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    on delillo

    onto mega

    Traduo

    aulo Henriques Britto

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    006nal do vero / incio do outono

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    Anonimato

    de setembro

    Havia um homem parado junto parede norte, quasnvisvel. As pessoas entravam em grupos de duas ou tr

    ficavam paradas no escuro e olhavam para a tela epois saam. s vezes mal chegavam a passar da portrupos maiores que entravam a esmo, turista

    tordoados, e olhavam e mudavam de posio e depoaam.

    No havia assentos na galeria. A tela era uma estruturolta, cerca de trs metros por quatro, no ficava elevadem no meio da sala. Era uma tela translcida e alguma

    essoas, no muitas, permaneciam tempo suficiente papara o outro lado da tela. Permaneciam mais u

    nstante e depois iam embora.

    A galeria era fria, iluminada apenas pelo fraco brilh

    inzento da tela. Junto parede norte a escurido euase completa, e o homem que estava sozinho levou mo em direo ao rosto, repetindo, muito devagar, esto de uma figura na tela. Quando a porta da galeria sbria deslizando e algum entrava, vinha um pouco de luefletida l de fora, onde havia pessoas reunidas, a cer

    istncia, examinando os livros de arte e cartes-postais

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    O filme era projetado sem dilogos nem msica, sem trilhonora. O guarda do museu ficava junto porta, e quandaam as pessoas por vezes olhavam para ele, tentandlhar em seus olhos, buscando alguma espcie dompreenso que se afirmasse entre eles e validasse su

    erplexidade. Havia outras galerias, vrios andares, nnha sentido permanecer numa sala isolada onde o qustava acontecendo, fosse o que fosse, levava um temp

    nfinito para acontecer.

    O homem parado junto parede ficou olhando para a tedepois comeou a se deslocar ao longo da pared

    djacente at o outro lado da tela para que pudesse vermesma cena com a imagem invertida. Ele via Anthon

    erkins estendendo a mo em direo porta de uarro, usando a mo direita. Sabia que Anthony Perkin

    saria a mo direita deste lado da tela e a esquerda dutro lado. Sabia disso mas precisava ver, e faminhando pela escurido ao longo da parede lateral nto se afastou um pouco dela para ver Anthony Perkinaquele lado da tela, o avesso, Anthony Perkins usando

    mo esquerda, a mo errada, para alcanar a porta de u

    arro e depois abri-la.

    Mas seria correto dizer que a mo esquerda era a mrrada? O que tornava aquele lado da tela menoerdadeiro que o outro?

    Veio um segundo guarda se untar ao primeiro e os do

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    caram algum tempo falando em voz baixa enquanto orta automtica se abria e entravam pessoas, corianas, sem crianas, e o homem voltou a seu lugar jun

    parede, onde permaneceu imvel, vendo Anthonerkins virar a cabea.

    O menor movimento de cmara era uma alterarofunda no espao e no tempo, mas naquele momentomara no estava se mexendo. Anthony Perkins esirando a cabea. Era como os nmeros inteiros. omem podia contar as etapas do movimento da cabee Anthony Perkins. Anthony Perkins vira a cabea einco movimentos discretos e no num nico gesontnuo. Era como tijolos num muro, que podem sontados com facilidade, e no como o voo de uma flechu um pssaro. Pensando bem, no era parecido co

    ada nem diferente de nada. A cabea de Anthony Perkinodando lentamente em torno do eixo do pescoomprido e fino.

    Apenas observando com muita ateno era possverceber esse fato. Por alguns minutos a ateno d

    omem no foi dispersa pela entrada e sada de outraessoas e ele conseguiu olhar para o filme com o grau d

    ntensidade necessrio. A natureza do filme permitia oncentrao total e tambm dependia dela. O ritm

    mplacvel do filme no tinha significado se a ele n

    orrespondesse uma ateno equivalente, o indivduo curau absoluto de alerta no traa o que era exigido. E

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    ermanecia imvel e olhava. No tempo que Anthonerkins levava para virar a cabea, parecia fluir uma sre ideias sobre cincia e filosofia e outras coisa

    nominadas, ou talvez ele estivesse vendo demais. Mara impossvel ver demais. Quanto menos havia para ve

    mais ele olhava, mais ele via. A questo era essa. Ver ue est aqui, finalmente olhar e saber que se eslhando, sentir o tempo passando, estar vivo para o qust acontecendo nos menores registros do movimento.

    odos se lembram do nome do assassino, Norman Batemas ningum se lembra do nome da vtima. Anthon

    erkins Norman Bates, mas Janet Leigh Janet Leigxige-se da vtima que tenha o mesmo nome que a atrue a representa. Janet Leigh que entra no mot

    solado que pertence a Norman Bates.

    le estava parado ali havia mais de trs horas, olhandra o quinto dia seguido que ele vinha ali e era enltimo dia da instalao, que depois seria encerrada

    evada para outra cidade ou guardada em um depsibscuro em algum lugar.

    Ningum que entrava ali parecia saber o que o esperavaertamente ningum esperava aquilo.

    O filme original era projetado em velocidade lenta dmodo que a exibio durasse vinte e quatro horas. O qu

    le estava vendo parecia ser cinema puro, tempo puro.

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    orror escancarado do velho filme de suspense eubsumido pelo tempo. Quanto tempo ele teria de ficarado ali, quantas semanas ou meses, antes que squema temporal do filme absorvesse o seu, ou isso eria comeado a acontecer? Ele se aproximou da tel

    olocando-se a cerca de trinta centmetros dela, vendares e fragmentos estticos, vislumbres de luz trmul

    Contornou a tela vrias vezes. Agora a galeria estavazia e ele podia posicionar-se em diferentes ngulos raus de afastamento. Andou para trs olhando, semprara a tela. Compreendia perfeitamente por que o filmstava sendo projetado sem som. Era preciso que foss

    mudo. Era preciso envolver o indivduo numa profundidadlm dos pressupostos normais, as coisas que ele suppresume e aceita sem questionar.

    Voltou parede norte, passando pelo guarda junto portO guarda estava presente mas no contava como umresena na sala. O guarda estava ali para no ser vist

    Aquele era o seu trabalho. O guarda estava de frente pabeira da tela porm no olhava para nada, olhava pa

    quilo para o que olham os guardas de museu, seja l

    ue for, quando uma sala est vazia. O homem junto arede estava presente, mas talvez para o guarda ele nontasse como uma presena, tal como o guarda nontava para ele. O homem estava ali havia vrios diaeguidos, durante perodos prolongados todos os dias,

    e qualquer modo estava de novo junto parede, nscurido, imvel.

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    le olhava para os olhos do ator deslocando-sentamente em suas rbitas de osso. Ser que smaginava vendo com os olhos do ator? Ou eram os olhoo ator que pareciam examin-lo?

    le sabia que havia de ficar ali at que o museu fechassentro de duas horas e meia, e depois voltaria na manheguinte. Viu dois homens entrarem, o mais velho coma bengala e um terno que parecia ter sido usado niagem, o longo cabelo branco formando uma trana n

    uca, talvez um professor emrito, talvez um estudioso dinema, e o homem mais jovem com uma camisa esport

    eans e tnis de corrida, o professor assistente, esguio, uouco nervoso. Os dois se afastaram da porta

    mergulharam na penumbra ao longo da parede adjacentle ficou observando-os por mais um momento, ocadmicos, cinfilos, estudiosos de teoria do cinemintaxe do cinema, cinema e mito, dialtica do cinem

    metafsica do cinema, enquanto Janet Leigh comeava e despir para o banho de sangue que se seguiria.

    Quando um ator movia um msculo, quando seus olhoiscavam, era uma revelao. Cada ao era dividida eomponentes to distintos da entidade que o observade via isolado de toda e qualquer expectativa.

    odo mundo estava olhando para alguma coisa. E

    lhava para os dois homens, eles olhavam para a tel

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    Anthony Perkins, pelo olho mgico, olhava para Janeigh se despindo.

    Ningum olhava para ele. Aquele era o mundo ideal qule talvez imaginasse. No fazia ideia de como os outros

    iam. No sabia muito bem como ele prprio se via. Earecia o que sua me via quando olhava para ele. Maua me havia falecido. Isso levantava uma questo pastudantes de grau avanado. O que restava dele para outros verem?

    ela primeira vez, no se incomodava por no estozinho ali. Aqueles dois homens tinham um bom motivara estar ali e ele se perguntava se estariam vendo o qule via. Mesmo se estivessem, tirariam concluseiferentes, encontrariam referncias numa ampla gama d

    mografias e disciplinas. Filmografia. A palavra outrora azia recuar a cabea como se para interpor uma distncntissptica entre ele e ela.

    ensou que talvez quisesse cronometrar a cena do banhe chuveiro. Em seguida pensou que isso era a ltim

    oisa que ele queria fazer. Sabia que era uma cena rpido filme original, menos de um minuto, era famosa p

    sso, e j assistira quela cena prolongada ali alguns diantes, toda ela reduzida a movimentos discretos, seuspense nem terror nem o pulsar nervoso do pio doruja. Os aros da cortina, era disso que se lembrava co

    mais clareza. Os aros da cortina do boxe rodopiando e

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    orno da vara quando a cortina arrancada, um momenue se perdia na velocidade normal, quatro aroodopiando lentamente acima do vulto cado de Janeigh, um poema perdido acima da morte infernal, epois a gua com sangue formando um redemoinho n

    alo do chuveiro, minuto a minuto, e por fim descendo.

    le estava ansioso para ver aquilo outra vez. Queria conts aros da cortina, talvez quatro, talvez cinco, um pouc

    mais ou um pouco menos. Sabia que os dois homens junparede adjacente tambm estariam assistindo co

    teno. Sentia que eles tinham algo em comum, ns trra isso que ele sentia. Era aquela rara sensao damaradagem gerada pelos eventos singulares, mesmue os outros no soubessem que ele estava presente.

    Quase ningum entrava na sala sozinho. Entravam erupos, em esquadres, arrastando os ps, parando plguns instantes junto porta e depois saindo. Um ou doe viravam e saam e depois os outros, esquecendo o quaviam visto nos segundos que levavam para virar e andm direo porta. Ele os via como integrantes de trupe

    eatrais. O cinema, pensou, uma coisa solitria.

    anet Leigh no longo intervalo de sua inconscincia. Eleia comeando a jogar o roupo no cho. Compreendela primeira vez que o preto e branco era o nico meara o cinema enquanto ideia, o cinema mental. Quasntendia por qu, mas no de todo. Os homens parado

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    erto dele saberiam por qu. Para aquele filme, naquespao frio e escuro, ele era completamente necessrio,reto e branco, mais um elemento neutralizador, um

    maneira de tornar a ao algo prximo vida bsica, umoisa a recuar para dentro de suas partes narcotizada

    anet Leigh no processo detalhado de no saber o qust prestes a acontecer com ela.

    nto eles saram, sem mais nem menos, j estavandando em direo porta. Ele no sabia como encarsse fato. Aquilo o atingia pessoalmente. A porta deslizobrindo-se para o homem da bengala e depois ssistente. Eles saram. Entediados, talvez? Eleassaram pelo guarda e saram. Precisavam de palavraara pensar. Era esse o problema deles. A ao sesenrolava devagar demais para acomodar

    ocabulrio de cinema de que eles dispunham. Ele nabia se isso fazia o menor sentido. Eles no conseguiaentir o pulsar do corao das imagens projetadaaquela velocidade. O vocabulrio de cinema de que eleispunham, pensou ele, no se adaptava a varas dortinas e aros de cortinas e ilhs. Tinham que pegar u

    vio, talvez? Eles se consideravam srios, mas nram. E quem no srio no tem nada que estar ali.

    nto ele pensou: srio a respeito de qu?

