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Q uando comecei a escrever esta história, pensei saber do que se tratava, mas estava enganado. Ao longo da minha vida de escritor, descobri que, às vezes, há histórias que, como a

arquitetura, são cuidadosamente desenhadas, erigidas e mobiladas. Depois, há histórias que seguem o seu próprio caminho, e é a essas que me agarro com unhas e dentes, como se estivesse a fazer esqui aquático e elas fossem a minha lancha.

O que conto aqui é uma dessas histórias. Tencionava escrever sobre a mudança ou, quem sabe, o esbatimento da identidade ame-ricana. A metáfora perfeita para expressar essa mudança seria uma estrada, mas uma estrada moribunda com muitos nomes — Will Rogers Highway, Main Street America, the Mother Road: a infame Route 66.

Era sobre isso que eu pensava estar a escrever. Mas a estrada que segui levou-me a outro lugar. Ou, para ser mais preciso, a outra pessoa. Foi perto do fim da minha viagem que conheci um homem morto.

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Prólogo

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Richard Paul Evans

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Voltando à Route 66. Não seria o primeiro nem o último escritor a pegar nessa lendária autoestrada. Já se escreveram centenas ou, talvez, milhares de artigos sobre a Route 66, e até grandes nomes, como Steinbeck e Kerouac, também contribuíram para engrossar essa coleção.

O cinema e a música também a celebraram amplamente. A série televisiva epónima, Route 66, contou com alguns dos atores mais populares da sua época, como Burt Reynolds, William Shatner, Tuesday Weld, James Caan, Robert Redford e Ron Howard.

No mundo da música, uma miríade de artistas interpretou a can-ção de Bobby Troup, Get Your Kicks on Route 66, de 1946, como Nat King Cole e as bandas Rolling Stones e Depeche Mode.

Nos seus dias de glória, a Route 66 era muito mais do que uma estrada asfaltada. Era um caminho que os americanos percorriam, quais pioneiros, rumo a um novo mundo de oportunidades, fossem elas imaginárias ou não. Era o sonho americano.

tComecei a minha viagem numa sexta-feira à tarde, no início do outono. Nessa altura, vivia em Chicago, de onde a estrada partia.

Pelo que tinha investigado, a estrada alcançava cerca de quatro mil quilómetros, mais terriola, menos terriola, por isso, quando saí de casa, nesse dia, tencionava percorrer quatrocentos quilómetros por dia e concluir a viagem em cerca de dez dias. O que não sabia era que a Route 66 não se rende assim tão facilmente. Pelo contrário, temos de caçá-la, muitas vezes, com a tenacidade de um detetive. Sobretudo por duas razões:

Primeiro, não existe uma só Route 66. Nos anos de atividade da estrada, alguns troços sofreram várias alterações.

Segundo, certos segmentos da autoestrada original estão agora debaixo de novas estradas, casas e empreendimentos. Nalgumas localidades, cresceram metrópoles em torno da autoestrada, com centenas de estradas novas a fragmentá-la em pedaços diminutos, como num mosaico. É o caso de Chicago, St. Louis e Oklahoma City. Umas vezes, é confuso. Outras, é perfeitamente ridículo.

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Em Albuquerque, no Novo México, a estrada até se entrecruza e forma a esquina da Route 66 com a Route 66.

Chega a haver troços da estrada que, fora do alcance do desenvol-vimento urbano, passaram a ser locais remotos e esquecidos, onde ninguém vai, porque a estrada morreu e foi invadida pela natureza, que a encheu de vegetação a despontar por debaixo do seu asfalto rachado e deteriorado.

A Route 66 atravessa oito estados — o Illinois, o Missouri, o Kansas, o Oklahoma, o Texas, o Novo México, o Arizona e a Califórnia — e cada um considera (ou desconsidera) a estrada de forma dife-rente. Vários sinais coloridos marcam o percurso — azuis, casta-nhos, pretos e brancos. Dado o constante furto de sinais, nalgumas localidades, para prazer dos colecionadores mais nostálgicos, alguns estados decidiram simplesmente pintar o escudo da Route 66 no próprio asfalto.

Levei duas semanas a chegar a Needles, uma cidade na fronteira oriental da Califórnia, à beira do Deserto de Mojave — mais quatro dias do que o tempo que julguei que a viagem inteira fosse durar. Nessa altura, já nem me preocupava com a dificuldade do percurso. Sentia um certo gosto pela estrada, como um fotógrafo da vida sel-vagem atrás de uma espécie moribunda. Também sabia, porém, que estava perto do fim da minha viagem e que ainda não tinha encon-trado a minha história.

tNeedles foi a primeira terra da Califórnia que os Okies — a fugir à fome da Dust Bowl para o que deveria ser o paraíso da Califórnia — encontraram. Era aqui que ficava o Carty’s Camp, de As Vinhas da Ira, de John Steinbeck.

Situada na ponta ocidental do Deserto de Mojave, Needles, tal como o primo a noroeste, Death Valley, é o tipo de terra onde a tem-peratura bate recordes nacionais. Há dias em que ultrapassa 54 °C.

Suponho que tenha sido por isso que reparei nele — o homem que viria a ser a minha história. A primeira vez que o vi, estava sozi-nho, sentado num cubículo do famoso restaurante Wagon Wheel.

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A julgar pela enorme mochila empoeirada que tinha ao seu lado, dir-se-ia que vinha a atravessar aquele inferno a pé. Era moreno, mas não conseguiria dizer de que origem. Era bem-parecido, apesar de ter a pele intensamente bronzeada, a barba por fazer e o cabelo desgrenhado. Ou talvez fosse tudo isso que o fazia ser bem-parecido.

Tinha a roupa encharcada de suor, com uma miríade de linhas de sal a percorrer-lhe a camisa, não só debaixo dos braços, mas tam-bém no peito e no abdómen bem cuidado. Nesse dia, a tempera-tura rondava os 48 °C, sendo o calor suficiente para sobrecarregar o ar-condicionado do meu automóvel alugado. Por curiosidade, abri- ra a janela do carro mesmo à entrada de Needles. Era como se esti-vesse a passar por um forno de convecção. Não me imaginaria lá fora, a caminhar de mochila às costas. Aliás, não me imaginaria lá fora a carregar o que fosse, sem ser água.

tO restaurante Wagon Wheel tinha a fachada de um antigo edifício do Velho Oeste. Lá dentro, passando uma loja de ofertas cheia de parafernália relativa à Route 66 (sinais, relógios, bases para copos, lápis, etc.), havia uma grande sala de jantar iluminada com candeei-ros de teto feitos de rodas de vagões em metal com candelabros de vidro âmbar.

