Decameron
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Tadeu Sarmento
Decameron
(Um livro para tirar Satã do seu coração)
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O relógio alemão na parede branca ressonou sua sexta e derradeira nota: vertebral,
perene, afinada, musicalíssima, última nota da hora cheia da tarde que se esvaia no
anúncio das sombras manifestadas aos poucos nas cortinas da sala, cortinas balançando
na sala como varas calcinadas em movimento. Era o tempo novamente – equilibrado,
harmonioso, livre de conflitos internos, pelo menos por enquanto – notado na noite
espessa que se avizinhava em círculos, calma e inevitável, estreitando-se junto aos
parapeitos das janelas abertas da casa, todas, por hora, irreversíveis hexagramas
representando equilíbrio dos opostos. Fora da casa, no entanto, a cidade inteira era
atacada. Queimava. Começou com rebeliões simultâneas em vários presídios, presídios
que cercavam a cidade como cercam os sintomas da malária o círculo saudável. Logo, a
violência se expandiu para além dos limites dos muros, dos círculos. Mandala. Ataques
terroristas coordenados espalharam-se pelas ruas, orquestrados por um virabrequim
oculto, de ícones sombrios. Os criminosos irromperam o silêncio com suas mãos
brotando feito sangue escuro dos locais mais inesperados. Policiais mortos em
emboscadas, incêndios de prédios públicos, de ônibus, de estações de metrô,
supermercados e postos de gasolina. Se vista de cima, portanto do ângulo dos
helicópteros policiais, a cidade inteira se apresentava minada por imensas poças de
fogo, que crepitavam luminosas como satélites caídos. Esse também era o ângulo pelo
qual Deus assistia a tudo, sorridente e impassível como um padrasto. Talvez jogasse
xadrez, como de hábito, movendo suas peças sobre o vórmio esfacelado das vítimas. O
Demiurgo. Divindade Oculta que ocupa e é todas as coisas. Pode ser chamada de Nada.
Ou Tudo, dependendo do ângulo de visão. As informações se desencontravam. As TVs
superestimavam os números. Falava-se em cem mil mortos. As cenas dos ataques eram
constantemente reproduzidas, tanto que já não se sabia se se tratavam de novos ataques
ou se de repetições de ataques anteriores. Tudo uma grande e aparente ilusão
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amedrontadora, como o Houdini algemado em seu espetáculo de fuga dentro de caixas
amarradas com cordas e lançadas ao rio. O pânico, enfim, insinuou-se sem
dissimulações, fértil como nunca, em um teatro de evacuações; o terror da morte e da
violência saiu às ruas sem máscara. E para dançar. As pessoas se trancaram em suas
casas. Era Natal. Na cozinha da casa de que falamos, Noga cuidava dos últimos
preparativos para o jantar de logo mais; alheia aos acontecimentos seguia mastigando
entre os dentes cariados seu sono difuso, seu cansaço de velha, as pernas cansadas
tropeçando em seu autismo. Era negra e bela, de uma tranquilidade generosa que se
prestava aos serviços enquanto a maioria apreensiva mastigava as unhas. Ficou nervosa
apenas ao ouvir a sexta nota ecoar um esqueleto de fibra acrílica soltando-se dos
ligamentos, das rótulas: vou me atrasar, ela pensou. Merda. Não, ela não poderia se
atrasar. Não em um jantar com vários convidados onde, nem ela, nem ninguém, poderia
sequer imaginar que o poeta Ângelo Dantes estaria entre os dez convidados. Ou talvez
sobre eles. Sim, soubesse isso e a veríamos ainda mais nervosa e aflita, ainda mais com
pressa de tudo, nos ossos já lhe doendo a artrite clavicular da velhice. Lá fora, o mundo
se mostrava pouco inviolável. Ele ardia. Assim como há séculos ardeu, antes de
desaparecer, a Atlântida de Zschaetzsch. Pessoas se escondiam nas igrejas na tentativa
de se salvarem. Ao menos aquelas que não se sentiam seguras em suas casas. Nada
poderia ser dito com toda certeza. Pode-se dizer apenas que este é um período de
transição. Dez convidados são esperados para o jantar. Nenhum deles representa a
prudência ou a coragem, ou a justiça ou o temperamento, ou a fé ou a esperança ou o
amor. Nem mesmo a razão, apenas a luxúria e a ira, que são, na verdade, a soma
equivocada de todos os outros. No quintal da casa, Cortázar corre para lá e para cá,
esbaforido, a língua pênsil para fora, transpirando, fazendo seus barulhos. Fiasco, ao
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contrário dele, mantém-se silencioso e triste, os olhos úmidos como de praxe, duas
poças de parafina, mas, desçamos um pouco:
Neste novo parágrafo, temos um homem sentado em sua poltrona macia, com um pufe
não menos macio à sua frente, um onde coloca os pés descalços para cima, na tentativa
de descansá-los. Nessa posição, o sangue circula com mais facilidade. Vão-se as
cãibras. Ele está na sala, na exata sala ampla e arejada onde se encontra relógio e
cortinas. O relógio é de fabricação alemã, data do século XIX, possui caixa de música e
foi recentemente consertado. O homem é deste século mesmo (cremos), e escuta a
mesma sexta nota soar metálica anunciando a noite. Logo eles chegarão, ele pensa, no
rosto a expressão de quem acaba de provar algo intragável, azedo, estragado, podre: um
copo de azebre. O homem está velho, roído pelo maquinismo intransigente do tempo, o
crânio calvo, a pele enrugada, as olheiras uma nata negra lhe sombreando os olhos, os
cabelos que lhe restam ralos e brancos. O mais novo cliente das clínicas geriátricas.
Sozinho, seus olhos miram o infinito, o vazio, o além do zero, as mãos feitas de
pequenos gestos, encordoadas, as orelhas largas e flácidas, cabeludas, bochechas moles
como suspensórios, a papada de carne um fole frouxo lhe continuando o embaixo do
queixo é um pêndulo de pele morta, úmida, resinosa, no instante em que ouve alguém
bater na porta da entrada da casa, o som regular da primeira batida cessando por aqui as
descrições. Deve ser o primeiro deles, pensa o velho homem cansado, no rosto a mesma
expressão de nojo, de azedado. Palmito em conserva.
Mas mantém-se sentado em sua poltrona macia, como se esperando um engano, ou uma
livre associação de objetos simbólicos. A cabeça lançada para trás do espaldar do móvel
uma lâmina, ele observa o linóleo ondulado do teto de madeira. Está em silêncio, como
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se não quisesse mais existir, nem respirar respira mais, os dois pulmões invisíveis,
náufragos, mergulhados em uma asfixia provocada por seus êmbolos, quando a segunda
batida na porta soa mais forte que a primeira, residual, como se se acumulasse as duas
uma teimosia mecânica, um revérbero angustiado, insistente, recalcitrante ante a
campainha que não funciona...
Noga: Quer que atenda a porta doutor?
Noga: É ele quem está batendo, o Mal em pessoa, eu sei disso...
Mas ele não responde, limitando-se a apenas levantar desgostoso, como se arrastasse
consigo uma âncora, indo em direção à porta onde alguém do outro lado pede para
entrar. Os últimos retângulos da luz do dia o acompanham pela sala até chegar à porta,
para abri-la. E ele a abre, iluminado pelas réstias amarelas, urinárias, do sol.
Estando em Gotenburgo, Swedenborg presenciou o incêndio que devastou Estocolmo
em 1756, embora na ocasião o visionário sueco se achasse a 483 quilômetros de
distância do incidente. Corpo astral: fantasma de pessoa viva. Mas foi o corpo físico do
dono da casa quem abriu a porta. Para seu lamento. Certo: os dois homens se observam
por alguns instantes, o relógio alemão agora emudecido parece ligado aos
acontecimentos do qual fez parte, sua presença solene indicando que sim, sim, como se
seus pêndulos soprassem vestígios de representações mentais do passado sobre os dois
homens que ali se olham, silenciosos. O que está lá fora traz no braço um paletó cinza, a
gravata frouxa, no outro braço uma maleta de couro arenoso. Um sujeito magro, alto,
ossudo, os cabelos brancos, a pele sem nenhuma pigmentação, os olhos mortos e vazios,
transparentes, diáfano e pálido feito o esqueleto de fibra de uma rã. O silêncio entre eles
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é incômodo para ambos, em ambos a sensação de uma água oculta brotando algures,
acrílica e peremptória, uma que em breve arruinará tudo com sua corrosão lenta,
gradativa, líquida, de tétano pendular...
Azeredo: Guilherme.
Guilherme: Não vai me convidar para entrar?
Na voz nenhum tom de raiva detectado, de raiva ou deboche, de deboche ou cinismo, de
cinismo ou sacanagem, voz sem graduação, limpa de vestígios, um tom monocórdio e
frio apenas, como se lhe fosse indiferente entrar ou não, o semblante enfadoso, mas,
paciente, feito algo esticasse sua face. Talvez a pressão barométrica. Uma máscara de
borracha.
Guilherme: Não é seguro ficar aqui fora.
Azeredo: Claro que sim, entre.
Guilherme: Agora sim. Nada é tão fácil quanto parece, não é mesmo? Nem tão difícil
quanto a explicação do manual.
Azeredo: Ora...
E se cumprimentaram com um aperto áspero de mão, seco, desfalecente, feito não
tivessem jeito um com o outro, embora fossem irmãos desde nascidos. Para
cumprimentar o dono da casa, o albino teve que pôr a maleta de couro arenoso no meio
das longas pernas magras... E assim a pôs, de um jeito desinteressado, olhando com o
canto dos olhos o interior da casa e havia algo de fadiga, de desdém, nesse olhar. Algo
como se assinasse um contrato bilateral de mútua educação.
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Guilherme: E o que está acontecendo na cidade, hein? Adeus pátria e família.
Azeredo: Não acredite em tudo que você vê na TV.
Guilherme: Ah não? O que passa na TV é a vida, meu irmão. E se eu não acreditar nas
imagens, vou acreditar em quê? Deus? Ângelo Dantes? Ah. Em vão os sonhos se vão,
então. Não era isso?
Azeredo: Dê aqui a maleta que guardo.
Tudo muito cerimonioso ainda, ainda que ambos sejam receptores dos caracteres
transmitidos pelo relógio alemão – a oferta feita quando ainda de mãos entrelaçadas,
ambos olhando frios um a cara do outro, dois espelhos com reflexos distintos notando-
se aos poucos, enquanto parados ainda na entrada da casa, ainda de porta aberta, lentos
como se se estudassem.
Guilherme: Sem o conserto do piano não haverá concerto. É disso que falo.
Azeredo: Então me dê a maleta.
Guilherme: Que disco arranhado meu irmão...
E estendeu o albino a maleta ao irmão, agradecendo o pertinente motivo para largá-lo os
dedos, não sem certo desconforto. O dono da casa sentiu a maleta pesada, passando a
mão sobre seu couro arenoso, incômodo, saliente como uma cicatriz na carne, branca e
profunda cicatriz carnuda. O peso da maleta daquele momento o fez franzir as
sobrancelhas, ao perceber que a situação exigia cautela. Paranoia daqueles tempos?
Conhecimento das experiências do Dr. W.H.C. com os sensitivos holandeses?
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Guilherme: Não foi Cristo quem disse: Pedro será a pedra onde alicerçarei minha
igreja?
Azeredo: O que tem aqui dentro?
Guilherme: Onde?
Azeredo: Você sabe onde.
Guilherme: Desculpe pôr tudo.
Azeredo: Sem brincadeiras Guilherme.
Guilherme: Proteção.
Azeredo: Você sabe muito bem que eu não gosto nem um pouco dessa estória de armas
aqui em casa.
Guilherme: Por que não?
Azeredo: É muito pouco saudável.
Guilherme: Não existem coisas saudáveis, apenas o não suficientemente examinado.
Azeredo: Você... Você sabe muito bem que eu fico incomodado com isso.
Guilherme: Mas, acontece, meu irmão, que em uma democracia temos o direito, o
dever, inclusive, de nos protegermos, não temos? Além do mais: não vê o caos em que a
cidade toda está metida?
Azeredo: Caos...
A pergunta agora vinha debochada, acompanhada de um sorrisinho cúmplice, artificial,
embaraçado, cínico, a voz agora um estalo sarcástico modulando, erguendo-se da
partitura construída seu incômodo, seu constrangimento. Cautela, muita cautela, pensou
o dono da casa, as sobrancelhas encolhidas fechando-se como um zíper.
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Guilherme: Então eu disse a ela: deixa disso querida, você está em forma, afinal,
redondo é uma forma... Ou não é?
Azeredo: Não me admiro ela não querer ter vindo. Agora, quanto às cenas que estão
passando na TV eu...
Guilherme: Não se admira? Vai ver ela ficou com medo de sair de casa. Afinal de
contas, ela tem quatro aparelhos de TV em casa, um em cada... Mas voltemos ao
assunto da arma. Cenas é? Certo.
Azeredo: Deixa para lá. É melhor.
Ele disse, e colocou a maleta sobre a pequena poltrona próxima à porta, delicado e
cuidadoso como se com medo da arma disparar dentro dela. Um acidente, sem dúvida.
Um terrível acidente... PK.
Azeredo: Hoje em dia tudo se resume a um amontoado de siglas. Aliás, tirei-as de lá. As
plantas não se davam muito bem ali.
Guilherme: Não, o que eu quis dizer foi: não se preocupa não, o revólver está travado.
Azeredo: O que...
Então os dois permaneceram parados, de pé, ambos olhando-se como se se estudassem.
Um intranquilo silêncio fez-se novamente entre eles, ambos próximos à porta ainda
aberta, (local onde conversavam) silêncio incômodo e negro, profundo, sem
significação...
Azeredo: Enfim, ali não bate sol.
Guilherme: Não vai fechar a porta?
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Azeredo: Como...
Guilherme: A porta...
Mas o outro não respondeu de imediato, talvez ainda pensasse na arma e em suas
consequências, ainda que travada. Ou no sol, que nunca bateu nas plantas, até o instante
em que mudaram de posição. Agora, sempre que fazia, o sol tocava a debilidade das
folhas com sua luz agradável, de pelúcia quente.
Guilherme: Porque se não vai fechar a porta é melhor que a maleta fique perto de mim,
afinal, nunca se sabe quem vai entrar ou o que vai acontecer...
Azeredo: Não, vou fechá-la agora mesmo. E: nada vai acontecer. Droga.
E a fechou, um pouco a contragosto por estar obedecendo a ele. A sensação foi a de que
fossem crianças novamente, e ele estivesse obedecendo ao irmão mais velho que tanto
odiava. Mas a fechou, calmo e corrosivo, assim como o sugerido. E fechou para evitar o
pior, já que sabia que o irmão mais velho era rápido com essas coisas...
Guilherme: Aquele policial, por exemplo: ficou parecendo uma peneira. Todo crivado
de balas.
Azeredo: Pronto, pronto... Em que noticiário você viu isso?
Guilherme: E todos aqueles especialistas em segurança pública falando todas aquelas
merdas na TV. Nessa hora todos adoram dar depoimentos. Especialista para mim é
aquele sujeito de óculos de grau que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, entende
o que quero...
Azeredo: Não são apenas especialistas Guilherme.
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Guilherme: Superespecialistas então? Estes sabem absolutamente tudo sobre
absolutamente nada. E nesse caso o grau dos óculos é maior, o que se nota pela
espessura das lentes.
Azeredo: Olha, vamos mudar de assunto?
Guilherme: Se não consegue sustentar um argumento esta é a melhor saída.
Azeredo: Nada disso. Você...
Guilherme: Sustentar um argumento sempre exige alguma coisa a mais, o verdadeiro,
na maior parte das vezes, mas, em alguns momentos, também o falso. O segredo é ter
um ouvido afinado, pronto para ouvir o segredo que se esconde nas entrelinhas do
discurso. Em suma: todo diálogo é também uma forma de confissão.
Azeredo: Estamos nos confessando então?
Guilherme: Boa. Percebeu? Você está aprendendo rápido.
Azeredo: Você sempre tentando confundir as coisas, Guilherme...
Guilherme: Nossa casa então... Não mudou nada não foi? Está a mesma coisa.
A voz agora com um quê de ironia, enquanto passava a vista nos lugares, os olhos fixos
em tudo, apenas o pescoço se movia e era um pêndulo, a garganta maleável de uma
avestruz, um tubo de borracha, um macarrão, girafa de feltro vestindo uma pantalona
larga, quem sabe já percebendo as informações que na casa pairavam sobre eventos
passados, assim como aquele holandês que, tocando o indutor (um capacete, no caso),
descobriu que o dono do objeto havia se enforcado em uma árvore.
Guilherme: Eu acho que ele vem sim. Um chato como ele nunca perde seu tempo não
é? Perde o dos outros. A ironia, percebe?
Azeredo: Isso não se fala Guilherme... E não é nossa não, é minha.
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Guilherme: Sua o quê?
Azeredo: Casa.
Guilherme: É, sua... E o que eu disse?
Azeredo: Você disse “nossa casa”.
Guilherme: Nada disso, eu disse: nossa, a casa então não mudou nada não foi?
Azeredo: Sei.
Guilherme: Nesse caso, o “nossa”, foi interjeição, não pronome possessivo.
E riu, e caminhou em direção ao centro da sala arejada, e se sentou, respirando fundo
como se estivesse enfadado, ou tivesse asma, jogando o paletó que trazia no braço sobre
uma cadeira próxima dele. Aquela lá. Um sorriso cínico, geometricamente cínico.
Sempre gostou de se mostrar mais inteligente, de exibir seus conhecimentos sobre tudo,
sobretudo os gramaticais.
Azeredo: O que estou querendo dizer é que aquele policial lá morreu há dois dias, e eles
continuam transmitindo a notícia feito tivesse acontecido hoje.
Guilherme: É nisso que deu a liberdade de imprensa. Mas: por que eles fariam isso?
Azeredo: O que tem a ver uma coisa com a outra...? E eles quem?
Guilherme: Os sujeitinhos da TV, os que colocam para funcionar essa maquinazinha
impressionante, transmissora de notícias fantásticas.
Azeredo: Desgraça dá ibope Guilherme.
Guilherme: Você às vezes não tem a impressão, quando está assistindo TV, de que está
dentro de um labirinto?
Azeredo: Não entendi.
Guilherme: Um labirinto real de difusão de imagens reais e...
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Azeredo: Nada do que você vê na TV é real.
Guilherme: O quê então? Azedinho, tudo bem... O que você está bebendo?
Azeredo: Nada.
Guilherme: Nada?
Azeredo: É, nada.
Guilherme: Traz um “nada” desse para mim. O meu é com gelo.
Azeredo: Muito engraçado.
Guilherme: Sou não sou? Evite acidentes, faça de propósito, esse é o meu lema.
Azeredo: Estou estourando de tanto rir.
Guilherme: Vamos lá Azedinho... É Natal Azedinho, sirva alguma coisa para o teu
irmão mais velho, Azedinho.
A repetição da palavra “Azedinho” ecoava morosa como forma de diminui-lo, de
degradá-lo, de conduzi-lo novamente à infância onde era (e estava sendo)
constantemente dominado por aquele gigante albino e sarcástico. Demoníaco. A
infância um tipo de memória repleta de caninos a afundar na carne o seu veneno feito de
recordações como órbitas vazias, e atrás delas: ninguém lembrando. Apenas o vidro, o
nada, o...
Guilherme: Uma dose Azedinho. Vamos lá, até o diabo quando está satisfeito é uma boa
pessoa.
Azeredo: Sirvo só se parar de me chamar disso.
Guilherme: Disso o quê Azedinho?
Azeredo: Você sabe muito bem.
Guilherme: Não sei não... De Azedinho, Azedinho?
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Azeredo: Guilherme...
Guilherme: Mas Azedinho... Esse não era teu apelido de infância Azedinho? Você
nunca reclamou dele.
Azeredo: Se reclamasse apanhava não era?
Guilherme: Não era bem assim Azedinho... Não acha um modo carinhoso de te chamar?
Azeredo: Não somos mais crianças Guilherme.
Guilherme: Tudo bem, tudo bem, não chamo mais, mas só porque quero tomar alguma
coisa, estou com a garganta seca.
Azeredo: Vou buscar a cerveja.
Guilherme: Porque não manda tua negra trazer?
Azeredo: A minha o quê?
Essa frase tocou de um modo violento o irmão mais novo. Os olhos luminosos
brilharam em um vácuo de fel, acesos, espocados um esmalte negro, turvo, as pálpebras
movendo-se tão rápidas quanto as cortinas da sala lambendo-se à corrosão do vento. O
rosto retrorso. Sentia-se como se ainda estivesse na infância, com caninos enfiados na
pele como alfinetes nascendo para dentro, uma sensação estranha de contiguidade,
como se o acontecimento presente lhe chegasse refletido pelo passado, talvez um
fenômeno da Faculdade X, que desenvolvida de súbito brotasse de seu subconsciente.
Guilherme: Deixe-me ver... Negra?
Azeredo: Não fale assim Guilherme.
Guilherme: Assim como?
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Ele notou o jeito enraivecido com o qual o irmão mais o novo o fitou. Sabia por que era,
mas continuou seu jogo...
Azeredo: Assim como?
Guilherme: É, não entendi nada.
Azeredo: Cínico desde criança O filho da puta Cínico quando me batia e me obrigava a
dizer depois que tinha caído da escada Sempre exercendo as palavras a seu favor
Palavras e músculos Não me admira ter se transformado no que se transformou, afinal
de contas, depois que crescemos, quem mais ele iria torturar?
Azeredo: Ela não é minha negra Guilherme, trabalha aqui, apenas isso.
Guilherme: Ah, não é sua então... Uma merda não se poder mais comprá-los não é?
Azeredo: Guilherme...
Guilherme: Mas de um jeito ou de outro, eles sempre serão nossos, não?
Azeredo: O que você quer dizer com isso?
Guilherme: Onde a negra está agora Azedinho... Digo, Azeredo.
Azeredo: Não chame ela de negra.
Guilherme: Não? E como devo chamá-la? De branca?
Azeredo: Ela tem nome.
Guilherme: E como é o nome da negra, digo, desculpe, o negro aqui sou eu não é? Hoje
o negro sou eu... Como ela chama então? Ou melhor: como você a chama quando deseja
lhe pedir alguma coisa?
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O albino esparramado no sofá assistia de camarote seu irmão mais novo estar de pé, os
olhos queimando dois cobaltos acesos. Esparramava-se no sofá como um leque aberto,
um candelabro solto no chão, caído dentro do próprio losango...
Guilherme: Espelhos deveriam pensar duas vezes antes de refletir alguém, você não
acha?
Azeredo: Noga.
Guilherme: Quê?
Azeredo: O nome dela é Noga.
Guilherme: Noga? Caralho, e eu que pensei que você estava me xingando, desculpe,
mas, porra, pobre tem cada ideia para colocar nome de filho que eu vou te contar uma
coisa, que imaginação do cacete.
Azeredo: Não caçoe Guilherme.
Guilherme: Como não? É falando merda que se aduba a vida.
Azeredo: Você não mudou nada mesmo.
Guilherme: Mudar para quê, se o destino de todos será sempre a morte?
No sofá, esparramado, o albino se retorcia de tanto rir uma cobra de cal tendo espasmos
peristálticos, risos agônicos, miúdos, asfixiados úmidos, gelatinosos...
Guilherme: Pobre é foda, ainda por cima não possui nada e quando chove vai para a TV
dizer que perdeu tudo. Pobre adora dar depoimento.
Azeredo: Voltamos ao assunto importantíssimo da TV. Guilherme: para, ou ela pode
escutar da cozinha, para com isso...
Guilherme: Desculpe... Pega minha cerveja então? Por favor, irmãozinho?
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Então ele vai finalmente buscá-la, ainda que a contragosto.
Guilherme: Aí vai o jacobino, o defensor dos pretos oprimidos da ralé dos pobres e dos
imundos Essa é a democracia que ele tanto desejava Todo mundo livre, mas livre para
ficar cada um em seu devido lugar
Na cozinha, entre aflita e atrasada, Noga empurrava a bandeja de alumínio para dentro
do forno, abrindo a chave do gás para acender o fogo, um de chama limpa e azul,
convulsa, logo aceso pelo fósforo riscado que trazia seguro entre os dedos. O patrão
aparecia de súbito diante da porta, fendido pela curta luminosidade da tarde que morria
rapidamente seus últimos estertores. Morria a tarde dentro de um cilindro que se
fechava, ranhura onde descansa uma escuridão que desperta aos poucos...
Noga: Talvez o jantar atrase um pouco seu Mário, acabei de colocar o chester no forno.
Azeredo: Não tem importância, não mesmo.
Noga: Sim senhor.
Ele abre a geladeira e retira a cerveja de lá: garrafa gorda e cilíndrica.
Noga: Vocês estavam rindo não era? Fico contente seu Mário, o senhor estava tão
apreensivo não estava? Com o jantar de hoje com seus irmãos? Fico feliz que tudo corra
bem e...
Azeredo: É, a gente ria, tudo certo.
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Os copos em uma das mãos, na outra a garrafa, ele sai, a deixando lá com os
pensamentos que completariam a frase. Sozinha, ela ouve o fogo crepitar em espiral sua
língua metálica contra o alumínio da bandeja. Ouve os pequenos estalidos da gordura do
chester que em breve borbulhará a estourar suas pequenas bolhas de banha aquecida
enquanto pensa: esse irmão do seu Mário é um crápula racista filho da...
Azeredo: Aqui a cerveja Guilherme.
Guilherme: Os outros disseram se vinham?
Azeredo: Sim, falei com todos.
Guilherme: Com o Augusto também?
Azeredo: Claro que sim.
Guilherme: Certo...
Um breve silêncio novamente entre eles, no instante em que o irmão mais novo vai
enchendo os copos, silêncio onde se afogam miasmas, silêncio incômodo,
entreclavicular, a mesma sensação premonitória de uma água oculta brotando em algum
lugar que não aqui, como uma ausência apenas pressentida, uma ruína surda muda
estreitando-se até o momento de...
Guilherme: E ele? Vem?
Azeredo: Ele quem Guilherme?
Guilherme: Você sabe, o Augusto.
Azeredo: Disse que vinha pelo menos.
Guilherme: E você já separou os copos que ele vai usar, você entende não é, pratos,
talheres, toalha de rosto, essas coisas.
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Azeredo: É claro que não.
Guilherme: Como claro que não? Pois acho bom fazer isso... Sabe, além da TV, eu
também escuto coisas no rádio... No rádio você acredita, não?
Azeredo: E o que você escuta?
Guilherme: Sons?
O rosto do irmão mais novo mais uma vez se enraivecia, encarnando-se, só que desta
vez, as sobrancelhas tocaram-se como tentáculos, e não como zíper, ligando-se negras
de um jeito estranho, os únicos pelos que lhe sobraram negros no corpo os das
sobrancelhas, os olhos queimando uma geometria de enxofre, os dentes rangendo, a
mordedura dos lábios, as rugas da testa juntada formando dois chifres despontando, a
pele subitamente vermelha, feito coberta por fenigma, cataplasmas de mostarda...
Guilherme: Não sei não, cada um é ortodoxo em relação a si mesmo. ‘As divergências
sobre minúcias suscitam polêmica incomparavelmente mais calorosa do que a
discrepância radical em tudo’. Não lembro quem disse isso, mas o sujeito era
inteligente.
Azeredo: Mas isso que você disse antes não tem cabimento.
Guilherme: Que timbre de voz é esse Azedinho?
Azeredo: Guilherme...
Guilherme: Ainda bem que trouxe meu revólver, não é meu irmão?
Azeredo: Agora estamos chegando ao ponto, não estamos?
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Disse aquilo do revólver brincando, mas, embora o tom da voz fosse sarcástico, seu
irmão mais novo entendeu aquilo como uma ameaça, velada, mas ameaça, e não apenas
uma figura de retórica, como ele logo dirá...
Guilherme: Estou brincando, você sabe não é? Usei apenas uma figura de retórica.
Azeredo: Você me tira do sério Guilherme.
Guilherme: Desculpe... Você sabe que eu nunca o machucaria não sabe? Nós somos
irmãos, porra.
Azeredo: Sei muito bem disso, lembro-me de quando pequeno o corredor polonês
noturno o qual eu tinha que atravessar para conseguir chegar ao banheiro Lembro bem
dele, de você e do Marcos, e de como depois de um tempo passei a querer urinar só na
cama Medo, sentia medo Um medo úmido que me molhava as calças
Guilherme: E não é para menos, afinal, toda partícula que voa sempre encontra um olho
aberto.
Azeredo: O Augusto é nosso irmão também, você não acha que ele vai se sentir
machucado se separarmos os objetos que ele vai usar hoje? O que me diz? Você
acredita realmente que o fato de...
Guilherme: Aí a estória é outra meu querido, nosso irmão mais novo está com uma
doença contagiosa, essa é a merda.
Azeredo: Guilherme, você sabe muito bem que não se pega Aids assim...
Guilherme: Assim como?
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Azeredo: Pelo toque, pelo convívio, porra, você sabe muito bem disso.
Guilherme: Não, não sei não... E quem me garante isso?
Azeredo: Por favor, Guilherme...
Guilherme: Ele deveria era ter ficado lá em Lisboa, voltar para quê, diz aí, afinal de
contas, não foi para isso que ele viajou para lá? Para viver a sua vidinha devassa longe
da gente? Agora o quê? Contraiu a doença e vai querer voltar como se nada tivesse
acontecido? Ele que não me chegue aqui com nenhum veadinho que ele ande
namorando, senão vai ter...
