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A Pedagogia da Democracia de Paulo Freire33A PEDAGOGIA DA DEMOCRACIA DE PAULO FREIREGT 5 Estado e PolticaVnia Medeiros Gasparello - UERJE ns estamos ainda no processo de aprender como fazer democracia. E a luta por ela passa pela luta contra todo tipo de autoritarismo (Freire, 2000a, p. 136). Falar no pensamento e na prtica de Paulo Freire, seja enquanto intelectual, educador, Secretrio Municipal de Educao, ser humano, e tantos outros papis assumidos por esse homem pblico no real sentido da palavra, estar falando de uma prxis pedaggica-poltica e epistemolgica profundamente democrtica. Isto porque considero que a sua obra e vida testemunham sempre a sua clara opo poltica contra qualquer tipo de autoritarismo, desrespeito, injustia, desigualdade, etc. A filosofia de Freire, ao contrrio, se posiciona a favor da liberdade, da justia, da tica e da autonomia do ser humano, da escola, da sociedade. Mais ainda, Freire percebe que a democracia no acontece de um hora para outra, por decreto, por uma concesso de uma autoridade que se autointitula democrtica, ou apenas quando a sociedade deixar de ser capitalista. Ele entende que a democracia, a liberdade, a autonomia, um processo. Mas no um processo de cima para baixo, e sim uma conquista conjunta, coletiva, que exige respeito, dilogo e poder de deciso a todos que participam dessa caminhada. Um processo que faz parte da prpria humanizao do ser humano, da sua vocao para ser mais, segundo Freire. Uma vocao que atua em condies concretas e que na sua prxis vai partejando o novo, j que o ser humano um ser molhado de histria, como gosta de dizer, ou seja, ...um ser finito, limitado, inconcluso, mas consciente de sua inconcluso. Por isso, um ser ininterruptamente em busca, naturalmente em processo (Freire, 2001, p.18). Nesse sentido, importante resgatar a teoria e a prtica de Paulo Freire num momento em que estamos vivenciando um cenrio poltico-social extremamente antidemocrtico, excludente, no qual a liberdade apenas entendida como liberdade de mercado. Quando a ideologia neoliberal est sendo veiculada como o nico discurso possvel. Quando no h espao para o dilogo. Numa sociedade onde ser mais pode ser confundido com ter mais. Quando os governantes continuam a desrespeitar a coisa pblica, os(as) professores(as), os alunos pobres e os trabalhadores da educao. Quando a democracia da sociedade e a autonomia da escola e do seres humanos continuam a ser um sonho:Um desses sonhos para que lutar, sonho possvel mas cuja concretizao demanda coerncia, valor, tenacidade, senso de justia, fora para brigar, de todas e de todos os que a ele se entreguem, o sonho por um mundo menos feio, em que as desigualdades diminuam, em que as discriminaes de raa, de sexo, de classe sejam sinais de vergonha e no de afirmao orgulhosa ou de lamentao puramente cavilosa. No fundo, um sonho sem cuja realizao a democracia de que tanto falamos, sobretudo hoje, uma farsa (Freire, 2001, p.25).E talvez uma das formas de lutar por esse sonho seja reafirmar o carter democrtico do pensamento e da prxis freireana, tornando pblico que possvel pensar e atuar de uma forma diferente da ideologia e da prtica neoliberal. Paulo Freire, quando assumiu a Secretaria Municipal de Educao de So Paulo, de 1989 a 1991, na gesto da Prefeita Luiza Erundina, do PT, mostrou que possvel lutar para mudar a cara da escola, como costumava dizer, lutar por uma escola pblica, popular e democrtica. E as propostas e aes concretizadas durante a sua administrao e de quem o substituiu Aps dois anos de gesto na Secretaria Municipal de Educao, Paulo Freire deixou o cargo, como quem saindo fica, para voltar a se dedicar aos seus estudos e livros. Contudo, quem o substituiu continuou com a mesma proposta de trabalho., o Professor Mrio Srgio Cortella, s podem ser melhor compreendidas dentro do contexto de toda a obra de Paulo Freire. J que, nesse autor, teoria e prtica no so dois plos distintos, estanques, separados, mas so, antes, aes que esto interligadas e que se recriam a todo momento.Dessa forma, inicialmente discuto um pouco sobre a problemtica da democracia na nossa sociedade, no intuito de destacar esse conceito na obra de Paulo Freire, pelo fato de a considerar uma marca fundamental da sua praxis. Num momento posterior, tive como objetivo demonstrar a coerncia dessa teoria com os princpios e aes que nortearam a administrao