Deficiência Mental 4

12
Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril - junho 2006 1 Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária, 05508-900, São Paulo, SP, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: A.P.S. JURDI. E-mail: <[email protected]>. 2 Membro do Laboratório Interunidades de Estudos sobre as Deficiências, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. 3 Professora Doutora, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. 4 Coordenadora do Laboratório Interunidades de Estudos sobre as Deficiências, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. A inclusão escolar de alunos com deficiência mental: uma proposta de intervenção do terapeuta ocupacional no cotidiano escolar The school inclusion for mental disorder students: an intervention propose for the occupational therapist in the school context Andréa Perosa Saigh JURDI 1,2 Maria Lúcia Toledo de Moraes AMIRALIAN 3,4 Resumo Parte-se do princípio de que, apesar da legislação existente em relação à inclusão escolar de alunos com deficiência mental, ainda ocorre sua exclusão nas relações cotidianas que se estabelecem na escola. O objetivo desta pesquisa foi compreender como a atividade proposta pela terapia ocupacional poderia interferir e modificar as relações estabelecidas em relação aos alunos com deficiência mental no ambiente escolar. Por meio do relato de uma experiência de intervenção realizada por estagiários de Terapia Ocupacional no horário de recreio de uma escola estadual de ensino fundamental da cidade de São Paulo, procuramos verificar se a atividade proposta - a atividade lúdica - provocaria possibilidades de encontro entre os alunos da classe especial e os outros alunos, propondo mudanças no processo de inserção escolar dos alunos com deficiência mental. A análise qualitativa da intervenção realizada vem apontar as dificuldades que o ambiente escolar apresenta ao estabelecer relações cotidianas de qualidade com o aluno com deficiência mental. Permeada por preconceitos e desconhecimento, as relações que se desenrolam no ambiente escolar reforçam, para o aluno com deficiência, o papel cristalizado no insucesso e no fracasso escolar, impossibilitando-o de ressignificar sua ação como indivíduo criativo, perpetuando um padrão de relacionamento que impede o processo de uma real inclusão escolar. Palavras-chave: deficiência mental; inclusão escolar; terapia ocupacional; Winnicott. Abstract This paper considers that, besides the school inclusion law that regards handicapped students, these students have faced exclusion on their daily school relations yet. This study aimed to comprehend how influent was the activity proposed by Occupational Therapy in order to modify the established relations about these students in the school environment. Through the Occupational Therapy Trainees’ report of an intervention experiment, that was conducted during the break time in an elementary public school in São Paulo city, this study also intended to verify if the proposed activity (the joke) was able to provoke the special and non-special students meeting, impelling gathering possibilities

description

deficiência

Transcript of Deficiência Mental 4

  • 191191191191191

    INTERVEN

    O D

    O CO

    TIDIA

    NO

    ESCOLA

    R

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril - junho 2006

    11111 Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidadede So Paulo. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Cidade Universitria, 05508-900, So Paulo, SP, Brasil. Correspondncia para/Correspondence to: A.P.S. JURDI.E-mail: .

    22222 Membro do Laboratrio Interunidades de Estudos sobre as Deficincias, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo. So Paulo, SP, Brasil.33333 Professora Doutora, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo. So Paulo, SP, Brasil.44444 Coordenadora do Laboratrio Interunidades de Estudos sobre as Deficincias, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo.

    A incluso escolar de alunos com deficincia mental:uma proposta de interveno do terapeutaocupacional no cotidiano escolar

    The school inclusion for mental disorder students:an intervention propose for the occupationaltherapist in the school context

    Andra Perosa Saigh JURDI1,2

    Maria Lcia Toledo de Moraes AMIRALIAN3,4

    Resumo

    Parte-se do princpio de que, apesar da legislao existente em relao incluso escolar de alunos com deficincia mental,ainda ocorre sua excluso nas relaes cotidianas que se estabelecem na escola. O objetivo desta pesquisa foi compreendercomo a atividade proposta pela terapia ocupacional poderia interferir e modificar as relaes estabelecidas em relao aosalunos com deficincia mental no ambiente escolar. Por meio do relato de uma experincia de interveno realizada porestagirios de Terapia Ocupacional no horrio de recreio de uma escola estadual de ensino fundamental da cidade de So Paulo,procuramos verificar se a atividade proposta - a atividade ldica - provocaria possibilidades de encontro entre os alunos da classeespecial e os outros alunos, propondo mudanas no processo de insero escolar dos alunos com deficincia mental. A anlisequalitativa da interveno realizada vem apontar as dificuldades que o ambiente escolar apresenta ao estabelecer relaescotidianas de qualidade com o aluno com deficincia mental. Permeada por preconceitos e desconhecimento, as relaes quese desenrolam no ambiente escolar reforam, para o aluno com deficincia, o papel cristalizado no insucesso e no fracasso escolar,impossibilitando-o de ressignificar sua ao como indivduo criativo, perpetuando um padro de relacionamento que impedeo processo de uma real incluso escolar.

    Palavras-chave: deficincia mental; incluso escolar; terapia ocupacional; Winnicott.

    Abstract

    This paper considers that, besides the school inclusion law that regards handicapped students, these students have faced exclusion on theirdaily school relations yet. This study aimed to comprehend how influent was the activity proposed by Occupational Therapy in order tomodify the established relations about these students in the school environment. Through the Occupational Therapy Trainees report of anintervention experiment, that was conducted during the break time in an elementary public school in So Paulo city, this study also intendedto verify if the proposed activity (the joke) was able to provoke the special and non-special students meeting, impelling gathering possibilities

  • 192192192192192

    A.P.S. JU

    RDI & M

    .L.T.M. A

    MIR

    ALIA

    N

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril -.junho 2006

    among students ( special needy or not), providing the school inclusion process for the mental handicapped students. This interventionqualitative analysis has pointed out to the school environment difficulties in establishing daily relations to the mental handicapped students.The school relations reinforce the school failure to the mental handicapped students, and unable them to give their creative action a newmeaning, that keeps the relation pattern and blocks up the real school inclusion process.

    Key words: mental retardation; school inclusion; occupational therapy; Winnicott.

    Este artigo tem por objetivo discutir a inclusoescolar de alunos com deficincia a partir de umainterveno no campo da Terapia Ocupacional em umaescola estadual de ensino fundamental da cidade deSo Paulo.

    As dificuldades que emergiram do cotidianoescolar nos mostraram que o tema da incluso escolarainda permanece como um problema a ser resolvidopelas escolas e pela sociedade.

    O desconhecimento e as dificuldades que asescolas enfrentam ao lidar com alunos com dificuldadesainda so grandes. Apesar da intensificao dasdiscusses a respeito desse tema, das leis federais,estaduais e municipais que trazem regulamentaes instalao desses processos de incluso, aindaencontramos, no cotidiano escolar, nas prticasescolares, inmeras dificuldades e questes que devemser resolvidas e esclarecidas (Bueno,1999; Kupfer et al. ,2000; Mazzotta & Sousa, 2000; Mittler, 2003).

