Dedico esta simples publicação à minha agulha magnética. · interseção para as memórias do...
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NA MARGEM DA PRAIA
Já grande, com toda a fisionomia e atitudes de
adolescentes, os meus irmãos Diogo, Francisco e
Chiquinho falam-me: – Temos uma má notícia. Sentado
na margem da praia e meio entorpecido com a beleza
marítima cearense. Respiro com um ar despreocupado e
digo: – O que aconteceu?
Diogo, o mais divertido, repete novamente a frase
dita em coral junto com os meus amigos: – TEMOS UMA
MÁ NOTÍCIA. No entanto, estava em transe com as
belezas naturais da terra da luz. Chiquinho, o menor da
turma e o mais ousado, disse: – CESARRRR, TÁ
OUVINDO, SEU SATANHOCO. Ao ouvir esse berro,
principalmente a palavra satanhoco, veio imediatamente à
mente as minhas férias na Casa do Vovô Jucá na Ilha Luar
do Chão.
Sempre quando passava as férias com os meus pais
em Moçambique, o meu avô, pai do meu pai, chamava-me
de satanhoco, cujo significado na língua crioula é
malandro. Sempre quando estava aprontando em Luar do
Chão, jogando pedras nas janelas da vizinhança ouvia os
gritos do Vovô: – Cesar, seu satanhoco. Deixe a
vizinhança em paz. Venha logo para sua morada.
Depois dessas lembranças do velhote Jucá,
Francisco, o mais dramático, mordendo os lábios, como se
estivesse segurando tristezas, enxuga os olhos umedecidos
e diz: – Nosso avô faleceu nessa manhã. E os nossos pais
pegaram o primeiro voo e foram às pressas para Luar do
Chão. Quando Francisco falou estas palavras, veio-me um
grande remorso no peito, uma dor profunda, como se
estivesse levado chicotadas na alma. Imediatamente tudo
ficou funesto. A maré trazia-me arrepios e não mais uma
brisa aconchegante. O sol ficou sombrio, como se
houvesse naquele momento um eclipse solar apocalíptico.
Acreditava que era mentira, no entanto, senti a
verdade no olhar dele. Senti a seriedade no silêncio dos
meus melhores amigos de infância e adolescência.
Naquele momento, as lágrimas foram as respostas para
aquela notícia apavorante. E Digo disse-me: – a mamãe e
o papai disseram que nós devemos ficar na Vovó Vitória.
E devemos respeitar a morte do nosso avô. Nada de
garotas, nada de diversão nas ruas.
E os meus pensamentos concluía a fala de Diogo:
– talvez até a mãe da nossa mãe esteja triste, porque a
velhota assanhada gostava de baloiçar a saia para nosso
avô. Por isso que Vovó Lúcia sempre ficava de olho na
avó Vitória.
Após o grande impacto emocional dessa notícia
funesta que desmorona sonhos, lembrei-me de todas as
risadas, todas as brincadeiras, todos os sermões do velhote
do cabelo crespo, lábios grandes e carnudos.
E os meus amigos de sangue sentaram-se na areia e
colocaram a mão no ombro um do outro e falaram: – Que
a mãe terra acalente a alma do Senhor Jucá. E mais
lágrimas foram deixadas na areia. Eram tantas lágrimas
que elas já não brotavam dos olhos e sim do nariz dos
amigos brasilafricanos.
Recordo que o velhote atirava gargalhadas quando
dizíamos que a nossa família se chamaria de
Brasilafricanos, a fim de que nossa mãe Maria é brasileira
e nosso pai Cesário é africano. Era uma forma de conectar
as duas culturas. No fundo tínhamos orgulho de ter o
cabelo crespo, lábios grandes carnudos e a pele negra,
como dos nossos ancestrais, que foram livres em África e,
logo, escravizados como animais.
Sentado na areia junto ao quarteto, proferi: – a mãe
terra terá o prazer de abraçar o Vovô. Ele era um grande
homem. Francisco limpando os olhos com as palmas das
mãos brancas, como se houvesse desbotada, disse: – Ei,
Diogo, lembra quando o velhote careca nos levou para a
margem de um rio em Moçambique e disse que existia um
espírito protetor das águas. E o meu irmão falou sorrindo e
ainda tentando afastar a tristeza: – Ah! Lembro sim. Ele
atirou vários coques no Chiquinho, porque estava tirando
a água no sentindo contrário da correnteza. E isso trazia
maus presságios. Os quatros sorrindo e Chiquinho falou
alto: – AÊ, AINDA SINTO A DORRR.
