de reconhecer o nascimento conjunto da “não-humanidade” das coisas, dos objetos ou das bestas, e o nascimento, tão estranho quanto o primeiro, de um Deus suprimido, fora do jogo (LATOUR, 2000, p. 19).

Além dos “nascimentos” das coisas, dos objetos ou das bestas e o nascimento do Deus Supri-mido, Latour assinala ainda o nascimento de uma terceira categoria: o homem. Afirma ainda que tal período caracteriza-se pelo tratamento compartimentado daquelas três categorias, enquanto, na realidade, “embaixo” (ou fora do pensamento), “os híbridos continuavam a multiplicar-se como con-seqüência direta deste tratamento em separado” (Latour, Ibidem, p.19). Em outras palavras: pensa-mento científico e mundo concreto são tratados como coisas distintas e distantes. A Ciência ao ra-cionalizar sua compreensão do mundo, acreditou que o cognitivo seria o único caminho possível.

Traduzir os “híbridos” de Latour como a diferença, como o mixing não pensado e, portanto, não racionalizado é um caminho possível. Assim, estaria o filósofo francês a propalar a pós-modernismo?

A resposta é negativa. Afirma ele que o pós-modernismo é um sintoma e não uma solução, considerando que sua crítica vazia, sem referências e impregnada de denúncias sem fundamento, é baseada numa razão, desacreditada pelo “movimento”, mas que é, contraditoriamente, a base que lhe permite o próprio exercício da indignação e da denúncia. Situando-se como um “não-moderno (ou amoderno)”, Latour descarta os pós-pós-pós-qualquer-coisa e propõe uma releitura daquela mesma constituição – ou conjunto de regras e formas de pensar/agir – numa atitude retrospectiva, sem amputações ou denúncias, mas que seja capaz, contudo, de incluir a diferença, os “híbridos” ou tudo aquilo que a condição modernidade não permite racionalizar, no sentido de sua característica de compartimentação dos saberes e dos anseios do racionalismo ocidental: a racionalidade da Ciên-cia, racionalidade do Estado, racionalidade do espaço e racionalidade da sociedade (GUIDDENS, 1991, SANTOS, 1996).

Nestes termos, pensar a modernidade como algo que nunca teve início pode converter-se num exagero, transformando o título de seu livro numa afirmação contraditória em face de sua pró-pria proposta de uma releitura das regras do jogo. Não seríamos, pois, os músicos da orquestra do Titanic, num gran finalle, afundando e continuando a executar uma canção para um imponderável baile submerso. Seríamos muito mais os náufragos ou sobreviventes que, nem por isso, deixaría-mos de viajar em navios. Seriam outros navios, com outros nomes. Mas, ainda assim, navios. Por que, então, não investir num momento de crítica, quando a diferença, quando tudo aquilo que ficou de fora começa a ser (re)visto? Ou melhor, quando a revisitamos buscando, agora, enxergar e racio-nalizar os “híbridos”, incluindo-os, não se estaria a fazer um ato de penitência sobre este ambiente da experiência humana chamada modernidade? Então, parece mais plausível falar em crítica do projeto moderno a partir de um momento de crise de sua grande utopia e das diferentes epistemolo-gias das ciências.

Outros pensadores, dentre eles Boaventura de Sousa Santos (1999), chegam a afirmar o fim de uma era (como se não mais existissem os navios!). Mesmo estes não deixam de passar pela crí-tica como caminho para anunciar a chegada da novidade.

Tenho mantido que essa transição é sobretudo evidente no domínio epistemológico: por debai-xo de um brilho aparente, a ciência moderna, que o projeto de modernidade considerou ser a solu-ção privilegiada para a progressiva e global racionalização da vida social e individual, tem-se vindo a converter, ela própria, num problema sem solução, gerador de recorrentes irracionalidades. Penso hoje que esta transição paradigmática, longe de se confinar ao domínio epistemológico, ocorre no plano societal global: o processo civilizatório instaurado com a conjunção da modernidade com o

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capitalismo e, portanto, com a redução das possibilidades da modernidade, às possibilidades do capitalismo entrou, tudo leva a crer, num período final (SANTOS, 1999, p. 34).

É válido ressaltar, entretanto, que seu foco não se volta exclusivamente ao capitalismo. Enxer-gando o marxismo como “uma das mais brilhantes reflexões teóricas da modernidade” (SANTOS, Ibidem, p. 35), e afirma ser este, muito mais parte do problema, por sua fé na ciência moderna, no progresso e na racionalidade, do que uma solução.

Sousa Santos reforça a crença de um momento de crise e crítica e lança mão do termo pós-modernidade, esclarecendo que o faz muito mais pela ausência de um nome definitivo para reafir-mar a fase de transição paradigmática para algo novo, com perfil vagamente delineável, do que pa-ra, efetivamente, definir o momento. (A insistência em “batizar” novas (novas?) coisas ou gerar no-mes de impacto – que não parece ser o caso do último citado – apontam muito mais à ânsia de al-guns pensadores de reafirmarem-se na vanguarda de suas (suas?) ciências do que, de fato, habili-tar ou configurar um novo conceito).

Aqui, não está em questão o emprego – ou a assunção – de termos tais como pós-moderno, a moderno ou outros que se lhes assemelhem, como formato para retratar algo ainda não claramente consolidado ou por sua utilidade ante a ausência de melhor definição para o momento atual de crise utópica. Embora com diagnósticos diferentes – não existência da modernidade ou superação da mesma – os dois últimos autores citados concordam com a existência do momento de incertezas. Interessa, pois, muito mais aceitar ao projeto moderno, relacionando os principais tópicos de sua corrente crise como tentativa de ultrapassar o mesmo. Seguindo as idéias de Hansen, anteriormente citado, tem-se o ensejo para aproveitar este outro “grande momento de auto-análise”.

Diversos cientistas sociais, com diferentes olhares, têm se debruçado sobre a já tantas vezes mencionada crise. Numa visão bastante panorâmica, é possível aqui privilegiar o enfoque sobre os questionamentos relativos aos pressupostos epistemológicos da Ciência Moderna. Segundo Santos (Ibidem, p. 285), tais pressupostos, “bem como o tipo de racionalidade cognitivo-instrumental e de conhecimento técnico-científico em que desembocaram” seriam os responsáveis pela negligência na reflexão sobre os problemas fundamentais. Assim, a distinção sujeito-objecto, a separação total en-tre meios e fins, a concepção mecanicista da natureza e da sociedade, o cisma entre factos e valo-res e a objectividade concebida como neutralidade, uma idéia do rigor quantitativo e euclidiano inimi-ga da complexidade e insensível a fractalidade dos fenômenos, uma teorização pretensamente uni-versalista, mas na realidade androcêntrica e etnocêntrica – tudo isso conspirou para criar um buraco negro epistemológico à volta dos grandes problemas da vida colectiva e das relações interculturais (loc. cit.).

Aquela “desembocadura” citada teria sido causada, segundo o mesmo autor (2000a, p. 17), por uma “consciência arrogante” que destrona a filosofia herdada de Aristóteles e promove, agora com centralidade dominante, a filosofia da ciência, fruto do extremo desenvolvimento das ciências e das técnicas na sociedade industrial, com apogeu em finais do século XIX. Ressalta ainda dois dife-rentes tipos de crises epistemológicas: de crescimento e de degenerescência.

A primeira delas seria interna a cada uma das disciplinas e revelaria a pujança das mesmas diante de alternativas possíveis frente a métodos ou conceitos básicos, anteriormente não contesta-dos. O segundo tipo de crise – degenerescência – muito mais rara, permearia a totalidade das disci-plinas com grande profundidade. Estas seriam crises de paradigma já que põem em causa a própria forma de inteligibilidade do real que um dado paradigma proporciona e não apenas os instrumentos metodológicos e conceituais que lhe dão acesso (SANTOS, 2000a, p. 18). Ou isso... ou aquilo: As representações, um problema crucial

Jorge Luís Borges, poeta argentino, relata a história de um imperador que teria encomendado

aos seus cartógrafos um mapa fidedigno de seus domínios. Depois de exaustivo trabalho, os cartó-grafos deram a tarefa por concluída, embora não tenham ficado satisfeitos com o resultado. O mapa coincidia, ponto a ponto, com o próprio império, perdendo qualquer valor prático. Acrescente a esse poema que, para atingir a praticabilidade (ou a falta de) auto-criticada pelos cartógrafos, alguns arti-fícios de representação tais como escala, simbologia e sistemas projetivos, deveriam ser utilizados na construção do “mapa fidedigno”. Acrescente ainda que a escala cartográfica1 suprimisse informa-ções. A simbologia é a própria alma da representação: as coisas são representadas por outras coi-sas que não são as próprias coisas. Os sistemas de projeção distorcem ou áreas ou distâncias ou

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medidas angulares ou tudo isso ao mesmo tempo. Em suma, não há fidedignidade na representa-ção, embora não se esteja afirmando que ela, representação, não possa conter dignidade.

Na verdade, no bojo das questões elucidadas até aqui, a respeito do dilema do saber científi-co no que se refere às relações pensamento-concretude, sujeito-objeto e razão-emoção, vale refletir um pouco a partir da própria história da representação espacial, ou melhor, da cartografia. Filha direta da era das Luzes e posta a serviço dos interesses econômicos e políticos do Mercantilismo, a cartografia era a arte de compor mapas, arte que virou ciência com o passar dos anos e devido à busca da precisão e da neutralidade na representação dos objetos e processos no espaço. Assim, se nos primórdios dessa disciplina havia ambigüidade ou ambivalência devido ser atividade eminen-temente artística, por não dizer poética, em que o desenhista-cartógrafo elaborava sobre temas fictí-cios e mapeava terras inexistentes ou supostas, localizando fauna e flora de seu imaginário fantásti-co. Mas com os descobrimentos, a arte torna-se ciência ainda que se ressentindo de observação direta, já que cartógrafos em geral construíam seus mapas a partir de relatos orais, nem sempre de primeira mão. Desse modo, a partir da Idade Média – mais precisamente nos séculos XII e XIV – cartógrafos marcados pela visão de mundo de sua época apresentavam lugares em mapas que tinham em comum forte simbolismo religioso e eram ricos de imaginário representativo de temores e de indagações. Assim, o Atlas de Ptolomeu, redescoberto pelos árabes no século XII e a carta “Postulano” do século XIV, o Atlas “Catalão” de 1375 e o Planisfério “Cantino”, dentre outros, apon-tavam para a representação espacial do desconhecido, do enigmático, do lugar e do futuro obscuro. Esta época de construção primordial da razão, relacionava arte, emoção e razão, no esforço dos cartógrafos em representar superfícies curvas sobre a superfície plana do mapa (BANCO DO BRA-SIL et al., 2000).

A construção da Cartografia no formato acadêmico, seguindo o rigor do saber científico, fez-se romper os elos entre razão e emoção, entre pensamento e espaço representado, entre sujeito e objeto representado, tornando-se instrumento dos agentes dominantes para representar processos dominantes.

Assim, na panorâmica relação de pecados de nossa Era, anteriormente relacionados, cabe um destaque à distinção sujeito-objeto, como forma de entrada na discussão das representações.

O conhecimento da modernidade e o projeto moderno assentam suas bases no isolamento do cientista com o mundo, em representações. Rompe-se a emoção diante do objeto em representa-ção. E como pressupõe-se que o mundo já é conhecido, perde-se a emoção de buscar representar o enigmático.

É através deste isolamento que o objeto – o outro – é visto, descrito, estudado e teorizado pelo sujeito. Criticando tal procedimento, Santos (1999, p. 105) observa: “A representação cria, as-sim, distância e quanto maior for a distância mais objectivo é o conhecimento”.

A prática científica vem sendo constantemente recortada pela homogeneização e abstração. Contudo, as representações não podem, aprioristicamente, serem descartadas e condenadas por não conterem a diferença. Ao contrário, a diferença, o desigual ou aquilo que está fora da Razão também é concebido pelas representações. Lutfi (et al., 1996, p. 88), a respeito da obra La Présence et L’Absence2, de Henri Lefebvre, comentam que o autor apresenta sua contribuição para uma teori-a crítica das representações e mostram o que se representa está presente e ausente, ao mesmo tempo, na representação. Presença e ausência não se excluem mas, ao contrário, uma é mediada pela outra, uma supõe a outra. ... Lefebvre ... mostra como não são nem falsas nem verdadeiras por vocação ou por essência, como supõem algumas concepções filosóficas, mas falsas e verdadeiras ao mesmo tempo (LUTFI et al., Ibidem, p. 88-89).

É válido ressaltar, entretanto, que o representado perde força diante de seu representante através da representação, distanciando-se, assim, do vivido (palavra tão cara a Lefebvre). A ideali-zação do(s) mundo(s) e da(s) vida(s) – o próprio concebido de Lefebvre – necessita, pois, ser medi-atizada pelo vivido, como forma de sua superação. Trata-se, então, de encarar as representações como mediações e não como interdições. Isto equivale a afirmar que a representação é parte inte-grante da realidade e, como tal, dá um salto qualitativo quando nela estão incluídos os elementos desiguais, os conflitos e as diferenças, juntando-as, assim, aquele mesmo vivido. Para o mesmo autor, isso se dá na dimensão do percebido. Segundo Seabra (1996, p. 80), Lefebvre, ao abordar as relações entre o vivido e o concebido mostra-nos que o vivido, âmbito de imediatidades, não coinci-de com o concebido. Entre um e outro permanece uma zona de “penumbra” na qual opera o perce-bido. O percebido corresponde a algum nível de entendimento do mundo, funda atos, relações, con-

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ceitos, valores, mensagens, verdades... O percebido do mundo está, inexoravelmente, envolto em representações, e portanto situa-se no movimento dialético, que nunca cessa, entre o concebido e o vivido (SEABRA, Idem).

Nesta dimensão e numa epistemologia que deseja, senão a total impossibilidade de suprimir as representações, incluir a diferença, o desigual e o conflituoso, deverão estar presentes o senso comum, o conhecimento vulgar e as opiniões. Ao contrário do “rigor” científico da modernidade, em que todas estas postulações são falsas, por não passarem de meras opiniões, urgente se faz incluir o vivido. Somente assim será possível superar a hegemonia da racionalidade científica e a simples transmutação de problemas éticos, políticos ou sociais em problemas técnicos.

No sentido do exposto, torna-se sem significância o título deste item. O “Ou isso... ou aquilo” perde a força e o peso tirado da Modernidade e de suas representações excludentes sem, contudo, pretender sua definitiva destruição.

A frase de John Lennon, “The dream is over”, a respeito do encerramento da carreira dos Bea-tles, tornada emblemática para as mais diversas finalidades, neste caso, está errada. O sonho não acabou. Os postulados da geração beatnik, propostos por Jack Kerouac, Allen Ginsberg e Timothy Leary e que desembocaram no “Paz e Amor” da geração hippie, continuam vivos no devaneio – a-gora quase um ato de fé – de uma ainda possível Grande Utopia. Contudo, a emancipação social, o eterno sonho da liberdade, da igualdade e da fraternidade devem se dar numa outra base, mais dis-tante da eficácia e da coerência autoproclamadas pela ciência moderna e, sobretudo, através da-quela Constituição da qual fala Latour, anteriormente citada. A pretensão é encontrar caminhos al-ternativos na própria Modernidade, sem destruí-la ou descartá-la para todo o sempre. Insistindo numa grande utopia: na busca epistemológica

Ao longo do presente escrito, em subtítulos ou no próprio corpo do texto, há uma série de pontos de interrogação. Não poderia ser de outra forma, dada a condição, citada logo de início, do presente inconcluso e do novo ainda não iniciado. Aponta-se, aqui, muito mais para uma busca e sua respectiva tentativa de (prematura) resposta do que para uma “bula papal”, um receituário pron-to e acabado. Entretanto, tem-se a ousadia de estabelecer algumas afirmações que estão a referir-se à linguagem científica.

O discurso científico-moderno travou, desde o seu início,uma luta cerrada contra a linguagem vulgar do senso comum, veiculadora de concepções falsas tornadas evidentes pela aparente trans-parência de uma linguagem comum a todos. Luta de maneira cerrada, que a ciência passou a confi-ar exclusivamente numa linguagem incomum por excelência, a linguagem matemática, consideran-do-a a única capaz de restituir por inteiro o rigor do conhecimento científico moderno (SANTOS, 2000a, p. 111-112).

O rigor científico na modernidade não permite brechas à linguagem “literária” ou vulgar do senso comum. Mais: busca suprimir os elementos não-cognitivos (emoção, paixão, desejo, ambição, entre outros tantos) por se tratarem de fatores perturbadores da racionalidade científica. Tais ele-mentos não cognitivos somente integram o discurso racional-científico quando são, eles mesmos, objetos das próprias pesquisas e, nestes casos, inteiramente subjugados à racionalidade já que suas presenças na natureza humana são as evidências da incapacidade do próprio homem de pensar/agir racionalmente. Postula-se, então, uma tolerância maior com os discursos que conte-nham os elementos não-cognitivos e o senso comum. Não se pode negar a busca por uma intera-ção maior entre razão e emoção, ainda que isto seja um movimento não dominante.