    Para a criana com deficincia, a possibilidadede acesso escolarizao traz ganhos inestimveis. Atpouco tempo, uma parcela mnima dessa populaotinha acesso aos bancos escolares e sempre a via deacesso eram as classes especiais ou escolas de ensinoespecializado, revelando que a relao entre deficinciae ensino especial ainda fazia parte de uma concepona qual a condio de deficiente por si s definiria aconvenincia e a necessidade desse atendimentoespecializado.

    Atualmente, percebemos que essa concepopermanece impregnada nas prticas escolares,provocando aes excludentes dentro dos murosescolares. Nos agenciamentos que a escola provoca,percebemos que o aluno com deficincia mental ainda

    mantm o status de quem diferente. O fracasso escolar

    o acompanha e o preconceito assume sua forma mais

    vil: a excluso.

    necessria a transformao do espao escolara fim de trazer novos olhares para a deficincia. No

    basta colocar o aluno porto adentro da escola,delegando-lhe um espao fsico dentro de sala de aula. preciso que a escola, como instituio, viabilize formasde atendimento a essa populao. importanteressaltarmos que esses alunos tm no apenas o direito educao, mas, tambm, tm o direito s oportu-nidades educacionais e isso implica atender, nasinstituies escolares, a extensa gama de diferenasindividuais existentes entre os educandos.

    O ambiente escolar apresenta um estmulo competitividade, negao das diferenas e umatendncia a valorizar a homogeneidade, enfim, a escolarequisita o aluno ideal e realiza suas aes para atendera esse aluno idealizado. No h espao para ser diferentee nico, e para estabelecer um dilogo com a diversidade.Ao falarmos de um sistema de ensino inclusivo,precisamos falar de uma mudana de comportamento,de atitudes, valores e conceitos.

    Ao adentrarmos no campo da educao,percebamos que as leis no traziam para o cotidianoescolar apenas crianas com dificuldade em aprendero que a escola gostaria de ensinar, mas traziam crianascarregadas de uma histria de excluso e preconceitos,submetidas a relaes de submisso permeadas poresteretipos.

    Ao mesmo tempo, a entrada na escola nosofereceu a possibilidade de transformaes, quandodirigentes, professores e coordenadores nos solicitaramauxlio e solues para as aes do cotidiano escolarque os ajudassem a pensar sobre essa populao.

    Temos as leis, mas faltam intervenes quetragam para o cotidiano escolar um outro olhar para o

    aluno com deficincia, suas possibilidades e singula-

    ridades, intervenes que instaurem as diferenas e no

    salientem as desigualdades.

    A prtica da Terapia Ocupacional com apopulao com deficincia mental vem nos mostrandoque, apesar de haver um prejuzo intelectual, h, emcontrapartida, a possibilidade de construo de um

  • 193193193193193

    INTERVEN

    O D

    O CO

    TIDIA

    NO

    ESCOLA

    R

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril - junho 2006

    cotidiano que se estabelea atravs dos significados edesejos. As habilidades que emergem do desejo derealizar do indivduo, obriga-o a ocupar um outro papelna comunidade.

    As possibilidades de ser e de fazer do indivduonos mostram a potncia da atividade comopossibilidade de transformao e criao, uma vez queessa atividade precisa estar impregnada de desejo, desentido ou de um objetivo que justifique um movi-mento ou uma ao sobre o mundo. Nessa perspectiva,o indivduo com deficincia deve ser visto no comoincapaz, mas, sim, como um indivduo com especifi-cidades, e a deficincia, vista como condio e no comodoena.

    Justificando esses princpios, aproximamo-nosdo referencial terico winnicottiano na medida em queessa teoria nos fornece subsdios para pensarmos aarticulao entre indivduo e ambiente. Essa teoria nosprope uma determinada viso de homem no mundo,sua subjetividade e conseqente relao com oambiente, produzindo uma importante discusso sobrea constituio do indivduo e sua formao.

    a partir da compreenso da integrao doindivduo e do papel do ambiente no processo deamadurecimento que abordaremos o papel da escola ea interveno realizada.

    A Teoria Winnicottiana

    Para Winnicott (1988), um estudioso da naturezahumana, sade significa integrao, isto , na sade oindivduo encontra-se integrado, habitando o prpriocorpo e sentindo que o mundo real. Em sua viso dehomem, o autor acredita que fatores ambientais epessoais devem ser considerados, priorizando aconstituio da experincia a partir da relao com ooutro. Concebe a criana somato e psiquicamente emconstante troca com o ambiente, entendendo que elase desenvolve e amadurece no encontro com o outrohumano.

    A reflexo sobre essa teoria ajuda-nos a pensarsobre a questo do que herdado e ou adquirido noindivduo, sobre o desenvolvimento de seu psiquismoe sobre as implicaes dessas discusses no meioeducacional. Todo ser humano dotado de umatendncia inata ao amadurecimento e integrao em

    uma unidade, sendo essa sua herana mais importante.Assim, o principal da hereditariedade a tendnciainerente do indivduo a crescer, se integrar, se relacionarcom objetos e amadurecer. Mas apenas a tendncia inata, no os caminhos pelos quais ela se realiza, o quesignifica que a tendncia ao amadurecimento pode ouno vir a se realizar. Existir sempre uma conquista, umeterno vir a ser, que diz respeito no ao biolgico ou aopsquico, mas ao que especificamente pessoal: osentimento de ser, de existir em um mundo real.

    A contribuio de Winnicott ao estudo danatureza humana o detalhamento sobre o que se passacom o beb nos estgios iniciais do amadurecimento,que se inicia em algum momento aps a concepo.Esse detalhamento nos permite abordar a questo dasdeficincias a partir de um novo olhar.

    Amiralian (2003) ressalta que as propostas deWinnicott trouxeram contribuies significativas sobrea compreenso do desenvolvimento daqueles queapresentam alguma deficincia fsica ou funcional.Segundo a autora, Winnicott, ao propor a organizaoe desenvolvimento do psiquismo a partir da elaboraoimaginativa das funes somticas, nos leva aconsiderar a importncia dos dficits e leses orgnicasna constituio do psiquismo.

    A deficincia, a partir desse ponto de vista, passaa ser concebida como parte integrante do psiquismodesse indivduo e deve ser considerada nesse contexto.

    Sendo uma condio constituinte do indivduo que a

    possui, ele ter experincias somticas peculiares e seu

    psiquismo ter como base essas vivncias. Desse modo,

    aqueles que possuem alteraes no tecido, ou no

    funcionamento cerebral desde o nascimento, tero

    seu psiquismo construdo a partir dessa condio

    (Amiralian, 2003).

