DELIBERAÇÃO PRÉ-CONSTITUCIONAL: A ASSEMBLEIA§ão-pré... · que simples legitimação, porém...
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DELIBERAÇÃO PRÉ-CONSTITUCIONAL: A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE BOLIVIANA DE 2006-20071
Andrey Borges Pimentel Ribeiro2
RESUMO: A democracia deliberativa pressupõe a igualdade como condição ideal. Entendemos que o conceito de igualdade pode ser compreendido sob o prisma da teoria do reconhecimento para uma melhor apreensão da realidade em termos de conflito social. A partir da compatibilização entre teoria do reconhecimento e democracia deliberativa, buscamos contextualizar o momento constitucional como um momento propício para a deliberação pública, em que mesmo uma Assembleia Constituinte pode configurar como um ambiente de deliberação institucionalizado desde que mantido o direito fundamental da integridade para deliberação. Assim, podemos abordar o caso da Assembleia Constituinte da Bolívia entre 2006 e 2007 como um momento de democracia deliberativa.
PALAVRAS CHAVES: Deliberação; Igualdade; Ativismo; Constituição; Assembleia.
INTRODUÇÃO
A democracia deliberativa enseja uma série de discussões políticas e sociais
motivadas pelo seu teor e pretensões radicais, sendo que uma diversidade de reações
teóricas compreende aprimoramentos e críticas, entusiasmo e ceticismo. A tendência
bibliográfica tem sido uma verificação empírica dos quadros normativos da democracia
deliberativa, que é também a motivação deste trabalho. O objetivo é investigar a Assembleia
Constituinte da Bolívia de 2006-2007 a partir da teoria da democracia deliberativa, tendo em
vista que o trabalho empírico não pode subtrair os exigentes requisitos normativos da teoria
em tela.
O presente trabalho é orientado pela seguinte pergunta: o caso da Assembleia
Constituinte boliviana que promulgou a Constituição de 2009 foi um momento de
deliberação democrática? Nossa hipótese é que esta pergunta pode ser respondida
afirmativamente, desde que a condição de igualdade ganhe contornos normativos mais
amplos pela teoria do reconhecimento.
O primeiro tópico caracteriza o modelo democrático deliberacionista em Habermas.
Essa opção tem duas justificativas metodológicas: primeiro, por ser Habermas o precursor e
1 O presente trabalho foi apresentado à disciplina optativa Teorias da Democracia Deliberativa
ministrada pela Professora Doutora Heloísa Dias Bezerra no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Goiás (UFG), como requisito de composição de nota. Ademais, parte do desenvolvimento teórico e empírico deste trabalho é objeto da minha Dissertação de Mestrado em andamento, mas com outra perspectiva, pois não utilizo Teoria Deliberativa ou Teoria do Reconhecimento como aporte teorético em minha Dissertação. 2 Universidade Federal de Goiás. [email protected]. Mestrando em Ciência Política pela UFG.
Bolsista da FAPEG. Especialista em Direito Constitucional pela UFG. Pós-graduado em Direito Administrativo e Processo Administrativo pela UCAM. Licenciado em História pela UEG. Bacharel em Direito pela UFG.
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principal expoente do modelo deliberativo de democracia; segundo, porque sustenta seu
modelo absorvendo várias críticas, o que evidencia uma proposta madura em termos
normativos. A recomposição do modelo habermasiano desemboca no problema da condição
de igualdade, que entendemos necessitar de um diálogo com a teoria do reconhecimento. O
tópico primeiro aborda a questão da igualdade pela intersubjetividade conflituosa como
pressuposto inerente à sua materialidade, em que a igualdade consiste em uma constatação
da desigualdade que se vincula ao conflito, motivando o ativismo político dos movimentos
sociais na busca de seus objetivos coletivos. Então, é uma tentativa de alargar a exigência
normativa de igualdade da democracia deliberativa.
Na sequência, o trabalho busca estabelecer a Assembleia Constituinte como um
momento privilegiado de deliberação, desde que o direito fundamental da integridade para
deliberar seja observado. Nesse contexto, Bruce Ackerman e James Fishkin apontam que a
política constitucional atrai atenção dos sujeitos participantes da democracia, propiciando
maior engajamento. Ponderamos essa questão com Jon Elster e suas considerações sobre
racionalidade e pré-compromisso inerentes a uma Assembleia Constituinte. Vale consignar
que o direito fundamental para deliberar é inerente ao modelo habermasiano, todavia, os
demais direitos e mesmo a Constituição não são estáticos, podendo ser modificados.
O último tópico se propõe a analisar a Assembleia Constituinte da Bolívia de 2006-
2007 em função do modelo de democracia deliberativa adaptado à teoria do
reconhecimento. Consideramos que o ativismo político dos movimentos sociais foi
necessário para a inserção das causas indígenas no debate público e subsequente
consecução da condição de igualdade para constituir a Assembleia como um espaço
institucionalizado de democracia deliberativa. Assim, o caso da Assembleia Boliviana é
articulado em duas frentes: a primeira remete ao ativismo político anterior à Assembleia
como forma de desobstruir desigualdades que impediam sua realização; a segunda reflete o
trabalho etnográfico de Schavelzon sobre tal Assembleia recheada de discussão e debates
cujo resultado foi a Constituição da Bolívia de 2009.
Por fim, são apresentadas as considerações finais e referências bibliográficas
utilizadas no presente artigo.
1. CARACTERIZAÇÃO DO MODELO DEMOCRÁTICO DELIBERACIONISTA
A democracia é o cerne do debate político e canaliza esforços teóricos para uma
melhor compreensão e aplicação do regime. As ideologias que impregnam o termo disputam
entre si a proeminência conceitual em modelos normativos que consigam corresponder a
uma melhor apreensão da realidade. Nesse viés, todas as propostas de democracia são
normativas (HABERMAS, 1995) à medida que tentam estabelecer parâmetros de
3
operacionalização. A disputa tradicional opõe o liberalismo ao republicanismo, assim, a
democracia deliberativa se insere no debate democrático como um meio termo (TAVARES,
2012, p. 21) dessa disputa na tentativa de conciliar a legitimidade republicana com o
constitucionalismo liberal: “a política dialógica e a política instrumental podem entrelaçar-se
no campo das deliberações” (HABERMAS, 1995, p. 45). É, portanto, a democracia
deliberativa, um modelo normativo radical fundamentado na teoria do discurso e na filosofia
pragmática (HABERMAS, 2011, p. 19-25; p. 28; p. 43) cujo núcleo é a legitimidade3.
Em uma acepção genérica, o modelo deliberacionista de democracia se concentra
na estrutura procedimental, a qual deve proporcionar a comunicação entre as pessoas
visando à produção de um consenso (HABERMAS, 2011). O caráter procedimental assume
importância porque a deliberação adquire uma semântica de “discussão e avaliação no qual
os diferentes aspectos de uma determinada proposta são pesados” (AVRITZER, 2000, p.
26) em detrimento da decisão em si4. A centralidade do momento argumentativo inaugurado
por Habermas na década de 1970 é destacado por Avritzer (2000) como uma indicação da
primazia do aspecto qualitativo relacionado à legitimidade do procedimento desenvolvido por
“fluxos comunicacionais” (TAVARES, 2012, p. 25) entre os participantes que constituem
suas subjetividades nesse processo. É a própria consubstanciação do pragmatismo e da
teoria do discurso que anima seu modelo societal, em que os sujeitos deliberantes não são
os indivíduos atômicos do liberalismo majoritário de Weber a Downs motivados por
procedimentos decisionísticos (AVRITZER, 2000, p. 27-31), mas se perfazem na interação
social que afasta a tensão entre sociedade e indivíduo (TAVARES, 2012, p. 25). Dessa
interação entre os sujeitos participantes deve surgir a integração social para alcançar
resultados positivos “avaliados segundo medidas da racionalidade ética e moral” sendo que
“a estabilização concreta de uma ordem não é indicador suficiente para a racionalidade de
uma solução” (HABERMAS, 2011, p. 47).
