Dedicado a todos os contadores de causos, vividos e … · 2021. 6. 4. · C957 Cruz, Maria Helena....

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Dedicado a todos os contadores de causos, vividos e “invecionados”.

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CAUSOS DE ASSOMBRAÇÃO à BEIRA DO FOGÃO À LENHA

Maria Helena Cruz

2016

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C957 Cruz, Maria Helena.

Causos de Assombração à Beira do Fogão à Lenha/

Maria Helena Cruz. – Juiz de Fora, 2016.

64p.

eISBN:9788544803165

1. Literatura Brasileira.2. Contos. 3. Terror.I. Título.

CDU - 821.134.3(81)

CDD – B869

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SUMÁRIO CAP. I 6 O TESOURO DE MEU PAI ___________6 CAP.II 16 A MENINA DO RIO __________________16 CAP.III 28 A PORTEIRA ASSOMBRADA ___________ 28 CAP.IV 38 O FANTASMA DA MANGUEIRA __38 CAP-V 43 A MULA SEM CABEÇA __________43 CAP.VI 51 A NOIVA DE BRANCO ______________51

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CAP. I

O TESOURO DE MEU PAI De repente, passando pela cozinha, a chama azulada do fogão a gás me arremeteu a outro lugar, outro tempo. Pude ouvir o “tac-tac-tac” do chinelo de dedos de minha mãe, que com as pernas cruzadas, batia o chinelo na sola do pé direito, em ritmo frenético. Eu sempre tentava imitar, mas qual nada. A velocidade com que ela fazia aquilo era inalcançável para mim. Talvez pelo tamanho dos chinelos que calçavam os “enormes” pés de cinco anos, ou mesmo a falta de jeito, “descoordenação motora”.

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Outros acabavam sendo contagiados pelo “tac-tac-tac” de minha mãe, enquanto aquela “roda de contação de histórias de gente grande” aumentava aos poucos com a chegada de outros tios, primos, vizinhos... Lembro-me bem do cenário. A cozinha de minha avó. A construção rústica, de teto baixo, bem baixinho mesmo, onde, em alguns lugares, certos adultos se abaixavam para não encostar a cabeça. Em um canto, a estrela da noite. Um fogão à lenha aceso, com suas enormes labaredas e aconchegante calor.

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Entre uma reclamação de vizinhos, uma fofoca sobre a filha assanhada de certo compadre. Alguém começava a falar: -“Ocês já foro lá pras banda da fazenda do coroné Bento dispois que ele bateu cum as deiz”? - “Num fumo não, ma pru quê”?

- “Cuntece que o diacho do home, num qué sabê di dexá sas terra, mar de jeito ninhum”!

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- “Ma cumé que é isso cumpade”? - Pois “vô cuntá pro cês”... E ele contou mais ou menos assim: Disseram que na noite que o coronel Bento morreu, parecia que o céu ia desabar em água, de tanto que chovia. Relâmpagos rasgavam o céu, clareando a noite, fazendo-a ficar feito dia. Na casa grande, o coronel estava trancado no “quartinho do baú” e com três grandes lamparinas à querosene acesas, abria um saco velho, esfarrapado e encardido, esparramando sobre a mesa tudo o que tinha dentro. Moedas, dinheiro, alguns cordões dourados e... Uma mecha de cabelos. Coronel Bento gargalhava por seu feito recente, e sua nova aquisição. Mas de repente, um relâmpago muito mais forte

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que os de antes, iluminou o quartinho com uma luz capaz de cegar olhos sãos. O coronel cobriu os olhos com o braço e esperou um tempo, com os olhos bem cerrados. Quando os abriu, uma moça de cabelo dourados e longos, esparramados pelos ombros. Toda vestida de renda branca estava parada na sua frente. Sua pele, muito clara e seus olhos tristes, lhe davam um ar angelical. Ele nunca permitia que ninguém entrasse no quartinho do baú, temendo por suas riquezas. Tanto que o lugar estava todo empoeirado e repleto de teias de aranha. Porém, nem naquele cenário arrepiante, o coronel Bento não conseguia pensar em outra coisa, que não fosse sua riqueza e se pôs a esbravejar com a moça: - “O quê cê tá fazeno aqui?...”