    Temos, portanto, uma proposta terica que nos

    fala de um desenvolvimento saudvel que possibilita

    ao indivduo crescer e amadurecer de acordo com seu

    aparato biolgico que, na interao com o ambiente,

    ter como funo oferecer condies necessrias e

    suficientes que favoream o amadurecimento das

    crianas com deficincia.

    Ao falar sobre o processo de amadurecimento,

    Winnicott (1988) refere que para o beb tornar-se real preciso que haja um ambiente que lhe d sustentao

  • 194194194194194

    A.P.S. JU

    RDI & M

    .L.T.M. A

    MIR

    ALIA

    N

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril -.junho 2006

    e facilite os processos de amadurecimento, ressaltandoque isso s poder ocorrer em um ambiente humanode confiabilidade. O ambiente perfeito o que se adaptaativamente s necessidades do beb que acabou denascer. Nesse estgio, o bom ambiente o ambientefsico, com a criana no tero ou sendo segurada ecuidada de modo geral.

    A dependncia do beb, nesse estgio,remete-o a necessitar do ambiente de um modoabsoluto; e esse, ao adaptar-se suficientemente bem snecessidades do beb, fornece condies para que elecaminhe em direo dependncia relativa e desta paraa independncia que, para o autor, jamais ser total.

    O beb humano no existe separadamente dame e sua tendncia inata ao amadurecimento refere--se sua tarefa de se tornar uma unidade. A me,chamada por Winnicott de me devotada comum ousuficientemente boa, oferece-lhe a sustentao fsica epsquica necessrias sua integrao, permitindo queseu beb seja capaz de sentir-se como um todo, demodo que, a partir de suas peculiaridades, possa seconstituir como indivduo. Alm de oferecer condiespara que seu beb se integre, a me tem a importantefuno de apresentar o mundo ao seu filho, o mundodos objetos conhecidos, oferecendo-lhe possibilidadesde experincias.

    O ambiente atua como facilitador no processode amadurecimento humano, e s consideradofacilitador quando oferece condies para ocrescimento do indivduo em direo sade, noobstrui o desenvolvimento e nem tenta forar suaocorrncia. Se o ambiente falha, em uma proporosuperior s possibilidades que o indivduo suporte, podeser gerada uma instabilidade que pode faz-lo adoecer.

    Freller (1999) refere que na teoria winnicottianah dois movimentos fundamentais para o ambientefacilitar o encontro do indivduo com os objetosexternos. O primeiro refere-se s funes exercidas pelomeio, que possibilitam criana construir um espaoem que pode experimentar, brincar e interagir comdeterminada cultura. A segunda funo importante doambiente que esse fornea material cultural nas fasesapropriadas do desenvolvimento da criana, de acordocom sua capacidade, idade e necessidades.

    Portanto, o ambiente tem um papel funda-mental na constituio e no processo de desenvol-

    vimento do indivduo, pois medida que a crianacresce, o contedo de sua vida pessoal no se restringeapenas a ela. Em seu processo evolutivo, a crianaafrouxa os laos da dependncia familiar e passa aintegrar a sociedade global, apropriando-se da heranacultural, devendo o ambiente prov-la nesse sentido.

    evidente que medida que a criana cresce, o

    contedo de sua vida pessoal no fica s restrito a

    ela. O self passa a ser, cada vez mais, moldado pela

    influncia do ambiente (Winnicott, 1983, p.93).

    Temos, portanto, uma proposta terica que nosfala de um desenvolvimento saudvel que possibilitaao indivduo crescer e amadurecer de acordo com seuaparato biolgico e um ambiente que ter como funooferecer condies necessrias para a ocorrncia desseamadurecimento.

    Nessa teoria, a entrada na escola conseqnciade um caminho gradual que parte da relao doindivduo com a me e seguida pela relao com afamlia, com a escola e com a sociedade mais ampla. Oestudo das funes ambientais posteriores devem serpensado, levando-se em conta o papel da me. Isto ,Winnicott (1999) nos fala de um certo modelo de relaoem que as coisas so sempre uma questo decrescimento e desenvolvimento.

    Vocs vo perceber que as coisas para mim so

    sempre uma questo de crescimento e

    desenvolvimento. Nunca penso no estado de uma

    pessoa aqui e agora a no ser em relao ao meio

    ambiente e ao crescimento dela desde sua concepo

    at a poca do nascimento (Winnicott,1999, p.139).

    A escola, como primeiro ambiente fora dombito familiar, recepciona e coloca o futuro adulto naesfera das relaes sociais. Por isso mesmo, suaimportncia nas primeiras experincias vividas no seuinterior ser decisiva para a construo do modo desseindivduo se colocar no mundo, nas relaes com ooutro, frente ao conhecimento e ao ato criativo (Rosa,1996).

    Para que haja a garantia da continuidadeexistencial da criana, o ambiente adequado contribui,sustentando a relao dialtica que o indivduoestabelece com o mundo, articulando realidade internae externa, nos vrios processos transicionais experi-mentados ao longo de seu processo de desen-volvimento.

  • 195195195195195

    INTERVEN

    O D

    O CO

    TIDIA

    NO

    ESCOLA

    R

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril - junho 2006

    Na educao, o processo ensino-aprendizagemocorre na mesma rea em que o brincar acontece - oespao potencial - assim como os processos desocializao que intermediados pelos fenmenostransicionais facilitam a passagem do mundo familiarpara a cultura mais ampla.

    A escola um espao aberto, um espao decriao, um lugar privilegiado de trnsito entre criaoe tradio. Porm esse espao deve ser compreendidono como espao fsico, mas um espao depossibilidades que se estabelecem a dois: entre professore aluno.

    No processo de amadurecimento da crianacom deficincia mental o ambiente , muitas vezes,repetidamente insuficiente, obrigando-a a reagir,substituindo seu gesto espontneo pela submisso,adaptao e imitao, indo contra sua prpria natureza.No desenvolvimento saudvel o indivduo cria o mundo,no se adapta a ele. A adaptao no seno o falso self,desenvolvido atravs das falhas ambientais, aparecendocomo defesa do verdadeiro self, que leva a criana aficar submetida ao outro. O falso self se desenvolve sobreuma base de submisso e se relaciona com asexigncias da realidade externa de forma passiva(Winnicott, 1988, p.128).

    Ao nos determos no campo da educao,deparamo-nos com o aspecto imperativo que elaimprime ao aluno com deficincia mental, oferecendo-lhe, na maioria das vezes, o lugar do no saber, da falnciado ideal. Na interao com o ambiente escolar, ascrianas com deficincia mental, muitas vezes, soatravessadas por relacionamentos que as desqualificamem seu fazer e as impelem submisso e adaptaoao ambiente. O aspecto imperativo da educao, nocampo da deficincia, particularmente grave ecolabora com o impedimento do processo dedesenvolvimento dessas crianas, impedindo oindivduo de manifestar seu verdadeiro self.