de Freire como secretrio municipal de educao da cidade de So Paulo.A democratizao como pedagogia da sociedadeA questo da democracia no uma questo nova, desde a Antigidade esse debate est presente na cena poltica e nos escritos daqueles que procuraram descrever e/ou filosofar sobre determinadas prticas sociais. Tambm no uma questo simples, pois cada perodo histrico e seus intrpretes destacaram aspectos diferentes dessa temtica. Nesse sentido, esse trabalho no tem a pretenso de realizar um longo tratado sobre todos os conceitos j discutidos em torno da democracia. Deseja apenas chamar a ateno para algumas discusses mais recentes em relao a esse tema, a fim de melhor situar porque considero a pedagogia de Paulo Freire democrtica. Mesmo porque acredito que o hoje, como Freire, est molhado de histria, ou seja, uma possibilidade de resultado de discusses e prticas anteriores, antecipando um determinado-indeterminado porvir.Segundo Bobbio (1994, pp. 37-38): inegvel que historicamente democracia teve dois significados prevalecentes, ao menos na origem, conforme se ponha em maior evidncia o conjunto das regras cuja observncia necessria para que o poder poltico seja efetivamente distribudo entre a maior parte dos cidados, as assim chamadas regras do jogo, ou o ideal em que um governo democrtico deveria se inspirar, que o da igualdade. base dessa distino costuma-se distinguir a democracia formal da substancial, ou, atravs de uma outra conhecida formulao, a democracia como governo do povo da democracia como governo para o povo.A sociedade capitalista moderna se autodenominou democrtica, afirmando que defendia princpios de liberdade, igualdade e fraternidade para todos os cidados. Contudo, essa democracia liberal uma democracia apenas formal, na medida em que estes trs princpios, na prtica, s so vlidos para aqueles que fazem parte do mundo ocidental da minoria burguesa, branca e masculina heterossexual. Ou seja, a liberdade vista apenas como liberdade de mercado, no qual s aqueles que detm o poder econmico possuem tambm o poder de opo e de deciso. A desigualdade de oportunidades econmicas, polticas, sociais e culturais uma das grandes marcas da nossa poca. E atualmente esta desigualdade aparece como um valor positivo:O surgimento do neoliberalismo aps a Segunda Guerra e sua posterior consolidao a partir da dcada de 1980 trazem consigo um formidvel ataque contra o igualitarismo e a solidariedade coletivista em quaisquer de suas formas: desde a aparentemente mais benigna, o Ministrio do Bem-estar das sociais-democracias europias, at a mais virulenta (a juzo dos idelogos neoliberais) corporificada no modelo sovitico vigente na Unio Sovitica e nos pases do Leste Europeu. Ambas as variantes, nas palavras de Hayek, se movimentavam em prol de um mesmo objetivo: a construo de uma sociedade de iguais. Eram, por isso mesmo, rotas alternativas que desembocavam em um mesmo desastre civilizatrio: a servido moderna (Boron, 2000, p.55). Em relao fraternidade, podemos dizer que ela sempre foi uma palavra meramente formal, sem significado, ausente do conjunto de prticas dominantes da vida social desde o incio do capitalismo. E nesses tempos neoliberais se tornou ainda mais sem sentido, na medida em que ... o capitalismo agora aparece como o inocentamento da economia, como a essncia naturalmente egosta e aquisitiva do homem (Boron, 2000, p.52). Dessa maneira, essa pretensa natureza humana egosta no combina com gestos fraternos e solidrios, mesmo que, na vida cotidiana, que complexa e contraditria, possamos perceber exemplos de egosmo e de solidariedade. O problema que se coloca que o individualismo e as aes egostas tm sido amplamente justificados nessa ideologia neoliberal.Portanto, inicialmente estou procurando ressaltar o carter formal dessa democracia burguesa, que apesar de possuir um discurso que se pretende democrtico e determinadas regras polticas, as chamadas regras do jogo, como eleies livres e peridicas, direitos e liberdades individuais, etc., no uma democracia cujo governo seja do povo e/ou para o povo. Antes, privilegia apenas um determinado grupo social, como j foi apontado anteriormente: rico, branco, masculino e heterossexual. A desigualdade e a falta de liberdade e fraternidade em relao aos pobres, negros, mulheres, homossexuais, e tantos outros grupos que formos capazes de listar aqui, uma constante na vida social. Entretanto, a luta por maior