Na fronteira do debate sobre o sentido da Filosofia e da Ciência no século XX e início do sé-culo XXI, já se reconhece o sentido profundo do racionalismo científico. Buscas iniciadas sobre as racionalidades do cotidiano e dos homens comuns são apontadas por Santos (1996), quando reco-nhece os homens lentos das metrópoles e a psicosfera como também o lugar dos valores e das emoções. Compreensão do sentimento, das paixões que fazem mover com grandes discernimentos e força de sentido. Os intelectuais indignados estão presentes em Maffessoli (1997), Pena-Veja e Nascimento (1999), Morin (1999), além dos fundadores do pensamento crítico-marxista, dentre ou-tros. Tudo isso aponta para um novo, ainda semente, que para se afirmar necessita de muita luta, de uma nova visão de Homem e de mundo.

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Ainda é necessário postular sobre a relação entre discurso científico e sociedade. Se, como já afirmado, a ciência moderna e seu discurso constituíram-se sem considerar o senso comum e a lin-guagem dita vulgar, ela expropriou o homem comum do saber científico. Além do seu rigor, ela co-briu-se de um linguajar de difícil compreensão, de difícil leitura. Ao saber, só terão acesso os inicia-dos e somente será partilhado entre os pares. Urge, então, além da aceitação ou maior tolerância em relação ao senso comum, que:

1- o linguajar dito científico converta-se em simplicidade e clareza para o homem comum e abandone o hermetismo do discurso “somente para mágicos”;

2- a comunidade científica seja capaz de promover o reconhecimento de outras formas de saber;

3- a aceitação do preconizado no item 2 seja concomitante com uma comunicação entre os dois saberes (científico e não científico), enriquecendo a ambos.

Em caso contrário, estar-se-á reproduzindo as mesmas relações de dominação que caracteri-zam a Modernidade, em que pesem os ideais da Grande Utopia de liberdade, igualdade e fraternida-de e da definitiva emancipação do Novo Homem, acima também referidos.

Para além do problema do discurso científico, parece claro que a extrema racionalidade aca-bou por transformar-se num outro extremo de irracionalidades múltiplas e caleidoscópicas. Nesse sentido, defender as possibilidades de realização de uma Grande Utopia – daí a insistência na Mo-dernidade, considerando as diversas utopias como o quê de mais positivo ela trouxe – parece ser tarefa das mais árduas. Resta, pois, reinventar o futuro com um novo leque de possibilidades e ba-seado em alguns pontos de defesa, aqui destacados e com a lembrança, de antemão, de que tantos outros poderão vir a ser acrescentados, em coerência e em decorrência da aceitação de múltiplas verdades.

O primeiro deles é a recusa da intemporabilidade das verdades científicas e da separação entre aparência e realidade. Um segundo ponto de defesa é a recusa de demarcação entre saberes e disciplinas e o aceite de imbricação e fluidez entre ciências humanas, sociais, naturais, arte, litera-tura e o senso comum. Cabe ainda a aceitação dos elementos não cognitivos (paixões, desejos ou quaisquer outros sentimentos) como possibilitadores de transformação social. Faz-se necessário – quarto ponto – que qualquer ciência/saber/senso comum não se configure como realização pessoal ou coletiva, caso não possa ser apropriável para aqueles a quem se destinam. E mais: que as mes-mas ciências/saberes/sensos comuns sejam revestidos de uma solidariedade concreta, sem a qual é impossível a vida individual ou coletiva. Finalmente, como sexto ponto de defesa, é necessário que se “tolere a imperfectibilidade das palavras e dos cálculos se ela (transição paradigmática) se traduzir numa maior razoabilidade e equidade das ações e das conseqüências” (SANTOS, 1999, p. 346).

Longe de constituir-se como um definitivo paradigma do presente inconcluso e do futuro ainda não iniciado, resta, mesmo que de forma provisória, tentar migrar os pontos de defesa acima relacio-nados para novo sentido para as representações espaciais.

Conclusão: Em busca de uma filosofia da ciência da representação do espaço do homem

Se a busca de uma epistemologia e de uma metodologia nos tempos de incerteza e de extre-ma fragmentação é tarefa bastante árdua, mais ainda o é tratar de operacionalizá-las num trabalho de pesquisa geográfica. Não se tem aqui pretensão. Acreditamos que é necessária a construção de um fazer geográfico da representação do espaço do homem, que não repita os vícios da Cartografia para o poder do Estado, da Cartografia para a empresa. É necessário buscar construir uma forma de representação dos movimentos do senso comum, das racionalidades não dominantes, da emo-ção, corporificada de sentido para (e principalmente para) os representados, com a finalidade de contribuir para uma construção de um mundo mais emancipador, em que o centro seja os homens, as mulheres, as crianças, os idosos e com o reconhecimento da pluralidade cultural existente.

Por tudo aquilo que aqui foi exposto e concedendo peso aos seis pontos de defesa menciona-dos no item anterior, concorda-se com Oliveira quando este afirma que

Henri Lefebvre é aquele que, talvez, ao longo de suas obras, mais tenha se aproximado desta possibilidade (de explicar, compreender e sentir) ao propor um método de análise

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do espaço no cotidiano com base em categorias sistematizadoras (organizadoras) das idéias como: o vivido, o concebido e o percebido (OLIVEIRA, 1998, p. 21-22).

Assim, a pretensão é realizar, em nossos estudos, uma “Ciência com Consciência” sem, con-tudo, estar-se a indicar o emprego, em sua totalidade, da Teoria da Complexidade do autor do livro, Edgar Morin (1999), procurando incorporar aquelas chamadas “categorias sistematizadoras” às e-ventuais categorias geográficas em estudo, sem a pretensa ingenuidade de conhecer todos os as-pectos de uma realidade multifacetada. Sem a pretensa ingenuidade de transformar aquilo que é múltiplo e caleidoscópico em algo uno, pasteurizado e equalizado. Alerta-se, entretanto, que, dada a fragmentação em múltiplas faces dos possíveis diversos objetos de estudo, não se está a indicar que os mesmos devam tornar-se também múltiplos, sem coerência e sem unidade. Espera-se, so-bretudo, através do emprego daquelas “categorias sistematizadoras”, encontrar coerência e unidade em futuras pesquisas.

Finalmente, através de futuros estudos, pretende-se não só contribuir para o avanço da ciên-cia geográfica, mas, também, para o avanço de uma Grande Utopia de uma sociedade mais justa e fraterna, com respeito às diferentes verdades existentes em cada um de nós.

Notas

*O autor é engenheiro cartógrafo e geógrafo do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca, mestrando em Geografia da UFF – Universidade Federal Fluminense e Professor Substituto do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1. As escalas podem ser, também, de ampliação, de uso mais comum na indústria e mais raras na Cartografia. 2. LEFEBVRE, Henri. La Présence et L’Absence. Paris: Casterman, 1980.

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A geografia e histórias em quadrinhos

Luís Guilherme da Silva Coelho* [email protected]

Resumo

A cultura de massa consiste de meios de comunicação que interferem na difusão de diversos valo-res culturais, o que dá falsa idéia de um universalismo. As revistas em quadrinhos são um exemplo de meio de comunicação; é como os demais produtos criados para o lazer, que seguem a lógica globalizante, uma vez que acompanham as mudanças das técnicas de produção e atingem a socie-dade. Porém, antes de tudo é preciso observar e analisar o seu conteúdo, sua mensagem, sendo importante compreender sua estrutura constituída de mitos e signos. As revistas de histórias em quadrinhos se inserem no capitalismo primeiramente como mercadoria, possuindo um valor de troca e segundo, difundindo ideologias, apresentando-se como um produto inocente e divertido, o que permite a sua aceitação e sua linguagem é de fácil entendimento, tornando-a acessível principal-mente para as crianças, não é preciso nenhum conhecimento a mais para ler uma história, somente o essencial: saber ler.

Palavras-chave: Geografia; história em quadrinhos; cultura; ideologia; economia.

Abstract

The consumptions of several cultural values, through the media, knowing as the mass culture, bring a false idea of universalism. Cartoons magazine as well as others products created for leisure, following the globalization logical, since it is normally follow the changes in the techniques of produc-tion and influences the reader. However, before every thing it is necessary to observe and analyses it content, it message, being important to understanding it structure, which is formed by myth and sign. The cartoons histories are inserted in the capitalism, firstly as merchandise, having an exchange value, and secondarily spreading ideologies. The cartoons magazine shows to be an innocent and enjoyment product, which makes it to be accepted and it language is easy to understand, which makes it accessible to children, it is not necessary any more knowledge to ready the history, only the essential: know to ready.

Key words: Geography; cartoons histories; culture; ideology and economy.

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Introdução

A indústria cultural oferece muitos produtos, conforme a lógica globalizante, cabendo aos meios de comunicação, a tarefa de divulgá-los. Das inúmeras mercadorias produzidas, as revistas de histórias em quadrinhos (RHQ) encontram em nosso país um grande mercado consumidor, per-dendo apenas para Estados Unidos, Inglaterra e Japão.

Por definição, história em quadrinhos é uma arte seqüencial composta de dois signos: a ima-gem e a palavra, podendo também conter somente o signo imagético. Porém, existem outros pon-tos relacionados a essa arte que muitos não percebem. Toda a RHQ possui um sentido simbólico que interfere no conjunto de representações simbólicas. Este sentido é necessário para sua grande influência na sociedade, o que o torna consumo de massa. Há um grande potencial em seu uso como meio de comunicação e de expressão, pois nelas encontram-se além da arte, a literatura, as sociologias, a física, a história, podendo ser utilizadas no ensino de Geografia, abordando-se temas como territorialidade, capitalismo, questões socioeconômicas, ambientais, políticas e outros.

Os valores culturais nas diferentes histórias em quadrinhos: indústria cultural, tecnosfera e psicosfera

Comumente, a palavra cultura é empregada para indicar a posse de um determinado saber

ou como posição social, ou ainda na concepção do senso comum como sinônimo de folclore, sem levar em consideração as várias formas de manifestações dentro de um povo. O conceito de cultu-ra mais usado é de Edward Tylor, conforme anuncia Laraia (1993): ” (...) tomado em seu amplo sen-tido etnográfico é este complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma socieda-de” (TYLOR, 1871, p.1 apud LARAIA, 1993, p. 25) . Ou seja, abrange tudo aquilo que o homem faz como membro de uma dada sociedade e que depende de uma forma qualquer de aprendizado.

Segundo Milton Santos (1996, 1994, 2001), o conceito de cultura está intimamente ligado às expressões da autenticidade, da integridade e da liberdade. Ela é a manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro de-sejado. Assim a cultura como manifestação de um povo, abarcando desde a língua até as formas de conhecimento, trazendo em si significados e valores, pode ser vista na interpretação do território como algo homogêneo, uma representação nacional, porém tomada no âmbito interno, a questão da cultura popular apresenta características distintas que remetem à sociedade e a divisão de clas-ses.

Nos Estados Unidos, nos anos 30, criaram-se três níveis de cultura: o highcult, midcult e o masscult. A cultura superior (highcult) englobaria os produtos alusivos à crítica erudita; a cultura média (midcult) seria os produtos antes consumo das elites passam a ser acessiveis à classe média. Algumas HQ entrariam nesse nível como as de origem americanas como Flash Gordon, Príncipe Valente, Minduim (Peanuts ou Snoppy) e Tarzan. Já a cultura inferior (masscult) seria propria-mente a de massa, sujeita à “lei de oferta e procura” em que se consome aquilo que é sugerido pela indústria cultural através de seus meios (COELHO, 1980, P.33; ECO, 2000, p.30).

Na verdade, ao categorizar a cultura (superior, média ou inferior) é uma forma de disfarçar (ou seria hierarquizar?) o caráter capitalista e ideológico dos meios de comunicação, porque a cultu-ra vista como algo em constante transformação não homogênea entre os indivíduos de um território, porém como parte de sua história e língua (CIERNE, 1973,1990,2000; MEDINA, 1993), tratando-se de escalas, nações e nos tempos de globalização, a cultura de um povo é uma forma de resistência.

Assim, os países do Primeiro Mundo procuram, via indústria cultural, certos valores que a princípio dão a impressão de um universalismo, mas na verdade procuram minar os valores cultu-rais locais diluindo-os ou substituindo-os por outros. Quando os bens culturais passam ser produzi-dos obedecendo uma lógica industrial, que gera novos modelos e valores a serem seguidos, os meios de comunicação a serviço da lógica dominante modernizam-se fazendo com que as pessoas acompanhem essas mudanças. (...) “O fato de milhões de pessoas participam dessa indústria (indústria cultural) imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a dissemina-

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ção de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais” (THEODOR & HORKHEIMER, 1985 APUD SILVA, 1994, p.34)

Os meios de comunicação de massa – televisão, rádio, cinema, jornais e revistas – são vias em que são transmitidos todos os tipos de mensagens endereçadas às distintas parcelas da socie-dade. Existe um produto que é pensado para chegar até as pessoas de variadas rendas mesmo em tempos e maneiras diferentes. Exemplo, quando os aparelhos videocassete passaram a ser comer-cializados no Brasil somente a classe média e a classe alta que possuíam condições para comprá-los, mas com o sistema de crédito e o barateamento do produto, o equipamento tornou-se difuso também pelas classes populares, tão comum quanto a TV a cores ou os aparelhos de som 3 em 1. Fato semelhante vem ocorrendo com os gravadores de CD e aparelhos de DVD.

As revistas de histórias em quadrinhos (RHQ), em geral, reforçam ideais e valores dominan-tes, da mesma forma que a televisão e o cinema, as RHQ com seus personagens coloridos ou em preto-e- branco, com seus enredos mirabolantes, buscam nos mitos e nos símbolos a representação uma determinada cultura em que na realidade busca ser hegemônica diante das outras culturas, fundada numa base simbólica dominação carismática.

Em geral, as inovações tecnológicas oriundas das revoluções industriais não deixaram nenhu-ma parte do globo fora de sua influência, porque se tornaram mercadorias e os capitalistas busca-vam ampliar seu mercado, atingir a escala mundo, provocando a produção dos sistemas de objetos e dando uma nova racionalidade em face dos processos produtivos. Como a indústria cultural é fruto das inovações da técnica e da lógica capitalista, seus bens materiais passaram a ser ofereci-dos em maior quantidade, idéias, saberes e informação também, orientando-se pela racionalidade da globalização (da economia e da cultura). “A difusão do meio técnico-científico-informacional de-ve muito ao paralelismo da nova psicosfera, levando ao alastramento de novas racionalida-des” (RIBEIRO, 1993, p.150). Isso porque a abrangência da psicosfera em relação à tecnosfera é maior que, devido ao seu poder simbólico que alcança grandes porções do território através do ima-ginário coletivo (propaganda, relações familiares e de amigos, etc), o que não significa que não haja resistência a sua homogeneização (SANTOS E SILVEIRA, 2001, p.103). Já a tecnosfera, que é configuração espacial de objetos fixos e de fluxos no espaço, é seletiva quanto a sua materialização no território devido às condições históricas, econômicas e sociais na construção do território.

Na análise do consumo cultural, pode-se reconhecer a psicosfera nas práticas da indústria cultural principalmente pelo consumo da imagem (símbolos, idéias, valores), em que podemos en-tender a publicidade como “ uma verdadeira mediação entre as instâncias sociais: espaço, cultura, política, economia.” (ANTONGIOVANNI, 2001, p. 283). Essa mediação acontece dentro de um sis-tema de ações e dos sistemas de objetos que compõem o espaço e existem com uma finalidade, são criados com base em uma lógica globalizante.

Atualmente, na escala global existem três tipos de quadrinhos: o japonês (mangá); o euro-peu (bande dessinée, na França; fumetti, na Itália, tebeo, na Espanha) e o americano (comics) que é o mais difundido.

O mangá aborda temas de variados conteúdos que apresentam desde da comédia, passan-do pelo sexual até a violência, sem distinção de idade. Quase sempre em preto-e-branco, possuem técnicas narrativas que visam estimular o leitor. Um exemplo disso é a noção de movimento dentro da história onde o objeto principal é focalizado e o fundo hachuriado e distorcido. O estilo de dese-nho apresenta personagens que são mais caricatos em comparação aos americanos, além do uso de uma variedade de personagens seguindo os padrões da realidade e não um estilo narcisista cul-tuando o belo. O uso de cenários ultra-realistas e cenas misteriosas faz com que o leitor se envolva e use sua imaginação para além do que está escrito. Outra diferença é a seqüência de leitura; en-quanto no ocidente é feita da esquerda para a direita, no mangá é o inverso, o que dá sensação de estar lendo de “trás para a frente”.

As empresas européias trazem, para o mercado brasileiro, temáticas que retratam suas socie-dades e culturas como mostrados em seus filmes. Diferente dos EUA, suas histórias são mais rea-listas e/ou humoradas, tendo inicio, meio e fim na mesma publicação, e os artistas envolvidos não trabalham com um prazo curto como os americanos. O mesmo desenhista é responsável por todo o processo visual, ou seja, desenho, arte-final e coloração, o que difere da produção americana em que há um especialista para cada etapa.