    Porque, para o deficiente mental, dizer-lhe tudo o

    que tem que aprender, fazer e seus modos no

    somente suprimir provisoriamente a sua criativida-

    de .... Equivale, o que ainda mais grave, a dizer-lhe

    que dele no se espera que saiba nada por si mesmo,

    ou que o deduza ou que o invente. Ou seja, repetir

    o que lhe vem sendo dito em sua casa ou no mundo

    externo, suprimindo a esperana, se que ainda lhe

    restava alguma, de que na escola lhe reconheam

    outra condio que a de nulidade absoluta

    (Jerusalinsky et al., 1999, p.111).

    Ao participarmos de processos de inclusoescolar, percebemos que ao inserirmos essa criana naescola no estamos, obrigatoriamente, incluindo-a.Muitas vezes, no cotidiano escolar, ela vivencia situaesque a excluem das relaes que se desenvolvem nessecotidiano. O resultado, em geral, o afastamento, o nocompartilhar e o sentimento de estranheza que aacompanha. Assim, a escola em sua prtica acaba porcristalizar a marca de deficiente, contribuindo para suaconstituio como indivduo deficiente.

    Nesse sentido, faz-se necessrio pensar emintervenes que proporcionem criana realizar seudesenvolvimento escolar/cognitivo, para que possaatuar no mundo de forma singular e criativa, possi-bilitando a emergncia de sua subjetividade. papel daescola participar da ampliao e enriquecimento doespao potencial, oferecendo material cultural de formaque o aluno possa se apropriar dele de forma criativa esingular, preservando sua identidade pessoal e grupal.

    O campo da Terapia Ocupacional oferece-nos acompreenso de que a atividade pode nos trazerrespostas mais concretas a esse respeito, respaldandointervenes que tragam para o cotidiano escolar umoutro olhar para o aluno com deficincia mental, suaspossibilidades e singularidades, intervenes queinstaurem as diferenas e no as imprimam comovalores.

    Nesse sentido, a potncia da atividade comorecurso utilizado para intervir nas relaes cotidianasfundadas na excluso e preconceito oferece um outroolhar para o fazer do indivduo. Sua capacidade de criar,fazer, estabelecer uma ao no mundo, tem sua origemna relao primordial com a me, e estende-se vidaadulta, sendo que o fazer criativo s poder emergir seo indivduo tiver uma relao com o ambientesustentada na confiabilidade.

    Conhecendo o cotidiano escolar

    Como supervisora de estgio de alunos de quartoano do curso de graduao de Terapia Ocupacional daUniversidade de So Paulo (USP), abordamos o tema daincluso escolar e compomos parcerias com diversasescolas da regio, que requisitam nosso trabalho.

  • 196196196196196

    A.P.S. JU

    RDI & M

    .L.T.M. A

    MIR

    ALIA

    N

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril -.junho 2006

    Essa escola tem em seu quadro uma classeespecial para alunos com deficincia mental e solicitouum trabalho em conjunto que os ajudasse a pensarsobre a terminalidade de alguns alunos da classeespecial. O que fazer com os adolescentes que teriamque sair da escola aps passarem anos na classeespecial? Para onde os encaminhar? Antes derespondermos a essas questes comeamos afreqentar os espaos da escola em seus mais diferenteshorrios, conhecer o cotidiano e o lugar que ocupavamos alunos da classe especial dentro da escola.

    Optamos por propor uma parceria com a escoladirecionando nossa ateno para o cotidiano escolar ea rede de relaes que se estrutura nesse cotidiano.Para autores como Ezpeletta e Rockwell (1989), um dosapoios iniciais para discutirmos a integrao entre escolae aluno a noo de vida cotidiana, o que fundamentaa opo metodolgica e o corte emprico. Os autoresafirmam que se aproximar da escola com a idia devida cotidiana significa algo mais que chegar e observaro que ali ocorre diariamente. Antes, a orientao deuma certa busca e uma certa interpretao daquilo quepode ser observado na escola. Nesse sentido, o conceitode vida cotidiana delimita e recupera conjuntos deatividades caracteristicamente heterogneas,empreendidas e articuladas por sujeitos individuais.

    Fez-se necessrio construir uma leitura darealidade encontrada que nos permitisse estabelecerparmetros para uma determinada interveno. Aconstruo dessa leitura se deu a partir de encontros:com a infncia, com os professores, com a deficincia.Ao entrar no cotidiano escolar e participar de vriosmomentos dessa rotina fez-se necessrio definir algunsprocedimentos para dar incio interveno.

    No dia-a-dia, a escola funciona em dois turnos:das 7 s 12 horas e das 13 s 18 horas. A classe especialencontrava-se apenas no perodo da tarde. Exceto nohorrio de recreio, os alunos da classe especial notinham contato com os outros alunos da escola.

    O primeiro procedimento refere-se observaodo cotidiano escolar. Nessa abordagem, a observaoocupa lugar privilegiado, pois utilizada como principalmtodo de investigao. Um roteiro de observaopossibilitou o conhecimento da escola, seu cotidiano edos prprios alunos, permitindo que o olhar fossefocado para alguns contextos como salas de aula,

    recreio, momentos de entrada e sada de alunos eatividades extra-sala. A sala de aula o local privilegiadodo ensino formal, onde as crianas passam o maiortempo em que permanecem na escola. No entanto,consideramos que no o nico espao em que ocorrea aquisio do conhecimento. A observao da sala deaula, nesse estudo, teve por objetivo verificar a formacomo os trabalhos escolares eram realizados, as relaessociais que se estabeleciam, o uso da atividade ldica,no apenas como recurso pedaggico, mas como formade expresso, criao e padro de relacionamento.

    A entrevista informal com os alunos durante operodo de observao foi outro procedimento utilizadopara que pudssemos conhecer o repertrio ldico dosalunos e como eles concebiam as diferenas e osdiferentes na escola, assim como a filmagem do recreio,que permitiu focar o olhar para as brincadeiras que aliaconteciam e delimitar as relaes que ocorriam entreos alunos da classe especial e os alunos das classesregulares.

    A observao e a compreenso do cotidianoescolar e seus atores deram-se por meio de encontros,que nos permitiram entender os fenmenos que laconteciam. Encontro com a infncia, com osprofessores, com as pessoas com deficincia e oencontro no recreio, que nos possibilitou delimitar ainterveno.

    No perodo de observao, encontramos crianascuja bagagem cultural parecia, muitas vezes, ignoradae desprezada pelos educadores, transformando a histriaescolar em uma histria sem pr-histria e causandodificuldades nos alunos em se apropriarem de recursosutilizados pelos educadores. Em todas as salas, haviaalunos com dificuldades bsicas de alfabetizao, poucaconversa ou trabalho em grupo e muita disciplina.