Agora, o tom da voz não tinha nada de sarcasmo, de galhofa, mas de franqueza nua, de
ameaça, de preconceito. Esparramado no sofá, os olhos úmidos como se acabados de
serem lambidos, o copo de cerveja espumando cilíndrico entre os dedos, o albino
parecia falar sério, terso, olhando de soslaio para a maleta de couro arenoso disposta
próxima à porta de entrada da casa...
Guilherme: Pegou Aids o desavergonhado, e agora quer que a família o lamba e o
aceite de volta Porra nenhuma Não era isso o que queria? Não se mudou para a
Europa para viver suas perversões longe dos olhos de todos? Agora quer o quê, ser
recebido como se não oferecesse perigo algum? Como se fosse normal isso? Ah não, aí
não
Azeredo: Isso é ignorância Guilherme.
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Guilherme: Pior ignorância que a de um vizinho meu – que na época em que o Cazuza
revelou para a TV que estava aidético, trocava sempre a agulha do aparelho de som
quando escutava o “Ideologia”, porque tinha medo de pegar Aids se furasse o dedo –
não existe. Este sim é o cúmulo da prevenção contra a Aids. Uma prevenção, digamos
assim, fonográfica.
Azeredo: Não fala “aidético”, Guilherme.
Guilherme: Enfim... Você viu na TV outro dia aquela passeata lá em... E era só o que
faltava, não? Digo, aqueles organizadores daquele festival gay lá em Jerusalém, o que
foi aquilo? Não me admiro nada aquela inusitada aliança entre cristãos, muçulmanos e
judeus, entende? Juntaram-se para impedir aquela devassidão, mas, conseguiram? Os
veados se organizam rapaz, é inacreditável. World Pride é o cacete. Aonde chegamos
hein? Fazerem aquela pouca vergonha na terra onde Cristo viveu.
Azeredo: A homossexualidade é um tabu Guilherme, não é pecado.
Guilherme: Só faltava mesmo eles quererem chegar até os locais sagrados. Estou mais
com aquele judeu ultraortodoxo que esfaqueou três veadinhos que participavam da
parada. Será que nosso irmão não participou dessa merda?
Azeredo: Guilherme...
Guilherme: O Vaticano se posicionou contra o evento, mas, eles ligaram para isso?
Hoje em dia não se respeita nem mesmo a igreja. Aquilo foi uma afronta a todas as
religiões. Um ato pensado para ofender, para provocar. Gostei daquele rabino e daquele
clérigo mulçumano que naquela sessão parlamentar, conturbada, diga-se de passagem,
disseram que se a parada gay fosse realizada, Jerusalém corria o risco de ser alvo da ira
divina, exatamente como aconteceu com Sodoma.
Azeredo: E a parada aconteceu, e aconteceu alguma coisa com a cidade?
Guilherme: Isso não vem ao caso.
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Azeredo: Olha Guilherme: eu não vou separar nada, você entendeu? Nada.
Guilherme: Você é que sabe... De qualquer jeito, vou ficar de olho no que ele toca. Não
sou obrigado a tocar nos mesmos objetos que ele, ou será que sou? Só para demonstrar
carinho ou qualquer outra merda do tipo, só para deixar que ele pense que não
representa uma ameaça, que é uma pessoa normal...
Azeredo: Guilherme olha... Você é que sabe. Faça como quiser droga.
Guilherme: E você é testemunha do quanto eu tentei ajudá-lo assim que percebi que ele
era um desviado, não é? Lembra?
Azeredo: Lembro-me da violência, das surras de cinto, das humilhações Lembro-me do
Augusto com quinze anos de idade ser obrigado a ir para a cama com aquela prostituta
doente Lembro-me da sífilis que ele contraiu, do cancro branco e indolor, lembro-me
da febre em seguida, das feridas na pele, das dores de cabeça, das injeções A velha
crença nos demônios da conduta Augusto foi apenas um bode expiatório, não foi?
Guilherme: Portanto: difícil é aprender a ler. Depois: o resto está escrito. Ah.
Azeredo: Não é tão simples assim.
Guilherme: Ah não? Deus pôde fazer o mundo em seis dias porque não tinha ninguém
lhe perguntando quando ficava pronto. Se nosso pai tivesse deixado eu enfiar ele no
quartel aquilo ainda teria jeito, mas agora, o que fazer? Nosso pai e aquela mania
democrática de deixar seus filhos escolherem que rumo tomar na vida, agora veja só,
deu no que deu.
Azeredo: Então você acha que se ele fosse militar não seria homossexual, é isso?
23
Guilherme: Para todo problema complexo existe uma solução simples, fácil, e errada.
Em todo caso eu o teria ajudado. Claro que ele não seria homossexual se fosse militar.
Nem veado, e nem aidético.
Disse isso e encheu seu copo com mais cerveja, nas bochechas brancas desenhando-se
pequenos círculos vermelhos. Ele suava, a tez oleaginosa, o cabelo parecendo feno
molhado, olhando cada vez mais e mais fixo para a maleta que guardava seu revólver.
Suava um líquido acrílico, reluzente como flúor ao contato com sua pele sem
pigmentação, um suor ora parecido com vidro, ora parecido com sal grosso, escorrendo.
Guilherme: As variáveis variam menos que as constantes.
Azeredo: Não fale “aidético” Guilherme, não fale assim, já te pedi.
Guilherme: Ah não? E como é o nome disso que ele é?
Os olhares do irmão mais velho em direção à maleta começam a preocupar o mais novo.
A cerveja, o segundo copo cheio com ela, as bochechas ficando vermelhas, os silêncios
cada vez mais breves e mais constrangedores, a água oculta borbulhando em algum
lugar, invisível, apenas pressentida uma espécie de presságio, presságio semelhante à
força magnética sombria que emana do relógio alemão, este o transmissor, transmissor
de impressões de cheiro cada vez mais forte, pungente, encorpado...
Azeredo: Soropositivo Guilherme, o nome é soropositivo.
Guilherme: Ah... E qual a diferença?
Azeredo: Guilherme olha...
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Guilherme: Sim, porque não vejo diferença nenhuma, ele vai morrer não vai? Morrer de
Aids?
Azeredo: HIV positivo Guilherme...
Guilherme: A questão é só terminológica então?
Azeredo: Ele vai morrer como qualquer um de nós...
Guilherme: Qualquer um de nós não, eu que não vou morrer de Aids...
Azeredo: HIV posi...
Guilherme: Por que não falamos “aquela doença” então?
Azeredo: HIV positivo Guilherme... Soropositivo... É assim que se deve falar.
Guilherme: Mas por que meu Deus?
Azeredo: Por que é menos ofensivo droga, é menos ofensivo, você não acha que nosso
irmão caçula já sofre o bastante com a doença, e que nós poderíamos suavizar o máximo
para ele?
Guilherme: E ele suavizou alguma coisa para a gente? Para sua família?
Azeredo: Do que você está falando Guilherme?
Guilherme: Da vergonha, estou falando da vergonha de ter um irmão aidético...
Azeredo: Soropositivo Guilherme...
Guilherme: Com “aquela doença” então...
Azeredo: Você não está entendendo...
Guilherme: Você é que não está entendendo. Falo da vergonha...
Azeredo: E quanto à vergonha de se ter um irmão assassino? A vergonha de se ter um
irmão torturador de estudantes? E quanto à vergonha de ler o nome do irmão mais
velho figurando com destaque nas páginas do “Brasil: Nunca Mais”? Prefiro um irmão
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caçula veado e aidético a um criminoso matador a serviço do Estado Digo isso a você
Guilherme? O que me diz disso? Você suportaria ouvir isso?
Guilherme: Tem mais cerveja lá dentro?
Azeredo: Claro... Você pode ir lá na cozinha buscar?
Guilherme: Estou indo.
Guilherme: Para que você paga essa negra hein? Diz aí? Para ela ficar enfeitando a
cozinha feito um boneco de macumba?
O albino levanta-se do sofá onde se esparramava confortável e segue em direção da
cozinha. Apesar de todo o movimento ser ficção, esta é a deixa que o irmão mais novo
aguardava, sua prótase, já que levanta-se na mesma hora, para apanhar com cuidado a
maleta de couro arenoso e a colocar em um armário ali próximo, um que tem chave e
pode ser trancado. E ele o tranca, colocando a chave no bolso.
Noga saía da cozinha no instante em que cruzou com o gigante albino na porta.
Guilherme: Aonde você pensa que está indo?
A voz um tom ameaçador, grave, seco, estalado, uma nota dada entre ossos...
Noga: Trocar o lixo lá fora.
Guilherme: Cuidado, não me vá atrasar esse jantarzinho.
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E entrou, enquanto ela abria a porta do corredor para ir ao quintal, Cortázar saltando
festivo em suas pernas. O relógio alemão na sala soou outra primeira nota, tranquila e
profunda, depois a segunda, a terceira, ainda o eco da segunda, a quarta – o albino
abrindo a geladeira, apanhando a garrafa de cerveja – a quinta e musical nota, uma de
estanho arranhado, a sexta, moeda tilintando no chão, até que finalmente veio a sétima e
derradeira nota, fechando-se inofensiva, anunciando a noite com seu número fantástico,
de contemplação, seu sétimo dia de descanso, sabbath, iniciado com o ciclo lunar de sua
soma completa, de sua solidão...
Noga: Quem ele pensa que é para me dar ordens? Quem ele pensa que é? Boneco de
macumba é a mãezinha dele
Ainda na cozinha, o albino abre a garrafa, franzindo as sobrancelhas amarelas enquanto
observa Fiasco encostado ao fundo, solto em sua gaiola aberta, triste e silencioso feito
quisesse ser invisível. Ele sorri um riso azedo entre os lábios, sem mover um músculo
sequer da face, dando as costas ao pássaro para retornar à sala.
Na sala, o irmão mais novo coça a chave do armário dentro do bolso, como se para
certificar-se de que ela ainda está lá. Ele escutou em silêncio todas as sete notas do
relógio alemão musical soarem metálicas em ordem crescente quando...
Guilherme: Aquele pássaro lá na cozinha...
Azeredo: Um canário...
Guilherme: Por que ele não canta nunca?
Azeredo: Não sei...
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Guilherme: Não sabe?
Azeredo: Ele nunca cantou.
Guilherme: Essa é boa.
Azeredo: Por isso seu nome é Fiasco.
Guilherme: Essa é melhor ainda.
Azeredo: E a gaiola sempre esteve aberta, mas, parece que ele não tem para aonde ir A
vocação dele é ser silencioso, não amar o mundo, nunca reclamar de nada Mudo e
atrofiado, os olhos úmidos, mortos, sem alma, oferecido à destruição do tempo,
inanimado, feito de desânimo e desgostoso de algo
As mãos magras e sem cor do irmão mais velho enchem os copos com cerveja. A
espuma brilha espessa nas bordas como uma língua de cal, uma nata de látex, um bacilo
de Hansen, suculenta e úmida escorrendo. O albino sua seus vidros, suas gotas de sal,
nas mãos oleaginosas desenhadas suas veias azuis pulsando no instante em que...
Noga: Eles chegaram, os outros, os pesados, os verdadeiramente negros
Guilherme: A vida, afinal de contas, é o que acontece no instante em que fazemos
outros planos. E assim a História.
Azeredo: Só gostaria que você o tratasse bem Guilherme.
Guilherme: Tudo bem... E eu sou o quê agora? Um metrossexual?
Azeredo: Meu Deus.
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Guilherme: O quê? Tenho culpa do meu orgulho de ser macho e superior? É proibido?
Acho que todos esses metrossexuais que estão na moda deveriam morrer. São
aberrações.
Azeredo: Você e sua capacidade de distorcer os fatos.
Guilherme: Sou apenas um machista esclarecido.
Azeredo: Um preconceituoso.
Guilherme: As ideias fixas são irresistíveis, além do mais, as diferenças não podem ser
apagadas.
Azeredo: Mas devem ser respeitadas.
Guilherme: Não se esse respeito for de encontro aos valores originais. Não podemos
aceitar de tudo, afinal.
Azeredo: E quem escolhe o que deve ser aceito?
Guilherme: A tradição.
Azeredo: Ótimo não é?
Guilherme: Veja o exemplo das feministas: todas avançando em suas passeatas...
Avançando para se tornarem secretárias, como disse... Quem mesmo?
Azeredo: Chesterton. Olha Guilherme...
Guilherme: Onde está minha maleta?
Azeredo: Que maleta?
Guilherme: Você sabe muito bem qual...
Azeredo: Guardei em um lugar seguro...
Guilherme: Então você acha mesmo que eu te machucaria? A você ou ao Augusto?
Azeredo: Não é nada disso, veja bem...
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A batida na porta soa como soasse um gongo. Salvo pelo. O eco da primeira batida nem
descansou e já se misturava com a da segunda que emergia, coordenada, seca,
aritmética, irrompendo do fundo cego de um movimento quando a da terceira ainda sem
o descanso do eco da segunda (um nó de ecos reverberando) e antes que a quarta...
Guilherme: Por que não manda tua empregada atender?
Azeredo: Ela não é minha empregada Guilherme, não fala assim...
Guilherme: Mas meu Deus por quê?
Azeredo: É pejorativo...
Guilherme: Então me arruma esse dicionário de tapas com luva de pelica que eu quero
reaprender a falar...
Azeredo: Olha, eu vou atender à porta...
E levanta-se, o corpo entregue a uma espécie de vertigem, de cãibra, tentando assimilar
ainda o sarcasmo do irmão mais velho, os ossos articulados movem-se em anquilose em
direção à porta, a porta que abrirá para que mais duas personagens entrem em cena nesta
página, talvez na próxima, dependendo do espaço em que será editada, editada para
descrever a sala, dentro do tempo contado com precisão pelo relógio alemão de parede
antigo, que toca, dentro dele as lâminas talhando as horas, minutos, segundos, a música,
ele a abre. O casal está lá fora, engolido pela escuridão pardacenta da noite: o homem é
imponente apesar de baixinho, o cabelo curto à moda militar, os olhos firmes e negros,
quase íngremes, a pele branca, mas, com pigmentação, é ele, o queixo grosso, o pomo
de adão avantajado, os cabelos levemente grisalhos...
Marcos: Então? Não vai me dar um abraço?
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Azeredo: Marcos...
Marcos: Pensei que teria de implorar.
Eles se abraçam, não sem certo incômodo, mas, se abraçam. Incômodo pelo segundo de
hesitação que antecede o cumprimento, um segundo apenas, mas, o bastante para que
percebam que aquilo não é lá muito natural. Tudo teatro. De queixo ainda deitado no
ombro do irmão que acaba de chegar, ele percebe a mulher atrás deles: ruiva, as
bochechas do rosto repletas de sardas, o cabelo curto, seco, secura denotando centenas
de tingimentos, o último deles de vermelho, os olhos pequenos, castanhos, a maquiagem
pesada nos mesmos olhos, na face uma costura de cor rosalgar, nos lábios
excessivamente encarnados...
Marcos: Lembra da Lili?
Lili: Como vai?
Azeredo: Indo.
Dois beijinhos, onde o dono da casa pôde notar o cheiro forte do perfume que ela usa,
mistura acre de silêncio e gelo. A pele é oleosa, grudenta, uma escama de parafina
esticada. Em uma das mãos ela trás uma valise negra. Na outra, uma garrafa de uísque
ainda na caixa. Ela sua cápsulas de silicone rompidas. Seu suor parece inflamável
cartilagem, ele brilha, como se pronto para a combustão.
Azeredo: Deixe que guardo isso.
Guilherme: Marcos, Lili...
Marcos: Coronel...
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Guilherme: E você seu filho da mãe? General, hein? Daqui a duas semanas...
Marcos: Mais algumas estrelas na farda...
Lili: Uma constelação inteira delas.
Guilherme: E vocês dois, hein?
Marcos: O casamento é a única prisão na qual você ganha liberdade por mau
comportamento.
Guilherme: E como é isso?
Lili: Marcos ainda está preso. É um bom menino, vindo direto de Summerland.
Marcos: E o que está acontecendo na cidade, não é? É inacreditável.
Guilherme: Um atentado atingiu duas bases da polícia militar e da guarda civil
metropolitana, além de uma delegacia, uma agência bancária...
Lili: Até uma loja de automóveis...
Guilherme: E o presidente Marcos? Ele já ofereceu ao governador a nossa ajuda não
foi?
Marcos: Só está faltando o governador aceitar, senão, não podemos fazer nada, é
intervenção.
Guilherme: E o que você acha disso meu General?
Marcos: Estou louco para desenferrujar.
Guilherme: Eu também. Voltar aos velhos tempos...
Lili: Vocês meninos...
Noga: Eles têm parte com o Ele São carregados Desde o século XVII Filhos da má
teologia do clero secular Ritual negro, que começa como uma falsa missa do Espírito
Santo Mas tudo apenas para conseguirem um demônio servidor Esses arrepios que
sinto Valha-me Deus nosso Senhor
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Azeredo: A valise está pesada Lili...
E está mesmo, e um arrepio lhe percorre a espinha ao dizer isso, feito agulhas de gelo
pinicando lentas sua medula óssea. Na outra mão, a garrafa de uísque ainda dentro da
caixa, fechada, brilha seus fractais. O sistema aos poucos vai se ordenando, a cena,
alargando-se cada vez mais como esqueletos de peixes estripados, bastando apenas
milésimos de segundos para que avance, pedra voando em direção à vidraça...
Marcos: Pesada?
Guilherme: Ih Marcos, esse hoje está para reclamar...
Azeredo: O que tem aqui dentro Marcos?
Marcos: Está travada Azedinho, não se preocupe...
Guilherme: Não chama ele de Azedinho não que ele não gosta mais...
Azeredo: Nunca gostei... Porque você trouxe essa merda Marcos... Já sei: proteção.
Lili: Não precisa se preocupar Mário...
Guilherme: Use sempre camisinha.
Marcos: Proteção é claro... Gênio: lembra do general Taumaturgo?
Contrariado, o dono da casa deposita o uísque ainda na caixa sobre a mesa ao centro da
sala e se encaminha para o armário próximo à porta, na intenção de guardar bem
guardada a valise. Duas agora. Dois motivos para se preocupar. Algo assustador como
um diálogo interrompido pela notícia de uma morte se instaura dentro do corpo do dono
da casa. A violência paira sobre todos, assim como lá fora. Agora: hou sezar hou njchel.
Guilherme: Como ele morreu?
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Marcos: Você lembra dele não lembra?
Guilherme: É claro que lembro dele.
Lili: Pois é... Uma morte horrível.
Guilherme: Como foi?
Guardada a valise, o mais novo dos três irmãos presentes nota uma mancha de sangue
quase imperceptível no chão. Uma não, duas, feito lastros.
Guilherme: Que covardia.
Lili: Protegei-me dos meus amigos, que dos meus inimigos eu me encarregarei.
Guilherme: O problema é que agora não sabemos de onde eles podem surgir.
Marcos: Ele tinha acabado de mudar de casa, e ainda não conhecia bem a vizinhança...
Perto de sua nova casa havia uma barbearia antiga, foi quando decidiu entrar para fazer
a barba e...
Guilherme: Trágico.
Lili: O barbeiro mandou que se acomodasse na cadeira, imagine, então, friamente, lhe
abriu um talho no pescoço, um sorriso sanguíneo de orelha a orelha...
Marcos: Transfixão.
Guilherme: Deveríamos ter acabado com todos eles. Não deu tempo.
Marcos: Cortou sua garganta com uma navalha nova, afiadíssima.
Guilherme: Bem à maneira deles.
Marcos: Quando tudo vai indo bem, é porque algo vai dar errado. Batata.
Lili: Disse à polícia que o havia reconhecido sabe? Daqueles tempos...
Azeredo: E você acha que aqui alguém vai lhe abrir a garganta Marcos?
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O irmão mais novo, ainda pensando no que seriam aquelas manchas de sangue, ainda
contrariado e temeroso por mais aquela arma em sua casa, ainda um pouco atônito com
tudo aquilo, temeroso de que as coisas de repente fugissem de seu controle, e atingissem
a garganta de algum desespero ainda escondido, pronto para se manifestar, um demônio
quieto no meio de uma plateia escura, esperando paciente o instante em que o destino
não puder ser mais controlado... E quando pôde?
Noga: Foi ele patrão, e a mando Dele, já estou indo aí limpar, já chego já Desde o
século XVII, como disse: olhos arrancados de um frango vivo, logo em seguida
degolado Crueldade profana
Guilherme: O Azeredo está assim hoje: quase histérico.
Marcos: Nada disso meu irmão, nada disso, só estou tentando justificar o fato de que
temos de andar armados...
Lili: Veja o que está acontecendo na cidade.
Guilherme: Além de tudo, somos militares, e temos esse direito...
Marcos: Dois monólogos não fazem um diálogo, então, é sempre bom ter uma arma
para o caso de aberto algum parêntese...
Lili: E o mais rápido no gatilho sobreviverá.
Guilherme: E o Marcos é o mais rápido que conheço.
Lili: É, não é querido?
Marcos: Disparo antes que o outro consiga dizer conciliábulo.
Lili: Estrago de Dum Dum bullet.
Guilherme: Depois: se Deus curar, o médico manda a conta.
Lili: Ou então vai juntar os pés debaixo da terra.
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Guilherme: O Marcos sempre foi bom mesmo no gatilho.
Marcos: Eu até tento ser modesto. Mas aí começam a me faltar os argumentos.
Guilherme: Espero que o governador aceite a ajuda do presidente, estou louco para
trocar o óleo da arma.
Marcos: Acho que ele não aceita. Não quer dar o braço a torcer para o governo federal.
O Brasil é um país geométrico: tem problemas angulares, sempre discutidos em mesas
redondas, o problema é que por bestas quadradas.
Azeredo: Marcos, o que são essas manchas de sangue no chão?
Marcos: O que... Ah, minhas solas devem estar sujas de sangue...
Ele vira um dos sapatos para cima, constatando que sim, rindo um riso cínico entre os
lábios, quase imperceptível...
Marcos: Mas o sangue já está seco, acho que não suja mais não. Desculpe.
E passa o dedo na sola do sapato, e o verifica seco realmente, os dedos uma chave-de-
grifa, o riso ainda desenhado no rosto; riso luciferino amplamente documentado no
Grimoire de Honorius...
Azeredo: E de onde vem esse sangue Marcos?
Guilherme: Das veias?
Azeredo: Não estou brincando Guilherme.
Marcos: Dos clãs de parentesco consanguíneo?
Lili: Da rua, o Marcos pisou nos filhotes de uma gata que amamentava na rua.
Azeredo: Mas por que meu Deus?
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Marcos: Foi sem querer Mário, não os vi lá não, estava escuro.
Lili: Téssera negra Nosso Deus gosta das pequenas coisas que são vivas, Nosso Senhor
de cobalto, Senhor da vida & da morte, Nosso Grande e Impiedoso Príncipe de tudo
aquilo que pulsa e escurece O abismo é o mistério que atrai, Senhor das tradições
antigas, Mestre do essencialmente corrompido Nunca tocaremos o céu, e nem
queremos, Senhor meu Deus escuro, Fantasma Negro, nos interessa apenas os
hieróglifos, a sombra das necrópoles, a ciência oculta que deu ao século todo um
mundo de teoremas esquecidos Ler o alfabeto oculto, Tot, fomos nós quem encontramos
as clavículas de Salomão Estavam no santuário antigo, ainda manchado de sangue
Tudo para despertá-lo Senhor A verdade absoluta e negra de Seu sono Sapo seco,
sêmen, sangue, terra de cemitério Estamos cumprindo a meta de La Voisin: dois mil
embriões enterrados para o Teu Descanso
Noga entra na sala (de súbito feito uma serpentina) entre esbaforida e receosa. Traz na
mão um pano encharcado com álcool, pano úmido com o qual limpa as duas manchas
de sangue ainda fresco, saindo em seguida, sem dizer nada, língua de sogra que se
recolhe, grela de algodão.
Lili: Tudo o que é compreendido está certo, meu filho.
Guilherme: A tua empregada... Ela escuta tudo o que a gente diz lá da cozinha? Era só o
que faltava.
Azeredo: Ela não é minha empregada. E, respondendo a sua pergunta, não... Mas às
vezes ela escuta outras coisas...
Lili: Este a História esqueceu de se citar.
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Guilherme: Com quem a Lili está falando no telefone?
Marcos: Com nosso filho.
Lili: À maneira de Rabelais.
Guilherme: Mande um abraço para ele Lili.
Marcos: Ela vê coisas também não vê?
Lili: É, eu senti isso quando ela entrou...
Guilherme: Já desligou o telefone? E o meu abraço?
Marcos: Li no “O despertar dos mágicos” que em 1636 um autor desconhecido chegou
a examinar o princípio físico do telégrafo elétrico, traçando um paralelo entre esse
princípio e o fato de que dois seres humanos poderiam se comunicar por meio da agulha
imantada.
Lili: Telepatia.
Marcos: Exatamente.
Lili: ESP.
Guilherme: Não acredito nisso... É como acreditar em vida fora da terra.
Lili: Mas existe. A maior prova de que existe vida em outros planetas é justamente o
fato de eles ainda não terem entrado em contato conosco.
Guilherme: Boa.
Noga: A maldade pura, fazer o Mal pela essência do próprio Mal, por sua fascinação e
deleite, é isso, foi isso o que ele fez E fez para Asmodeu e Astaroth Coitadinhos dos
filhotes
Lili: As chaves da matéria estão em Saturno.
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Guilherme: Quer dizer que existe então uma história visível e outra invisível? Como os
dois lados de um LP?
Marcos: Exatamente.
Lili: E sinto as invisíveis, por isso senti quando ela entrou aqui e...
Azeredo: Sentiu? Sentiu como?
Lili: Senti... Simplesmente.
Guilherme: Depois que fiquei sabendo que a filha de Shakespeare era analfabeta não me
admiro mais de nada.
Marcos: O mundo é engraçado mesmo. Sabiam que antes de 1800 os sapatos para os
pés direito e esquerdo eram iguais?
Guilherme: E que Graham Bell atendia o telefone dizendo ahoy?
Azeredo: Os russos atendem dizendo estou ouvindo.
Marcos: Não vamos falar de comunistas agora.
Lili: Ela é telepata, tenho certeza. Sabe muito bem quando soa a hora fatídica...
Azeredo: Vocês ainda são daquela religião lá não é?
Marcos: Olha, vamos abrir o uísque?
Guilherme: Boa.
Lili: Eu busco os copos e o gelo.
Azeredo: Pode deixar que eu pego.
E se levanta, e passa rápido pela sala até chegar ao corredor como se atravessasse os
objetos, velocíssimo, receoso das coisas fugirem do seu controle quando todos
estiverem finalmente na casa. E bêbados. Tempo de quartzo. Na cozinha, encontra Noga
já com copos e gelo em uma bacia de alumínio, prontos para serem servidos.
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Azeredo: Tudo bem?
Noga: Tudo seu Mário, o chester não demora mais muito não.
Azeredo: Não me referia a isso, você sabe muito bem.
Noga: Tudo bem seu Mário, eu aguento.
Azeredo: Quer ir para casa? Eu te deixo ir se quiser.
Noga: Não se preocupe comigo seu Mário, estou bem.
Azeredo: Tem certeza?
Ela acena que sim com a cabeça. Então ele sai, copos e bacia nas mãos um ruído de
ritornelo. Estribilhos metálicos dos madrigais do século XIV. Na sala, as cortinas
balançavam-se soltas no ar produzindo rangidos de seda, leves e melífluos, desenhando
arcos brancos e regulares, mansos e surdos, que trepidavam no instante em que chegou
e...
Marcos: Sete por cento dos norte-americanos acredita que Elvis está vivo. Vinte e cinco
por cento que Sherlock Holmes existiu realmente. Quinze por cento acredita em
fantasmas, e dez afirma já ter visto um.
Guilherme: Que pesquisa não?
Lili: Eu acredito em fantasmas.
Marcos: Você sabe muito bem que eles não são fantasmas Lili. São nossos Controles.
Lili: E nós seus coéforos. Falou com ela Mário?
Azeredo: Com quem?
Marcos: Dá aqui os copos e o gelo que eu sirvo.
Guilherme: O médico me proibiu de comer gordura.
Marcos: Coração?
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Guilherme: E pressão alta. Depois dos cinquenta a única coisa que um médico deixa um
homem comer com gordura é a sua mulher.
Lili: Guilherme!... Com a Noga Azeredo.
Guilherme: Me digam se isso é nome que se tenha.
Lili: Eu gostaria de falar com ela...
Enquanto falava, era como se a mulher fosse mudando de feição em movimentos quase
imperceptíveis, os cabelos agora loiros, as sardas amareladas glicoses, a pele cada vez
mais e mais oleosa, os olhos ora negros ora castanhos, úmidos e dilatados como guelras
asfixiando-se, assim como o movimento de uma ópera, a análise translúcida de um
quadro impressionista refletido no padrão movimentado de uma fotografia kirliana.
Azeredo: Lili, por favor, deixa a Noga quieta no canto dela.
Marcos: Noga?
Guilherme: Não ouviu eu perguntar? É a “colaboradora doméstica” dele.
Marcos: Noga?
Guilherme: Ninguém nunca está ouvindo, até você cometer um erro.
Lili: Mas eu só queria conversar com ela, ela é...
Azeredo: Ela já tem uma religião Lili, não brinque com essas coisas...
Marcos: Com que coisas? Olha meu irmão, vou pedir para você respeitar a nossa
crença, afinal de contas, este é ou não é um país democrático?
Guilherme: Exatamente, tão democrático que o general Taumaturgo morreu lá, de
garganta aberta... Essa é a democracia sonhada pelos comunas não é?
Azeredo: Guilherme, olha... Marcos, você chama isso de crença?
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Marcos: Como qualquer outra, só que nós adoramos um deus diferente do da grande
maioria.
Lili: O Deus do fogo, o senhor das riquezas e das moscas...