A questão da racionalidade no modelo de Habermas aponta para a complexidade
das sociedades contemporâneas e seu pluralismo enquanto teoria social. A indicação do
pluralismo suscitou uma dificuldade para a legitimidade política, derivando duas teorias, a
saber, a teoria do sistema e a teoria econômica, as quais repetem o problema do consenso
reiterado no atomismo ao estabelecê-lo, respectivamente, na órbita do poder situado em
unidades fechadas, logo, incomunicáveis, e na formação da vontade por intermédio da
agregação de manifestações individuais. O problema é o mesmo em ambas as teorias: não
há comunicação, reduzindo a racionalidade à sua dimensão instrumental do agir estratégico
3 A questão da legitimidade é central para Habermas, afinal, é justamente essa categoria que
concentra suas críticas à suposta “empiria” dos modelos predominantes, os quais tendem a reduzir a legitimidade à estabilidade (HABERMAS, 2011, p. 12-18). 4 A deliberação enquanto decisão remete aos primórdios da democracia moderna associados à
Rousseau, tendo proeminência por quase dois séculos (AVRITZER, 2000, p. 26).
4
(HABERMAS, 2011, p. 61-65). O modelo habermasiano se propõe a avançar na
racionalidade desenvolvendo uma atmosfera de comunicabilidade voltada para o
entendimento, em que a ação presente na pretensão torna-se válida pelo agir comunicativo
(HABERMAS, 2011, p. 50), refletindo a própria racionalidade comunicativa em sua essência.
A disposição para a comunicação é percebida por Habermas como um fenômeno europeu
do século XVIII5, em que as pessoas conversavam orientadas para o entendimento,
independentemente da política e do direito (HABERMAS, 2011, p. 51). Em todo caso, a
sociedade moderna, para Habermas, possui condições de racionalidade que superam o
isolamento da vontade, seja na interação dos indivíduos, seja na interação entre sistemas.
Mais uma vez, a proposta é uma alternativa em prol da racionalização que “significa mais do
que simples legitimação, porém menos do que a constituição do poder” (HABERMAS, 2011,
p. 23). Assim, não há desconsideração do sistema ou da razão instrumental nesse modelo,
mas uma tentativa de superar suas formas isolacionistas de compor o poder, por isso a
conexão do sistema ao mundo da vida (HABERMAS, 2011, p. 84).
Uma vez pontuado o problema das teorias políticas derivadas da teoria social do
pluralismo, Habermas (2011, p. 84) sustenta a importância do poder comunicativo para seu
modelo societal em que “a política e o direito não podem ser entendidos como sistemas
autopoieticamente fechados”. O elemento diferencial na proposta social de Habermas (2011,
p. 86) é a questão da linguagem a qual viabiliza o poder comunicativo. A linguagem para
Habermas, embora não tenha necessidade de ser especializada, deve ser um código
comum no seio da sociedade que possibilita a circulação do poder; a circulação do poder
então transparece nos “processos de comunicação e de decisão do sistema político
constitucional (...) ordenados no eixo centro-periferia, estruturados através de um sistema de
comportas” (HABERMAS, 2011, p. 87). Os conceitos de esfera pública e de sociedade civil
ganham visibilidade em Habermas como retroalimentação do sistema. Enquanto a esfera
pública “pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos,
tomadas de posição e opiniões” (2011, p. 93), a sociedade civil6 tem um aspecto material
nas “associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram
as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da
vida” (2011, p. 100). Dessa forma, o mundo da vida se entrelaça ao poder político mediado
pela esfera pública, que é onde se desenvolve o agir comunicativo da racionalidade ideal
habermasiana visando o entendimento.
5 Esse indício de esfera pública que para Habermas se situa historicamente no século XVIII é
contestado e tratado como um anacronismo habermasiano, devendo voltar à Florença renascentista (BURKE apud TAVARES, 2012, p. 189). 6 Habermas (2011, p. 99-100) destaca que seu conceito de sociedade civil difere do de Hegel
(“sistema das necessidades”) e do de Marx (atrelado à economia).
5
A dimensão argumentativa reflete a racionalidade e permeia o debate público em
Habermas através de seu princípio do discurso, que remete à consecução de validade
(AVRITZER, 2000, p. 39-40), complementado pelo princípio da universalização cujo objetivo
é verificar a plausibilidade de casos particulares ao substrato comum em uma tarefa de
adequação reflexiva. Os princípios habermasianos permitem sintetizar a democracia
deliberativa como um procedimento que os “sujeitos racionais, autônomos e iguais entre si
participam de um intercâmbio comunicativo guiado apenas pela força dos melhores
argumentos, com vistas à produção de decisões que possam ser universalmente válidas”
(TAVARES, 2012, p. 29).
Joshua Cohen (1989, p. 31-33) estabeleceu uma concepção formal de democracia
deliberativa tendo em vista quatro características principais que se estabelecem para um
procedimento ideal baseado em liberdade (ausência de constrangimentos); racionalidade
(na fundamentação); igualdade (formal e substantiva); e, (orientado para o) consenso. O
conceito de democracia deliberativa explicitado por Cohen é retomado por Habermas (2011,
p. 28-33), mas este difere daquele ao estipular o procedimento deliberativo “não como
modelo para todas as instituições sociais (nem mesmo para todas as instituições do
Estado)”. Essa restrição de Habermas (2011, p. 28-29) refere-se ao alargamento da
deliberação política em Cohen, algo que não é não tolerado por Habermas. Segundo
Habermas a perspectiva de Cohen é impossibilitada pela limitação de regulamentação do
direito, em que a deliberação política se atrela ao mesmo, portanto, a proposta de Cohen, na
visão de Habermas, reduz a sociedade ao direito ou amplia este à sociedade (as duas
coisas são impossíveis). Ademais, Habermas (2011, p. 32) critica o modelo de Cohen
denunciando sua omissão em relação a “diferenciações internas importantes” bem como a
ausência de “enunciados sobre a relação existente entre as deliberações, que são reguladas
através de processos democráticos, e os processos de formação informal da opinião na
esfera pública”.
Independentemente das divergências entre Habermas e Cohen, é muito caro a
ambos os autores a questão da igualdade. Tal exigência normativa suscitou e suscita várias
críticas7, todavia, nosso intuito é equacionar a condição da igualdade pela teoria do
reconhecimento a fim de adequá-la à complexidade das sociedades contemporâneas.
1.1. A IGUALDADE SOB O PRISMA DO RECONHECIMENTO
Para uma visualização da igualdade na teoria do reconhecimento, partimos das
análises de Charles Taylor, filósofo canadense. Axel Honneth, que é nosso referencial para
7 Não é escopo deste artigo uma revisão bibliográfica sobre a igualdade ou ausência dela na
democracia deliberativa, todavia, consignamos a crítica contumaz de Young (2000) quanto as desigualdade estruturais tangentes à inclusão.
6
uma teoria social envolta na categoria “reconhecimento” coaduna com a digressão filosófica
de Taylor na qual o canadense reinterpreta a obra de Hegel contextualizando-a para a
realidade complexa das relações sociais atuais. Além disso, Taylor continua a tradição
hegeliana de tratar os temas políticos atrelados aos dilemas éticos, sendo que ética e
política são componentes de uma mesma totalidade. A principal obra de análise de Taylor é
a “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, publicada em 1807 e o paradigma do capítulo IV
expressado na “Dialética do Senhor e do Escravo”. Embora Taylor admita a presença
pioneira do reconhecimento na obra hegeliana, o autor canadense faz um recuo histórico
para posicionar as origens do reconhecimento no pensamento ocidental e sua construção
anterior à Hegel (TAYLOR, 2000, p. 242).
A primeira percepção de Taylor para desencadear a ideia de reconhecimento foi o
advento da noção moderna de dignidade em substituição à honra típica do Antigo Regime.
Segundo Taylor (2000, p. 244), Rousseau é o primeiro filósofo a conceber o indivíduo como
um ser dotado de “sentimento de existência”, o que lhe permite discernir o certo do errado
baseado em princípios morais “na recuperação do contato moral autêntico com nosso
próprio ser”. Também de acordo com o canadense, em Herder o ideal de autenticidade é
acentuado com a definição de que “cada pessoa possui a sua própria medida” (TAYLOR,
2000, p. 244-245) o que significa dizer que cada pessoa tem uma maneira original de ser.