A empregada que me veio atender, uma mulher loura com uma camada espessa de base no rosto e uma T-shirt cor-de-rosa a dizer «Wagon Wheel», deixou-me num cubículo acima do qual pendia um cartaz com Marilyn Monroe — a famosa fotografia da saia pelos ares, do filme O Pecado Mora ao Lado.

O restaurante estava quase vazio e, para além da minha empre-gada de mesa (e da Menina Monroe), só lá estava o caminhante, a limpar cuidadosamente a sua mesa com um toalhete antissético. Tendo em conta a sua indumentária suada e empoeirada, não tinha nada ar de sofrer de germofobia.

Quando a empregada de mesa voltou, pedi limonada, bife de frango frito e uma sopa de feijão com presunto. Depois, peguei no meu bloco de notas e comecei a descrever o ambiente à minha volta.

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A minha empregada de mesa trouxe-me a limonada e voltou para a cozinha. Olhei furtivamente para trás, para ver o homem. Já tinha acabado de limpar a mesa e dispusera os seus talheres sime-tricamente. Estava a ler um livro.

Tudo, naquele homem, parecia descabido. A sua forma de agir denotava um asseio aparentemente incompatível tanto com a sua aparência como com as circunstâncias. Mas havia mais qualquer coisa que me chamava a atenção: a cara dele não me era estranha.

De repente, o homem ergueu o olhar do livro e cruzou-o com o meu. Ao inclinar a cabeça, em sinal de cumprimento, fez-me sentir um pouco envergonhado por ser apanhado a olhar para ele.

— Este calor é suficiente para si? — perguntei.— Sim, senhor — respondeu ele, retomando a sua leitura.Fui respondendo a umas quantas mensagens de texto, enquanto

bebia a limonada. Quando a empregada veio encher novamente o meu copo, perguntei:

— Onde ficam os lavabos?— São já ali — explicou ela, apontando para um canto, ao fundo

da sala.Quando regressei ao meu cubículo, o homem tinha um prato de

comida à frente — uma enorme costeleta, puré de batata e molho. Nisto, olhou para mim e perguntou:

— É de Chicago?Encarei-o surpreendido. Não esperava que tivesse um tom de

voz e um modo de falar tão delicado.— Como é que adivinhou?— Perguntou pelos lavabos. Isso e o seu sotaque. Diria que é do

upper east side.— Sou de Lakeshore East — revelei. — Você é de Chicago?— Sim senhor.— De que zona?— De Oak Park.A resposta dele surpreendeu-me. Como tudo o resto a seu res-

peito, nem a sua terra natal parecia combinar com ele. Oak Park era uma zona suburbana fina a oeste de Chicago. Sempre achei que

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a água de Oak Park deveria ter alguma coisa de especial, porque dera origem a mais do que a sua quota-parte de instigadores de mudança a nível mundial — tanto famosos como infames. Nas artes, os escri-tores Ernest Hemingway e Edgar Rice Burroughs, bem como o arquiteto Frank Lloyd Wright; nos negócios, Ray Kroc, fundador da McDonald’s, Richard Sears, da Sears, Roebuck & Company e, até, James Dewar, o inventor do Twinkie.

Dessa lista constavam também personalidades da TV e da rádio, entre as quais, Betty White, Paul Harvey, Bob Newhart, Hannah Storm e Peter Sagal. Do lado dos infames, constavam os chefes do crime, Joseph Aiuppa e Sam Giancana.

— Uma bela zona da cidade — elogiei. Sem receber qualquer comentário de volta, acrescentei: — Está bem longe de Oak Park.

Vi-o esboçar um sorriso curioso, mas só recebi como resposta:— Mais longe ainda do que possa imaginar.— Teria de ser doido para andar a caminhar por aí, com este

calor — comentei.Depois de beber um trago da sua água, disse:— Não me deixam acertar o termostato.— As pessoas param para lhe dar boleia?Ele sacudiu a cabeça.— Não quero que me deem boleia. Água, sim, às vezes, mas

boleias não.— Parece perigoso.— A própria vida é perigosa.Mais uma vez, por mais estranho que parecesse, reconhecia-o de

algum lado.— Onde começou a caminhada?— No início — respondeu.— No início do quê?— Da Route 66.— Veio a pé desde Chicago até aqui?— Comecei na Jackson Street, à frente do Feijão.O «Feijão» era a escultura de Cloud Gate, no Millennium Park,

na baixa de Chicago. Fora também aí que eu começara.

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— Veio sempre a pé desde aí?— Sim senhor.— Porquê?— Boa pergunta — retorquiu ele, esquivando-se à minha questão.— E você? O que o traz a Needles?— Estou a escrever um livro sobre a Route 66. Sou escritor

romancista.— Do que trata a sua história?— Pensei fazer um relato nostálgico das mudanças da América,

uma espécie de cruzamento entre Viagens com o Charley e Garrison Keillor. Mas já não sei bem em que direção estou a seguir.

Olhei para ele, ainda curioso.— E a sua história, qual é? O que leva um homem a percorrer

quatro mil quilómetros a pé?— O que acha que poderia levar um homem a percorrer quatro

mil quilómetros a pé?Hesitei um pouco, antes de responder.— Sinceramente, de início julguei que lhe faltasse algum

parafuso.Ele riu-se.— Não seria o primeiro a ter essa suspeita.— Mas, dado que isso não se verifica, suponho que esteja a fugir

de qualquer coisa.— Já está mais quente — disse. — Como se chama?— Richard — informei.— Richard quê?— O meu nome de escritor é Richard Paul Evans.— Já ouvi falar de si. Escreve livros de Natal.— Alguns são — disse. — O meu primeiro livro era.— Em que género se insere?— O mundo editorial tem algumas dificuldades a esse respeito.

Já encontrei os meus livros nas secções de literatura, inspiração, romance, religião… Como se chama?

— Charles — respondeu. Hesitando por momentos, acabou por acrescentar.

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— Charles James.— Tem o nome de uma pessoa famosa.— Deveria conhecer essa pessoa?— Espero que não — disse eu.— Então porquê?— Era um vigarista. Ganhou milhões a vender esquemas de

enriquecimento rápido aos mais ingénuos. Ia no avião que se despe-nhou em O’Hare, no ano passado, e morreu. O voo 227.