igualdade de direitos, liberdade, etc., ou seja, por mais democracia, est presente nos diversos movimentos sociais encabeados por esses grupos oprimidos ao longo da histria. A democracia liberal recebe presses de vrios segmentos sociais e tambm luta para manter a sua hegemonia, mesmo tendo que fazer concesses em determinados momentos.Um desses momentos importantes da nossa histria para a reflexo sobre a democracia que queremos foi a vigncia do chamado socialismo real na antiga Unio Sovitica e no Leste Europeu. Sociedades que se constituram pretendendo ser socialistas e democrticas na medida em que acabavam com a propriedade privada dos meios de produo, mas onde, na verdade:A burocracia foi, de fato, a classe privilegiada: o supervit da produo, arrancado populao trabalhadora atravs de explorao implacvel, vinha beneficiar a burocracia, tanto na forma de altos nveis de consumo, como na forma de acumulao com a finalidade exclusiva de aumentar a fora do Partido/Estado. Alm disso, a burocracia estava desempenhando o papel de classe dominante em relao produo, pois estava encarregada de administrar o processo de produo e de apossar-se de seu supervit (Castoriadis, 1985, p.16). Este socialismo continuou mantendo um pequeno grupo dominante no poder econmico e poltico-social: a burocracia. Para o povo, continuava uma vida sem liberdade poltica, sem liberdade de expresso artstica e cultural, sem igualdade econmica e de direitos sociais. Sem participao e poder de deciso. No foi por acaso que esse sistema social se desestruturou. Como afirmou Coutinho(1999, p.64): Estou plenamente convencido de que no h soluo para a humanidade fora da democracia. A experincia do Leste Europeu mostrou isto cabalmente. Mas h hoje uma disputa sobre o que democracia. Como, ento, continuar a lutar por uma democracia substantiva, na qual o governo seja do povo e para o povo ? Considero que inicialmente o conceito dessa democracia que queremos deveria ficar mais claro. Nesse sentido, reafirmo a democracia que estou defendendo e que acredito estar presente na obra de Paulo Freire: um governo do povo e para o povo. Isto significa dizer que todo governo tambm um autogoverno, uma prtica de sujeitos autnomos, livres, com igualdade de direitos e deveres, mas tambm fraternos, solidrios, amorosos. Falar em autogoverno no desacreditar na representatividade, pois a participao direta em todas as questes polticas e sociais no mundo em que vivemos impensvel, mas defender uma organizao na qual os sujeitos realmente tenham igualdade e liberdade de participao ... em todos os processos decisrios que dizem respeito sua vida cotidiana, sejam eles vinculados ao poder do Estado ou a processos interativos cotidianos, ou seja, em casa, na escola, no bairro, etc (Oliveira, 2000, p.11).Dessa forma, estou procurando destacar que uma sociedade realmente democrtica no se constitui atravs de um governo que se autointitule democrtico e tente fazer um governo para o povo. A democracia no uma doao de algum, seja de um governante, de um partido poltico ou ainda de uma burocracia estatal, mas um governo do povo, que exige a sua participao permanente em todos os processos decisrios da vida social. tambm um governo para o povo, e no apenas para uma pequena parcela da sociedade. O que no significa dizer que seja uma ditadura da maioria, pois deve resguardar os direitos de todos. Uma utopia ? Talvez. Mas no possvel ... sequer pensar em transformar o mundo sem sonho, sem utopia, sem projeto.(...) Os sonhos so projetos pelos quais se luta (Freire, 2000b, p. 53-54).E em toda a obra de Paulo Freire encontramos a defesa de uma ao libertadora da opresso social, dialgica, em que: Falar, por exemplo em democracia e silenciar o povo uma farsa. Falar em humanizao e negar os homens uma mentira (Freire, 1981, p.96). Ou seja, para esse autor a tarefa de todo ser humano ser mais, se humanizar, se tornar senhor de si, autnomo, consciente, sujeito da histria. No entanto, ele no confunde autonomia com auto-suficincia, pois sempre afirmou que ningum se liberta sozinho, e sim que os homens se libertam em comunho. Mais ainda:A libertao, por isto, um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto um homem novo que s vivel na e pela superao da contradio opressores-oprimidos, que a libertao de todos. A superao da contradio o parto que traz ao mundo ste homem novo, no mais opressor; no mais oprimido, mas homem libertando-se (Freire, 1981, p.36; grifos meus). Os destaques que fiz nessas palavras de Freire foi para chamar a ateno do carter processual da libertao e da democratizao que ele evidencia. Outrossim, para a percepo de que esse processo no pode apenas ser uma luta individual ou de um determinado grupo social, embora possa e/ou deva comear por um certo grupo - o dos oprimidos, ou o das chamadas minorias - mas tem que ser um processo coletivo de libertao, de todos e para todos. Assim:As chamadas minorias , por exemplo, precisam reconhecer que, no fundo, elas so a maioria. O caminho para assumir-se como maioria est em trabalhar as semelhanas entre si e no s as diferenas e assim, criar a unidade na diversidade, fora da qual no vejo como aperfeioar-se e at como construir-se uma democracia substantiva, radical (Freire, 1994, p.154). a partir dessa percepo, da unidade na diversidade, coerente com toda a sua obra, que Freire fala de multiculturalismo: fenmeno que implica a convivncia num mesmo espao de diferentes culturas, ou seja, ... uma criao histrica que implica deciso, vontade poltica, mobilizao, organizao de cada grupo cultural com vistas a fins comuns. (...) Que demanda uma nova tica fundada no respeito s diferenas (Freire, 1994, p. 157). Que demanda uma tica democrtica. Essa pedagogia freireana, que foi nomeada por ele em diferentes momentos de pedagogia do oprimido, pedagogia da autonomia, pedagogia da esperana, etc., continuou sempre a ser uma pedagogia: que tem de ser forjada com ele (o oprimido) e no para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperao de sua humanidade. Pedagogia que faa da opresso e de suas causas objeto da reflexo dos oprimidos, de que resultar o seu engajamento necessrio na luta por sua libertao, em que esta pedagogia se far e refar (Freire, 1981, p. 32).E um dos grandes equvocos que Freire acentuou a:Desconfiana de que o povo seja capaz de pensar certo. De querer. De saber.(...) Comportam-se, assim, como quem no cr no povo, ainda que nele falem. E crer no povo condio prvia, indispensvel, mudana revolucionria. Uma revoluo se reconhece mais por esta crena no povo, que o engaja, do que por mil aes sem ela (Freire, 1981, p. 51).Nesse pargrafo, fica claro o comprometimento desse autor com o povo, com os oprimidos, com as minorias, com os que mais sofrem com a falta de democracia na sociedade. um comprometimento real porque no pretende lutar pela sua libertao sem eles, mas com eles. Essa questo central na prxis freireana, pois ... se no autolibertao ningum se liberta sozinho, tambm no libertao de uns feita por outros (Freire, 1981, p.58). E essa prxis exige confiana no povo, exige que todos sejam sujeitos no processo de libertao e democratizao da sociedade.Quando Freire fala em pedagogia, ele no est falando apenas das relaes que se estabelecem na escola e na sala de aula. A sua pedagogia est relacionada a todo esse contexto de opresso social e de falta de democracia que estamos apontando. Toda educao poltica, assim como toda poltica educativa. No existe neutralidade. Portanto, o seu mtodo dialgico, problematizador, no apenas um mtodo ou uma teoria pedaggica, mas uma prxis que tem como objetivo libertar a opresso atuante na nossa sociedade:Todo o nosso esforo neste ensaio foi falar desta coisa bvia: assim como o opressor para oprimir, precisa de uma teoria da ao opressora, os oprimidos para libertar-se, igualmente necessitam de uma teoria de sua ao (Freire, 1981, p. 217).E essa teoria da ao dialgica que defende uma praxis mais democrtica, seja na escola ou nas diversas relaes sociais nas quais os seres humanos atuam. Isto porque, no dilogo, rompe-se com esquemas verticais de relaes, com relaes de cima para baixo, com relaes autoritrias: Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os argumentos de autoridade j no valem (Freire, 1981, pp. 78-79). Para Freire, o dilogo restabelece o direito do ser humano pronunciar o mundo, transform-lo e se humanizar. O dilogo pressupe compromisso com os homens, um compromisso amoroso, tico, humilde, grvido de f e de esperana na humanidade e nas suas possibilidades de libertao e de democratizao. Pois, Ao fundar-se no amor, na humildade, na f nos homens, o dilogo se faz uma relao horizontal, em que a confiana de um plo no outro conseqncia bvia (Freire, 1981, p.96).Portanto, a pedagogia de Freire no pode ser percebida apenas como uma crtica educao bancria, tradicional e autoritria, ou