Assim, o ideal de autenticidade aparece como uma novidade do século XVIII, um fenômeno
historicamente recente e peculiar da cultura ocidental. O próprio Herder, segundo Taylor
(2000, p. 245), aplicou esse ideal moderno de autenticidade em dois níveis: “não só à
pessoa individual entre outras pessoas mas também ao povo dotado de sua cultura entre
outros povos”. Ao mesmo tempo, Taylor (2000, p. 246) concebe a condição humana ligada a
um processo dialógico que se manifesta na linguagem, a qual possibilita a intersubjetividade
e amplia as margens do ideal de autenticidade. A linguagem deve ser tomada em sentido
amplo, “incluindo as ‘linguagens’ da arte, do gesto, do amor etc (...); modos de expressão
por meio de intercâmbios com outras pessoas” (TAYLOR, 2000, p. 246). A linguagem
trespassa e formata a história individual e social dos sujeitos dialógicos. Nesse sentido, a
formação do indivíduo não é apenas um processo monológico, o qual não é descartado,
mas é complementar à dialógica, pois a identidade enseja rompimentos monológicos em
relação à dependência dialógica (negar o que é construído intersubjetivamente), e isto
mesmo em relação às pessoas que amamos, embora nunca haja uma libertação completa
(TAYLOR, 2000, p. 247). Interessante observar que Taylor coincide com Habermas quanto à
importância da linguagem na constituição social e individual, mas em Taylor, a linguagem
tem um aspecto mais amplo.
7
A questão da identidade é, nesses termos, algo construído socialmente por
processos dialógicos. O problema é que na modernidade surge o aspecto da autenticidade
que permite um potencial de identidade original no indivíduo, mas que não goza de imediato
reconhecimento. Até então, o reconhecimento não era um problema, pois não havia a noção
de originalidade: “o que surgiu com a era moderna não foi a necessidade de
reconhecimento, mas as condições em que a tentativa de ser reconhecido pode malograr.
Eis por que essa necessidade é agora reconhecida pela primeira vez” (TAYLOR, 2000, p.
248).
Após fazer o percurso histórico-filosófico do reconhecimento e referenciar
Rousseau e Herder, Taylor (2000, p. 248-249) confirma que Hegel é quem confere
tratamento influente à questão. Afirma que o reconhecimento tem, atualmente, importância
nítida, operando no plano interno e no plano social. Especialmente no plano social, a
identidade deve ser considerada com muita cautela, tendo em vista que “o reconhecimento
igual não é somente a modalidade apropriada a uma sociedade democrática saudável. Sua
recusa pode, de acordo com uma disseminada visão moderna (...) infligir danos àqueles a
quem é negado” (TAYLOR, 2000, p. 249). Sendo assim, a ética da autenticidade
estabeleceu um novo paradigma na política do reconhecimento (igual). Mas deve-se tomar
cuidado ao considerar a realização da política baseada apenas no aspecto da dignidade
com vistas à igualdade entre as pessoas. Ora, a igualdade alicerçada apenas na dignidade
sem considerar a autenticidade pode levar a políticas homogeneizantes contrárias ao ideal
de autenticidade, à medida que não reconheça ou reconheça a pessoa erroneamente: “o
reconhecimento errôneo não se limita a faltar ao devido respeito, podendo ainda infligir uma
terrível ferida (...). O devido reconhecimento não é uma mera cortesia que devemos
conceder às pessoas. É uma necessidade vital humana” (TAYLOR, 2000, p. 242).
A partir de uma dialética hegeliana, Taylor concebe o reconhecimento enquanto
uma luta intersubjetiva em aberto: um movimento contínuo sem um objetivo final único e
específico, compondo a própria ação democrática permanente, na qual o pertencimento do
ser a uma comunidade é decisivo na constituição de si e ampliação da margem
interpretativa no substrato social que condiciona a identidade, seja no plano íntimo ou social.
A operação política nesse diapasão imbrica os dois momentos acima explanados. Um
primeiro momento de universalização apoiado na ideia de dignidade igual para todos os
cidadãos, que ao mesmo tempo ensejou uma mudança na identidade apoiada na
autenticidade, originando uma política da diferença como um segundo momento (TAYLOR,
2000, p. 250-251). A política da universalidade deve abarcar as diferenças, formatando
então uma legítima política dessa diferença, que por sua vez, não deixa de apresentar uma
base universalista: “é aqui que o princípio de igualdade universal coincide com a política de
8
dignidade. (...) A exigência universal estimula um reconhecimento da especificidade”
(TAYLOR, 2000, p. 251). Em suma, a igualdade se construiu e se constrói histórica e
hodiernamente entre a tensão do universal com o diverso, consolidando um conceito de
igualdade sintetizado por sua desigualdade inerente em um processo dialético. O conceito
de igualdade conferido pela teoria do reconhecimento permite refletir sobre a democracia
deliberativa em função de uma igualdade/desigualdade que se faz e se refaz através de
lutas prévias e permanentes por condições de igualdade que tangenciam as diferenças8.
Muito embora Taylor reconstrua, filosófica e historicamente, o conceito de igualdade
abalizado pela diferença na tensão entre dignidade universal (igualdade) e autenticidade
específica (diferença) de cada um, é em Honneth que a categoria “reconhecimento” recebe
contornos de uma teoria social distinta do modelo societal habermasiano, mas que não
inviabiliza a política deliberativa, pelo contrário, desobstrui suas barreiras estruturais para a
efetivação procedimental democrática.
1.2. A TEORIA SOCIAL DO RECONHECIMENTO: IMPORTÂNCIA DO ATIVISMO
POLÍTICO
“Luta por Reconhecimento” é a obra central do autor alemão Axel Honneth,
publicada em 1992. Sua base filosófica hegeliana é evidenciada pelo próprio autor.
Diferentemente de Taylor, Honneth concentra sua tese nos escritos primeiros de Hegel, em
Jena, pois, segundo Honneth (2003), é neste momento9 que Hegel expõe seu potencial
teorético em uma construção social cujo cerne é a luta por reconhecimento. O livro em tela é
proveniente da tese de livre-docência de Honneth, e, conforme o próprio autor deixa claro no
prefácio de sua obra, é uma tentativa de “desenvolver os fundamentos de uma teoria social
de teor normativo” (HONNETH, 2003, p. 23). Honneth se propõe a resgatar o potencial
conflitivo de Hegel. Essa tarefa tem duas metas preliminares: primeiro, transpor a metafísica
hegeliana para uma base empírica; segundo, atualizar essa estrutura tendo em vista a
sociedade contemporânea (HONNETH, 2003, p. 117-118). Mead, que também influencia a
obra de Taylor, é o referencial teórico de Honneth para cumprir os dois objetivos acima
destacados. No caso, Mead e sua psicologia social perfazem um caminho para “traduzir a
teoria hegeliana da intersubjetividade em uma linguagem teórica pós-metafísica”
(HONNETH, 2003, p. 123).
8 “A deliberação que defendemos é receptiva à diferença exatamente porque não requer o
apagamento do eu. Essa visão é facilmente conciliável com a teoria do reconhecimento” (MENDONÇA, 2011, p. 211). 9 Honneth retoma o jovem Hegel e seu potencial de luta por reconhecimento, potencial este, que,
segundo o próprio Honneth, se perde em suas obras posteriores. No caso, Honneth tenta revitalizar esse potencial hegeliano em uma inovadora teoria social que é o cerne de seu trabalho.