De repente, lembrei-me de onde o artigo dizia que ele era.— O James também viveu em Oak Park. Com certeza que você

o conhecia.Sem hesitar, disse:— Bem me parecia.Por momentos, ficámos calados a olhar-nos mutuamente. Até

que, sob a pele bronzeada, a barba e o cabelo comprido, reconheci a pessoa com quem estava a conversar. Penso que ele se deve ter apercebido disso, porque esboçou logo um ligeiro sorriso amarelo.

— Sim?— Você deveria estar morto — observei.— O Charles James morreu.Depois de o observar atentamente, pedi-lhe:— Conte-me a sua história.— O que o leva a crer que a quero partilhar?Dando mais um trago da sua água, voltou abruptamente a

concentrar-se na sua refeição, como se já não tivesse mais nada a dizer-me.

Esperei cerca de um minuto a observá-lo e acabei por dizer:— Acho que quer.— O que o leva a dizer isso?— O facto de me ter revelado o seu nome completo.Ergueu o olhar, sorrindo novamente.— Pensei nisso. Aliás, até comecei a escrever a minha his-

tória. Escrever não é nenhuma novidade para mim. Publiquei três livros. Um deles foi bestseller do New York Times durante duas semanas.

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— Lembro-me disso. O título era qualquer coisa do género de Making the Millionaire.

— Waking Your Inner Millionaire — corrigiu.— Isso. Então é escritor como eu.— Não como você. Há uma grande diferença entre nós. Eu

escrevo obras de não ficção, enquanto você escreve obras de ficção. Eu escrevo verdades que contam mentiras. Você escreve mentiras que contam verdades.

Sorri.— Começou a escrever o seu livro?— Duas vezes, mas não me saiu bem. Acho que estou dema-

siado perto das bolotas, para conseguir ver a floresta. Isso faz-lhe algum sentido?

— Perfeitamente.— É preciso ter uma certa… sensibilidade, para escrever roman-

ces. E, no fundo, a minha história é um romance. Não era isso que pensava, quando comecei, mas é o que penso agora.

— A maioria das viagens que fazemos esconde um coração par-tido. De Beowulf a Ulisses — comentei.

Ficou a olhar para mim uns momentos, antes de perguntar:— Então, acha-se um escritor capaz de escrever a minha história?— Talvez. Se não for, depressa o saberemos.Ele sacudiu a cabeça.— É como digo: pensei muito sobre isto. Se lha desse para escre-

ver, seria com certas condições que não lhe agradarão.— Diga lá quais são.— Muito bem. Primeiro, ninguém poderá ver o livro ou, sequer,

saber que eu ainda estou vivo, a não ser que eu o permita. Isso tanto pode ser daqui a um mês como daqui a uma década. A história ainda não acabou, e eu ainda não sei bem como acabará. Pode ir tudo por água abaixo, se alguém descobrir.

— Parece-me justo — declarei.Mostrou alguma surpresa. Suponho que tenha pensado que me

dissuadiria, com tais prazos. Mas não conseguiu. Há histórias por que vale a pena esperar.

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— Segundo, você escreverá a história, como se fosse eu a contá--la. Será um relato na primeira pessoa.

Anuí.— Prefiro escrever na primeira pessoa.— Terceiro, dar-me-á o benefício da dúvida.— O que quer dizer com isso?— Talvez não acredite no que lhe conto. Aliás, isso é o mais pro-

vável, e eu entendo. Desde que acredite que eu acredito no que lhe conto.

— Também sou capaz disso — assegurei.— Por último, você contará a história toda. Isso inclui a minha

história pessoal. Nunca poderá compreender o fim, sem ter conheci-mento do princípio. Acredite que é para o seu bem. Não há nada pior para uma história do que um protagonista antipático, que é o que eu sou. Ou, pelo menos, era. Talvez ainda seja.

— E se eu aceitar as suas condições?— Então venha para aqui, que eu mando vir outra limonada ou

o que quer que seja que você esteja a beber.Passámos quase quatro horas a conversar. De vez em quando,

fazia uma pergunta para esclarecer qualquer coisa, mas um bom escritor sabe quando deve fazer silêncio e ouvir. Ficámos para o jan-tar. Já estava escuro, quando levei o falecido Charles James a um pequeno Best Western no centro de Needles.

— Como entro em contacto consigo? — perguntei.— Dê-me um papel — pediu ele.Dei-lhe o meu bloco de notas, e ele anotou um endereço de

e-mail.— Este é o meu e-mail. Estarei atento.— Obrigado.Sorrindo, disse:— Agradeça-me depois de o livro ser publicado

tDepois disso, ainda falaríamos muitas vezes. Mais de cinquenta, no seu todo. O que mais me ajudou foi o facto de ele ser um ávido

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adepto de diários e, por isso, ter registado toda a sua experiência. E acabei por só ter de esperar pouco mais de três anos para publi-car a sua história.

Esta é a história de Charles James, nas suas próprias palavras. Vista de fora, é uma história que explica o que levou um homem a voltar as costas a uma carreira de êxito e à fortuna. Vista de perto, é muito mais do que isso. É uma história que conta a busca de um homem pela redenção e nos revela o que ele poderia fazer, se tivesse a oportunidade de voltar atrás.

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A HISTÓRIA DE CHARLES JAMES

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C hamo-me Charles James. Travei uma feroz luta interna para decidir se havia de partilhar a minha história — o diabo de um lado a dizer que só serviria para me humilhar e o

anjo do outro a dizer que poderia servir para ajudar os outros. Se está a ler isto, é porque o anjo venceu — mas não sem alguns cortes e feridas.

Isso não significa que o leitor gostará de mim, porque não gos-tará. Alguns leitores odiar-me-ão, e não os censuro. Passei uma boa parte da minha vida a odiar-me, mas peço-lhe que me conceda a graça de ouvir a minha história. Não é porque queira desculpar-me pelo que fiz — o que eu fiz não tem desculpa — mas para que veja que uma pessoa tão perdida como eu estava se pode redescobrir. Quem sabe? Talvez o ajude a travar as suas batalhas. Talvez até o ajude a descobrir um pouco de graça para si próprio.

Poderá partir do princípio de que a minha viagem começou no dia em que morri para o mundo, mas a verdade é que começou muito antes. O dia da minha morte, terça-feira, dia 3 de maio, foi simplesmente a data em que os carris que me conduziam a vida mudaram. Começarei a minha história cerca de uma semana antes.