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E a moça respondia: - “Devorve o tisoro de meu pai.” E o coronel afirmava com todas as letras: - “Qui Mané tisoro do seu pai,o quê! Tudo que é tisoro aqui é meu e só meu, tá sabeno?” - “Devorve o tisoro de meu pai”... Sem a menor paciência, o coronel foi até a porta para mandar que a moça se retirasse e percebeu que estava trancada. Verificou seu bolso e a única chave do quartinho do baú estava lá. O homem ficou muito intrigado: -“Cumé qui ocê intrô aqui? Já sei... Subiu pela janela. Cumo que eu num pensei im miorá a sigurança na janela?

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O coronel foi ver a janela, mas o quartinho estava no terceiro andar da casa grande. A parede era lisa, não se podia escalar. Não havia nenhuma árvore ou coisa alguma que facilitasse ao acesso à janela. E o coronel ficou ainda mais confuso: - “Cume qui ocê intrô aqui, diacho?” A moça pálida e vestida de branco, atravessou a mesa e se aproximou ainda mais do coronel: - “Devorve o tisoro de meu pai.” Foi aí que ele percebeu que se tratava de uma assombração. Sem raciocinar, pegou a garrucha que carregava nas costas, cerrou os olhos, e disparou chumbo em cima da moça... Ele tinha certeza de que não havia errado um só disparo, mas quando novamente

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abriu os olhos, a moça ainda se aproximava lentamente: - “Devorve o tisoro de meu pai”. Em desespero, mas sem conseguir se desfazer de sua cobiça, ele contornou a assombração e correu para tentar reunir toda a riqueza exposta na mesa entre seus braços. A assombração também se virou para a mesa onde foi parar o coronel: - “Devorve o tisoro de meu pai” Na tentativa desesperada de proteger sua fortuna, o coronel acabou derrubando as lamparinas e derramando a querosene por todo o quartinho.

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O fogo tomou conta dos papéis, da mesa, do dinheiro e até do baú de madeira, mas o coronel não conseguia deixar de tentar salvar sua riqueza e quando o fogo começou a tomar seu corpo, ele nem conseguiu gritar, pois a assombração estava tão perto que podia sentir seu hálito gelado em meio às labaredas. A moça levou suas mãos, às mãos do coronel e... Tirou-lhe a mecha de cabelos, desaparecendo em seguida, enquanto o fogo se alastrava por toda a casa consumindo tudo...:

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“-... Pois é! Veja só ocês qui nem o dilúvio qui caía deu conta di apagá o fogo, qui quemô por três dia e três noite. Dispois disso todo mundo qui chega perto daquelas terra, diz qui vê o coroné tentano juntá suas riqueza tra veiz”.

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CAP.II A MENINA DO RIO

A roda aumentava a todo instante. Sempre chegava uma tia que tinha se atrasado com a janta, uma vizinha que estava terminando a encomenda de esteiras ou um compadre que terminava de preparar a silagem. Ainda me lembro do cheiro do café, sempre quente em uma cafeteira à beira do fogão à lenha. E, logo, alguém começava um novo causo que chamava minha atenção: “- Ocêis viru o qui tão dizeno sobre u rio, sô? Turdia, quais que Zefinha foi-se tamém pur água abaxo...” Foi assim que começou a história. O causo da menina do rio.

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Dizem que sempre que anoitecia e a lua cheia surgia no céu com sua exuberância e encantamento, uma menininha com seus cinco anos, corria pelas margens do rio, depois ficava de cócoras bem perto da pequena queda d’água, que ficava ao lado de uma frondosa e antiga árvore e chorava. Ainda soluçando, depois de muito tempo chorando, ela subia em um galho que pendia para acima do leito do rio e se jogava, sendo levada pela correnteza. Alguns já disseram até, ter ouvido sua voz e o contador afirmava: “- Verdadi cumpadi! Tor dia ni qui cano eu vinha da roça mais tardi i a lua já tava arta, ôvi a vois da minina quereno mi incantá, falano – Brinca cum eu... Brinca cum eu...” “- I u qui co cê feiz cumpadi?” “- Uai, sô! Saí di Carrera pra casa, é craro! Cais di que num sô besta, né?”