9
Tal qual Hegel, Mead parte da constituição do indivíduo através de relações
intersubjetivas. Também acompanha Hegel na tríade que vai desde o amor, passando pelo
direito até a sociedade. Em uma construção diferente com base na psicologia, Mead explica
a formação do ser desde a sua concepção no ventre materno até a sua inserção na seara
social em uma dinâmica reflexiva cujo movimento é constante na definição de si, partindo da
dupla consecução do ser enquanto sujeito e objeto, em que primeiro constitui o objeto de si
para depois entendê-lo como sujeito na interação intersubjetiva10. Todo esse processo tem
por escopo a formação da identidade no ser individuado progressivamente (HONNETH,
2003, p. 144). Mead coaduna com Hegel quanto ao significado da ampliação do
reconhecimento jurídico como uma evolução moral da sociedade, em que dois processos se
evidenciam: primeiro, um aumento da “dimensão do espaço para a liberdade individual”;
segundo, um incremento social tangente ao “número crescente de sujeitos pela adjudicação
de pretensões jurídicas” (HONNETH, 2003, p. 146). Mas, assim como Hegel, Mead se perde
em seu quadro explicativo. Quando Mead tenta conectar o ser à sociedade em sua luta por
reconhecimento, reduz a realização de si à “experiência do trabalho socialmente útil” e “não
se conclui daí uma independência em relação às finalidades éticas da coletividade
correspondente” (HONNETH, 2003, p. 150-151).
Em todo caso, a psicologia social de Mead permite uma “inflexão ‘materialista’” da
luta por reconhecimento hegeliana (HONNETH, 2000, p. 155). O trabalho de Honneth (2000,
p. 156) é contemporizar Hegel a Mead em uma justificação consoante aos “resultados da
pesquisa empírica”. Nas palavras de Honneth (2003, p. 157): “tanto em Hegel como em
Mead não se encontra uma consideração sistemática daquelas formas de desrespeito que
podem tornar experienciável para os atores sociais, na qualidade de um equivalente
negativo das correspondentes relações de reconhecimento, o fato do reconhecimento
denegado”. Um desenho normativo passa a ser delineado na explicação da resistência
social quanto à sua motivação, isto é, o reconhecimento opera de maneira dialética correlata
à sua própria negação. Primeiramente, o amor e sua integridade corporal têm como
contraponto os maus-tratos físicos cujo efeito é a perda de confiança em si mesmo
(HONNETH, 2003, p. 214-216). Em seguida, o direito e a integridade social têm como
antípodas a privação de direitos e a exclusão que geram a perda do respeito em si próprio
(HONNETH, 2003, p. 216-217). Por último, a solidariedade tem seu oposto na degradação e
na ofensa que impedem a dignidade resultando em perda de estima pessoal (HONNETH,
2003, p. 217-218).
10
Ressaltamos, neste ponto, que o reconhecimento adquire, para Honneth, inspirado em Mead, um aspecto pré-linguístico na formação do ser desde o amor maternal, o que não afasta a importância da linguagem (em sentido amplo, assim como em Taylor) na maior parte das relações sociais intersubjetivas voltados para o reconhecimento.
10
Em Hegel e Mead “faltava de certo modo o elo psíquico que conduz do mero
sofrimento à ação ativa” (HONNETH, 2003, p. 220), por isto, o autor de “Luta por
Reconhecimento” busca na psicologia pragmática de Dewey uma “concepção dos
sentimentos humanos nos termos da teoria da ação” em que “os sentimentos representam
de modo geral as reações afetivas no contrachoque do sucesso ou do insucesso de nossas
intenções práticas” (HONNETH, 2003, p. 221). Dessa forma, Honneth (2003, p. 224) situa a
luta por reconhecimento em função de impulsos motivacionais derivados de “reações
emocionais de vergonha” em que “os sujeitos humanos não podem reagir emocionalmente
neutros às ofensas sociais”.
A explicação da resistência em termos normativos parte de pressupostos sensitivos
de injustiça, sendo que seus motivos “se formam no quadro de experiências morais que
procedem da infração de expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas”
(HONNETH, 2003, p. 258). Há, portanto, uma eticidade coletiva que leva o sujeito e sua
correlata experiência pessoal a se inserir em um “círculo de muitos outros sujeitos”
afastando qualquer posição de neutralidade diante do desrespeito, o qual não é
“passivamente tolerado” e “restitui ao indivíduo um pouco de seu autorrespeito perdido”
(HONNETH, 2003, p. 258-260). A busca de um critério normativo reflete a equação entre as
determinações formais e abstratas concernentes ao indivíduo e seu potencial e as
perspectivas concretas e externas esboçadas no teor comunitário (HONNETH, 2003, p. 271-
272). A despeito da insuficiência das teorias de Hegel e Mead, “ambos avançaram até o
limiar em que começa a se entrever um conceito de solidariedade social que aponta para
uma estima simétrica entre cidadãos juridicamente autônomos” (HONNETH, 2003, p. 279).
Neste ponto se engendra o critério de Honneth (2003, p. 279) considerando a tríade
tipológica de Hegel e Mead como uma retroalimentação sistemática com vistas à
“comunidade de valores” a qual define as “finalidades partilhadas em comum (...)
submetidas às limitações normativas postas com a autonomia juridicamente garantida de
todos os sujeitos, é o que resulta de sua posição num tecido de relações”.
A receita de Honneth para equilibrar a tensão entre o universal e a especificidade é
a simetria, a qual possibilita uma luta por reconhecimento que alargue o escopo ético em
uma espiral constante e evolutiva cujo resultado é um progresso moral da sociedade
apoiado em buscas por estima. Mas, essa indicação de critério normativo de cunho material
deve se atentar para a complexidade contemporânea e sua vasta gama de intenções, o que
estimula movimentos políticos a atuarem incisivamente (HONNETH, 2003, p. 280). Por isso,
Honneth (2003, p. 280) diz que o arsenal de valores materiais ainda precisa ser bastante
ampliado, o que renova o conflito e, na condição atual, demonstra ainda uma tensão
insuperável. O ativismo político dos movimentos sociais na teoria de Honneth é uma busca
11
por reconhecimento no binômio igualdade/desigualdade. Seu modelo normativo de
sociedade consiste em um complemento à condição de igualdade para a deliberação
pública, ou seja, é uma contribuição ao quadro sociológico de Habermas que não inviabiliza
o cerne da democracia deliberativa, mas deve considerar uma sociedade conflituosa em sua
essência, que se edifica pela luta intersubjetiva alargando a eticidade; nesse prisma, a
democracia deliberativa é uma forma política possível na teoria do reconhecimento. O
ativismo se justifica na busca de reconhecimento igual para deliberar, especialmente nos
momentos constitucionais.
2. POLÍTICA CONSTITUCIONAL E DELIBERAÇÃO
A deliberação habermasiana é um momento político condicionado pelo direito. Há
uma vinculação muito forte nessa relação que desautoriza generalizar a deliberação política
para toda e qualquer emanação social como queria Joshua Cohen (1989). A concepção de
Cohen, inclusive, tangencia o republicanismo em seu ideal de sociedade como “totalidade
política”, o que Habermas (2011, p. 20) rechaça. Com seu modelo, Habermas está
interessado na deliberação voltada para a política, e nesse caso, necessita ser
regulamentada pelo direito. Em Habermas, o direito tem grande importância para que a
decisão política seja fruto de um processo legítimo de deliberação, por isso o direito deve
ser uma constante em seu modelo, sendo que o próprio autor afirma que “o modo de operar
de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode ser descrito
adequadamente (...) quando não se leva em conta a dimensão de validade do direito e a
força legitimadora da gênese democrática do direito” (HABERMAS, 2011, p. 9). Nesse viés,
a Constituição aparece como um meio de conformar validade e facticidade, ou seja, o direito
relativo aos processos políticos.
Mais uma vez, ressaltamos que a deliberação na esfera pública ocorre
independentemente da política e do direito. Aliás, mencionamos no desenrolar do primeiro
tópico a identificação histórica feita por Habermas desse fato no século XVIII. No entanto,
salienta-se que a deliberação democrática a qual orienta a política tornando-a legítima pelo
direito é a que importa ao modelo habermasiano. Assim, seu modelo tem uma historicidade
ligada ao constitucionalismo como uma delimitação da prática discursiva que respalda a
política, por isso eleva a “proteção individual do sistema de direitos fundamentais”
(TAVARES, 2012, p. 34) como a meta do direito que deve, nesses termos, garantir a
integridade dos sujeitos para que possam atuar na esfera pública.