Capítulo 1A fonte de onde recebemos a graça só se enche se a par-tilharmos com os outros.

diário de charles james

domingo, 24 de abril (quatro anos antes) st. louis, missouri

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tEra já perto do anoitecer e chovia, em St. Louis, no Missouri. Fazia o que faço — pregava o evangelho da riqueza a um auditório cheio de pessoas esperançosas e crentes. Estavam cerca de mil e duzentas pes- soas no público, essa noite, todas elas compradas e pagas pela publi-cidade. Os números tinham uma ciência e os espectadores, um preço — trezentos e vinte e sete dólares por rabo sentado numa cadeira.

Dei um último gole na lata de bebida energética, enquanto ouvia anunciar: «Senhoras e senhores, chegou o momento por que tanto esperavam, o homem do momento, descendente direto do lendário fora da lei Jesse James, o incomparável… Charles James!»

Com a música a tocar aos altos berros, apareci, vindo de trás das cortinas, com os braços no ar, numa pose triunfante. A minha música temática era muito adequada à ocasião, a Everybody Wants to Rule the World, dos Tears for Fears.

Dirigi-me para o centro do palco, ao som da multidão esfusian- te. Arranquei o microfone do seu apoio e fiquei ali parado, mais de um minuto, a observar o público na sua animação, à espera que aca- bassem de aplaudir. Quando senti que os aplausos começavam a esmorecer, ergui a mão.

— Obrigado. São muito gentis, obrigado. Já chega. Agora, acalmem- -se. O tempo é importante, e nós temos coisas para falar. Coisas importantes. Coisas vitais.

Assim que as pessoas fizeram silêncio, comecei.— Henry David Thoreau escreveu: «A maioria dos homens vive

vidas de discreto desespero.» Há uma grande verdade, na vida, que determinará se teremos uma vida bem-sucedida ou de discreto deses-pero. — Espetei o meu dedo indicador, como se golpeasse o ar. — Uma só. Querem saber que verdade é essa?

Fiz uma pausa, à espera que me respondessem. Após mais de setecentos espetáculos, já sabia como reagiriam. Era certo e sabi- do. Vi algumas cabeças a anuir. Por fim, algumas almas corajosas gritaram:

— Sim!— Diga-nos!

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Fingindo-me desiludido, encarei o público a percutir o queixo com o microfone.

— Isso não é nada promissor. Eu pergunteeeeei — protestei eu, arrastando a palavra como um evangelista a pregar na televisão — se queriam ouvir essa verdade? Não esperem que lance pérolas a um bando de suínos. Não aqui. Não agora. Nunca. Aliás, peço a todos os suínos que saiam daqui, agora mesmo.

Como seria de esperar, ninguém se levantou. Do meio da multi-dão, alguém gritou:

— Ala daqui!Todos se riram.Perfeito. Fiquei a observar o público, à espera que as pessoas se

acalmassem novamente. Num tom mais suave, repeti.— Querem saber qual é essa grande e única verdade?— Sim! Diga-nos! — ribombou a multidão em resposta.Respirei fundo, fingindo-me desiludido.— Se esse é o máximo de entusiasmo que vocês conseguem

demonstrar perante a grande e única verdade da vida, o melhor é irem-se já embora. Aliás, mais valia morrerem agora mesmo, por-que a vossa vida não vai a lado nenhum — asseverei.

Fiquei calado, a observá-los mais uns trinta segundos, para cau-sar sensação e criar uma atmosfera tensa na sala. Então, recomecei.

— Pronto, vamos lá fazer isto mais uma vez. É a última hipó-tese. Quero ouvir campeões, não chorões. Querem. Saber. Qual. É. A. Única. Grande. Verdade. Sim ou não?

As vozes ergueram-se em uníssono, num volume ensurdecedor.— SIM!— Então, está bem — declarei, baixando a mão. — Muito bem.

Sabia que vocês seriam capazes. Agora sim, soam a campeões. — Fui até à beira do palco e encarei diretamente os espectadores que estavam sentados na primeira fila.

— Aqui vai. Ouçam bem. — Apoiando-me num joelho, conti-nuei num tom mais suave. — Esta é a única grande verdade.

A sala mergulhou num silêncio de morte. Ouvir-se-ia um cartão de crédito a cair.

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— Na vida, somos o carniceiro ou o carneiro. Não há intermédio.Esperei um pouco e levantei-me.— Somos o carniceiro ou o carneiro! — gritei. — Quem são

vocês? Estarei eu a falar para uma sala cheia de carneiros? — Olhei por sobre o público. — Quem for carneiro que se levante e se vá já embora. Não perco tempo com suínos nem carneiros. Se não forem suficientemente fortes, se não se importarem o suficiente com a vossa vida para escolher ser um predador do topo da cadeia, para ser um guerreiro, então, força, juntem-se aos milhões de carneiros lá fora. Há sempre lugar para vocês nesse rebanho. Vá, estou à espera.

Mais uma vez, como seria de esperar, ninguém se levantou. Nunca ninguém se levantava.

— Então, está bem. Querem ser predadores. Querem ser leões. Isso é bom. Mas até os leões têm de ser ensinados a matar. Têm de ser preparados e postos à prova. A diferença é que os leões têm uma vantagem, em relação a vocês. Eles são criados para serem leões. Já vocês foram criados, pela sociedade, para serem carneiros. Para serem tímidos e fracos. A culpa não é vossa. A sociedade teme os leões. É impossível controlar um mundo de leões. É impossível matá-los. Já um mundo de carneiros é fácil de liderar e fácil de cha-cinar. Muitos de vocês chegaram aqui hoje como carneiros. A vanta-gem é que, se tiverem a coragem de escolher a vitória, sairão daqui leões.

— Estou a falar de mudança. Profunda mudança pessoal. — Esmurrei os meus abdominais. — Mudança nuclear. E a mudança acontecerá, quer vocês queiram, quer não. Por vezes, podem senti--la, tal como as pessoas idosas sentem as mudanças do tempo nas articulações. A mudança está sempre a chegar. Nada é mais imutável do que a mudança, tal como nada é mais certo do que a incerteza.

Olhei novamente por sobre o público de espectadores cujos ros-tos mal se viam no escuro, para lá dos holofotes cuja luz se concen-trava toda em mim.

— Olhem à vossa volta. A onda está a aproximar-se. Não é uma onda qualquer, mas um tsunami. Irão vocês surfá-la ou deixá-la enrolar-vos e afogar-vos?