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Os papéis econômico e ideológico dos quadrinhos As revistas em quadrinhos não constam nos noticiários ou boletins econômicos, no entanto,

no panorama internacional, este mercado é muito promissor, fazendo circular milhares de dólares na esfera da produção-circulação-consumo. Os países desenvolvidos são grandes produtores e consumidores desse produto, e as editoras pertencem a grandes grupos ligados às outras ativida-des. Os maiores no ramo estão nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Japão. O Brasil é o quarto consumidor mundial de quadrinhos, sendo considerado o mercado mais rico para os quadrinhos americanos fora dos EUA.

O seu uso como produto ideológico deve-se pela forma em que retrata a sociedade em sua maioria sem contradições, não há luta de classes, questionamentos e lutas políticas ou racismo, além de terem uma certa atemporalidade que é uma das formas pelas quais elas não acompanham os acontecimentos da vida real. Os maiores exemplos de uso ideológico são as estórias do Pato Donald em que em suas aventuras em busca de tesouros, tinha contato com outros povos apresen-tados como “atrasados”. Os outros são Super-Homem e Capitão América, ambos símbolos surgi-dos do conflito mundial e como último exemplo os X-men, que são apresentados combatendo o ra-cismo, porém é um racismo totalmente diferente do vivido em nossa realidade em que não é basea-do na cor da pele ou na classe social. Aliás vale (re) lembrar que foi a partir da Segunda Guerra que os quadrinhos passaram a ser largamente utilizados para espalhar a ideologia – conforme per-cebeu Goebbels, ministro da propaganda nazista ao ver o Super-Homem – e o mesmo ocorrendo durante a Guerra Fria.

A grande difusora dos quadrinhos americanos no território brasileiro foi a Editora Abril, perten-cente ao Grupo Abril Jovem, fundada em 1950, constituindo o maior parque editorial da América Latina, possuidora de um parque gráfico e de uma rede de distribuição próprios. Por décadas ela teve o controle do mercado de quadrinhos publicando personagens da Marvel (Homem-Aranha, X-men) e DC (Super-Homem, Batman, Pato Donald).

A criação de um quadrinho nacional ligado à realidade brasileira sempre encontrou obstáculos devido a essa grande oferta de material estrangeiro (os Syndicates ofereciam aos jornais e editoras, tiras e estórias a baixo custo) ou por falta de incentivo por parte do governo, uma que não vez havia uma lei que regulamentasse as HQ nacionais, como acontecia na Argentina de Perón, embora al-guns artistas como Ziraldo, Colonesse e Maurício de Souza levantassem a bandeira. Hoje em dia, está surgindo uma nova geração de artistas voltados para produções dentro de um contexto nacio-nal, com um estilo próprio, sem copiar os americanos ou ingleses.

Em 2001, a Abril rompeu com a Panini (empresa italiana que responsável pelo contrato com a Marvel) o que significou uma redução em sua oferta de quadrinhos, obrigando-a em concentrar em material da DC. Antes disso já era sentido a presença considerável de outras editoras menores co-mo a Mythos, Brainstore, Via Lettera, Opera Gráfica e outras publicando materiais europeus, nacio-nais e de editoras americanas independentes.

Atualmente, pode-se observar uma quantidade enorme de títulos em banca. Antes de 2001, havia cerca de 30 , agora (2002) são 50 em média. Resta saber quem são os consumidores de qua-drinhos no Brasil, já que os preços variam entre R$ 4,50 a R$13,00.

Fora isso, a concentração das editoras e distribuidoras está em São Paulo, e no âmbito na-cional existem as lojas especializadas que vendem tanto HQ nacionais quanto importadas, concen-trando o grosso do mercado nas regiões sudeste e sul. Assim, temos uma região concentrada e su-as redes de distribuição e consumo, existindo uma hierarquia no fluxo desse produto. O preço das publicações no Brasil, em caráter geral, serve para diferenciar o público-alvo, nota-se isso tanto pela oferta de jornais quanto de revistas. Aquelas destinadas às classes mais baixas são comparativa-mente mais baratas e de menor qualidade em relação ao conteúdo do que as das classes mais al-tas. Por isso, ao se analisar a espacialidade das revistas de história em quadrinhos no Brasil, sejam elas nacionais ou não, é necessário levar em consideração as características sociais do leitor brasi-leiro.

Esta concentração espacial da produção fica mais nítida quando estudada a política de dis-tribuição adotada pela editora Abril, em 2000. Esta editora realizou mudanças nos formatos das re-vistas da linha de super-heróis, a região sudeste passaria a receber as revistas a partir do dia 11 de

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cada mês enquanto que as demais somente dois meses depois.

Concentração editorial na metrópole paulistana

A produção editorial das RHQ é essa concentrada, principalmente, na metrópole de São Pau-lo, constituindo um ponto central, espraiando uma rede sobre o restante do território brasileiro. Para compreender isso, torna-se fundamental comentar sobre a urbanização, porque nela encontram-se as razões dessa concentração.

Até o surgimento da Editora Abril, em 1950, e sua consolidação como maior pátio editorial da América Latina, o expoente de publicações de quadrinhos era a Editora Brasil-América (EBAL) e a Bloch Editores, situadas no Rio de Janeiro e a Rio Gráfica Editora (RGE), localizada em São Paulo. Em 1979, ocorre incremento na produção do parque gráfico brasileiro: a Abril passa a publicar a sé-rie de Super-heróis da Marvel, que antes os direitos de publicação eram somente da EBAL (1967 a 1975), da RGE e da Bloch. Além disso, novas publicações são produzidas devido à ampliação das histórias e personagens do mundo de W. Disney, e são criadas as revistas de Maurício de Souza. Com esse incremento na produção é compreensível ao tecer alguns pressupostos: área Metropoli-tana de São Paulo, após 1930, passou a exercer um poder de atração tanto de da produção (indústrias) quanto de circulação (sede de empresas responsáveis por serviços de distribuição) e de consumo (agregava o maior número de leitores do país), configurando-se como ponto estratégico de concentração econômica, difusora de tecnologias/ideologias e centro político. Como explicar essa atração em face ao processo de concentração/desconcentração das atividades industriais em que parte das indústrias deixa a área metropolitana paulista rumo para o interior do estado de SP ou pa-ra as demais regiões?

Na tentativa de explicar tal fato, foi encontrada uma possível resposta no trabalho de Diniz em que ele aborda o problema da reversão da polarização industrial na metrópole no período de 1960-80, em que acontece esse processo de mudança locacional das indústrias que, por outro la-do, passaram a dar lugar às novas atividades setoriais ligadas às mudanças tecnológicas em curso (Diniz, 1993). O motivo para a expansão dos setores ligados à ciência e à técnica era a reduzida ou inexpressiva demanda por recursos naturais, além de que nas grandes aglomerações urbanas estavam os requisitos necessários para a locação da produção e edição como a presença de cen-tros de ensino e de pesquisa, mercado de trabalho profissional, facilidade de acesso e outros.

Com isso, pressupõe-se que a permanência da Editora Abril e da editora Globo (que comprou o parque gráfico e os direitos de publicação de RHQ da RGE), somada à chegada de editoras me-nores se deu pela infra-estrutura formada por um conjunto de atividades e fatores que tornaram pro-pícios a localização do mercado editorial e que atendiam aos seus interesses. A Editora Abril, por exemplo, possui um parque gráfico de 52.500 metros quadrados na Marginal Tietê, em São Paulo, que está localizado próximo das principais saídas da cidade, destacando o acesso via transporte rodoviário ao Aeroporto Internacional de Guarulhos (Cumbica) e, também, para o Aeroporto de Vira-copos, em Campinas. Sua produção é totalmente integrada com as áreas de logística e distribui-ção, de modo a elevar ao máximo a produtividade e conferir grande competitividade. Quanto à dis-tribuição, ela é feita pela Distribuidora Nacional de Publicações (Dinap) uma empresa do Grupo Abril que distribui e comercializa em bancas e outros pontos de venda, cerca de 700 edições por mês. A Dinap oferece suporte mercadológico, orientações técnicas e estudos sobre potencial de mercado para cada publicação, viabilidade do lançamento de novos produtos e assessoria nas áreas de ven-das e promoções. A rede de distribuidores recebe da Dinap, suporte para a exploração do potencial de vendas em cada região, chegando a atingir mais de 3.600 cidades do país (Quadro1).

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Quadro 1 - História em quadrinhos: relação editora e parque gráfico - 2002

EDITORA LOCALIZAÇÃO PARQUE GRÁFICO LOCALIZAÇÃO Abril São Paulo/SP Abril São Paulo/SP

Globo São Paulo/SP

Complexo gráfico em sociedade com a Cochrane (Chile) e a R.R. Donnel-ley & Sons Co.

São Paulo/SP

Mythos São Paulo/SP Gráfica São Francisco sem endereço

Conrad São Paulo/SP Conrad São Paulo/SP

Via Lettera São Paulo/SP Via Lettera São Paulo/SP

Brainstore São Paulo/SP Book RJ RJ

Panini São Paulo/SP Oceano Indústria Gráfica e Editora São Paulo/SP

Opera Gráfica Vinhedo/SP Gráfica Oceano sem endereço

Nona Arte RJ Tipológica RJ

Impacto Quadri- São Paulo/SP sem informação sem informação

L & PM RS sem informações RS

Martins Fontes São Paulo/SP Marins Fontes Editora São Paulo/SP

Meribérica São Paulo/SP sem informação São Paulo/SP

Devir Livraria São Paulo/SP Devir Livraria São Paulo/SP

Organizado pelo autor em 2002, a partir de fontes primárias .

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É preciso deixar claro que nem sempre o escritório central, o setor de publicidade, o parque gráfico e o serviço de distribuição estão localizados na mesma área ou que a editora realiza direta-mente todas atividades ligadas ao processo de produção e distribuição. No caso das editoras meno-res, a parte gráfica é feita por uma empresa contratada, enquanto que a distribuição das revistas pelo território fica a cargo de uma outra empresa que faz a comercialização, nem sempre está locali-zada em São Paulo, como é caso da Fernando Chinaglia S/A situada no Rio de Janeiro.

Algumas adotaram o sistema de assinatura/ mala direta, como faz a Devir Livraria e Editora ou as editoras conveniadas ao Clube RHQ, em que a representante é a Comix Book Shop, distribuí-do diretamente para as bancas e lojas especializadas (Quadro 2).

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Quadro 2

HISTÓRIA EM QUADRINHOS: DISTRIBUIDORA E PONTOS DE VENDA - 2002

Editora Distribuidora Localização Pontos de venda Abril Dinap São Paulo livrarias, bancas e lojas especia-

Globo Fernando Chinaglia S/A Rio de Janeiro lojas e bancas especializadas

Mythos Fernando Chinaglia S/A Rio de Janeiro livrarias, bancas e lojas especia-lizadas

Conrad Fernando Chinaglia S/A Rio de Janeiro lojas e bancas especializadas

Brainstore Fernando Chinaglia S/A Rio de Janeiro livrarias e lojas especializadas

Panini Fernando Chinaglia S/A Rio de Janeiro lojas e bancas especializadas

Via Lettera Várias : RJ, RS, RO, MG e SP livrarias da rede Nobel e lojas especializadas

Opéra Gráfica Comix Book Shop São Paulo lojas e bancas especializadas

Nona arte download ou pontos de venda

Devir Livraria Devir Livraria São Paulo/SP livrarias e lojas especializadas

Martins Fontes Martins Fontes São Paulo/SP lojas e especializadas

Organizado pelo autor em 2002, a partir de fontes primárias.

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Nesse último caso, essas editoras trabalham com uma tiragem limitada. Um caso a parte é a editora carioca Nona Arte que produz quadrinhos nacionais de artistas em início de carreira e ofere-ce o seu material para ser “baixado” diretamente na internet (download) sem cobrança, que é uma forma de contornar os problemas de distribuição e de impressão.

Quanto às grandes distribuidoras, não interessam a eles edições de baixa tiragens. A impressão é outro problema delicado. Uma edição nos padrões das lançadas pela edi-tora (formato 14,5 por 23 cm, 48 páginas de miolo PB e capa em duas cores) sai na faixa de uns R$ 1.400,00, numa tiragem de 1000 exemplares. (INFORMAL, 2002, p. 03)

As vantagens apresentadas por essa iniciativa é o que o leitor pode adquirir a história na tela do computador, disponibilizando para uma leitura posterior sem conexão via internet ou mesmo pa-ra impressão.

O consumo de RHQ, portanto, é propiciado por uma rede de pontos de venda espalhados pela malha urbana, o que possibilita a comprar de revistas de diversos gêneros em diversos tipos de lojas: supermercados e drogarias, por exemplo. Soma-se ainda a venda on line, em que a internet diminui a distância entre vendedor e consumidor situados em países distintos: Na rede Amazon, um leitor de quadrinhos no Brasil pode comprar via online uma encardenação de Sandman ou o novo livro de Neil Gaiman.

Conclusão

Alguns fatores são identificados nas esferas da produção-circulação-consumo dessa fatia da indústria cultural (a revista em quadrinhos), tais como: mercado consumidor relacionado ao poder aquisitivo e ao grau de instrução, variedade de títulos e espacialidade dos pontos de venda e de-mais serviços como internet e correio. No que se refere à espacialidade dessa atividade, nota-se que a metrópole torna-se espaço favorecido, por possuir qualidades históricas (sociais, políticas e econômicas) imprescindíveis que atraem a produção e o consumo de bens culturais, além disso, fazem parte da lógica internacional (globalização) de distribuição das inovações tecnológicas e das imagens e mensagens hegemônicas portadoras de intenções, dominação ideológica da cultura oci-dental.

Notas

* O autor é professor de Geografia, formado pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ.

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Passado e Presente: a construção da territorialidade afro-brasileira e indígena na cidade de Goiás-GO*

Rosembreg Ferracini**

“O sertão é do tamanho do mundo”

Guimarães Rosa – O Grande Sertão Veredas

Resumo

O texto a seguir é fruto de uma primeira reflexão em torno da discussão da territorialidade afro-brasileira e indígena na Cidade de Goiás. Nosso ponto de partida é a cultura dos índios Goya-ses e os negros do Moçambique, Congo e Guiné Bissau trazidos para o sertão goiano. A ação no território dos mesmos nos dias de hoje acontece através do exemplo de duas escolas “Espaço Cul-tural Vila Esperança” e “Quilombinho,” que mantém os traços de influência no espaço, através de manifestações artísticas. De origem nos períodos mineratórios, a Cidade de Goiás possui fortes tra-ços do cristianismo, nos quais os mesmos impediram a ascensão de tais atividades. Neste caso, o território alternativo mantém vivas suas tradições, através dos signos e significados, presentes na arte. Elementos como língua, costumes e hábitos fazem parte do resgate de tais culturas na Cidade de Goiás, como, por exemplo a territorialidade do Afoxé Ayo Delê.

Palavra-chave: Territorialidade; afro-brasileiro; indígena; educação; Cidade de Goiás

Abstract

The following text is fruit of a first reflection around the quarrel of the territoriality afro-Brazilian and aboriginal in the City of Goiás. Our starting point is the culture of the Goyases indians and the blacks from Moçambique, Congo and Guiné Bissau brought for the goiano hinterland. The action in the territory of the same ones nowadays happens through the example of two schools Space Cultural Village Hope and Quilombinho, that it keeps the traces of influence in the space, through artistics manifestation. Of origin in the mineratórios periods the City of Goiás keeps forts strong traces of the Christianity, in which the same hindered the ascension of such activities. In this in case that the alternative territory keeps alive its traditions, through the signs and meanings, gifts in the art. Elements as language, customs and habits are part of the rescue of such cultures in the City of Goiás, as, for example the territoriality of the Afoxé Ayo Delê.

Key words: territorialities, afro-Brazilian, indians, education, City of Goiás.

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Introdução

Discorrendo sobre o tema “Ambiente e Apropriação do Cerrado”, pode-se falar, entre outros aspectos, sobre as diferentes formas de apropriação cultural e a transformação desse espaço pelo homem. Caminhando neste raciocínio, vamos proferir alguns aspectos da ocupação do Cerrado, que também pode ser chamado, em menor medida, de “sertão”, mais incisivo ainda, de “sertão goia-no”. Existem diferentes conceitos, alguns secundarizados pela literatura goiana, que aqui se encon-trarão – não para confronto, mas, fundamentalmente, para que exploremos suas possibilidades de contribuir para nossa análise.

O sertão já foi visto como lugar. É um conceito que surge em Portugal, referindo-se a toda terra distante de Lisboa, ou seja, toda terra distante do litoral brasileiro, onde, há tem-pos, ficou a coroa portuguesa. O sertão era o desconhecido.

Nosso objetivo é deixar transparecer a cultura que neste sertão já existia e como essa cultura foi territorializada nos dias de hoje, na Cidade de Goiás. Neste aspecto falaremos da cultura afro-brasileira e indígena, que para “esse sertão” foi transportada.