O direito à deliberação é sustentado pela Constituição, mas esta é percebida em
seu dinamismo como algo inacabado, ou seja, é “carente de revisão, o qual tende a
reatualizar, em circunstâncias precárias, o sistema dos direitos, o que equivale a interpretá-
12
los melhor e a institucionalizá-los de modo mais apropriado” (HABERMAS, 2011, p. 119).
Aqui nos interessa o papel da Constituição enquanto objeto do ativismo político. O próprio
Habermas relaciona a expectativa dos direitos com a desobediência civil quando aquela não
é efetivada, justificando tal desobediência, o que sugere o ativismo político (TAVARES,
2012a). O limite para a alteração da Constituição, a nosso ver, em Habermas, está na
conservação dos direitos fundamentais para a deliberação: se os mesmos forem
respeitados, a deliberação é livre para modificar politicamente a própria Constituição.
A postura habermasiana quanto à modificação do direito não se contrapõe
diametralmente a teoria do reconhecimento de Honneth (2003). Aliás, a luta por direitos tem
por fundamento moral a solidariedade, a qual legitima a ação política do movimento social
quando este não encontra bases jurídicas para suas pretensões e à medida que conquista
seus anseios na forma de direito amplia o reconhecimento jurídico em um alargamento
espiral do todo ético societal. A ratificação do reconhecimento em termos jurídicos amplia a
margem do direito mesmo na perspectiva habermasiana, contribuindo para a democracia
deliberativa.
Na obra “Deliberation Day”, Ackerman e Fishkin (2004, p. 152) classificam o
momento deliberativo em “normal” e “constitucional”. Os autores reconhecem que em
períodos normais de política os cidadãos se comportam de forma a não se engajarem na
mesma e preferem seus negócios privados às questões públicas. Entretanto, esses
períodos normais de política são rompidos por políticas de mobilização de massas, que
seriam momentos de política constitucional. Assim, a maior parte dos momentos de forte
mobilização de massas em questões políticas é relativa a fatos extraordinários e relevantes,
que avalizam a evolução política. Tais momentos políticos diferem da política normal e
consistem em “modelos de política constitucional” (ACKERMAN; FISHKIN, 2004, p. 152). Os
autores ilustram essa diferenciação com exemplos históricos estadunidenses nos séculos
XVIII, XIX e XX (ACKERMAN; FISHKIN, 2004, p. 152-153) em que mobilizações resultaram
em mudanças constitucionais, sendo típico da democracia daquele país. Em suma, o
momento constitucional é privilegiado no debate político sustentando a deliberação pública.
O caso dos Estados Unidos pode parecer excepcional porque existe uma Constituição a
qual não é modificada em sua essência pela deliberação e pelo resultado que dela pode
derivar. Mas, os próprios autores referenciados ressaltam a confecção da Constituição
Estadunidense como um momento de democracia deliberativa. É esse aspecto que importa
ao nosso trabalho: momentos pré-constitucionais enquanto procedimentos de democracia
deliberativa. A seguir, tentaremos justificar que uma Assembleia Constituinte é um momento
de deliberação política.
13
2.1. ASSEMBLEIA CONSTITUINTE
O caso dos Estados Unidos elucidado por Ackerman e Fishkin (2004) ajuda a
pensar sobre o momento ideal de deliberação pública em que temáticas constitucionais
invadem toda a política e motivam um engajamento social. Considerando que é comum que
“uma Constituição escrita regulamente os aspectos mais fundamentais da vida política”
(ELSTER, 2009, p. 133), parece óbvio o fato de o momento constitucional ter maior
repercussão, pois se trata da própria base jurídica que conforma a vida política por
excelência. Mas, uma ressalva quanto à estrutura da Constituição deve ser consignada: a
“constituição deveria ser uma estrutura de ação política, não um instrumento para a ação”
(ELSTER, 2009, p. 133), por isso, há uma dificuldade maior para se alterar o quadro político
constitucionalizado, pois se pressupõe ser seu próprio fundamento.
A Constituição considerada como garantidora dos direitos fundamentais,
teoricamente, consiste em um obstáculo para a própria mudança constitucional. Contudo,
essa mudança é factível não apenas em termos de reformas, mas também em vias de
substituição completa de uma Constituição por outra, o que torna importante considerar o
contexto de instituição de uma Assembleia Constituinte. O pré-compromisso constitucional é
evidenciado no momento em que se observa a existência de limites e garantias em uma
Assembleia Constituinte, independentemente de uma Constituição propriamente dita
(ELSTER, 2009), confirmando a primazia do constitucionalismo como pré-compromisso. Se
considerarmos os casos de Assembleias motivadas por comoção social traduzida em
participação e engajamento nas mesmas, podemos inferir que a Assembleia é um momento
de política constitucional deliberativa democrática.
Desde já, é importante ressaltar que “o processo formal de elaboração de uma
Constituição é um fenômeno relativamente recente” (ELSTER, 2009, p. 139). Os casos
pioneiros foram os Estados Unidos e a França no século XVIII. Uma dúvida pertinente para
dimensionar o pré-compromisso refere-se ao processo constitucional “como atos de
restrição de outros ou como atos de auto-restrição” (ELSTER, 2009, p. 139). Geralmente, as
Assembleias Constituintes “tendem a se considerar detentoras do (...) direito de definir seus
poderes”, todavia, a decisão de convocar a Assembleia e o mecanismo de eleição são
anteriores à mesma. O tipo mais interessante relativo à Assembleia Constituinte é “um velho
regime tentando restringir o novo ao qual está, relutantemente, dando origem”, imbricando a
restrição externa com a auto-restrição. A conclusão parcial é que embora a Assembleia não
tenha poder sobre sua convocação e delegação originais, “ela pode se apropriar do poder
sobre todas as outras decisões” (ELSTER, 2009, p. 141-142). Apesar disso, o
constitucionalismo influencia na Assembleia Constituinte que se propõe a confeccionar uma
nova Constituição: se as normas constitucionais anteriores eram boas, há uma tendência
14
em mantê-las como regras de deliberação (ELSTER, 2009, p. 147-149), sendo que o
contrário também tende a acontecer. Como a Assembleia se torna uma instituição com
muito poder e sua atuação reflete o respaldo popular, o pré-compromisso é importante para
acalmar a paixão e suas efemeridades (ELSTER, 2009, p. 154; 168-180). Assim, são os
constituintes que se pré-comprometem “eles mesmos contra as tentações da paixão e do
interesse” (ELSTER, 2009, p. 180). Os direitos fundamentais aparecem nas Assembleias
nos momentos em que, mesmo com um poder à primeira vista ilimitado, os constituintes
consideram os direitos inerentes àquela sociedade, isto é, o constitucionalismo em sua
acepção histórica (CANOTILHO, 2003). Em uma sociedade que reitere o direito fundamental
de integridade para deliberar, o mesmo funciona como pré-compromisso constitucional em
uma Assembleia na afirmação da política deliberativa. Obviamente que os casos
excepcionais que não conformam um regime democrático são descartados e não se
compatibilizam com a explanação.