    Quanto aos professores, as conversas e oscontatos aconteciam nos horrios que tinham paradiscutir planejamento e atividades de sala, chamando aateno, durante conversas e reunies, a desconti-nuidade famlia-escola, tendo a escola uma fala queculpabilizava a famlia pelos fracassos e dificuldades dosalunos. Alm disso, havia um descontentamento porparte dos professores em relao a qualquer propostade trabalho conjunto. Percebamos que no queriamnos ouvir, mas, sim, queriam solues rpidas para seusproblemas. Esses professores pareciam destitudos de

  • 197197197197197

    INTERVEN

    O D

    O CO

    TIDIA

    NO

    ESCOLA

    R

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril - junho 2006

    seu saber, pois, segundo a coordenadora, o plane-jamento sofria intervenes de outras instncias.Destitudos de um saber que j no lhe pertencia, masque pertencia a outras reas e instncias, culminam porexercer um poder de controle sobre seus alunos. Ao sesentirem destitudos desse saber, os professores apenasrepassavam um conhecimento. No transformavam, notinham prazer, no tinham o desejo de realizar, nobrincavam. Invasivo e perseguidor, o ambiente no erasatisfatrio para que o professor pudesse exercer seufazer de forma criativa e pessoal. O ambiente que pareciase estabelecer na escola era um ambiente disciplinadore muito severo com a infncia.

    Nesse ambiente, o paradoxo de criar o que encontrado no ambiente era eliminado pelo professor,que apresentava o objeto como externo, acabado,possibilidade nica, sob seu controle e domnio. Acriana no podia se apropriar e usar, mas apenas olhar,observar, copiar e imitar. Aluno e professor no criavam,ambos sofriam da mesma dificuldade na manifestaodo si mesmo em um ambiente invasivo.

    Na classe especial para alunos com deficinciamental, cuja faixa etria variava entre oito e dezoitoanos, o encontro foi com o tdio, o desnimo, amesmice. Uma atmosfera de repetio pairava no ar eparalisava professora e alunos na impotncia e naimpossibilidade. Tampouco nessa classe havia algo deldico ou criativo. A impossibilidade era o tom daconversa: No sei. Ele no consegue. Ele no faz. Ele nopode.

    A professora encontrava-se fechada em suaprpria classe, no participava das reunies com osoutros professores, nem seu planejamento era feito nomesmo perodo. Parecia estar excluda do resto daescola. Ao mesmo tempo, colocava-nos que seus alunospareciam estar integrados ao resto da escola. Relatava--nos que um de seus objetivos era o encaminhamentode seus alunos para classes regulares, mas que suastentativas foram frustradas. Poucos alunos conseguiramefetivamente permanecer nas classes regulares, mesmotendo adquirido conhecimento para a continuidade dotrabalho pedaggico. Alguns se recusavam a sair daclasse especial, outros iam e voltavam. Para a professoraparecia ser uma fatalidade; para a escola, aproblematizao desse fato no era importante, sendo

    mais fcil creditar o fracasso ao aluno e faz-lo voltarpara onde acreditavam que deveria ficar.

    A observao no recreio nos deu a exatadimenso da anttese das salas de aula. Observar o recreioera observar uma exploso de risos, sons, contatos. Eraa alegria e o sabor de estar solto e poder realizar algoseu, construindo as brincadeiras sem interferncias deadultos. Por outro lado, o recreio reproduzia a exclusoanteriormente observada: os alunos da classe especialnunca brincavam com outras crianas; xingamentos eofensas os perseguiam. A partir de uma experincia dejogo compartilhado durante o recreio, percebemos queesse poderia ser o espao para intervir por meio doldico e favorecer outras relaes, provocandomudanas em relaes to cristalizadas.

    A escola pouco valorizava, ou priorizava, apossibilidade de explorao do espao potencial, sejaem cada sujeito, seja na relao com o outro. Espaoesse que Winnicott (1975) coloca como o lugar do jogo,da criatividade e da experincia cultural. Em seu lugarpriorizava-se uma relao de submisso e adaptaoao ambiente escolar.

    Entendemos que, nesse espao, poderia seriniciada uma experincia que provocasse o desmontedas aes de excluso que a escola vivia. Atravs dainterveno com os alunos, delimitada pelo espao epelo tempo do recreio, compreendemos que as relaespoderiam se modificar por meio de um fazer coletivoque trouxesse as diferenas como fundamentais paraas relaes compartilhadas que se estabeleciam nodia-a-dia. Pois, nessa escola, os alunos com deficinciamental estavam sim inseridos, mas a partir do statusque os definia a partir do no saber, do louco, do doente.

    Em nossa sociedade, a competio e oindividualismo so a tnica das relaes. A escola,reproduzindo as relaes sociais mais amplas, no sediferencia disso e marca a diferena entre o tempo parabrincar e o tempo para aprender, a diferena entre quemaprende e quem no aprende, entre o bom e o mau.

    As caractersticas que a atividade ldica trazconsigo, como a possibilidade de estimular aautonomia, de ter um carter livre e criativo, de alterarpapis, fazem com que seja possvel reverter as relaessociais que se estabelecem na instituio.

    Portanto, partimos do princpio de que ainterao social entre pessoas com deficincia e semdeficincia benfica para ambas as partes. A atividadeldica possibilita outras formas de relao e de

  • 198198198198198

    A.P.S. JU

    RDI & M

    .L.T.M. A

    MIR

    ALIA

    N

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril -.junho 2006

    estabelecer e de auxil iar uma interao maispositiva.

    Ao propormos uma interveno no horrio derecreio, compreendemos que a atividade proposta, aatividade ldica, poderia provocar possibilidades deencontro entre todos os alunos da escola - os alunos daclasse especial e os alunos das classes regulares -,propondo mudanas no ambiente escolar.

    Relato da interveno

    Ainda durante o processo de conhecimento docotidiano escolar a observao do recreio foifundamental para definirmos o ponto inicial dainterveno, que passa a acontecer uma vez por semanadurante quatro meses, por duas alunas do quarto anodo curso de graduao em Terapia Ocupacional daUniversidade de So Paulo.