As gargalhadas estavam lutando contra a tristeza,
uma batalha entre poderosos, e naquele momento de
memórias compartilhadas, falei: – Sempre dizia que
aquela lenda era mentira, mas o velho pronunciava que
não deveria abusar dos espíritos da natureza. E contou-me
que um dia um garoto e seu pai estavam dentro de uma
canoa na margem do rio, quando o espírito acenou com
um pano para o pai e o filho. E os dois trêmulos de medo
acenaram novamente com um pano velho.
– O senhor Jucá. Fazia questão de contar essas
narrativas que passavam de geração em geração. Assim
falava Chiquinho trêmulo de medo por conta das histórias
da tradição.
Assim, a margem do litoral era o ponto de
interseção para as memórias do Vovô em Luar do Chão.
De brusquidão, Diogo lembrou-se quando o velho de Luar
do Chão veio para o Brasil, para o Ceará: – Vocês se
lembram de quando Vovô veio para o Ceará e disse que
tinha visto a sereia, metade mulher, metade peixe, a
Janaína, o espírito das águas, no rio e que deveríamos
correr e vê-la, porque ela era uma mulata linda? E quando
chegamos próximo do rio a única coisa que vimos foram
sapos acasalando-se na margem do rio.
– Aquele careca só ria da nossa desgraça, falando
que a sereia, chamada de Janaína, era muito linda por isso
vivia nas profundezas do rio. Dizia o Chiquinho
lembrando-se das recordações do velho astucioso.
Com o sorriso nos olhos falei: – Aquele velho não
tinha jeito. Mas ele falava uma coisa muito interessante: a
cultura do Brasil está na África. E a cultura da África está
no Brasil, porque os nossos descendentes adquiriram
como compartilharam a cultura e os costumes.
Aquele senhor de não sei tantos anos, tinha a
verdade nos lábios, na sua língua crioula e na língua
portuguesa. No entanto, o que mais orgulhava aquele
homem era sua família. Para ele a família era o seu
tesouro, era como se fosse uma ramificação arbórea de
uma árvore resistente e de muitas utilidades. Ou como o
velho falava: – Minha família é como uma Cimbire
Moçambicana. Uma árvore, cuja sua madeira é resistente
e tem muitas utilidades.
Na beira-mar, os quatros seguidores do Senhor
Jucá estavam remoendo as lembranças do sábio. Ele sabia
das crenças e tradições da sua terra natal, como também
do Ceará, porque ele sempre conversava com a mamãe
sobre as tradições e o folclore Cearense.
– O nosso avô dizia que nunca queria que as
crenças da sua terra perdessem através desse tempo que
tudo passa, tudo se transforma e que tudo se moderniza.
Assim falava Diogo sério e segurando novamente as
lágrimas em seu rosto negro brilhante.
– É verdade, meu irmão. Mesmo criancinha,
lembro-me quando ele falava que os seus futuros netos,
bisnetos, tataranetos deveriam conhecer a cultura de seus
ancestrais.
Assim falava Francisco meio cabisbaixo e
desenhando círculos com a ponta do dedo da mão
esquerda. E Chico sorrindo dizia: – Tá vendo Cesar. Trate
logo de conseguir uma moça e, logo, vários filhos. Para
seguir a tradição da família brasilafricanos. E rimos na
beira-mar. A maré já tinha tragado as lágrimas funestas
deixadas na areia.
E a tarde estava despedindo-se. Tarde de memórias
do velhote careca. E quando Diogo notou que os seus
irmãos estavam retornando as memórias tristonhas tratou
de animá-los, evocando o espírito da alegria: – Não vamos
mais secar nossos olhos. Vamos mostrar para o careca que
estamos felizes por ele desenhar nossa infância com as
histórias dos nossos ancestrais.
E junto com os meus irmãos deixamos o
infortúnio de lado e fomos correndo naquela areia macia
sorrindo pelo nosso avô estar em nossas memórias. E o
mais velho lembra novamente da face do seu avô sorrindo
em Luar do Chão e fala consigo mesmo: –Vovô Jucá,
vamos continuar com sua tradição no Brasil, na África.