Uma Constituição não se confunde com o pré-compromisso em si11, tanto que,
conforme exposto acima, uma Assembleia não se apega à Constituição anterior, pois tem
poder para além desta. Todavia, o traço do constitucionalismo que se manifesta
historicamente (CANOTILHO, 2003) em uma determinada sociedade funciona como pré-
compromisso. O efeito disso está nos motivos dos constituintes os quais não se movem
exclusivamente por interesse próprio (ELSTER, 2009, p. 221). Retomando a questão sobre
o momento constitucional como o ideal para deliberação (Ackerman; Fishkin, 2004), parece
razoável supor que o momento constitucional mobilize mais as massas, tendo em vista que,
geralmente não há razões para que a política normal mobilize massas em deliberação
constante, pois a política normal decorre de uma questão constitucional anterior, o que
significa dizer que a Constituição em si já regulamentou a vida política considerando uma
deliberação que a direcionasse. Logo, o momento constitucional em sua possibilidade de
alterar o que é normal é que chama a atenção dos sujeitos para se engajarem em
deliberações. Nesse sentido, toda política é constitucional e considerou uma deliberação
prévia para se realizar. Por isso mesmo Jon Elster (2009, p. 218-219) em “Ulisses Liberto”
não supõem mais12 uma dicotomia entre constituintes e políticos que derivariam de
momentos políticos distintos, sendo que “muito da política constitucional é semelhante à
política rotineira no que diz respeito aos motivos, e que não podemos (...) esperar que os
constituintes imperfeitos criem constituições perfeitas que controlarão as imperfeições dos
11
O próprio Jon Elster (2009, p. 213) diz que “em Ulysses and the Sirens cheguei perto de admitir tanto que constituições são dispositivos de pré-compromisso (no sentido intencional) quanto que as sociedades devem se auto-restringir por dispositivos de pré-compromisso constitucionais. Como já disse diversas vezes anteriormente, essas alegações são altamente contestáveis, em termos conceituais, causais e normativos”. 12
Elster (2009, p. 218) ressalta que em trabalhos anteriores considerava existir essa dicotomia.
15
políticos futuros”. Em síntese, coadunamos com Ackerman e Fishkin quanto à dimensão do
momento constitucional balanceada com Elster por possuir características que interferem na
normalidade política, do qual decorre a mobilização das massas. Ainda com Elster, o
constitucionalismo se manifesta mesmo em casos de Assembleia Constituinte em que os
constituintes adotam pré-compromissos independentemente da Constituição anterior,
evidenciando o compromisso com os direitos fundamentais consolidados em uma
determinada sociedade. Para a realização da democracia deliberativa importa o direito
fundamental de integridade para deliberar, o que engloba momentos pré-constitucionais
como é o caso de uma Assembleia Constituinte. Em suma, desde que mantido o direito à
integridade para deliberação nos termos habermasianos, uma Assembleia Constituinte pode
se caracterizar como um espaço institucionalizado para a democracia deliberativa.
3. O CASO DA BOLÍVIA
Nesse tópico buscaremos posicionar o cenário político boliviano mesclando o teor
normativo da teoria do reconhecimento com a teoria da democracia deliberativa. Trata-se de
uma avaliação empírica baseada nos levantes sociais que tiveram por base ampliar seus
direitos, o que foi feito modificando-se radicalmente o quadro constitucional, mais
especificamente, através de uma substituição.
A Bolívia apresenta uma história constitucional bastante dinâmica. Desde a
proclamação da República no século XIX e sua primeira Constituição datada de 1826 até a
de 1967, foram 18 textos constitucionais. Durante este período, a Convenção de 1921 e o
Referendo de 1931 funcionaram, institucionalmente, como constituições, por isso são
contabilizadas como tais. A Constituição de 1967 foi ainda reformada em 1994 e 2004. De
certa forma, as variadas constituições seguem a linha política de funcionar como formas
jurídicas que garantem o poder legítimo dos que estão no governo (CARMAGNANI, 1984),
todavia, uma parcela numericamente significativa de bolivianos, sobretudo de origem
campesina e indígena, os quais muitas vezes foram tratados indistintamente, sempre foi
excluída do processo político constitutivo.
A Constituição de 2009, independentemente de suas inovações jurídicas e políticas,
difere das anteriores por resultar de uma ampla participação social, envolvendo discussões
até então mitigadas pelas instituições, mas que se faziam presentes na esfera pública pelo
menos desde 1952. A Assembleia Constituinte iniciada em 2006 foi um local privilegiado
desse debate político (SCHAVELZON, 2010) que só foi possível graças a uma trajetória
extensa de lutas e ativismo dos movimentos sociais em prol de mudanças baseada na ideia
de igualdade com suas devidas diferenças.
16
3.1. ATIVISMO BOLIVIANO: BUSCA DE IGUALDADE NA DIFERENÇA
A resistência na Bolívia13 tem relação direta com a colonização espanhola, sendo
que mesmo com a incorporação da Bolívia ao mundo hispânico, o país americano continua
marcado pela identidade autóctone e pelas raízes originárias, reproduzidas em idiomas que
vivem no seio comunitário revitalizando os grupos étnicos que nelas se expressam. O
ativismo político intensifica-se principalmente pela representação política indígena, a qual
ganhou corpo nos anos 1970 até culminar em uma consistente resistência contrária à ordem
estatal evidenciada nas eleições gerais de 2002 (CAMARGO, 2006, p. 11-12).
Conforme ressaltado, a resistência indígena é inerente à Conquista, mas seu
potencial político tem como ponto de partida o ano de 1952, em que a trajetória do índio
boliviano se fortaleceu em função de uma causa uniforme pelo reconhecimento. Assim, o
indígena passou a representar uma força política com projetos bem definidos até culminar
no movimento katarista no início dos anos 1970, em uma imbricação de atuação política
fundamentada em ideologias próprias e metas autênticas. (CAMARGO, 2006, p. 14-15).
A realidade boliviana consiste em uma situação complexa em que o arcabouço
étnico das civilizações pré-colombianas corrobora na construção de um discurso político
peculiar para o indígena como um todo, o qual é por sua vez, numericamente expressivo,
mas bastante segmentado na Bolívia. Mesmo assim há uma convergência de perspectivas
contra o domínio sobre o indígena. Entendemos que a cosmologia14 das civilizações pré-
colombianas fornece uma eticidade que motiva a resistência indígena na Bolívia devido à
sua alta ressonância simbólica e política condensada em uma “memória mítica coletiva dos
grupos autóctones” (CAMARGO, 2006, p. 17).
A ordem colonial subsequente à Conquista percorreu um caminho de exclusão do
indígena do quadro político e social com controles urbanos e repressão religiosa, relegando
o indígena como mão-de-obra em trabalhos forçados coletivos. Mesmo assim, a resistência
persistia em camuflagens litúrgicas e na permanência de componentes de produção agrícola
comunitária. Grandes insurreições indígenas aconteceram no século XVIII, como por
exemplo, a de Tupac Katari. A emancipação política boliviana no século XIX, que teve
atuação indígena, não trouxe qualquer melhoria para o mesmo. Pelo contrário, as
oligarquias típicas do século XIX na Bolívia revitalizaram “a visão de superioridade branco-
européia” que enquadrava o indígena como “selvagem” e inferior (CAMARGO, 2006, p.
13
Mesmo antes da colonização espanhola, existem relatos históricos de resistência dos povos autóctones da região contra o domínio incaico (CAMARGO, 2006, p. 51). 14
Essa cosmologia tem um complexo referencial histórico e étnico que sintetiza culturas distintas e agrupa processos de aculturação para fundamentar a resistência indígena atual. Destacamos os mitos andinos arrolados por Camargo (2006): Pachacuti (ciclos de criação e destruição nos Andes); Pachamama (figura mitológica da terra mãe); e, o Inkarrí (o Inca que retorna). Vários outros vínculos com o passado étnico multicultural são trabalhados por Camargo, mas não são objetos do nosso trabalho.
17
121). Uma reação contundente a essa postura foi a rebelião de Zárate Willka, o Mallku15,
unindo quéchuas e aimarás16.
A Bolívia viveu uma espécie de “apartheid” (CAMARGO, 2006, p. 130-134) cujo
ápice compreendeu do final do século XIX até a primeira metade do século XX. Essa
situação tornou-se insustentável para o indígena que teve sua cultura subjugada ao longo
de todo o processo colonial, condição que piorou com a independência política do país
encabeçada pelas oligarquias, deflagrando verdadeiros ciclos de rebeliões entre 1910 e
1930. Nesse meio tempo, ocorreu a Guerra do Chaco contra o Paraguai entre os anos de
1932 e 1935. A derrota escancarou, mais do que qualquer perda material, a ausência
completa de uma unidade política em torno de uma ideia de nação. Desenvolveu-se uma
consciência social boliviana de que não existia qualquer concretização de “povo boliviano”,
pois o indígena fora alijado do processo nacional (CAMARGO, 2006, p. 134-139). Após essa
guerra contra o Paraguai os movimentos indígenas ganharam corpo sob um discurso
pedagógico que culminou na Revolução de 1952. Até então, o índio teve papel subalterno
no cenário político (CAMARGO, 2006, p. 143).