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tEra a sequela perfeita para a minha história de quase-morte. Todos os apresentadores que eu conhecia tinham uma boa história de «encontro de raspão com a morte», mesmo que tivessem de a inventar. Eu não tinha de inventar nada. Só precisava de abrilhan- tar a minha.

Nove meses antes, eu e a minha agora ex-namorada tínhamos passado o dia na praia Flamands, em St. Barths, uma praia de ima-culada areia branca, onde as pessoas bonitas apanhavam sol, sob céus limpos como a água turquesa, com empregados vestidos de branco a correr de espreguiçadeira em espreguiçadeira, a atender os pedidos.

Passara várias horas a nadar e a fazer carreirinhas, e estava pres-tes a sair da água, quando avistei uma onda enorme a aproximar-se. Nadei nessa direção e apanhei-a. Não tardei, no entanto, a descobrir que fora a onda que me apanhara a mim. Senti-me às voltas, den-tro de água, como uma meia na máquina de secar a roupa. E tudo parou, quando bati no chão.

— Ouvi um forte estalido — expliquei ao público. — Parecia um ramo de árvore a partir. A primeira coisa que me ocorreu foi que tinha partido o pescoço. É incrível a velocidade a que nos correm os pensamentos, em momentos de crise. É assim que morres, pensei. Aqui e agora, debaixo de água, sem que ninguém te veja. Imaginava o meu corpo sem vida a dar à costa.

— Estava revoltado. Quando me levantara, naquela manhã, não contara com a morte. Nunca conto, aliás. Mas ainda estava vivo e sabia que tinha uma escolha a fazer. Sabia que, apesar de ter alguma coisa partida, ainda tinha uma escolha. Poderia desistir ou poderia viver.

— Naquele momento, decidi viver. Apesar da dor, apesar de ter o corpo em estado de choque, comecei a arrastar-me para a costa. Só perdi a consciência quando já tinha metade do corpo fora de água.

— Acordei numa ambulância que me transportou para uma pequena clínica onde ninguém falava inglês. Partira a omoplata e todas as costelas. Ligaram-me todo e só me deram paracetamol para

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as dores. Nessa noite, apanhei o avião de regresso a Chicago e fui para o serviço de urgências do Northwestern Memorial Hospital. Nunca me esquecerei de quando o médico entrou no meu quarto com as minhas radiografias.

— «Não deveria estar vivo», comentou. «Nunca vi fraturas tão más numa pessoa ainda a respirar.»

O público ouvia, com toda a atenção. Não interessava que a his-tória não fosse verdadeira. Pelo menos, não inteiramente. Estivera a fazer carreirinhas em St. Barths e partira o braço. Mas mais nada. A verdade não interessava. O que interessava era a história.

— Ou estamos a viver ou estamos a morrer — disse em voz baixa. — Então, como ficamos? As ondas financeiras da vida estão a afogar--vos. Sempre que se julgam capazes de avançar, elas apanham-vos e arrastam-vos novamente para o fundo. Irão vocês viver ou morrer? Só vocês poderão responder a essa pergunta, neste momento.

Respirando fundo, acrescentei:— Aos sobreviventes aqui presentes, aos que escolhem ser guer-

reiros e predadores do topo da cadeia, aos que escolhem viver, ensi-narei a surfar essas ondas. Não digo só andar sobre a água, mas surfar essas meninas até praias de areias brancas. Ensinar-vos-ei a fazer dinheiro no vosso sono. Quem me acompanha? Quem são os meus leões?

O público estava ao rubro. Meia hora depois, já todos faziam fila, munidos de cartões de crédito, livros de cheques e esperança.

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Capítulo 2Por vezes, os momentos mais sombrios do nosso pas-sado voltam para nós, na forma humana.

diário de charles james

D epois do meu discurso, troquei o casaco do meu fato por uma camisola de gola alta preta e pus os meus óculos escuros Ray-Ban Wayfarer. Era o que fazia sempre, quando

saía do palco, para evitar que fãs ou detratores me abordassem.Estava a sair pela porta das traseiras, a caminho do meu quarto,

quando ouvi alguém gritar:— Ei. Gonzales.Era um nome que poucas pessoas conheciam e que ainda menos

pessoas me chamavam. Voltei-me e vi um homem grande, de cabelo grisalho, a caminhar na minha direção. Vestia uma t-shirt havaiana Tommy Bahama de seda, que lhe estava demasiado grande, e calças largueironas. Apesar de não o ver há mais de uma década, reconheci-o imediatamente. Era o McKay Benson, o homem que me tinha metido neste negócio.

A última vez que o vira fora no tribunal, quando ele tentara, sem êxito, processar-me. Desde então que nunca mais tínhamos falado um com o outro. Ele detestava-me, mas eu também tinha motivos para o odiar. Não fazia ideia do que ele poderia querer comigo.

— A falar no diabo… — observei.

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— … e ele a aparecer — acrescentou o McKay. — Estiveste bem, ali dentro. Ainda dominas. O controlo da mente das massas no seu melhor.

— Aprendi com os melhores.— Pois foi.Surpreendentemente, estendeu a mão para apertar a minha.

Não apertei a mão dele, e não foi só por ser obsessivo-compulsivo. Depois de tudo por que tínhamos passado, não me parecia natural. Ele recolheu a mão, com uma expressão neutra, sem mostrar sur-presa nem ofensa.

Era surreal revê-lo. Mudara muito. Estava bronzeado — o que não era de admirar, uma vez que agora vivia na Florida —, mas tam-bém tinha o cabelo totalmente grisalho e ganhara peso, uns bons quinze quilos.

O McKay era alto, com um metro e noventa e dois, mas sempre me parecera ainda mais alto quando estava no palco, como se essa fosse a sua versão super-heroica. Mas isso fora antes. Agora, parecia mortal, velho e um pouco encurvado.

Era quase trinta anos mais velho do que eu. Quando o conhe-cera, tinha eu vinte e um anos. Fora não só o meu mentor, mas também um dos pioneiros da indústria dos seminários de vendas, o apresentador que todos imitávamos e que todos esperávamos vir a ser. Os meios de comunicação social chamavam-lhe o Padrinho dos seminários no palco. Fora até ele que me levara a jogar com uma ligação ao Jesse James.

Mas isso acontecera tudo antes da nossa desavença. Apesar de ter perdido a sua empresa e o processo em tribunal, o McKay já tinha ganhado milhões e, em vez de recomeçar, reformara-se. A sua saída fora para um apartamento num condomínio fechado, na Florida, com a sua mulher-troféu de trinta e seis anos (ex-chefe da claque dos Denver Broncos) e uma lancha de vinte metros cha-mada Reel Living, que tinha atracada perto de Hollywood, na Florida. Pelo menos, foi isso que me disseram. Também ouvira dizer que, agora, tinha dois filhos.