    Algum andou at um ponto da sala e projetou umombra sobre a tela.

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    Havia algo de esquecimento naquela experincia. Eueria esquecer-se do filme original ou ao menos reduzssa lembrana a uma referncia distante, que ntrapalhasse. Havia tambm a lembrana dessa versista e revista ao longo de toda a semana. Anthonerkins como Norman Bates, pescoo de ave pernalt

    osto de ave em perfil.

    O filme fazia que se sentisse algum que assiste a ume. O significado desse fato lhe escapava. Ele ficava

    empo todo sentindo coisas cujo significado lhe escapavMas aquilo no era na verdade um filme, em sentidstrito, no. Era um vdeo. Mas era tambm um filme. Eentido mais amplo, ele estava assistindo a um filminema, uma imagem mais ou menos em movimento.

    O roupo dela finalmente se imobilizando sobre a tampa privada fechada.

    O mais moo queria ficar, ele pensou, com seus tnis dorrida gasto. Mas foi obrigado a seguir o tericadicional com o rabo de cavalo, para no correr o risce prejudicar seu futuro no mundo acadmico.

    Ou ento o corpo caindo na escada, uma cena aindistante, talvez horas antes de o detetive particula

    Arbogast, descer a escada de costas, com um corte fe

    o rosto, os olhos arregalados, os braos a rodar, umena que ele relembrava de algum dia naquela seman

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    alvez at ontem, era impossvel determinar os dias e aenas. Arbogast. O nome profundamente aninhado comma semente em algum nicho obscuro do hemisfrsquerdo do crebro. Norman Bates e o detetiv

    Arbogast. Eram os nomes que ele guardara ao longo do

    nos que haviam se passado desde que vira o filmriginal. Arbogast na escada, caindo para sempre.

    Vinte e quatro horas. O museu fechava s cinco e meia nmaioria dos dias. O que ele queria era uma situao eue o museu fechasse mas a galeria ficasse aberta. Eueria ver a projeo do filme do comeo ao fim em vin

    quatro horas consecutivas. Ningum poderia entrepois que a projeo comeasse.

    Aquilo que ele estava vendo era histria, de certo mod

    m filme que todo mundo conhecia. Divertiu-se com deia de que a galeria era como um lugar preservado, abana ou o tmulo silencioso de um poeta morto, umapela medieval. L est ele, o Motel Bates. Mas aessoas no veem isso. Elas veem movimenagmentado, fotogramas margem da vida aturdida. E

    ompreende o que elas veem. Elas veem uma sala dmorte cerebral em seis andares reluzentes atulhados dbras de arte. O filme original o que tem importncara eles, uma experincia comum a ser revivida nas telae televiso, em casa, com os pratos na pia.

    O cansao que ele sentia era nas pernas, horas e dias e

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    , o peso do corpo em p. Vinte e quatro horas. Queobreviveria, fisicamente e sob outros aspectos? Seria eapaz de sair andando pela rua depois de uma noite e uia ininterruptos vivendo naquele plano de tempadicalmente alterado? Em p no escuro, olhando pa

    ma tela. Olhando agora, vendo a gua danando diano rosto dela enquanto ela desliza ao longo da parede dzulejos estendendo a mo em direo cortina dhuveiro para se firmar e interromper o movimento de seorpo em direo ao ltimo suspiro.

    Uma espcie de dana no modo como a gua cai dhuveiro, um movimento ilusrio de balano ou oscilao

    le sairia na rua esquecido de quem era e de ondmorava, depois de vinte e quatro horas ininterruptas? O

    t mesmo nos horrios atuais, se a mostra fossstendida e ele continuasse voltando cinco, seis, seoras por dia, semana aps semana, seria possvel pale viver no mundo? Ele queria isso? Onde ficava o tal d

    mundo?

    le contou seis aros. Os aros girando em torno da vara dortina quando ela puxa a cortina para o cho junto cola. A faca, o silncio, os aros a girar.

    preciso prestar muita ateno para ver o que escontecendo sua frente. preciso trabalho, um esfor

    oncentrado, para ver aquilo para que voc est olhand

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    le estava hipnotizado por aquilo, pelas profundezaornadas possveis pelo movimento desacelerado, aoisas que havia para se ver, as profundezas das coisao fceis de deixar passar na maneira habitual uperficial de ver.

    Gente de vez em quando projetando sombras na tela.

    le comeou a pensar na relao entre uma coisa e outrAquele filme tinha a mesma relao com o filme originue o filme original tinha com a experincia de vida rea

    ra o distanciamento do distanciamento. O filme originra fico, aquilo era real.

    sso no faz sentido, pensou, mas talvez faa.

    O dia escorria, cada vez menos pessoas entravamDepois, quase ningum. No havia outro lugar em que euisesse estar, no escuro, junto quela parede.

    O quarto parece deslizar sobre trilhos atrs dersonagem. O personagem que est se mexendo, ma

    quarto que parece se mexer. Ele encontrava interessmais profundo numa cena em que s havia um nicersonagem para olhar, ou, talvez melhor ainda, nenhum.

    A escada vazia vista de cima. O suspense est tentande criar, mas o silncio e a imobilidade so mais forte

    ue ele.

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    le comeou a compreender, depois de todo esse tempue estava parado ali esperando por algo. O que seriara uma coisa fora de sua conscincia at aque

    momento. Ele estava esperando que uma mulhhegasse, uma mulher sozinha, algum com que

    udesse falar, ali, junto parede, aos cochichos, falmuito pouco, claro, ou ento mais tarde, em algum luga

    ocando ideias e impresses, o que eles tinham visto omo eles se sentiam em relao ao que fora visto. Era oo era? Ele estava pensando que uma mulher entrariacaria olhando por um tempo, at encontrar um lugar junparede, uma hora, meia hora, era o bastante, meia horra o suficiente, uma pessoa sria, falando em voz baixom um vestido claro de vero.

    abaca.

    Aquilo parecia real, paradoxalmente o ritmo era reaorpos se movendo musicalmente, quase sem se moveodecafonicamente, coisas quase no acontecendausa e efeito afastados um do outro de maneira tadical que parecia real a ele, do modo como todas a

    oisas do mundo fsico que no compreendemos shamadas de reais.

    A porta se abriu e havia um pouco de movimento na outxtremidade do andar, gente pegando a escada rolantm vendedor passando cartes de crdito na mquinutro jogando objetos dentro das sacolas grandes

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    legantes do museu. Luz e som, monotonia sem palavraugestes de uma vida no alm, um mundo do alm, o fastranho e luminoso que respira e come l fora, a coisue no est nos filmes.

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    1.

    A vida verdadeira no pode ser reduzida a palavras ditau escritas, por ningum, nunca. A vida verdadeira ocorruando estamos sozinhos, pensando, sentindo, perdidoa memria, autoconscientes em pleno devaneio, o

    momentos submicroscpicos. Ele, Elster, disse isso mae uma vez, de mais de uma maneira. Sua vida aconteci

    le disse, quando estava sentado numa cadeira olhandara uma parede lisa, pensando sobre o jantar.

    Uma biografia de oitocentas pginas no passa donjecturas mortas, ele disse.

    u quase acreditava quando ele dizia essas coisas. Eizia que fazemos isso o tempo todo, todos ns, noornamos ns mesmos por baixo do fluxo de pensamento

    imagens vagas, perguntando a ns mesmos quandamos morrer. assim que vivemos e pensamoabendo disso ou no. So esses os pensamentoisparatados que temos ao olhar pela janela do tremequenas manchas pardacentas de pnico meditativo.

    O sol queimava. Era isso que ele queria, sentir o calrofundo batendo em seu corpo, sentir o corpo em s

    esgatar o corpo daquilo que ele chamava nusea dNoticirio e Trfego.

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    Aquilo era o deserto, longe das cidades grandes e daidadezinhas dispersas. Ele estava ali para comer, dormsuar, para no fazer nada, para ficar sentado pensand

    Havia uma casa e fora dela s havia distncias, ne

    aisagens nem linhas de viso abrangentes, apenaistncias. Ele estava ali, disse ele, para parar de falaNo havia ningum com quem falar alm de mim. Ele fazsso de modo contido de incio, e nunca ao pr do sol. Nram gloriosos pores do sol de aposentadoria, de ttulosalores mobilirios. Para Elster, o pr do sol era um

    nveno humana, nossa maneira de disperceptualmente a luz e o espao em elementos deslumbramento. Ns olhvamos e nos deslumbrvamo

    Havia um tremor no ar quando as cores e massas de terem nome ganhavam definio, uma limpidez d

    ontornos e extenso. Talvez fosse a diferena de idadntre ns que me levava a pensar que ele sentia algiferente durante o crepsculo, uma inquietaersistente, no inventada. Isso explicaria o silncio.

    A casa era uma coisa hbrida e melanclica. Havia u

    elhado de metal corrugado encimando uma fachadevestida de ripas, com um caminho de pedras inacabadfrente e um deque protuberante acrescentado a um do

    ados. Era l que ficvamos sentados nessa hoilenciosa, o cu iluminado por archotes, a proximidade derra quase invisvel na brancura do meio-dia.

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    Noticirio e Trfego. Esporte e Meteorologia. Eram esses termos cidos com que ele se referia vida queixara para trs, mais de dois anos vivendo com a

    mentes densas que faziam a guerra. Tudo era rudo dundo, disse ele, com um gesto largo. Gostava d

    esdenhar coisas com um gesto. Havia avaliaes dsco e especificaes de polticas, grupos de trabalho d

    nterao entre agncias. Ele era o outsider, ucadmico que contava com a aprovao oficial mas quo tinha experincia administrativa. Sentava-se em torne uma mesa numa sala de reunies sigilosa com olanejadores estratgicos e os analistas militares. Estavli para conceitualizar, era o termo que ele usava, entspas, para aplicar ideias e princpios globalizantes ssuntos como distribuio de tropas e contrainsurreiinha autorizao para ler telegramas confidenciais

    anscries restritas, disse ele, e ouvia o falatrio doeritos residentes, dos metafsicos das agncias d

    nformaes, dos fantasistas do Pentgono.

    O terceiro andar do anel E do Pentgono. Massa rrogncia, disse ele.

    Havia trocado tudo isso por espao e tempo. Eram coisaue ele parecia absorver pelos poros. As distncias qunvolviam cada marco da paisagem e a fora do tempeolgico, em algum lugar l fora, as quadrculas do

    scavadores em busca de ossos gastos.