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Mas por aquelas bandas algumas pessoas não acreditavam na história e quiseram testar a lenda... Quiseram brincar com o azar. Carola e Moacir tinham morado na cidade grande, lá no centro de Juiz de Fora, sabe? E eles não eram dados a crendices. Decidiram, então, comprovar que não existia isso de assombração. Foram acampar na beira do lago em plena noite de lua cheia. Bem!

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Ainda não era noite quando chegaram. Montaram a barraca, ajeitaram tudo e até prepararam a janta no fogareiro. A tarde passou lentamente, naquele ritmo que a natureza tem, mas ainda assim, a noite foi chegando... De mansinho, o céu foi escurecendo e ninguém percebeu a lua surgindo em seu esplendor. Não demorou em, a menina Zefinha, perceber outra criança correndo na beira do rio, mas seus pais estavam muito ocupados na cabana, zombando dos pobres caipiras que acreditavam em assombração e não perceberam.

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Às gargalhadas, a menina correu de Zefinha, que foi atrás. Quando chegou embaixo da árvore ela parou, abaixou a cabeça e deixou que Zefinha se aproximasse. Ainda de costas, suplicou: “- Num óie minha cara, não, ou ocê num vai querê brincá mais cum eu...” - Mas eu quero brincar com você sim.

Bem devagar, a menina virou-se, chorando de soluçar e Zefinha levou um choque com o que viu. Seu rosto era completamente desfigurado, retorcido:

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- O que aconteceu com você? Caiu, foi?

“- Num caí não. Nasci ansim memo e pur issu, ninguém nunca que qué brincá cum eu.” - Não chora mais não. Eu brinco com você. As meninas correram, giraram, cantaram, pularam e... Zefinha, muito curiosa, quis saber por que é que a menina ficava ali, na beira do rio e ela aceitou contar: -“Cuntece qui eu quiria muito brinca cum arguém...” Pois é! A menina queria mesmo brincar com alguém, pois se sentia muito sozinha, foi para a beira do rio e chorou, chorou muito. Depois subiu no galho da árvore e ficou olhando a água correndo lá embaixo.

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- O que aconteceu com você? Caiu, foi?

“- Num caí não. Nasci ansim memo e pur issu, ninguém nunca que qué brincá cum eu.” - Não chora mais não. Eu brinco com você. As meninas correram, giraram, cantaram, pularam e... Zefinha, muito curiosa, quis saber por que é que a menina ficava ali, na beira do rio e ela aceitou contar: -“Cuntece qui eu quiria muito brinca cum arguém...” Pois é! A menina queria mesmo brincar com alguém, pois se sentia muito sozinha, foi para a beira do rio e chorou, chorou muito. Depois subiu no galho da árvore e ficou olhando a água correndo lá embaixo.

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De repente sentiu como se a água a chamasse e... Quando se deu conta, havia caído na correnteza do rio. Lutou para chegar à margem, mas não conseguiu: -“... Dispois disso, nunca mais vi meu pai, nem minha mãe e fiquei mais suzinha inda!” Zefinha ficou com muita pena da menina tão solitária e triste e teve uma ideia não muito brilhante: - Olha! Já sei o que fazer. Quero ser sua

amiga. Quero brincar com você para sempre.

Decidida, ela subiu na árvore, foi até o galho que pendia sobre o rio, se preparou e saltou na correnteza do rio.

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A menina... A assombração entrou em desespero. Não queria ver sua única amiga ser levada pelo rio, como ela um dia foi. Correu para pedir ajuda. Foi até a barraca, onde estavam os pais de sua amiguinha... Tentou falar. Tentou gritar, mas nada adiantava. Não acreditavam em assombração e então não podiam ver ou ouvir os pedidos de ajuda.

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No desespero, a menina assombração juntou todas as forças que tinha, esticou os braços para baixo e deu um grito com tamanho furor, que a barraca se despedaçou. O ar ficou pesado e nebuloso e Carola pôde ver a menina com o rosto desfigurado, soltando um urro de terror. Vendo o horror no rosto da esposa, Moacir olhou na direção em que ela olhava e também conseguiu ver o fantasma e enfim a ouviram: “- Ôceis tem qui ajudá sua fia. Ela caiu e tá seno levada na correnteza do rio...” O casal correu em desespero, seguindo a assombração que, flutuando, os guiava até Josefina.