No desenvolver do texto, temos como objetivo mostrar como a cultura afro-brasileira se materializa em espaços diferenciados na Cidade de Goiás. Neste sentido, pensaremos na construção de suas territorialidades. Sack nos ajuda a entender melhor este conceito:

Territorialidade é uma expressão geográfica básica de influência e poder, provê uma sociedade essencial de ligação entre sociedade, tempo e espaço....é o dispositivo geo-gráfico por pessoas de construção de organização no espaço...não é nenhum instinto mas uma estratégia complexa para afetar, influenciar, e controlar o acesso de pessoas, coisas, e relações. Sack (1986, p. 216).

A partir da consideração de Sack, podemos refletir sobre o espaço repleto de signos e signifi-

cados e com carga de sentidos, valores e crenças construídas pelo homem. Temos como reforço dessa leitura a perspectiva de Bonemaisson, dizendo que “o espaço dos

homens parece ser de natureza territorial: ele muda, morre e renasce segundo a vida e o destino dos grupos culturais que o compõem” (BONEMAISSON, 2002, p.106).

Partiremos da idéia de referência desta cultura com a criação de uma instituição que constrói suas imagens, através de um conjunto de práticas simbólicas e pela da valorização dos rituais e de atos que consagram o simbolismo da cada cultura específica. Existem alguns espaços de materiali-zação destas culturas na Cidade de Goiás. Falaremos dos espaços referenciados como instituições, sendo eles: Quilombinho e Espaço Cultural Vila Esperança, em que tais práticas culturais se materi-aliza na parte interna das mesmas. Suas práticas pedagógicas têm como objetivo simbolizar e de-monstrar que os povos africanos e indígenas possuem uma representação também para o cidadão vilaboense.

Território e Cultura.

A valorização do território através da prática simbólica tem sido ressaltada por alguns autores

que seguem a corrente culturalista. Nesta concepção; o território envolve “ordem individual e coletiva”, a possibilidade de os grupos manifesta-rem articulações territoriais de resistência, em contraposição ao “espaço liso”, homoge-neizante, imposto pela ordem social e política dominante. (GUATARRI, RONILK 1986. p,13).

Na mesma análise, Haesbaert (2001, p.118) diz que o território “prioriza a dimensão simbóli-

co-cultural mais subjetiva, o território entendido sobretudo como apropriação e valorização simbólica de um grupo sobre seu espaço”,e com este exemplo podemos falar da materialização da cultura afro em Goiás.

Ao tratarmos do lado imaterial do homem, estaremos entrando no campo da sua subjetivida-de. O homem carrega consigo marcas do seu imaginário na sua consciência, porém, “não é consci-ência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX e ENGELS, 1986, p.16). Nossa fala remete a espaços onde a educação e a reafirmação das culturas já citadas contri-

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buem para a valorização a vida de crianças da periferia da Cidade de Goiás. Os Espaços Quilombi-nho e Espaço Cultural Vila Esperança são projetos de educação que atendem essas crianças na perspectiva do resgate da sua identidade cultural. Dessa forma, “o sentido que o homem dá às coi-sas, torna-se tão importante quanto as próprias coisas.” (BONEMAISSON apud Wadel, 2002, p.89).

Consideramos que a forma de apropriação do espaço por um grupo de pessoas transforma-o em território, seja por uma representação sobre o mesmo, seja por um campo de forças e ações políticas. De modo que não podemos separar a dimensão simbólica da dimensão política de territó-rio.

Bonemaisson nos oferece outra interpretação da relação cultura e território, observando que “o espaço não pode ser separado do território. É pela existência de uma cultura que se cria um terri-tório e é por ele que se fortalece e se exprime a relação simbólica existente entre a cultura e o es-paço” (BONEMAISSON, 2002, p. 101).

Torna-se relevante neste sentido, resgatar o conceito de cultura elaborado por Clifford Ge-ertz, representante da Antropologia Interpretativa, para o qual esta é vista como ato simbólico ou conjunto de atos simbólicos, “a cultura não como poder”, mas “algo ao qual podem ser atribuídos casualmente aos acontecimentos sociais, aos comportamentos às instituições ou processos”, esses em que resultaram em uma nova forma de se manifestarem no espaço.

Geertz nos fala da absorção antropológica com o exótico. A partir dos exemplos dos cavalei-ros bérberes, os negociantes judeus, os legionários franceses, existem as diferentes formas especí-fícas de interpretação destas culturas. Desse modo há dificuldade em relacioná-los uns com os ou-tros pela diversidade intrínseca existente entre eles. Esses são exemplos opostos aos seus signifi-cados, possuem construções imaginativas distintas a partir da realidade que ele nos descrevem, o que nos faz crer, assim, que as suas culturas se diferenciam de acordo com sua realidade, não só historicamente. Assim continua o autor,

a cultura como uma ampla e variedade de diferenças entre os homens, crenças e valo-res em costumes e instituições, tanto no tempo como de lugar para lugar, é essencial-mente sem significado ao definir sua natureza. (GEERTZ, 1989, p.47).

Entre os “espaços” propostos para o trabalho, entendemos que cada qual tem a sua particula-ridade e representação social das territorialidades culturais afro-brasileira e indígena na Cidade de Goiás.

Abrindo Territórios.

Para melhor entendermos a realidade vilaboense relacionada com a cultura africana, remete-remos á compreensão da exploração e ocupação do território goiano .

A procura pelo ouro, diamante e novas terras, atraiu colonos europeus e bandeirantes rapida-mente para o interior da mata-virgem. Este fato contribuiu para a colonização do Centro-Oeste.

As Zonas Pioneiras que se desenvolveram no Brasil, especificamente no Estado de Goiás, Leo Waibel as chama de “um fenômeno de conquistas das terras novas vinculadas à expansão das fronteiras” (WAIBEL, 1979, p. 220). A chamada Marcha para o Oeste, para o sertão, respondia às vantagens dos sulistas que caminhavam com o principal objetivo: transformá-lo, modernizá-lo. O interesse era a transformação do sertão, a sua paisagem natural em paisagem cultural, e a produ-ção agrícola. A agricultura adentrou cada vez mais, a expansão da pecuária teve como objetivo bus-car lucro como expressão maior. Esta ocupação menos densa era o início que se verificava nesse vasto sertão desbravando-se a mata para uma falsa idéia de que essas eram terras de ninguém.

Para falarmos do presente, às vezes temos que nos remeter ao passado. Antes da chegada das frentes pioneiras, existiam índios por estas terras. Com relação aos índios que aqui habitavam, não vamos nos remeter aos fatos históricos de sua dizimação, escravidão e expulsão do seu território, chamado hoje de Centro-Sul. A origem do nome Goiás, que é um to-pônimo, significa nome de um lugar, vindo da língua Tupi, que é considerada uma das principais tribos indígenas do país. Essa tribo representava uma forte identidade no país entre as regiões brasileiras. A língua Tupi deu nome não só ao país, mas a uma série de estados brasileiros, en-tre eles, o Estado de Goiás, inspirado nos índios goyases. Esses índios foram expulsos ou parti-

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ram em direção ao litoral em 1725 e até dizimados na sua maioria, conforme nos fala Moraes (2000, p. 400)

Mesmo com o aculturamento dos índios e a transformação que se pretendia fazer no “sertão”, o conjunto de epítetos acima citados representa que a cultura imaginária e a resistência dos lugares prevaleceram. Esses são pequenos exemplos da configuração da territorialidade da cultura indígena na ordem da subjetividade.

Neste caso, reafirmamos o pensamento de Bonemaisson (2002, p.107) de que “a territoriali-dade é a expressão de um comportamento vivido: ela engloba ao mesmo tempo, a relação com o território e, a partir dele, a relação com o espaço “estrangeiro. ”

A expansão rumo ao sertão causou mudanças no ritmo de vida presente no espaço e nos seres que habitavam este espaço. Caboclos, índios, caipiras e sertanejos eram condicionados a mudarem de um estado chamado primitivo para outro chamado moderno, embora não concordas-sem com tal. Nasce então uma nova vida, um tempo diferenciado daquele do litoral. Quem mandava era a modernidade. A escolha de viver do modo rústico, toma outro sentido. Diferente do que Eucli-des da Cunha dizia: “que o verdadeiro Brasil está no interior”

Martins (1997:150) fala sobre uma interessante relação entre fronteira e sertão, este está sempre ali, adiante e distante dos olhos, deixando de existir quando a fronteira dele se aproxima da descoberta do outro e do desencontro. Essa leitura é interessante, uma vez que se existe o outro, diferente do anterior, temos aí a descoberta da principal tese da sociografia brasileira descrita por Candice Vidal, qual seja, a existência de dois Brasis: o sertão e o litoral.

O objetivo era a integração desses dois Brasis do litoral e o sertão, que faziam parte de um projeto de um outro Brasil, o uno, uniforme, de uma identidade correspondente ao projeto nacional. Uma transformação necessária para os sulistas, que pretendiam criar uma consciência nacional. A idéia forjada de se construir a nacionalidade. Esse era o plano do litoral em relação ao sertão, diz Candice Vidal. (1997)

Refletindo a territorialidade afro na Cidade de Goiás.

Com os aconteceres da colonização do sertão já ressaltados anteriormente, falaremos um pouco mais da Cidade de Goiás. É uma cidade histórica, colonial, com valores conservadores origi-nários de sua tradição ibérica, agora reforçada pela elite local. As autoridades e famílias mantêm os laços tradicionais, principalmente porque receberam recentemente no ano de 2001 o título de Patri-mônio da Humanidade. Para alguns representantes das famílias e “homens públicos”, o título reani-ma a cultura local a “goianidade”.

A cidade de Goiás é ao mesmo tempo um lugar de grandes riquezas culturais, produzidas no passado, com as marcas da história dos seus próprios habitantes e colonizadores europeus. Uma cidade construída pela mão-de-obra do escravo e do indígena está marcada nos becos e ruelas. Entre as mais diferentes atividades da Cidade de Goiás, temos a cerâmica, a culinária, cestarias de fibras de palha e o turismo como valorização e apropriação deste espaço. Neste conjunto de fatos é que se expressam os projetos educacionais sobre os quais falaremos adiante.

A construção do espaço Quilombinho, enquanto lugar de representação das crianças da Ci-dade de Goiás, nos remete, primeiramente, à origem do nome. Tal nome se origina de quilombo ou quilombola, que eram lugares de difícil acesso geograficamente, escondidos, distantes, longe dos olhares dos colonos, localizados em áreas marginais no interior, no sertão, distante da colonização européia. O espaço Quilombinho da Cidade de Goiás nasce quase com as mesmas características dos quilombos existentes no interior do Brasil do século XVII e mais ainda, com o mesmo aspecto signatário do sertão.

A partir da entrevista realizada no dia 01/09/2002, na Cidade de Goiás, com a Srª Antonela, de origem italiana, ela que foi a grande mentora do espaço Quilombo. Mencionaremos algumas in-formações a respeito do mesmo, a seguir. Antonella é mais conhecida pelo nome “Clara”, justamen-te por ter a cor da pele alva.

Antes de ser Quilombinho, o espaço ao qual nos referimos chamava-se Quilombo. Uma das características do “Quilombo” de Goiás é que ele nasce através da idéia de uma mulher. Diferente dos quilombos que eram organizações por negros e homens, este surge por uma liderança feminina

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e italiana. A figura feminina e estrangeira poderia trazer traços e seqüelas de uma mentalidade colo-nizadora, mas traz uma nova proposta de vida.

Vejamos o depoimento de Clara: A ideologia era a do confronto com a realidade de um país pobre, no caso o Brasil. Meu objetivo era de unir os moradores de rua da Cidade de Goiás. O projeto era ir em busca pela superação, da vida dos indivíduos que viviam nas ruas. Ir à procura de resgatar a identidade para daquelas pessoas.

O interesse maior, segundo a entrevista realizada, era de se criar na forma concreta a possi-bilidade de territorialização de uma cultura, de uma identidade, (ligada no caso aos moradores de rua.), na qual não existisse uma relação com sua população original italiana.

Os primeiros passos foram o contato com o povo da rua, com os negros e mulatos, com a periferia da Cidade de Goiás, com os excluídos chamados por ela de os miseráveis. Miseráveis por não terem uma casa e por terem perdido sua referência identitária. Essas pessoas que viviam nas ruas, sem teto, à procura de comida e de sentido para vida, se viram agora com apoio da mentora.

A era casa utilizada como ponto de apoio. Neste caso, o espaço físico entra como resultado da produção: como espaço humano, revelando o passado, o presente e o futuro. Pensamos muitas vezes nas formas espaciais e esquecemos daquilo que lhe dá vida e sentido, ou seja, a maneira pela qual este espaço, aqui a casa, é vivido. Precisamos refletir o espaço como uma teia de ações que se desenvolvem em torno de uma organização que gera um novo resultado desta relação entre o espaço físico e as práticas sociais construídas neste lugar.

Através da conquista deste espaço, da casa, pela mentora e pelos moradores negros, as mu-danças foram acontecendo. Os valores dos homens que antes viviam nas ruas tomam outra forma de vida. Neste sentido, o espaço da casa transforma-se em lugar à medida que adquire definição de significado. Um lugar íntimo, onde as necessidades fundamentais por esse grupo de moradores são consideradas e merecem atenção. A casa recebia diferentes pessoas, com diferentes histórias, mas com algo em comum: eram antigos moradores de rua e agora se relacionavam. Entre si evidencia-va-se um sentimento esperado, o de pertencimento. Esta casa, para esses moradores, entrava no sentido do encontro de se completar pela fala, pela troca e pela intimidade.

Os homens, que antes eram moradores de rua, desconhecidos entre si, agora trabalham con-juntamente para alcançarem resultados coletivos, de interesses próprios. É necessário pensarmos o lugar como o produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais que se realizam no plano do vivido, o que garante a construção de uma rede de significados e senti-dos que são tecidos pela história e cultura civilizadora produzindo identidade, posto que é aí que o homem se reconhece por que é o lugar da vida. (FANI, 1996, p.29).

Com o passar do tempo, o quilombo passou a ser um lugar de dimensões, concretizações e

materializações da subjetividade das práticas de seus moradores. Numa identidade, através do cor-po, onde as relações se tornaram cada vez mais íntimas, o sentido e as ligações sociais entre os próprios moradores se entrelaçaram. As reafirmações de vida foram acontecendo com o tempo. Através de mudanças que aconteciam, os moradores se sentiram mais valorizados, dentro da socie-dade. Neste sentido, temos que pensar a conquista de uma territorialidade afro. A territorialidade composta por três elementos: senso de identidade espacial, senso de exclusividade e compartimen-tação humana no espaço (RAFFESTIN, apud SOJA, 1983, p. 162).

Assim, os próprios moradores da casa sentiram a necessidade e o desejo de que o esforço e o trabalho que vinham sendo feito por eles, fossem transferidos para as crianças daquela periferia da cidade. Nasce o Quilombinho para atender crianças com toda aquela dimensão simbólica de sig-nos e significados do “quilombo” construído anteriormente.

Repleto da carga de um simbolismo construído e de práticas geométricas inquestionáveis, pois cada ato era pensado, calculado e estudado para que trouxesse contribuições para essas pes-soas. Os antigos moradores guardam palavras, jamais esquecidas, que se transferem para o nome quilombinho. O quilombinho é um lugar marcado na memória das pessoas que nele trabalham ou mesmo que confiam em deixar seus filhos, para serem educados, um lugar circunscrito e específico de um grupo de pessoas. Ele traz inscrito na história uma rede de valores para as crianças e que, nos dias de hoje, tomam a forma para a reafirmação de um grupo específico na Cidade de Goiás.

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A territorialidade desse grupo fica definida a partir da capacidade de se organizar, de manter forte sua identidade de vida, reconstruída ou mesmo construída, dentro desse espaço.O grupo aten-dido é composto por filhos de negros, pobres, mulatos e, em raros casos, brancos. As práticas edu-cativas desenvolvidas dentro do quilombinho estão diretamente ligadas às raízes afro e indígena.

Os trabalhos são desenvolvidos através das práticas construtivistas de Piaget e Vygotstky. Os projetos educacionais são criados juntamente com as crianças. Foi elaborado um estatuto para a casa, juntamente com outros parceiros. A evolução das práticas educativas acontece conforme a participação dos pais, que ocorre conforme as necessidades da escola. O quilombinho atende hoje 45 crianças entre 5 e 10 anos e é financiado por uma associação de amigos da Srº Clara, que mo-ram na Itália. Não existe participação ou mesmo ajuda do poder público, mas existe o projeto de se construir outro quilombinho em outra região da cidade.

Além do Quilombinho como manifestação da territorialidade afro, temos na Cidade de Goiás o Espaço Cultural Vila Esperança.

O Espaço Cultural Vila Esperança nasceu nesta cidade. Este Espaço foi criado por um grupo de educadores em novembro de 1991. Ele está localizado na Rua Felipe Leddet, vizinho direto do Mosteiro Beneditino da Anunciação do Senhor. Seu principal objetivo é trabalhar com crianças e adolescentes relacionados às questões étnicas no processo de afirmação de uma identidade cultu-ral, de origem indígena e afro-descendentes.