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    u ficava vendo aquelas palavras o tempo todo. Calospao, imobilidade, distncia. Elas se tornaram estadoe esprito visuais. No sei o que isso quer dizer. Eu ficendo figuras isoladas, enxergo alm da dimenso fsicejo os sentimentos que essas palavras geram

    entimentos que se aprofundam com o tempo. A outralavra esta: tempo.

    u dirigia e olhava. Ele ficava em casa, sentado no deque tbuas rangedoras, na sombra, lendo. Eu caminhavor leitos de rios secos margeados de palmeiras, subilhas que no estavam no mapa, sempre gua, levandgua para todos os lugares, sempre um chapu, com uhapu de aba larga e um leno em volta do pescoo, ubia no alto dos morros castigados pelo sol, e l do alcava olhando. O deserto estava fora do meu alcance, e

    m ser aliengena, era fico cientfica, uma coisa que amesmo tempo saturava e era remota, e s fora eu monvencia de que estava mesmo ali.

    le sabia onde estava, l na sua cadeira, ligado nrotomundo, pensava eu, nos mares e recifes de de

    milhes de anos atrs. Ele fechava os olhos, adivinhandm silncio a natureza das extines por ocorrer, plancieobertas de grama em livros ilustrados para crianas, umegio onde abundavam camelos felizes e zebraigantescas, mastodontes, tigres-dentes-de-sabre.

    A extino era um dos temas dele no momento.

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    aisagem inspirava os temas. Espaos abertos austrofobia. Isso se tornaria um tema.

    Richard Elster tinha setenta e trs anos, eu tinha menos dmetade da idade dele. Ele me convidara para ficar co

    le ali, numa casa velha, com pouca moblia, ao sul dugar nenhum no deserto de Sonora, ou talvez fosse eserto de Mojave ou outro deserto totalmente diferent

    No seria uma visita longa, ele disse.

    stvamos no dcimo dia.

    u havia falado com ele duas vezes antes, em Nova Yorele sabia qual era meu plano, sua participao num filmue eu queria fazer sobre o perodo em que ele trabalhao governo, no barulho e na gagueira do Iraque.

    le seria na verdade o nico participante. Seu rosto, suaalavras. Eu no precisava de mais nada.

    De incio ele disse no. Depois disse nunca. Por fim melefonou e disse que poderamos conversar sobre

    ssunto, mas no em Nova York nem em Washingtocos demais nesses lugares desgraados.

    ui de avio at San Diego, aluguei um carro e segui paleste, subindo serras que pareciam brotar de curvas d

    strada, nuvens de tempestade de final de vero s

    ormando no cu, e depois atravessando serras pardaassando por placas que alertavam para quedas d

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    arreiras e aglomerados inclinados de caules espinhosoor fim saindo da estrada de asfalto e tomando uma trilhrimitiva, perdendo-me por um tempo nos rabiscoonfusos do mapa traado a lpis por Elster.

    Quando cheguei j havia escurecido.

    Nada de poltrona macia com iluminao clida e livrouma estante ao fundo. S um homem e uma paredexpliquei. O homem fica parado relatando como foi todaua experincia, tudo que lhe vem ment

    ersonalidades, teorias, detalhes, sentimentos. O senhorhomem. No h nenhuma voz em offfazendo pergunta

    No h interrupes com cenas de guerra ou comentrioe outras pessoas, filmadas ou em off.

    O que mais?S um head shot.

    O que mais?, ele perguntou.

    Se houver pausas, so suas, eu no paro de filmar.O que mais?

    A cmara tem disco rgido. Uma tomada de cenontnua.

    Qual a durao da tomada de cena?

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    Depende do senhor. Tem um filme russo, um filme donga-metragem,A arca russa, Aleksandr Sokrov. Umnica tomada de cena prolongada, cerca de mil atores gurantes, trs orquestras, histria, fantasia, cenas d

    multides, cenas de bailes, e ento, quando o filme j esolando h uma hora, um garom deixa cair uuardanapo, no h cortes, no pode haver cortes, mara desce corredores e vira esquinas. Noventa e nov

    minutos, disse eu.

    Mas esse filme foi feito por um homem chamadAleksandr Sokrov. O seu nome Jim Finley.

    u teria rido se ele no tivesse dito isso com um sorrisnico. Elster falava russo e pronunciava o nome diretor com um floreio visceral. Isso dava a seu comentrm toque adicional de presuno. Eu poderia ter dito bvio, que no ia filmar um grande nmero de pessoaom movimentos complexos. Mas deixei que a piada sstendesse ao mximo. Ele no era o tipo de homeapaz de abrir espao at mesmo para uma corre

    em suave.le estava sentado no deque, um homem alto com calae algodo amassadas que parecia um ponto deferncia na paisagem. Passava boa parte do dia seamisa, lambuzado de filtro solar at mesmo na sombra,

    cabelo grisalho, como sempre, estava preso num rab

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    e cavalo curto.

    O dcimo dia, eu lhe disse.

    De manh ele enfrentava o sol. Precisava enriquecer se

    uprimento de vitamina D e levantava os braos eireo ao sol, dirigindo um pedido aos deuses, dizia elmesmo que isso implicasse a formao sorrateira decidos anormais.

    mais saudvel rejeitar certos cuidados do que entrar n

    nha. Imagino que voc saiba disso, disse ele.

    inha um rosto comprido e rubicundo, dobras de carnaindo um pouco dos lados do queixo. O nariz era grand

    esburacado, olhos talvez de um verde acinzentadobrancelhas espessas. O rabo de cavalo deveria parec

    ncongruente, mas isso no acontecia. O cabelo no eortado em camadas, porm apenas puxado para trs e

    mechas largas, e lhe dava uma espcie de identidadultural, um toque de distino, o intelectual como ancia tribo.

    sto aqui o exlio? O senhor est exilado aqui?

    O Wolfowitz foi pro Banco Mundial. Exlio isso, eespondeu. Isto aqui diferente, um retiro espiritual. Esasa pertencia a algum da famlia da minha primei

    mulher. Eu vinha aqui de vez em quando, durante anora escrever, pensar. Fora daqui, em qualquer lugar, me

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    ia comea com conflito, cada passo que eu dou numa rua cidade conflito, as outras pessoas so conflito. Aquiiferente.

    Mas dessa vez o senhor no est escrevendo.

    Recebi umas propostas pra escrever um livro. O comanda guerra visto por uma pessoa de fora numa posirivilegiada. Mas no quero escrever um livro, livenhum.

    O senhor quer ficar sentado aqui.

    A casa agora minha e est caindo, mas deixa cair. empo passa mais devagar quando eu estou aqui. empo fica cego. Eu sinto, mais do que vejo, a paisagemNunca sei que dia hoje. Nunca sei se passou um minuu uma hora. Aqui eu no envelheo.

    Quem dera eu pudesse dizer a mesma coisa.

    Voc precisa de uma resposta. isso que voc estizendo?

    Eu preciso de uma resposta.

    Voc tem toda uma vida l na cidade.

    Uma vida. Talvez a palavra seja forte demais.

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    le estava com a cabea virada para trs, os olhoechados, o rosto exposto ao sol.

    Voc no casado, acertei?

    Separado. A gente se separou, respondi.Separado. Isso me soa muito familiar. Voc tem umprego, uma coisa que voc faa entre um projeto utro?

    alvez ele tentasse no carregar a palavra projetos coma ironia fatal.

    Trabalhos espordicos. Produo, montagem.

    Agora ele estava olhando para mim. Talvez perguntasse

    i prprio quem eu era.

    Eu j lhe perguntei como que voc ficou to magricelaVoc come. Voc come tanto quanto eu.

    Acho que eu como. Eu como, sim. Mas toda a energi

    odo o alimento chupado pelo filme, eu lhe disse. orpo no recebe nada.

    le fechou os olhos outra vez e fiquei vendo o suor e o filtolar escorrendo lentamente por sua testa. Esperei qule perguntasse sobre os filmes que eu j havia feito, ergunta que eu no queria ouvir. Mas ele havia perdido

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    nteresse na conversa ou simplesmente tinha o tipo de egervilhante que se esquece de tais detalhes. Ele diria siu no com base no nas minhas qualificaes mas sio seu estado de esprito, quando achasse que era a horntrei na casa e fui at meu laptop para ver se hav

    hegado algum e-mail, precisando de um contato dmundo externo porm me sentindo desonesto, como sstivesse quebrando um pacto tcito de recolhimenriativo.

    le lia principalmente poesia, relendo sua juventude, dissle, Zukofsky e Pound, s vezes em voz alta, e tamb

    Rilke no original, sussurrando um verso ou dois apenas, dez em quando, das Elegias. Estava praticando o alemo

    u s havia feito um nico filme, uma ideia para um film

    egundo alguns. Fiz o filme, terminei o filme, as pessoasram, mas o que foi que elas viram? Uma ideia, disseramue no chega a ser mais que uma ideia.

    u no queria cham-lo de documentrio, embora fossmontado inteiramente a partir de documentos, filme

    elhos, programas de televiso filmados dos anos 50. Ematerial social e histrico, porm montado de um modue ia muito alm dos limites da informao e dbjetividade, e o resultado no era um documento. Eu vli algo de religioso, talvez s eu visse isso, religiosxttico, um homem em xtase.

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    O homem era o nico indivduo que aparecia na tela empo todo, o comediante Jerry Lewis. Era o Jerry Lewos antigos programas beneficentes, os espetculos deleviso transmitidos uma vez por ano em benefcio datimas da distrofia muscular, Jerry Lewis dia e noite

    ntrando no dia seguinte, heroico, tragicmico, surreal.

    u assistia queles velhos programas de televismados, acompanhava cada minuto longnquo, uma outivilizao, os Estados Unidos de meados do sculquelas cenas pareciam uma forma de vida tecnolgicesviante tentando se desprender da poeira irradiada dra atmica. Na minha montagem, eliminei todos oonvidados do programa, as entrevistas, as estrelas dinema, os danarinos, as crianas deficientes, a plateo estdio, a orquestra. O filme era s Jerry, um

    erformance pura, Jerry falando, cantando, chorando, Jerom sua camisa de mangas franzidas com a goesabotoada, gravata-borboleta desfeita, um guaxini

    ogado nos ombros, Jerry solicitando o amor e eslumbramento do pas s quatro da manh, em closm homem suado, cabelo cortado escovinha, num

    spcie de delrio, um artista da doena, implorando quhe mandssemos dinheiro para curar suas crianaoentes.

    u fazia Jerry falar sem parar numa montagem se

    equncia, um ano se confundindo com o outro, ou enterry sem som, fazendo palhaada, joelhos bambo

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    entuo, pulando numa cama elstica em cmara lentm filme velho e defeituoso, sinais de perturbao, rudoleatrios na trilha sonora, riscos na tela. Ele enfaquetas nas narinas, enfia o microfone na boc

    Acrescentei trilha sonora intervalos de msica modern

    ries de tons, uma determinada nota pedal ecoando eecoando. Havia um toque de drama austero na msicla situava Jerry fora daquele momento, num contex

    maior, a-histrico, um homem cumprindo uma missivina.

    u no conseguia determinar qual seria a durao totaor fim optando por uma metragem estranha de cinquensete minutos, e o filme foi exibido em dois festivais d

    ocumentrios. Poderiam ter sido cento e cinquenta ete minutos, ou quatro horas, ou seis horas. Aquilo m

    ansou, esgotou, virei uma espcie de duplo enlouquecide Jerry, os olhos pulando das rbitas. s vezes umoisa difcil porque a gente a est fazendo errado. Nra o caso. Mas eu no queria que Elster soubesse dme. Porque eu no sabia como ele se sentiria, sendo ucessor, o escada, de um comediante enlouquecido.