FARÓIS EM CHAMAS
Ligo a TV, a alienadora e seus subordinados falam
da grande crise e as manifestações políticas no Brasil. O
vizinho diz: – Enquanto muitos brasileiros lastimam-se
por programas fantástica, cujo objetivo é a luta e a
exterminação humana, se esquecem da crise no Brasil,
roubos, mortes inocentes, agressões contra mulheres e
outros que fingem que foram agredidas para destruir o
próximo. Meu Deus. Vamos abrir os olhos para o nosso
país, população brasileira. Escreva isso no seu blog de
notícias, Cesar. Sei que você está me ouvindo.
Enquanto tomava um uísque e retrocedia as redes
sociais acenei positivamente para o vizinho indignado. E
falei em alta voz: – É isso aí, meu vizinho, vamos lutar
contra o sistema, aquilo que restringe os nossos direitos.
Ao mesmo instante o meu apartamento tomou conta de
um sentimento de liberdade. Uma vontade de ir para as
ruas junto com os movimentos juvenis e lutar a favor dos
direitos dos brasileiros. Estava cansado daquela vida
monótona, cujo silêncio era a melhor resposta contra
aqueles que atacavam-me.
Estava decidido destruir as minhas próprias
barreiras que me impediam de ser feliz. Estava cansado
desse medo que acorrentava meus sentimentos. Um medo
que não deixava-me cantar, sorrir e lutar. Queria soltar a
voz pelas ruas juntos com os manifestantes e gritar: –
Fora políticos, cuja política é marcada pela
desmoralização democrática.
Queria tomar atitude semelhante uma guerreira,
uma garota feminista revolucionária, que antes
interessava-se somente por um status positivos nas redes
sociais, no entanto, sofreu um processo de devir feminista.
Analu Alencar lutou pelos os direitos das mulheres. Ela
foi uma fonte de inspiração para os feministas e as
feministas.
Antes de quebrar o sistema político. Deveria
quebrar o sistema, uma fobia, em mim mesmo. E joguei
no lixo tudo aquilo que retrocediam más lembranças de
um garoto mal compreendido e aquele governo opressor.
Minhas roupas azuis estavam todas rasgadas e
transformei-as em camisetas pichadas, cujo emblema era
“POLÍTICA: NÃO TENHA NADA A TEMER”. Um
emblema, entretanto, um grito de resistência contra um
governo opressor.
No meio desta revolução também queria falar aos
maus entendidos que aquelas roupas azuis não era
nenhuma personalidade, um alter-ego, no entanto, era uma
forma de economizar dinheiro neste país, cujo mercado é
uma bomba econômica. Queria falar que: – Roupas de
cores azuis e escuras é uma ótima escolha para aqueles,
que não tem dinheiro suficiente, porque essas roupas são
duradouras. Elas não mostram o quanto é velha, por isso
que todos os dias roupas dessas cores.
Lembro-me que antes de sair pelas ruas junto com
os manifestantes, olhei-me no espelho e acenei para mim
mesmo com um belo sorriso sem lágrimas. Um sorriso de
um garoto que perdeu-se na escuridão, porém, encontrou a
paz nas manifestações de uma sociedade indignada pelos
atos políticos.
No exato momento, naquele tumultuado. Naquele
calor humano. Todos unidos contra o partido golpista.
Senti como se meus olhos estivessem como dois faróis em
chamas: uma felicidade, uma força de querer lutar
ferozmente pelos direitos da classe negra, pobre,
agricultora e periférica do país brasileiro.
Talvez quando os olhos de um guerreiro e uma
guerreira ficam como faróis em chamas é que a revolução
está dando-lhe o que tanto sonhava: a revolução na própria
vida.
PEGADAS DE UM CORAÇÃO CONTRITO
São histórias orais, mas, acima de tudo, são
pegadas de um coração contrito deixadas na areia de uma
mulher africana. Maria sentada na areia e rodeada com
outras mulheres Moçambicanas contava suas aventuras
felizes e sombrias. A mulher contava de uma forma
resistente às histórias orais, contava as maldades da
humanidade, a dor do amor e a infelicidade em
Johannesburg.
Fiquei-me a pensar: – Existe amor verdadeiro no
mundo, nesta ilha, em África?! Mas logo vem a reflexão
de que o amor verdadeiro é para poucos, porque este
sentimento para humanidade é a perfeição e a perfeição
não sabe o que é amor, fraternidade e humildade.
No entanto, ao mesmo tempo das reflexões, Maria
dissera que sentiu a grande decepção do amor verdadeiro
quando seu pai soubera que estava grávida e coloco-a fora
de casa. Para a moçambicana amor verdadeiro só a terra
dá quando no fim da jornada ela fala: – Descanse, minha
filha.