Os educandos que passam pelo Espaço Cultural da Vila Esperança possuem uma caracterís-tica em comum: na sua maioria são crianças negras, ou afro-descendentes e que moram em bairros da periferia da cidade.

São realizadas atividades e projetos no Espaço Vila Esperança. Entre as atividades existe uma banda de percussionistas e oficinas de máscaras, uma das atividades mais esperadas no ano pelas crianças é o AFOXÉ. Este uma reafirmação concreta da reconstrução da territorialidade Afro-Indigena na Cidade de Goiás. Mas, o que é o Afoxé?

Dentre as diferentes manifestações culturais existentes na Cidade de Goiás temos construído historicamente a presença do Congado, que possui como significado o Reinado no qual todos lem-bram os negros escravos da África ou no Brasil. Nos dias de hoje, temos também a Festa do Rosá-rio que na sua essência, é uma mistura de tradições e devoções religiosas. No decorrer da Festa do Rosário, que é uma festa religiosa, encontramos procissões, romarias e desfiles que marcam a tra-dição catequética cristã. No Brasil colonial, essa era a única forma que os escravos negros encon-travam de participar das festas. Temos que enfatizar que essas manifestações não existiram muito tempo na Cidade de Goiás.

A Igreja Católica, que era representada pela sua maioria branca, não aceitavam tais manifes-tações dos negros, que foram consideras anti-cristãs, como feitiçaria, coisa do passado, assim entra em conflito:

com um lado da igreja o lado cristão “da religião” ou “da fé”, oposto a um lado “atrasado” “de feiticeiro”, e contrário à própria crença e culto religiosos que, por si mesmos, não podem combinar com a feitiçaria e devem estar excluídos de qualquer ritual da Conga-da, que os “irmãos” acreditam representar o código de fé e rito da própria Igreja Católi-ca. (BRANDÃO, 1975, p. 74).

Tais comemorações foram repudiadas e não podiam mais acontecer conjuntamente com as

festas religiosas cristãs. Estas expressões religiosas com traços africanos tiveram que ser transferi-das para outro período, neste caso o período carnavalesco, agora com um grande entusiasmo. Sem os laços diretos da Igreja Católica, as manifestações do AFOXÉ, começaram a recuperar toda sua história, seus valores, hábitos, cultos, danças, sua beleza enquanto manifestação de uma determi-nada raça. Assim nos conta Max e Agostini,

A palavra AFOXÉ em língua africana significa Yorubá, pode significa Portador de Axé, aquele que abre caminhos, para passar a beleza, a alegria, a força. Os afoxés são ma-nifestações religiosas afro-brasileiras, de matriz ioruba, criados no século retrasado, na Bahia, por seguidores da Religião dos Orixás, em homenagem ao Orixá Exu, o senhor dos caminhos cruzados. (Max e Agostini, 2002, p. 1)

Um desses “carnavais” é a conhecida experiência do congado. No reinado todos lem-bram cortejos africanos que originalmente rememoram a Rainha Nginga de Angola e Congo. Hoje são Festas do Rosário na mistura de tradições e devoções. Podemos falar das procissões, romarias e desfiles onde encontramos objetos sagrados da tradição ca-tequética no Brasil.

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AFOXÉ: Uma expressão de territorialidade

O acompanhamento do AFOXÉ da “Vila” é diferente das romarias e procissões que aconte-cem no período da páscoa na cidade. No caso dele, a territorialidade é estruturada de dentro pra fora, ou seja, do Espaço Vila Esperança para as ruas. Toda a sua preparação é construída durante o ano. Pensamos territorialidade definido por Sack (1986, p.26) “vai para além da fronteira de exclu-são e do controle, e sim uma, construção social, onde os grupos sociais se interajam efetivamente uns com os outros”.

Temos a construção da territorialidade não só pelo viés do poder, mas também de outras prá-ticas, através da criação de novos valores, crenças, desejos, signos e significados. As crianças que participam das atividades da “Vila” são moradores da Cidade de Goiás, de bairros da periferia. São em sua maioria crianças negras, mestiças, de famílias de origens negras e que são esquecidas pelo poder público municipal, estadual e Federal. Elas estudam e fazem parte do ciclo de atividades do “Espaço Vila Esperança”; possuindo como traço comum, sua origem étnica, seu grupo cultural de-marcado e uma consciência definida de que são excluídos socialmente. A “Vila” vem para fortalecer essa demarcação territorial existente, tanto no plano material como no simbólico, através de rituais e práticas simbólicas que fortalecem, re-territorializam a cultura e permitem que determinados valores desses grupos se reproduzam. Exemplo de tal prática é o AFOXÉ.

O Afoxé da “Vila” prepara sua noite de alegria. Sai às ruas em dia da procissão, ao passo cadenciado do ijexá1, celebrando a esperança. A saída do AFOXÉ às ruas de Goiás vem para repre-sentar e reforçar esta territorialidade. No ano de 2002 ocorreu esta prática pela terceira vez, sempre coincidindo com o “sábado de aleluia”, que geralmente é comum com as festas religiosas que acon-tecem na Cidade de Goiás.

Depois da comemoração dos grupos religiosos cristãos nas ruas de Goiás vem o AFOXÉ da “Vila”, percorrendo um outro curso pela Cidade. “Com a proposta de um mundo melhor, mais livre e mais igualitário, onde cada um terá acesso ao mesmo armário único, não importa a roupa” (MAX 2002, p.8) Quando dizemos que o AFOXÉ prepara sua noite de alegria, estamos falando de um fe-nômeno relacionado aos Blocos Carnavalescos que é muito antigo e se espalha pelo Brasil inteiro. Na Cidade de Goiás podemos relembrar a história dos carnavais alegres e divertidos, vividos antiga-mente, discutidos anteriormente. É oferecido por Bonemaisson “que a territorialidade é compreendi-da por muitos, mais pela relação social e cultural que um grupo mantém com a trama de lugares e itinerários que constituem seu território” (BONEMAISSON, 2002, p. 99)

Entre os elementos usados de diferenciação e demarcação territorial das outras procissões são as vestes, usadas pelos meninos e meninas freqüentadores da “Vila”. As vestes das crianças durante o percurso do AFOXÉ possuem todo um significado. São no seu cerne de maioria da cultura africana. Ao relacionar as máscaras, as vestes, no caso os trajes femininos são formados pela KAN-GAIV amarrada de várias maneiras e pelo OJÁ, faixa de pano usada em torno da cintura ou busto, e também como turbante. Há vários modos de amarração do turbante, cada menina escolhe a sua maneira. O traje masculino é formado basicamente pelo ABADÁ (AGBÁDÁ), túnica pequena e folga-da, veste de origem árabe, junto com o XOCOTÔ (calça larga e franzida) e o FILÁ, uma espécie de gorro de forma aproximadamente cônica ou cilíndrica, dependendo da função do homem no grupo.

Durante o trajeto do Afoxé a dança africana é feita no percurso das ruas. Que faz parte de

uma das oficinas realizadas internamente na Vila pelas crianças. Ministrada pelo Professor “Pio” que vem faz parte da manifestação da cultura afro por meio do AFOXÉ. O ritmo sugere movimentos cor-porais com uma enorme variedade de técnicas e comportamentos, de acordo com os diferentes gru-pos étnicos. A dança é um elemento ritual, religioso, político, cultural e central nas tradições africa-nas. Existe uma capacidade de autocontrole, de gestão dos próprios impulsos motores que só se adquire depois de muito exercício. Dessa forma, não existe um movimento sequer que seja desper-diçado.

No AFOXÉ ocorre a participação do grupo de Capoeira Angola Candeias, coordenado por Estevão Gomes de Sá, mais conhecido como “Chuluca”. Esse grupo fortalece a construção da terri-torialidade no Afoxé. “Assim, uma noção de território que despreze sua dimensão simbólica, mesmo entre aquelas que enfatizam seu caráter político, está fadada a compreender apenas uma parte dos complexos meandros do poder” (HAESBAERT 2001, p.119). Podemos compreender melhor este exemplo através do grupo Meninos de Angola, que participa no trajeto do AFOXÉ tocando os instru-

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mentos de origens africanas a cada passo da dança efetivado nas ruas de pedra da Cidade de Goi-ás. Entre os instrumentos se encontra o Agogô, que serve para anunciar o início da cerimônia, mar-car ritmo e sua mudança de som que acontece de acordo com o toque de cada nação. Outro instru-mento é o Caxixi, de origem banto, que faz parte da orquestra da capoeira e foi muito usado nos camdomblés que é uma religião brasileira que tem como na sua maioria simpatizantes negros, além do Xequerê, do Yorubá Séketé, uma cabeça coberta com rede de fios enfiados com contas e búzios ou sementes. Nos tambores se tem o Batá, feito de madeira com duas membranas distendidas por cordão pendurado ao pescoço do tocador e batido dos dois lados com a mão; o Dundun mais co-nhecido como “Iyá Dundun”, quer dizer “Tambor mãe”, e é feito de tronco único de madeira, na for-ma de ampulheta, com duas peles esticadas por cordas ao longo do corpo do tambor. Os ritmos dos instrumentos variam conforme a batida no couro, fazendo pressão sobre as cordas, obtém-se o efei-to de volume e tonalidade variados. Este é um exemplo de fortalecimento da valorização da territori-alidade na dimensão simbólico-cultural.

Esta é uma das mais profundas formas de manifestação da cultura Afro-brasileira e que vem

para reafirmar a idéia trazida por Sack sobre a reafirmação das culturas. A territorialidade se mani-festando no espaço com sua capacidade particular. Entendemos a territorialidade como:

atravessando fronteiras, símbolos e formas diferenciadas[...]Poder e influência sempre tangível[...]como abstração teórica sob a construção social ,do espaço, [...]relacionada sempre com o controle do território [...] parte inter-relacionada entre as atividades de reação e controle[...]como face de criação e idéias sociais no espaço. Sack, (1986, p.32, 33)

Só participam do AFOXÉ as crianças que fazem parte da “Vila” e que realizam atividades in-

ternamente, pessoas que trabalham na valorização da cultura afro-brasileira, formada pela “Vila”, pelo grupo Anunciado de Consciência Negra, os meninos de Angola e o Grupo de Capoeira Candei-as. Cada integrante tem seu lugar definido conforme a participação nos ensaios, onde são feitas as escolhas de cada papel no AFOXÉ. Uma das principais características existentes na “Vila” é a disci-plina e a discussão em grupo pelas e com as crianças.

Para não concluirmos...

O Espaço Cultural Vila Esperança procura ir além da territorialização e da territorialidade afro

e indígena. Busca-se por esse “espaço” a revalorização de antigos grupos étnicos. A partir de ensi-namentos e práticas educativas que nele são efetivadas, culinária, dança, religião, exemplos já cita-dos, representam uma adesão cada vez maior da população vilaboense.

Contudo, entendemos que a cultura afro é mais valorizada que a indígena. A territorialidade da cultura indígena sucede-se em atividades desenvolvidas no interior dos projetos, entre educado-res e educandos. Essas atividades resgatam a ancestralidade indígena, praticadas no cotidiano. Entre elas, as cantigas de roda, onde as músicas de tribos guarani são relembradas, com as crian-ças sentadas ao chão e em círculo. Geralmente há um símbolo ao meio, como uma panela em cha-mas simbolizando uma fogueira.

Já o uso do colar e do colete são vestimentas obrigatórias em dias de festas. A culinária diría-mos que é a atividade constante, através da pamonha que já é uma tradição goiana, a mandioca, o feijão, peixe, frutas e vegetais. No interior da “Vila”, que compreende 14 mil metros quadrados, nota-se um cuidadoso acompanhamento arquitetônico “de pequenas ruas, becos, praças, casas e monu-mentos, jardins e fontes numa miscelânea bem brasileira” (MAX, 2000, p.315). Existe um memorial indígena, lugar de exposições de arte indígena, livros, documentos audiovisuais, artesanato, másca-ras, e outras peças de arte.

Não se pode dizer que haja manifestações espaciais de caráter indígena nas ruas da cidade, diretamente. As manifestações são restritas ao interior da Vila, enquanto as pessoas de origem afro percorrem a cidade, como o citado AFOXÉ. Através dos trabalhos mencionados, esperamos que o nosso exercício traga uma contribuição a este debate que se inicia na perspectiva sócio cultural.

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Notas

* Texto elaborado a partir da contribuição das discussões feitas na disciplina Ambiente e Apropriação do Cer-rado, ministrada pela Prof. Celene Cunha Monteiro Antunes Barreira, no primeiro semestre de 2002, no Cur-so de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás.

** Licenciado e Bacharel em Geograia pela Unesp Presidente Prudente, Especialista em História pela UFG e professor do curso de Geografia na UEG – Universidade Estadual de Goiás –na Cidade de Iporá e Aluno ouvinte.

1. Os termos utilizados tais como, Kanga, Ojá, Abadá, Xocotô, Fila, Agogô, Caxixi, Batá e Dundun; são da língua Quicongo e Quimbundo, dos Banto, na língua Yoruba, são falados no Congo e na Angola. A língua Quimbundo é certamente uma das línguas africanas mais importantes no Brasil, que de acordo com Robert Sack os elementos que fazem parte de uma construção espacial demarcam sua territoria-lidade.

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Formação do pesquisador: da curiosidade à criação*

Ana Clara Torres Ribeiro**

Introdução: A exigência contemporânea da pesquisa

O mundo contemporâneo caracteriza-se pela disputa em torno da capacidade de criar e de inovar. Esta disputa corresponde à aceleração da concorrência, da competição e da desigualdade entre países, regiões, localidades, instituições, agentes econômicos e segmentos sociais. Corres-ponde, ainda, à crescente compreensão de que a ciência e as artes tem se transformado em ele-mentos diretamente envolvidos na valorização de recursos naturais e culturais. A ciência e as artes adquirem, com velocidade, a face da técnica e da mercadoria.

Trata-se da difusão das características do denominado, por Milton Santos, meio técnico-científico e informacional. Neste novo mundo, cujos princípios encontram-se parcial e desigualmente estendidos sobre as condições históricas pretéritas, emergem também novas estruturas de coman-do e poder, diretamente associadas aos conteúdos das novas redes técnicas e da informação estra-tégica.

As tarefas repetitivas tendem a perder valor e, com elas, o trabalho dedicado à sua realização. As máquinas assumem, cada vez mais, estas tarefas e com maior nível de exatidão e precisão. Historicamente, ao trabalho repetitivo também não se dava o devido valor, mas este trabalho era socialmente necessário; bastando lembrar, neste sentido, os movimentos diariamente repetidos responsáveis pelo desempenho no setor bancário-financeiro (PEREIRA, 1995) e pelas atividades de rotina realizadas nas empresas e nas instituições em geral. A atual frente de mudanças técnicas, chega a atingir, inclusive, a organização das atividades domésticas (CARNEIRO, 1997).

Não se trata apenas, portanto, de mudanças observáveis na esfera direta da produção, onde a produtividade tem sido rapidamente alavancada através dos equipamentos da denominada inteli-gência artificial. Trata-se, ao contrário do que esta leitura exclusivamente centrada na produção per-mite ver, de unir uma frente de alterações que reposicione o lugar dos serviços e do comércio na estrutura produtiva. Os serviços e o comércio tendem a adquirir uma face produtiva, autonomizada da produção propriamente dita.

As tarefas repetitivas, hoje em rápida superação, não eram necessariamente expressivas, apenas da simplificidade. Podiam ocultar aprendizados longamente adquiridos, alcançados através da perseverança e do saber prático, profundamente enraizado na cultura popular. Este saber, ao mesmo tempo que perde hoje relevância, pode se tomar de especial importância não apenas como alimento da criatividade (apropriável pelas firmas); mas, também, como formas de vida resistentes aos riscos trazidos pelo excesso de ciência e técnica na vida contemporânea.

Por outro lado, nas tarefas repetitivas também se escondiam segredos profissionais e uma forma bastante difusa de poder. Forma facilmente reconhecível nos obstáculos à eficácia diariamente reproduzidos nas grandes instituições, sobretudo na administração pública. Estão, portanto, ameaçados alguns mecanismos de ascensão social que, historicamente, abrigaram segmentos das classes médias urbanas ou dos setores populares com acesso aos processos, politicamente administrados, de integração social.

As tarefas repetitivas sustentavam enormes contingentes de um funcionalismo de obrigações pouco esclarecidas e, também, um número expressivo de formas de acesso a renda necessárias à sociedade e à acumulação da riqueza. Hoje, um grande contingente destas tarefas tende a desaparecer. As máquinas assumem as atividades rotineiras de organização, acumulação e manipulação da informação. Produz-se, assim, uma nova transparência que, se é portadora de alguns aspectos positivos para os usuários dos serviços, reduz significativamente os nichos sociais e institucionais que abrigavam aqueles que, portadores ou não de um titulo universitário, alcançavam romper algumas barreiras à mobilidade social.