    Minha mulher me disse uma vez: Cinema, cineminema. Se voc ficasse um pouco mais obcecado do qu

    , virava um buraco negro. Uma singularidade, dissla. No escapa luz nenhuma.

    u disse: Eu tenho a parede, conheo a parede, fica nu

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    oft no Brooklyn, um loft industrial, grande e sujo. Tenhcesso a ele a praticamente qualquer hora do dia ou doite. A parede quase toda de um cinza-claro, algumaachaduras, algumas manchas, mas no chegam a atrairteno, no so elementos de design propositais.

    arede perfeita, eu penso nela, sonho com ela, abro olhos e vejo a parede, fecho os olhos e a parede est l

    Voc tem uma necessidade profunda de fazer essoisa. Me diga por qu, ele perguntou.

    O senhor a resposta dessa pergunta. O que o senhisser, o que o senhor vai nos dizer sobre seus ltimonos, o que o senhor sabe que ningum sabe.

    stvamos dentro de casa, era tarde da noite, ele estavom as calas velhas e amassadas, uma camise

    munda, os ps grandes e mudos enfiados num par dandlias de couro chiques.

    Eu vou lhe dizer uma coisa. A guerra cria um mundechado, e no apenas pros que esto lutando nela ma

    ambm pros planejadores, os estrategistas. S que uerra deles um monte de siglas, projeeontingncias, metodologias.

    le entoava as palavras, recitava-as num tom litrgico.

    Eles ficam paralisados com os sistemas que esto isposio deles. A guerra deles abstrata. Acham qu

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    sto mandando um exrcito pra um ponto no mapa.

    le no era um dos estrategistas, explicoesnecessariamente. Eu sabia o que ele era, ou o que ssperava que fosse, um intelectual da rea de defes

    em as credenciais costumeiras, e quando usei o termle tensionou o queixo, com uma pontada de orgulhaudoso das primeiras semanas e meses, antes de se donta de que estava ocupando um lugar vazio.

    s vezes no existia nenhum mapa que correspondess

    realidade que estvamos tentando criar.

    Que realidade?

    sso uma coisa que a gente faz cada vez que pisca ulho. A percepo humana uma saga de realidaderiadas. Mas estvamos inventando entidades que ialm dos limites consensuais do reconhecimento ou d

    nterpretao. A mentira necessria. O Estado precismentir. No h mentira na guerra ou na preparao duerra que no possa ser defendida. Ns fomos al

    isso. Tentamos criar novas realidades da noite pro diequncias cuidadosas de palavras que eram comlogans de publicidade de to memorveis e repetveue eram. Palavras que geravam imagens e a sornavam tridimensionais. A realidade fica em p, andca de ccoras. S que s vezes no faz nada disso.

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    le no fumava, mas sua voz tinha uma textura de lixalvez apenas a aspereza da idade, s vezescorregando para dentro, tornando-se quase inaudveicamos em silncio por algum tempo. Ele estavscarrapachado no meio do sof, olhando para algu

    onto num canto do teto. Apertava contra a cintura uaneco de caf contendo usque com gua.

    or fim ele disse: Haicai.

    Concordei com a cabea, pensativo, como um idiota, um

    rie de gestos lentos que visavam indicar que entendia perfeitamente.

    Um haicai no significa nada alm do que . Uma lagoo vero, uma folha ao vento. Conscincia human

    ocalizada na natureza. a resposta a tudo num cermero de versos, com uma contagem de slabareestabelecida. Eu queria uma guerra tipo haicai, eisse. Eu queria uma guerra em trs versos. No era umuesto de nveis de fora ou de logstica. O que eu querra um conjunto de ideias associadas a coisa

    ansitrias. Essa a essncia do haicai. Expor tudo alho nu. Ver o que est l. Na guerra as coisas sansitrias. Ver o que est l e ento estar preparado per a coisa desaparecer.

    O senhor usou essa palavra. Haicai, eu disse.

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    Eu usei essa palavra. Era pra isso que eu estava l, par a eles palavras e significados. Palavras que eles nnham usado, novas maneiras de pensar e ver. Numiscusso qualquer, provavelmente usei essa palavr

    Ningum caiu da cadeira.

    u no sabia nada sobre os homens que no haviaado da cadeira. Mas estava comeando a conheclster e fiquei questionando aquela ttica, o que nignifica que aquilo tivesse importncia no final daontas. No me interessava a impresso que ele causavos outros, s o que ele sentia a respeito da experincile podia estar errado, agir de modo impetuoso, irritar-sansar-se. Versos e slabas. Ps malcheirosos de uelho/ noite tensa de vero. Et cetera.

    O senhor queria uma guerra. Mas uma guerra melhor, eisse.

    Continuo querendo uma guerra. Uma grande potncia teue agir. Ns tnhamos sofrido um golpe profundrecisvamos retomar o futuro. A fora da vontade, um

    ecessidade visceral. No podemos deixar que os outromoldem o nosso mundo, as nossas mentes. Eles s t

    adies velhas, mortas, despticas. Ns temos umistria viva e eu achava que ia me colocar no meio del

    Mas naquela sala, com aqueles homens, eram srioridades, estatsticas, avaliaes, racionalizaes.

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    A melancolia litrgica havia desaparecido de sua vostava apenas cansado e distanciado, longe demais doventos para fazer justia ao prprio ressentimento. Fuesto de no provocar comentrios adicionais. Eleiriam quando fosse a hora, espontaneamente, diante d

    mara.

    le bebeu o resto do usque mas continuou a segurar aneco junto cintura. Eu estava tomando vodca couco de laranja e gelo derretido. A bebida estava naquetapa da vida de uma bebida em que voc toma o ltimole aguado e mergulha numa introspeco amarga, elgum lugar entre a autocomiserao e a autoacusao.

    ermanecemos imveis, pensando.

    Olhei para ele. Eu queria me deitar mas achava que nevia me recolher antes dele, no sabia bem por qu, eoites anteriores eu o havia deixado sozinho na sala. ilncio era total na sala, na casa, l fora, por toda parts janelas abertas, nada, apenas noite. Ento ouvi umatoeira disparando na cozinha, a mola sendo acionada,

    atoeira dando um pulo.

    Agora ramos trs. Mas Elster parecia no perceber.

    m Nova York ele usava uma bengala sem necessidadalvez sentisse uma dor costumeira num dos joelhos, ma

    bengala era mais um acessrio emocional, disso eu n

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    nha dvida, adotado pouco depois que ele foi demitidos ministrios de Noticirio e Trfego. Ele falavagamente numa artroplastia de joelho, falando mais pai prprio do que para mim, criando uma justificativa pa

    autocomiserao. Elster parecia estar em todos o

    ugares, nos quatro cantos de uma sala, reunindmpresses de si prprio. Eu gostava da bengala. Ela mjudava a v-lo, destacava-o do texto pblico, um homeue precisava viver num oco protetor, semelhante a utero e do tamanho do mundo, livre das tendnciaiveladoras dos eventos e conexes humanas.

    Durante esses dias no deserto, poucas coisas o tiravaa sua tranquilidade aparente. Nossos carros tinhaao nas quatro rodas, isso era essencial, e depois d

    odos aqueles anos ali ele parecia estar se adaptand

    inda, a dirigiroff road, ou mesmo a dirigirtout court, eualquer lugar. Ele me pediu para programar o gps de searro. Queria que o sistema fosse utilizado, desafiava istema a funcionar. Demonstrou uma satisfao irritaduando o aparelho lhe disse, com uma voz masculineca, o que ele j sabia, virar diretamente direita eeis quilmetros, levando-o ao estacionamento d

    mercearia da cidade vizinha, quarenta quilmetros de iduarenta quilmetros de volta. Ele cozinhava para nodas as noites, fazia questo de preparar o jantar, nemonstrando aquela desconfiana que as pessoas d

    ua idade costumam sentir com relao a certos alimentoseus efeitos sobre o organismo.

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    u saa de carro sozinho procura de trilhas remotas epois ficava sentado dentro do carro parado, imaginandfilme, filmando, olhando para o descampado de arenit

    Ou ento entrava em uma ravina ngreme, com cho d

    erra dura, seca, rachada, o carro nadando no calor, ensava no meu apartamento, quarto e sala pequenos, luguel, as contas, os telefonemas no atendidos, sposa que no estava mais l, a esposa separada, elador viciado em crack, a velha que descia a escada dostas, lentamente, eternamente, quatro lanos de escade costas, e eu nunca perguntei a ela por qu.

    erguntei a Elster sobre um ensaio que ele havia escrilguns anos antes, chamado Deportaes. Saiu nueridico acadmico que em pouco tempo comeou

    eceber crticas da esquerda. Talvez essa tenha sido sunteno, mas tudo que pude encontrar naquelas pginaoi um desafio implcito ao leitor para descobrir qual ropsito do texto.

    A primeira frase era: Um governo um empreendimen

    riminoso.

    A ltima frase era: No futuro, claro, homens e mulhereechados em cubculos, com fones nos ouvidos, ficarscutando as gravaes secretas dos crimes do governnquanto outros examinaro registros eletrnicos em tela

    e computadores e ainda outros assistiro a vdeos d

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    omens enjaulados sendo submetidos a dores atrozes or fim, outros, e mais outros, em recintos fechados, farerguntas precisas a indivduos de carne e osso.

    ntre essas duas frases o que havia era um estudo d

    alavra deportao, com referncias ao latim vulgar utras fontes de origem. Logo no incio Elster associaveportao a porta. A partir da, pedia ao leitor qu

    maginasse uma sala sem portas num pas sem nome m mtodo de fazer perguntas, utilizando o que ehamava de tcnicas de interrogatrio intenso, cubjetivo era arrancar informaes da pessoa deportada.

    u no havia lido o artigo na poca, no sabia nada soble. Se soubesse, antes de conhecer Elster, o que terensado? Etimologia e prises secretas. Latim vulgar

    ortura por procurao. O ensaio se concentrava no estuda palavra em si, a primeira ocorrncia no idiommudanas de forma e significado, formas de grau zerormas reduplicadas, formas sufixadas. Havia notas dodap que eram como ninhos de cobras. Porm nada salava sobre prises secretas, Estados de deporta

    em tratados e convenes internacionais.

    le comparava a evoluo de uma palavra da matrrgnica.

    Comentava que as palavras no eram necessrias paraxperincia da vida real.