Marcos: Lindo isso amor.
Lili: E não colocamos a faca dentro do Fofão.
Marcos: Isso é estória, as pessoas deturpam o que não conhecem.
Azeredo: Ah é? Então confesse que você matou aqueles gatinhos de propósito...
Duas gargalhadas: a primeira grave e rouca, curta, entrecortada pela lâmina de um
pigarro. A segunda, aguda e cínica, gargalhar de mulher, esmaltada e maldosa, líquida,
arterial, os copos de uísque agora brilhando cheios sobre a mesa, refratando toda a luz
das lâmpadas acesas. Gargalhadas assim eram dadas durante os exorcismos da
“Sociedade de Reparação de Almas”, cujos membros se especializaram em administrar
hóstias com excremento humano para freiras supostamente possuídas pelo demônio.
Tudo uma grande brincadeira.
Marcos: Mário, não faça tempestade em um copo d’água... Que falta fará aqueles
merdinhas? Azeredo: A questão não é essa...
Guilherme: E qual é? E não me venha pagar de defensor dos animais, logo você, que
coleciona borboletas espetadas em alfinetes...
Azeredo: É bem diferente...
Guilherme: A diferença é que você não respeita a crença deles, esse é o fato. Logo você,
um defensor da democracia, do convívio entre... Marcos: o Augusto disse que vinha
hoje, e você acredita que o Mário não separou os talheres que ele vai usar?
Azeredo: Guilherme, pelo amor de Deus...
42
Lili: Falando em Augusto, nós já resolvemos aquele caso do nosso filho.
Guilherme: Era sobre isso que vocês falavam no telefone?
Azeredo: Como assim resolveram?
Lili: Resolvemos do nosso jeito, não por coincidência a única forma de se resolver
aquilo.
Azeredo: Aquilo o quê?
Guilherme: Você sabe Mário.
Marcos: Entregamos a alma dele.
Azeredo: De quem? Vocês são loucos.
Lili: Loucos? Nosso Pai vai curá-lo, não quero filho meu homossexual e aidético...
Guilherme: Não fala aidético que o Mário não gosta.
Marcos: Um filho gay é humilhação demais, mas oferecemos a alma dele em troca de
sua cura, logo, tudo estará bem.
Azeredo: Eu pensei, eu pensei Vocês não mudaram nada Foi um erro Onde já se viu?
Que loucura Minhas borboletas É diferente Eu não as mato, já as compro assim,
alfinetadas, não sou eu quem as mata, ainda mais assim, por pura maldade Como vocês
puderam fazer isso com o próprio filho?
Noga: E eles podem fazer isso, como pais, oferecer a alma do filho ao Demônio Houve
uma cerimônia Um sapo foi crucificado
Lili: Não fale assim. A modéstia nos ensina a falar com respeito dos antigos.
Marcos: Além do mais: ele é nosso filho. E nada de mal vai acontecer com ele, muito
pelo contrário.
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Lili: “As boas obras são indiferentes para a salvação eterna”.
Marcos: Quem...?
Lili: Huss.
Azeredo: Com quantos anos o Tiago está agora?
Lili: Dezessete anos.
Guilherme: Deveríamos ter feito o mesmo com o Augusto.
Azeredo: Vocês, vocês... Ele não veio por quê?
Marcos: Ficou em casa, está doente.
Azeredo: Não me admira nada...
Lili: Mas logo estará saudável e forte, esses sintomas só se dão no início...
Azeredo: Então vocês... O que vocês fazem aqui então, no aniversário de Cristo?
Marcos: Está nos expulsando Mário, é isso?
Lili: Meninos...
Azeredo: Não, não é nada disso, eu só queria entender...
Lili: Viemos para rever nossa família, não temos nada que ver com o aniversariante em
questão.
Guilherme: Ah, aniversariante, boa essa.
Marcos: Nosso filho ficará saudável. Viverá cento e vinte anos, assim como aquele
pescador de carpas japonês.
Lili: Nosso Senhor não nos faltará. A grande realização que fará com nosso filho é
àquela a que almeja toda a verdadeira natureza da alma humana.
Aos poucos, a feição da mulher vai voltando ao normal, como se se modulasse apenas
quando ela fala, talvez para protegê-la, ainda não se sabe do quê, movendo-se lenta
como um molusco sem forma definida, uma espécie de vitiligo com pernas, de máscara
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de formol ondulando, entorpecendo, crescendo sobre a própria aparência de seus
sentimentos mais íntimos...
Augusto: Quando ele disse que reuniria todos os irmãos na ceia do Natal confirmei
presença por achar que eles não iriam, mas, e se eu estiver errado? E se ao contrário
disso estiverem todos lá? Como poderei encará-los do jeito que estou: magro, fraco,
debilitado Essas manchas na pele, esses gânglios Eles bem que gostariam de me
reencontrar desse jeito Marcos, Guilherme Esses, dois carrascos E só para terem o
gostinho de dizer que me avisaram, que tentaram me ajudar Que tipo de ajuda então?
Eles me torturavam, essa é a verdade Lembro de quando me colocaram no vestido de
minha irmã e me obrigaram a sair na rua vestido de mulher Não é mulher, eles diziam,
então vai passear como uma Eles me obrigaram a sair de casa desse jeito, maquiado,
Eles me ridicularizavam É essa a ajuda a qual eles se referem? Ou será que falam da
prostituta gemendo aguda deitada entre aqueles lençóis imundos? Como puderam fazer
isso Ela era suja, tuberculosa, sua pele cheirava à madeira molhada, estava seca
dentro, me machucou, os grudes grossos nas dobras da garganta, o arco de gordura
debaixo dos seios volumosos, o mau hálito, os dentes tortos, a cicatriz da cesárea
enquanto eles lá, no corredor, me esperando, o que eu poderia ter feito além de me
machucar? Ela suava sobre mim como uma glândula, um coágulo, aqueles pelos todos,
as narinas dilatadas, o umbigo como se puxado para fora uma bolha de carne exposta
E eles rindo lá fora, sim, eu ouvia suas gargalhadas se agitarem no ar, ela cavalgando
em cima de mim uma agonia de olhos deslocados, flácida, úmida por fora, gelatinosa
na pele, um frio de peixe debatendo-se, a língua gelada que enfiada em minha boca
gemia artificialmente, grasnando feito uma galinha degolada dentro de um tubo de
plástico, corrompida, ansiosa para que tudo terminasse logo assim como eu, mas não,
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eles estavam lá fora, era preciso continuar o teatro das cicatrizes, era preciso
continuar montando sobre mim, tentando não sem dificuldade enfiar meu pau mole
dentro dela, meu pau mole dentro dela uma truta sem vértebra, a cama rangendo como
range uma borracha queimada, um arado, tudo sujo e escuro dentro dela, negro, dentro
dela uma sopa de miasmas borbulhando, de vermes ásperos, de febre maculada, lá
dentro onde me enfiava uma cárie ferruginosa tecendo salivas de cola e depois, depois
abriram a porta, depois... Como não teria nojo de mulher depois disso?
Na cozinha, Noga abaixa o fogo para não queimar o chester. Graças à sua índole
conciliadora, ao seu pensamento alimentado como uma convenção formal através da
qual ela tenta organizar em sua mente todo o combate verbal (é inútil) que se dá na sala,
ela tenta pensar positivo sobre o jantar de logo mais, embora tudo o que esteja
escutando, ainda que contra sua vontade, através dos pensamentos que ecoam desde a
sala, lhe convença do contrário. Os pensamentos convergem em sua direção e, nesta
página, ela lembra do dia exato em que essa sua aptidão em ouvir pensamentos alheios
se manifestou. Uma criança ainda, quando acordou com o sussurro das vozes àquela
manhã, um acúmulo delas, várias vozes sussurrando em ondas de vidro e água. Ainda
não se chamava Noga na época, mas Eusapia Palladino, este o seu verdadeiro nome. O
aparecimento de luzes estranhas, materialização de cabeças, de mãos, um violão que
tocava sozinho, movimento de objetos, levitação de uma mesa, ruídos, cheiros, louças
quebrando e as vozes, sempre. Logo, as internações, os medicamentos, os psiquiatras
que não sabiam o que fazer com ela, os descarregos, os terreiros de umbanda, a aflição
insone de sua mãe nas noites em que varava ao lado da filha um terço entre os dedos
mastigado. Até conseguir aperceber-se do que era levou tempo, ela pensa, lembrando
também que tudo graças à “Servir Bem Para Servir Sempre”, ainda que pensasse nesse
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dom sempre como um estigma, uma maldição, uma espécie de praga só controlada
depois de seu contato com a “Sociedade de Pesquisas Psíquicas”, da qual a “Servir Bem
Para Servir Sempre” era uma espécie de ramificação, o fogo agora baixo crepitando em
sua superfície branda um fôlego de lamparina.
Na sala, a continuação da conversa, que segue entrecortada por breves silêncios,
silêncios cada vez mais breves, a fina transparência deles rompendo-se fácil, intervalo
curto onde apenas as cortinas dançando soltas feito focinhos chafurdando no nada
emitiam algum ruído, quando...
Marcos: Quando chegamos lá não havia nada. Só uns garotos assustados e um monte de
“catecismos” espalhados pelo chão.
Guilherme: A denúncia anônima foi um trote então?
Marcos: Alguém querendo pregar uma peça neles não é?
Guilherme: Você deveria ter imaginado... “Sociedade Secreta do Guarda-chuva?” Faça-
me o favor.
Marcos: Mas era divertida aquela época não? Lembro que você riu bastante de mim.
Guilherme: Um soldado raso inexperiente.
Lili: E aquele garoto que atacou o Roberto Carlos no aeroporto?
Guilherme: Mais engraçado foi ver a Elke Maravilha dando aquele escândalo no Dops.
Azeredo: Vocês não deveriam achar graça disso.
Marcos: Azeredo: a maneira mais fácil de diferenciar um animal carnívoro de um
herbívoro é olhando em seus olhos... Os carnívoros possuem os olhos na parte da frente
do crânio, o que facilita a localização do alimento... Já os herbívoros possuem seus
olhos do lado do crânio, e... Sabe por que é assim para eles?
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Azeredo: Não, não sei.
Marcos: É para que percebam a chegada de um possível predador.
Azeredo: Mas o que...
Marcos: Olhe para nossos olhos, Azedinho...
Lili: Bela metáfora amor.
Guilherme: Não chama ele de Azedinho que ele não gosta.
Lili: Frenologia, uma arte ocultista que se tornou popular no século XIX. Na natureza
tudo funciona perfeitamente, tudo tem seu encaixe. Na Idade Média, por exemplo,
crânios não estudados de santos eram usados como copos em rituais e cerimônias...
Guilherme: Exatamente... Aquela ovelha lá... Como era mesmo o nome dela?
Marcos: Que ovelha?
Guilherme: Aquela... O primeiro clone de um mamífero lá...
Lili: A Dolly?
Guilherme: Essa aí... Sabem por que ela tem esse nome?
Marcos: Porque foi criada a partir de uma célula mamária de sua mãe, cujo nome era,
deixe-me ver... Dolly?
Guilherme: Muito engraçado general, mas: sabe por que a mãe chamava-se Dolly?
Marcos: Agora você me pegou.
Guilherme: É que ela possuía umas tetas gigantescas, assim como aquela cantora de
country...
Lili: Menino.
Marcos: Dolly Parton.
Guilherme: Essa é a Huri que eu queria.
Azeredo: É incrível como vocês dois pulam de assunto.
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Guilherme: Já fomos melhores... Agora... Para um cavalo cansado até seu rabo é um
peso.
Lili: Até parece, coronel.
Guilherme: Mas é verdade. Estou como Napoleão Bonaparte, que certa vez calculou
que as pedras usadas para a construção das pirâmides do Egito seriam suficientes para
construir um enorme muro ao redor da França, para sua proteção. E sabe quando
conseguiu aplicar esse seu cálculo? Nunca. Ficou velho antes.
Lili: Posso fechar as janelas? Está frio.
Guilherme: Eu fecho para você.
E se levantou um tanto trôpego, a voz um pouco uvular (de pato rouco), um pouco
pisando nos próprios pés, um pouco como se não reconhecesse mais a geometria do
próprio corpo, sim, cada vez mais e mais encarnado pela bebida, e não só nas
bochechas, mas na garganta inteira, e no peito, feito um fogo se alastrasse nele de
súbito, a garrafa de uísque já pela metade (vedete das confusões), a situação ficando
cada vez mais tensa, mais...
Azeredo: Sorte ter tido a ideia de trancar as malas no armário Isso de bebida e armas
não combina muito bem Ainda mais com esses dois malucos O outro será promovido a
general, imagine só quanto serviço sujo não deve ter feito para merecer a honraria
Nosso pai, o exército reformou ainda novo, não teve como fazer carreira, não aceitou
isso de ter que torturar e assassinar estudantes Não aceitou.
O futuro general (agora pensativo) caminhava pela sala com um charuto recém-aceso
enfiado na boca, o peito estufando-se como se já promovido, orgulhoso de si mesmo,
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mais orgulhoso que Lecoq de Boisbaudran ao descobrir o disprósio em 1886 (vejam
como a História é enfadonha e repetitiva), as narinas duas chaminés negras
esfumaçando, trauteando suas solas grossas como se quisesse ser notado baforando
enquanto pensava sabe-se lá no quê, talvez em um novo Sutra, dentro da perpendicular
farinácea em que estava, brioso e insondável, pavão desenhado na prata...
Guilherme: Aí está a estátua do general Nem foi promovido ainda e já se sente com as
estrelas lhe pesando nos ombros, parece mais um espantalho no meio de uma plantação
sendo movido por monjolos
Guilherme: General, o que o senhor achou daquela parada gay que aconteceu lá em
Jerusalém?
Azeredo: Lá vamos nós de novo não é Guilherme?
Marcos: Não fiquei sabendo de nada.
Guilherme: Não respeitaram nem o pedido do papa, que tentava impedir aquela pouca
vergonha do cacete. Aquele uranismo todo.
Lili: Não temos nada haver com o papa, mas Nosso Senhor também acredita no amor
como uma questão de prazer aliada à reprodução. Entendem? Mais almas para o Grande
Humanista.
Azeredo: Vocês...
Lili: O amor homossexual, portanto, é um amor inútil, porque não reprodutivo.
Guilherme: Também para a igreja católica.
Azeredo: Quer dizer então, Guilherme, que todos os padres e freiras que fizeram o voto
de castidade também exercem o amor inútil? Ou será que eles estão isentos da obrigação
de ajudar a vida a prosseguir?
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Guilherme: Não confunda as coisas, eles apenas...
Lili: O abade Boullan e uma freira chamada Adèle Chevalier tiveram dois filhos, ou
mais, e isso em 1854.
Guilherme: Conversa.
Azeredo: Isso para não falar do próprio Jesus Cristo, que nasceu de uma virgem... Ou
você acha que Maria não era virgem?
Guilherme: Não coloque palavras na minha boca seu ateu.
Marcos: Sou obrigado a concordar com o Mário, já que Cristo não se dignificou sequer
a deixar no mundo uma descendência.
Lili: Uma violação da carne. Mas foi bastante apalpado, pelo menos.
Guilherme: Que conversa é essa Lili?
Lili: Não tem conversa, está na bíblia: “o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos,
o que contemplamos e o que nossas mãos apalparam...”, disse um dos apóstolos de
Cristo em relação a seu mestre.
Guilherme: Não blasfeme, também está nas Escrituras que...
Azeredo: Onde? Onde se lê nas Escrituras esta ordem frenética de se superpovoar a
terra? Não passa de uma pregação repetitiva. Vegete, mas procrie, não é isso?
Marcos: Agora vou discordar: é preciso povoar cada canto do universo com a carne do
homem...
Azeredo: Colocar filhos no mundo não é uma questão utilitarista, Marcos. Não deveria
ser, pelo menos. Nem para Deus nem para Satã. Como disse Cesare Pavese: para que
merda serve no fim das contas essa trepação generalizada? Não passa de proselitismo da
fornicação.
Lili: Meninos.
Azeredo: Uma charcutaria.
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Guilherme: Os cristãos precisam procriar, para assegurar a nossa superioridade
numérica sobre os malditos muçulmanos, os malditos ateus, judeus, satanistas e...
Marcos: O que você tem contra os satanistas?
Lili: Não briguem meninos, vocês são irmãos.
Marcos: Pois saiba que somos bastante numerosos, vários grupos, ah, uma máfia
ocultista com tentáculos que alcançam quase todos os segmentos da sociedade e...
Azeredo: O melhor então para a igreja católica seria liberar de vez as máquinas de
clonagem humana, não acha? Quem sabe um trabalho supervisionado por comissões de
clérigos que garantissem a qualidade do produto?
Guilherme: Você está distorcendo as coisas.
Azeredo: Só estou dizendo que depois do perdão concedido aos hereges a igreja não tem
mais inimigos declarados a não ser os homossexuais, não é isso?
Guilherme: É preciso combater o vício.
Azeredo: Que se comece então nos seminários, nos conventos, nas paróquias...
Guilherme: Sempre o defensor das minorias...
Azeredo: Deus é amor então? Sei muito bem o que você pretende quando toca nesse
assunto...
Guilherme: E o que eu pretendo?
Azeredo: Atacar o Augusto. Sempre.
Lili: Vamos mudar de assunto pessoal?
Guilherme: Você que falou no Augusto agora, ninguém tinha tocado no nome dele.
Azeredo: Sei. Eu sou burro então?
Marcos: Nossa casa não mudou nada não foi?
Guilherme: Não fala “nossa” que o Mário não gosta. A casa é dele.
Lili: Não começa Guilherme... O velho Guilherme gostava muito de você não?
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Marcos: O justo seria a casa ser dividida entre todos os irmãos.
Azeredo: Vocês dois sabem muito bem o motivo do nosso pai ter feito isso não sabem?
Guilherme: Nós não tivemos escolha... Se outros o prendessem, poderia ter acontecido
coisa bem pior com ele...
Azeredo: Não me venha com essa de “nós não tivemos escolha”, sempre há uma
escolha, e vocês escolheram o caminho mais fácil.
Marcos: Então você acha que foi fácil prender o nosso próprio pai...
Azeredo: Olha quem fala, quem vai ser promovido a general daqui a duas semanas
hein?
Marcos: Uma coisa não tem nada haver com a outra.
Azeredo: Ah não?
Lili: Não mesmo, o Marcos vai ser general graças ao Nosso Deus...
Azeredo: Por favor...
As feições dela voltavam a mudar lentamente como se refletida em um jogo de espelhos
de vários tamanhos e cores, os olhos agora pareciam azuis, ou sépia, os cabelos negros,
os lábios não mais encarnados, mas pálidos, secos, as sardas escorregando para outros
lugares, movendo-se crustáceas, coriza deslizando, as sobrancelhas ora tocando-se ora
dilatadas, o seu rosto parecendo o de uma matryoshka sendo revelada aos poucos em
suas nuances mais ínfimas, diminuindo-se e diminuindo-se até voltar ao normal, sendo
para ela o normal o descrito no “Prisioneiro da Opala”, de A.E.W. Mason (falso leitor
de Huysmans).
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Azeredo: Não sei o que acontece com ela quando fala Parece que vai mudando
devagar, devagar, devagar Às vezes tenho a rápida impressão que é outra pessoa ali
falando Estranho Não sei ao certo dizer como ela faz isso
Marcos: Quando acertamos ninguém se lembra. Quando erramos ninguém se esquece.
Azeredo: Então você admite que errou? Se for isso, já é um começo.
Guilherme: Não erramos. Fizemos o que precisava ser feito, o que se não fosse feito por
nós, seria por outros. Devemos defender a pátria, sem pedir dela nada em troca. Nem
mesmo compreensão.
Azeredo: Uma ótima desculpa.
Marcos: Credores têm melhor memória que devedores.
Azeredo: Isso. Estamos quase chegando lá.
Lili: Crianças, querem parar com isso?
Guilherme: E quanto aos nossos outros irmãos?
Marcos: É, e quanto a eles?
Azeredo: O que têm eles?
Guilherme: Nosso pai também não deixou nada para eles, por quê?
Azeredo: Vocês sabem muito bem por que.
Marcos: Sabemos?
Azeredo: Quem foi o único filho que apoiou nosso pai nas vezes em que ele foi preso?
Guilherme: A resposta é: você, não é?
Lili: Crianças... Podemos parar com isso? Hoje é Natal.
Azeredo: Olha só quem está falando de Natal...
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Ela gargalhou alto ao ouvir a frase, risada longa e distorcida, aguda, os olhos acesos
girando para cima como persianas são silfos alçando voo...
Marcos: Isso não justifica nada Mário.
Azeredo: Como não? Não bastasse às vezes em que ia preso pelas mãos dos dois filhos
mais velhos, ainda tinha que escutar, quando voltava, os outros filhos e a esposa o
censurando por ter ido, como se a culpa de tudo fosse dele...
Guilherme: O problema é que eles se preocupavam com o futuro do nosso pai...
Azeredo: Que futuro? O futuro na carreira militar, você quer dizer, lembro benzinho da
Erinéia falando para ele: pai, custa fazer o que eles querem? Desse jeito o senhor não
vai ser promovido nunca, nunca, mas, promovido à custa de quantos, não é Marcos?
Marcos: Você está distorcendo as coisas...
Guilherme: Ele sempre faz isso. Então... E quanto ao Augusto Paulo? Ele nunca
censurou o nosso pai, por que ele não deixou a casa para vocês dois então, em vez de só
para você?
Marcos: E outra: nosso pai não precisava fazer o que precisava ser feito naquela época,
era só ele ter ficado na dele, sem arranjar confusão.
Azeredo: Que tipo de confusão?
Marcos: Aqueles discursos que ele fazia Mário, você sabe muito bem disso, e muito
tempo depois, aquela estória lá da bomba...
Azeredo: Era só o que faltava agora, vocês culparem o nosso pai por ter agido conforme
a sua consciência limpa e...
Guilherme: E o Augusto? Você ainda não me falou sobre isso, o que foi? Tem medo de
admitir que nosso pai não gostava dele por ele ser veado...
Azeredo: Não fale assim do nosso irmão Guilherme...
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Marcos: E o que ele é então?
Guilherme: É, o Mário inventou essa mania de calçar luvas de pelica nos nomes...
Azeredo: Quem são vocês para apontar o dedo em alguém? Dois covardes, dois
assassinos, quem vocês pensam que são para falar de qualquer um de nós? Vocês não
podem, não podem, não
Marcos: E nós tentamos ajudá-lo...
Azeredo: Ajudar de que forma? Levando o garoto em um puteiro?
Marcos: “Circe Drinks & Petiscos”.
Guilherme: Lembra da batida que demos lá? Depois: a ideia. E você, Azeredo, fez o
quê?
Azeredo: Eu não fiz nada, aliás, eu não tinha que fazer nada, ninguém tinha...
Marcos: Nosso pai morreu de desgosto quando ficou sabendo que tinha um filho gay...
Esqueceu-se disso foi?
Azeredo: Desgosto maior foi o de ter sido preso várias vezes, quase todas pelas mãos
dos próprios filhos...
Lili: Gente...
Guilherme: Levamos mesmo o imoral em uma zona e daí? Nossa, quase mijo nas calças
de tanto rir quando ouvi a puta dizer Endurece filho, endurece, Levamos o Augusto no
pior cabaré da cidade mesmo, afinal de contas, ele tinha que ser homem, nem que fosse
na marra
Noga: Eles sempre foram cruéis seu Mário, sempre
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Azeredo: Lembro do corredor polonês, de pisar ouvindo minha própria respiração com
medo de que eles estivessem lá Parece que estou escutando, ou julgando escutar, o som
tímido e leve dos meus passos em direção ao banheiro, o suor evaporando desde a pele,
uma angústia cromada na boca, o pânico, caminhando receoso e devagar, meu coração
disparado em uma datilografia epilética, até que eles surgiam do nada, estalados,
dizendo Passa pela gente Passa Lembro de não suportar mais que duas noites desse
martírio Então urinava na cama, na cama para, na manhã seguinte, eles me
reprovarem por isso na frente de todos
Guilherme: Olha Mário, aquilo que a Lili disse...
Azeredo: Quê?
Guilherme: E você desdenhou dela...
Azeredo: Sei.
Guilherme: Ela está certa, é Natal droga, vamos tentar passar essa noite juntos da
melhor maneira possível?
Marcos: Afinal de contas, somos irmãos porra, e faz tanto tempo que não nos vemos
que...
Azeredo: Vamos ver não é?
Sentado agora sobre uma cadeira, ainda que esparramado do mesmo jeito como se
estivesse no sofá, o albino parecia repentinamente docilizado pela bebida, a garrafa de
uísque quase no final. As bochechas já completamente encarnadas, a pele oleosa, suada
uma mistura de vidro esmigalhado e sal, pálida, os olhos aguados dentro das cavidades,
talvez o dono da casa estivesse errado, talvez a bebida o tenha amansado um pouco,
docilizado mesmo, o álcool uma espécie de Psilo a domesticá-lo, as pernas abertas e
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magras repousando em régua sobre a vertigem de seus joelhos quando, até mesmo a
mulher, essa um misto de fêmea com amoníaco...
Lili: Mário, posso ver a coleção de borboletas mortas que você tem?
Ele a olhou por uns breves segundos, feito a desenhasse feldspática, sem saber muito
que falar até que...
Azeredo: Claro... Está lá em cima no quarto da... Suba as escadas, é o último quarto à
esquerda do corredor.
Lili: Obrigada.
E subiu. Na sala agora, apenas os irmãos, o relógio alemão, e as cortinas agora imóveis.
Azeredo: Guilherme... Se o Augusto vier aqui hoje, você também vai tentar tornar nossa
noite a mais agradável possível para ele também?
Guilherme: Mas não preciso tocar nele preciso?
Marcos: Não se pega Aids pelo toque Guilherme.
Azeredo: Até que enfim Marcos, você falou alguma coisa sensata.
Guilherme: (...) Tudo bem, só que... Posso pegar minha maleta?
Ela subia os degraus da escada em espiral no instante em que o relógio soou sua terceira
sequência ininterrupta do tempo, sua primeira nota um som seco, curto, vibrátil, saído
de uma forquilha acrílica, a segunda a terceira e a quarta na mesma modulação da chave
(forquilha um metro cúbico mais aberta), emergindo do ventre das molas a quinta,
ascendente, aguda, longa, melodiosa, sapateando sobre um parque, na sexta ela já se
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encontrava em um dos dois corredores, os ombros estreitos ao silêncio das paredes,
modular, a sétima reverberando um músculo de lazulita ladeado ao eco das demais, das
anteriores, a oitava um quê de solenidade, de materialidade, de fracasso, fechando a
cronologia como uma glote tesa, cromada, asfixia de gluglus fixos apontando para o
infinito, para a vida após a morte, ela já próxima ao quarto onde jazem as borboletas
empalhadas, centenas delas, ela abre a porta, um gemido de vagem se quebrando, ruído
que se prende à cintura dos ecos anteriores, cintura que rodopia no ar um carrossel
sonoro e sem cor, girando e girando junto até dissipar-se no acúmulo do silêncio que
espreitava (uma massa de vidro compacta) o momento certo de retornar para se impor
como única condição possível, geométrico, tentacular, silêncio...
Na cozinha, Noga verifica o chester enfiando-lhe uma faca longa e longitudinal que o
atravessa formando dentro um ângulo isósceles. A carne está macia. Quase bom, ela
pensa, enquanto prepara uma bandeja com frutas, várias frutas e doces, tendo acabado
de ouvir as oito notas do relógio, ela se apressa...
Marcos: Períneo?
Guilherme: É. Significa: “não sem o anel de noivado”, em latim.
Marcos: Você não tem jeito mesmo.
Guilherme: Sou um romântico. Adoro bundeiras.
Marcos: Só não case com ela. O amor é como capim: você planta, ele cresce, depois
vem uma vaca e acaba com tudo.
Guilherme: Que a Lili não nos ouça.
Azeredo: Não tem perigo. Eles vieram. Não acredite em tudo que você vê passar na TV.
Marcos: Noventa por cento da beleza feminina sai com água e sabão.
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Guilherme: Li outro dia que hoje no mundo existem cento e dez mil pessoas com mais
de cem anos.
Azeredo: Você não acredita em mim? Eles passam cenas repetidas, vai ver os ataques
até já diminuíram, ou acabaram.
Marcos: O que você disse?
Guilherme: As palavras cruzadas... Surgiram em dez de abril de 1924.
Marcos: Com quem o Azedinho está falando no telefone?
Guilherme: Deve ser com uma de nossas irmãs.
Marcos: A Eurídice... Lembra de sua coleção de bonecas?
Guilherme: A maioria Barbies.
Marcos: A Barbie já vendeu mais carros que a General Motors. Este mundo está
acabando mesmo. É a boneca mais bem-sucedida do mundo. Dizem que existem
colecionadores que possuem mais de sete mil.
Guilherme: A Eurídice deve ter o dobro disso.
Azeredo: Tudo bem. Espero vocês então. Por favor.
Marcos: Sai daí Azeredo. Neste exato momento há mais de cem mil microrganismos se
alimentando e se reproduzindo e nadando e depositando detritos na área em volta dos
seus lábios.
Guilherme: Nossa mãe... E minha maleta?
Azeredo: Para que você quer sua maleta Guilherme?
Marcos: Pensei que não ia mais largar o telefone. É falta de educação não fazer sala
para os convidados.
Guilherme: Vou pegar uma coisa nela.
Azeredo: Que coisa?
Guilherme: Um estradivário?
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Marcos: Azedinho, não confia no teu irmão não?
Guilherme: Não chama ele de Azedinho senão aí é que ele não pega nada mesmo.