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Diversos analistas, amplamente divulgados no país, têm feito referência à crise do trabalho como centro da organização social. Outros apontam mesmo para a emergência de uma sociedade do ócio, em decorrência da produtividade permitida pelas novas tecnologias. Um sintoma desta soci-edade seria a atual centralidade do turismo e da indústria do lazer. Um outro sintoma seria as nego-ciações e os conflitos, hoje em desdobramento nos países centrais, em tomo da redução da jornada de trabalho e de políticas públicas voltadas à criação de empregos.

A nova face do trabalho

Seria um equívoco adotar, sem críticas, tendências mundiais como orientações para o enten-dimento de desafios presentes e futuros da sociedade brasileira. Entretanto, as políticas adotadas na condução da economia fazem com que estas tendências penetrem com velocidade na organiza-ção social do país. Assim, por sobre integrações incompletas, em grande parte tecidas nos acordos quotidianos, manifestam-se processos que apontam para a desintegração institucional e a fragmen-tação social.

Os recuos observados com relação ao trabalho como núcleo dos processos de organização social, evidenciados em pressões crescentes pela mudança na legislação trabalhista e previdenciá-ria, apontam para fenômenos que atingem diretamente a socialização das novas gerações. Estes fenômenos retiram, inclusive, funções historicamente desempenhadas pela família, pelas igrejas, pela escola e pela universidade.

Observa-se, assim, que estas funções, juntamente com as suas estruturas de apoio e valores, passam a ser disputadas e apropriadas por uma nova institucionalidade. Longe, portanto, de uma linear desinstitucionalização, observa-se a afirmação de uma nova institucionalidade, onde mesclam-se atores internacionais, agentes econômicos da cena nacional e uma plêiade de programas e projetos que ensaiam estabelecer novos vínculos entre educação e trabalho.

Bastaria citar, nesta direção, os temas de qualificação e da requalificação do trabalhador e a importância hoje atribuída à denominada empregabilidade. As oportunidades de trabalho tendem a ser lidas, neste momento, como diretamente associadas a qualidades individuais: empregabibilidade e trabalhabilidade são termos expressivos da presença da nova institucionalidade atuante na educa-ção, em seus vínculos (reais ou apenas aspirados) com o trabalho.

Entretanto, podemos observar que as novas certezas não dão conta das incertezas crescen-tes. Estas incertezas, afinal, são fruto tanto de novos determinantes estruturais, associados à rees-truturação produtiva e à globalização, quanto da ação desenvolvida por novos atores que disputam a educação e o desenho das políticas sociais em geral. Por outro lado, os processos que atingem atualmente as instituições sociais, não admitem uma única interpretação.

Afinal, a própria crise do trabalho é questionável. Não apenas porque é impossível reproduzir a vida social quotidiana sem trabalho - reprodução que se complexifica, de forma crescente. pela reestruturação produtiva e pela globalização - mas, também, pela constatação de que o próprio de-semprego tem sido lançado, como elemento da crise social, aos países periféricos. Indica esta es-tratégia, que ilustra a atual geopolítica comandada pelas agências multilaterais e por acordos econô-micos entre os países hegemônicos, o fato de que tem crescido as taxas de emprego nos Estados Unidos.

As instituições educacionais dos países periféricos, portanto, estão hoje colocadas face a um conjunto complexo de desafios que podem ser indicados, de forma simplificada, como apresentado a seguir:

(1) disputa com atores e agentes que, emergidos das novas tendências mundiais, concorrem pelos financiamentos na área da educação, principalmente aquela mais diretamente associada à problemática do trabalho e do emprego;

(2) preservação de princípios educacionais, valores e ética, nos processos de acomodação institucional às novas tendências;

(3) discernimento entre as novas tendências realmente irreversíveis e aquelas que estão sendo difundidas por interesses particulares e que podem ser, portanto, retidas e contrariadas;

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(4) percepção das potencialidades culturais de cada lugar e a sua defesa para que a educação estimule reais processos de integração à face didática da pesquisa social;

(5) reconhecimento da capacidade de multiplicar as oportunidades de integração portada pela educação, considerando a natureza coletiva da cultura.

A exigência contemporânea da pesquisa

Já foi afirmado que a sociologia é a ciência do óbvio. Esta afirmação, ao contrário de diminuir a disciplina, esclarece o teor da sua contribuição ao entendimento das sociedades contemporâneas. Por óbvio, compreende-se o desvendamento das “coisas como elas são”, sob as camadas de ocul-tamento que impedem a análise da vida social. Sendo assim, como socióloga, devo dizer que a for-mação do pesquisador constitui um desafio didático específico, diferente daquele representado pela transmissão do conhecimento teórico e empírico já construído.

Esta enunciação coloca os desafios da pesquisa no terreno do banal, daquilo que parece ser “favas contadas”. Porém, creio ser necessário refletir, intensamente, sobre a especificidade do trabalho envolvido em pesquisa. Nesta direção, posso afirmar que tem sido em geral descuidada a reflexão da diferença entre conhecimento construído e produção do conhecimento novo. A secundarização desta diferença afeta não apenas a qualidade da pesquisa, gerando a sua rotinização e o uso inadequado dos recursos técnicos e humanos disponíveis; mas, também, possibilitando a perda de sua função enriquecedora dos vínculos entre universidade e sociedade.

A pesquisa deve conduzir, sem dúvida, à alteração destes vínculos na medida em que intro-duz novas teias e sentidos no fazer, no trato com o conhecimento. Esta alteração modifica relações institucionais e pessoais com o entorno político, econômico e cultural, transformando carreiras e a inserção, na sociedade, dos quadros docente e discente. Trata-se da possibilidade de que sejam construídas novas relações institucionais com sujeitos sociais, agentes econômicos e atores políti-cos.

O descuido com relação às condições adequadas à produção do conhecimento novo permite que a tão desejável relação entre ensino e pesquisa seja transformada numa receita genérica para as instituições universitárias. Nesta receita, repete-se que o professor precisa ser também pesquisador, o que em geral, pouco esclarece como concretamente, o exercício da investigação pode alterar a docência e, muito menos, como pode (e deve) ocorrer a formação das novas gerações para as tarefas de pesquisa.

Acredito que a formação para a pesquisa ocorra a partir do aprendizado, sempre difícil, do convívio com a incerteza, com o desconhecido, com o ainda não realizado. Este aprendizado distin-gue-se, agudamente, daquele que ocorre através da transmissão rotineira do saber, por mais atuali-zados que sejam os métodos utilizados nesta transmissão. Os novos recursos técnicos podem cola-borar para um alcance mais ágil e completo do conhecimento produzido ou para o registro mais completo (e mesmo belo) de fatos e experiências.

Porém, estes recursos não constroem, automaticamente, perguntas, questões e atitudes que conduzam à pesquisa sistemática. A institucionalização adequada da pesquisa depende do alcance do direito ao fazer e da interferência no saber hoje transmitido. Trata-se de uma atitude que, ao mesmo tempo em que estimula a absorção do conhecimento já produzido, instala o questionamento com relação a qualidades deste conhecimento.

Esta atitude é dificilmente alcançável nos países periféricos e, sobretudo, nas regiões não privilegiadas pela modernização. Neste sentido, devemos observar como as novas tecnologias têm sido utilizadas por nós. De fato, tem se manifestado, com muita força, a tendência a absorver a informação produzida noutros espaços e lugares ou a criatividade alheia. No máximo, têm sido apropriadas, através da técnica, novas formas de apresentar e divulgar a informação existente.

Como, porém, estabelecer a atitude da dúvida persistente e motivadora da interminável curiosidade? Como fazer de nossos alunos, sujeitos produtores do conhecimento novo ou da interpretação radicalmente nova da vida social e das potencialidades do lugar? Estas são questões

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extremamente relevantes. Não podemos aceitar o papel, que nos desejam atribuir, de meros consumidores de tecnologia e informação.

Apenas sujeitos sintonizados com o conhecimento profundo dos lugares, com a sua natureza coletiva, e com as tendências mundiais poderão ser propositores do saber novo. Trata-se da subordinação da técnica aos desígnios dos sujeitos do conhecimento, hoje desafiados também a reconhecer no “outro” (anteriores objetos para o pensamento positivista e cientificista) a capacidade de propor e criar.

A interatividade permitida pela técnica poderia ser considerada como um dos caminhos potencializadores de uma nova integração: ampliando as oportunidades de intercâmbio cultural realmente criador e criativo. Neste sentido, o intercâmbio, estimulado pelas inovações tecnológicas, pode apoiar a expressão da verdadeira natureza coletiva do conhecimento: sendo retida, inclusive, a aceleração da concorrência e da competição estimuladora do individualismo desenraizador e culturalmente empobrecido.

Limites da técnica: o que é a criação?

Criatividade não é o mesmo que criação, como muitos parecem acreditar. Podemos ser muito criativos, porém estas qualidades não garantem que sejamos realmente criadores. A criação exige além de criatividade, imaginação, rigor, disciplina e conhecimento. Em nossas escolas, observa-se a freqüente confusão entre os diversos níveis e qualidades da produção dos homens, o que afasta a criatividade do terreno da ciência e da técnica. É justamente este afastamento que não pode mais ser aceito, dada a própria natureza do meio técnico-científico e informacional.

Acentuo, assim, o fato de que investimentos em computadores, atualmente indispensáveis, não substituem a formação de pessoas com capacidade de desvendar espaços e objetos para o desafio da pesquisa, para as tarefas de criação. Este desvendamento pressupõe conhecimento pro-fundo da natureza e da vida social, exige vivência, experiência e coragem. Principalmente, quando se observa a facilidade com que se confunde, atualmente, criação e rigor com sensibilidade e talen-to “natural”.

Esta confusão não pode ser considerada inocente, já que constitui parte significativa dos mecanismos contemporâneos de subordinação econômica e de dominação cultural. No desafio constituído pela formação de reais pesquisadores, de verdadeiros criadores, inclui-se, também, a resistência à subordinação cultural e ao desempenho de papéis miméticos sempre atribuídos à periferia do capitalismo. Papéis que podem ser reconhecidos na carência, ainda existente, de encadeamentos entre a pesquisa universitária e a vida social, entre os recursos acadêmicos e a concepção de projetos para o enriquecimento da existência coletiva.

A contribuição da universidade, realizada através da pesquisa, não deve ser reduzida à pres-tação de serviços a este ou aquele ator social. Esta é, sem dúvida, outra afirmação óbvia. Entretan-to, mais uma vez, pouco explorada em suas conseqüências para a concepção do desenho desejável para a institucionalização da pesquisa em ambiente universitário.

Ao meu ver, é necessário distinguir, com rigor, o trabalho de extensão, que tantas vezes en-volve a realização de levantamentos e análises, do trabalho de pesquisa que pode (e deve) ser por-tador de diretrizes e estímulos para tarefas de extensão. A simbiose entre estes dois ângulos da atividade universitária tem sido produzida, infelizmente, por numerosos discursos que desconhecem o papel da universidade na produção e na difusão do saber, nas atividades de criação.

A descoberta de objetos para a pesquisa acontece, penso, através da instauração de uma atitude específica face ao real, onde se encontram imbricadas a percepção da insuficiência do co-nhecimento acumulado e a relação criativa com novos objetos empíricos. A instauração desta atitu-de, efetivamente criadora, modifica a formação profissional na medida em que rompe a percepção do “tudo já foi dito e feito” que acompanha, tantas vezes, o término da graduação.

Percepção que apóia a idéia de que profissionais prontos, construídos através da transmissão do conhecimento, não precisam assumir responsabilidades na produção do saber, no desvenda-mento de novas formas de fazer e agir. Poderia ser dito, assim, que a ausência da pesquisa acentua

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a face reprodutora das instituições universitárias, o seu conservadorismo, reduzindo a criação como norte das práticas de ensino.

Creio ser necessário enfatizar, ainda, que o envolvimento contínuo com a pesquisa estimula a instauração de uma nova relação com o saber construído; relação que transforma o conhecimento recebido em ferramenta para a produção do novo, ampliando a responsabilidade da docência. Trata-se da inoculação da dúvida, do insuflamento da insatisfação, da viabilização do convívio com manei-ras de produzir objetos e discursos, do preparo para o rigor exigido daqueles que enveredam pelos árduos caminhos que unem o saber e o fazer.

A formação do pesquisador depende da existência de laboratórios, da reunião de equipamentos, informações e recursos. Porém, depende, sobretudo, de alcance do “espírito de laboratório” — como espaço da experiência — nas instituições universitárias. Espírito que favoreça a capacidade propositiva de professores e alunos e o desenvolvimento da possibilidade de criar.

Penso que este desenvolvimento vincula-se à valorização de disciplinas dedicadas à episte-mologia e às técnicas de pesquisa; valorização que precisa acontecer de forma articulada com a construção de um tecido seguro e rigoroso de certezas. Assim, a instalação da incerteza, da qual depende a pesquisa. acontece renovando e transformando esforços anteriores, permitindo a acumu-lação do conhecimento e o aperfeiçoamento da capacidade de agir. A juventude favorece a renova-ção institucional, principalmente quando abrigada e estimulada num ambiente dedicado à cultura e à descoberta.

A formação para a pesquisa associa-se ao estímulo da curiosidade científica e técnica, ao experimento com matérias e materiais, à multiplicação de contatos com pesquisadores, à emergência de novos elos com a sociedade. Assim, a pesquisa pode fertilizar a docência e o ambiente acadêmico. Porém, desde que realizada na plenitude de seus significados.

De outra forma, a denominada pesquisa transforma-se num estímulo à fragmentação institu-cional, calçada na disputa por recursos e no contraste entre laboratórios poderosos (alimentados pela prestação de serviços) e o descuido com a docência. Estes são riscos atuais que demandam a atenção daqueles preocupados com o estímulo à pesquisa nas instituições universitárias do país.

Papéis da Universidade: ética e sociedade

A internalização de atividades de pesquisa em instituições universitárias pressupõe o encon-tro de condições favoráveis de fixação e de dedicação dos quadros docente e discente. O antes de-nominado “espírito de laboratório” pressupõe a existência de um ambiente de trocas permanentes. Não apenas das trocas utilitárias e previamente programadas, mas também daquelas espontâneas e produzidas pelo acaso. O ambiente físico e institucional pode estimular ou destruir as oportunida-des de intercâmbio e de estímulo mútuo.

Corremos atualmente o risco de ver se afirmar uma situação universitária onde “fazer pesqui-sa” transforma-se em privilégio de alguns poucos ou num exercício realizado, apenas, em alguns espaços auto-segregados. Por outro lado, também corremos o risco da pesquisa transformar-se em símbolo de status acadêmico, deslocado de responsabilidades com o ensino e com a melhoria das condições de vida da maioria do povo brasileiro.

Estes riscos podem ser reduzidos por uma política institucional que preserve os vínculos cria-dores entre graduação e pós-graduação e que amplie as oportunidades de divulgação do conheci-mento. E de essencial importância, nesta direção, que a política de qualificação / titulação de qua-dros seja compreendida como uma política calcada em compromissos com o lugar, com os colegas e com os alunos; sendo assim valorizadas as possibilidades de multiplicação dos acessos ao fazer e ao criar.

Os princípios do compartilhamento e da solidariedade precisam ser, neste sentido, preserva-dos e estimulados: compartilhamento da informação, do conhecimento técnico, de bibliografia de contatos no país e no exterior, de equipamentos e linguagens; solidariedade na produção de opor-tunidades comuns, no enfrentamento de dificuldades técnicas e didáticas.

Face às novas características da organização técnica e social do trabalho, inclusive do trabalho acadêmico e universitário, torna-se indispensável prever (e reter) aqueles processos que podem dar

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origem e estimular a concorrência ilegítima calcada na posse excepcional de equipamentos ou no alcance, politicamente administrado, de oportunidades de prestação de serviços.

Nesta direção, critérios de valor essencialmente acadêmico precisam ser reconhecidos e permanentemente publicizados, de tal forma a permitir a hierarquização legítima do ambiente institucional e a orientação dos esforços discente e docente. Para que isto aconteça, torna-se indispensável a abertura de oportunidades de expressão do discurso acadêmico e do discurso criador, através de reuniões científicas sistemáticas e da apresentação de constantes desafios às artes.

Além disto, torna-se indispensável premiar a competência acadêmica e docente, através de mecanismos de reconhecimento daqueles que efetiva-mente se dedicam à formação de novos pes-quisadores. Esta é uma tarefa árdua e que, muitas vezes, só apresenta resultados visíveis no longo prazo. Assim, necessita ser estimulada e publicizada mediante recurso a formas de avaliação aber-tas ao olhar externo à instituição.

A educação hoje desejável é aquela que não desconhece o novo; mas que também não o retifica, fazendo dele um critério descolado e único de avaliação da docência, da pesquisa e da for-mação profissional. Até porque reconhecer o realmente novo constitui-se num desafio que só pode ser enfrentado por aqueles que dominam, amplamente, o já feito.

Assim, a preparação para o uso da técnica indica apenas uma parte pequena, ainda que essencial, da formação do pesquisador do futuro. Esta preparação precisa ser viabilizada pelas instituições universitárias sem dúvida. Porém, a capacitação técnica deverá, mais do que nunca, estar associada a uma ampla formação humanística, orientadora da produção na ciência e nas artes. O fornecimento desta formação permitirá distinguir entre as instituições efetivamente universitárias e aquelas que fazem da educação um sinônimo de treinamento de uso imediato.