como um mtodo rpido de alfabetizao de jovens e adultos, e sim, como venho acentuando, como uma prxis que comporta uma tica pedaggica-poltica e epistemolgica profundamente democrtica:O respeito autonomia e a dignidade de cada um um imperativo tico e no um favor que podemos ou no conceder uns aos outros. (...) nesse sentido tambm que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialgicos aprendem e crescem na diferena, sobretudo, no respeito a ela, a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente ticos. preciso deixar claro que a transgresso da eticidade jamais pode ser vista como virtude, mas como ruptura com a decncia. O que quero dizer o seguinte: que algum se torne machista, racista, classista, sei l o qu, mas se assuma como transgressor da natureza humana. No me venha com justificativas genticas, sociolgicas ou histricas ou filosficas para explicar a superioridade da branquitude sobre a negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patres sobre os empregados. Qualquer discriminao imoral e lutar contra ela um dever por mais que se reconhea a fora dos condicionamentos a enfrentar (Freire, 1996, pp. 66-67). A citao longa, porm considero que ela se justifica pela clareza como o autor se coloca e que vem reafirmar a sua opo tica e democrtica. E para continuar o nosso dilogo, importante destacar um desses momentos fecundos dessa luta por um mundo menos feio, mais democrtico, com mais respeito autonomia do ser humano, da escola, da sociedade: a sua prxis poltica-administrativa enquanto homem pblico A sua atuao como Secretrio Municipal de Educao de So Paulo no foi a primeira vez que assumiu um cargo dessa natureza. Freire atuou em vrios momentos na vida pblica: a superintendncia do SESI(Servio Social da Indstria), a participao nos governos de Miguel Arraes(em Pernambuco), a direo do Departamento de Extenso Cultural da Universidade de Recife, a presidncia da Comisso Nacional de Cultura Popular e a coordenao do Plano Nacional de Alfabetizao de Adultos (ambas durante o governo Goulart); a assessoria outros governos quando esteve exilado, etc., quando assumiu a Secretaria Municipal de Educao da cidade de So Paulo.Lutando por uma administrao poltica-pedaggica democrticaNo governo municipal, aproveito o poder que dele decorre para realizar, no mnimo, parte do velho sonho que me anima. O sonho de mudar a cara da escola. O sonho de democratiz-la, de superar o seu elitismo autoritrio, o que s pode ser feito democraticamente. Imagine voc se eu pretendesse superar o autoritarismo da escola autoritariamente (Freire, 2000a, p.74). bom lembrar que a administrao de Freire na Secretaria Municipal de Educao aconteceu quando o Partido dos Trabalhadores assumiu pela primeira vez a Prefeitura da cidade de So Paulo, e com uma mulher, nordestina, Luza Erundina, assumindo o cargo de Prefeita. Essa conjuntura poltica me faz recordar uma feliz expresso desse autor: o indito vivel Expresso utilizada por Freire em Pedagogia da Esperana e explicada em nota por Ana Maria Arajo Freire. Em outro livro, fruto de um seminrio da Secretaria Municipal de Educao de Porto Alegre, Utopia e Democracia na Educao Cidad, 2000, Jos Clvis de Azevedo, Pablo Gentili et al (orgs), Ed. Da Universidade/UFRGS, Ana Maria Freire resgata esse termo num texto de sua autoria.. Talvez ningum imaginasse uma tal situao poltica como possvel, mas aconteceu. E foi nesse contexto indito e grvido de possibilidades que Paulo Freire se comprometeu, mais uma vez, com os oprimidos, com as minorias, com a democratizao da escola e da sociedade. Lutando pela mudana da cara da escola, por uma escola competente, democrtica, sria e alegre (Freire, 2000, p. 35). Lutando por uma democracia radical, nas palavras de Lima (2000), ou seja, por uma concepo de organizao e de escola que considera os indivduos enquanto sujeitos do ato de organizar-se. No meu entender, a marca da gesto de Paulo Freire como Secretrio Municipal de Educao de So Paulo, como venho apontando, foi o seu carter democrtico e coerente com toda a sua teoria e prtica anteriores. Portanto, a noo de escola pblica popular, modelo poltico-pedaggico desta administrao, est relacionada com a defesa de uma escola realmente democrtica, que seja do povo e para o povo. a luta por uma escola de qualidade para o povo, mas que todos que faam parte dessa escola tenham tambm poder de deciso sobre ela. Mais uma vez, a defesa da autonomia do ser