Azeredo: Porra... Deixa para lá, vou buscá-la...
Azeredo: O que ele quer pegar na mala? O que ele quer pegar na mala, o quê?
Noga: Não se preocupa seu Mário, não é nada do que o senhor está pensando Mas vai
feri-lo do mesmo jeito
No quarto, ela observa as paredes repletas de quadros com borboletas alfinetadas,
dezenas deles, enfileirados feito a Leishmaniose, e ainda sobre uma mesa mais uma
dezena de estojos de madeira maciça com borboletas mortas trespassadas por alfinetes.
Ela se aproxima, em movimentos esguios de um ocelote das regiões setentrionais da
América do Sul, acende a luz mortiça do quarto, a luz uma água que se agua pingando
da lâmpada, ela divertindo-se a observar a imobilidade da morte, da exérese ali
sugerida, sim, sugerida naqueles cadáveres acinzentados, azuis-claros, amarelos, moles,
o quarto uma plantação de cabeças lemurianas de insetos fixos, sem espasmos,
taxiodérmicos, insetos pressionados contra o isopor por alfinetes varando a crosta dura
do tórax (som de sistro nessa hora), inanimados e coloridos, de asas semitransparentes
coladas por capricho, sim, um capricho, capricho cruel, o ar encharcado de formol, frio,
perene, o ajuste simétrico e mórbido de todas elas dispostas para a visitação de suas
entranhas, imóveis estranhas que no entanto parecem de alguma forma dançar na festa
universal da morte, dançar fixas (se isso fosse possível) como zíngaros bêbados, como
insetos que se asfixiam no mormaço, grudados à telas, ao vidro das janelas fechadas,
silenciosas bailarinas feito a alma lhes nascesse ali, desenhando nelas um miligrama de
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essência, alma de brim que depois de soprada alçaria voo até partir-se em mil
fragmentos de polens de cristal de urato diluídos dentro de um cilindro noturno que se
fechasse cada vez mais, cada vez mais, mais e mais até que...
Guilherme: O médico quem te disse isso?
Marcos: Então, já pensou? Ele acha que comer aspargos deixa a urina com um cheiro
diferente, mais adocicado.
Guilherme: E como ele sabe disso? Ele cheirou a própria urina? Sujeito sujo.
Marcos: E quando ia saindo do escritório, digo, do consultório, ele ainda me disse
assim: não se preocupe, as moscas domésticas vivem apenas por duas semanas.
Guilherme: E o que isso tem haver com...
Marcos: Sabe-se lá... No quartel dizem que ele bebe. Que é alcoólatra.
Guilherme: Este mundo está acabando, não é para menos o que anda acontecendo na
cidade. E aquele sujeito que quebrou o pescoço porque queria entrar para o livro dos
recordes como o primeiro homem a conseguir lamber o cotovelo?
Marcos: O que é impossível... Não te contei do soldado que quebrou a espinha tentando
se chupar?
Guilherme: Meu Deus... Até no Exército aparece desses malucos?
Marcos: Ficou tetraplégico o idiota, foi reformado. Abafamos o caso. Semanas depois
encontrei o médico alcoólatra e ele me disse que só agora tinha entendido o dia em que
esse soldado entrou no consultório dele querendo fazer uma operação para extrair duas
ou três costelas.
Guilherme: Porcos não são capazes de olhar para o céu.
Marcos: Se nos tivessem deixado tomar conta deste país toda a coisa estaria nos eixos,
tenho certeza disso.
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Guilherme: U novo sistema draconiano. É disso que...
Azeredo: Aqui está sua maleta...
Guilherme: Demorou... Foi buscá-la na fábrica?
Azeredo: Muito engraçado.
Guilherme: Você não tem senso de humor, mas, obrigado assim mesmo.
Azeredo: Vê lá Guilherme...
Marcos: Bonita... Qual a marca?
Guilherme: Primícias.
Marcos: Se não me engano tem um livro de poemas com esse nome.
Azeredo: É o “Primícias”.
Marcos: Este mesmo. Muito bom o livro.
Guilherme: Mário, o que você quis dizer com “vê lá Guilherme”?
Azeredo: Você sabe muito bem.
O albino sorri malicioso ao ouvir a frase, belicoso, os olhos sestros (algo de funesto
brilhava neles), o nariz semicilíndrico suando, os dedos sequiosos testando uma
estranha combinação de números na maleta. Talvez um número maçônico, ícone oculto
nos símbolos do pedreiro & arquiteto.
Guilherme: Está vendo Mário? Não tem perigo. Tenho trava na maleta também...
Marcos: E se você precisar usar o revólver, sei lá, em uma situação de risco, não acha
que a trava vai atrapalhar?
Guilherme: Nada disso, eu abro a trava rapidinho.
Azeredo: E porque agora demora tanto?
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Sim, ele demorava, mas era para deixar o irmão mais novo amedrontado, receoso, sem
saber o que ele tirará de lá, apenas para mastigá-lo os nervos um pouco, assim como
faziam quando eram crianças: o mesmo jogo. O mesmo. Os jogos infantis se repetem na
vida adulta, só que agora trazem o nome de câmera de vigilância, ou de portas com
barra antipânico. Os objetos da infância são os mais dolorosos de lembrar, de repetir,
lembranças costuradas por um fio negro que através de todas as horas da vida de todos
nós segue cerzindo seu tapete de culpas, de erros irreversíveis, monstro de máscara hirta
gargalhando seu desespero no cortejo fúnebre, assim é a infância, que nos acompanha
para sempre, e para sempre presa a nós como uma recordação desenhada (à sangue) na
vidraça, farelos de areia ferindo nossas retinas, alimentada de ódio feito um tumor
carnívoro junto aos mecanismos de controle sociais, um gigantesco corpo constituído de
plasma e ressentimentos, que em sua solenidade de horror segue cavando torrões de
lama dentro de nossos cérebros o mais fundo possível, o mais fundo possível até que,
finalmente, o albino enfia a mão na maleta aberta no instante em que o irmão faz um
movimento estranho, involuntário, uma espécie de vasca, de pequeno salto para trás...
Guilherme: Fica tranquilo Mário...
E puxa da maleta um par de luvas de couro, fechando-a em seguida.
Guilherme: Pronto, pode levar.
E estende a maleta de couro arenoso em direção do irmão.
Marcos: Essa foi boa.
Guilherme: Vieram de brinde quando comprei a mala.
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Lili: Fala de nós mas veja só o que tem guardado nesse quarto Um colecionador
perversamente delicioso, deliciosamente perverso Classifica tudo, todas Holótipo
macho Parátipo macho Subgênero da Fantástico A obsessão pelos detalhes das cruéis
coleções científicas, os alfinetes espetados, que alma bela e tão nossa embora ainda
não saiba disso Fotos de flores Crisálidas, Crisálidas Fotos de larvas, os estojos são de
madeira maciça, onde ele as deita com delicadeza, sim, imagino a delicadeza mórbida
com que faz isso, a sensualidade dos seus dedos, um assassino tímido mas metódico,
matemático, o padrão está claro, e é artístico Ninfálida Veja só esse nome: Ninfálida
Ah como nos faz bem dispor dos pequenos seres, Mestre, Te agradeço por isso A
grande égua negra da morte Sim, o cheiro do quarto é de formol, de morte, da beleza
insone de uma degradação oculta Gosto de pensar nos últimos estertores destas
pequenas borboletinhas Na asfixia trêmula dos seus derradeiros espasmos Como
morreram? Ah me diga por favor Como foi Senhor? Os bodes quando morrem balem
assustadoramente Às vezes é irritante o barulho, o sangue grosso, turvo, cheiroso, mas
elas não Essas morreram limpas e silenciosas, ternas, secas, macias, o crepom das asas
berrando seu último fôlego Não foi assim? Algumas têm o tórax em W Outras parecem
feitas de vidro delicado, ou de couro brilhante curtido na Córdova muçulmana Todas
discretas Todas lindíssimas Imagino como voavam por aí antes de morrerem,
deslizando sobre a respiração das flores O movimento distinto imaginado confere mais
beleza à morte e seus encantos Uma cartografia de cadáveres belíssima e mortal
Senhor Nada de dor, nada de agonia, uma coleante sensação de úmido apenas Depois:
seco De velocidade Vertigem colorida E fala de nós não é Mário? Mas olhe só este
pântano belíssimo O vácuo A sensação do êxtase e da gratidão que pedem para nós
esses pequenos seres É lindo, é terno, é deste crisol triste e transfigurado que nos fala o
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Nosso Mestre, Sombra de Tríplice Corpo É apenas sobre isso que falam suas orações
Ah se você soubesse, Ah se você soubesse Se soubesse da Madame de Montespan,
amante de Luis XIV, de suas duas pombas, símbolo de Vênus, sacrificadas no altar das
gargantas cortadas A paixão é a mesma, Mário A mesma quando ela usava seus filtros
do amor – cantárida e testículos de frango no...
Marcos: O fato é que os camarões têm o coração alojado na cabeça.
Guilherme: Não brinque Marcos, é sério, se você segura o espirro corre o risco de
morrer, entendeu? Uma veia do seu cérebro pode se romper se você fizer isso.
Marcos: É verdade mesmo? Nunca ouvi falar disso.
Guilherme: E tem mais: se mantiver à força os olhos abertos no momento em que você
espirrar, pode acontecer de eles saltarem para fora das órbitas...
Marcos: Nossa.
Guilherme: Faz o teste para você ver.
Marcos: Mas nem de brincadeira. Como você sabe dessas coisas todas?
Guilherme: Assino a “Superinteressante”... Sei por exemplo que ao longo da vida cada
pessoa engole durante o sono cerca de setenta insetos e dez aracnídeos.
Marcos: E ainda querem dizer que se passa fome no Brasil.
Azeredo: Não, é engano.
Guilherme: O Mário vive no telefone.
Marcos: Deve estar despachando alguém para o Orco. Ficou sabendo também que uma
empresa de telefonia móvel lançou um modelo que impede o recebimento de chamadas
caso quem tenha ligado esteja bêbado?
Guilherme: Isso aí é mentira.
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Marcos: Nada disso, os executivos da empresa acreditam que o novo modelo dará fim
ao sofrimento de esposas e namoradas que são obrigadas a ouvir seus esposos ou
namorados cantarem longos tangos e milongas completamente embriagados ao telefone.
Guilherme: Tiveram a pachorra de falar em “tangos”?
Marcos: Sim, e longos, e pelo que li, basearam-se em pesquisas seriíssimas. Um
microchip ultrassensível detecta se a pessoa que ligou é homem, e se está embriagado.
Caso tenha um bêbado do outro lado da linha, o aparelho simplesmente não completa a
ligação, evitando os tangos despropositados e as milongas alcoolizadas, além das
famosas frases de engate que estendem a conversa por horas. Já pensou?
Guilherme: O que mais vai se inventar meu Deus?
Marcos: E um alto executivo da empresa disse em entrevista à imprensa que o próximo
passo será colocar o detector no teclado, impedindo que os bêbados consigam também
mandar mensagens de textos para suas amadas.
Guilherme: Aí fodeu... E adoro cantar um tango.
Azeredo: Para quê essas luvas Guilherme?
Marcos: Quem era no telefone?
Azeredo: Engano.
Guilherme: Engano de quê? Não deu sobrenome?
Azeredo: Não mude de assunto Guilherme... Para quê as luvas?
Guilherme: Para tornar nossa noite a mais agradável possível, inclusive para o Augusto.
Azeredo: Guilherme...
Marcos: Está bem Mário, o Augusto nem vai perceber esse detalhe, deixa ele.
O albino veste as luvas nas mãos magras – serpentes de gelo enroscando-se em gargalos
de borracha – cumprindo sua função no interior do sistema, onde cada momento
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particular adquire uma significação diferente – mais violenta – da que tem fora dele, por
assim dizer lingua promptum aliud pectore clausum...
Azeredo: Não tem necessidade disso...
Guilherme: Estou fazendo o que eu posso Mário, não me peça o impossível...
Azeredo: Mas é tão impossível assim?
Marcos: Se ele quer usar deixa que use Mário.
Guilherme: Não tem outro jeito, ou é isso ou não é nada.
O irmão mais novo se afasta, deixando a folgança ruidosa em que está se tornando sua
sala (mal sabe ele que irá piorar), indo em direção do armário onde guardará a maleta de
couro arenoso, caminhando com cuidado e medo que a arma dispare, mas, não, ele a
guarda com segurança, coçando por dentro da camisa o rodopelo do peito, colocando
em seguida a chave no bolso...
Marcos: As meninas estão demorando...
Azeredo: Como?
Marcos: Sílvia, Erinéia, Eurídice, Tereza, elas não são de se atrasar...
Azeredo: Ainda é cedo...
Guilherme: É, cedo. Como na música da Legião.
Marcos: A Sílvia ainda está com aquele médico filho da puta?
Guilherme: Ainda, mulher desquitada dá nisso...
Azeredo: Entregou os três filhos ao pai, imagine, que tipo de mãe faria isso?
Marcos: É, ele mandou que ela escolhesse não foi, entre ele e eles?
Guilherme: E ela escolheu: ele...
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Azeredo: Esses meus sobrinhos sofreram muito quando eram crianças...
Marcos: E agora, como estão? Vocês têm notícias deles?
Azeredo: A mais velha está casada com um músico, tem dois filhos... O do meio... Acho
que está morando em São Paulo... É escritor.
Guilherme: Escritor. Era só o que faltava, essa família viu? Vou te contar uma coisa...
Se pelo menos for tão bom quanto os alemães...
Marcos: E a mais nova? A Cristina?
Azeredo: Mora aqui, mas não temos muito contato.
Guilherme: Sofreram muito...
Azeredo: Lembram do que ela fez com o garoto?
Marcos: Foi o último não foi? O pai não queria a guarda dele...
Azeredo: Então a mãe o abandonou em uma escola católica, não sei, um mosteiro para
padres, lembram?
Guilherme: Coitado, deve sofrer até hoje por isso.
Azeredo: E as meninas da Tereza?
Marcos: Estão bem não é, mas naquela delas...
Guilherme: Não tiveram sorte na vida...
Azeredo: E sua filha Guilherme, como está?
Guilherme: Estudando Medicina lá no Rio de Janeiro.
Marcos: Boa, bom futuro.
Observada sua alucinação, nossa abafadiça geometria recorrerá à manipulação
assintomática, sem simulações, assim operaremos avessos, contra hélices, até
vislumbrarmos entropia.
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Guilherme: Ótimo futuro.
Recordo sem certeza do esplim daquela tarde em que minha mãe dentro de um táxi
amarelo dizia Você vai ver como será bom passar um tempo por lá Me lembro desse dia
através de fragmentos de memória que ora espocam aqui ora ali, feito circunvoassem,
como quando alguém te acorda pela manhã e você estava dentro de um sonho o qual
agora tenta recordar ao fechar as pálpebras novamente, é, mais ou menos assim, como
um quebra-cabeça de areia e vidro, mas, sim, minha mãe estava excepcionalmente linda
àquela tarde, feito se desenhada especialmente para ela, o corpo branco sincrônico ao
movimento do carro como se guiado por dedos invisíveis embora eu soubesse que não
havia ficado linda para mim (um perfume de leite recendia de sua pele me causando
ciúmes ao erguer-se doce e metálico) não, não para mim, pois, assim que me deixasse
naquele lugar ela iria se encontrar com ele, era para ele aquele vestido azul ondulando
um cinema de celofane movimentando-se, deixando rastros de luz ardósia no ar
carregados, tecido coberto de pétalas que não toquei (não eram para mim), uma serpente
de lepra musical tocando agudos acordes quando estendida sobre mim (suas mãos, suas
mãos) me acariciava o rosto, ainda que sem querer seus dedos de ampola assim o
fizessem, ainda que não por vontade própria, enfim, um carinho acidental, quase ferido,
carinho o qual eu (em fagocitose) catava suas migalhas, raspava seus restos, suas sobras
(porque ela pensava nele, não em mim), na esperança de que desistisse da ideia e
mandasse o táxi fazer um contorno (automóveis emergiam ao meu lado disparando da
avenida larga direto para a superfície rasa dos retornos), o contorno que me levaria de
volta para casa, para os braços vacilantes de minha mãe, de sua doçura de prostíbulo, de
sua bondade de imobiliária, irreal, do pêndulo deslocado dos seus dedos curvos a
enxugar minhas orelhas quando eu saía do banho, deitando espuma nelas, mas, não, o
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táxi continuou seu caminho, reto, inflexível, traçando ao lado de outros veículos o
significado dos acontecimentos paralelos, na medida em que o ronrom do vento
adentrando das janelas abertas (eram chamas?) lambia os cabelos negros sedosos de
minha mãe jogando-os para trás um arco doce e tranquilo descrito, ondulante, livre,
maleável, e era a própria origem da vida tremulando vagarosa, uma beleza perdida para
sempre, sugada para um centro invisível, remoto, a paisagem daquilo que me era caro
indo ficar para trás do carro em movimento até perder-se na plataforma silenciosa dos
objetos imóveis, eu mesmo imóvel sentado na poltrona de feltro do táxi agia através dos
olhos, apenas, os olhos (não havia ninguém atrás deles, eu estava morto) fundidos em
um único cordão de luzes, com lágrimas em sépia esporádicas cortando ao meio esse
mesmo cordão de luzes sanguíneo, acrílico, criptografado, como eu a amava àquela
tarde, nesta página cifrada onde ainda a amo, a carpear na intersecção desse fragmento
de sonho doloroso que recordo as pálpebras fechadas, montando o quebra-cabeça de
areia e vidro no instante em que o carro estacionou em frente àquela casa sombria,
mormacenta, de portões grossos, soturnos, quando descemos meu coração disparado em
direção à boca uma lâmina fria, ela com pressa de me deixar logo, logo, pagando
rapidamente pela corrida, deixando um troco considerável com o taxista (era gordo,
comatoso, respirava pelas narinas um resinoso de máquina), mãe, àquela tarde em que a
senhora subindo os degraus da escada pisava na minha dor, trotando sobre a antecipação
da minha saudade enquanto dizia E quando você quiser se masturbar faça isso no
banheiro e não na cama ou em qualquer outro lugar porque se eles souberem te
expulsam. Recordo mãe, a senhora tocando ansiosa a campainha (parecia tocar um
piano), conferindo cada segundo perdido no relógio, aflita para ir logo embora, para
terminar logo com isso, comigo, conosco, com a lembrança de minhas duas irmãs cada
uma em uma casa diferente (Cynara na casa de minha avó paterna, Cristina com nosso
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pai) separadas por suas mãos mãe, suas mãos nem sempre carinhosas, embora sempre
esperadas, por mim, pelo menos, por teu filho que te amava e seu amor era uma planta
crescendo contra um muro de gelo, de gelo mãe, e todos nós finalmente separados,
assim como a senhora e ele queriam, e seu vestido azul esvoaçando em frente da porta
de onde surgiu o padre como se emergindo de uma fotografia antiga, ele vestia negro
mãe, lembra, o semblante estúpido e gordo de um frade bernardo, suas mãos calosas me
segurando pelo braço Dê tchau para sua mãe, ele disse, o hálito azedo de vinho tosco
embolorado, calvo, curvo, velho, enquanto fechava a porta estreitando a fenda através
da qual eu buscava ver seu vestido azul sendo extinto na descida dos degraus mãe,
estreitando-se até desaparecer na negra tranca da porta, cilíndrica, eu imaginando sua
alegria ao se ver livre de mim e mesmo assim ainda te amei aquela noite mãe,
desobedecendo à senhora, assim como sempre fiz, naquele quarto onde (É o seu quarto
a partir de hoje) joguei a malinha em um canto e deitei na cama úmida de outros que
deitaram antes de mim (quantos?), todos os outros meninos mãe, amantes daquele
mesmo padre desejoso que eu fosse um de seus novos (O jeito como me olhou, como
me tocou o ombro os dedos cheirando à algo que conhecia tão bem). E hoje mãe,
quando penso em Deus a imagem daquele padre me vem à lembrança – licencioso,
úmido, demoníaco – e desde aquela tarde Deus para mim é uma espécie de solidão
negativa, de vértebra cancerosa, de desejo de morte, de tédio estreito e claustrofóbico
como aquele quarto cheirando a mofo, a maço de cigarros molhado, o mesmo quarto
onde não fiz o que a senhora me disse, onde deitei sobre a cama vazia e sem sentido
para enfiado em seus lençóis amarelados me masturbar um misto de paixão ciúme
saudade e raiva mãe, me masturbar pensando na senhora, como se lhe tocasse o vestido
azul por dentro dele um ruído estranho e nítido, estranho e nítido, semelhante ao que fez
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a mulher ao descer sinuosa as escadas de volta à sala onde meus tios conversavam,
quando...
Guilherme: E quem disse que eu estou brincando? Astronautas não podem mesmo
comer feijão antes de suas viagens, os gases podem danificar as roupas espaciais.
Marcos: E que estória é aquela de que na França é proibida a venda de bonecos que não
tenham rostos humanos, hein Azeredo?
Azeredo: Isso aí é verdade.
Guilherme: Eurídice ia adorar.
Marcos: Quem está descendo as...
Azeredo: Deve ser a Lili.
Marcos: Nada de falar sobre períneos Guilherme.
Guilherme: Nem vou abrir minha boca.
Lili: Adorei sua coleção de borboletas Mário...
Marcos: Tanto assim?
Azeredo: Obrigado Lili...
Guilherme: Onde já se viu? Colecionar borboletas.
Lili: Já viu aquela borboleta... como é mesmo o nome dela...
Marcos: Aquela do “Inferno” de Strindberg?
Lili: Isso.
Azeredo: É a Acherontia Atropos.
Lili: Esse nome feio mesmo, já viu uma?
Azeredo: Não, mas li no mesmo livro...
Marcos: No “Inferno”?
Azeredo: Gosto bastante dele...
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Guilherme: É bom esse livro?
Lili: É lindo...
Marcos: Nós temos algumas empalhadas lá em casa Mário... na próxima vez trago uma
para sua coleção.
Azeredo: Vocês também...
Lili: Não, só as temos.
Guilherme: E o que ela tem de especial?
Marcos: Um crânio humano desenhado em seu dorso.
Azeredo: Dizem que o desenho é perfeito.
Guilherme: Nossa.
Lili: Por isso seu nome vulgar é borboleta caveira.
Azeredo: Onde vocês a conseguiram?
Marcos: Compramos de um amigo nosso...
Azeredo: Sei.
Guilherme: E onde se consegue uma dessas?
Lili: Posso te dar uma também se você quiser.
Marcos: A não ser que você queira ir caçá-las no cemitério...
Guilherme: Cemitério?
Azeredo: É o seu habitat natural.
Guilherme: Não obrigado.
Noga: Alguns dizem que seu voo é anúncio de falecimento Que quando ela aparece é
presságio da morte E o pó de suas asas causa cegueira no homem Boullan, o abade, as
mantinha vivas em casa O vagabundo astral Baixo ídolo da mística Sodoma
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Marcos: Descobri: em um sonho é tão ruim escutar zumbidos, enfim...
Guilherme: Da equivalência uma soma é triplicada, restando estilhaços, zeros,
estilhaços...
Lili: Que mais você já leu do Strindberg?
Azeredo: Quase tudo... quando estive em Paris, fui visitar o Hôtel Orfila que...
Marcos: Onde ele morou enquanto escrevia o “Inferno”?
Azeredo: Exatamente.
Lili: E como foi?
Azeredo: Nada demais, um hotel, apenas.
Lili: Há quanto tempo você coleciona borboletas Mário?
Azeredo: Há alguns anos já.
Guilherme: Deve ter sido depois de ter operado os joanetes não foi? Teve que arrumar
outra coisa com o que se preocupar...
Noga: Depois que elas se foram foi que começou a coleção, talvez o único jeito de
ocupar a cabeça com outra coisa que não fosse a saudade Quando cheguei aqui, as
borboletas já estavam lá no quarto, que era dela
Marcos: E os joanetes, nunca mais?
Azeredo: Nunca mais.
Lili: Você conseguiu ir ao quarto onde Strindberg ficou hospedado?
Azeredo: Fui sim.
Lili: E como era?
Azeredo: Um quarto normal, apenas isso.
Lili: Eu gostaria de ter ido lá...
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Marcos: Pois vamos um dia, teu general vai te levar.
Lili: Você gosta de ler não gosta Mário?
Guilherme: O nome do cachorro dele é Cortázar, imagine só...
Azeredo: Lembro de estarmos juntos em Paris quando mostrei a ela o lúgubre hotel de
Strindberg Nossas roupas acumuladas em um canto do quarto Meu Deus como me
arrependo Eu escutava os ruídos da rua de frente para a janela, fumando um cigarro
entre os dedos Ela gostava tanto de cigarros apagados em suas coxas Estava nua,
exuberante, se enrolando nos lençóis brancos como uma infância remota, a janela
fechada por causa do frio, os espelhos refletindo o mofo das paredes Gostei tanto dela
àquela tarde, úmida como uma larva, ronronando deitada na cama enquanto eu dizia
Vamos visitá-lo qualquer hora dessas? Vamos? Não sei por que essas lembranças são
cada vez mais dolorosas para mim, ou talvez saiba, e não queira admitir, aqueles
assoalhos cheirando a linóleo, os fantasmas decapitados do vento assoviando pelas
frestas Ela bem que poderia estar aqui agora, para me ajudar a suportar essa noite,
essa noite em que terei que passar o pior com meus irmãos, mas, não, eu não mereço
isso Ela cuidava tanto e tão bem de mim que eu não mereço, não depois do que lhe fiz
Marcos: Sêneca foi quem escreveu o discurso que Nero leu no Senado para justificar o
porquê de ter assassinado sua própria mãe.
Lili: Percebe? Nós temos mais coisas em comum do que você imagina Mário.
Guilherme: Colecionador de borboletas, veja só, sei bem de que borboletas ele mais
gosta, isso sim
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Lili: E aquelas fotos na parede?
Marcos: Elas estão demorando não estão?
Lili: Elas quem?
Marcos: Nossas irmãzinhas...
Azeredo: Quer que ligue para elas?
Marcos: Não precisa não...
Guilherme: Talvez elas não venham.
Azeredo: Elas vêm sim.
Guilherme: Seria bom que o Augusto não viesse.
Azeredo: Guilherme...
Lili: Guilherme, para quê essas luvas?
Augusto: Lembro das surras de cinto que eles me davam, os covardes, da sífilis que
contrai daquela puta doente que me arranjaram, a vergonha que passei com aquele
cancro branco no pau, as úlceras na boca, a febre, aquele líquido transparente que
escorria e coçava, escorria e coçava, e coçava, e coçava e coçava As injeções de
penicilina me deixaram marcas até hoje Depois disso, mais surras, porque disseram
que peguei a doença com aquele garoto da escola, mas sei que não, sei que foi com ela,
com a doente que me arrumaram Mas eles gostavam disso, de me espancar, o cinto
afivelado abrindo lótus em minha pele, lótus de sangue Isso não quer dizer nada? Devo
ir lá então e suportar as chacotas, as brincadeiras sem graça, o Marcos e aquela sua
mulher prostituta do Diabo? Ah sim, eu sou amargo, estou bêbado, sou eu o leproso da
família E que família hein? Nenhum deles presta para nada, tirando a Eurídice,
nenhum deles Nossa mãe morreu por culpa deles, e saudades de mim que nunca voltava
de Portugal Mas, como voltar? Para quê? Para ser humilhado, só se for Encontraram
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nossa mãe bem no meio da sala Tenho certeza de que ela se suicidou, tenho certeza, ela
nunca erraria a dosagem de um remédio que tomava há tanto tempo Nunca Bando de
putas Tereza e aqueles seus filhos mongoloides, bem feito para ela, para eles, Erinéia e
aquela minha sobrinha anoréxica, prostituta, Sílvia e aqueles pobres coitados que ela
abandonou para ficar com aquele médico louco, e agora o quê? Sou o aidético então,
eu o canceroso, eu o desgraçado que não merece respeito, e eles são o quê? Meu Deus
do céu que família me arranjaram, que família
Lili: Então Mário, e aquelas fotos?
Azeredo: Das borboletas?
Lili: Não deixa de ser...
Azeredo: Ah, entendi, são fotos artísticas, do século dezenove.
Guilherme: E naquela época já existia máquina de fotografar?
Lili: São originais?
Azeredo: Não, imagine. São reproduções. Mas reproduções da época. Comprei em um
leilão.
Marcos: De que fotos estamos falando?
Então ela lembra os minutos anteriores, poucos, é verdade, no entanto tempo suficiente
para ter notado a parede ao fundo do quarto, engolida por uma sombra cinzenta, sombra
que logo se dissiparia diante da luz imantada de uma segunda lâmpada acesa, acionado
o comutador por dedos curiosos, regidos por pensamentos maus, os dela, claríssimos e
intencionais, sólidos como uma opinião, ainda que perversa. E lá estavam elas, as fotos,
que retratavam crianças em preto e branco, algumas posando para a câmera, outras
pegas de surpresa os gestos congelados para sempre, os olhos quase sempre fitando o
nada, o incompreensível, pequenas sêmolas de espelho, feito pequenos exageros da
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sensibilidade. Outras crianças dormiam mergulhadas em sono delicado, invadidas pela
luz de um sonho artificial que não o delas, feridas pelas chapas de vidro que na câmara
escura revelaram obsessões, óleo sobre tela cheia de detalhes, em algumas fotos
detalhes de crianças nuas, sem pelos, a pele colorida por outras mãos, crianças sentadas
em penhascos, todas elas garotinhas, oito, nove, dez anos, os cabelos de leite, na beira
de um riacho uma delas fita o invasor como se quisesse fingir enganá-lo, como se lhe
dissesse algo (talvez lhe pedisse um sorriso não cedido para a pose) o usurpador por trás
das lentes, uma inocência tão frágil quanto artificial, ao fundo um rochedo à flor da
água, feito tudo fosse de vidro e obscuro, molhado, e se partisse, com seus fragmentos
dançando dentro de uma agitação vazia, vertiginosa, decorada por uma ridícula
superfície pintada de cores de mau gosto, grosseiras cores tentando enxergar delicadeza
onde só se via a paralisia dos membros, dos membros de todo o corpo, asfixia que
crescesse de uma só raiz, sob o zodíaco. Então a mulher de meu tio Marcos falou das
fotos à todos, com uma naturalidade enferma de quem acaba de referir-se a uma alma
gêmea da sua, quando...