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    Mais para o final de seu comentrio, ele mencionavutras palavras relacionadas a deportao por umadeia de associaes transporte, translado, tradu

    nterpretao. Entre aquelas quatro paredes, em alguugar, em segredo, um drama est sendo interpretado, tntigo quanto a memria humana, escrevia ele, os atoreus, acorrentados, vendados, outros atores com objetonicos de intimidao, sem nome e mascaradoestidos de preto, e o que transcorre, escrevia ele, umagdia de vingana que reflete a vontade comum

    nterpreta a necessidade sombria de toda uma nao, ossa.

    m p num canto do deque onde no batia sol, perguntele sobre o ensaio. Ele o despachou com um ges

    esdenhoso, todo aquele assunto. Perguntei sobre

    rimeira e a ltima frases. Elas parecem deslocadaaquele contexto maior, comentei, em que crime e culpo so mencionados. A incongruncia salta aos olhos.

    proposital.

    proposital. Tudo bem. A inteno abalar os quriticam o governo, disse eu, e no os tomadores decises. Ironia total.

    le estava sentado numa velha espreguiadeira que hav

    ncontrado no galpo atrs da casa, uma cadeira de praora de seu elemento, e abriu um dos olhos numa atitud

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    e desdm preguioso, medindo de alto a baixo o idioue est afirmando o bvio.

    udo bem. Mas o que pensaria ele da acusao segundqual ele havia tentado encontrar mistrio e romantism

    uma palavra que estava sendo usada como instrumena segurana governamental, uma palavra que fotilizada para sintetizar e ocultar o assunto vergonhoso ue ela se referia?

    que no fiz essa pergunta. Em vez disso, entrei n

    asa, enchi dois copos de gua gelada, voltei ao dequeme instalei na cadeira ao lado da dele. Eu no sabia sle tinha razo, se o nosso pas realmente precisavisso, se precisvamos disso no nosso desespero, nossncolhimento, precisvamos de alguma coisa, qualqu

    oisa, o que fosse possvel fazer, deportao, sim, epois invaso.

    le encostou o copo gelado no rosto e disse que no surpreendeu com a reao negativa. A surpresa veepois, quando foi contatado por um ex-colega d

    aculdade e convidado a participar de uma reuniechada de um instituto de pesquisa perto de WashingtoViu-se numa sala com paredes forradas de madeicompanhado de algumas outras pessoas, entre elas ice-diretor de uma equipe de avaliao estratgica quo existia em nenhum documento oficial. No menciono

    nome do homem, ou porque era o tipo de detalh

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    onfidencial que tinha de permanecer entre as quataredes de uma sala forrada de madeira ou porque sabue o nome no significaria nada para mim. Eleisseram a Elster que estavam procurando um indivdue formao interdisciplinar como ele, um homem d

    eputao que pudesse renovar o dilogo, ampliar o pone vista. Assim comeou seu perodo de trabalho noverno, interrompendo uma srie de conferncias qustava dando em Zurique a respeito do que ele chamave sonho de extino, e depois de dois anos e malguns meses l estava ele, outra vez, no deserto.

    No havia manhs nem tardes. Era um nico dia inteiriodos os dias, at que o sol comeava a descrever urco e a diminuir, as montanhas emergindo de suailhuetas. Era nessa hora que ficvamos sentado

    lhando, em silncio.No jantar, mais tarde, o silncio continuou. Eu queria ouvm rudo de chuva. Comamos costeletas de carneiro qule havia assado numa grelha de carvo no deque. Eomia com a cabea virada para baixo, enfiada no prat

    ra o tipo de silncio que difcil de quebrar, tornando-smais denso a cada garfada. Pensei no tempo morto, nensao de autoconfinamento, ouvindo noss

    mastigao. Eu queria lhe dizer que estava uma delciorm ele havia assado a carne demais, todo vestgio d

    midade rsea se perdera nas chamas. Eu queria ouvirento na serra, morcegos roando nos beirais.

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    ra o dcimo segundo dia.

    le olhou para o copo de cerveja que tinha na mo nunciou que sua filha vinha visit-lo. Foi como ouvir queerra havia deslocado seu eixo, e a noite voltaria a ser diUma notcia importante, uma outra pessoa, um rosto e umoz, chamada Jessie, disse ele, uma mente excepcionao outro mundo.

    Nunca perguntei velha por qu. Eu a via descendo

    scada de costas, agarrada ao corrimo. Eu parava cava olhando, eu me oferecia para ajud-la, mas jamaerguntei, jamais investiguei a questo, um acidente, umuesto de equilbrio, um problema mental. Simplesmencava parado no patamar vendo-a descer, degrau pegrau, ela era da Letnia, era tudo o que eu sabia,

    Nova York, isso tambm, onde as pessoas no fazeer untas.

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    2.

    Uma tremenda chuva veio da serra, forte demais para que pudesse pensar no meio dela, deixando-nos sem naddizer. Em p na entrada coberta do deque, ns tr

    lhvamos e escutvamos, o mundo inundado. Jessegurava a si prpria com fora, uma mo em cadmbro. O ar estava tenso e carregado, e quando a chuv

    arou, aps alguns minutos, voltamos para a sala ontinuamos a falar sobre o assunto de que falvamouando os cus se abriram.

    Naqueles primeiros dias, ela para mim era a Filha. ossessividade de Elster, seu espao confinador, tornav

    ifcil para mim v-la como uma pessoa diferenciadncontrar nela algo como um ser independente. Ele querue ela ficasse a seu lado o tempo todo. Quando fazlgum comentrio dirigido a mim, sempre dava um jeito d

    nclu-la, atra-la com um olhar ou gesto. Havia em seu

    lhos um brilho ansioso que no era nada incomum, plhando para filha, porm parecia ter o efeito de sufocma resposta, ou talvez ela no estivesse interessada eesponder.

    la era plida e magra, vinte e tantos anos, desajeitad

    om um rosto macio, no carnudo, porm arredondado anquilo, e parecia atenta para alguma presena interio

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    apital estrangeiro, fundos de hedge. Cada projeto vima obsesso, seno qual o sentido? O meu projegora este, o seu pai. Eu sei que ele a pessoa certa

    enho a intuio de que ele tambm sabe. Mas nonsigo arrancar uma resposta dele. Topo, no top

    alvez, nunca, fica pra prxima. Eu olho pro cu e mergunto: que diabo estou fazendo aqui?.

    Companhia, ela respondeu. Ele simplesmente odesicamente a ideia de ficar sozinho.

    Odeia ficar sozinho mas vem pra c porque aqui no teada, no tem ningum. As outras pessoas criam conflitoiz ele.

    No as pessoas que ele escolhe pra ficar com ele. Unlunos ao longo dos anos, e eu, sortuda que sou, e

    minha me, antigamente. Ele tem dois filhos do primeiasamento. Desastre e Runa, assim que os cham

    Nem pense em tocar no assunto dos filhos dele.

    A maior parte do tempo falvamos sobre coisa alguma, e

    ela. No tnhamos nada em comum, ao que parecia, mas assuntos brotavam. Ela me contou que ficou confusma vez que entrou numa escada rolante que no estavuncionando. Isso aconteceu no aeroporto de San Diegnde o pai estava esperando para peg-la. Ela entrouma escada rolante que estava parada e no conseguntender, teve que subir a escada pensando em cad

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    asso, e foi difcil, porque a toda hora ela esperava que scada comeasse a subir e por isso ela mal andava, maarecia no ir a lugar nenhum porque os degraus no s

    mexiam.

    la no sabia dirigir porque no conseguia fazer coisaom as mos e os ps. Um dos velhos que ela ajudavnha acabado de morrer de no sei qu mltipla. A mela falava russo ao telefone, uma tempestade de russia e noite. Ela gostava do inverno, o parque coberto deve, mas no ousava se aventurar muito pelo parque, n

    nverno os esquilos podiam estar com hidrofobia.

    u gostava dessas conversas, eram tranquilas, com umrofundidade inslita em cada comentrio solto que eazia. s vezes eu ficava olhando para ela, esper

    alvez, de um olhar em resposta, uma demonstrao dncmodo. Ela tinha feies comuns, olhos castanhoabelo castanho que a toda hora jogava para trs darelhas. Havia uma determinao em seu olhar, um

    nsipidez que parecia fruto de um esforo de vontade. Ema escolha que ela fizera, ter essa aparncia, ou pe

    menos era isso que eu me dizia. Sua vida era uma outida, no tinha nada a ver com a minha, e mroporcionava um alvio daquela canalizao constante d

    meu tempo ali, e tambm de certo modo contrabalanavpoder que o pai dela exercia sobre meu futuro imediato

    lster saiu de pijama se arrastando do quarto para fic

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    onosco no deque, descalo, caneca de caf na mOlhou para Jessie e sorriu, parecendo lembrar, em suonteira, que queria fazer alguma coisa. Queria sorrir.

    nstalou-se numa cadeira, falando devagar, a voz fraca

    hamuscada, uma noite ruim, ainda era muito cedo.

    Antes de conseguir pegar no sono, finalmente, eu estavensando que quando era pequeno eu tentava imaginarnal do sculo, era uma coisa distante e maravilhosa, e ecava calculando quantos anos teria quando o scu

    erminasse, anos, meses, dias, e agora, olha s, coisncrvel, estamos aqui j avanamos seis anos no outculo e eu me dou conta de que continuo sendo o mesmaroto magricela, a minha vida sombra da presenele, que evita pisar nas rachaduras na calada, no p

    uperstio, mas como um teste, uma disciplina, continuazendo isso. O que mais? Arranco a cutcula do polegom os dentes, sempre o polegar direito, continuo a faz

    sso, roendo a cutcula, assim que eu sei quem eu sou.

    Uma vez olhei dentro do armrio de remdios do banhei

    ele. No precisei abrir a porta do armrio, no havorta. Fileiras de frascos, tubos, estojos de plulas, quass prateleiras inteiras, e mais uns vidros, um deles se

    ampa, em cima da caixa-dgua da privada, e vriaulas espalhadas num banco, desdobradas, com textos ddvertncia em fonte mida, em negrito.

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    No so os meus livros, as minhas confernciaonversas, nada disso. a porcaria da cutcula dolegar, ali que eu sou eu, a minha vida, de l pra c. Ealo dormindo, sempre falei, minha me me dizntigamente e eu no preciso que ningum me dig

    gora, eu sei, eu ouo, e isso mais importante, alguevia estudar o que as pessoas dizem quando estormindo e algum j deve ter estudado, alguaralinguista, porque mais importante do que as martas que a pessoa escreve ao longo da vida, e teratura tambm.

    Nem todos os remdios exigiam prescrio mdica, mamaioria sim, e todos eles eram Elster. Loe

    omprimidos, cpsulas, supositrios, cremes e gis, e oascos e tubos em que eles vinham, e os rtulos, bula

    tiquetas com o preo tudo isso era Elster, vulnervel, minha presena no banheiro talvez seja de algum modmoralmente degradante, mas eu no me sentia culpadpenas determinado a conhecer aquele homem e todos acessrios de seu ser, as substncias que alteravaeu humor, as substncias que criavam dependncia, qu

    ingum v nem tenta imaginar. No que essas coisaossem aspectos srios da vida verdadeira a que eostava de se referir, os pensamentos perdidos, a

    embranas que abarcam dcadas, a cutcula do polegaAssim mesmo, de algum modo, l estava ele em se

    rmrio de remdios, o homem em si, claramenssinalado em gotas, colheres de sobremesa

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    miligramas.