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A menina estava quase inconsciente, lutando contra as águas, quando foi abraçada por seu pai e levada até a margem. Quando se sentiu um pouco melhor, Zefinha sentou-se e olhou para o rosto da menina que chorava. Desta ela vez não parecia triste, mas aliviada: “-Eis tão mi chamano ôtra veiz... Acho que gora eu vô pudê i cum eis...” - Você vai para o céu?

“- Num sei, mais tudu qui eu quiria fazê pur aqui, era rumá um amigo i cunsigui a mió amiga du mundo... Brigada!” A menina fantasma abraçou Zefinha enquanto se desfazia no ar, feito um sonho e ninguém mais viu a menina que corria às margens do rio, nas noites de lua cheia.

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“- Adispois disso quela gente da cidade grandi passo a querditá nas assumbração qui tem pur aqui.” Nesse mesmo instante meu padrinho Augusto chegou esbaforido e entrou desenfreado, porta adentro:

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CAP.III A PORTEIRA ASSOMBRADA

“- Ocêis percisa me ajudá... Ocêis percisa me ajudá...” “- Mais o que qui se assucedeu cumpadi Guto?” “- Cuntece qui ieu tava passano pela portera do cumpadi Totõe e intonce vei um vento forte suprano na aba do meu chapér e jogo ele longe. Ni qui cano iô fui pegá ele, a portera deu um baque no meu trasero e num sei acumé qui minha aliança foi Pará longe... Se chego sem aliança im casa, minha muié, a Sá Carulina mata iô... Ocêis percisa me ajudá a achá a genteee!” Meu pai se prontificou a ajudar:

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“- Pare cum esse desespero homi. Eu, mais cumpadi Jão vamo ajudá ocê...” Seguiram até a porteira. Quando se aproximaram dela... Vocês não vão acreditar... A danada rangeu, estalou e... Abriu-se! Isso mesmo! Escancarou-se convidando os visitantes, já de cabelo em pé, a entrar. Preocupados com a braveza em que a madrinha Carolina ficaria vendo o padrinho chegar sem aliança... Pois todo mundo sabe que com “mulher de bigode, nem o diabo pode”... Enfrentaram o medo da porteira viva, que parecia bem menos perigosa, e entraram a procurar pela aliança. Meu pai deu azar em chegar de costas bem perto da porteira e, antes que se desse por conta, levou um baque no traseiro, como o padrinho havia dito que lhe acontecera.

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Dessa vez, o pai saiu tropicando e acabou derrubando também os outros caçadores de aliança. O compadre João acabou com o braço direito preso no atoleiro. Meu pai e o padrinho o seguraram pela camisa, puxaram com força, mas nada de consegui tirar o braço do compadre João do tal lamaçal. Na verdade parecia que algo o puxava mais para o fundo e cada vez mais forte. Meu pai ficou paralisado, com os olhos arregalados ao se deparar com uma lembrança: “- Foi aqui qui sucedeu-se...”

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“- Qui sucedeu-se o quê, sô?” “- Aqui qui o Neco sumiu-se sumana passada, sô!” O padrinho lembrou-se e por pouco não soltou o braço do compadre João, o qual mesmo com o esforço dos amigos, sentia seu corpo se afundando no lamaçal que já estava engolindo seu ombro.

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Meu pai, tentando manter a calma encontrou um jeito de salvar o amigo: “- Peraê que tive uma ideia cumpadi.” Meu pai deixou o padrinho segurando o pobre João e procurou um galho quase tão grosso quanto os braços parrudos do moço. Quando voltou, o pobre compadre João já estava quase com rosto todo coberto de lama. Meu pai deitou-se ao lado dele, cuidando para não entrar no lamaçal também, encaixou o galho bem perto do braço de João e depois ajudou meu padrinho a puxar forte o homem. No mesmo instante o galho foi sugado para dentro do buraco pantanoso e a porteira começou a ranger e bater com força no mourão que a sustentava.