Marcos: Que fotos são essas meu irmão?
Guilherme: São das “borboletas” dele.
Azeredo: O quê? Por que vocês estão me olhando com essa cara? Querem ir lá subir
para ver? Não tenho nada para esconder de ninguém.
Lili: As fotos são belíssimas.
Guilherme: Eu que não subo lá. Melhor evitar.
Marcos: Foi você quem tirou as fotos?
Azeredo: Foi sim... nasci no século dezenove também.
Guilherme: Quem não gosta de estar consigo mesmo em geral está certo não é, Mário?
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Marcos: E quem tirou as fotos?
Azeredo: Charles Lutwidge Dodgson.
Lili: Quem?
Azeredo: Um fotógrafo inglês, da era vitoriana. Vocês não conhecem?
Marcos: Fotógrafo?
Azeredo: Matemático também. Publicou vários livros de matemática.
Guilherme: E só?
Azeredo: Queria mais?
Lili: São muito boas, parecem fazer parte do mesmo álbum de fotografias, não sei... um
pouco ousadas para a época, não?
Marcos: E as crianças estão nuas Azeredo? Isso para mim é obsceno.
Azeredo: A obscenidade está no olho de quem vê.
Guilherme: Boa saída. Acho que Shaquile Oneil usou uma parecida quando respondeu a
um repórter sobre o porquê de ele sempre usar um par de tênis por partida.
Marcos: São crianças Azeredo, e nuas, e você vem me dizer que...
Azeredo: Não estão nuas em todas as fotos.
Lili: Isso é verdade.
Marcos: Não interessa.
Guilherme: Ih Marcos, hoje em dia as crianças... não se lembra daquela mulher... Mum-
zi... que nome hein? Então, ela foi avó com dezessete anos. Isso quer dizer que teve uma
filha aos oito anos e quatro meses de idade, e que sua filha também foi mãe aos oito
anos e dois meses de idade, então não esquenta muito a...
Lili: Quero saber como você fez essa conta coronel.
Marcos: Não interessa. Isso é pornografia de qualquer jeito. Para mim, pelo menos.
Azeredo: A pornografia trata da morte. Aquelas fotos são artísticas.
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Guilherme: Hoje em dia qualquer coisa é arte não é? Culpa daquele francês e seu
pinico...
Azeredo: Além disso, Charles Lutwidge Dodgson era um homem sério... publicou
vários livros de interesse científico e...
Marcos: Um pedófilo latente, isto sim.
Guilherme: Não vale um táler.
Azeredo: Sinceramente eu não estou com paciência para discutir isso com você Marcos.
Lili: Se soubesse que ia dar nisso não tinha falado nada.
Azeredo: Será mesmo?
Marcos: Azeredo...
Guilherme: Acho bom não discutirmos mais nada mesmo Marcos, afinal de contas, é o
Azedinho quem está com as chaves do armário onde colocou nossas maletas...
Lili: Meninos.
O relógio alemão na parede da sala permanecia silencioso e pronto para só badalar nas
horas cheias como se vivo, vivo e ligado aos acontecimentos de que fez parte, assim
como se respirasse fundo e metálico e segurasse o ar em suas molas, vivo, em seus
pulmões de engrenagens negras a vida em contiguidade com seu passado, de fôlego
preso na traqueia o relógio respirando até a derradeira próxima hora do tempo, e uma
hora nunca igual à outra, nunca igual à outra, mas emparelhadas juntas, distintas,
afiadas feito dentes em uma mandíbula fixa e calcinada, uma que derruísse tudo a sua
frente com sua corrupção quando na sala se ouviu o ruído de um carro lá fora...
Marcos: São elas, até que enfim.
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Noga: Sílvia, Eurídice e Magno
A garrafa de uísque (ela reluzia) já quase vazia sobre a mesa, as cortinas imóveis e
estiradas eram línguas de sogra velhas, as duas maletas com as armas trancadas no
armário antes oco por dentro, todos os presentes sentindo o girar do álcool acima de
suas cabeças uma espécie de vertigem, de calor, de queda, o dono da casa se
encaminhando em direção à porta, deixando para trás o silêncio que se fez entre os três
sentados no sofá, todos calados, crustáceos, a saliva cediça fixa nos lábios, talvez
estivessem cansados, ou bêbados, talvez calculassem ágios, respirando morosos os
pulmões entregues e inclinados no instante em que a porta se abriu não sem...
Sílvia: Mário, meu irmão.
Azeredo: Tudo bem Sissi?
Sócrates advertindo contra o suicídio recorda as palavras do Mistério: “nós homens
somos como que vigias, e nem podemos substituir-nos, nem evadir-nos”. Minha mãe e
seus cabelos negros, lisos, a pele limpa, branca, os olhos castanho-claros, sempre
assustados, em seu vestido azul (não o vestido daquela tarde, mas um outro, ela gosta de
azuis) quase celagem, abraçava o irmão com força macia, terna, sincera, quente, assim
como fazia conosco quando se arrependia por nos ter espancado – sendo minha mãe
hoje para mim todos meus motivos de vigia relaxado, que deseja largar a guarita de
súbito – no olho esquerdo dela, a maquiagem acentuada que usava tentando esconder
um roxo logo abaixo dele, enquanto que na sala a conversa voltava aos poucos, como
rumores atravessando as paredes do cárcere, o silêncio mais uma vez quebrado,
rompido, ilha de corais fincada no centro de um imenso mar de rancores...
82
Sílvia: Como vão as coisas por aí?
Azeredo: O que é isso no olho?
Sílvia: O quê... ah, bati sem querer na porta.
Azeredo: Sei.
Guilherme Marcos Lili: Sissi.
Eurídice: Até que enfim, todos os irmão reunidos.
Marcos: Onde mais?
Guilherme: Até um morrer?
Azeredo: Oi Eurídice. Algum problema no caminho?
Eurídice: Nenhum.
Azeredo: Não disse a você? As emissoras de TV sempre aumentam tudo, você entende
não é? Agora, pelo menos.
A irmã acabada de chegar fechava a porta do carro, o marido esperando carrancudo
sentado em sua cadeira de rodas era um gárgula ensimesmado, de mármore, fixo o
rancor na face lhe traduzindo o estado de espírito...
Eurídice: Dá aqui um beijo na sua irmã mais nova.
Azeredo: Que bom que vocês chegaram.
E eles se beijaram, minha mãe já dentro da casa cumprimentando os outros irmãos,
todos sentados, conversando, no sofá, a irmã mais nova tendo empurrado o marido na
cadeira de rodas até a soleira da porta para beijar o irmão um beijo doce e sincero,
honesto, beijo que afagou não só as bochechas mas o coração dele, que pulsou quente e
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hidráulico, agora quase esperançoso quanto ao resto da noite. A irmã mais nova era a
mais bela de todas as irmãs: as mãos agitadas, o leve rufo das sobrancelhas, o fino jogo
de músculos do seu corpo, os olhos verdes transparecendo todos os seus sentimentos, o
cabelo castanho suntuoso, ondulado, a cintura fina, as ancas largas Bacia boa de parir,
sua mãe dizendo quando viva, sem saber ainda que a filha era infértil, seca por dentro,
como uma vingança de Deus contra a sua beleza de alma e de corpo, o pescoço delgado,
o queixo fino, o espírito bondoso...
Marcos: Estou dizendo a você Sílvia, os norte-americanos consomem cerca de dezesseis
mil aspirinas por ano. Tome uma, não vai fazer mal.
Lili: Você bateu na porta Sílvia, foi isso?
Guilherme: E uma pulga fêmea bebe por dia quinze vezes a mais do próprio peso em
sangue, portanto...
Lili: Quantas espécies de pulgas são conhecidas?
Guilherme: Duas mil e quatrocentas.
Lili: Ainda vou descobrir como você faz estes cálculos coronel.
Azeredo: Como vai Magno?
Magno: Para nenhum lugar, não tenho pernas.
E era verdade. Sentado em sua cadeira (as rodas enferrujadas rangiam) trazia no colo
duas garrafas de vinho e uma de uísque, já que as pernas amputadas lhe deixavam
espaço de sobra para servir a esse propósito...
Eurídice: Que humor negro Magno.
Marcos Lili Guilherme: Magno, menina.
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Guilherme: Mais bebida. Hoje vamos beber mais que uma pulga fêmea, não é general?
Marcos: Podemos misturar com água, como ordenou o Almirante Vernon aos homens
de sua esquadra inglesa, em 1740.
Lili: Viram alguma coisa no caminho até aqui?
Eurídice: Não, mas na TV vi uma reportagem dizendo que o Norambuena estava
ensinando aos presos técnicas de sequestros, sabem? Agora parece que estão planejando
sequestros de autoridades...
Marcos: Eu sabia que os guerrilheiros estavam metidos nisso.
Guilherme: A democracia é para tênias.
Lili: Quem é esse Norambuena?
Guilherme: Um chileno filho da puta que em 1987 planejou o sequestro do coronel
Carlos Carreño, na época diretor da fábrica de armas do Exército do Chile. Só o libertou
depois que o governo Pinochet divulgou comunicados do grupo que Buena liderava...
Marcos: O “Frente Patriótica Manoel Rodrigues”...
Guilherme: Exatamente.
Eurídice: E ele está preso no Brasil?
Marcos: Por ter comandado o sequestro do publicitário Washington Olivetto.
Guilherme: O coronel Carreño ficou noventa e dois dias em cativeiro. Além dos
comunicados, todos divulgados, Norambuena ainda ordenou que o governo chileno
distribuísse alimentos em uma favela em Santiago do Chile. Populista do caralho.
Marcos: Conheci o coronel Carreño, uma pessoa finíssima.
Guilherme: Todos nós somos. Diferente do Sardanapalo que hoje está na presidência de
nosso país.
Lili: O Brasil não é mais um país seguro. Acho melhor nós passarmos a noite aqui.
Eurídice: Ficar aqui por dez dias até as coisas acalmarem, que tal?
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Guilherme: O Azedinho ia adorar... opa, que ele não nos ouça.
Noga: As duas têm boa índole, tão diferentes dos outros irmãos A mais nova é generosa
e grata, cuida do marido apesar dos seus insultos, do seu mau-humor, da sua amargura
A outra é boa apesar do que fez aos filhos É boa de coração Fez o que fez porque é
louca Enlouqueceu graças à família É esquizofrênica Exatamente como eu, como os
médicos disseram que eu era quando Ela é como eu, Sílvia é exatamente assim como
eu: de alma pura, ainda que o coração e a mente tenham sido corrompidos
A irmã mais nova retorna para a entrada da casa e empurra a cadeira de rodas do marido
até chegar à sala onde todos estão conversando. As rodas rangem um ruído engraçado:
Ankh, Ankh, Ankh. Seu irmão vai ao seu lado, cochichando em seu ouvido...
Azeredo: Ainda bem que vocês chegaram...
Eurídice: Eles são difíceis não são?
Magno: O que vocês estão cochichando aí? Perdi as pernas mas ainda tenho ouvidos
ouviram? De tuberculoso.
Eurídice: Magno...
Azeredo: Deixa eu pegar essas garrafas do teu colo Magno...
Magno: Cuidado para não me levar junto.
Eurídice: Liga não Mário, esse hoje está com um humor...
O dono da casa apanha as garrafas (todas cheias, lacradas) e as coloca sobre a mesa ao
centro da sala...
Azeredo: Vou na cozinha pegar copos e gelo...
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Sílvia: Deixa que eu pego Mário...
E minha mãe sai.
Guilherme: Então eu disse à ela: celulite não é problema querida, os furinhos querem
dizer “você é gostosa”, em braile.
Lili: Quando as serpentes nascem com duas cabeças, as cabeças lutam entre si por
comida.
Eurídice: E ela não vem, Guilherme?
Guilherme: Não tem senso de humor. O pior defeito de uma mulher é a falta de senso de
humor. Por isso gosto das norte-americanas... sabia que quinze por cento delas mandam
flores para si mesmas no dia dos namorados?
Marcos: Não sabia que serpentes podiam nascer com duas cabeças. A natureza é irônica
mesmo, porque seu criador é um bufão. Mas essa ironia divina só aparece para quem
tem capacidade de enxergá-la...
Eurídice: Quinze? E ainda por cima compram mais roupas masculinas que os homens.
Sei disso por conta do meu trabalho...
Lili: Não sei como você aguenta atender todas aquelas reclamações...
Eurídice: Ainda bem que estou atrás de um telefone, tem cada maluco hoje em dia...
outro dia ligou um doido lá na Central, um homem completamente desprovido de senso
de ridículo, ligou para reclamar que tinha adquirido três cuecas da Lupo, modelo
Speedo, e que depois de apenas um dia de uso ninguém suportava o cheiro da cueca,
nossa, ele disse assim mesmo, com estas palavras: nem a Valdirene, que é empregada lá
de casa há mais de dez anos, conseguiu lavar as cuecas, por causa do odor, nem ela nem
minha mãe, e meu pai agora está achando que tenho um problema de fungo na virilha,
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coisa que sei que não é, já que mantenho uma ótima higiene pessoal, então, o que faço?
Acho que deve ser problema de fabricação...
Guilherme: Fungo na virilha é ótimo. Melhor que “fungo no períneo”.
Marcos: Ou que: “Cuecas Hirco”.
Eurídice: O que quer dizer “períneo”?
Marcos: É melhor ficar sem saber.
Lili: E o que você respondeu, Eurídice?
Eurídice: Eu disse: senhor, agradecemos seu contato e sua preferência pelos nossos
produtos, mas, informamos que seu relato sobre as cuecas é inédito, por isso
acreditamos não se tratar de um problema de fabricação, pois nunca tivemos problemas
desse tipo e sempre trabalhamos com materiais de primeiríssima qualidade.
Guilherme: Uma ótima maneira de mandar o sujeito se tratar do fungo na virilha, não é?
Eurídice: O que mais eu poderia dizer? As ligações são gravadas...
Lili: E o Magno, o que acha disso?
Marcos: Que cara é essa Magno?
Magno: É a única que eu tenho.
Guilherme: O mau-humor de sempre hein?
Eurídice: Mas hoje está pior.
Magno: E não era para estar? O carro cheio de bonecas, quase não consegui sentar
direito.
Lili: Mais bonecas Eurídice?
Eurídice: Não resisti... paramos no supermercado para comprar as bebidas, e não resisti,
não mesmo...
Marcos: Você ia adorar viajar para a França.
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Magno: Como se as que têm lá em casa já fosse pouco, não tenho mais nem onde
colocar as pernas...
As gargalhadas ecoaram unânimes na sala, reverberando carregadas em vários tons,
estilos, modulações, animando o ambiente. Do corredor, minha mãe riu só de ouvir o
estouro delas, metálicas, mesmo sem saber do que se tratavam assim tão longas,
histéricas, quatro delas alcoolizadas. Riu um riso puro, ingênuo, imaginativo em sua
inocência, no instante em que entrou na cozinha e...
Sílvia: Tudo bem, Nó?
Noga: Tudo Dona Sílvia, aqui estão os copos e o gelo.
Sílvia: Você sempre sabe o que a gente quer não sabe?
Noga: (...) Ainda bem que vocês chegaram.
Sílvia: O clima aqui tava pesado?
Noga: Um pouco.
Sílvia: Vamos tentar ajeitar isso não é?
Noga: Fico feliz.
Sílvia: Precisa de ajuda? Na cozinha?
Noga: Não Dona Sílvia, está tudo bem.
Sílvia: Obrigada então.
Noga: De nada.
Sílvia: Fiasco, Fiasco... ainda não aprendeu a cantar?
Noga: Ainda não Dona Sílvia.
Sílvia: Nó, não precisa me chamar de Dona...
Noga: Bondade a sua.
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As gargalhadas ainda soavam na sala, ainda que agora um pouco mais fracas, diluindo-
se, diluindo-se (o laudanum de Paracelso), quando minha mãe retornou trazendo copos
e gelo, as garrafas já sendo abertas...
Eurídice: Especialmente naquele tempo restante onde passávamos inventando artes...
Lili: Os valentinianos afirmavam existirem dois mundos: um visível; outro invisível.
Eurídice: Não riam de mim... tenho culpa de achar que o Lavoisier havia sido
guilhotinado por ter inventado o oxigênio?
Marcos: De onde você tirou isso minha irmã?
Magno: Vocês não sabem de nada. Outro dia ela jogou uma afirmação na mesa do café
da manhã que eu vou contar a vocês uma coisa...
Sílvia: Cheguei lá e a Noga já estava com os copos e o gelo na mão, ela parece que
advinha as coisas não é?
Azeredo: Não bem advinha.
Marcos: Que afirmação, Magno?
Eurídice: Há quanto tempo ela trabalha contigo meu irmão?
Magno: Não mude de assunto, gênia... ela disse assim: os crustáceos fora d’água
respiram como podem.
Azeredo: Ah, desde que, desde que... um tempo depois que elas se foram.
Guilherme: Os crustáceos o quê?
Sílvia: Você tem tido notícias da Ana?
Azeredo: Não. Acho que está morando em Manaus, mas é só.
Magno: É a única pessoa que eu conheço que pensa em crustáceos logo pela manhã...
Eurídice: Não enche, Magno, você sabe muito bem que foi um sonho que eu tive na
noite anterior...
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Magno: Aquilo foi um pesadelo, pelo menos para mim. Além disso, pior do que pensar
em crustáceos pela manhã é sonhar com eles à noite.
Eurídice: Nossa casa não mudou nada não foi?
Guilherme: Não fala nossa que o Mário não gosta...
Azeredo: Nada disso Eurídice... a casa é nossa.
Sílvia: E essas luvas Guilherme?
Guilherme: Estava com frio nas mãos...
Lili: Essa é boa.
Magno: Não tem cinzeiro nessa casa?
Marcos: Toma aqui o meu, acabei de fumar um charuto... quer um?
Eurídice: Em vão os sonhos se vão...
Magno: Prefiro cigarro.
Azeredo: Você ainda fuma Magno?
Eurídice: Ele não tem jeito.
Magno: E daí? Já perdi as pernas mesmo, que me importa perder o restante da merda do
corpo inteiro? Falando nisso: onde está o Armando Nascimento de Jesus, Azeredo?
Azeredo: Quem?
Magno: O vulgo presépio, afinal de contas, não é natal?
Azeredo: Muito engraçado.
Marcos: As pernas foram amputadas por causa do cigarro?
Eurídice: Foram, um problema vascular...
Magno: Necrose.
Eurídice: Que palavra horrível Magno...
Magno: Existem palavras nas quais não adianta colocar verniz. Necrose é necrose.
Sílvia: Marcos, é verdade que você vai ser promovido a general?
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Marcos: Daqui a duas semanas Sissi.
Sílvia: Parabéns.
Eurídice: O papai iria se orgulhar de você.
Magno: Será mesmo?
Eurídice: Magno...
Lili: A cerimônia vai ser em Brasília.
Eurídice: Que bacana.
Guilherme: Vou vender minha alma ao diabo também.
Magno: Se ele quiser a minha eu vendo sem problema algum... vou pedir em troca dois
caralhos imensos no lugar das pernas.
Eurídice: Você não tem jeito mesmo não é Magno?
Lili: Que gênio hein?
Magno: Ele pode fazer isso por mim?
Marcos: Ele pode tudo.
Azeredo: Vamos mudar de assunto?
Marcos: O que é esse roxo no teu olho Sissi?
Sílvia: Que roxo?
Marcos: Você sabe muito bem.
Sílvia: Tentei escondê-lo mas parece que não deu certo A culpa foi minha, minha Nós
estávamos tomando banho de mar E sempre nadamos no fundo, bem no fundo, quase
em alto mar Foi quando me deu uma cãibra, uma cãibra Ele estava longe de mim
Tentei chamar por ele mas não conseguia, engolia água, água Ia morrer afogada
quando passou aquele barco cheio de pescadores Eles jogaram uma boia e me tiraram
da água e me trouxeram de volta à praia Então ele ficou com ciúmes Saímos da praia
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sem que ele falasse nenhuma palavra Subimos no apartamento Chegando lá ele
estourou Mas a culpa foi minha, eu não deveria ter tido aquela cãibra Foi isso Nada
demais
Sílvia: Nada demais não, caí no banheiro.
Azeredo: Você não disse que tinha batido com a porta nele Sílvia?
Guilherme: Sissi...
Sílvia: Ah, nem sei mais, não foi nada demais, já disse...
Magno: É, o Leandro só deve ter dado outra surra nela, coisa corriqueira, nada demais
mesmo, tudo normal.
Eurídice: Porra Magno... desculpe gente.
Marcos: Sissi, não tenha medo de nos contar nada.
Guilherme: A gente resolve para você isso Sissi.
Azeredo: Resolve como?
Marcos: Já resolvemos inclusive não foi? De uma outra vez.
Lili: Aquele filho da mãe...
Azeredo: Do que vocês estão falando?
Guilherme: Estamos falando que nossa irmã nunca deveria ter se separado do seu
primeiro marido.
Sílvia: E por quê?
Marcos: Por que dá nisso, não é Sílvia?
Azeredo: O que vocês fizeram?
Eurídice: Hoje é natal gente, pelo amor de...
Magno: Eles mataram um cara.
Azeredo: Eles quem?
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Guilherme: Nós matamos Mário.
Marcos: Eu e o Guilherme.
Azeredo: Quando isso?
Lili: O cara não valia nada.
Azeredo: Quem era... como...
Marcos: Aquele juiz que nossa irmã namorava.
Guilherme: Lembra dele?
Azeredo: Mas por quê? Vocês não tinham o direito...
Sílvia: Vamos mudar de assunto?
Marcos: Você não sabe o que ele fez Mário...
Magno: Queria comer as filhas da Sissi...
Sílvia: Gente...
Azeredo: Como assim?
Lili: Juiz da vara da infância e da juventude inclusive...
Azeredo: Mas...
Guilherme: Namorou nossa irmã umas semanas, falava em casamento, conheceu os
filhos dela que na época eram pequenos...
Marcos: Até que uma bela noite foi jantar na casa de nossa irmã e levou iogurte para as
crianças...
Lili: Iogurte com sonífero...
Marcos: Queria botar todos para dormir, e imagina só para quê não é?
Guilherme: Ia comer todo mundo.
Marcos: Quem sabe até o pobre do filho da Sissi...
Azeredo: Isso é verdade Sílvia?
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Sílvia: É, mas a Cynara, que era mais velha e esperta, viu quando ele colocou sonífero
no iogurte deles e no copo de vinho que eu ia tomar...
Azeredo: E...?
Sílvia: E conseguiu me avisar a tempo, sem que ele visse...
Guilherme: Então a Sissi inventou uma desculpa e o colocou para fora de casa...
Sílvia: Disse que estava passando mal...
Azeredo: E vocês?
Marcos: Ah, quando ela nos contou demos um jeito nele.
Azeredo: Que jeito?
Guilherme: Você sabe...
Azeredo: Olha... preciso ir ao banheiro.
E sai da sala, a sala agora imersa em um silêncio súbito, ainda que breve, breve e
estranho, e estranho porque não reprovador, mas incômodo, incômodo apenas, feito
uma pausa que se tira para pensar, os copos sendo levados à boca uma espécie de
desculpa simplória, porém eficiente, eficiente como todas as demais coisas simplórias
do mundo onde a vida dá suas braçadas...
Marcos: Nós o pegamos na saída do Fórum, quase ninguém na rua, tudo muito rápido
e limpo, silencioso Estávamos encapuzados Ele pensou se tratar de um sequestro Tenho
dinheiro à vontade, ele disse, coitado O enfiamos na mala da viatura sem placa Tudo é
uma questão de prática De números A perfeição com que fizemos A estatística
comprova nossa eficiência Dirigimos por uma hora até chegarmos ao nosso cantinho
preferido Sucursal do Inferno Rediviva Abrimos a mala, já sem capuz, ele sem entender
nada já suando feito um porco prestes a ser castrado O que... Mas não deu tempo de
completar, foi pancada sobre pancada Queria comer nossa irmã e ainda por cima os
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filhos dela não é seu tarado, disse Guilherme, e aí o juizinho de merda começou a
entender o quanto estava fodido Olha, vamos conversar... Um soco meu lhe abriu o
supercílio Conversar nada, eu disse A cadeira já estava lá, pronta para que ele
sentasse Mandamos ele tirar a roupa, o revólver pressionado em sua nuca Eu tenho
dinheiro Não interessa, tire a roupa E ele tirou E pediu tanto por sua vida, e pediu
tanto por sua vida, e pediu tanto por sua vida, e chorava e gemia e implorava pedindo
tanto para não morrer que logo o reconheci Camboja? Perguntei Sim, era ele, o
covardezinho de merda Foi quando me reconheceu também, quando eu disse: vamos
reviver então aquela época? Nossa, me deu mais gosto ainda de matar aquele
comunistazinho covarde Esses comunistas são todos uns tarados Então você lutou pela
democracia mas só para ter o direito de enrabar criancinhas não, Guilherme perguntou
E o filho da puta lá, pedindo por sua vida, pedindo por sua vida, pedindo por sua vida,
chorando e gemendo e implorando feito um carneiro com asma, urinando nas pernas o
imundo, se cagando todo, aquele fedor Nós amarramos o infeliz sentado na cadeira
mãos e jarretes para trás e agora ele só soluçava afônico feito um trompete sem óleo
quando tirei o arame do bolso e eu sempre trago um arame no bolso enquanto o
Guilherme ia colocando as luvas para pegar no mole do juiz E o filho da puta não era
circuncidado dá para acreditar em um troço desses? O nojento Então fizemos a
circuncisão lá mesmo, o Guilherme sempre traz uma faca no bolso E foi sangue e
sujeira para todo lado enquanto eu ajeitava o arame, esticava ele, o juiz nem falava
mais nada, só gemia, gemia, gemia, quando enfiei o arame virilha adentro, o
Guilherme ligando o maçarico E nós sempre temos um maçarico à mão na Sucursal E o
juiz pedófilo de merda se contorcendo como um peixe fora d’água se debatendo e o
arame entrando Só que chegou em um ponto que ele entortou Então tive que puxá-lo de
volta e por mim tudo bem fazer isso, o maçarico aceso a todo gás E enfiei de novo o
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arame e mais uma vez ele entortou então tirei, desentortei, e enfiei de novo e agora sim,
o arame deslizando quase inteiro, ficou só uma pontinha fora O nosso pavio, que o
Guilherme tratou de esquentar com tanta satisfação Saudades Camboja, ele perguntou
e o velho comunista grunhindo como resposta Um animal Foi quando peguei um capuz
escuro e vedado e molhei todo ele com amoníaco, enfiando em seguida na cara do
idiota enquanto ele se contorcia uma galinha degolada Então ficamos ouvindo ele
sufocar, sufocar, sufocar, os pulmões esforçados na tentativa de puxar o ar que desse
mas não deu, caixão e vela preta para ele Menos um comunista pervertido no mundo
Menos um
Noga: Ele estava impenetrável até agora, não sei, sua cabeça protegida por uma massa
obscura, uma fenda fechada por sistemas negros, mas agora não, consegui ouvir o que
disse dentro dele, talvez seja o álcool o que desinibiu suas defesas Tudo claro para mim
neste momento
Guilherme: Depois demos um fim no corpo do puto, afinal, sabemos como fazer
desaparecer as pessoas Esse ninguém mais vê nem a sombra, nem o cheiro, nada,
absolutamente nada Quando desaparecemos alguém é como se esse alguém nunca
houvesse existido antes, como se ninguém nunca tivesse ouvido falar dele
Lili: Já pedi ao Marcos diversas vezes para me deixar participar de vez em quando, só
de vez em quando, mas ele diz que é arriscado, e que é melhor não Mas como eu queria
ver Senhor, como eu queria ver
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Noga: Meus Deus do céu... Seu Mário está precisando de mim Tenho que ir lá, para
ajudá-lo
Sílvia: Não sei o que pensar Talvez não tenham agido certo, mas, esse pelo menos
nunca mais vai fazer mal a ninguém
Marcos: Uma espécie de limpeza foi o que fizemos E ainda por cima nos divertimos
Lembro em semicírculo do falecido juiz assim como recordo de todos os outros
namorados anteriores de minha mãe – com ciúme e nojo – recordo seu passo dificultado
pela gota (era como se carregasse chumbo na batata das pernas), o jeito como coçava as
axilas úmidas (o jeito torpe), sua enorme e próspera pança que tentava a todo o custo
diminuir ao segurar o ar nos pulmões, lembro com clareza dos olhos sequiosos de um
são bernardo pedinte – assim como recordo daquele outro que trabalhava com ela no
escritório, um que falava cuspindo e que tinha dois alhos no lugar dos olhos – recordo
enraivecido e, engraçado, as lembranças deles chegam até mim tão nítidas que é como
se os visse agora – ao contrário das recordações de minha mãe, sempre fragmentadas
como se componentes de um sonho – talvez uma característica química de como realizo
a ordenação das lembranças dentro do meu cérebro – tudo aquilo que amo o faço
desesperadamente porque tenho medo de que o objeto do meu amor desapareça de
súbito na exata inversa proporção com que desejo que tudo aquilo que odeio suma da
minha frente, mas, o que quase sempre termina acontecendo é o objetivo contrário a
esses dois sentimentos puros que me consomem – não importa, recordo apenas (já que
páginas são feitas para isso) da noite em que chegou em casa com os iogurtes batizados
com soníferos, no rosto impressa a tentativa de nos passar um ar de ingenuidade, lembro
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de minha irmã mais velha ter nos levado ao nosso quarto para dizer que de jeito nenhum
nós deveríamos beber aquele iogurte enquanto ele lá, sentado na sala, esparramado,
saturado de orgulho, rindo à toa um coaxar de rã grávida – sentia ciúme porque pegava
nas coxas macias de minha mãe sem pudor algum ou incomodado com nossa presença,
e nojo porque buscava em minha mãe tudo aquilo que todos os homens babões àquela
época buscavam ao sair com uma desquitada: um sexozinho grátis e melancólico, um
lugar úmido e musgoso por onde entrar debaixo dos aventais sujos de margarina –.
conversando com minha mãe todas as filosofias baratas que homens como ele aprendem
feito lessem uma prescrição médica, ou um roteiro que os guiem por todos aqueles bares
sórdidos onde na certa conseguirão encontrar uma dona de casa deprimida e frágil e
levemente predisposta encostada em um balcão de madeira qualquer – mais nojo ainda
por ter sido esta a época em que aprendi que para todos os homens as mulheres não
passam de putas, putas, putas, putas, nada além de um lugar palpitante onde depositar
cansaço e porra e tédio ou toda sorte de frustrações e culpas e bem mais nojo ainda por
ter aprendido isso àquela época e exercitado durante tanto tempo em minha vida essa
lição cruel e quase hereditária – mãe, como a senhora pôde trazer esse monstro para
dentro de casa, não viu quem ele era (os olhos uma água parada nos seios de minha irmã
mais velha), não percebeu o jeito como fitou as coxas de sua filha mais velha naquele
dia em que foi nos buscar de carro na escola – um olhar de cachorrinho de borracha, a
língua uma cinta-liga quase para fora feito hemorroidas desabrochando seus cachos –
como pôde nos expor desse jeito – não fosse Cynara e amanheceríamos todos melados
de porra e suor negro, quem sabe minhas irmãs sangrando, violadas, tão pequenas e já
vermelhas nas coxas, quem sabe ele não tiraria fotos nossa, para distribuir entre seus
amigos pedófilos ou usar como moeda de troca entre eles – como pôde fazer isso com a
gente, merda, não senti pena dele quando soube o que nossos tios fizeram, gostei
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daquilo mãe, sabia, um gosto doce e salgado (agridoce) cresceu desde minha garganta
até a fenda dos meus lábios quando ouvi escondido eles dizendo como fizeram mãe,
gostei de ouvir os detalhes – lembro tão precisamente deles que descrevi exatamente
como aconteceu – esquartelar tive vontade de rir, mãe, de gargalhar, pensando em
como eu gostaria de ter estado presente no momento em que fizeram, ah mãe, não me
arrependo por isso nem me culpo de nenhuma maneira – penso em porcos sendo mortos
toda vez que recordo o artesanato dos detalhes da tortura – de nenhuma maneira mesmo,
acho que fizeram certo, que foram justos pelo menos uma vez na vida, nossa, penso tão
diferente do meu tio mãe, esse que agora está vomitando no banheiro quando...