— O que fazes aqui? — quis saber.

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— Vim jantar contigo.— Obrigado, mas estou completamente exausto. Vou só voltar

para o meu quarto.— Apanhei o avião, da Florida, só para te ver. Podes muito

bem reservar uma ou duas horas para estar com o teu velho amigo. Já reservei uma mesa para nós no Ruth’s Chris, no Hyatt.

— Há mais de uma década que não nos falamos, e tu reservas uma mesa para jantarmos juntos?

— Sabes qual é o meu lema: declarar para receber.Tinha de lhe dar algum crédito: não só o dizia, como também

o fazia— Está bem. Quando?— Às sete e meia. Parece-me que assim terás tempo para des-

cansar um pouco no teu quarto. Ou pôr-te na alheta.— Vejo-te no restaurante, às sete e meia — confirmei, voltando-

-lhe as costas e dirigindo-me para o meu quarto. A falar no diabo…

tA Churrascaria Ruth’s Chris de St. Louis ficava à entrada do hotel Hyatt Regency, perto do Arco. O restaurante estava cheio, e a hos-tess fez-me atravessar a sala toda, até ao fundo. O McKay estava num canto, sentado numa mesa pequena, iluminada por uma vela. Quando me viu chegar, levantou-se.

— Obrigado por teres vindo — disse. — Dava-te cinquenta por cento de hipóteses de aparecer.

— Estava mais perto dos trinta por cento — corrigi. — Mas aqui estou eu.

Sentei-me a analisar cuidadosamente a sua expressão.— Como estás, McKay?— A viver o sonho.— Que tal a Florida?— Já sabes. Não me queria mudar para lá, mas, aos sessenta anos,

ir para lá é de lei.Contive um sorriso.— Estás com bom ar.

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— Se por «ar» te referes a estar mais velho e gordo, tens razão. Como estás?

Surpreendia-me que estivesse a ser tão simpático. Tendo em conta o nosso historial, esperava um confronto.

— De saúde, estou bem. Sempre bem.— Podes agradecer a Deus, por isso.— Agradecerei, antes, à ciência e ao exercício físico.— Como queiras. — Inclinou-se para a frente e serviu-me um

copo de vinho. — Mandei vir um Chianti, de Greve, na Itália, para nós. Sempre gostaste de vinhos italianos.

— Admira-me que ainda te lembres disso — comentei.— Lembro-me de muitas coisas acerca de ti — respondeu. — O vi-

nho italiano, as mulheres italianas… Como se chamava aquela? Sofia.— Sofia. Ou Sónia. Eram ambas como os vinhos — encorpadas,

inebriantes, caras e de pouca dura.Sorrindo, ergueu o copo.— Então, ao vinho italiano. Esse, pelo menos, podes sempre com-

prar mais.Batemos os copos e eu bebi um trago. Incomodava-me ainda não

ter percebido o que andaria a tramar. O McKay era esperto e joga- va com as pessoas, como se elas fossem peões num jogo de xadrez. A única forma de o vencer era avançar primeiro, e fora assim que eu acabara com a empresa dele.

— O que realmente te fez vir cá?— Pedimos primeiro e falamos depois.Fez sinal e a empregada veio de imediato.— O que vão desejar, cavalheiros?— Tu — pediu o McKay, dando-me a vez.Pousei o menu.— Quero um bife de alcatra, médio a bem passado, salada de

alface e batata doce guisada a acompanhar.— Com certeza, e o senhor?— Também quero um bife de alcatra — pediu o McKay. — Médio

a bem passado, uma pequena salada miudinha e o vosso macarrão com queijo e lagosta a acompanhar.

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— Mais alguma coisa?— Espero que não — disse o McKay. — Já são calorias suficien-

tes para hoje e amanhã.— Volto já com os vossos pedidos.Quando estávamos novamente sozinhos, o McKay começou.— Para responder à tua pergunta, pela terceira vez, vim ver-te.

O clima é que não foi de certeza o que me fez vir cá. É abril, mas ainda parece que estamos no inverno.

Olhei-o bem nos olhos.— Ainda não respondeste à minha pergunta.Ele sorriu e deu um gole no vinho.— Então, ainda ganhas a vida a trabalhar.— E tu ainda ganhas a vida a jogar?— Nem sei como alguma vez arranjei tempo para trabalhar.

A Marissa mantém-me ocupado. Demasiado, até. Nunca te cases com uma mulher que seja uma década mais nova do que tu, porque as tuas articulações é que sofrem. Agora pôs-me a fazer Pilates.

— Só uma década mais nova?— Pronto, está bem. Duas e meia.— Mas sentes-lhe a falta, não sentes?Vi-o franzir o sobrolho.— Falta do quê?— Do negócio. Da emoção do público. Da adrenalina de estar

no palco.Dando mais um trago de vinho, respondeu.— Não.Só olhava para ele, a tentar decidir se deveria ou não acreditar

nele.— Estou a dizer a verdade. Não sinto falta de nada disso. Da sen-

sação ou do público. Nem um pouco. Pensei que sim, mas não.Dor de cotovelo, pensei.— Então, o que te faz levantar, de manhã?Ele sorriu.— Normalmente, os miúdos. Começar uma família com a minha

idade…

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— Pois, também me pareceu um pouco uma loucura.— É mesmo. Mas é uma loucura agradável. Só me arrependo de

não o ter feito antes — admitiu, com um sorriso. — Deverias ter-me roubado a empresa antes.

Tive de me conter, para não reagir.— O Padrinho foi domesticado. Ou será Síndrome de Estocolmo?— Essa é boa — disse ele, a rir. — Síndrome de Estocolmo.

Pareces admirado.— E estou. Costuma-se dizer que o casamento tem três anéis.

O de noivado, o de casamento e o do sofrimento.— Já se sabe que dá trabalho. Como todas as relações. Mas vale

a pena o esforço. Ela apoia-me e eu apoio-a. Neste mundo cão, isso não é pouco. — Esboçou um sorriso descontraído de contentamento. — E tu? Tens alguém?

Antes de poder responder, a empregada trouxe as nossas saladas e pousou-as à nossa frente.