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Os três, de cabelo arrepiado e frio na espinha se agarraram feito criança com medo do escuro. Acharam que as coisas iam melhorar quando ouviram vozes se aproximando. Era o Jacó e seu irmão Otamirio que vinham do bar, com uma garrafa na mão. A porteira parou de bater e os dois se aproximaram: “- Qui é que ocêis tão fazeno aqui?” “- Ara, Tamiro! Eis deve de tá prucurano aquele besta du Neco, sô. Kkkkkkkkkkk...” “- Quele borra botas ficô cum tantu medo di nois que saiu in Carrera i nunca mais vortô. Kkkkkkkk...”

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Meu pai e seus amigos haviam ouvido histórias sobre o que tinha acontecido uma semana antes. Neco era um pregador de peças. Adorava se fingir de assombração e assustar a Deus e o mundo. Jacó e Otamírio também tinham a mesma ideia de diversão e decidiram se proclamar os melhores nas pegadinhas assombradas. Para isso prepararam uma superprodução, com direito até a fumaça causada com o lançamento de água na brasa e dizendo que os espíritos haviam vindo se vingar das zombarias de Neco. Ninguém sabe exatamente o que mais eles fizeram, mas o coitado do pregador de peças saiu correndo em direção àquela mesma porteira e... Bem.

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Até aquele momento, não se soube o que havia acontecido ao Neco... Quando os dois, agora reis das pegadinhas assombradas, se aproximaram, todo o ar do lugar mudou. Ficou mais gélido, difícil de respirar. Empurraram a porteira, que estava fechada e quieta. Aproximaram-se dos três homens apavorados, sem saber o porquê de tal pavor. Os três estavam emudecidos. De repente o lamaçal começou a borbulhar. Otamírio percebeu que era uma nascente, ou algo assim que eles chamavam de sumidouro: “- Isso é um sumidô... O Neco caiu e agora qué levá nóis cum eli...”

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A lama, que antes havia prendido o braço do compadre João se ergueu, tomando a forma do pobre Neco. Os “corajosos” reis das pegadinhas assombradas tentaram correr, mas um tentáculo lamacento se esticou e os agarrou.

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Tentaram lutar contra aquela força descomunal e sobrenatural, mas era impossível. Meu pai e os outros pensaram em ajudar, mas o pavor os havia paralisado. E a coisa arrastou os brincalhões para o sumidouro, não deixando nenhum vestígio para trás. Quando meu pai e seus outros dois companheiros voltaram, de cabelos eriçados e contando a inacreditável história, todos riram e continuaram a ciranda de causos, sem dar importância aos três que se recolheram para o banco da sala iluminada por dois grandes lampiões, envergonhados de demonstrar o medo que sentiram e mais tarde meu padrinho ainda teve de enfrentar a fúria da dinda por não encontrar a aliança.

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CAP.IV O FANTASMA DA MANGUEIRA

Meu tio chegou mais tarde do trabalho por causa da troca de turno na “máquina”, onde faziam a torrefação do café. Chegou, pegou a água quente na última trempe da chapa do fogão à lenha, colocou na bacia, ali mesmo, em um cantinho da cozinha e pôs-se a banhar, quer dizer, lavou o rosto, lavou os braços, as canelas e os pés. Depois se secou e pegou a marmita, quentinha ,perto da boca do fogão. Foi jantar e ouvir os causos. E o povo comentava:

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“- Dificir intendê a cumé qui tem gente qui inda num querdita im assumbração nessa vida!” O tio se adiantou: “- Pois eu querdito i cabei di cruzá cum uma...” Todos fizeram expressões de espanto e ele continuou: “- Cabei di levá um bruta tapa na nuca, lá por dibaxo da manguera, sô!” Todos falavam sobre o tal fantasma. Dizem ser a alma de uma mulher que fora casada com um homem muito ruim, o qual vivia agredindo sua esposa, até que um dia ele teve seu castigo... Essa era a história de Jerônimo e sinhaninha Rosa.

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A mulher tinha a fama de ser a mais linda de todas e seu esposo, louco de ciúmes, a espancava todos os dias. A última briga havia sido embaixo da mangueira onde ela, já não suportando mais agarrar-se à vida, entregou-se aos braços da morte. Mas antes que sucumbisse e aproveitando que o marido se virou para pegar o chapéu, sinhaninha Rosa deu-lhe um golpe na nuca e ele bateu com a fronte no gargalo da garrafa que trazia e também morreu. Como todos tinham medo do homem, seus restos mortais só foram descobertos muitos anos depois do acontecido. Seus ossos estavam quase completamente encobertos, com apenas uma das mãos expostas bem debaixo da mangueira que nunca mais secou.