humano, da escola, da sociedade. Uma autonomia que se desenvolve com os outros, e no de forma isolada. Mais uma vez, a luta contra qualquer tipo de autoritarismo, de pacotes de cima para baixo, to freqentes nas relaes das Secretarias de Educao com as escolas, ou mesmo das(os) diretoras(es) com os(as) professores(as), ou ainda em relao aos alunos e merendeiras, serventes, etc. tentar mudar a cara da escola, tornando-a mais democrtica, seja no nvel das relaes sociais de poder, seja na exigncia de uma escola competente em que todos participem como sujeitos desse processo.Dessa forma, para ressaltar o carter democrtico desta administrao, procurarei desenvolver os quatro objetivos que nortearam as suas aes (Freire, 2000, pp. 14-15):1)Ampliar o acesso e a permanncia dos setores populares virtuais nicos usurios da educao pblica;2)democratizar o poder pedaggico e educativo para que todos, alunos funcionrios, professores, tcnicos educativos, pais de famlia, se vinculem num planejamento autogestionado, aceitando as tenses e contradies presentes em todo esforo participativo, porm buscando uma substantividade democrtica; 3)incrementar a qualidade da educao, mediante a construo coletiva de um currculo interdisciplinar e a formao permanente do pessoal docente;4)finalmente, o quarto grande objetivo da gesto no poderia ser de outra maneira contribuir para eliminar o analfabetismo de jovens e adultos em So Paulo. 1)Ampliar o acesso e a permanncia dos setores populares na escolaApesar de na letra da lei aparecer que todo cidado brasileiro tem direito escola pblica e de qualidade, sabemos que essa afirmativa mais um exemplo da democracia formal que existe na nossa sociedade. Dessa maneira, em So Paulo, como nos outros estados e cidades brasileiras, a oferta de vagas ainda insuficiente. E pior: daqueles que conseguem entrar na escola, muitos so expulsos dela, no dizer de Paulo Freire (2000a, pp. 50-51):Em primeiro lugar, consideramos o nmero assombroso de crianas em idade escolar que ficam fora da escola, como se ficar ou entrar fosse uma questo de opo. So proibidos de entrar, como mais adiante muitas das que conseguem entrar so expulsas e delas se fala como se tivessem se evadido da escola. No h evaso escolar, h expulso. Portanto, lutar pela ampliao e conservao do espao pblico escolar foi uma das metas dessa administrao que se comprometeu com o povo. Alm disso, a luta contra a expulso do aluno pobre da escola est relacionado tambm a mudana qualitativa do currculo que foi empreendida e garantia do maior poder de participao e deciso na vida escolar. Esses pontos discutiremos mais adiante, o que importa perceber que esses quatro objetivos esto interrelacionados, que embora tenham se constitudo em diferentes frentes de trabalho, possuem um mesmo objetivo: mudar a cara da escola, torn-la mais democrtica. Um primeiro ponto a ser destacado, que devido ao carter anti-democrtico das gestes anteriores, que no respeitaram o espao pblico, a gesto de Paulo Freire encontrou escolas em condies fsicas bastante precrias, exigindo reparo e restaurao imediatos, pois (Freire, 2000a, pp. 34-35):... precisamos demonstrar que respeitamos as crianas, suas professoras, sua escola, seus pais, sua comunidade, que respeitamos a coisa pblica, tratando-a com decncia. S assim podemos cobrar de todos o respeito tambm s carteiras escolares, s paredes da escola, s suas portas. S assim podemos falar de princpios, de valores. O tico est muito ligado ao esttico. No podemos falar da boniteza do processo de conhecer se sua sala de aula est invadida de gua, se o vento frio entra decidido e malvado sala a dentro e corta seus corpos pouco abrigados. Neste sentido que reparar rapidamente as escolas j mudar um pouco sua cara, no s do ponto de vista material, mas, sobretudo, de sua alma.