Noga: Seu Mário, trouxe essa toalha para o senhor...
Azeredo: Obrigado.
Noga: E essa água aqui, tome, o senhor vai melhorar...
Azeredo: Como eles puderam?
Noga: Beba seu Mário...
Azeredo: Obrigado... o que tem nela?
Noga: Açúcar...
Azeredo: Ótimo.
Na sala, o silêncio incômodo e súbito logo seria quebrado mais uma vez, ainda que não
reprovador, não taxativo, ainda que um silêncio apenas, simples, breve, espécie de
intervalo entre um telhado e outro, uma janela e outra, luz refratada súbita no líquido
raquidiano...
Marcos: Sou assim também, aliás, é sempre em incrível solicitação...
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Lili: Quando o Bush sorri é certa a boucherie.
Guilherme: Pelo menos na época da Monica Lewinsky não acontecia essa matança
toda... deveria haver um busto em sua homenagem em alguma praça do Iraque... se é
que ainda existem praças por lá... de qualquer forma, quando Miss Lewinsky estava
com a boca ocupada não morreu um iraquiano...
Magno: Viva as boqueteiras.
Eurídice: Magno.
Marcos: Então perguntei a ele: o que se faz aqui? Ele respondeu: nada.
Sílvia: Nada?
Marcos: Era uma escola de natação.
Sílvia: ... vocês deveriam maneirar um pouco, não sabem como o Mário é sentimental
como só ele?
Marcos: Sei. E você não entendeu a piada não foi Sissi?
Guilherme: Não mude de assunto Sílvia, como é, o Leandro te bateu ou não te bateu?
Magno: É claro que bateu, não está vendo?
Eurídice: Magno... você gosta de botar mais lenha na fogueira não é? Gente, pelo amor
de Deus, é natal, faz tanto tempo que...
Lili: Concordo com a Eurídice.
Guilherme: Eu só quero que ela admita...
Sílvia: Admitir o quê? Se vocês sabem então porque perguntam...
Eurídice: Sissi...
Magno: Ela gosta de apanhar, não viram?
Eurídice: Magno: cala a boca droga.
Marcos: Deixa ele com a gente...
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Sílvia: Vocês não vão fazer nada entenderam? Nada? Eu gosto dele, gosto e pronto, e a
vida é minha e...
Guilherme: Tanto gosta que largou os filhos do jeito que largou só porque ele mandou
escolher: ou eu ou eles, não foi isso?
Sílvia: Foi sim, mas eu tinha o direito de reconstruir minha vida não tinha?
Marcos: Separada dos seus filhos?
Sílvia: Quem são vocês para me julgar?
Eurídice: Mas Sissi, ele te bate... por muito menos você largou o Egberto...
Guilherme: Valeu a pena?
Sílvia: Merda.
Magno: Vocês não estão vendo que ela gosta de apanhar?
Sílvia: E se gostar? O que é que tem?
Magno: Vai ver ela largou o primeiro marido porque ele não batia nela sabe? Com
gosto. Não foi isso Sílvia?
Eurídice: Magno...
Magno: Eurídice, vá a merda, não me diga o que fazer na frente dos outros, você é outra
louca, que coleciona bonecas porque não pode ter filhos...
Marcos: Vá com calma Magno...
Magno: Sim senhor General.
Lili: Olha, vamos mudar de assunto? O Mário está voltando do banheiro...
Sílvia: E se eu gostar quando ele me bate o que vocês têm com isso? Talvez eu goste,
talvez por isso recorde tanto daquela tarde onde o pai socava a porta trancada do
banheiro Ele a esmurrava, as orelhas peludas, chutava, enquanto eu escutando sua
respiração rápida, árida, bovina, estrangulada, gostava daquilo, mesmo sabendo que
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estava do outro lado com o cinto na mão, grosso, com fivelas abertas em metal, cinto
cilíndrico, típico de militar, feito para doer na pele e segurar as calças, ele rosnando
feito um cão tuberculoso, asmático, minha mãe na sala gritando Guilherme: se entrar
assim vai matar a menina se acalme pelo amor de Demorou tanto para o garoto tomar
coragem e me convidar para ir ao cinema Depois demorou o mesmo tanto ou mais para
que meu pai deixasse E nós só fomos ao cinema, só isso, mas todo mundo sabe como os
homens são, ele teve que contar vantagem a alguém, teve de dizer que tocou nos meus
seios enquanto assistíamos ao filme, ele teve que fazer isso, que mentir, senão, o que
diria aos colegas da classe? Mas isso não aconteceu pai, eu juro Mas não adiantou, e
vocês foram atrás dele, uma corrente de bicicleta na mão E abriram um talho na
cabeça do idiota Ah se ele soubesse do sangue escorrendo uma massa grossa Se
soubesse disso, do sangue, de vocês, sei que não teria dito, enquanto eu me agachava
próxima ao vaso sanitário, quase abraçada com ele, assistindo à tranca da porta ir
cedendo, cedendo, cedendo Meu pai cada vez mais nervoso e cada vez batendo mais
forte quando vi que logo ela cederia Então fui tirando a roupa, sim, fiquei nua, já sabia
que ia me mandar fazer isso Me antecipei, no instante em que a porta cedia, a tranca
quebrada, meu pai entrando furioso, o rosto de ferro inoxidável, apartado, as orelhas
crespas, o menino sangrando indo ao hospital, vinte pontos, uma cicatriz para o resto
da vida, da vida, meu pai trêmulo, confuso, violento, o braço descrevendo arcos para
trás, o cinto resvalando em tudo menos em mim Estava com tanto ódio que ficou cego
Foi quando me levantei oferecendo as costas a ele, que bateu, que bateu, que bateu, a
fivela do cinto abrindo minha pele, minha carne, manchando de sangue minhas costas
Ele não me tocou pai, Eu já nem mais dizia isso a ele, não importava, minhas mãos
agarradas na borda do vaso, meus lábios mordendo-se, os dentes que rangiam
porcelanas Pai, quando senti aquilo entre as pernas Pai, um molhado em círculos,
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aquele formigamento úmido, canceroso, meus músculos todos contraídos, a carne
deitando sangue e mais sangue desenrolando-se em um lençol vermelho que escorria
Pai, eu babava, os olhos revirados imersos em uma nata de pânico enquanto o senhor
me batia vigoroso, forte, másculo, coordenado, animal negro e molhado sobre mim,
sobre mim que gostava, sim, sobre mim que pedia mais, mais, mais, mais, enquanto
gozava, gozava, uma música entre as pernas me lambendo as coxas nuas, vermelhas,
eriçadas, recomeçadas em arrepios, pulsando moluscos dentro, sinfônicos
Eurídice: Tenho pena dele porque é aleijado, já nem sei mais se é amor o que sinto por
ele Talvez o amor tenha ido embora junto com suas pernas Sei que é só amargura isso
quando me destrata, quando fala de minhas bonecas Não posso ter filhos, Deus não me
concedeu essa graça, mas tenho o quarto repleto de bonecas, o plástico pálido do rosto
delas a me fitar, os olhos ocos, sem órbita, imóveis, vazios, mortos Prefiro elas a ter
que adotar uma criança Ele sempre insistiu para adotarmos uma, eu que nunca quis,
não sei, quero criar um filho gerado em meu ventre, apenas isso Antes de ter as pernas
amputadas, ele brincava, sempre foi brincalhão Toda noite trazia um menino de rua
para nossa casa, perguntando se eu não queria ficar com ele Meninos e meninas
sempre miudinhos, tímidos, magros, com fome Ele brincava com isso Sempre teve esse
humor negro Eu tinha pena quando olhando para aquela criança de olhos chorosos me
pedindo para ficar, alguns até me chamavam de mamãe, veja só Então puxava meu
marido para o corredor e pedia para ele nunca mais me fazer isso, que era maldade
comigo e com eles Mas ele sempre terminava fazendo, vez ou outra sempre trazia uma
criança abandonada puxando seu bracinho leve pela mão feito um cãozinho, um animal
de estimação O que eu podia fazer? Então lhe dava banho, jantar, depois mandava que
fosse embora, que voltasse para a rua, o Magno na sala se estourando de tanto rir
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Sempre teve esse humor negro, que foi ficando mais negro quando começaram seus
problemas com a justiça, quando a Receita Federal nos tomou quase tudo Ficamos
apenas com o carro e o apartamento O restante, foi tudo, a empresa quebrou, e logo em
seguida ele teve que amputar as pernas, um problema vascular Por isso eu não o culpo
e sou paciente com ele, com tudo Eu o amo, acho
Guilherme: Não sei o que acontece com eles... agora estão dizendo que Plutão não é
mais um planeta. Esses astrônomos... uma decisão anunciada oficialmente pela “União
Astronômica Internacional”, um nome pomposo, não acham? E fiquei me perguntando:
certo, Plutão não é mais um planeta, e daí? Minha vida vai mudar por causa disso?
Magno: A ciência só resolve problemas que antes dela não existiam, ou seja...
Lili: O importante para a astrologia é a hipótese de que no universo nada é acidental,
portanto: isso afeta sim a sua vida coronel, quer você queira quer não.
Azeredo: Sobre o que vocês estavam falando antes?
Eurídice: Nós?
Sílvia: Você está pálido Mário.
Azeredo: Passei mal mas já estou melhor... acho. Sobre o que vocês falavam?
Eurídice: Várias coisas...
Guilherme: Antes do quê, Mário?
Azeredo: Por que mudaram de assunto quando eu cheguei?
Marcos: Paranoico hein seu Mário?
Sílvia: A gente falava sobre o beijo gay...
Lili: Beijo gay?
Guilherme: Sobre os planetas...
Eurídice: Sim, sim, aquele que não aconteceu na novela das oito...
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Magno: Era só o que faltava.
Guilherme: Ah, se foi por causa disso a gente não precisava ter se calado, o Mário é a
favor dos veados não é Mário? Defensor inclusive daquela parada pornô que aconteceu
lá em Jerusalém...
Azeredo: De novo não Guilherme...
Marcos: Beijo gay onde? Não estou entendendo.
Sílvia: Na novela das oito Marcos, lembra? O último capítulo foi há dois dias...
Eurídice: Tinha um casal de homossexuais na novela, e o beijo entre os dois estava
sendo esperado para o final da novela...
Magno: Hoje em dia as pessoas esperam cada coisa não é? No lugar de esperarem a
volta de Cristo, por exemplo, esperam agora o beijo gay na novela. Cristo foi
substituído pela veadagem televisiva.
Lili: Mas não aconteceu não foi?
Magno: A volta de Cristo?
Guilherme: O Augusto deve ter ficado chateado.
Sílvia: Ele vem?
Magno: Cristo?
Eurídice: Não só ele, mas vários ativistas gays... Fizeram até passeata...
Magno: Essa é boa.
Guilherme: Mas é o que estou dizendo: até em Jerusalém.
Azeredo: Como você confunde as coisas Guilherme.
Marcos: Essa é a democracia...
Guilherme: Era só o que faltava: beijo de barbudos na televisão.
Lili: Eles não eram barbudos.
Magno: Não importa, só faltava agora mais essa: cota de beijos homossexuais na TV.
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Eurídice: Ninguém falou disso Magno.
Azeredo: E você não acha que eles têm o direito...
Marcos: Se fosse no meu tempo o direito que eles iam ter seria o da guarda montada
botando os cavalos para foder em cima.
Guilherme: É um país de pervertidos não?
Marcos: Precisamos é de um novo Voivoda.
Magno: Agora tudo hoje em dia é essa estória de cotas: cota para negros, para
deficientes...
Eurídice: Não cospe no prato que comeu Magno...
Magno: Esse verniz do politicamente correto é um câncer...
Azeredo: Acho que é justo, o sistema de cotas, para negros ou índios ingressarem na
universidade pública, por exemplo, corrige erros cometidos no passado, e falo de erros
gravíssimos, que todos nós conhecemos e que hoje se refletem na dificuldade que esses
jovens têm em conseguir um ensino superior de qualidade, ora, nosso sistema
universitário é um dos mais segregados que conheço, já que os mecanismos de exclusão
racial estão embutidos no próprio funcionamento burocrático do Estado e...
Marcos: Alguém deu corda nele?
Guilherme: Não fomos nós.
Lili: Talvez o Demiurgo.
Magno: Corrige nada, isso é papo furado de intelectual, essa merda só aumenta o
preconceito, o ódio, a amargura, onde já se viu, definir os direitos de uma pessoa com
base na tonalidade de sua pele, ou de alguma outra necessidade especial que tenha, isso
é atraso, e digo mais: não eliminará a porra do racismo, muito pelo contrário, só vai
aumentar ainda mais o conflito e a intolerância...
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Azeredo: Discordo, acho que é a única maneira de se atingir a meta da igualdade
universal dentro de nosso país, além do mais, as ações afirmativas são a figura jurídica
criada pela ONU para que se consiga atingir essa meta...
Magno: Falso argumento da ONU, o vestibular ou o problema do desemprego já exclui
muita gente, e colocar ainda mais empecilhos não vai fazer diferença alguma, só vai
aumentar o bolo da merda...
Eurídice: E você trabalha graças a quê?
Magno: Mas acho errado entendeu? Estou lá só porque não tenho pernas, só porque a
empresa precisa preencher a cota de deficientes físicos empregados senão não ganha
mais nenhuma licitação do governo. Por isso ando pensando em me candidatar a
deputado estadual nas próximas eleições. Meu slogan será: o único candidato que não
passará a perna no eleitor...
Azeredo: Só acho que a educação pública e a geração de empregos é uma obrigação do
Estado brasileiro, a tensão de que você fala já existe, o sistema de cotas não vai
aumentá-la em nada, antes vai contribuir para combater a desigualdade, pelo menos é
assim que eu penso e enxergo as coisas...
Magno: Pois enxerga e pensa errado.
Guilherme: Daqui a pouco vão inventar cotas para veados, para beijos nojentos de gays
na televisão...
Magno: Mas é o que eu acabei de dizer, não estou lá no meu trabalho por competência,
e sim porque não tenho pernas, e fui o mais competente apenas entre aqueles que não
têm pernas, ou braços, ou sei lá mais o quê.
Azeredo: E você não acha uma oportunidade?
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Magno: Oportunidade de quê? Sou café com leite lá meu amigo, não se iluda, todos são
condescendentes comigo, ai tadinho, eles têm pena de mim... Pena é o caralho, estou lá
só para servir de enfeite...
Eurídice: Magno...
Magno: Estou lá só para fazer o verniz do bom-mocismo da empresa, é uma troca de
interesses, entendeu? Essa merda toda.
Guilherme: A democracia é esta mesmo, uma troca de favores, todo mundo tem
preconceito só que esconde, por isso escancaro logo os meus. Não quero pagar de bom
moço...
Magno: Sei bem o que é isso, e sei como essa merda só aumenta o preconceito, é uma
distorção, já tive empresa lembram? E ela precisava de licitações também...
Eurídice: Vamos mudar de assunto?
Magno: E tinha essa maldita cota para negros, essa droga, onde já se viu isso? Empregar
um homem por causa da cor dele, e não de sua competência?
Azeredo: E você não acha justo, depois de tudo o que os afro-brasileiros passaram?
Guilherme: Afro-brasileiros, essa é boa.
Sílvia: Para de provocar Guilherme.
Guilherme: É que o Mário tem esse negócio de passar algodão doce nas palavras...
Azeredo: Porra...
Magno: Isso só aumenta o preconceito Mário, para para pensar... Quando a droga da lei
entrou em vigor, tive que arranjar uns negros para figuração...
Eurídice: Que ofensivo Magno, não fala assim.
Magno: E digo como? E todos os meus funcionários apontando para os recém-
contratados diziam: esse só está aí porque é negro. Você acha isso justo? Acha que
diminui o preconceito? Que é uma ação afirmativa?
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Azeredo: O problema é que você só está enxergando o lado negativo da coisa Magno,
não é bem assim que...
Magno: E existe outro?
Guilherme: Daqui a pouco vai ser cota para gays, anões, travestis se formando em
Direito e passando em concurso para juiz federal...
Marcos: Um inferno, uma merda. Nadaremos todos no Estige.
Sílvia: Gente...
Guilherme: Beijo de veados na TV, aquela depravação toda...
Marcos: Eis a democracia tão sonhada por vocês.
Guilherme: Pior que isso só uma parafimose.
Azeredo: E você queria o quê Marcos? A volta da ditadura?
Marcos: Não seria nada mal.
Magno: Cota para negros na universidade, para índios, para isso, para aquilo, veados
exigindo casamento no civil...
Guilherme: É a derrocada final.
Marcos: A extinção.
Azeredo: Vocês não entendem não é? Não entra na cabeça estreita de vocês que todos
têm direitos iguais perante a...
Marcos: E a maioria? Não deve ser respeitada?
Azeredo: Que maioria? A sua?
Guilherme: A nossa sim, a dos heterossexuais machos, brancos e casados...
Azeredo: O branco não é maioria em nosso país.
Magno: E eu sou a merda de um deficiente físico, mas nem por isso aceito tratamento
diferenciado para nada, o tratamento tem que ser o mesmo para todos, as oportunidades
têm que ser as mesmas...
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Marcos: Concordo em gênero número e grau com você Magno.
Magno: E se eu fosse um negro também não aceitaria essa merda.
Lili: Isso é racismo velado, às avessas.
Guilherme: Por isso é que eu sou às claras logo.
Augusto: Quando voltei de Portugal isso era o que eu mais temia: ter que suportar os
preconceitos, a inversão de valores, a deturpação, o desrespeito, as piadinhas sem
graça que com certeza eles fariam, sobretudo o Guilherme Não tenho mais estômago
para suportar tudo isso com um sorriso cínico na cara, não mesmo Nem estômago nem
saúde Os deboches Já passei pela via-crúcis quando era criança, não tenho mais
nervos para fazê-lo de novo Estou doente e fraco, morto, apodrecendo, só falta me
enterrarem, ou uma epidemia nova no mundo, ou um terremoto E eles me enterrariam,
tenho certeza disso Não importa se é Natal ou qualquer outra merda dessas Sei que
fariam questão de roer o restinho de amor próprio que ainda tenho, ou tinha, não tenho
dúvida nenhuma quanto a isso Em Lisboa, quando fui pegar o exame, demorei uma
hora para entrar, fiquei girando e girando ao redor do hospital, pedindo, rezando,
implorando a Deus que não fizesse isso comigo Mas Ele fez Tive calafrios enquanto a
enfermeira procurava o meu exame no meio de todas aquelas centenas de fichas Se não
estiver aqui fodeu, fodeu, fodeu, vão me encaminhar para a assistência social, falarei
com um psicólogo de olhos de assoalho sobre a minha doença e sobre como conviver
com ela da melhor maneira possível, como suportá-la E foi exatamente isso, e na
mesma noite liguei para minhas irmãs contando Droga Deveria ter ficado em Portugal,
morrido por lá mesmo Ele era tão bonitinho, como ia imaginar que estava doente? Faz
tanto tempo, mas ainda me lembro dele: loiro, os olhos verdes, pintor, musculoso, ativo,
uma delícia Tentei achá-lo para contar, mas não consegui encontrá-lo, ele não morava
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mais naquele endereço O mundo acabou para mim, ruiu argiloso, ninguém jamais
imaginará como é difícil o que passo diariamente, a falta de auxílio, de amor, o
preconceito, sem simpatia alguma, nada, nada além da desesperança intacta, do
silêncio, da solidão, convivendo com o medo das pessoas em lhe tocar, em entrar com
você em um elevador, das mães puxando seus filhos para longe de nós Sem trabalho,
sem dignidade, uma pobreza de tudo, uma inexistência, tudo frio em qualquer lugar,
aonde quer que você vá nenhum resquício de calor humano, nenhum Arruinado, triste,
catando migalhas de compreensão e de pena, de piedade A eternidade breve da
sobrevida, chega um momento em que você já nem fala mais, só grunhe, crocita, um
animal no lugar de um homem, um pequeno, andando de quatro, diminuído, sujo,
enojado, sozinho nesse apartamento miserável, tuberculoso, úmido, infestado de
sarcomas na pele Como posso ir lá do jeito que estou? Não posso Definitivamente não
posso
O relógio na sala estalou seu primeiro badalo novamente, seu novo primeiro badalo, sua
nota escoada, longa, súbita, a segunda um sussurro no escuro, entre sombras, um
sussurro, meticuloso e coordenado, a terceira uma voz grave ardendo compelida pelo
eco das anteriores, a quarta – som de nenhum lugar, vertebral, escondida em algum
anoitecer sinistro – a quinta trazendo Noga à sala, nas mãos uma bandeja de frios,
calada, pensativa, a sexta retornando com ela, ambas contraídas, derruídas no soturno de
alguma dor, a sexta uma tecla ascendente, uma cinza na pálpebra, com a sétima vindo
em seguida ondulando como trigo negro, queimado, a oitava a impressão de um pêndulo
badalando no vazio, no espaço entre nada e nada, o tempo um nó fixo nos âmagos, nos
espelhos, a nona e última nota completa e realizada ecoando metálica na sala onde todos
aplaudiam seus rancores e bebiam, e conversavam e lambiam seus lábios e
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pressionavam cigarros & charutos contra os cinzeiros mudos – a língua azul e rutilante
da fumaça bailando no ar um esqueleto desfibrado na própria intenção do gesto – um
movimento fútil de ventríloquos, de palhaços empalhados, dançando no tablado dos
acrobatas a morte simulada do nove, do nove número da iniciação, iniciação de uma
nova série de números dentro da geometria úmida do nojo dos presentes, da distância de
seu verniz social, de suas boas maneiras, faca limpa do assassino dando bom-dia (cesura
da esquizofrenia), o câncer tapeando nas costas, o nove, nona a água oculta, a nona água
oculta borbulhando ainda algures, invisível, consentida em seu presságio de vidro,
pressentimento de sangue, alimentada nas segundas intenções de todos os presentes, o
movimento invisível da etiqueta negra de quase todos...
Guilherme: Todos os ursos polares são canhotos, é o que eu li lá. Agora, não me
perguntem que pesquisador teve testículo suficiente para chegar próximo o bastante do
urso para lhe dar papel e caneta, porque isso não estava descrito na matéria, de forma
que estou boiando neste sentido tanto quanto vocês.
Lili: E aquela que você contou, a de que os elefantes são os únicos animais que possuem
quatro joelhos.
Marcos: Muito bom esse queijinho.
Guilherme: Vocês acham que eu estou brincando não é?
Sílvia: Ainda bem que você tem a Nó, não é meu irmão, para cuidar da casa, de você, de
tudo...
Guilherme: Nó? Ficou íntima dela de repente Sissi?
Eurídice: Vê se não enche coronel.
Magno: Meninos com nomes estranhos costumam ter mais problemas que meninas.
Ainda bem que a Noga é fêmea não é...? Ela é fêmea não é?
113
Lili: Ela trabalha aqui há quanto tempo?
Azeredo: Não sei, há muito tempo...
Sílvia: Desde quando elas foram embora não é?
Azeredo: Isso... Um tempo depois.
Guilherme: E aí virou baderna: coleção de borboletas, fotos de garotinhas nuas...
Eurídice: Que conversa é essa?
Magno: Até hoje não entendo o tiro que ela deu na cabeça...
Eurídice: Magno.
Magno: Que foi agora?
Eurídice: Isso é jeito de falar?
Magno: E tem outro?
Eurídice: Desculpa meu irmão...
Azeredo: Não tem importância...
Sílvia: Você deve ter sofrido muito meu irmão...
Azeredo: Ela tinha ido ao jantar onde reencontraria o pai dela...
Marcos: O saudoso Joca Platão...
Azeredo: Ela esperava muito por essa noite sabe? Fazia tempo que eles não se viam.
Sílvia: Nós entendemos meu irmão, nós...
Azeredo: Eu tinha comprado até um vestido para ela usar no jantar...
Lili: Que lindo.
Azeredo: Só que terminei não podendo ir com ela... Tive uma das minhas crises e não
deu para sair de casa...
Marcos: Você ainda tem esses ataques?
Lili: Nosso Dostoievski.
Azeredo: Nunca mais tive, agora estou tomando remédio...
114
Eurídice: Então não deveria estar bebendo não é Mário?
Lili: Deixa ele, é natal.
Azeredo: Mas ele não foi vê-la, ela ficou um tempão esperando e ele não apareceu.
Sílvia: Sinto muito Mário...
Azeredo: Eu sei...
Guilherme: E por que ele não foi?
Azeredo: Teve uma trombose no caminho e...
Marcos: Morreu entrevado em um asilo.
Eurídice: Meu Deus...
Magno: E por causa disso ela deu um tiro na cabeça?
Eurídice: Magno.
Magno: Não posso falar nada agora? O que ela fez então? Colocou um chapéu na
cabeça?
Sílvia: Dá um tempo Magno.
Lili: E a Ana, sua enteada?
Azeredo: Foi embora assim que completou dezoito anos, logo depois de ter ido visitar o
avô no asilo.
Sílvia: E por quê?
Azeredo: Acho que... O avô revelou a ela que a filha tinha sido estuprada, e que a Ana
era fruto desse estupro...
Marcos: Revelou como, se estava entrevado?
Azeredo: Escreveu em um papel.
Magno: A literatura tem dessas coisas...
Eurídice: Que crueldade, ela não precisava saber disso.
Azeredo: Mas soube... Talvez se não tivesse sabido, ainda estaria aqui comigo...
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Guilherme: Coisa que você adoraria não é?
Azeredo: O que você está insinuando?
Guilherme: Nada, nada, deixa para lá...
Azeredo: Meça suas palavras Guilherme...
Guilherme: Desculpa, desculpa, estava brincando, Charles Lutwidge Dodgson...
Sílvia: E isso é brincadeira que se faça? E que nome é esse?
Marcos: Ironia do destino não é Mário?
Azeredo: O que você quer dizer?
Marcos: Você sabe muito bem.
Azeredo: Como eu poderia imaginar Marcos?
Eurídice: Gente, tudo de novo não...
Guilherme: Pois deveria ter imaginado, todos os comunistas, todos eles, não passam de
uns pervertidos.
Azeredo: Ah, e vocês, o que são?
Marcos: É diferente Mário, você sabe muito bem disso, por favor, não nos compare
com seu amigo comunista, pedófilo.
Guilherme: Pervertido, canalha, lobo mau comedor de criancinhas...
Lili: Não seria “comedor de vovozinha”?