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Depois disso, dizem que sempre que um homem agressor passa por debaixo da árvore, leva um golpe na nuca para tentar alertá-lo de sua covardia. O tio contou tudo com bastante ênfase, mas essa ninguém acreditou: “- Mais Mané, ocê nem tem muié pra batê, cais de que qui sinhaninha Rosa ia castigá ocê?” Foi aí que Nando, um primo de terceiro grau de minha mãe, chegou da rua se contorcendo de tanto rir:

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“- Ara... kkkkk... O Mané invinha chingano qui só, pur tê qui passá tarde da noite dibaxo do pé de manga, niqui cuano um morcego saiu tonto da árvre, sustado qui só i bateu na nuca dele... Eu invinha atrais i vi tudim... O homi saiu correno, sortano cavaco pur onde passava... Kkkkk!” Ele ficou vermelho feito um pimentão, de tão envergonhado.

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CAP-V A MULA SEM CABEÇA

Vovó se levantou para tirar a broa de milho de dentro do seu embrulho de folha de bananeira e começou a dividi-la com as visitas, enquanto vovô servia o café nas canecas esmaltadas vermelhas, com alguns descascados, onde se revelava o material escuro do metal embaixo do esmalte. Enquanto isso, os causos continuavam: “- Ocêis oviro falá da mula sem cabeça, lá du Patrimõe? - Nó’sinhora... Já si sabi quem é a dita cuja? - “Num sabi não, sô?” “Num há quem tenha corage di si pô atrás da bicha pra discubri.”

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Minha mãe, mostrando-se conhecedora do assunto, começou a falar: “- Mais é fácil, sô! Meu avô já discubriu uma veiz que uma cumadi dele era a mula sem cabeça...” E ela contou que tudo aconteceu numa vilazinha, perto de Muriaé. Era aquela típica cidadezinha onde as mulas sem cabeça aparecem, com uma rua só, casinhas de um lado, casinhas do outro, uma igrejinha lá no final.

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Como também já é do conhecimento do povo, a mula sem cabeça teve o azar de se apaixonar pelo padre e, por castigo por namorar o homem santo, se transformou na “bicha”, na mula sem cabeça. O biso chegou, depois de uma longa viagem e começou a ouvir rumores. Todos falavam em alvoroço da mula sem cabeça: “- Ô cumpade... o coitado do Gervázio disapereceu, sumiu-se, foi levado pela bicha... -“Mai foi bem feito prele cumpade. O bobosaiu nas rua, numa noite de lua cheia, di quinta pra sexta-feira, foi inté uma incruziada, chamo o nome da bicha treiz veiz e mostrô tudo. Os branco dos zóio, os branco das zunha i os branco dos dente... Dipois disso, só ovimo o relincho da mula i ele se escafedeu...”

Biso não acreditou. Ele não acreditava em assombração. Mas foi avisado:

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“ – Ó cumpadi, hoje é noite di lua cheia i di quinta pra sexta, intonce ocê num saia na rua di jeito nenhum, mais si saí, num deixe aparecê nem o branco dos zóio, nem o branco das zunha i nem o branco dos dente, prela num levá acê, hein? Meu biso, riu-se e deu de ombros, ainda sem acreditar na história, seguiu para sua casa tranquilamente. Mas, quase sem ser percebida, a noite foi se achegando, a lua foi surgindo no céu e, não demorou muito para começarem os relinchos infernais. Curioso, vovô abriu a janela e... Quase teve um ataque do coração ao ver o bicho.