A Revolução de 1952 é fundamental para a compreensão da Bolívia
contemporânea. A essência revolucionária está em incluir politicamente novos grupos
sociais em uma redefinição de Estado representativo de tais grupos. Com propostas de
reformas educacional e agrária, a inspiração da Revolução é a questão da identidade
nacional. O índio é aglutinado a uma visão de classe, tratado como campesino. Se por um
lado deu visibilidade para o índio, por outro, negou-lhe sua condição étnica, em que o índio
passou a ser um mero elemento revolucionário reduzido à classe. A negação da etnicidade
indígena continuou no Estado boliviano pós-revolucionário, que, embora mais sutil do que
no regime oligárquico, igualmente explorou os indígenas. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se
o katarismo como uma vertente acadêmica e religiosa, que disseminou a identidade aimará
em projetos de educação bilíngue amadurecido na década de 1970. O Manifesto de
Tiahuanacu de 1973 proveniente do katarismo reconheceu a contribuição da Revolução de
1952, mas inovou ao evocar as lutas anticoloniais dos séculos anteriores, elaborando uma
noção de maioria étnica nacional consciente de sua força e reinterpretando mitos andinos
em sua composição ética para uma projeção pública do movimento (CAMARGO, 2006, p.
149-169). O katarismo estimulou a criação de uma organização política própria que
desencadeou uma série de ações coletivas, mais notadamente os bloqueios de estradas.
Seu apelo ético ancestral serviu como fonte moral de resistência (CAMARGO, 2006, p. 170-
15
O mallku é um líder comunitário indígena (CAMARGO, 2006). 16
Quéchua e aimará são as duas principais etnias bolivianas histórica e atualmente. As nomenclaturas étnicas derivam do idioma quéchua, de raiz incaica, e do idioma aimará, enraizada nos povos originários bolivianos diferentes dos Incas (CAMARGO, 2006).
18
175) em discursos contundentes pela autonomia indígena. Obviamente que o movimento
encontra dificuldades e fragmentações, mas consegue vincular o indígena em uma unidade
ética comum. Nesse ponto, é possível vislumbrar o rol de ações contrárias à ordem
estabelecida na Bolívia como conflitos morais, em que a resistência se faz e se refaz a partir
da negação do reconhecimento, assim, o ativismo assume uma dimensão tocante à luta por
reconhecimento. Mas, para vincular esse ativismo com a democracia deliberativa deve
haver, “ao menos potencialmente, compatibilidade entre o tipo de ação exercido pelo ativista
e o ideal normativo deliberacionista” (TAVARES, 2012a, p. 44).
Tavares (2012a, p. 47-50) sugere que uma interpretação coerente da teoria
habermasiana17 não nega o conflito, sendo que os ideais normativos deliberacionistas, seja
em Habermas, em Cohen ou mesmo em Karl-Otto Appel, não desconsideram as
complexidades sociais que podem emperrar a deliberação pública. Por isso mesmo, a
igualdade não é uma situação pronta, pelo contrário, exige sua busca constantemente: “a
luta por igualdade, com efeito, pode se enquadrar, não importa o grau de combatividade em
que se processe, como uma luta pela deliberação, antes de uma prática antideliberativa”
(TAVARES, 2012a, p. 51). No caso, o ativismo político tem a missão precípua de desobstruir
as barreiras estruturais que impedem a comunicação social em que até a recusa do ativista
a participar de espaços institucionais é justificável, pois sua participação apenas contribuiria
para legitimar espaços que não são efetivamente deliberativos, por isto a proposta de
protestos de Young (apud TAVARES, 2012a, p. 58-61).
O ativismo político dos movimentos sociais auxilia a enxergar a luta por
reconhecimento como momento prévio à deliberação ideal na busca por igualdade, uma
igualdade apreendida sob os auspícios da diferenciação entre as pessoas, legitimando uma
desigualdade possível na deliberação que não compromete o conceito formal e sua
normatividade ideal. O caso boliviano se enquadra nessa perspectiva em que a trajetória do
ativismo dos movimentos indígenas possibilitou dar visibilidade à sua condição de excluídos,
a qual importava em uma desigualdade estrutural que impossibilitava qualquer deliberação
pública em espaços institucionalizados. A evolução do ativismo desembocou na Guerra da
Água em 2000. O levante radical era um prelúdio da mudança política viabilizada pelos
movimentos sociais que se evidenciaram nas eleições gerais de 2002 em que o Congresso
da Bolívia foi dividido entre neoliberais e indígenas (SANJINÉS, 2004, p. 203). O grau mais
elevado de manifestações foi a Guerra do Gás em 2003 quando as ações se concentraram
nas paralisações das cidades mais importantes e nos bloqueios das principais estradas do
país (CAMARGO, 2006, p. 188-191).
17
Vale consignar que o próprio Habermas estipula a Revolução Francesa como marco histórico da modernidade para a ocorrência da deliberação pública. A Revolução, nessa perspectiva, foi um ativismo pela igualdade, para buscar uma das condições ideais de deliberação.
19
Os enfretamentos e mobilizações tinham causas indígenas e nacionais como um
todo, as quais afetavam o contingente populacional gerando discussão. A esfera pública
abrigou debates intensos sobre questões cruciais para todo o país. A convocação de uma
Assembleia Constituinte surgiu no final da década de 1990 em um contexto cujo debate
tangenciava o déficit de representação partidária. Nas campanhas eleitorais de 2002,
inclusive, o tema era suscitado enquanto proposta de vários partidos políticos. Durante a
Guerra do Gás em outubro de 2003, a ideia de uma Constituinte ganhou força. O tema
central desde então era a questão do Estado e sua insuficiência para abarcar a diversidade
de identidades, sobretudo a (s) indígena (s) (CAMARGO, 2006, p. 240-243). Apenas com a
eleição de Evo Morales para a presidência da Bolívia, o primeiro presidente indígena do
país, é que se efetivou o poder constituinte em uma Assembleia a partir de 2006. Evo
Morales, de origem aimará, é produto do ativismo político na Bolívia para uma melhor
condição de igualdade que possibilitou uma redefinição do Estado a partir de uma
Assembleia Constituinte.
3.2. A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE 2006-2007 E A DELIBERAÇÃO IDEAL
Evo Morales chegou à presidência da Bolívia pelo partido MAS (Movimento ao
Socialismo)18 com 54% dos votos, trazendo consigo todo o debate relativo à convocação de
uma Assembleia Constituinte que amadureceu na década de 1990 e parecia cada vez mais
urgente. No dia 06 de agosto de 2006 foi inaugurada a Assembleia Constituinte em Sucre,
polarizada na chegada ao Estado de novos atores, especialmente indígenas, diferente do
que havia sido até então, em que a minoria sequer assimilava “os ‘constituintes’ com a
fisionomia das maiorias do povo, agora no Estado, e com a maioria na Assembléia
Constituinte” (SCHAVELZON, 2010, p. 2-3).
A Assembleia Constituinte foi dividida pela tradição indígena e sua respectiva
cosmologia, apresentada nas vestimentas, assustando as elites trajadas de terno e gravata
consolidadas historicamente a partir da exclusão do outro. É claro que tal novidade não
passaria isenta de tensões no crivo da Assembleia a qual, após aprovada sua instituição em
2006, foi regulamentada para operar a partir de 21 comissões temáticas distribuídas pelo
território boliviano. Seu funcionamento foi estendido até dezembro de 2007. O tumulto foi
constante nos trabalhos da Assembleia, “e somente após um acordo no Congresso, com
numerosas modificações no texto, é que a Constituição seria conduzida até sua aprovação”
(SCHAVELZON, 2010, p. 4).
A questão indígena e sua busca por reconhecimento passou a compor a agenda
pública a partir da Revolução de 1952. Desde então, através de ações incisivas, a situação
18
O MAS está inserido no rol de conquistas do ativismo político boliviano em que a questão indígena é central (CAMARGO, 2006).