    Olhem s pra tudo isso, disse ele, sem olhar, a paisageo cu, que ele havia indicado com um movimento d

    rao para trs.

    Ns tambm no olhamos.

    O dia acaba virando noite, mas uma questo de luz scuro, no o tempo passando, o tempo mortal, n

    No tem aquele terror habitual. Aqui diferente, um temp

    norme, o que eu sinto aqui, uma coisa palpvel. empo que nos precede e nos sobrevive.

    u estava comeando a me acostumar quilo, escala deus discursos, muitas dcadas pensando e falando sobuestes transcendentes. Naquele momento ele estavalando com Jessie, ele estava falando com ela o tempodo, sentado na cadeira, inclinado para a frente.

    la disse: O terror habitual. Qual o terror habitual?.

    Aqui no acontece, aquela contagem de minutos, a coisue eu sinto nas cidades.

    st tudo impregnado, as horas e minutos, palavras meros por toda parte, disse ele, estaes ferroviriaajetrias de nibus, taxmetros, cmaras de seguran

    udo tem a ver com o tempo, tempo idiota, tempo inferioente consultando relgios e outros instrumentos, outro

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    embretes. o tempo das nossas vidas escorrendo rabaixo. As cidades foram construdas para medir o tempara retirar o tempo da natureza. Tem uma contageegressiva infinita, disse ele. Quando voc retira todas auperfcies, quando voc olha dentro da coisa, o que res

    o terror. Foi para curar essa coisa que inventaram teratura. A epopeia, a histria contada na hora de dormi

    O filme, eu disse.

    le olhou para mim.

    O homem e a parede.

    sso, concordei.

    O homem no paredo.

    No, no como um inimigo, mas uma espcie de vism fantasma dos conselhos de guerra, algum que temberdade de dizer o que quiser, coisas no ditas, coisaonfidenciais, avaliar, condenar, divagar. O que o senhoisser, isso o filme, o senhor o filme, o senhor fala e emo. No tem grfico, mapa, informaontextualizadora. Rosto e olhos, preto e branco, o filmesso.

    Disse ele: Paredo pros filhos da puta, e me dirigiu u

    lhar duro. S que os anos 60 j acabaram h muiempo e no tem mais barricadas.

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    O filme a barricada, disse eu. A barricada que namos construir, eu e o senhor. A barricada onde umomem diz a verdade.

    Eu nunca sei o que dizer quando ele fala desse jeito.Ele passou a vida inteira falando com alunos, eu dissEle no espera que a gente diga nada.

    A cada segundo ele d o ltimo suspiro.

    Passa o dia pensando, ele est aqui pra isso mesmo.

    E esse filme que voc quer fazer.

    No posso fazer sozinho.

    Mas no tem um filme de verdade que voc esteja maism de fazer? Porque quantas pessoas vo querer ficsse tempo todo vendo um negcio to zumbi?

    sso mesmo.

    Mesmo se ele acabar dizendo coisas interessantes, po de coisa que as pessoas podem ler numa revista.

    sso mesmo, eu disse.

    No que eu v muito ao cinema. Eu gosto de ver filmntigo, na televiso, esses que tm um homem acendend

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    m cigarro pra mulher. o que eles fazem sempre nessemes antigos, os homens e as mulheres. Eu normalmenou meio que totalmente desligadaa. Mas toda vez quejo um filme antigo na televiso fico atenta pra ver se tem homem acendendo um cigarro pra uma mulher.

    u disse: O som dos passos nos filmes.

    O som dos passos.

    O som dos passos nos filmes nunca parece real.

    So passos nos filmes.

    Voc est dizendo que no pra parecer real.

    So passos nos filmes, ela disse.

    Eu levei seu pai para ver um filme uma vez. ChamadPsicose 24 horas. No um filme, uma obra de aronceitual. O velho filme de Hitchcock projetado tevagar que a projeo inteira leva vinte e quatro horas.

    Ele me contou.

    Que foi que ele te disse?

    Ele disse que era como ver o universo morrendo nuerodo de mais ou menos sete bilhes de anos.

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    A gente ficou l uns dez minutos.

    Ele disse que era que nem a contrao do universo.

    Ele pensa numa escala csmica. Isso a gente sabe.

    A morte trmica do universo, ela disse.

    Eu achei que ele ia se interessar. A gente entrou, deminutos e ele fugiu, e eu fui atrs. Descemos seis andareem ele me dizer uma palavra. Ele estava com a bengal

    Uma descida lenta, escadas rolantes, multideorredores, por fim uma escada. Nem uma palavra.

    Eu estive com ele naquela noite e ele me contou. Eensei que de repente eu ia gostar de ver. A ideia de quo acontece nada, disse ela. Ficar esperando s p

    sperar. No dia seguinte eu fui.

    Voc ficou um bom tempo?

    Fiquei um bom tempo. Porque, mesmo quando uma coiscontece, voc est esperando a coisa acontecer.

    Quanto tempo voc ficou?

    No sei. Meia hora.

    Bom. Meia hora bom.

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    Bom, mau, tanto faz, ela disse.

    lster disse: Quando ela era pequena, ficava mexendo obios de leve, repetindo por dentro o que eu estavizendo ou o que a me dela estava dizendo. Ela ficav

    lhando com muita ateno. Eu falava, ela olhaventando adivinhar meus comentrios palavra por palavruase slaba por slaba. Os lbios dela se mexiam quasm sincronia com os meus.

    essie estava mesa, sentada em frente a ele, enquan

    le falava. Estvamos comendo fritadas, comamoitadas quase todas as noites agora. Ele se orgulhava daitadas que fazia e tentava convencer a filha a ficbservando-o quebrar os ovos, bater com um garfo, e p afora, falando o tempo todo enquanto punha o tempe

    o azeite e os legumes, pronunciando a palavra frittatmas ela no se interessava.

    Era como se ela fosse uma estrangeira aprendendngls, disse ele. Ficava grudada na minha carentando definir as palavras que eu estava dizend

    bsorver e processar as palavras. Ela olhava, pensavepetia, interpretava. Olhava para a minha bocxaminava meus lbios, mexia os lbios dela. Tenho quonfessar que fiquei decepcionado quando ela parou dazer isso. Uma pessoa que sabe escutar de verdade.

    stava olhando para ela, sorrindo.

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    Nessa poca ela falava com as pessoas, coesconhecidos. Ainda faz isso s vezes. Voc ainda fa

    sso s vezes, ele disse. Com quem voc fala?

    essie dando de ombros.

    Gente na fila do correio, disse ele. Babs com crianas

    la mastigava a comida, de cabea baixa, usando o garara revirar a fritada no prato antes de cort-la.

    Ns dividamos um banheiro, eu e ela, mas ela quasunca estava l. Um pequeno kit de banheiro de avio, nico sinal de sua presena, ficava num canto da janela. abonete e as toalhas ela guardava no quarto.

    la era como uma slfide, seu elemento era o ar. Dava mpresso de que nada naquele lugar era diferente dualquer outro, ali no sul e no oeste, naquela latitude

    ongitude. Ela atravessava os lugares deslizando de leventindo as mesmas coisas em toda parte, era isso o quavia, o espao interior.

    A cama dela nunca era feita. Abri a porta do quarto e olh dentro vrias vezes mas no entrei.

    icamos no deque at tarde, ns dois tomando usque, arrafa no deque e as estrelas em aglomerados. Elst

    lhava para o cu, tudo que vinha antes, dizia ele, ali paer visto e ma eado e ensado.

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    erguntei-lhe se ele tinha ido ao Iraque. Ele precisoensar na pergunta. Eu no queria que ele achasse que eabia a resposta e estava perguntando para questionarxtenso de sua experincia. Eu no sabia a resposta.

    le disse: Detesto violncia. Tenho medo da ideia diolncia, no vejo filmes violentos, viro o rosto quando oticirio da tev mostra gente morta ou ferida. Eu m

    meti numa briga, eu era menino, tive espasmos, disse elA violncia faz meu sangue congelar.

    le me disse que tinha autorizao completa, acesso odas as informaes militares, mesmo as mais secretau sabia que isso no era verdade. Isso estava na voz o rosto dele, um anseio amargo, e compreendi, clar

    ue ele estava me dizendo coisas, verdadeiras ou no, sorque eu estava ali, ns dois estvamos ali, isoladoebendo. Eu era seu confidente por excluso, o rapaz uem ele confiava os detalhes de sua realidad

    mprovisada.

    Uma vez falei com eles sobre a guerra. O Iraque uochicho, eu disse a eles. Esses flertes nucleares que ente tem com este ou aquele governo. Cochichos, dissle. Eu estou lhe dizendo, isso vai mudar. Alguma coisai acontecer. Mas no isso que a gente quer? No sse o fardo da conscincia? Estamos todos esgotado

    A matria quer perder a autoconscincia. Ns somos

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    mente e o corao em que a matria se transformou. Hoe fechar tudo. isso que nos impele agora.

    le ps mais usque no copo e me passou a garrafa. Estava gostando daquilo.

    Ns queremos ser a matria morta que ramos anteomos o ltimo bilionsimo de segundo na evoluo d

    matria. Quando era aluno eu procurava ideias radicaCientistas, telogos, eu lia a obra de msticos de vrioculos, eu tinha uma mente esfomeada. Uma mente pur

    u enchia cadernos com as minhas verses das filosofiaodas. E agora, olha como estamos. Inventando narrativaolclricas do final. Doenas de animais se espalhandncer transmissvel. O que mais?

    O clima, eu disse.

    O clima.

    O asteroide, eu disse.

    O asteroide, o meteorito. O que mais?

    Fome, fome mundial.

    Fome, ele disse. O que mais?

    Me d um minuto.

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    le disse: Matria. Todas as etapas, do nvel subatmicos tomos s molculas inorgnicas. Ns expandimorescemos pra fora, a natureza da vida desde que surg

    clula. A clula foi uma revoluo. Pense s. Orotozorios, as plantas, os insetos, o que mais?.

    No sei.

    Os vertebrados.

    Os vertebrados, eu disse.

    E as formas surgindo. Se arrastando, rastejando, opedes, o ser consciente, o ser autoconsciente. A matrruta se transformando em pensamento humano analtic

    A nossa bela complexidade mental.

    le fez uma pausa, bebeu, fez outra pausa.

    O que que ns somos?

    No sei.