Guilherme: Para esse tipo de lobo de que falo a vovozinha não interessa.
Azeredo: Ele nem comunista era...
Sílvia: Quem é esse Charles não sei o quê não sei o quê Dogzon?
Azeredo: É Dodgson... Um fotógrafo inglês da época vitoriana...
Guilherme: Um tarado, isto sim.
Marcos: Sabia que ele foi preso na França?
Sílvia: O Dogzon foi preso?
116
Marcos: Não, estamos falando do amigo do Azeredo...
Azeredo: Ele não era meu amigo.
Marcos: Agora ele não é não é?
Eurídice: E porque ele foi preso?
Marcos: Caçador de borboletas.
Guilherme: É, ele abusava de menininhas em uma praça lá em Paris.
Marcos: Isso graças à liberdade que o nosso irmão Azeredo lhe deu.
Azeredo: Não posso prever o futuro, como eu poderia imaginar, me digam, como
imaginar uma coisa dessas?
Guilherme: Não sei, quem tem as fotos lá em cima é você, então você é quem tem que
nos dizer.
Sílvia: Vocês querem deixar o Mário em paz?
Guilherme: Sempre defendendo ele não é Sílvia?
Marcos: Você não sente remorso não Mário? Ele chegou a matar uma das menininhas
que ele caçava.
Eurídice: Que assunto mais tétrico, pelo amor de Deus...
Azeredo: E vocês? Não sentem remorsos também?
Marcos: Ora do quê...
Azeredo: Eu fui preso na época, vocês esqueceram? Sei muito bem o que vocês faziam
com os presos políticos.
Eurídice: Gente, esse assunto de novo...
Guilherme: Preso porque quis. Nós avisamos você do perigo...
Eurídice: Vamos parar gente, por favor?
Azeredo: Marcos, quantos homens e mulheres você matou para conseguir ser
promovido a general daqui a duas semanas?
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Marcos: Era o meu trabalho Mário, o meu dever, aquilo lá foi uma guerra.
Azeredo: Guerra? Não me faça rir.
Guilherme: Guerra sim senhor. Todos nós sabemos, inclusive você, que desde 1962,
portanto, desde o início do governo do João Goulart, havia no Brasil um movimento
pré-revolucionário de vermelhos, movimento este financiado pela União Soviética e
Cuba, e todos nós sabemos, inclusive você, o que esse movimento pretendia, ou será
que você esqueceu do “pelo menos dois Vietnãs na América Latina” de que falava
Guevara? E foi exatamente com este intuito que o desgraçado se dirigiu para a selva da
Bolívia, onde teve a morte que mereceu. Se nós não fizéssemos o que fizemos – e me
orgulho de tudo o que fiz já que evitamos com isso que o país caísse na anarquia –
outros fariam, e a gente estava na merda, meu irmão, portanto: não tivemos escolha.
Azeredo: Escolha? Nosso pai teve escolha, ele não participou dessa sujeirada toda, e
vocês sabem muito bem disso.
Marcos: E veja o preço que ele pagou.
Azeredo: Pagou por não ter sido covarde não é? Um preço alto, que ele pagou com
honra, assim como o Ednaldo...
Magno: Ednaldo é um idiota.
Guilherme: Um louco, e além do mais, você não quer enxergar a história com clareza
Mário, afinal de contas, é de conhecimento geral que o AI-5, por exemplo, foi uma
resposta aos atos terroristas desencadeados por vocês durante o ano de 1968... Foi ou
não foi?
Azeredo: Queríamos derrubar a ditadura.
Marcos: Nada disso. Mesmo que o Brasil vivesse na época em uma democracia vocês
atacariam do mesmo jeito, da mesma forma, e com a mesma violência, assim como
aconteceu na Argentina. Organizações terroristas são organizações terroristas, e o que
118
vocês queriam na época era instaurar uma ditadura muito mais violenta do que a que já
existia no Brasil, ou seja, a ditadura comunista. Portanto: louco você, louco o Ednaldo,
nosso pai, e...
Azeredo: Louco nada, disseram que ele era louco não é, depois que ele assim como
nosso pai escreveu aquela carta repudiando o ataque que vocês fizeram lá no Riocentro.
Sílvia: Vamos enterrar essas lembranças gente, pelo amor de Deus...
Magno: E ainda dizem que águas passadas não transmitem cólera...
Eurídice: Magno, não brinca com isso.
Azeredo: Enterrar como? Assim como vocês enterraram nosso pai?
Marcos: Ah, você também não o enterrou então?
Azeredo: Ouvindo as piadinhas do Magno: olha o sapato dele é o meu número, posso
tirar o par para mim, afinal de contas, seu Guilherme não vai precisar mais andar
calçado...
Magno: Falei alguma mentira?
Eurídice: Brincadeira de mau gosto Magno...
Sílvia: Por favor, Mário, olha...
Azeredo: Eu não posso esquecer isso Sílvia, lembro disso todo dia, todo dia, todo dia,
minha casa parece ser só habitada das lembranças desses mortos...
Lili: Talvez seja por causa do relógio...
Eurídice: Mas tente perdoar Mário, perdoar, esquecer, vai te fazer bem, experimente,
faça isso.
Azeredo: Não vou perdoar nada, esquecer nada, quer o quê? Que esqueça do nosso pai
morrendo queimado no hospício?
Guilherme: Se não nos perdoou porque nos chamou a todos aqui?
Marcos: É, para quê? Para ficar jogando merda na nossa cara?
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Guilherme: Agora entendo porque você está com as chaves do armário onde colocou as
maletas...
Sílvia: Que chaves? Que armário?
Azeredo: Não sou como vocês não, que resolvem as coisas assim, nem precisa se
preocupar com isso.
Guilherme: Assim fico menos preocupado.
Eurídice: Do que vocês estão falando?
Guilherme: De nada não, deixa para lá...
Marcos: Estamos falando aqui que o Azedinho nosso irmão foi capaz de imaginar que
nós iríamos machucar alguém aqui hoje, ou ele ou o Augusto...
Guilherme: Não chama ele de Azedinho que ele não gosta.
Eurídice: Mário, que é isso? Você achou mesmo isso ou eles estão inventando essa
estória só para...
Marcos: Ah, nós inventando...
Azeredo: Nunca se sabe não é? Queriam o quê? Os dois me chegam aqui armados até os
dentes...
Marcos: Nós já te explicamos isso Mário. Parece que esqueceu o que está acontecendo
na cidade...
Azeredo: E o que está acontecendo? Vocês viram alguma coisa no caminho até aqui?
Vocês deveriam assistir menos a televisão.
Sílvia: Mário, que é isso, nós somos irmãos, você acha realmente que eles iriam fazer
alguma coisa?
Marcos: Nós sempre protegemos nossa família, nunca que a gente iria fazer nada contra
qualquer um de vocês.
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Guilherme: Sempre tentamos preservá-los... Nosso pai... Até mesmo o Egberto, na
época em que namorava a Sílvia... Nós vimos a ficha dele no DOI-CODI e o avisamos...
Marcos: Exatamente, nós dissemos: olha Egberto, toma cuidado, eles estão sabendo de
tudo, ontem você esteve no bar do Teatro Popular com cinco pessoas, e vocês
conversavam sobre isso e aquilo...
Guilherme: Dissemos para ele não ir mais naquele bar, que era sujeira, senão ele iria
acabar sendo preso...
Marcos: E ele nos ouviu, nisso foi mais esperto que você Mário.
Azeredo: Então quer dizer que a família vocês protegiam, mas qualquer outro que não
fosse da família não era ser humano e vocês podiam...
Guilherme: Como você distorce as coisas Mário...
Azeredo: Só estou querendo entender.
Marcos: Você queria o quê? Lembra Sissi, que mesmo depois de você se separar do
Egberto nós ajudamos o pai dele quando ele teve aquele câncer na próstata?
Sílvia: É verdade, isso o Egberto deve ser até hoje grato a vocês...
Azeredo: Ajudaram como? Dando morfina para ele?
Guilherme: E você acha pouco? Pois saiba que aliviou muito a vida dele até o dia em
que morreu, aquelas dores horríveis...
Marcos: E morfina naquela época só se conseguia através do Exército, só o Exército
poderia fazer o pedido...
Azeredo: Vocês estão querendo se redimir. É isso?
Guilherme: Nada disso, só estamos dizendo que não somos monstros, e que seríamos
incapazes de machucar você ou o Augusto, ou qualquer outra pessoa da nossa família.
Eurídice: Então gente: vamos mudar de assunto?
Azeredo: Tudo bem...
121
Lili: Será que eles ainda vêm?
Sílvia: A Tereza, o Leandro, a Erinéia, o Ednaldo?
Azeredo: Acho que sim.
Eurídice: E o Augusto?
Azeredo: Espero que venha, ando preocupado com ele.
Magno: Logo, logo, vamos ter duas mongoloides correndo pela sala.
Eurídice: Magno, que grosseria.
Magno: Não enche Eurídice... Você tem sorte sabia? Melhor não ter filhos do que parir
duas âncoras para carregar para o resto da vida amém.
Eurídice: Você é um grosso.
Marcos: E a filha da Erinéia, será que vem?
Magno: Acho difícil, aquela anoréxica prefere ficar em casa para não ter que sair e se
arriscar a comer alguma coisa...
Eurídice: Magno você...
Magno: Essa família é meio louca não é? A única que teve filhos saudáveis fez questão
de se desfazer deles, não é Sílvia?
Eurídice: Porra Magno... Desculpem.
Sílvia: Será que nós nunca vamos conseguir conversar direito hein, como uma família
normal?
Azeredo: Acho que tem muito ressentimento guardado entre a gente não tem? Acho que
é isso.
Lili: Mas isso tem em todas as famílias...
Magno: Mas como nessa aqui eu nunca vi igual.
Guilherme: Alguém aí aceita mais desse queijinho? Está muito bom, muito bom
mesmo.
122
Um breve silêncio novamente imposto entre eles, um breve trismo coletivo – talvez um
ataque súbito de tétano – a mesma água oculta deslizando na fresta de algum lugar que
não aqui, que não este, água de jorro lento e tríplice – todos pensativos e de orelhas
separadas, as sobrancelhas franzindo um ruído ântero-interno de violência, os olhos
desapiedados, alguns rangendo os dentes baixinho uma serrilha quase invisível, quase
inexistente, feito algo não tocado ainda, nada tocando além de um vidro leve ao redor da
pálpebra. Estranho notar esses detalhes, que aqui desenhados se aplicam ao fenômeno
da sincronicidade estudado por Jung através do método das formigas brancas – a
perversão arquitetada, enfim, de um observador isento, imaculado, frio, notá-los
insulares em suas perversões, em seus conceitos tortuosos, como se inventados por algo
ou alguém, um segundo deus ou Demiurgo, como se personagens de algum conto ou
romance, cada um deles negligente com sentimentos que não os próprios, sem a menor
esperança de compreensão em seus movimentos graves executados, operísticos, que
gesticulam entre si, estranho notar isso, que a esposa do quase general não mudava mais
de feição quando falava, quando falou: Mas isso tem em todas as famílias como se seu
rosto já estivesse acostumado ao ambiente, aplainado a ele, emoldurado, ou fosse como
um desses meses próximos ao final do ano, um que desfolha seus dias tão devagar que
seu movimento passa a ser quase imperceptível no calendário, estranho notar isto: o
aleijado sentado em sua cadeira cada vez mais inquieto, mais inquieto, convulso, em seu
estado triste, os lábios amassados feito cigarros mordidos, páginas dobradas, inquieto e
convulso como tivesse pernas e estivesse prestes a levantar-se na intenção de tirar
alguém para dançar, quem sabe para dançar uma varsoviana, que é um misto de
mazurca e polca (só que em compasso ternário) e, ainda que não houvesse música e,
ainda que esse silêncio ateando fogo em tudo, em tudo (agora eles voltam aos poucos a
123
conversar), ainda que o aleijado odiasse sua mulher, esta sentada próxima a ele (ela
quem primeiro quebra o silêncio, começando a falar) larval, essa que sempre o
reprovava na frente de todos, essa que ele odeia por ter pernas em seu lugar, por isso e
pelo fato de ser seca, infértil, desgraçada, desgraçada por esses irmãos loucos e
orgulhosos, todos mais sacripantas que o próprio Sacripante, dois assassinos e um
pedófilo, dois torturadores e um amigo de pedófilos, o outro um homossexual
soropositivo, amargurado, o hálito de cortiça, sozinho, pensando em suicídio, o outro
um que possivelmente não virá, não virá, ao menos não ainda, ou antes destes que estão
prestes a chegar, minha mãe também na sala, calada, pensando em algo na certa sem
importância, a língua saracoteando dentro da boca fechada, úmida, os olhos
enlouquecidos e tímidos olhando para baixo, as mãos separadas uma em cada coxa
(como guarda-chuvas), talvez pensando no homem que ela ama, sim, ela o ama, talvez
pensando no homem que ela escolheu no lugar dos filhos, sim, ela o escolheu, escolheu
suas grosserias, sua violência, seus ciúmes, sua loucura, sua licantropia, sua porra
viscosa entre as coxas sonolentas, seu dinheiro e segurança, seu peso asfixiante sobre
ela, o roçar áspero de sua barba densa e negra, negra, negra, e crespa, de duras cerdas,
ainda que só ela soubesse o porquê de tê-lo escolhido, sim, só ela sabia, sabia de sua
filha mais velha crescendo uma vertigem de serras despontando, violácea e bela, de ela
crescendo despertando os olhares dele, olhares aziagos e desejosos, entorpecidos pela
possibilidade apresentada, a possibilidade de um corpo inofensivo e casto crescendo em
progressão geométrica pétalas a olhos vistos, desfolhando, desfolhando, desfolhando o
código iode do corpo de uma vítima macia e rosada, quente, quente e indefesa,
dependente dele, só minha mãe sabia disso, só ela havia notado, por isso fez o que fez, o
que julgou melhor fazer, e sem pestanejar, e sem se arrepender, e com uma resignação
espantosa e firme, nunca vista. Era como se fossem personagens eles ali naquela sala
124
não mais silenciosos, erguida na sala com o relógio alemão e as cortinas imóveis uma
acrimônia velada, cortinas imóveis pelas janelas fechadas, cada um deles agora
rememorando entre as conversas paralelas um passado presente em cada contorno
daquela casa, certo, menos o aleijado e a mulher do general, e menos Noga, que na
cozinha sentada em uma cadeira acendia um cigarro na boca ligada do fogão, na boca
que assava um pernil suculento, não, menos eles, falo dos irmãos aqui, dos irmãos, cada
um imerso em suas próprias lembranças, em sua própria versão dos fatos, a memória
uma água deslizando para vários caminhos, cada um deles uma ilha, uma ilha, separados
e tristes, um pedaço do mar cortado por uma barbatana, um espelho fendido por uma luz
fria, uma luz fria, uma...
Azeredo: Ela subiu estrepitosa os degraus embora não tenha sido ouvida, como se
calçada nos próprios ruídos ou levitando, ao menos acho que foi assim, levitando,
porque só depois escutei a porta batendo no escritório, um barulho afunilado
diminuindo, esse o primeiro ruído que ouvi mal tivesse retirado as mãos de cima das
coxas rosadas de sua filha Ela deve ter visto o que fazíamos lá em cima: o vestido
vermelho levantado um pouco acima de suas coxas adolescentes, rosadas, macias,
flanela de alvéolos rompidos, não sabia que chegaria tão cedo, não foi culpa minha,
não mesmo, nem erro de cálculo isso foi, antes um imprevisto que se esqueceram de
representar na incógnita da equação, da equação derivada de processos numéricos
dependentes do significado supostamente inerente ao número calculado nos eixos das
constelações e do movimento dos planetas, certo, então saltei no cubo do quintal
ouvindo ao cair o som escuro do estrídulo dos gravetos secos um a um quebrando sob
meus pés descalços, afinal, não tive tempo de colocar os sapatos e saltei, e enquanto
avançava rangendo através do espesso das trevas feito uma marcha cromada de botas
125
crustáceas numeradas acumulando ruídos contrácteis de grifos de alumínio ao tocarem
o chão eu pedia a Deus que não, que não fosse, que houvesse me enganado, talvez, ou
que tudo não passasse de um mal entendido, merda, um grande mal-entendido quando,
depois disso, a janela do escritório sendo aberta do lado de fora, aberta por minhas
mãos ansiosas, crespas, suadas Ela estava sentada de costas para a janela, de costas
por onde entrei, de costas para a luz que entrando comigo lambeu-lhe límpida os
cabelos úmidos, soltos, jogados para trás, só então pude notar incrédulo que o revólver
brilhava metálico já em sua mão, direita, trançado entre seus dedos nervosos o gatilho,
vértice musical e estreito, de tambor cheio, sempre o tambor cheio: Ana, eu disse, mas
apenas isso, porque ela: Ele não foi, ele não foi ao jantar, e você, seu grande filho da
puta... Talvez se tivesse dito algo além, não sei, tentado me desculpar, mas não, o
revólver apontado para sua cabeça me pareceu também a única alternativa, a melhor
Por que não apontou para mim? Por que, eu pensei, o tambor girando com facilidade,
afinal de contas, eu sempre colocava óleo nele
É como se estivessem dormindo, ou sonolentos ainda, acabados de acordar,
espreguiçando- se lacertílios, iluminados por uma lucerna cada vez mais estreita,
larvais, ainda naquele tédio adormecido onde movem-se em uma espécie de sono
salgado aspergido nas têmporas, envolto em éter os sonos, escamas, cerâmicas
numéricas, um sono onde não se envergonhassem de nada, de nada, a baba no meio dos
lábios bilaterados, feito estivessem imaculados, como se nunca houvessem existido
antes do tempo daquela sala, tempo contado por aquele exato relógio alemão, vivo, frio,
tempo em que permaneciam cada um deles agarrado ao seu próprio discurso, sobretudo
o dos pensamentos, assim como um afogado segura a boia para se salvar, telegráficos,
ou conversando entre si feito sonâmbulos, não sei, talvez seja apenas uma impressão
126
minha, não sei ainda, impressão de que estão se consumindo na mesma medida em que
se reinventam, assim mesmo, feito um pulmão funcionando com apenas cinquenta por
cento de sua capacidade, mas, talvez eu esteja enganado, entorpecido pelo fabordão que
se inicia aos poucos, embora essa violência voluntariosa e implícita corrobore com o
que penso, uma violência latente que cada um deles possui como um cacho oculto de
espinhos, de lâminas, oculto, alguns trazendo misturadas a ela uma luxúria doente,
furtiva, comprometida, sim, todos parecem comprometidos com algo, com algo que não
a verdade, antes a invenção de um estado onde possam permanecer inocentes, em estado
bruto, sem culpa alguma, inconfessáveis, para sempre dentro deste sono que não se
explica, não se mede, sono apenas sentido, ao redor dele um temor estreitando a pressão
atmosférica. Lembram caricaturas de si mesmos, pois se debatem na superfície
chafurdando seus focinhos no pânico, asfixiando suas guelras, equiláteras, sonâmbulos,
e são caricatos ao falar, ao realizarem qualquer gesto, caricatos como se houvesse uma
mão os conduzindo acima das páginas, da respiração das linhas, uma mão para além do
zero da asfixia torpe da sala, para além deles, lagartos e adormecidos, algo para além do
centro onde aí sim, eles desovam suas memórias rancorosas...
Guilherme: Talvez eu desconfie do que se passava de fato nesta casa depois que a Ana
morreu, merda, não deu para não notar o incômodo da menina quando no enterro da
mãe o Azedinho a segurou nas mãos pequenas e frágeis daquele jeito licencioso dele
Agora essa coleção de borboletas espetadas para confirmar minha tese E aquelas fotos
então? Tanto é que assim que pôde sair daqui ela desapareceu no mundo como se
nunca houvesse existido antes Imagine só uma menina daquelas à disposição em casa,
o Azedinho deve ter feito a festa É como se ter um cão pequeno e obediente, grato, um
para coçar quando se tiver vontade, coçar com preguiça o chinelo roçando em sua
127
barriga áspera Eu mesmo não sei o que faria se no lugar desse meu irmão Por isso não
o recrimino, não o culpo, essa a principal diferença entre nós Por isso não gosto
quando ele nos julga desse jeito, quando nos recrimina Quem ele pensa que é para
fazer isso? Ele não sabe o que teria feito se no nosso lugar Conhece o Mal de ouvir
dizer, apenas isso Detesto e tenho nojo desse tipo de gente hipócrita sempre pronta
para apontar o Mal nos outros sem nem ao menos supor o que faria se estivesse um dia
nas mesmas condições favoráveis para praticá-lo por um minuto que fosse, um
segundo... Você, o que me diz disso? Eu, do meu lado, detesto esses carolas, e os
detesto por não conseguirem sequer imaginar o que se passa na cabeça daqueles que,
como eu, o Marcos, e outros, vivem e respiram do outro lado, do extremo sombrio da
vida Os que julgam o Mal sem nunca tê-lo exercido merecem o meu desprezo, o meu
sarcasmo, as minhas piadinhas sem graça, mesmo aqueles que o exercem sem sentir
sua grandiosidade, sua excitação e benefício Esses são os piores, porque hipócritas,
pequenos, cerebrais, porque não confiam em seus instintos, não passam de
animaizinhos cegos de si mesmos, por isso são moralistas, juízes, assim como esse meu
irmão, a língua sempre adiantada para mal falar de outros que não ele mesmo, sendo o
Mal para ele a medida de tudo aquilo que se encontra fora de suas aspirações
bondosas, doentes, imaculadas Meça suas palavras foi o que me disse, imagine só, o
filho da puta canastrão
Talvez a mão seja a minha, sim, mão que como Sepharial vagando à noite em seu corpo
de luz vague por essas linhas ajustadas em silhuetas feito céus vazios desaparecendo aos
poucos no horizonte; Sepharial, o vagabundo maravilhoso que comercializava sistemas
astrológicos para predizer vencedores de corridas de cavalo.
128
Eurídice: Desde que perdeu as pernas ele vem piorando cada vez mais de humor, cada
vez mais e mais se fechando em suas negruras, seus azedumes, mastigando seus
rancores, suas azias, caindo em seu poço escuro e enervado e o que é pior: me levando
junto na queda Faz tempo não sei o que é um carinho seu, uma palavra mais leve que
fosse, nada, e agora quando olho para esta sala, para esta escada que nos leva até os
quartos, eu indo a um quarto em específico onde estou vendo meus irmãos mais velhos,
estes mesmos, espancando o Augusto com um cinto desafivelado, penso que talvez este
carinho que mendigo e que agora nem mesmo o meu marido me faz mais, nunca tenha
existido de fato, não senhor Do meu pai lembro apenas da mala forrada e sempre
pronta Mal fechava de tanto que cheia de gravatas, giletes, relógios e línguas-de-sogra
Do meu pai recordo as prisões constantes, e de como o clima em casa ficava pesado,
tenso, depois disso De minha mãe também nenhuma demonstração de afeto, estando ela
sempre entretida entre seus terços, seus tédios, seus vinis do Roberto Carlos, suas
noites de segunda-feira ligada no programa da Hebe, isso quando não ajoelhada e
contrita frente a um Cristo de madeira roído por cupins e talvez por isso de olhos
chorosos, fixos, minhas irmãs sempre melancólicas, úmidas, todas menstruando juntas
na mesma data, o ralo do banheiro constantemente entupido de pelos pubianos, minhas
irmãs sempre tristes e com medo, receosas, talvez Sílvia, sim, uma ou outra vez alegre,
engraçada, leve, entusiasmada com algo, mas isso por causa de sua loucura, não sei,
ela sempre me pareceu, e a todos nós, meio louca, alheia, sorte dela e agora, veja o que
fez com os filhos, a leveza com que se desfez deles, o desprendimento Veja você um
detalhe: à minha irmã, que fez a atrocidade que fez com os filhos, Deus presenteou com
a saúde necessária para ser mãe quantas vezes quisesse... Se estivesse no lugar dela eu,
eu nunca, nunca, nunca, nunca, teria feito o que fez
129
Sílvia: A primeira lembrança que tenho do meu ex-marido é aquela onde estamos em
nossa primeira noite de casados Eu dentro do banheiro do quarto daquele hotel de
mármore frio ensaboava meu corpo como se o amanteigasse para ele, para ele que me
esperava ansioso deitado na cama A porta trancada, eu agora perfumando meus
cabelos longos, negros, ainda tímida e temerosa com o que estava para acontecer
sentia arrepios por todo corpo, afinal, esta seria a noite em que finalmente perderia o
selo tão bem protegido por todos os homens de nossa família, selo o qual, segundo
minha mãe, era minha única garantia de casar com um bom partido e sair de casa, no
meu caso, um engenheiro formado, de futuro promissor, altissonante, este mesmo, que
me esperando um copo de vinho na mão, afrouxava o colarinho para respirar melhor,
sequioso do meu corpo como devem ser todos os homens que se casam, ainda mais
naquela época, naquela noite em que coloquei a camisola de seda transparente, a
camisola uma ossatura maviosa de vidro a me delinear as curvas, a carne que pulsava
jovem, aflita, molhada, uma agonia de hormônios sendo esgoelados, eu em frente do
espelho imaginando cada detalhe de logo mais, cada um deles e ainda que
absurdamente pensasse no meu pai, sim, em seu cinto me cortando as costas nuas,
brancas, merecedoras, e ainda que estivesse demorando porque temerosa de lhe fazer o
pedido: Você não gostaria, Egberto, de antes de qualquer coisa me bater com seu cinto,
ah, afinal, eu acho que mereço isso... Essa a primeira lembrança que tenho do meu ex-
marido, a de quando acabada de sair do banheiro me deparo com ele dormindo bêbado
na cama, em posição fetal, deitado como uma concha sem nem ao menos ter tirado os
sapatos sujos, roncando um cão em contralto com tuberculose, o hálito azedo de vinho
se elevando desde os lençóis enquanto olhando para ele eu pensava: Este é o homem
com o qual passarei o resto de minha vida, mas, não, não apenas essa lembrança
Recordo de ter dormido contrariada ao seu lado, insatisfeita, seca entre as pernas,
130
decepcionada, quando no meio da noite ele me acorda já em cima de mim, grunhindo, a
camisola rasgada, trôpego a balbuciar salivas em meu ouvido, algo assim tão rápido
quanto dolorido, feito tivesse montado em cima do meu corpo para saltar de um
obstáculo, me enfiando entre as pernas áridas e desestimuladas aquela agonia surda,
aguda, pequena, rápida, rápida como um sapato de palhaço adiantado Saltado o
obstáculo, ele deita-se ao meu lado e volta a roncar gostoso como se acabado de urinar
assoviasse uma canção grosseira, monocórdia Este é o homem com o qual passarei o
resto da minha vida, pensei novamente, as coxas pegajosas e frias, cobertas de sangue
e de porra Diga você o que faria no meu lugar Outra lembrança é aquela em que o
espero no portão de casa, o portão onde fico plantada por horas, o portão para aonde
me dirigi perfumada, de banho tomado, de calcinha nova e cabelos penteados, o mesmo
portão de onde assisto os carros trafegando velozes na exata medida em que começo a
suar, a feder, em que meus cabelos começam a se despentear no vento, no vento quente
e cromado que serrilha as calçadas, a calcinha desbotando de tanto esperar, esperar,
esperar, esperar até o momento em que chegue bêbado e com fome, tropeçando nas
próprias pernas, e não com fome de mim ou torto de amor, a barba ainda manchada
pela espuma da cerveja, a gola amarelecida da fumaça de tantos cigarros Diga você
com um homem desses dentro de casa, engordando e parindo filhos, engordando e
parindo filhos, os seios caindo como se natimortos, a cicatriz da cesárea através da
qual monstros foram cuspidos, monstros gerados no sexo rápido, áspero, malfeito, foda
de se fazer as malas, de deixar você se sentindo uma espécie de tubo de borracha, de
vala, de garrafa vazia sazonalmente preenchida, preenchida e enojada O que você faria
no meu lugar? Pois fiz a mesmíssima coisa, e fiz porque merecia algo melhor que
aquela mecânica de nódoas, que aquele cotidiano fedendo à banha de margarina E
quando me separei, todos me recriminaram Você tem três filhos, meus irmãos diziam,
131
enquanto eu colocava a meia-calça negra para sair Vai deixar eles novamente com
mamãe? Ela não tem mais idade para isso, mas, saía mesmo assim, e saía porque
queria saber o que era gozar, mas gozar mesmo, com um homem no meio das pernas
Eu precisava disso, eu merecia Gozar como gozam as putas, com eles me batendo nas
coxas, me dando surras de cinto, tudo com meu consentimento Até o dia em que o
encontrei naquele bar, bebendo aquela garrafa de cerveja Um homem enorme,
monstruoso, os olhos másculos, severos, a barba espessa e negra, o cabelo castanho,
fumando um charuto enfiado nos lábios grossos, na expressão impiedosa, impávida,
Sou médico, ele disse, a voz manchada de cobre, envelhecida, o pescoço um tronco de
árvore Você tem três filhos Sílvia, não pode... Então decidi não tê-los mais, não ter
mais nenhuma concorrência entre eu e ele, entre minha felicidade e eu mais nada que
me impedisse de alcançá-la, a língua grossa que enfiava dentro de minha boca uma
serpentina coberta de cerdas úmidas, o jeito como me segurava as ancas quando
montada sobre ele agonizava como nenhuma mulher agonizou antes de mim, seus
ciúmes, sua violência, seu sentimento de posse em relação à mim, seu machismo, tudo
me excitava e ainda hoje me excita Um homem finalmente, um que tome cerveja de
modo ruidoso, um que me mande lavar suas cuecas sujas, amarelas, um que me
ordenasse cozinhar nua para ele, me dando tapas na bunda, me enfiando o pau na boca
logo pela manhã, e logo depois de urinar metálico no banheiro, grunhindo satisfeito
Mas você tem três filhos... Não, não tenho mais, eu disse, sim, eu disse isso, eu havia
feito minha opção
Augusto: Para mim não existe cura, nem redenção, nem piedade, nem retorno, nada,
nada, além disso que estou vivendo: nada Acabou, a doença do meu corpo é cúmplice
da do meu espírito Não há mais para aonde correr, tudo estreito e sem recuo Lembro-
132
me de quando pequeno ter prometido para mim mesmo que assim que pudesse viajaria
para longe de todos eles, viveria minha vida em outro lugar, para só assim conseguir
respirar melhor, ser livre, livre, livre, menos asfixiado Mas não deu certo, e aqui está o
que sobrou de mim no meu retorno: nada Você, se pudesse me ver como eu me vejo
refletido nesse espelho, talvez, talvez, não sei, não sei o que estaria pensando, afinal,
somos diferentes, mas para mim, para mim não há outra saída... Talvez este seja o
único desenlace possível, dada as circunstâncias em que me encontro... O que será que
se passou na cabeça de minha mãe quando ela fez? Sim, ela fez, tenho certeza disso,
absoluta Como será que é do outro lado? Existirá outro lado? Você, o que acha disso?