    No recreio, em um primeiro momento, h ummovimento catico. Crianas correndo de um lado paraoutro, parecendo sem destino. Mas, observando melhor,esse movimento se traduz em uma exploso debrincadeiras, gritos, brigas, contatos. Percebemos gruposde crianas organizados em suas brincadeiras, prpriasda idade, com repertrios ldicos, prprios da cultura eda faixa etria. Brincavam de pega-pega, cinco marias,bolinhas de gude, figurinhas, polcia e bandido, dentre

    outras. O excerto extrado do relatrio de uma das

    estagirias traz elementos importantes sobre o

    movimento e as atividades que ocorrem no horrio derecreio:

    no decorrer das observaes, fui transformando meu

    olhar medida que conhecia o espao e o brincar

    daquelas crianas. Na primeira observao, toda

    movimentao parecia-me catica, demorei a

    identificar alguma brincadeira. Via muito futebol, crianas

    correndo de um lado para outro (inicialmente no

    entendia essa movimentao, essa agitao). Aps

    algumas observaes e processual mergulho na cultura

    ldica daquelas crianas, as aes enchiam-se de

    significados e faziam-me entender que naquele caos da

    primeira impresso estava o pega-pega, menino que

    pega menina, menina que pega menino, o esconde-

    esconde, a garrafa de gua que virava bola, o subir e descer

    o alambrado, uma amarelinha desenhada no cho

    jogada apenas por meninos. Vejo um pio, uma boneca,

    uma bolinha de pingue-pongue: brinquedos trazidos de

    casa. Percebo tambm uma violncia corporal vinculada

    brincadeira: chutes, empurres, puxes. A todo recreio

    presenciava brigas e me desesperava com medo que

    algum se machucasse, mas depois percebia que no

    eram brigas, eram brincadeiras e no as via inicialmente

    dessa forma porque talvez no tivesse me apropriado

    dessa cultura ldica.

    Nesse movimento, os alunos da classe especialno se organizavam para as brincadeiras, no eramconvidados e pareciam no se interessar por elas; osadolescentes, possivelmente por no compartilharemos mesmos interesses, e as crianas, por no conse-guirem entrar nos grupos j formados.

    Durante o recreio, que tinha a durao de 20

    minutos, as crianas deveriam se alimentar e brincar.

    Assim, decidiu-se que a interveno ocorreria uma vez

    por semana.

    Foi feito um levantamento com todos os alunos

    que participavam do recreio para conhecer o seu

    repertrio ldico. As atividades propostas, portanto,corresponderam a esse repertrio. As estagiriaspassavam nas classes, no dia determinado, convidando-

    -os a participarem da brincadeira. As brincadeiras mais

    citadas e conhecidas eram: futebol, lutinha, pega-pega,

    queimada.

    Logo se percebeu que os alunos da classe

    especial detinham o mesmo repertrio ldico dos

    alunos das classes regulares, ou seja, as brincadeiras

    eram comuns. Portanto, no era por desconhecimento

    que no participavam das brincadeiras organizadas por

    esses. Alguns adolescentes no tinham interesse em

    participar de algumas brincadeiras que chamavam de

    brincadeira de criancinha. Entendamos, portanto, essa

    escolha como uma vontade prpria e no imposta pelo

    grupo.

    Nesse processo, os alunos da classe especial

    comearam a fazer parte das brincadeiras e dos jogos

    propostos pelas estagirias. De modo geral, os alunos

    mostraram-se receptivos s brincadeiras propostas e

    participao dos alunos da classe especial, apenas no

    permitindo que as regras do jogo se alterassem de tal

    modo que o descaracterizasse (como aconteceu em

    um jogo de queimada em que trs bolas estavam em

    jogo, descaracterizando-o completamente e levando

    frustrao seus jogadores).

  • 199199199199199

    INTERVEN

    O D

    O CO

    TIDIA

    NO

    ESCOLA

    R

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril - junho 2006

    Em contrapartida, num jogo chamado alerta,um aluno da classe especial modificou as regras e ojogo tornou-se mais divertido e dinmico; D. norespeitou as regras iniciais, mas essa no incorporaodas regras foi absorvida pelo grupo. D. provocou umnovo jogo, um novo movimento, uma nova ao e essenovo jogar foi incorporado pelo grupo. Esse significadono foi uma ruptura com o jogo - como com acolocao de mais bolas na queimada -, ocorreu umatransformao, que foi sendo percebida durante amovimentao no jogo, e que tinha o consentimentocoletivo.

    Quando brincamos de corre cotia, algunsalunos da classe especial tinham um ritmo mais lentopara a corrida, e para perceberem que era sua vez, algunsprecisavam de ajuda e dicas. Mas o grupo conseguiujogar sem que apontassem quem eram os melhores.

    Os jogos compartilhados trouxeram uma outratnica ao recreio e vivncia dessas crianas. Puderamconhecer uma outra forma de brincar, que no estavacentrada na competio, na excluso e na desigualdade.

    No recreio, as diferenas expressas continuarama existir e, atravs da atividade ldica, puderam serpercebidas no como algo menor ou ruim, mas comoconstituintes de todos ns, como pessoas nicas ediferentes.

    Anlise

    A anlise dessa interveno est inscrita e decorrente do papel que o ambiente escolardesempenha em relao aos alunos com deficinciamental. Portanto, no pode estar separada ou desconexada anlise do ambiente escolar.

    Nesse contexto especfico, a excluso intramuros,que permeava as relaes cotidianas, no se restringiaapenas aos alunos com deficincia, mas abrangia todosos alunos sem distino, desde que no se mostrassemaptos a ocuparem o lugar do aluno idealizado pelaescola.

    Para Winnicott (1983), a criana, em seu processoevolutivo, afrouxa os laos da dependncia familiar epassa a integrar a sociedade global e a apropriar-se daherana cultural, devendo o ambiente prov-la nessesentido. Mas, quando o ambiente repetidamenteinsuficiente e invasivo, obriga essa criana a reagir e

    substituir seu gesto espontneo pela submisso,adaptao e imitao.

    Em sua relao com o ambiente, percebe-se queas crianas com deficincia somam fissuras dedescontinuidade, marcando seu processo evolutivo,deixando marcas em sua personalidade e na formacomo vo se estruturando como sujeitos sociais eculturais.

    A escola como ambiente deve sustentar acontinuidade do processo evolutivo de cada aluno, poisas experincias vividas na escola se somam eressignificam experincias de histrias passadas dacriana, influenciando na sua auto-expresso e interaocom a cultura.

    Ao priorizar a adaptao e a submisso por meiode certos modelos de educao e prticas pedaggicas,que recorrem a repeties incansveis como propostasde recursos especializados, a escola pauta suas relaescom os alunos com deficincia mental pela falta e nopela manifestao do si mesmo. Sob esse ponto de vista,a escola no destaca o papel da criao na relao doindivduo com o mundo compartilhado e com a culturamais ampla. Mas como uma me que no conseguecriar ambiente para a iluso e tambm para a desiluso,prende a criana com deficincia em um ambiente semcriatividade, sem contato com os objetos do mundoexterno.

    A escola, embora no seja o nico espao, olugar favorvel, por excelncia, para promover oaprendizado formal. Porm, o papel que a escoladesempenha no se restringe apenas aos processosformais de ensino-aprendizagem, mas se constitui um

    importante espao de trocas, agenciamentos, de

    transmisso de valores sociais e culturais, e, portanto,

    um espao onde a desmistificao da deficincia pode

    ocorrer de forma concreta.