— Pimenta moída? — perguntou.— Não, obrigada — respondi.— Por favor — disse o McKay. — Só um pouco.A empregada deitou-lhe alguma pimenta na salada e foi-se

embora.— De momento, não tenho tempo para ninguém — expliquei.— Nem terás, enquanto não parares.— Parar? Ainda agora comecei. Então, é isso? Queres recuperar

a tua empresa?Ele riu-se.— Nem que ma desses. Tens a certeza de que o que ganhas com-

pensa?— Se a minha empresa compensa?— Não. Se compensa o estares sozinho.— O estar sozinho não é o problema. O problema é afastar-me

das multidões.— Nada nos faz sentir mais sós do que a multidão — observou ele.— Pois, mas não é pelo dinheiro. Tenho mais dinheiro do que

Deus. Não preciso de mais.

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Ele parecia divertido.— Boa. Então, vais começar a oferecer os teus pacotes?— Agora estás a disparatar.Depois de comer umas garfadas de salada, continuei.— Julgava que o objetivo era o dinheiro. Mas não é. O meu

extrato bancário só me apresenta a minha pontuação.— Se o dinheiro não é o objetivo, então, qual é?— O objetivo é vencer. É fazer a bola passar por cima da linha,

com todos a tentarem impedir-te. É seja feita a minha vontade, não a tua. É a essência de tudo o que é competitivo. É a essência da socie-dade. O objetivo é dominar o outro.

— Eu, por exemplo?Lancei-lhe um olhar furioso e estava a pensar ripostar, quando

ele me sorriu e ergueu a mão, num aceno.— Desculpa, essa foi rasca. — Bebeu mais um gole. — Talvez

tenhas razão. Não digo que esteja correto, mas talvez tenhas razão.— Claro que tenho. O que interessa é vencer. E, para que uma

pessoa ganhe, há outra que terá de perder. Foste tu quem mo ensi-nou. O que costumavas dizer? Os perdedores perdem. É o que eles fazem. Foi para isso que se inventaram os troféus de participação.

Arquejou.— Nessa época, dizia muita parvoíce. Coisas de que me envergo-

nho. — A humildade dele surpreendia-me. Não era, de modo algum, o McKay para quem outrora trabalhara.

— És feliz? — perguntou.Soltei uma gargalhada.— Mas que pergunta é essa?— É uma boa pergunta.— Porque não haveria eu de ser feliz? Estou à frente, neste jogo.

As vendas aumentaram mais de cinquenta por cento, no ano pas-sado, o meu nome nunca foi tão conhecido e o meu último livro chegou à lista de bestsellers do New York Times.

— Eu vi — disse ele. — Parabéns.— E acabo de comprar um Aston Martin.— Qual?

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— O Vanquish.— Isso não é um carro; é uma obra de arte — observou o McKay.

— Azul-cobalto?— Como adivinhaste?— Já te conheço. Mas ainda não respondeste à minha pergunta.

És feliz?Olhei-o com curiosidade.— Diz-me lá a verdade, McKay. Porque vieste a St. Louis?Endireitou um pouco as costas.— Está bem, eu digo-te. Primeiro, queria dizer-te que te perdoo.Só olhei para ele.— Não pedi o teu perdão.— Pois não, mas eu ofereço-to na mesma.Não sei como estava à espera que eu reagisse à sua oferta, mas

não fiquei nada impressionado.— Eu é que não te perdoei a ti — contrapus.— Eu sei e espero que um dia me perdoes. Não por mim, mas

por ti. — Coçando o queixo, continuou. — A outra razão é um pouco mais vaga. Até para mim. Acho que me sinto responsável por tu seres quem és. Afinal, fui eu que te criei.

— Pareces o Dr. Frankenstein.— Se os elétrodos servem… — gracejou ele.Ri-me e dei um trago no vinho.— Este monstro não se deixa abater.— Não. Não estou à espera disso — disse ele, passando a um

tom de voz ligeiramente mais delicado. — Mas gostaria que ponde-rasses a hipótese de parar.

Olhei para ele, incrédulo.— Porquê?— Prejudicámos muitas pessoas, nas nossas vidas. Boas pes-

soas. Pessoas que ainda acreditavam na humanidade. Pessoas com simples fé.

— Diz antes que as despertámos — disse eu. — Salvámo-las da sua «simples» fé.

— Não era o nosso papel.

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— Então, deixa-me ver se percebo. Vieste a St. Louis, porque achas que criaste um monstro e querias travar-me.

— Não — afirmou ele, sacudindo a cabeça. — Vim cá para te ajudar, Charles. Vou-te retribuir o que fizeste por mim.

Ri-me num tom sarcástico.— Retribuir-me? Ou vingar-te?— Não. Já ultrapassei isso. E bem. Falava a sério, quando disse

que me fizeste um favor. Sei que, na altura, não foi o que entendi. Estava lívido. Tresloucadamente lívido. Roubaste o meu mundo e queimaste a minha casa. Como não haveria eu de ficar revoltado?

— Que fique bem assente que tu te vingaste e também quei-maste a minha casa — esclareci.

— Que fique bem assente que foste tu quem acendeu o fósforo — retorquiu ele. — Mas estamos a fugir ao assunto. Durante muito anos, eras o diabo em pessoa, o grande e terrível traidor. Até que, um dia, estava eu a ver a Marissa a empurrar o Trey, o meu filho mais velho, num balouço, quando aconteceu qualquer coisa. Senti uma coisa que nunca tinha sentido.

— Tédio? — perguntei.— Alegria. Foi então que percebi. Nesse momento, entendi que

o que acontecera fora uma bênção e, para minha surpresa, até me senti grato para contigo. Se não tivesses sido tu, ainda teria estado naquele palco, esta noite, a perder tudo o que realmente me inte-ressa ou que me pode trazer alegria a sério. Nunca teria conhecido os meus dois meninos. É a ti que o devo.

Olhou-me nos olhos.— Perdera de vista aquilo que traz a verdadeira felicidade.

Esquecera-me do que era alegria a sério. Por vezes, no decorrer da nossa vida, perdemos o rumo e embrenhamo-nos demasiado na mata daquilo que achamos que é bom para nós. De tal forma, que nos esquecemos de que precisamos de muito mais do que um carrão e uma carteira recheada.

— É nessa mata que homens como nós devem estar.— Não, não é. Acredita.Desatei subitamente a rir.