Aquele círculo parecia uma convenção de
guerreiras compartilhando suas lutas em um mundo
machista, cheio de ratos albinos a ponto de devorar uns
aos outros. Todas as mulheres estavam excitadas e
cativantes com as narrativas de Maria, a mulher parecia
que estava pronta para soltar a voz e deixar o silêncio.
Quando de repente fala que: – Irmão é aquele que te
abraça nos piores momentos. Quando se está derrotado,
enfraquecido, não existe mãos abençoadas, mãos amigas,
para levar-te do chão.
Essas narrativas de Maria fazia-me pensar no
cotidiano e na ação da humanidade, logo, pensava
ininterruptamente: – Estou rodeado de homens sentados
nestas cadeiras, será que eles ajudar-me-ia se estivesse
em apuros, necessitando de ajuda, como Maria?!
A mulher contava que quando chegou à
Johannesburg sua filha começou a ferver como um sol de
verão escaldante, uma febre tão grande que consagrou sua
filhinha como morta por alguns momentos, porém,
encontrou uma velhinha que ajudou-a nos momentos de
desesperança.
Graças a essa velhota que cuidou e curou a
criancinha. A mulher guerreira estava exausta e a todo
instante estava com pesadelos, ora sonhando com sua filha
crescida
rindo inocentemente nos braços do seu Papá, ora
transportada para outro sonho mais real, que a criancinha
estava sorrindo por ter vencido a luta contra o ceifador.
Acredito que as mulheres estavam mais arrepiadas
e comovidas com as declarações de Maria, enquanto os
homens, alguns não estavam com muita atenção para os
relatos, no entanto, existia um, apenas um, que estava
sufocando em lágrimas, com o coração falido, com o
sofrimento daquela mulher e da criancinha.
Este ficava sempre refletindo e posicionando-se no
lugar de Maria e sempre perguntando a si mesmo: – Será
que o amado de Maria faria a mesma coisa que ela fez
por ele?! Desafiar a família, deixar sua terra natal e
enfrentar o mundo e os desafios em Johannesburg a
procura do amor?!
Já que ela dissera que: – A humanidade comete
qualquer atrocidade. Tudo por causa desse sentimento
escravocrata, que transtorna, que enlouquece, que faz o
amante a sobrevivência do amado.
Por um instante suspirei, pois a narrativa estava
ficando passiva, calma, e falei silenciosamente: – Deus é
bom. Ela conseguiu vencer! Após o martírio, Maria
conseguiu encontrar o que estava procurando, o seu
amado, porém, a todo instante ela estava cega, a fim de
que colocava a vida da sua filha em jogo para encontrar o
seu amado nas ruas de Johannesburg.
O sofrimento acabou e naquela areia, rodeada de
mulheres, como se fosse uma família de práticas de
poligamia, atentas ouvindo narrativas, ouvi as pegadas de
um coração contrito, rastros de arrependimentos e
sofrimentos de uma mulher, que deu sua vida e a da
criança a procura de seu amor, mas que resistiu e venceu
os obstáculos da vida. A única coisa que poderia fazer era
sentar-se na areia e falar: – Maria, saia da areia e sente-se
aqui nesta cadeira. E conte aos homens como enfrentar a
falta de amor e fraternidade da humanidade.
CIDADE FANTASMA
Sentado à mesa do refeitório “Big Lanche” do
Senhor Joel Ramos observei que tudo estava calmo: céu
azul, um ar puro, mães alimentando bebês indefesos, logo,
filhos alimentando idosos indefesos e pessoas caminhando
de branco, como vários fantasmas presos em um mundo
sombrio.
Por isso que os visitantes apelidaram esse lugar de
cidade fantasma, porque é esquisita e têm pessoas
sinistras, ignorantes e controladoras. A animação desta
cidade é a mais horrenda de todas, mas é a animação. É
quando os Zumbies da Craquelândia chegam roubando o
mercado e a lanchonete do Senhor Ramos, porém, dizem
que isto é o troco que ele está pagando por todas as
mentiras e humilhações sarcásticas com os jovens.
Sempre queria saber o porquê as pessoas usavam a
cor branca todos os dias. Até mesmo na primavera a época
mais linda do mundo. A libertação das cores.