Este treinamento pode seduzir alunos e pais de alunos, mas dissolve-se no ar quando as suas oportunidades de uso prático são retiradas dos lugares (dos mercados locais de trabalho) ou quando as qualidades diferenciadoras adquiridas se generalizam num amplo segmento das classes médias urbanas.

Como ainda nos diz Milton Santos, uma educação para a real cidadania é aquela que é capaz de expressar um humanismo de tipo renovado e socialmente ativo. Trata-se, desta maneira, de desvendar os caminhos adequados para o alcance de uma educação ativa e socialmente consciente e, não, de uma educação retificadora de práticas ultrapassadas e de valores monos. Nesta educação, o conhecimento crítico e a defesa de direitos (próprios e coletivos) se fazem acompanhar da defesa do direito à informação significativa e estratégica e do direito à criação.

Notas:

* Texto Apresentado na Universidade Católica de Salvador, durante a Semana de Mobilização Ci-entífica – SEMOC. Salvador. 14 de setembro de 1998.

** Professora do IPPUR/UFRJ – CNPq. Pesquisadora CNPq.

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A História da Geografia no Brasil

Professor Manoel Fernandes de Sousa Neto1 (UFC)

Palestra2 no auditório da FFP/UERJ São Gonçalo [email protected]

Eu queria, inicialmente, agradecer a possibilidade de estar aqui esta noite e dizer para aque-les que ainda não conheço que estar na Faculdade de Formação de Professores da UERJ de São Gonçalo é estar entre amigos: [Charles amigo de longa data, Santana, Karol, Marcos do Couto, Cláudio, Jorge Mitrano e Marcela Rangel]. Além dos amigos mais próximos, encontrei também o Igor e outras pessoas que eu vejo na AgB e no movimento estudantil em muitos lugares deste País. Queria dizer que me sinto em casa, me sinto bastante à vontade para nós termos essa conversa hoje, ao ponto de mais despreocupadamente sentar à mesa não como convidado, mas como uma espécie de irmão que veio visitar a família e rever os parentes que ainda não conhecia.

Muito bem, o tema dessa prosa à boca da noite é História da Geografia no Brasil e diria, já na pronúncia dos primeiros vocábulos, que este tema é ainda uma espécie de campo aberto, onde há muito o que fazer. Agora a pouco o [Santana] acabou de me lembrar que esse ano haverá um Encontro Nacional de Geógrafos na cidade de João Pessoa, agora em julho e esse encontro antece-de o Congresso que ocorrerá em 2004 e vocês devem saber que a AGB surgiu em 1934, portanto daqui a dois anos a AGB vai estar com 70 anos. Então, eu poderia fazer um histórico da AGB, do papel da AGB no Brasil, mas eu não vou falar sobre isso, eu não vou falar sobre a AGB.

Eu sei ainda que existe uma outra instituição bastante importante aqui no Rio de Janeiro que é o IBGE. O IBGE surgiu em 1937, mas eu também não vou falar do IBGE. Eu poderia falar das Uni-versidades brasileiras onde se formaram geógrafos no Brasil da década de 1930 para cá, poderia falar da Universidade de São Paulo que tem um curso que existe desde 1934; poderia falar da Uni-versidade do Distrito Federal que passou a ser Universidade do Brasil e hoje é a Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro e existe desde 1935, mas também não é da formação dos profissionais geó-grafos nas universidades brasileiras que pretendo conversar com vocês.

Em outras palavras não tenho a pretensão de conversar com vocês sobre aquilo que muitos já sabem, mas sobre as coisas ainda por conhecer entre nós e que repousam sob a poeira do es-quecimento. Espero que entendam a minha recusa de falar sobre umas histórias e que acolham a escolha por outros caminhos.

Não estou querendo negar a validade da história da Geografia que passa pela AGB, IBGE, universidades. E é claro, por exemplo, que se você puder descrever na Revista Tamoios, é impor-tante dizer que esta faculdade (a Faculdade de Formação de Professores da UERJ) já tem uma his-tória e uma história que efetivamente precisa ser contada e que eu acho que as pessoas aqui estão tentando contar, que é produto de todo esse processo histórico que a gente tem aí.

Bom eu falei aqui de três instituições, ou pelo menos em três campos institucionais, um mais ligado aos profissionais, digamos assim, de forma extensa no caso a AGB (1934); um mais ligado à questão do planejamento, no caso do IBGE (1937); e outra(s) mais ligada(s) à formação acadêmica no caso as universidades brasileiras (1934/1935) formadoras de geógrafos. Se vocês por ventura abrirem qualquer manual ou consultarem alguns poucos textos que versem sobre a história da Geo-grafia no Brasil eles vão se reportar exatamente à estas datas e a estas instituições, correto? Quem já fez aqui alguma disciplina ligada a isso, vai se deparar exatamente com estes marcos historiográ-ficos e institucionais.

O que nós estamos tentando fazer, quando eu digo nós, falo um grupo expressivo de pes-quisadores que hoje atua nessa área, é contar a história da geografia no Brasil que ainda não foi contada, uma história da geografia no Brasil que ainda está por ser, digamos assim, construída, que é uma história que antecede à década de 1930.

Vocês já ouviram falar da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, a SGRJ? Quem já ou-viu falar aqui? Você já ouviu falar? Não? Porque na realidade foi uma instituição fundada em 1883 e muitos poucos conhecem, logo não espanta saber que a maioria desconheça. Vocês sabiam que

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havia aqui no Brasil uma instituição que era uma seção da Sociedade Geográfica de Lisboa da dé-cada de 70 do século XIX? Sabiam que se produziu muita geografia por dentro da Academia Real Militar? A gente podia dizer inclusive que houve uma instituição que produziu muita geografia no Brasil, muito saber geográfico, chamado IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro), que foi fun-dado inicialmente no ano de 1838, ou seja, exatamente quase 100 anos antes do IBGE.

E por que é que agora um grupo de malucos está querendo contar uma história, que é dife-rente daquela história que sempre foi contada? Por que é que agora, algumas pessoas estão a re-mexer velhos papéis, para contar ou para dizer de geógrafos, ou de geografias, ou de saberes geo-gráficos existentes antes daquele saber geográfico ou daquele período tido como período fundador da geografia no Brasil? Eu vou dizer três das razões fundamentais.

A primeira delas: sempre fizemos História das Ciências a partir da história da ciência dos países ditos centrais, correto? Vou dar um exemplo atual: se você quer saber quais são os pesqui-sadores em física que mais produzem, qual é um dos principais critérios? O critério de saber quan-tas vezes ele foi citado em papers internacionais de revistas indexadas. Então você pode ter um cara muito bom em física na Faculdade de Formação de Professores da FFP, se aqui tiver um curso de física que forme professores de física, ele pode ser excepcional, pode ser um pesquisador de mão cheia, mas se ele não for muito citado, em nível internacional, ele não vai ser reconhecido co-mo um bom pesquisador, correto?

Cláudio Barbosa da Costa esses dias participou comigo em São Paulo de uma reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), onde foi anunciado que daqui a algum tempo instituições de pós-graduação e órgãos de fomento à pesquisa podem vir a acabar com os cursos de mestrado acadêmico. Só vai ter espaço para os mestrados profissionais pagos. É assim que o governo de Fernando Henrique hoje bate o facão e diz: só quem for doutor vai poder entrar nas universidades brasileiras, sendo que não há um só doutorado em Geografia no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nós podemos ver outras coisas com relação aos parâmetros de ciências, ou seja, em outras palavras, só os parâmetros de ciência internacional é que valem para nós pen-sarmos a produção da ciência nos países ditos colonizados, nos países ditos periféricos. Então, pa-ra poder fazer ciência, nós temos que fazer ciência do jeito que se faz na Europa e Estados Unidos, certo?

É por isso que o período que antecedeu 1930 foi considerado por muito tempo como pré-institucional ou como pré-científico, só que quase ninguém disse que havia, por exemplo, geólogos e geógrafos-físicos importantíssimos aqui, como um cientista americano chamado Charlles Hart que publicou em 1878 um livro intitulado Geologia e Geografia Física do Brasil, um livro inclusive fabulo-so; quase ninguém diz que houve comissões científicas de exploração, que viajaram pelo território nacional, fizeram levantamentos interessantíssimos da flora, da fauna, das condições físicas mais gerais, isso quase ninguém fala. E já que naquela época, portanto, se produzia saber geográfico, só que os métodos não necessariamente eram os mesmos métodos que eram utilizados na Europa, não necessariamente eram os mesmos métodos que eram utilizados, ”aspeadamente”, no “centro do mundo”; não foram reconhecidos como válidos. Então a briga é para que nós deixemos de pen-sar que a ciência só passou a existir entre nós depois que foram fundadas universidades, institui-ções de pesquisa, institutos como o IBGE. Não. Antes já havia uma ciência produzida por nós, só que era preciso eurocentricamente etiquetar essa ciência como não válida, não legítima. Por quê? Porque ela ainda não acompanhava esse processo de fazer ciência. Então a primeira briga é essa, é dizer que o que nós fazíamos aqui era ciência geográfica ainda antes da década de 30 do século XX, essa é a primeira coisa.

A segunda coisa é ao apontar para esse tipo de história, começar a desmascarar algumas histórias que ainda hoje são contadas por aí. Exemplo: dizem que os primeiros professores de geo-grafia do Brasil foram formados na USP, essa é uma meia verdade. Os primeiros professores de geografia no Brasil foram formados num Curso Livre de Geografia dado em 1920, salvo engano, não sei se a data é exatamente essa, mas na década de 20 foi criado um curso por dentro da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, organizado por dois professores que não eram professores universi-tários, Everaldo Bekhauser e Delgado de Carvalho. Como foi um curso ministrado no Rio de Janeiro e não em São Paulo, mudam as cidades, mudam as instituições, mudam as pessoas, só pra vocês terem uma idéia do que é que pode mudar nessa história.

Vocês sabem onde aconteceu o primeiro Congresso Brasileiro de Geografia? Que teve re-

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presentantes de todo o território nacional, doze seções e trabalhos sobre geografia-matemática, ge-ologia, climatologia e ensino de geografia, dentre outros. Vocês sabem em que ano aconteceu o primeiro Congresso Brasileiro de Geografia? Foi em 1934 com a data da fundação da AGB? Não. Foi em 1909 na cidade do Rio de Janeiro. Se vocês tiverem a oportunidade de manusear os anais desse Congresso, irão encontrar lá uma quantidade imensa de nomes, dígitos, sons, que já aquela época produziam geografia ou um saber geográfico que a gente precisa no mínimo considerar.

E a terceira razão pra fazer este recuo historiográfico qual é? É a seguinte: não se conta a história desse país sem saber que geografia foi produzida nele, porque foi esse saber geográfico que produziu também esse país. Vamos tentar explicar um pouco o que é que isso significa. Era o Brasil em termos territoriais no século XVI? Era aquele recorte do Tratado de Tordesilhas, vamos ver se a gente consegue pensar naquele recorte das famosas Capitanias Hereditárias. Depois tive-mos dois Estados portugueses na América, um que era o Brasil, e outro o Estado do Grão-Pará. Além disso, havia o mito de que o Brasil era uma imensa ilha, sendo parte dela cercada pelas águas do Atlântico e parte cercada pelas águas do São Francisco e do Tocantins, depois Amazonas e Pra-ta. Aí vocês podiam me perguntar o que isso tem a ver conosco, o que tem a ver com história da geografia no Brasil?

Alexandre Gusmão que era diplomata português conseguiu fazer dizer que nós conhecía-mos o território brasileiro porque havíamos medido o território brasileiro, sabíamos a extensão dele, sabíamos até onde ele ia, inclusive comprovando isso por intermédio de cartas, de levantamentos realizados com esse ainda frágil esquadrinhamento do território, e aí o que foi que houve? Nós tro-camos o reconhecimento da Espanha, de que esse território mais a oeste era propriedade de Portu-gal por uma possessão portuguesa nas Filipinas. As Filipinas eram portuguesas, e passaram a ser, à época, propriedade espanhola e aí você pode entender o que tem a ver a história do Brasil com as Filipinas. Mas o que é que garantiu que o território fosse “conquistado”, pelo menos até Santo Idel-fonso, num conclave diplomático internacional? Foi o conhecimento efetivo do território, foi o saber do território, foi tê-lo esquadrinhado, foi tê-lo construído do ponto de vista representacional, foi isso que permitiu Alexandre Gusmão postular suas teses.

Então eu diria que a história da geografia no Brasil é fundamental, para que nós pensemos como este País foi se constituindo. Pensando essa constituição sob diversos aspectos e não apenas territorialmente. Esse foi um País que experimentou a violência da escravidão e a violência contra os índios, e isso não dá pra gente esquecer; foi um país que na expansão para o oeste, que é a lógica efetiva do processo de expansão do capital, significou o assassinato de milhares, de milhões de pessoas. Havia nove milhões de índios e hoje tem 200 mil, segundos alguns dados que são coloca-dos por aí e já não dão mais conta da realidade. É um país que ainda hoje é marcado por essa his-tória, por essa história de violência, física e psicológica.

Por nós não temos feito essa história do saber geográfico no Brasil anterior a 1930 permiti-mos que uma serie de mitos se constituíssem como verdades quase incontestes. Quer ver algumas coisas que nós aprendemos na escola: o Brasil é atrasado, porque foi colonizado por Portugal; se-gunda, o Brasil é atrasado por que ele é um país que fica nos trópicos, então a torridez tropical faz as pessoas terem preguiça, malemolência, produzirem pouco; depois nós somos um país atrasado, por que somos um país mestiço, porque aqui na canícula do calor dos trópicos e tal, o sexo rolava de forma louca entre portugueses e índios e negros e aí a mestiçagem acabou barafundando tudo e arruinando o que podia haver de bom nas raças puras e por isso também nós éramos atrasados.

Ainda hoje se você pára nos pontos de ônibus tem gente que diz mais ou menos assim: ra-paz se por acaso os holandeses não tivessem sido expulsos do Brasil, hoje a história seria outra. Mentira! Se fosse a Inglaterra o negócio seria outro. Mentira! Nós fomos colônia inglesa, parte de nós foi colônia holandesa, e as coisas eram tão terríveis, ou mais terríveis do que com os portugue-ses. Não era lógica de ser português ou não, era lógica colonial. Esse era o problema, é que nós temos o passado colonial e não podemos negar isso, e tem uma geografia colonial que a gente pre-cisa ver e isso exige um recuo histórico ainda maior.

E que tem a ver todo esse processo de outros presentes históricos com a nossa história ho-je? Porque quando se fala hoje em neoliberalismo, quando se fala em globalização, quando se fala em ALCA, isso tem a ver com um projeto de recolonização. E pra quem já foi colônia esse debate é importantíssimo, por que, por exemplo, o que tem a ver a CLT com a ALCA? A flexibilização da lei do trabalho com a ALCA? Tudo. É preciso quebrar os direitos dos trabalhadores como se quebrou

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os direitos das pessoas de viverem sua humanidade, por exemplo, trazendo para cá negros da Áfri-ca sob a dureza do ferro e a crueza do fogo, para aqui comercializados. A ALCA é quase que um retorno a escravidão porque precisa disso, quebrar com um direito dos trabalhadores, completamen-te. Então o que eu quero dizer, é que também estudar essa história, da geografia do Brasil, pra com-preender a história desse país e a conformação dessa sociedade, tida como atrasada por estes as-pectos que eu lhes coloquei em função dos muitos mitos que aqui foram constituídos, tem a ver com a nossa história, hoje, tem a ver como que nós estamos a fazer, agora. Eu sei que o salto parece grande, não é? Não tem nada a ver a escravidão com a ALCA; não tem nada a ver a biopirataria com o fato de que muitos cientistas estrangeiros vinham aqui e coletavam informações acerca das riquezas naturais; não tem nada a ver as questões dos limites territoriais com o Acordo do Livre Co-mércio das Américas que vai acabar, digamos assim, com fronteiras alfandegárias; não tem nada a ver então uma coisa com a outra. Aparentemente não tem nada a ver.

Qual a tarefa de quem estuda história da geografia no Brasil ou saberes geográficos? E por que eles ficaram por tanto tempo adormecidos, no período anterior a 30? Porque não é possível, e essa é a tese fundamental que eu queria defender esta noite, compreender a história desse país sem saber que geografias foram produzidas aqui, mesmo antes que aqui houvesse geógrafos ou instituições geográficas, como as universidades, como os IBGEs da vida, como as associações de geógrafos? É tarefa nossa saber disso. E por que é tarefa nossa saber disso? Porque boa parte das coisas só será explicada quando nós soubermos como explicá-las e portanto é preciso fazer uma pesquisa documental, com relação às fontes, eu diria bastante criteriosa. É preciso que se interve-nha nesse trabalho de forma bastante cuidadosa para que nós tenhamos algum tipo de resposta para as questões que estamos agora a levantar.