    Somos uma multido, um enxame. Pensamos em grupoiajamos em exrcitos. Os exrcitos levam o gene dutodestruio. Uma bomba nunca basta. A indefinio decnologia, a que os orculos planejam suas guerraorque agora vem a introverso. O padre Teilhard sab

    isso, o ponto mega. Um salto pra fora da nossiologia. Faa essa pergunta a voc mesmo. Ns temo

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    ue ser humanos pra sempre? A conscincia se esgotoAgora voltar pra matria inorgnica. isso que nueremos. Queremos ser pedras num campo.

    ui pegar gelo. Quando voltei ele estava mijando d

    eque, na ponta dos ps para que o jato de urinassasse por cima do parapeito. Ento nos sentamos camos ouvindo os rudos de animais ao longe entre orbustos, e nos lembramos de onde estvamos, e ficamolgum tempo sem falar depois que os sons aos pouco

    morreram. Ele disse que gostaria de ter permanecidstudante, ido Monglia, um lugar remoto de verdadara viver e trabalhar e pensar. Ele me chamou de Jimmy

    O senhor vai ter todas as oportunidades de falar sobssas coisas, eu disse. Falar, silenciar, pensar, falar. O

    eu rosto, eu disse. Quem o senhor , em que o senhcredita. Outros pensadores, escritores, artistas, ninguunca fez um filme assim, nada planejado, nada ensaiadenhuma estrutura complexa, nenhuma conclusredeterminada, uma coisa completamente sem mscarem cortes.

    ronunciei essas falas num balbucio alcolicemiconsciente de que j tinha dito tudo isso antes, e ouvrespirar fundo e depois falar com uma voz tranquila

    ontida, at mesmo triste.

    O que voc quer, meu amigo, quer voc saiba ou no,

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    ma confisso pblica.

    sso no podia ser verdade. Eu disse a ele que dmaneira alguma. Eu disse a ele que no tinha nenhumnteno de fazer uma coisa assim.

    Uma converso no leito de morte. isso que voc quer. nsensatez, a vaidade do intelectual. A vaidade cega, ulto ao poder. Me perdoem, me absolvam.

    utei contra aquela concepo, interiormente, e disse

    le que no tinha nenhuma ideia em particular alm do quu j tinha dito.

    Voc quer filmar um homem em crise, ele disse. Entendo. Seno qual o sentido?

    Um homem se dissolvendo na guerra. Um homem quinda acredita na justeza da guerra, a guerra dele. Comle ficaria, seu rosto, suas palavras, num filme, nuinema, numa tela em algum lugar, falando sobre umuerra em haicais? Eu tinha pensado nisso? Eu tinh

    ensado na parede, na cor e na textura da parede, e tinhensado no rosto do homem, as feies que eram fortemas que tambm poderiam desabar ao se manifestares verdades cruis que pudessem brotar em seus olhos,nto pensei em Jerry Lewis, visto em close em 195erry arrancando a gravata enquanto cantava algum

    alada melosa da Broadway.

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    Antes de entrar na casa, Elster segurou meu ombro, pame tranquilizar, ao que parecia, e eu permaneci no dequor algum tempo, afundado demais na cadeira, na prproite, para pegar a garrafa de usque. Atrs de mim, a luo quarto dele se apagou, iluminando o cu, e com

    quilo parecia estranho, metade do cu ficando marxima, todas aquelas massas incandescenteumentando em nmero, as estrelas e constelaeorque algum apaga a luz numa casa no deserto,

    amentei que ele no estivesse ali para que eu pudessuvi-lo falar sobre isso, o prximo e distante, o quensamos que estamos vendo quando no estamoendo.

    Me perguntei se no estvamos nos transformando numamlia, to estranha quanto qualquer famlia, a nic

    iferena sendo que no tnhamos nada para fazeenhum lugar para ir, mas isso tambm no estranhai, filha e fosse l o que eu fosse.

    la disse outra coisa tambm, a minha mulher, solidrieferindo-se ao modo como eu encarava a vida de u

    ado e o cinema de outro.

    Por que to difcil ser srio, to fcil ser srio demais?

    A porta do banheiro estava aberta, ao meio-dia, e Jessstava l dentro, descala, de camiseta e calcinh

    avando o rosto. Parei porta. Eu no sabia se queria qu

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    la me visse ali. No conseguia me imaginar entrando me colocando atrs dela e debruando-me sobre ela, nonseguia ver a cena com clareza, enfiando as mos paixo da camiseta, abrindo suas pernas com meus joelhoara poder me apertar contra ela com mais for

    ncaixar-me no lugar, mas no pulsar tnue do momento deia estava ali, e quando me afastei da porta no fenhum esforo especial para no fazer barulho.

    O zelador chegou de carro, um sujeito atarracado coon na cabea e brinco numa das orelhas. Ele cuidava casa quando Elster no estava l, mais ou menos de

    meses por ano, na maioria dos anos. Observei-o andt o lado da casa onde ficava o botijo de propan

    Quando ele voltou, cumprimentei-o com um movimento dabea quando ele entrou na casa. O homem no de

    inal de que registrara minha presena. Imaginei que emoraria num daqueles conglomerados excntricos darraces, trailers e carros sem rodas, povoadococorados que s vezes dava para ver das estradas dsfalto.

    lster foi atrs dele para a cozinha, falando sobre uroblema do fogo, e eu olhei para as serras brancaomo giz e me enquadrei daquela distncia, de um modnico, homem numa paisagem num dia longo, quas

    nvisvel.

    O almoo era mvel, flexvel, cada um come quando

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    nde quiser. Dei por mim na mesa junto com Elster, qustava olhando para o queijo fundido que Jessie havomprado na ltima vez que fomos cidade. Ele dissue o corante daquele queijo era urnio usado e eeguida o comeu, com mostarda, entre duas fatias de p

    e priso, e eu fiz o mesmo.

    essie era o sonho do pai. Ele no parecia ficar perplexiante do modo atrofiado como ela reagia a seu amo

    No reparar era natural nele. No sei se Elster tinhonscincia do fato de que ela no era ele.

    Quando terminou o sanduche, ele se debruou sobre mesa, apoiando-se nos cotovelos, falando num tom maaixo.

    No fao questo de ver um carneiro selvagem antes dmorrer.

    Certo, respondi.

    Mas quero que a Jessie veja.

    Certo. A gente pega o carro.

    A gente pega o carro, ele disse.

    Vai ter uma hora que a gente talvez tenha que saltar d

    arro e subir uma encosta. Eu acho que eles ficaarados na beira dos precipcios. Eu gostaria de ver u

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    eles. No sei muito bem por qu.

    le se aproximou um pouco mais.

    Voc sabe por que ela est aqui.

    magino que o senhor quisesse estar com ela.

    Eu sempre quero estar com ela. A me, foi ideia da mela. Ela est saindo com um homem.

    Certo.E a me dela est cismada com as intenes dele, onto s o jeito dele, a cara dele. E ela decretou, do jeiutoritrio dela, que era melhor a Jessie se afastar dem pouco, por ora, temporariamente, para testar

    nvolvimento dela.

    Por isso ela veio pra c. E o senhor falou com ela sobsso.

    Tentei. Ela fala pouco. No tem problema nenhum,

    ue ela diz. Parece que ela gosta do sujeito. Eles saemles conversam.

    Qual o grau de intimidade entre eles?

    Eles conversam.

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    Eles transam?

    Eles conversam, ele disse.

    Agora estvamos os dois debruados sobre a mesa, u

    e frente para o outro, falando num cochicho nervoso.Ela nunca teve um caso?

    Confesso que s vezes me pergunto isso.

    Nenhum namorado srio.Acho que no, no, com certeza no.

    a me dela que mandou ela pra c. Isso certamenuer dizer alguma coisa.

    A me dela uma mulher lindssima, at hoje, mas ents ainda tem muito ressentimento, e quando ela manda

    menina ficar comigo, isso quer dizer alguma coisa, simMas alm disso ela maluca. uma louca varrida quxagera tudo.

    O sujeito no vive perseguindo ela. Tipo psicopata.

    No, Deus me livre, no psicopata, no, odeio essalavra. Talvez persistente, s isso. Ou ento gago. Onto tem um olho castanho e outro azul.

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    As esposas. Que assunto, eu disse.

    As esposas, sim.

    Quantas?

    Quantas. Duas, ele disse.

    S duas. Eu pensava que era mais.

    S duas, ele disse. A sensao que eu tenho que

    mais.As duas loucas. Estou s chutando.

    As duas loucas. Com tempo a coisa vai amadurecendo.

    O qu, a loucura?No incio a gente no v. Ou porque elas escondem oorque a coisa precisa amadurecer. Quando isscontece, no tem que errar.

    Mas Jessie o tesouro, a bno.

    sso mesmo. E voc?

    No tenho filho.

    A sua mulher. Que voc separou dela. Ela louca?

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    Ela acha que eu que sou louco.

    Voc no concorda, ele disse.

    No sei.

    Voc est protegendo o qu? Ela louca. Pode dizer.

    Ns dois continuvamos cochichando, o cochicho parecortalecer os laos entre ns, mas eu no disse. Recosteme na cadeira e fechei os olhos por um momento, vend

    meu apartamento, limpo e silencioso e vazio, quatro horaa tarde, horrio de Nova York, e minha presena parecmaior l, naquela luz poeirenta, do que ali, na casa ou som cu aberto, mas eu me perguntava se eu quer

    mesmo voltar a ser o homem que mora no quarto e saercado pela cidade construda para medir o tempegundo Elster, o tempo furtivo dos relgios, calendrio

    minutos que restam para viver.

    nto olhei para ele e perguntei se havia um binculo nasa. Vamos precisar de um binculo para a expedi

    xpliquei. Ele pareceu ficar perplexo. Os carneiroelvagens, eu disse. Se a gente no morrer afogada numabea-dgua. Se o calor no matar a gente. Vamorecisar de um binculo para ver os detalhes. O macho ue tem aqueles chifres curvos.

    * *

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    la disse uma coisa engraada no jantar, que os olhoela ficavam mais perto um do outro em Nova York, pofeito do congestionamento em srie das ruas. Ali neserto os olhos se afastam, os olhos se adaptam ambiente, como asas ou bicos.

    m outras ocasies ela parecia insensvel a qualquoisa que pudesse lhe provocar alguma reao. Seu olharecia encurtado, no chegava at a parede ou a janel

    Olhar para ela me perturbava, por saber que ela no sentia observada. Onde estaria ela? No estava imersm pensamentos nem lembranas, no estava planejandprxima hora nem o prximo minuto. Estava ausent

    ensamente imobilizada por dentro.

    eu pai se esforava para no perceber esses momento

    entado do outro lado da sala, na companhia de seuoetas, lia movendo os lbios.

    Abordei Richard Elster depois de uma conferncia que eeu na New School e no perdi tempo, fui logo falando n

    deia de fazer um filme, simples e forte, eu disse, o home

    a guerra, ele tambm no perdeu tempo, me deixoesticulando no meio de uma frase, mas s por u

    momento. Fui atrs dele pelo corredor, falando no tepressa, e depois o acompanhei no elevador, aindalando, e quando chegamos rua ele olhou para mim ez um comentrio sobre a minha aparncia, dizendo quu parecia ele quando ele era muito mais jovem, u

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    studante que comia pouco e estudava demais. Achei qusso era um estmulo, dei-lhe meu carto de visitas e ouvier em voz alta, Jim Finley, Deadbeat Films. Mas nstava interessado em participar de um filme, nem meem de ningum.