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Ela estava de costas e o biso pode ver sua anca encorpada e suas patas fortes, que por onde passavam deixavam um rastro de fogo quase tão forte quanto o fogaréu que saía do pescoço, desprovido da bendita cabeça. Paralisado com a visão, ele não conseguiu se quer fechar a janela, até que ela desapareceu a cavalgar por uma curva. Depois de não a ver mais por alguns segundos, respirou fundo e aí se lembrou de uma história que seu avô lhe contava: “- Se qué sabê quem é qui é a danada da mula sem cabeça, ocê tem que rebentá um rusário nu incruziada e iscundê uma das conta. A bicha num vai saí di lá, prucurano a úrtima conta...” Como sempre, a aventura de descobrir a identidade da mula sem cabeça incluía um provável final trágico:

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“-... Mais si ocê fizé issu, ocê si cuidi, pois qui a danada vai atráis de ocê, pra ti fazê in pedacim, qui é pra mor di ocê num contá o segredo pra ninguém.” Ele achou que seria divertido. Uma aventura. Pegou o rosário que guardava no armário, exigência de sua mãe, saiu de casa, cuidando para na fazer barulho. Já estava avistando a encruzilhada na entrada do vilarejo, quando sentiu um calorzinho vindo de trás, em suas costas.

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Os olhos cerraram com força, imaginando qual seria a causa. Quando ouviu o relinchar, teve certeza e, se olhar para trás, tentou correr até a encruzilhada, mas a assombração saltou em sua frente. As chamas eram tão vorazes que os pelos do braço do biso e seus cabelos começaram a exalar cheiro de queimado. Ele abriu a camisa, arrancou o cordão com crucifixo que sempre trazia consigo e jogou na cabeça, ou melhor, no fogaréu do pescoço da bicha. Ela se desesperou em relinchos e grunhidos, enquanto o biso se desvencilhou de seus coices, conseguindo alcançar à encruzilhada, arrebentando-o e escondendo em seu bolso uma das contas, correndo de volta para casa e trancando todas as portas e janelas.

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Na manhã seguinte, depois de a lua ter deixado o céu, biso correu até a encruzilhada e lá estava a comadre dele...: “- A cumade do vovô, muito istimada da famía, tava lá. Nuazinha im pelo. Daí ele sortô a conta du rusário nu chão. Ni qui cano a muié acho a conta, vortô a si i levo um susto cum seu cumpadi ali, oiando prela...” Minha mãe contou que o vovô tirou sua camisa e a cobriu. A mulher agradeceu e disse: “- Ô cumpadi, ocê ispera aqui, qui in gradecimento, eu vô lá im casa pegá um regalo procê i já vorto.” Biso disse que ela poderia ir, que ele esperaria, é claro... É claro que não, não é? Assim que ela dobrou a esquina, ele pegou a mala que estava escondida em uma moita e partiu daquelas bandas, para nunca mais voltar.

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CAP.VI A NOIVA DE BRANCO

A chama do fogão queimava voraz, iluminando os olhos de ouvintes e contadores de causos. Clareando as ideias e fazendo as histórias, verdadeiras ou invencionices, virem à tona no mar de recordações. Foi nesse borbulhar de lembranças e imaginação que a madrinha “Mariinha” se lembrou do causo da coitada da Maria Amélia: - “Ocês num se alembra, não? Ela ia se casá, mais nada di dá certo. Seus pranu foro por água abaxo...” A “Dinda” contou que em certo primeiro de maio, pois era a tradição do interior que os casamentos fossem feitos no “mês de Maria”, e em certo ano, que não me lembro qual, Maria Amélia iria se casar na paróquia de uma vilazinha perto da cachoeira.

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Logo cedo o céu escureceu e o vento soprou forte, lançando longe todas as folhas secas das árvores... Prenúncio de uma tremenda tempestade: -“Intonce cumpadres, a minina butô os oio pra fora da janela, xingô um muncado, mais se pois a se imbelezar pru casório...”

Minha mãe e outras pessoas da roda se lembraram do acontecido. Disseram que toda a cidade e as vilas vizinhas foram assistir. A igreja estava toda enfeitada de flores de laranjeira... Claro, pois as flores de laranjeira eram imprescindíveis em um casamento de moça direita, pois é símbolo de pureza e inocência, inclusive tinham de estar nos cabelos da noiva. Quem costurou e ajudou a noiva a experimentar o vestido, também não parava de falar do primor, digno de uma rainha , tal vestuário.

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A menina era filha de um fazendeiro poderoso e por isso, em seu casamento teria tudo do bom e do melhor, inclusive um almoço e um baile que duraria duas noites. Tudo perfeito... não fossem os trágicos acontecimentos que se abateriam sobre a noiva. A chuva, melhor dizendo, a tempestade desabou e alagou tudo pelas redondezas. A noiva não se deixou amedrontar com toda aquela água, trovões e relâmpagos. Depois de pronta, toda embelezada. Entrou no carro e ordenou que seu pai dirigisse: “- Mais fia, as istrada num vai dá passage... Vamo isperá as água baxá. - Má di jeito manera... Ô meu pai, ocê toca essa lata veia pro casório, ô eu vô suzinha...”