20
de exclusão social do indígena e a denegação de reconhecimento étnico foram alimentadas
na esfera pública, a ponto de o Censo boliviano de 200119 registrar crescente aumento do
número de indígenas em relação ao Censo anterior realizado na década de 1990, sendo
que mais de 60% da população total do país se reconheceu como membro de povos
originários. A amplitude do debate público sobre a questão indígena é proporcional à
evolução do ativismo político dos movimentos indígenas desde 1952. Os protestos drásticos
da década de 2000 como a Guerra do Gás e a Guerra da Água precederam a instauração
da Assembleia Constituinte em 2006 a qual funcionou como uma institucionalização de um
espaço para deliberação. A extensão temporal da Assembleia até 2007 mostra um fluxo
comunicacional interativo entre o espaço institucional máximo e as comissões que
intermediavam as propostas debatidas em ambientes mais localizados, o que permite
concordar com Mendonça (2011, p. 214) quanto à sua perspectiva de que “os processos
deliberativos são percebidos a partir de uma ótica transversal. (...) A deliberação ganha
forma em trocas discursivas não unificadas que atravessam setores sociais e arenas
comunicativas”. Essa concepção ampliada de deliberação coaduna com a teoria do
reconhecimento quanto à dinâmica comunicacional orientada para o movimento, em que há
uma busca constante para melhorar o todo social. Ainda com Mendonça (2011, p. 212),
deve ficar claro que “a racionalidade não é uma característica dos atores, nem dos
enunciados, mas da própria estrutura comunicativa”, logo, a racionalidade comunicativa não
desconsidera as expectativas dos participantes e suas ações estratégicas, pelo contrário,
elas são importantes para a construção de enunciados que serão discutidos e levados como
pontos de reflexão. Nesse esquema, é possível conceber a ideia do fluxo comunicacional
aproximando oprimidos de opressores, pois a extensão das diferentes esferas e suas
camadas de porosidade permite um debate aberto passível de revisão e discussão, o que
compatibiliza, mais uma vez, a deliberação com a teoria do reconhecimento: “[As lutas] Elas
se conformam em fluxos discursivos públicos, por meio dos quais novas gramáticas
interacionais são sugeridas” (MENDONÇA, 2011, p. 217). Com esse diagnóstico, a própria
deliberação adquire uma dimensão de luta por reconhecimento.
Na confecção do texto constitucional durante a Assembleia, os propósitos indígenas
foram se materializando nos artigos. A reestruturação do Estado tendo em vista sua etnia
multifacetada deu a tônica das discussões que engendraram a nomenclatura Plurinacional
ao Estado da Bolívia. O artigo 5º da Constituição de 2009 evidencia isto com o
reconhecimento oficial de 36 línguas indígenas, sendo que o inciso segundo do mesmo
dispositivo impõe a obrigatoriedade de cada departamento manter documentos oficiais em
pelo menos duas línguas: espanhol e outra língua indígena (SCHAVELZON, 2010, p. 4-5).
19
Dados disponíveis em http://www.ine.gob.bo/ (acessado em 27/01/2014).
21
Dessa maneira, vale destacar que “a ideia de Estado Plurinacional aludia a formas ou
sentidos políticos diversos e, às vezes em conflito (...) [mas] não seria o único tema aberto a
controvérsias” (SCHAVELZON, 2010, p. 8).
Vários temas foram debatidos na Assembleia Constituinte e nas suas extensões
institucionais de deliberação alimentadas pelo debate na esfera pública desde um viés
histórico, como exemplos, podemos citar as nacionalizações de recursos naturais, sobretudo
os hidrocarbonetos; as autonomias regionais e da capital do país; e, os poderes de governo.
As temáticas diversas e complexas deram fôlego à Assembleia Constituinte e mesmo assim,
não foram completamente resolvidas, ou seja, apesar da promulgação da Constituição de
2009, não houve um consenso em termos definitivos sobre alguns pontos controversos.
Mendonça (2011, p. 211) traz a ideia de metaconsenso de Dryzek e Niemeyer em que não
se exige necessariamente um consenso perene sobre um determinado assunto, pois o
metaconsenso “visa a acordos que atribuam legitimidade às perspectivas dos interlocutores,
mesmo que se discorde deles”. Assim, “a Constituição é um bom exemplo da maleabilidade
de significados ao redor de cada conceito no âmbito político” (SCHAVELZON, 2010, p. 9).
Disto, é possível inferir que há algo mais do que os dispositivos constitucionais aprovados e
que só são perceptíveis no nível de interação do debate público que se desdobra além do
texto da Constituição de 2009. A Constituição está em aberto assim como o debate que a
efetivou, pois se evidencia “uma concepção política vinculada ao conflito, mais que à
homogeneidade de opiniões ou cumprimento de leis e administração” (SCHAVELZON,
2010, p. 10).
O momento constitucional engloba toda uma construção política na história da
Bolívia pelas desobstruções de suas barreiras estruturais em razão do ativismo dos
movimentos indígenas sustentado pela necessidade essencial do reconhecimento, dada sua
denegação. Não é possível, nesse diapasão, localizar um momento constitucional que
motive a deliberação pública, mas é algo que se constrói e se reconstrói dialeticamente, em
conflitos e lutas, em expansão contínua aumentando o escopo ético societal até adentrar
espaços institucionalizados, se estabelecer em Assembleia Constituinte e fazer o movimento
inverso que ricocheteia na esfera pública e volta para essa mesma Assembleia; e mesmo
com a Constituição aprovada, não se esgota o debate, reabastecendo a política
constitucional à medida que afeta a população. Com isso, o povo volta a debater e a dar
suporte racional ao fluxo comunicativo: “um espaço como a Assembléia Constituinte permitia
comprovar o poder da política de invadir qualquer situação, sem nada que não possa ser
‘politizado’, pondo em questão o seu caráter estabelecido e abrindo todo significado à
contínua redefinição” (SCHAVELZON, 2010, p. 10).
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A Assembleia Constituinte encerrou seus trabalhos de discussão das comissões
institucionais em dezembro de 2007, contudo, o lapso temporal do desfecho da constituinte
até a promulgação do texto final na cidade de El Alto em 07 de fevereiro de 2009 demonstra
o amplo debate público em torno da Constituição, pois sua promulgação estava
condicionada a ratificação por Referendo, o qual aconteceu apenas no dia 25 de janeiro de
2009, ou seja, mais de um ano após a elaboração do texto em Assembleia. A Constituição
com vários dispositivos em aberto depende de implementação política e também, de
respaldo popular (SCHAVELZON, 2010, p. 7-8). Isto revitaliza o cenário deliberativo em um
viés democrático fazendo o momento constitucional ter efeitos extensos e abarcar a política
normal sempre que houver necessidade de definir uma determinada temática que afete a
pluralidade ética boliviana. Então, a Assembleia Constituinte da Bolívia no seu propósito de
promulgar a atual Constituição do país transpõe sua própria temporalidade institucional
através de um debate público histórico motivado pela busca de uma igualdade nos termos
da teoria do reconhecimento, atrelado ao ativismo político dos movimentos indígenas
projetado para a evolução ética do país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pergunta que animou esse trabalho referia-se a possibilidade de a Assembleia
Constituinte da Bolívia que promulgou a Constituição de 2009 ser considerada um momento
de deliberação democrática. Buscamos no desenvolvimento deste trabalho responder à
questão adequando a condição de igualdade para a democracia deliberativa com a teoria do
reconhecimento. Nesses termos, nossa hipótese inicial se confirmou empiricamente
analisando o ativismo político dos movimentos indígenas baseado no reconhecimento como
uma busca por condições ideais de deliberação, em que a própria deliberação assume um
aspecto de luta por reconhecimento.
Destacamos ainda, que no bojo do trabalho, as exigências normativas da
democracia deliberativa não são incompatíveis com a teoria social do reconhecimento, pelo
contrário, a teoria de Axel Honneth não invalida a proposta política de Habermas, mas a
contemporiza em um modelo societal mais adequado à realidade das sociedades
contemporâneas marcadas pelo conflito e sua dinâmica intersubjetiva em prol de melhorias
coletivas.
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