    Durante nossa interveno no recreio perce-bemos que os alunos das classes regulares verbalizavamque no brincavam com os alunos da classe especialpor que eles no sabiam ou no conseguiriam brincar,denotando uma atitude fundada em um desconhe-cimento a respeito da deficincia mental e do indivduoque a tem.

    Esse tipo de atitude no parecia incomodar aocorpo docente, tcnico e funcionrios da escola que, de

  • 200200200200200

    A.P.S. JU

    RDI & M

    .L.T.M. A

    MIR

    ALIA

    N

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril -.junho 2006

    certa forma, atravs de algumas atitudes, chegavam a

    reforar e a reafirmar o papel do aluno incapaz ou doente.

    Ao delegarem um local exclusivo na escola para os

    alunos da classe especial - como, por exemplo, no

    momento de entrada dos alunos na escola -, marcavam

    uma diferena que levava excluso. Ao comparar os

    outros alunos com os alunos da classe especial, por

    meio de palavras depreciativas, localizavam nesses

    alunos a falncia do ideal.

    Durante o processo de interveno no recreio,

    oferecer outros modelos de relao - como convidar os

    alunos da classe especial, esperar o momento de cada

    um, no nomear negativamente suas aes e favorecer

    o acesso de todos s brincadeiras - trouxe um outro

    contexto ao recreio. Comeou a se estabelecer um outro

    padro de relacionamento entre os alunos, que

    enfatizava no apenas a cooperao, mas tambm

    respeitava as intervenes dos alunos, seus pedidos e o

    que traziam de conhecimento a respeito das

    brincadeiras propostas.

    O espao e o tempo do recreio foram o palco de

    uma nova experincia que provocou o desmonte das

    aes de excluso em que essa escola vivia. Por meio

    da interveno com os alunos, entendemos que as

    relaes poderiam se modificar a partir de um fazer

    coletivo que trouxesse as diferenas como funda-

    mentais para as aes compartilhadas que seestabelecem no dia-a-dia. As caractersticas que aatividade ldica traz consigo, como a possibilidade deestimular a autonomia, de ter um carter livre e criativo,de alterar papis, fazem com que seja possvel reverteras relaes sociais que se estabelecem na instituioescolar, pensando como a ludicidade, presente em cadaum de ns, pode ser um veculo transformador deaes que favorea a construo de uma cultura maissolidria.

    Muito mais que um recurso teraputico oupedaggico, a atividade ldica deve ser compreendidacomo qualidade de relao que os indivduosestabelecem com os objetos do mundo externo e aconseqente apropriao da experincia cultural. Comoatividade humana, abre possibilidades para um campo

    onde as subjetividades se encontram com os elementos

    da realidade externa, possibilitando uma experincia

    criativa do conhecimento. Para Winnicott (1975), a sade

    inclui a capacidade de brincar e essa atividade

    considerada o prottipo do viver criativo. Atividadesustentada pela iluso bsica refere-se tambm liberdade de transitar pelos vrios mundos que socriados no decorrer do amadurecimento.

    Mas, para que se pudesse estabelecer um outromodelo de relao, os alunos da classe especial teriamque assumir, tambm, esse outro modelo. Desempenharum outro papel que no o de deficiente, to conhecidopela escola, torna-se uma tarefa difcil.

    Durante a interveno, os alunos da classeespecial demonstraram dificuldade em sair de ummodelo de relao j conhecido, mas as atividadesldicas, aliadas a uma outra atitude, propiciaram aesmais criativas nesse sentido, como a possibilidade deum dos alunos da classe especial modificar as regras deuma brincadeira e de essa ser aceita pelo grupo todo.As transformaes percebidas nessas atividades foramntidas quando, ao final, percebemos mudanas norecreio em relao participao dos alunos da classeespecial, permanecendo junto s outras crianas,compartilhando o mesmo jogo de forma mais ativa.

    Ao no reproduzirmos o mesmo tipo de relaoque a escola mantm com os alunos da classe especial,

    oferecemos a eles um outro lugar: o de sujeitos criadores

    da ao. Mas, percebemos o quo difcil , para esses

    alunos, manterem-se nesse papel, pois, ao estabele-

    cerem um outro padro de relacionamento, precisam

    ocupar um outro lugar social e desempenhar um outro

    papel que no o j conhecido papel de deficiente,

    acomodando-se nessa situao, j que muitas vezes,

    deixar de ser deficiente deixar de ser. Como diz Jordo

    (2001, p.30): perceber-se de forma diferente no tarefa

    simples, o que est em jogo sua prpria identidade,

    pois muitas vezes deixar de ser deficiente, de ser incapaz

    deixar de ser.

    As atividades ldicas realizadas no momento

    do recreio, baseadas em uma relao de confiabilidade,

    puderam trazer o germe de possveis transformaes

    nas relaes cotidianas que se desenvolvem nessa

    escola. O espao do recreio rico em trocas e encontros.

    Vrias experincias tm sido realizadas nesse espao de

    brincadeiras, reforando-o como espao rico em trocas

    sociais. A sua utilizao pode ser considerada um dos

    indicadores da real incluso desses alunos na escola.

  • 201201201201201

    INTERVEN

    O D

    O CO

    TIDIA

    NO

    ESCOLA

    R

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril - junho 2006

    Consideraes Finais

    O objetivo deste trabalho foi pensar de queforma a atividade ldica poderia interferir e modificarrelaes estabelecidas no ambiente escolar e de queforma ela poderia auxiliar e compor os processos deincluso escolar de alunos com deficincia mental.

    Na teoria winnicottiana, o acontecimentohumano depende da interveno do ambiente, sendoque sua primeira funo se d por meio da facilitaoque ocorre em trs funes bsicas: segurar, manejar eapresentar objetos, realizadas no momento certo, deforma adequada, respeitando e partindo dascaractersticas e necessidades do indivduo. Portanto, aatualizao da tendncia ao amadurecimento dependeda facilitao ambiental e da no interrupo dacontinuidade desse processo, compreendendo-se queno existe indivduo desvinculado de seu meio cultural.A segunda funo importante do ambiente fornecermaterial cultural relevante para uma determinadanecessidade, nas fases apropriadas do desenvolvimentoda criana, de acordo com sua capacidade enecessidade.

    A escola deve desempenhar essas funes emrelao ao seu aluno com deficincia mental: participarda instaurao e ampliao do espao potencial,apresentando materiais culturais relevantes, de formaque seu aluno possa se apropriar dos mesmos de formacriativa e singular.

    Mas, ao longo do trabalho realizado, a escola seapresentou com um sistema educacional homoge-neizador, que no concebe as diferenas, que, quandoemergem, so vistas como distrbios que ferem aharmonia positivista, precisando ser identificadas,rotuladas e segregadas.