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— O que tem tanta piada? — quis saber o McKay.— Já percebi do que isto me lembra. Um Conto de Natal, a visita

do fantasma do Marley.O McKay sorriu, com essa sugestão.— Isto é precisamente a mesma coisa.— Então, estás mesmo a dizer-me que se pudesses voltar atrás,

não farias a mesma coisa? Ter-te-ias contentado com um emprego normal, das nove às cinco, a lamber as botas a um chefe qualquer, a conduzir um Chevy Malibu e a fazer um pé de meia para pagar umas férias sem exemplo no Havai? Não me parece

— É uma pergunta justa — respondeu. — Posso responder-te com os benefícios da minha carreira — o dinheiro, as portas abertas e o crescimento pessoal. Até a Marissa conheci através do meu traba- lho. Portanto, em bom rigor, como poderia eu separar as duas coisas? Mas tenho arrependimentos a cada esquina. Arrependo-me de ter adiado a vida, uma família e filhos. Arrependo-me de ter prejudicado tantas pessoas. Arrependo-me de ter arruinado tantos casamentos.

Agarrei no meu copo com tanta força que até receei poder parti-lo.— Pois, podes crer.Pelo menos fazia o obséquio de se mostrar envergonhado.— É como digo. Tenho os meus arrependimentos. Mas referia-

-me àquilo que fazíamos, ao negócio em si. Quando perdem dinheiro, as pessoas perdem a esperança. E, com a esperança, vão os casamen-tos. Por vezes, até, as vidas. Sem esperança, este mundo é inóspito. Este é o meu legado: um rastro de atropelamentos na autoestrada da ganância. É um legadozinho simpático de se ter, para me manter acordado à noite.

— Esqueces-te de todas as pessoas que ajudaste.Ele esboçou um sorriso cínico.— Que ajudei? Nós só nos ajudámos a nós próprios. Quanto aos

nossos clientes, poucos foram. Muito poucos. E sempre que desco-bríamos um unicórnio, agarrávamos nele pelo corno e sacudíamo-lo diante de todos, para provar a nossa veracidade, mas ambos sabe-mos que eles são as raras exceções. Metade das pessoas nem sequer abriu a caixa com material para o êxito e pela qual esportulou cinco

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mil notas. E quase nenhuma foi reembolsada. Apenas se resignam à obrigação de pagar a mensalidade.

— Os perdedores perdem — repeti. — É o que eles fazem.Ele sacudiu a cabeça, deu um gole no vinho e disse:— Eu tenho arrependimentos.— Então, foi por isso que fizeste tantos quilómetros? Para parti-

lhares os teus arrependimentos?— E para te dar uns conselhos.— Outra coisa que não pedi.— Apesar disso, tal como o perdão, ofereço-tos na mesma, se mo

permitires.Agitando a mão, disse:— À vontade.— O que aprendi é que, quanto mais me desligo da matriz, mais

me encontro. E mais gosto de mim. É como os aborígenes austra-lianos: quando se tornam maiores de idade, deixam a tribo e fazem uma caminhada de autodescoberta. Chamam-lhe a canção do cora-ção — o caminho dos ancestrais. Nessa caminhada, longe de tudo o que é permanente, de tudo o que conhecem, encontram-se e desco-brem quem são neste mundo e o que podem oferecer.

— Quem me dera ter feito isso. Acho que toda a gente deveria fazer qualquer coisa desse género. Só há um problema. Nos rápidos da sociedade ocidental, somos arrastados pela corrente e estamos tão preocupados, a tentar manter a cabeça fora de água, que nem queremos saber para aonde o rio nos leva. — Nisto, inclinou-se para a frente. — Nunca pensaste em recomeçar do zero? Em descartar-te do passado e ser outra pessoa?

— Isso não funciona — disse eu. — O passado nunca nos larga. Nós somos o passado.

— O passado não nos larga, mas nós podemos deixá-lo a ele — insistiu ele. — Somos tanto o passado, como somos a estrada que percorremos para aqui chegar. Já passou, a não ser aqui. — Percutiu a têmpora direita. — Mas, aqui, o que interessa não é libertar-nos do passado e sim do futuro. Não é o passado que nos escraviza, mas o futuro que lhe está associado. Não podes ter um pau sem as duas

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pontas. Por vezes, o melhor é livrares-te do pau inteiro. — Olhou-me bem nos olhos. — Então, porque não o fazes? Não é certamente por causa do dinheiro, uma vez que tens mais do que Deus.

— Nem nunca pensei nessa hipótese — respondi. — Devo estar demasiado embrenhado no mato.

— Não é assim tão difícil. Afasta-te simplesmente, antes que seja tarde de mais.

Dei um longo trago no vinho e disse:— Vou pensar nisso.Ele olhava-me em silêncio, e vi-lhe os lábios torcerem-se num

sorriso divertido.— Não vais, não. Só o farás quando fores velho, com o cabelo grisa-

lho e um pneu na cintura, como eu. Quando esse dia chegar, lembrar- -te-ás desta conversa, tomarás uma bebida e pensarás: Como se cha-mava aquele fulano? — Serviu-me mais vinho e encheu novamente o seu copo.

— Fizeste tantos quilómetros de avião só para me dizer isto?— Só? — anuiu lentamente. — Receio que sim.— Está bem — declarei. — Já entregaste a mensagem. Já podes

ter a consciência tranquila.— Não se trata da minha consciência.— Pois, da minha e que não se tratará — disse eu.Ele respirou fundo e forçou um sorriso.— Que assim seja. Que assim seja.Tentei parecer inexpressivo.— Então, o que vai o descendente do Jesse James fazer agora?— Vou começar uma nova digressão, na semana que vem. O pro-

duto Internet Gold. E tu? Mudar fraldas?Depois de me observar uns momentos, disse:— Vou morrer.— Disse-o tão inexpressivamente que, de início, até julguei que

estava a brincar. Mas o seu olhar mostrava-me que não.— Falas a sério?— Tão sério como um cancro do pâncreas no estádio IV. —

Deitou lentamente o ar fora. — Arrependimentos. Os meus lindos

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meninos crescerão sem nunca terem conhecido realmente o pai. Isso já é lamentável.

— Lamento — disse. — Mesmo.— Eu também.— Então, foi por isso que vieste a St. Louis.— Precisava de esclarecer as coisas, antes de… — Deteve-se.

— Não interessa. Já nada me interessa, a não ser a Marissa e aqueles meninos. Nada.

Calámo-nos e assim nos mantivemos, até nos começarmos a sentir muito incomodados ali.

— Deixa-me pagar — disse eu.— Deixo sim. Tenho de financiar futuros estudos universitários,

e tu ainda tens mais dinheiro do que Deus.

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