(...) Reparar, com rapidez, as escolas um ato poltico que precisa de ser vivido com conscincia e eficcia.Dessa forma, a democratizao da escola est intimamente relacionada a materialidade desse espao escolar. O material e o imaterial, o aspecto quantitativo e o qualitativo, o espao escolar e a sua alma, no so plos distintos, separados, mas interligados e complementares. Respeitar a coisa pblica dar condies concretas e criar um ambiente bonito e interessante para que a comunidade escolar possa trabalhar, estudar, viver, amar, ser mais. E essa falta de condies materiais, que afeta a alma da educao tambm se manifesta na falta de respeito ao trabalho do professor atravs de seus baixos salrios e dos escassos recursos materiais educativos disponveis para o professor e o aluno. Consciente desses problemas, Freire lutou pela melhoria salarial dos professores, tendo ocorrido um aumento substantivo deste na sua gesto; e tambm incrementou os recursos materiais nas escolas.Outro problema que dificultava e muito as mudanas que a sua administrao desejava incentivar nas escolas era a burocracia escolar (Freire, 2000a, p.34):Os mecanismos burocrticos que a esto, o sem nmero de papis um tomando conta do outro a morosidade com que andam de um setor ao outro, tudo contribui para obstaculizar o trabalho srio que fazemos. A uma administrao como a do PT se impe uma transformao radical da mquina burocrtica. Nesse sentido, a sua gesto procurou alternativas para esses impasses, criando, por exemplo, frentes de trabalho para executar tarefas de uma forma mais rpida e correta, que envolvia pessoal de, no mnimo, trs secretarias municipais diferentes. No vou me alongar nessas questes. O que importa chamar a ateno aqui, que a gesto de Paulo Freire no se intimidava com as dificuldades, mas percebia que a democratizao e a mudana da cara da escola era um processo que exigia muita luta e criatividade. Pois essa burocracia era fruto de uma concepo de poder bastante distinta da autogesto escolar que a sua equipe desejava implementar e que passo a analisar agora.2)Democratizar o poder pedaggico e educativoEsse objetivo talvez seja um dos mais importantes e que mais diferenciam a administrao de Freire em relao a outras gestes. a marca do respeito autonomia do ser humano, democratizao do poder de participao e deciso a toda a comunidade escolar, a marca da sua democracia radical. Na sua gesto, foram implementados os conselhos de escola, que embora tenham sido criados na administrao de Guiomar Namo de Mello no governo de Mrio Covas (1983-1985), no tinham sido ainda, de fato, implementados. Os conselhos de escola se justificam porque:Para ns, a participao no pode ser reduzida a uma pura colaborao que setores populacionais devessem e pudessem dar administrao pblica. Participao ou colaborao, por exemplo, atravs dos chamados mutires por meio dos quais se reparam escolas, creches, ou se limpam ruas ou praas. A participao, para ns, sem negar este tipo de colaborao, vai mais alm. Implica, por parte das classes populares, um estar presente na histria e no simplesmente estar nela representadas. Implica a participao poltica das classes populares atravs de suas representaes no nvel das opes, das decises e no s do fazer o j programado. Por isso que uma compreenso autoritria da participao a reduz, obviamente, a uma presena concedida das classes populares a certos momentos da administrao. Para ns, tambm, que os conselhos de escola tm uma real importncia enquanto verdadeira instncia de poder na criao de uma escola diferente. Participao popular para ns no um slogan mas a expresso e, ao mesmo tempo, o caminho da realizao democrtica (Freire, 2000a, p.75)Com o restabelecimento do Regimento Comum das Escolas, os conselhos, de carter deliberativo, devem aprovar o plano escolar e elaborar a poltica oramentria da escola. Alm disso, cada escola pode gestar projetos ...pedaggicos prprios que com o apoio da administrao possam acelerar a mudana da escola (Freire, 2000, p.79). Outrossim, com o apoio da Unio Municipal dos Estudantes Secundaristas, iniciou-se a formao dos grmios estudantis nas escolas(p.79). Dessa forma, diretores, professores, pais de alunos, alunos, merendeiras, etc., enfim, toda a comunidade escolar tem direito voz e voto nos conselhos de escola e em outras instncias polticas. Ou seja, uma escola do povo e para o povo.Contudo, a implementao dessas mudanas na escola no foi e no um processo fcil, porm lento e que esbarra em vrias dificuldades. A maior delas talvez seja falta de cultura democrtica da populao brasileira e daqueles que atuam e vivenciam a escola. Diretoras acostumadas a apenas mandar e receber ordens dos diversos governamentais, professores no confiando nos pais de alunos e vice-versa, etc., so alguns dos exemplos que podemos citar. Entretanto, essa cultura anti-democrtica, mais que um impecilho para a mudana, foi e deve ser um motivo a mais para se lutar. 