    O segundo encontro foi mais longo e mais estranho. NMoMA. Toda vez que eu vou ao museu, por mais vezeue j tenha ido, andando em direo ao oeste, ele esempre mais longe que da vez anterior. Eu estaverambulando por uma exposio sobre dadasmo e stava Elster, sozinho, debruado sobre um mostrurio. Eabia que ele havia escrito a respeito dos significados dalbuciar dos bebs, e por isso evidentemente estar

    nteressado numa mostra importante de objetos criadom nome da demolio da lgica. Fiquei atrs dele p

    meia hora. Eu olhava as coisas que ele olhava. s vezele se apoiava na bengala, em outras ocasies apenasarregava, de qualquer jeito, na horizontal, em meio

    mars de gente. Eu disse a mim mesmo para ficanquilo, ser civilizado, falar devagar. Quando ele fndando em direo sada, aproximei-me dele, lembre

    do nosso encontro anterior, falei sobre o balbuciar doebs e depois insisti com jeito para que ele subisse atexto andar e fosse galeria onde estava a instalao d

    Psicose em baixa velocidade. Ficamos parados nscurido, olhando. Senti quase na mesma hora qu

    lster estava resistindo. Alguma coisa vinha sendubvertida ali, sua linguagem tradicional de rea

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    magens natimortas, tempo desmontado, uma ideia tberta teorizao e argumentao que no lhe deixavm contexto ntido para dominar, apenas a rejeio sec

    Na rua ele falou por fim, basicamente sobre a dor noelho. Quanto ao filme, nem pensar, jamais.

    Uma semana depois ele me telefonou dizendo que estavum lugar chamado Anza-Borrego, na Califrnia. Eu nuncuvira falar nele. Ento chegou pelo correio um mapesenhado mo, estradas e trilhas para jipes, e na tardeguinte peguei um voo barato. Dois dias, pensei. Trs n

    mximo.

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    3.

    odo momento perdido a vida. incognoscvel, menoara ns, cada um de ns inexprimivelmente, este homemquela mulher. A infncia vida perdida recuperada ada segundo, ele disse. Dois bebs sozinhos nuuarto, luz bem fraca, gmeos, rindo. Trinta anos depoim em Chicago, um em Hong Kong, eles so o produ

    aquele momento.

    Um momento, um pensamento, aparece e some, cada ue ns, numa rua em algum lugar, e isso tudo. Eu merguntava o que ele queria dizer com tudo. o que nhamamos de eu, a vida verdadeira, ele disse, o s

    ssencial. o eu no chafurdar macio do que ele sabe, eue ele sabe que ele no vai viver para sempre.

    u tinha o hbito de ficar vendo os crditos at o fimodos, sempre que ia ao cinema. Era uma prtica que ontra a intuio e o bom-senso. Eu tinha vinte e pouconos, sem compromisso em todos os sentidos, e s m

    evantava da minha poltrona quando terminava o desfile domes e ttulos. Os ttulos eram uma linguagem sada dlguma guerra antiga. Claqueteiro, armeiro, assistente dudio, figurinista de figurantes. Eu me sentia compelido

    ermanecer sentado, lendo. Num certo sentido eu estavme entregando a alguma fraqueza moral. O caso ma

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    agrante disso ocorria depois da cena final de umuperproduo de Hollywood, quando os crditoomeavam a descer, um processo que durava cinco, deuinze minutos e inclua centenas de nomes, mil nomera o declnio e a queda, um espetculo de excess

    uase igual ao prprio filme, mas eu no queria querminasse.

    azia parte da experincia, tudo era importante, absorva, suport-la, dubl de carros, cenografia, financeiro. Ea todos os nomes, todos, a maioria deles, pessoas derdade, quem elas eram, por que tantas, nomes que mascinavam na escurido. Quando os crditos terminavamu estava sozinho no cinema, talvez uma velha sentada elgum lugar, viva, os filhos nunca telefonam. Parei dazer isso quando virei profissional de cinema, embo

    unca encarasse o trabalho exatamente como umrofisso. Era cinema, s isso, e eu estava decidido azer cinema, fazer um filme. Un film. Ein film.

    Ali, com eles, eu no sentia falta do cinema, a paisageomeou a parecer normal, a distncia era normal, o cal

    ra o tempo e o tempo era o calor. Comecei a entender ue Elster queria dizer quando afirmava que o tempo aliego. Alm dos arbustos e cactos, apenas ondas dspao, de vez em quando trovo ao longe, a espera dhuva, o olhar passando por cima dos morros at chegar

    ma cordilheira que estava l ontem, hoje perdida em cumortos.

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    Calor.

    sso mesmo, disse Jessie.

    Diz a palavra.

    Calor.

    Sente ele batendo.

    Calor, ela disse.

    essie estava sentada no sol, primeira vez que eu a vazer isso, com a roupa que sempre usava, jeanrregaado at a barriga da perna, mangas da camisrregaadas at os cotovelos, e eu estava em p n

    ombra, olhando.Voc vai morrer assim.

    O qu?

    Sentada no sol.O que mais que tem pra se fazer?

    Ficar l dentro planejando o dia.

    Onde que a gente est, alis?, ela perguntou. Ser quu sei?

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    u no estava usando o celular e quase nunca pegava naptop. Esses objetos comearam a parecer frgeis, pmais que fossem rpidos, por maior alcance quvessem, aparelhos sobrepujados pela paisagem. Jess

    stava tentando ler fico cientfica, mas nada que ela let ento chegava perto da vida comum naquele planetisse ela, em termos de inimaginabilidade. Seu pncontrou dois halteres num armrio, trs ou quatro quiloada um, feitos na ustria. H quanto tempo esto a

    Como foram parar l dentro? Quem os usava? E

    omeou a us-los, levantando e respirando, levantandofegando, um brao, depois o outro, para cima e paaixo, bufando feito um homem que est se estrangulande modo controlado, uma asfixia autoertica.

    O que eu fazia? Eu enchia o isopor com sacos de gelo arrafas dgua, pegava o carro e andava sem rumuvindo fitas de cantores de blues. Escrevi uma carta pa

    minha mulher e depois fiquei tentando decidir se devmand-la ou rasg-la ou esperar uns dois dias, para enteescrev-la e mand-la ou rasg-la. Eu jogava cascas d

    anana do alto do deque para os bichos, e parei de conts dias que haviam se passado desde que eu chegarlgo em torno de vinte e dois.

    Na cozinha ele disse: Sei como foi o seu casamento. po de casamento em que um conta tudo pro outro. Voc

    ontava tudo pra ela. Eu olho pra voc e vejo isso no se

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    osto. a pior coisa que se pode fazer num casamentContar pra ela tudo o que voc sente, contar pra ela tudoue voc faz. por isso que ela te acha maluco.

    No jantar, comendo mais uma fritada, ele brandiu o garfo

    isse: Voc entende, no uma questo de estratgiNo estou falando em segredos, em mentiras. Estoalando em ser voc mesmo. Se voc revela tudo, cadentimento, pedindo compreenso, voc perde uma coisrucial pra sua autoconscincia. Voc tem que saboisas que os outros no sabem. o que ningum sabobre voc que permite que voc se conhea.

    essie revezava os copos e pratos no armrio para queente no usasse sempre os mesmos o tempo todo eixasse os outros sem uso. Ela fazia isso em surto

    eridicos de energia, como uma possessa, pondo ertica uma organizao sistemtica na pia, no ralinhas prateleiras. O pai a incentivava. Ele enxugava oratos e depois ficava a v-la guardando-os narateleiras, cada um em seu lugar exato. Ela estava etividade, estava ajudando a cuidar da casa e fazia iss

    o modo mais extremado, o que era bom, o que era timisse ele, porque no faz sentido lavar pratos se voc nst sendo impelido por alguma coisa que v alm d

    mera necessidade.

    le disse a ela: Antes de voc ir embora, quero que vem carneiro selvagem.

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    la ficou de queixo cado e levantou as mos, com aalmas viradas para cima, como quem diz de onde sa

    sso, o que foi que eu fiz para merecer isso, os olhorregalados, uma criana perplexa num desenho animad

    A noite em que ela falou sobre as galerias de arte dChelsea.

    la costumava frequentar as galerias com uma amighamada Alicia. Ela disse que Alicia era uma anta. Dissue andavam pela rua comprida escolhendo galerias smo e olhando para as obras de arte e depois andava

    mais um pouco e viravam a esquina e caminhavam peutra rua, andando e olhando, e um dia ela pensou numoisa inexplicvel. Vamos fazer a mesma coisa, subir escer as mesmas ruas, mas sem entrar nas galeria

    Alicia disse certo, tipo assim, na mesma hora. Elazeram isso e foi uma coisa discretamente empolgantisse ela, foi como a ideia da vida delas. Caminhando pquelas ruas compridas e quase vazias numa tarde de de semana e sem dizer nada passando por todas abras de arte e depois atravessando a rua e subindo peutro lado da mesma rua e virando a esquina e entranda outra rua e descendo a outra rua e atravessando parautro lado e subindo a mesma rua. Descendo e depoubindo e depois passando para a prxima rua, vezeem conta, s andando e conversando. Isso aprofundou

    xperincia, falando srio, disse ela, foi melhor e a genurtiu mais, uma rua de ois da outra.

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    A noite em que ela se plantou na beira do dequncarando a escurido l fora, as mos apoiadas narapeito.

    ra uma posio quase estudada, coisa rara nela, e eme levantei, sem entender bem por qu, fiquei em plhando para ela. A luz do quarto de Elster continuavcesa. Acho que eu queria que ela se virasse e me vissarado ali. Se eu dissesse alguma coisa, ela saberia quu estava em p. A direo da voz indicaria que eu estav

    m p e ela haveria de querer saber por qu, e por isso sraria e olharia para mim. Assim eu ficaria sabendo o qula queria, pelo jeito como se virasse, a expresso em seosto, ou o que eu queria. Porque eu precisava ssperto, ser cuidadoso. Estvamos ns trs ali sozinhos

    u era o que estava no meio, o perturbador em potenciafazedor de merda da famlia.

    Quando a luz do quarto de Elster se apagou, me dei cone que aquele momento era uma regresso inocentapaz e moa de uma outra era aguardando que os pa

    ela fossem para a cama, s que os pais dela haviam sivorciado e se detestavam e a me dela j tinha ido seitar trs horas antes, horrio da Costa Lestossivelmente acompanhada.

    Chamei-a para sentar do meu lado. Usei essa expressentar do meu lado. Ela atravessou o deque e ficamo

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    lgum tempo sentados. Ela me disse que estavensando num casal de idosos que ela levava ao mdic

    ajudava em casa s vezes. Ficavam os trs vendeleviso tarde e a mulher a toda hora olhava para marido para ver como ele reagia ao que as pessoas n

    ela estavam dizendo ou fazendo. Mas ele no reagiunca esboava reao nenhuma, nem sequer notava qula estava olhando, e Jessie pensava que aquilo era

    ongo espetculo de um casamento tpico, meio gota ota, uma cabea se virando, a outra sem perceber nadles perdiam coisas o tempo todo e passavam horas

    mesmo dias tentando encontr-las, o mistrio dos objetoue desapareciam, c