No jantar – o momento mais sagrado do dia,
segundo meus pais, sempre fazia indagações sobre as
atitudes daquela pequena cidade. E perguntava: – Papá,
por que as pessoas são tão bizarras nesta cidade? Ele
indeciso falava: – Filho, as pessoas deste local não se
interessam por nada, por isso, que o seu primo Ramon
viajou para a capital, porque neste local não existe
oportunidade. A única oportunidade são as drogas, ou
seja, a comunidade Zumbie Craquelândia. O governo nos
esqueceu.
Neste momento, ele contou-me a história de Clara
Alexandra. Uma menina que importou-se tanto com os
aspectos da cidade que acabou seguindo para um mundo
sem volta. – Clara Alexandra começou a caminhar com os
Zombies da Craquelândia a procura de uma felicidade. E
acabou afogando-se na droga da adolescência. A pior
forma de viver a vida. Assim falava Papá.
Estava cansado de frequentar a escola, porque
todos os dias eram as mesmas disciplinas, mesmas caras
brancas e mesmas cadeiras e nenhum amigo. Houve dias
que fugia daquele lugar as pressas a procura de uma
válvula de espace daquele mundo cândido, cujas pessoas e
os locais eram entediantes.
E o único refúgio estava no pátio: a Clara
Alexandra. A garota que deixou sua família, seus bens, a
vida social nas cidades das sombras para seguir o mundo
das drogas.
Um lugar com a única passagem de partida. Passei
horas observando Clara. Observava os gestos, a forma
como escondia o rosto naqueles cabelos Chanel negros
cheios de pontas duplas, triplas, quadruplas, quíntuplas
uma mastigação de sofrimentos e um olhar de agonia.
Perdida no mundo das drogas, Clara adorava artes,
quando o vício não tomava seu corpo. A menina passava
horas produzindo uma arte de rua, marginalizada pelos
olhares de críticos e críticas que estavam presos no
sistema artísticos dos grandes artistas.
Minha curiosidade era muito maior, resolvi chegar
mais próximo daquela menina e observar de perto a fim de
entender o que estava produzindo. E ela estava
desenhando, esculpindo, uma cidade cheia de
manifestantes de todas as classes lutando contra um
governo opressor.
Um governo que pretendia destruir os sonhos, a
utopia, dos cidadãos brasileiros. No fim do desenho
continha uma passagem textual simbólica: “Uma cidade
sem crianças, homens, mulheres e idosos assombrados.
Uma cidade manifestada de cores, de vida, de
manifestantes.”
De repente, a menina olha-me e fala: – o que foi?
Perdeu alguma coisa aqui? Apenas falo: – Que isso! Perdi
nada não. Prazer, sou Ryan Bento. Tentei cumprimentá-la,
porém: – Não precisa se aproximar, sou da Craquelândia,
entende?! Prazer, sou Clara Alexandra. Mas pode me
chamar de Alex. Odeio os meus primeiros nomes. Faz-me
lembrar de uma vida branqueada. E ela continua a
desenhar com o caderno amarrotado e um lápis de cera
vermelho.
Ignoro o que Alex falou anteriormente, sento-me
próximo a ela e observo a sua forma de desenhar e falo: –
Muito bonito seus desenhos. Você não pensa em ser
famosa, não? Ela sem a mínima, deu de ombros e disse: –
Odeio o sistema artístico, porque é feito de homens. A
mulher é apenas um utensílio e quando não servir mais é
jogada fora, como se fosse um pincel, uma arte sem fortes
interpretações artísticas. Perplexo fiquei a pensar: – Como
uma menina que vivi nas drogas tem uma ideologia tão
poderosa sobre esse “sistema artístico”?!
Sem palavras falei: – Mas é você quem produz.
Não tem como existir uma mão machista que controle a
arte feminina. Neste momento ela parou de desenhar
olhou-me com aqueles olhos negros como dois faróis e
disse: – Você já visitou um museu de arte? Pelo menos, ler
contos, artigos de opinião ou jornais sobre o mundo
artístico de homens poderosos brancos? Existem relatos de
mulheres que são escravizadas para a produção de obras
artísticas, sabia?!
Perplexo e sem palavras, observo um grande poder
argumentativo de uma artista que não estava no sistema e
lembrei-me de um texto nas redes sociais sobre relatos de
mulheres compositoras escravizadas que escreviam
músicas para homens machistas poderosos do mundo da
música contemporânea.
Alex não se cansava de falar deste mundo
escravizador que os colonos deixaram para a população