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O pai sempre fazia todos os desejos da filha e assim ele também entrou no carro e se pôs a caminho da igreja. Como o imaginado, as estradas estavam alagadas e as águas corriam com a ferocidade de gigantes. Quanto mais se aproximavam da região da cachoeira, mais forte as águas corriam. O pai segurava o volante, como quem segura os chifres de um touro bravo, tentando conter sua fúria, mas o bicho teimava em escapar. As rodas derrapavam, rodavam como se não houvesse chão até que tiveram de parar por conta de uma barreira de troncos e lama, que havia descido para a estrada. “ –Adiscurpi minha fia, mais nóis num vai pudê cuntinuá, vamo tê di vortá daqui...”

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Mas Maria Amélia não aceitou. Xingou, esbravejou e saiu chutando a porta do carro. Segurando o vestido, para reduzir o estrago, pôs-se a pisotear a lama. A chuva molhava seu rosto, deixando-o manchado com o pó de arroz, o ruge... 55

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As flores de laranjeira já tentavam fugir, abandonando os cabelos e escorrendo por seus ombros. O pai gritava e tentava alcançá-la, mas ela, em sua obstinação, mantinha-se inalcançável, e foi aí que...: “- Foi aí qui acunteceu... Foi aí que vei aquele mundão de lama, di água i impurrô a minina pela ribancera e interrô ela, qui inda tava viva. Foi tanta terra, tanto gaio de árvre, que nunca mais si viu nem o corpo dela. Um primo entrou na prosa também: “- Num é bem ansim, né cumadi. Cuntece que ationti uns monti di genti viu a noiva de branco lá im cima da ribancera.” A esta altura, o relógio velho, na parede da sala já batia as dez badaladas, anunciando a hora da despedida.

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Mamãe foi a primeira a se levantar, pois meu irmão já estava incomodado de dormir no colo e logo que ela começou a se despedir, todos os outros se levantaram e fizeram o mesmo, mas vovó se adiantou em oferecer mais uma rodada de café e broa... Ninguém pôde recusar, aliás, parece até que posso sentir o gostinho daquela broa de fubá, assada dentro da folha de bananeira e no meio das brasas do fogão à lenha. O cravo da índia aguçava ainda mais o sabor. Todos se sentaram outra vez, mas agora só usaram a boca para se deliciar. Eu corri para a porta da sala e olhei lá fora. neblina, como sempre nesta época do ano, dava seu ar da graça e tentava esconder a luz da lua cheia que insistia em aparecer entre as tantas nuvens, para iluminar o caminho das assombrações.

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Confesso que essa era a hora mais assustadora para mim. Usando a porta como escudo, olhava tudo atentamente. O campinho escuro logo em frente. A encruzilhada um pouco abaixo. A enorme árvore em cujo tronco havia uma oco tão grande que caberia um lobisomem à espreita. Para me assegurar de ir para casa com maior segurança, sempre usava o mesmo truque e naquela noite não seria diferente.

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Fechei a porta sem fazer barulho, depois me deitei no banco que ficava em baixo da janela e fingi estar dormindo. Não demorou e meus pais vieram me procurar para irmos para casa. Depois de muitas tentativas, sem êxito, claro, sempre desistiam de me acordar, então meu pai me punha nas costas e pegávamos o caminho de casa. Juro que quando a gente terminava de atravessar o campo e eu olhava em direção à rua da casa da vovó eu podia ver todas as assombrações contadas nos causo, transitando e flutuando por ali. Na hora de dormir era um problema.

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O jeito era lembrar-me das histórias que minha outra avó me contava quando eu ia dormir em sua casa. Assim, para me salvar da mula sem cabeça, eu me lançava no ar e voava nas asas de um unicórnio alado que só existia no meu mundo encantado...

MAS ESTA É UMA OUTRA HISTÓRIA.

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“Que a imaginação seja as asas que nos leva ao

fantástico do absurdo”.

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