Em artigo publicado na Terra Livre n° 15 , exatamente no ano em que se discutia a questão dos 500 anos do Brasil, foi resultado de uma discussão em que a pergunta era: o Brasil é uma in-venção ou uma construção? Porque se é uma invenção, qualquer pessoa pode dizer o que esse país é, correto? A gente inventa e desinventa do jeito que a gente quer. Agora se ele é uma constru-ção histórica, aí é diferente, aí é outra história, aí é outra coisa, e essa construção precisa ser pen-sada. Então para mim não é uma invenção, para mim é construção. E se é construção, ela é ao mesmo tempo construção do território, construção da sociedade que habitou esse território, que pro-duziu esse território. Construção de uma série de mitos que precisam ser destruídos, como exata-mente, o mito do clima, o mito da miscigenação, o mito do atraso pela colonização portuguesa, são tarefas nossas como geógrafos nesse momento, evidentemente rever essa história, contar a história que ainda não foi contada. E por que é que é importante contar a história que ainda não foi contada? Porque só ao contá-la nós vamos ter dimensão do que somos, eu não vejo outra possibilidade. E aí isso significa uma posição política fundamental, significa dizer primeiro que a história não acabou, que a velha senhora está de novo aí de pé, mais jovem do que nunca, contra a volta de toda barbá-rie. E, portanto, dizer aquilo que disse uma vez Frederic Jameson, historicizar sempre é papel nosso eu acho, papel do estudante em geografia, daqueles que agora estão entrando, que estão tomando pé do que significa essa ciência para esse país, que não dá para pensar o país sem pensar que geografia efetivamente produziu esse país ao longo de toda a sua história. Obrigado!

Notas

1. Professor de Geografia Humana e Econômica para os cursos de Sociologia e História, Metodolo-gia e Prática de Ensino de Geografia da Universidade Federal do Ceará; doutorando em Geografia pela USP.

2. Promoção da Seção local da AGB-Niterói e do Departamento de Geografia da Faculdade de For-mação de Professores/UERJ no dia 27/03/02 em São Gonçalo-RJ.

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Reforma Curricular do Departamento de Geografia Faculdade de Formação de Professores da UERJ

Marcos Antônio Campos Couto* [email protected]

Saber pensar o espaço, para saber nele se organizar, para saber ali combate1

Introdução

O objetivo do presente texto é registrar uma parte da história e sintetizar alguns dos eixos centrais da reforma curricular do curso de Licenciatura Plena do Departamento de Geografia da Fa-culdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Devo reconhecer que muitas idéias contidas aqui, misturadas e/ou reconstruídas, não são originariamente nossas, embora seja a nossa responsabilidade pelo seu conteúdo. Elas constituem frutos de uma construção coletiva, dos vários e intensos debates, iniciados em 1998, para a reforma curricular do curso de Geografia2.

Embora pareça que o produto principal da reforma curricular seja um novo arranjo da grade de disciplinas, avaliamos que tão importante quanto o produto é quando nos transformamos no pro-cesso de sua reconstrução, que este texto busca, em parte, documentar.

A Função Social da Geografia

Quando Lacoste (1988) propõe que a função da Geografia é a de ajudar o cidadão a saber pensar o seu espaço (diríamos hoje: saber pensar o espaço para saber pensar a própria socieda-de), o que estava em jogo não era apenas um caminho teórico-metodológico; pois para ele a Geo-grafia, sendo um saber estratégico, serve para a guerra, para o combate entre nações, empresas, classes sociais, Estados, etc. Por isso que a expressão “saber pensar o espaço, para saber nele se organizar e para saber ali combater” é uma bandeira de luta, que envolve uma chamada à produção do conhecimento, comprometido com a organização da população para o velho e atual combate contra esta forma de sociabilidade burguesa e todas as suas mazelas sociais, culturais, ambientais.

Esta concepção de ciência/Geografia institui um primeiro eixo: é necessário pensar um currí-culo estruturado em torno de idéias e atividades que incluam: produção do conhecimento, organiza-ção da população e intervenção política na realidade sócio-espacial.

Outro caminho para a definição da função social da Geografia é o estabelecimento de diferen-ças (sem perder a unidade de princípio) profissionais, de acordo com os espaços nos quais os geó-grafos irão atuar. Neste caminho, é necessário que tenhamos em mente a função social dos órgãos de planejamento e, sobretudo, a função social da escola que, articulados a função da Geografia, exigirão determinadas competências profissionais. Entretanto, esta diferenciação não exige, neces-sariamente (como se quer convencer), a existência de um curso de licenciatura e outro de bachare-lado. Em ambos os casos, a formação pode e deve ser balizada pelos 3 eixos anteriormente indica-dos (ou por outros). Embora uma sala de aula não seja equivalente a uma sala de planejamento, desejamos que tanto uma quanto a outra sejam espaços em que se produzam/construam conheci-mentos com e para a população, com e para o combate. As competências pedagógicas, que alguns podem afirmar como sendo aquilo que distingue o licenciado em Geografia, não podem estar ausen-tes na formação do bacharel, se assumirmos a perspectiva que estamos propondo. Ou seja, plane-jar a organização do território pressupõe um relação pedagógica (e política) com a população (seus

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saberes, perspectivas, angústias, desejos, sonhos...) sobre a qual as ações de planejamento irão ocorrer.

“Ser” bacharel ou “ser” licenciado não tem como premissa determinado eixo epistemológico ou técnico, pois constitui uma circunstância de nossa inserção no mercado de trabalho. Aliás, nos tornamos profissionais de fato, não na universidade, mas em nossas práxis, em nossa inserções no mundo do trabalho. É a partir daí que desenvolveremos/aprofundaremos mais determinados aspec-tos de nossa formação geral universitária, coerentes com as necessidades e desafios que a nossa prática profissional exigir.

De qualquer forma, é indispensável acrescentar à idéia do papel da Geografia, a função social das instituições nas quais irão atuar os seus profissionais, sobretudo a natureza, a história, as con-tradições da escola3 no contexto da sociedade (GRAMSCI, 1988).

Daqui surge o segundo eixo articulador: é necessário pensar um currículo que inclua a inves-tigação da natureza social das instituições onde irão atuar os geógrafos. Avaliamos que este seria o elo que vincula a formação acadêmica à prática profissional, a articulação teoria-prática e ensino-pesquisa-extensão.

Da função social ao perfil do profissional da Geografia

Da função social da Geografia deriva o perfil do profissional que queremos formar. Re-produzimos alguns traços deste perfil estabelecidos no I Seminário Interno do Departamento de Ge-ografia da FFP-UERJ (2000):

Professor (pesquisador ?), é aquele que desenvolve em si e em seus alunos a capacidade de analisar e interpretar a realidade, a partir das necessidades da maioria da população. Produção e reprodução do conhecimento devem se relacionar permanentemente através da transmissão de conteúdos e dos princípios básicos da construção de conhecimentos: a observação, o registro, a reflexão, a análise, a síntese, o conceito, a avaliação, o planejamento, etc. Esta perspectiva deve orientar os objetivos escolares, as metodologias, os instrumentos didáticos, a avaliação, a gestão da escola, etc.

É preciso formar professores-pesquisadores, aptos a analisar e interpretar a realidade, trans-ferindo esses conhecimentos, estimulando os seus alunos na busca do conhecimento.

O DGEO deve aproveitar/potencializar a relação Geografia/educação presente na FFP, atra-vés da produção de uma Geografia seriamente voltada para a educação, com mais trabalhos sobre educação. A partir dos temas próprios à cada área ou disciplina, estabelecer vinculações com a educação. A Geografia tem muito a contribuir na análise do cotidiano dos alunos, por intermédio da escola.

O objetivo é a formação integral do geógrafo, desenvolvendo a capacidade de fazer com que os alunos entendam as categorias geográficas, conheçam os instrumentos intelectuais/técnicos (conceitos, categoriais, técnicas) fundamentais para analisar e interpretar, contribuindo para mudan-ças da realidade. A formação, nestes termos, se aplica ao que hoje denominamos bacharel e licen-ciado. Contudo, é necessário destacar que a produção/reprodução do conhecimento geográfico implica no desenvolvimento de nossa capacidade de analisar as condições em que ela se realiza. Esta é a razão pela qual devemos desenvolver a nossa capacidade de analisar o espaço, acrescida da capacidade de interpretar o ato educativo: seus objetivos, metodologias, instrumentos, planeja-mento, avaliação, etc. Neste sentido, a relação teoria-prática deve estar atravessada por dois obje-tos: o espaço geográfico e a escola. Do perfil do profissional às condições de sua formação

Os fins exigem os meios: a função social da Geografia e o perfil do seu profissional, nos ter-mos acima expostos, exige e indica algumas atividades que deverão compor a nossa estrutura curri-cular. Assim, ela deverá contemplar atividades (cargas horárias) de:

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Produção (estrito senso) do conhecimento através das disciplinas do Departamento no con-texto sócio-espacial local, regional e nacional e através de sua participação nos Encontros Nacio-nais, Regionais, Locais, da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB , do Movimento Estudantil, do Fórum de Cidades, Congressos Sindicais dos Professores, de outros movimentos sociais, etc.

Além desses diferentes espaços de cognição (de construção de conhecimento), as te-máticas da produção do espaço e da natureza das instituições onde irão atuar os profissionais da Geografia, deverão constituir eixos estruturantes das disciplinas da nova grade curricular.

Diante desses eixos estruturantes, qual deverá ser o papel da Climatologia, da Geogra-fia Urbana e Agrária, da Geomorfologia, da Pedologia, da Geografia Regional e da População, da metodologia do Ensino, da Monografia?

Este caminho nos obriga a pensar nos objetivos e conteúdos de nossas disciplinas, articulando o seu estatuto teórico-metodológico específico aos eixos estruturantes que estabelecem a função social da Geografia e do seu profissional, bem como a investigação da escola. O nosso ponto de partida, como não poderia deixar de ser, são as nossas “especialidades” e áreas de inte-resse; mas é indispensável construir uma proposta curricular e programática que seja parte de um todo coerente e articulado. Avaliamos que aqui está o maior desafio de qualquer reforma curricular: a reestruturação das ementas e programas das disciplinas que expresse a sua particularidade e, ao mesmo tempo, a sua articulação com os eixos integradores do currículo.

Neste momento (novembro/2002), os professores das diferentes disciplinas que com-põem o currículo em vigor estão se reunindo em grupos (Metodologia, Geografia Humana, Geografi-a Física, Metodologia e Prática de Ensino, etc) para, coletivamente, propor uma grade e um projeto para cada uma das disciplinas da área. O objetivo é que, após o debate de todos estes projetos de disciplinas e grades, possamos, no colegiado do Departamento, aprovar o novo currículo.

Conclusão: Reforma Curricular e Projeto de Departamento

Estamos buscando visualizar uma estrutura curricular de um jovem Departamento (instituído em 1995) que se insira em um projeto maior, um projeto de educação e de país:

O Projeto do DGEO se insere em um projeto maior, um projeto de educação, onde se estabe-lece o papel e as intenções da Universidade (a FFP mais especificamente) na estrutura do capitalis-mo brasileiro e na atual conjuntura.

Construir uma forma particular de consciência, isto é, aquela que permita interpretar as condi-ções de vida da maioria da população, das classes trabalhadoras, através das contradições do capi-talismo, dos seus conflitos sociais, políticos, econômicos, ambientais, geográficos.

Fortalecer através do ensino, da extensão e da pesquisa científica, a luta da população pela democracia e por melhores condições de vida. Este objetivo pressupõe uma relação de intercâmbio permanente entre a Universidade-FFP e os movimentos sociais.

(I SEMINÁRIO INTERNO, DGEO-FFP-UERJ, 2000)

Assim, o Departamento de Geografia poderá, de fato, ser um espaço de trabalho coletivo, de produção de conhecimentos, de debates, de cultura e de organização. Esta é uma concepção de escola que vale tanto para o ensino superior, quanto para a escola básica.

Notas *Prof. Assistente, Dgeo-FFP/UERJ. 1. Título de um dos últimos capítulos do livro “A Geografia – Isso Serve, em Primeiro Lugar, Para Fazer a Guerra” , de Yves Lacoste (1988.) 2. A agenda de debates e atividades propostas para a reformulação do currículo, aprovada em reu-

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nião do Departamento em 09 de dezembro de 1998, constituiu-se de seis momentos fundamentais:

A delimitação de parâmetros de uma concepção de currículo; a avaliação do atual currículo;

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Monografias do Departamento

ALMEIDA, Luiz Eduardo. Urbanização brasileira e doença no município de Duque de Caxias. Mono-grafia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2000.

ARAUJO, Luiz Ribeiro de. As territorializações das cooperativas de catadores de lixo do município do Rio de Janeiro - 1990-2001. Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

CASTILHO, Maria Jenny da Veiga. Desmatamento e Erosão: Ameaça de Desertificação no Noroes-te Fluminense. Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2001.

COELHO, Carlos Alberto dos Santos. Uma leitura geográfica do Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande. Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

COSTA, Soraia Antunes. São José de Itaboraí do Calcário à água. Monografia (Licenciatura em Ge-ografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

DIAS, João Luiz Miranda. As vilas operárias e residências no Distrito de Neves. Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

FIGUEIRA, Rita de Cássia Xavier. Os agentes imobiliários e a incorporação de novas áreas ao pro-cesso de expansão urbana de São Gonçalo: a formação de condomínios fechados para contigentes populacionais de baixa renda no bairro de Vista alegre entre 1990 e 2000. Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2000.

MARCHON, Darino Toledo. A expansão urbana na periferia da cidade de Casimiro de Abreu seus impactos ambientais no Rio Indaiçu. Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formaç-ão de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

RIBEIRO, Guilherme da Silva. As apropriações do espaço no pensamento de Eric Hobsbawm: reco-nhecendo o objeto para compreender a Geografia. Monografia (Licenciatura em Geografia). Facul-dade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2001.

SACRAMENTO, Ana Claudia Ramos. Do espaço vivido ao produzido: os múltiplos sentidos do espa-ço social dos alunos do município de São Gonçalo (RJ). Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

Silva, Borges da. Barra Alegre: Agricultura familiar e modernidade (do fogão-de-lenha à antena pa-rabólica). Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999.

SILVA. Ubirahyra Guimarães. Agricultura familiar em comunidades de Microbacias hidrográficas do Estado do Rio de Janeiro na década de 90. (através de desenvolvimento agrícola sustentável). Mo-nografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Es-tado do Rio de Janeiro, 2000.

SOUZA, Luiz Sampaio. A política habitacional da marinha e a segregação social no espaço urbano. Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

VIEIRA, Tatiane da Conceição. O espaço rural de Itaboraí. Monografia (Licenciatura em Geografia). Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999.

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3. Notas no texto: numeradas no corpo do texto e apresentadas no final, antes da referência biblio-

gráfica (quando se referirem a títulos bibliográficos, deverão apresentar o nome do autor, título da obra em itálico: subtítulo em itálico, número da edição (se não for a primeira), local de publicação, nome da editora, data da publicação, número (s) da(s) página(s).

Exemplo: 1 - Essa abordagem pode ser aprofundada com a análise do processo de valoriza-ção do capital. Ver: MARX, K. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 142-276.

4. Referências Bibliográficas: deverão ser apresentadas em ordem alfabética, pelo último sobreno-me do autor, conforme descrição a seguir:

Livros: sobrenomes(s) do(s) autor(es) em caixa alta, seguido do(s) nome(s) em caixa alta e baixa; título, em itálico: subtítulo do livro e caixa alta e baixa; tradução, se houver; número da

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edição (se não for a primeira); volume; local de publicação; editora; ano da publicação.

Exemplo: KONDER, Leandro. A derrota da dialética. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

Artigos: sobrenome(s) do(s) autor(es) (caixa alta), letras iniciais de seu(s) nome(s), título dos artigos, títulos da revista em itálico, cidade, volume, número, número da página inicial e final do artigo. Mês e ano.

Exemplo: SANTOS, Milton. A revolução tecnológica e o território: realidades e perspectivas. Terra Livre, São Paulo: AGB-Nacional, n. 9, p. 7-17, jul-dez 1991.

Capítulos de livro: AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In AUTOR DO LIVRO. Título do livro. Edi-ção. local de publicação (cidade): editora, data (ano). Páginas inicial e final do capítulo.

Artigos de jornais: AUTOR DO ARTIGO. Título do artigo. Nome do jornal, local de publicação (cidade), data (dia, mês e ano). Número ou título do caderno, seção ou suplemento, páginas inicial e final do arti-go.

Dissertação/teses: sobrenomes(s) do(s) autor(es)(caixa alta), letras iniciais do(s) nome(s), título do traba-lho (itálico): subtítulo (redondo), número de folhas ou volume. Categoria (grau e área de concentração) - Instituição, data (ano).

Citação de documentos, anuários, CD-ROM, internet, FTP e outros não esclarecidos aqui, o(s) autor(es) deve(m) seguir as normas da ABNT. Em caso de dúvidas, entre em contato O conselho editorial e o DE-PEXT, na revisão do texto, podem fazer ajustes para melhor clareza para o leitor.

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