3) Incrementar a qualidade da educao, mediante a construo coletiva de um currculo interdisciplinar e a formao permanente do pessoal docenteEm relao formao permanente do professor, um princpio se destaca: O educador o sujeito de sua prtica, cumprindo a ele cri-la e recri-la (Freire, 2000a, p.80). Dessa maneira, o programa de formao de educadores condio para o processo de reorientao curricular da escola (p.80).Portanto, a mudana curricular que essa gesto procurou realizar no foi mais um pacote de currculos e programas que a educao est to acostumada a receber, e sim uma tentativa de construo coletiva de currculos que realmente estejam ligados aos interesses da comunidade de cada escola. Um currculo mais democrtico, que levasse em conta o saber de experincia feito de professores e de alunos. E no simplesmente um currculo que utilize modelos prontos e formais de disciplinas e formas de avaliao que desprezam completamente esse saber. Assim, alm da valorizao da participao do professor, o currculo deve respeitar (p.42):... a forma de estar sendo de seus alunos e alunas, seus padres culturais de classe, seus valores, sua sabedoria, sua linguagem. Uma escola que no avalie as possibilidades intelectuais das crianas populares com instrumentos de aferio aplicados s crianas cujos condicionamentos de classe lhes do indiscutvel vantagem sobre aquelas. Vrias medidas foram tomadas com esses objetivos, tais como a nfase na formao do professor que se faz na prpria escola, seja atravs de pequenos grupos ou de grupos maiores, resultantes do agrupamento de escolas prximas. Este trabalho consistia no ...levantamento de temas de anlise da prtica que requerem fundamentao terica e a reanlise da prtica pedaggica considerando a reflexo sobre a prtica e a reflexo terica (p. 81). O prprio Paulo Freire teve o empenho de se encontrar pessoalmente com diretoras, coordenadores pedaggicos, e com as professoras das grandes reas da cidade para melhor explicitar a poltica pedaggica desta gesto. Outras atividades foram a realizao de plenrias pedaggicas, grandes encontros que ocorriam aos sbados entre dirigentes da Secretaria Municipal de Educao de diferentes instncias e a comunidade. Contudo, meu propsito aqui no o de descrever todas as atividades desenvolvidas nesta gesto, que foram muitas, mas apenas situar o carter democrtico das mesmas. 3)Contribuir para eliminar o analfabetismo de jovens e adultos em So PauloO problema do analfabetismo de jovens e adultos foi uma preocupao constante na prxis freireana, e representa uma das bandeiras de luta pela qual este autor mais conhecido. Nesse sentido, a sua gesto no poderia ficar de fora dessa luta rdua pela democratizao de um direito social, o conhecimento escolar, para aqueles que por vrias razes foram expulsos da escola.(Freire, 2000a, p.68):Cabe ainda ressaltar que, para ns, o trabalho de alfabetizao, na medida em que possibilita uma leitura crtica da realidade, se constitui como um importante instrumento de resgate da cidadania e que refora o engajamento do cidado nos movimentos sociais que lutam pela melhora da qualidade de vida e pela transformao social.Nesse sentido, em 1990, Freire deu incio ao Movimento de Alfabetizao (MOVA) de So Paulo, um movimento junto aos grupos populares que j desenvolviam trabalhos de alfabetizao e junto tambm a igrejas e universidades interessadas nessa questo. Portanto, essa proposta procurou valorizar grupos populares que j realizavam trabalhos nessa rea, porm procurou ampliar essa participao junto a outros setores. Os objetivos do MOVA foram o de: desenvolver um processo de alfabetizao que possibilite aos educandos uma leitura crtica da realidade; contribuir para o desenvolvimento da conscincia poltica dos educandos e educadores envolvidos; e reforar o incentivo participao popular e a luta pelos direitos sociais do cidado, ressaltando o direito bsico educao pblica popular (p.69). Mais uma vez, o resgate da autonomia do cidado, do seu direito de participar ativamente na escola e na vida social. Por fim, resgatar a prxis poltica-pedaggica de Paulo Freire reviver e reafirmar a luta por uma sociedade e uma escola mais democrtica, humana, tica e fraterna. Referncias BibliogrficasBOBBIO, Norberto. 1994. Liberalismo e Democracia. Traduo: Marco Aurlio Nogueira. 5 ed. So Paulo: Brasiliense.BORON, Atlio A. 2000. Democracia e Neoliberalismo: histria de uma relao infeliz. In: AZEVEDO, Jos Clovis de. GENTILI, Pablo et al. (Orgs.). Utopia e Democracia na Educao Cidad. Porto Alegre: Ed. 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