    Constatamos a grande dificuldade que a escolateve em ressignificar o papel que a pessoa comdeficincia tem na sociedade. Essa dificuldade pareceuestar enraizada na concepo de que pessoas comdeficincia mental possuem qualidades negativas, umavez que o termo deficincia, no senso comum, nega aeficincia. A escola reportava-se s faltas e no spotencialidades individuais, reproduzindo atitudes evalores da sociedade mais ampla.

    A viso que muitos pais, profissionais eeducadores tm do aluno com deficincia mental, como

    um ser incapaz, infantil e dependente, sempre estevepresente nas atitudes que reforam ainda mais essascaractersticas estigmatizantes, colocando-se como umdos entraves s propostas de sua incluso no sistemaregular de ensino.

    Ao cristalizar o aluno como deficiente e incapaz,contribuindo para sua constituio como um indivduodeficiente, a escola no o ir proteger, como ela prpriaimagina, mas, sim, manter imagens estereotipadas quegeram preconceito e excluso, e que esto fundadas naprpria imagem que o aluno com deficincia vemconstruindo sobre si mesmo.

    Essa pesquisa constatou que os processos deincluso escolar so viveis, mas merecem um olharcuidadoso para as prticas e para as relaes que seestabelecem no cotidiano escolar, em relao ao alunocom deficincia mental. A incluso escolar dessesalunos no se restringe a ocupar um espao na sala deaula. Ela implica um processo de ressignificao dadeficincia e do lugar que esse indivduo ocupa nasociedade.

    Nesse trabalho de pesquisa, a deficincia mental concebida como uma condio e a incluso comoum processo que pressupe aceitar o diferente semestigmatiz-lo como menor, sem torn-lo normal/igual.E essa transformao exige um outro contato, um outrotipo de comportamento, de auxlio mtuo, pressupondoque cada indivduo seja diferente, que a diversidadeexista e que possamos conviver com ela.

    A transformao no pode ser compreendida

    apenas como uma transformao do ambiente, mas

    tambm do indivduo com deficincia que precisa

    ressignificar sua prtica, sendo capaz de utilizar a sua

    atividade de forma mais significativa e criativa.

    Na teoria winnicottiana, o ser humano um ser

    de relao, e na relao com outro ser humano que sepossibilitam as mudanas. A partir de uma experinciade relao baseada na confiabilidade, procurou-seoferecer outros modelos de relao entre os alunos,objetivando favorecer, atravs da atividade ldica, essasrelaes.

    A escolha da atividade ldica deve ser entendidapor ser uma atividade da infncia. na infncia que elase inaugura. Alm disso, parto do pressuposto que aatividade deva ser tratada e pensada de forma mais

  • 202202202202202

    A.P.S. JU

    RDI & M

    .L.T.M. A

    MIR

    ALIA

    N

    Estudos de Psicologia I Campinas I 23(2) I 191-202 I abril -.junho 2006

    ampla, isto , menos como atividade determinada, mascomo uma qualidade de relao que o indivduoestabelece com os objetos do mundo externo e aconseqente apropriao da experincia cultural. Comoatividade humana, abre possibilidades para um campoonde as subjetividades se encontram com os elementosda realidade externa, possibilitando uma experinciacriativa com o conhecimento.

    As atividades realizadas partiam de algunsprincpios: o primeiro que a atividade, como aosignificativa e potencializadora de um ato criativo,sustentada em uma relao de confiabilidade, permitiriaque a expresso cultural de cada criana pudessedialogar e construir um campo compartilhado,possibilitando a interao entre os indivduosenvolvidos.

    O segundo princpio se refere aos jogos emgrupo, que propiciariam a cooperao a partir de suasregras, isto , as regras do jogo so de colaborao, pois

    o jogo no pode ser jogado a no ser que todos os

    jogadores concordem, mutuamente, com as regras e

    que as sigam, cooperando.

    Construir um ambiente ldico, que propicie

    relaes menos individualizadas e mais coletivas, onde

    a autonomia possa contribuir para gerar relaes

    solidrias e contribua para a formao de uma outracultura, parece ser uma alternativa para o processo deinsero/incluso desses alunos no mbito escolar.

    Referncias

    Amiralian, M. L. T. M. (2003). A clnica do amadurecimento eo atendimento s pessoas com deficincias. NaturezaHumana, 5 (1), 205-219.

    Bueno, J. G. S. (1999). Educao especial brasileira:integrao/segregao do aluno diferente (pp.15-53). SoPaulo: Educ.

    Ezpeletta, J., & Rockwell, E. (1989). Pesquisa participante(pp.74-120). So Paulo: Cortez.

    Freller, C. C. (1999). Pensando com Winnicott sobre algunsaspectos relevantes ao processo de ensino eaprendizagem. Revista de Psicologia USP, 10 (2), 189-203.

    Jerusalinsky, A., et al. (1999). Psicanlise e desenvolvimentoinfantil. Porto Alegre: Artes e Ofcios.

    Jordo, M. C. M. (2001). A criana, a deficincia e a escola:uma interveno orientada pela psicanlise. Dissertaono-publicada, Instituto de Psicologia, Universidade deSo Paulo.

    Jurdi, A. P. S (2004). O processo de incluso escolar do alunocom deficincia mental: a atuao do terapeuta ocupacional.Dissertao no-publicada, Instituto de Psicologia,Universidade de So Paulo.

    Kupfer, M. C., Cufaro, A. C., Boudard, B., Baratto, G., Mena, L. F.B., Pavone, S., Leo, S. C., Magalhes, S. C., Mariage, V.,Sayo, Y., Rafaeli, Y. M., & Vanderveken, Y. (Orgs.). (2000).Tratamento e escolarizao de crianas com distrbiosglobais de desenvolvimento (pp.89-99). So Paulo: galma.

    Mazzotta, M. J. S., & Sousa, S. M. Z. (2000). Incluso escolar eeducao especial: consideraes sobre a polticaeducacional brasileira. Estilos da Clnica, 5 (9), 96-108.

    Mittler, P. (2003). Educao inclusiva: contextos sociais(pp.23-96). So Paulo: Artmed.

    Rosa, S. S. (1996). A dissociao do self e suas implicaes naeducao. Revista Percurso,17 (2), 75-83.

    Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenmenostransicionais. In O brincar e a realidade (pp.13-44). Rio deJaneiro: Imago.

    Winnicott, D. W. (1983). Moral e educao. In O ambiente e osprocessos de maturao (pp.88-98). Porto Alegre: ArtesMdicas.

    Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana (pp.25-180). Riode Janeiro: Imago.

    Winnicott, D. W. (1999). O aprendizado infantil. In Tudocomea em casa (pp.137-144). So Paulo: Martins Fontes.

    Winnicott, D. W. (2000). A mente e sua relao com opsicossoma (pp.409-425). In Da pediatria psicanlise.Rio de Janeiro: Imago.

    Recebido em: 27/9/2005Verso final reapresentada em: 14/12/2005Aprovado em: 17/1/2006