Por mais estranho que isso possa parecer, morrer dessa maneira é uma ideia velha,
uma doença do raciocínio As giletes estão aí, afiadíssimas, as comprei hoje para fazer
a barba em casa, sim, para ir barbeado ao jantar de Natal com minha família, só que
aos poucos, aos poucos, fui enxergando outra serventia para elas E porque não?
Morrer é uma possibilidade sempre reconfortante Não, não sou um pessimista Só estou
cansado, cansado e inocentíssimo Minha mãe poderia ter feito algo na época, mas não
o fez, preferiu ficar rezando seus terços e pedindo que Deus intervisse em tudo Ora
merda de Deus Minha mãe rezava enquanto meus irmãos me espancavam no quarto ao
lado A criatividade simples com que me batiam, pancadas sem imaginação alguma,
sempre nos mesmos lugares, sempre a paciência de um neurologista o que ambos
revelavam ao conseguir me espancar por tanto tempo Achavam que assim me
consertariam, imagine, como se o que sou pudesse ser consertado de algum jeito Agora
esses dedos rígidos segurando o cigarro, a espera da coragem necessária para segurar
a navalha e... E por que não? Nada mais em mim coincide com a leveza natural da
vida, nada mais Talvez deixe um bilhete, sim, ou talvez não Meu silêncio talvez seja o
melhor a se dizer para eles, esse meu desprezo Mas gostaria de deixar algumas linhas
133
para eles, mas, o que dizer? De que maneira dizer esse meu nojo e esse meu ódio? Não,
talvez não diga nada Melhor assim: nada Desaparecer apenas, desaparecer, assim,
talvez desapareçam comigo todas essas lembranças Cada homem é a soma de suas
memórias, e as minhas me assombram até hoje, como um inferno íntimo e reticente, e
as minhas estão me destruindo aos poucos, me corroendo emparelhadas à minha
doença essas lembranças que não me largam um só minuto, lembranças de uma família
que é, para mim pelo menos, um monótono e particular moto-contínuo gerador de
esquizofrenias E ainda têm a pachorra de insistir em dizer que apenas Sílvia é louca,
porque apenas ela fez o que fez e etc., quando na verdade todos nós somos loucos,
todos, sem exceção, todos desesperados, infantis, maldosos, frios, paranoicos Antes
dela, apenas o pai era o louco, o infestado pela lepra que subia nas grades de cerveja
para bradar contra a ditadura Depois, quando morreu, tiveram que erigir outro louco
na família, um a quem apontar o dedo Meu pai morreu como um palhaço, sem ter visto
a democracia pela qual tanto lutou ser instaurada em seu país... E que bela democracia
não? Você, o que me diz? Todos os assassinos livres, perdoados, dentro dos quartéis
fazendo merda nenhuma Aqui fora o governo dos ladrões, dos corruptos, aqui fora os
canalhas dirigindo tudo, legislando em causa própria Não temos para aonde correr,
não há alternativas, horizontes, esperanças, nada a que se agarrar a não ser a morte
Além da morte, nada, nenhuma possibilidade que se vislumbre, tudo um grande tédio
onde estamos todos imersos, todos, sem exceção, e onde aqui estou eu, pronto para
fazê-la, para executá-la, a morte
Marcos: Quem esse poeta pensa que é para falar comigo desse jeito? O que ele quer
dizer me comparando com aquele seu comparsa pedófilo e comunista? Fiz o que tive
que fazer e não me arrependo disso E quer saber? Eu gostava de fazê-lo, de cumprir
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aquelas ordens O país seria outro se tivesse permanecido em nossas mãos Todos esses
pervertidos, esses canalhas, estariam agora afundados no mar Nossa, essa era minha
parte preferida, atirá-los ao mar, com um bloco de cimento de quatro quilos preso aos
seus pés Nós decolávamos sempre que conseguíamos juntar pelo menos uns dez filhos
da puta daqueles, afinal, não podíamos desperdiçar combustível Eles já sabiam o que
ia acontecer, então rezavam, choravam, alguns imploravam, ficavam desesperados,
desmaiavam, um exagero, enquanto nós ríamos de rachar a mandíbula Sempre me
encarreguei de empurrá-los, e um por um, lá de cima, quando o helicóptero já estava
sobrevoando o mar alto, aberto, furioso Voos sem registro Fantasmas Gostava de
perguntar: como você se sente, sabendo que vai morrer? Sim, sempre tive essa
curiosidade de saber como era, embora não fosse nem preciso perguntar, a resposta
estava estampada nos olhos de cada um deles, mas eu queria os detalhes, ah, os
detalhes A queda era sempre bonita, vertiginosa, caíam como se dedilhados no ar,
leves, azuis, até se estilhaçarem lá embaixo, feito insetos colidindo com um espelho
Então desapareciam nas espumas, afogando-se engolidos, para nunca mais Ao
primeiro que caía seguia-se o desespero animal e furioso dos demais Quando viam que
não estávamos brincando, e como poderiam pensar uma coisa dessas, a coisa era bem
pior, sempre bem pior Alguns urinavam nas pernas, outros cagavam, trêmulos, o
helicóptero depois ficava em um fedor insuportável E aquele que me pediu para rezar
antes de ser empurrado? Disse a ele: reze no caminho Ah, reze no caminho, essa foi
boa Para quê rezar se vai se encontrar com Deus daqui a pouco? Você já imaginou a
sensação de dispor da vida de alguém assim desse jeito? É maravilhosa Uma sensação
irracional, indescritível em palavras, que mexe com todos os nossos nervos melhor que
uma gozada Depois, era apenas ir para casa e tomar um bom banho, conosco a
sensação fácil e nítida do dever cumprido Isso
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Guilherme: São cinco casas de diferentes cores, e em cada casa mora uma pessoa de
nacionalidade diferente e, além disso, todos os proprietários bebem diferentes bebidas,
fumam diferentes tipos de cigarros, e têm diferentes tipos de animais de estimação... a
pergunta é: quem possui um peixe? Einstein – é este o nome que você disse, não? –
propôs esse problema no início do século vinte e afirmou que noventa e oito por cento
das pessoas que tentassem resolvê-lo não conseguiriam. Sujeitinho mais patife, não
acha?
Lili: White Rabbit... Quando ela tocava todo mundo ficava com vontade de tirar a roupa,
lembra? Bons tempos aqueles. Adolescência bem ruidosa aquela: xumbergar, aterrorizar
sempre... Vou ver Cristina, vou ver Cristinaaaaaaaaa...
Marcos: O método era o seguinte: em cada uma das caixas de fósforo se colocava
formigas pretas; mil na primeira, dez mil na segunda, e cinquenta na terceira; acontece
que em cada uma das caixas se colocava apenas uma formiga branca. Então se fechava
as caixas e se fazia um furo em cada uma delas, um furo pequeno o suficiente para
passar apenas uma formiga por vez. A primeira formiga a sair da caixa era sempre
branca.
Eurídice: Foi o que acabei de dizer, não foi? Você não faz ideia da vontade que tive de
rir naquela hora, imagine. Mas nós não podemos rir, afinal de contas, toda a conversa é
gravada, então tive de escutar até o final – e segurando o riso com uma das mãos em
concha – o cliente dizer que tinha decidido usar o seu Philips Shave ação dupla novinho
em folha na região do saco escrotal, ih, ih, ih, acrescentando em seguida que não havia
obtido sucesso – nossa –porque – é claro – tinha se cortado. Ainda teve a pachorra de
deixar registrada sua sugestão, que era a de que a empresa elaborasse um produto
específico para este fim, se possível também para a região anal. Você acredita nisso?
136
Não tive outra resposta a não ser a de dizer que o aparelho em questão corta bem rente à
pele e que, neste caso, o saco escrotal possui uma pele bastante fina e sensível, além de
ser bastante, ih, ih, ih, enrugado. Dá para acreditar? Você me imagina dizendo uma
coisa dessas, eu do jeito que eu sou?
Marcos: A questão não é quem ela é, mas o que. A Sincronicidade, entende?
Magno: Então penhorei uma mesa de comer velha de quatro pés.
Azeredo: Se a memória não me falha chama-se “Movimento pela Extinção Voluntária
da Humanidade”... Recebi um panfleto em casa dias atrás. Acho que deve ser uma
ONG, ou uma seita, sociedade secreta ou qualquer outra coisa parecida, mas, tudo é
muito confuso para eles, o que termina sendo para nós também. Talvez tenham alguma
coisa haver com a Orfeão. Não entendi a filosofia do grupo, se é que eles têm alguma.
Bem, não li o panfleto inteiro, mas acho que o que eles pregam é que nenhum ser
humano do mundo inteiro tenha mais filhos. Lembro-me de ter lido algo parecido com
“controle consciente de natalidade”. Só desta forma – assim está escrito lá – a
humanidade desaparecerá da face da terra sem violência alguma, resolvendo com o seu
desaparecimento o problema grave da superpopulação que – e isto realmente está mais
do que comprovado – daqui a alguns anos será um dos problemas centrais do...
Lili: Ainda não, sem Kant um estilo lógico sequer existe.
Guilherme: Aquele foi o último inverno da segunda grande guerra mundial, já que os
alemães foram derrotados, mas, o quanto os americanos e os soviéticos correram atrás
dos cientistas nazistas não está no gibi.
Magno: “Os anexos seguem em separado”, o advogado escreveu. Não dá para levar a
sério uma merda dessa... Dá?
Lili: Estou falando de Nietzsche. Segundo ele você passará por tudo isso de novo,
Eurídice, e de novo, e de novo, e de novo, e assim sucessivamente durante toda a
137
eternidade. O cristianismo, dentre outros males que causou, opôs à visão do tempo
cíclico da antiguidade greco-romana um tempo linear, sucessivo e irreversível, você
sabe não é, aquele papo todo do começo, meio, fim, Adão, Eva, Juízo Final. Mas é um
erro imaginar o tempo dessa forma, prefiro o pensamento de Nietzsche, que foi, sem
dúvida alguma, um dos últimos grandes satanistas...
Magno: Sem querer pegar o bonde andando e já exigindo sentar na janela, mas, acho
que a sua irmã caçula faz parte desse movimento aí e nem me contou nada. Agora estou
começando a ligar as coisas. Em partes, como disse certa vez Jack, o Estripador.
Eurídice: Para quê a conversa é gravada ou por quem não saberia responder. Não sei
quem está por trás do Sorria você está sendo filmado, sabe? Talvez gravem para se
divertirem. Afinal de contas, tudo é muito divertido, como, por exemplo...
Marcos: São dois homens percorrendo as ruas de uma grande cidade sobre pernas de
pau extremamente altas. Um é poeta, o outro filósofo. Ambos carregam cartazes onde se
pode ler escrito: “Os membros da Sociedade Secreta dos Sete reencontram-se hoje à
noite no velho quintal”. Tenho certeza que aqueles garotos idiotas leram este livro.
Tenho certeza que o livro foi a inspiração para criarem a “Sociedade Secreta do Guarda-
chuva”. Pensam que os militares são burros, que não leem nada, mas está aí... O
Caetano achava isso, tanto que quando falamos a ele sobre Marcuse e todas aquelas
baboseiras que os tropicalistas liam o sangue lhe faltou na face. Um veadinho... O que
fizemos? Harmonizamos ele intervindo levemente sobre wattímetros em galvanização.
Guilherme: E quem eles acham que treinou o Comando de Caça aos Comunistas?
Aqueles filhinhos de papai do Mackenzie não seriam capazes de ter uma ideia dessas.
Jovens saudáveis é verdade, mas, burros como um porta. Quem ri por último ou é surdo
ou é retardado. É assim que costumo dizer. Meu pensamento, afinal de contas, desloca-
se a 1600 quilômetros por hora.
138
Eurídice: Esse eu conheço... “Os Lusíadas” não é aquele livro que foi escrito pelo
cantor Luis de Camões, que o dividiu em dez cantos, e que agindo assim acabou dando
emprego a dez cantores lusitanos, contribuindo com isso para a diminuição do
desemprego em Portugal? Não é por isso que ele é tão importante por lá, tendo inclusive
um dia só para ele?
Azeredo: Isso foi em 1991, e aconteceu na Califórnia, e não em Nova Iorque. Não
lembro bem o nome dela, só sei que a mulher morreu esmagada por um imenso guarda-
chuva que fazia parte de uma instalação do artista búlgaro Christo. Morte mais insólita
que essa só a daquele sujeito na Inglaterra, que teve uma parada cardíaca no momento
em que carregava a esposa no colo enquanto subia uma escada de não sei quantos
degraus... A mulher pesava uns cem quilos, mas, você sabe como os recém-casados
querem que tudo dê certo no início não é?
Marcos: Inteligentíssimos eles não eram, mas também não chegavam a ser burros como
uma porta. Como uma porta aberta, talvez.
Lili: E se eu te der alguns livros para ler? Que tal Tasso e Marino, só para começar?
Depois Novalis, Chateaubriand, Hugo, Baudelaire... Ah, o satanás de Milton é tão belo,
tenho certeza que você vai se apaixonar por ele. E quanto a Flaubert, Schiller, Blake,
Shelley, Byron... Todos eles precursores da aproximação do meu Senhor com as letras
universais. Então você saberá da beleza que possui os personagens tristes, todos tão
humanos quanto nós, por isso que fazem sucesso até hoje. Todos humanistas.
Guilherme: Hoje percebemos que a festa da privatização das estatais terminou como um
benefício. Imagine só essas empresas nas mãos dos criminosos que hoje ocupam o
poder?
Magno: Escovas de dente, um caixão cênico, um motor de avião, morcegos mortos,
botas com pé dentro, telefones, crianças histéricas, dois crânios humanos dentro de uma
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bolsa, duas sogras retardadas mentais, implantes de seios, próteses dentárias,
camisinhas, enfim, já achei cada coisa quando trabalhava na seção de achados e
perdidos da estação ferroviária que vou te contar uma coisa. Mas naquela época eu
ainda tinha pernas, e podia sair à hora que quisesse para fumar. Agora, preciso trabalhar
sempre próximo de uma janela, entende?
Marcos: Não faço ideia, faz muito tempo... Se não me engano os policiais tinham uns
falcões adestrados. Acho que esse tipo de ave se reproduz bem em cativeiro. Veja só
como as coisas funcionam com perfeição na Europa, não? Essa modalidade de caça foi
inventada há dez mil anos, acho que na Ásia Central. Tradição e modernidade. É disso
que falo... Sim, acho que foi isso o que aconteceu: os policiais soltaram os falcões, que
rasgaram a lona do balão, retornando em seguida para o braço de seus donos. Não
lembro se na TV passou essas imagens, só sei que os policiais austríacos tiveram apenas
que esperar o balão cair para prenderem o anarquista. Tudo muito limpo e organizado.
Guilherme: Genial não? Ainda bem que nenhum comunistazinho de merda teve tutano o
suficiente para inventar uma estória dessas por aqui... Aliás: a falcoaria é praticada no
Brasil?
Eurídice: Não, a descrição da penhora era a seguinte: crucifixo de madeira, em estilo
colonial, marca INRI sem número de série. Você acredita que ele telefonou para
reclamar disso?
Azeredo: Nossa Idade Moderna substituiu o teocentrismo pelo antropocentrismo, que
hoje atingiu seu ápice com a veneração pelo dinheiro. Para o bem ou para o mal, essa
mudança tornou possível a sociedade como hoje a conhecemos. O problema são as
sociedades secretas, que nasceram da noção de que é preciso uma força oculta que seja
capaz de orquestrar as conquistas materiais obtidas... Paranoia? Elas estão fincadas no
140
substrato do mundo, meu amigo, e seus motivos exatos nem sempre são muito claros, só
para citar uma...
Marcos: Na Europa tudo funciona com perfeição. Aqui descendemos de um bando de
índios pornográficos, preguiçosos e antropofágicos. E os europeus que chegaram,
chegaram para nos roubar, saquear tudo e promover a putaria. Deu no que deu.
Eurídice: Não sei, acho que pelo fato da pessoa ficar o tempo todo protegida atrás de
um telefone, sabe? Acho que elas perdem um pouco o pudor, a vergonha. De outra
maneira aquela mulher não teria me dito que sempre que ficava sozinha em casa
colocava seu celular para vibrar em cima de seu clitóris, e que em seguida ligava para si
mesma do telefone fixo. Que disparate meu Deus. Bem, cada um usa seu aparelho de
celular da forma que quiser, agora, telefonar para a Central porque viu na TV uma
matéria que dizia que o uso excessivo do telefone celular pode causar câncer, e exigir de
mim – que nem sou médica nem nada – a informação sobre os riscos reais que ela
corria, sabe, é um pouco abusivo, você não acha? Corro o risco de ter câncer na
genitália, ela me perguntou. E ainda completou: qual o número máximo de vezes que
posso usar o aparelho por semana, sem correr o risco de ficar doente? O que eu poderia
dizer, além disso: senhora, qualquer modelo de telefone celular portátil da Ericson
atende aos requisitos da Anatel, requisitos relativos à exposição à rádiofreqüência. Não
sei, acho que a tranqüilizei. O que me diz...? E desculpe ter interrompido você... Como é
mesmo o nome daquele dramaturgo sueco que você quer que eu leia?
Magno: Lá vem você...
Azeredo: Mas é verdade. Chama-se “Síndrome de Stendhal”. O nome faz referência
àquele romancista francês do século XIX, que certa vez se sentiu mal diante dos
afrescos da igreja de Santa Croce... Palpitação cardíaca, tontura e dores estomacais são
apenas alguns de seus sintomas. Uma coisa terrível. O sujeito corre o risco de até
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desmaiar. E os membros dessa sociedade secreta da qual te falei desenvolveram poderes
psíquicos enquanto estudavam o fenômeno. Todos advogados.
Lili: Você vai gostar, os livros dele são repletos de mulheres fatais, fatais, assim como
todas nós deveríamos ser. Uma espécie de mulher-vampiro, sabe? Todas carregadas de
erotismo, exotismo, uma certa dose de crueldade, de esteticismo decadente. Os homens
gostam disso não? De mulheres cruéis? Se não gostassem, Marlene Dietrich não teria
sido a musa que foi, em sua época pelo menos e...
Magno: Então ela disse assim: mas o principal objetivo de uma Sociedade Anônima não
é o de ter diversas fábricas desconhecidas? Ah, isso foi a gota d’água... Ria, pode rir,
mas é o que estou dizendo a você: sua irmã está emburrecendo cada vez mais, também,
não é para menos: passa o dia inteiro conversando com aqueles tarados, com aquele
bando de malucos onanistas que liga para ela todos os dias lá na Central...
Guilherme: Tínhamos que resolver do nosso jeito, porque não havia outro.
Marcos: Na Grécia antiga a democracia funcionava muito bem porque os que não
estavam de acordo com o pensamento oficial se envenenavam. Este é o meu modelo
ideal de governo. E só para completar meu raciocínio: aquele incêndio no hospício
levou muita gente que não prestava também. Lembra-se daquela maluca que acreditava
ter engravidado virgem, quando na verdade o seu problema não passava de um hímen
complacente? Lembra que ninguém de sua família apareceu para tentar reconhecer o
corpo? Agora eu pergunto: que falta vai fazer uma desgraçada daquela no mundo?
Guilherme: O problema todo consiste no fato de as forças de segurança nacional terem
vencido a guerra contra o comunismo aqui no Brasil. Depois disso, e quando a ameaça
comunista já havia sido dissipada, preparamos o caminho para a democracia em nosso
país, e agora o quê? O que tivemos depois disso? Um governo de ressentidos, de
corruptos, um atrás do outro. O próprio Glauber Rocha já os havia alertado sobre isso, e
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fizeram o quê? Disseram que estava louco, que tinha ficado reacionário, mas basta olhar
para nossa democracia hoje para saber que ele não estava louco, mas certo.
Ressentimento e corrupção, isso o que nos restou, que o diga o general Taumaturgo...
Magno: O pedestre não tinha ideia para aonde ir, por isso o atropelei, ele disse.
Eurídice: Antes de ser criada a justiça o mundo era injusto, não era? Vou ler esse
Strindberg aí, para ver de que justiça ele fala. Não foi ele quem disse que as plantas
distinguem-se dos animais pelo fato de só respirarem à noite? Não, não, nada disso, ele
disse que os ruminantes se diferenciam dos outros animais porque o que comem,
comem duas vezes, não é? Que cara é essa? Não foi ele...? E por falar nisso: o que é um
ruminante? Azeredo: Engano seu Magno, as cotas raciais não devem ser recebidas
dentro de um clima de revanchismo, ora, elas vieram para ficar, para corrigir um sério
problema de discriminação racial que existe no Brasil, e não me venha com essa noção
errada de que o Brasil é um país em que há igualdade de oportunidades para todos, você
sabe muito bem que não é assim, que a velha piada do pedestre...
Lili: É claro que vou te emprestar, e não só ele, mas também Sade, D’Annunzio, ah,
D’annunzio, D’annunzio que disse: o incesto é o magnífico pecado das tragédias
antigas. Já imaginou você falando isso ao telefone? Quem sabe você não cite
D’annunzio, ou Sade, ou Sabatier, ao telefone, que tal? Tenho certeza de que eles
ficariam desconcertados.
Magno: Todo corpo mergulhado em uma banheira faz tocar o telefone, é nisso que
acredito. Antes da segunda guerra mundial, por exemplo, a lista telefônica de Nova
Iorque continha vinte e dois assinantes com o sobrenome de Hitler. Depois dela, todos
desapareceram, e sabe por que isso? Ah meu amigo, eu acredito na diferença.
Plenamente.
143
Marcos: Não teve aquele sujeito que se operou das hemorróidas e depois da operação
virou homossexual? Será que não vai acontecer a mesma coisa com o Ednaldo? Não me
admiraria de nada ele entrar por esta sala rebolando, é o que digo a você: esses
comunistas são todos uns desviados. E tem mais: o sujeito casou com o médico
proctologista que lhe fez a operação, você acredita? Na certa quando fez o exame de
próstata deve ter pedido também mais um dedo de garantia, sabe, uma segunda opinião?
Guilherme: Depois querem dizer que colocamos a exceção no lugar da regra, mas basta
lembrar-se daquele veado francês que viveu aqui no Brasil, como era mesmo... um
filósofo, professor da USP... enfim: lembra, foi em 1996, a polícia do Rio de Janeiro
tinha encontrado fotos de pornografia infantil com aquele gari desempregado, que
terminou apontando o tarado francês esquerdista filho da puta como sendo a pessoa que
encomendara as imagens... Queria tanto lembrar o nome do puto... na época ele negou
as acusações, assumiu sua homossexualidade e admitiu ter recebido algumas fotos, mas
disse que jamais as encomendara... não sei, não lembro o nome dele, lembro apenas que
sua prisão preventiva foi decretada, e que depois disso ele ainda conseguiu fugir do país,
veado do cacete...
Lili: Trabalhar cansa. “Fausto” que o diga, já que ele representa, desde 1808, a
encarnação do moderno ser humano.
Eurídice: Uma vez li um livro sobre múmias. Mas isso faz tempo, acho que ainda
namorava o Magno. As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia, não
tinham? É natural, afinal de contas, elas passavam muito tempo sozinhas, ou seja: tempo
de sobra para aprender o que quer que fosse. Você tem algum livro sobre múmias? Por
que será que elas não aprenderam bordado?
Azeredo: O racismo da sociedade brasileira é inquestionável, Magno. O “Estatuto da
igualdade racial” vai passar de qualquer jeito no Congresso, você acha que não? É
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preciso discutir o problema também na esfera pública, só depois disso é que se poderá
abrandar a exigência de cotas raciais nas universidades em favor de outro mecanismo de
inclusão, sei lá, talvez um com base em critérios socioeconômicos, não sei ao certo
ainda. Sei apenas que é preciso partir de algum ponto, e foi este.
Lili: O livro se chama “A carne, a morte e o diabo na literatura romântica”. Talvez você
devesse começar por ele. É um livro de ensaios sobre o tema, uma monografia muito
bem escrita, muito mesmo, que examina todo o romantismo literário, todo ele. É
carregado de uma atmosfera mórbida belíssima. Lá você encontrará o belo triste, o belo
horrível, o bandido generoso, o vampiro, a perseguida, o licantropo, enfim, é provável
que haja múmias também, não lembro direito porque faz tempo que o li, mas, sim, é
provável... Magno: Para mim a inclusão do quesito raça ou cor em qualquer merda que
tenha caráter classificatório é racismo às avessas, isso é o que eu penso. Veja como essa
droga toda não deu certo lá nos Estados Unidos. Basta passar um furacão por lá para
você ter um imenso panorama da porra toda. Quem eles deixaram para trás lá em Nova
Orleans? Ou isso ou aquela velha piada: pior ainda do que nascer negro é nascer negro
no Alabama.
Lili: Agora veja a diferença: na Idade Média, para a igreja católica a mulher ou era a
mãe que garantia a honra e a descendência da família ou a viúva dependente e mãe
degenerada muitas vezes apontada como bruxa ou ainda a filha virgem que servia como
moeda de troca na negociação da riqueza, quer dizer, a mulher não tinha muito valor
espiritual na época; todas uma espécie de placebo da Virgem Maria, de função
decorativa e de interesse patrimonial, como demonstram os documentos da época, a
exemplo do Catálogo das principais e mais honradas cortesãs de Veneza, de 1570.
Marcos: Não estou dizendo a você? Ele era meu vizinho na época. Cortou os pulsos por
causa de uma mulher. Que motivo mais idiota para se morrer, não? E isso depois de ter
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sido atingido por relâmpagos por mais de dez vezes, acho. O sujeito era conhecido lá no
décimo quinto batalhão como “Pára-raio”. Ninguém acreditava na sorte – ou azar,
depende – que o levava a sobreviver àquelas altas voltagens... o pessoal brincava
dizendo que era possível acender uma lâmpada na boca dele.
Magno: No cu de quem?
Guilherme: Ainda estou tentando lembrar o nome do canalha... sei que depois de ter
fugido do Brasil morreu três anos depois... foi encontrado morto em seu apartamento
em Paris... na certa devia ser amigo do Otto... Paris é para aonde convergem todos os
patifes de todos os buracos sujos de todos os países do mundo, você não acha? Assim
mesmo, como canta o patife maior Chico Buarque naquele sambinha de quinta...
Azeredo: Certo, voltando: já ouviu falar na Illuminati Bávaros? E na Governo Sionista
de Ocupação?
Eurídice: É uma grande central telefônica, onde nós atendemos reclamações de clientes
de várias empresas. Uma espécie de filtro, quer dizer, nós só encaminhamos as
reclamações que julgamos procedente, é isso. Imagine só se eu passasse todas as que
chegam lá todos os dias. Seria até engraçado, mas, não posso fazer isso, a conversa é
gravada para controle... já te disse isso não...? Quem nos controla? Não sei: a ordem não
tem rosto, mas, ontem mesmo, ligou um sujeito esquisitíssimo, às vezes eu até acho que
é trote, mas, não podemos deixar de atender nenhuma ligação, além do quê, quanto mais
reclamações eu conseguir resolver – leia-se: não passar adiante – você sabe não é,
sempre tem aquele bônus adicional no salário do final do mês...
Marcos: Ou períneo, como gosta de dizer o coronel...
Azeredo: Mas é assim que a sociedade evolui. Tome como exemplo o fato de a
“Restauração” de Luís 18 não ter podido retroagir diante das liberdades civis
conquistadas pela revolução francesa de 1789... imagine se tivesse podido, acho que
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nem o “As flores do mal” teria sido lançado. “Madame Bovary” nem se fala. Se bem
que o Baudelaire foi bastante censurado realmente... imagine, a interdição da publicação
integral do “As flores do mal” durou até 1949. Não importa... acho que acabei perdendo
o fio da meada...
Lili: Talvez depois que você ler os livros que estou te falando comece a compreender
mais as pessoas que ligam para você. Não são apenas trotes. Nosso Senhor nos diz com
suas belas e perversas palavras que tudo na vida é impulso para a comunicação. É
preciso reconhecer na dor do outro a sua própria dor. Nem que para isso você tenha que
causá-la.
Magno: Agora você está parecendo o Egberto falando. Ele também leu uma porrada de
livros, e gostava de vomitá-los na nossa cara a todo o instante. Eu nunca vi um negócio
parecido com aquilo. Parecia uma enciclopédia ambulante. Um dicionário, ainda por
cima com aquele barbão. Pior que ele só a Eurídice, que compra livros e mais livros que
nunca lerá. E precisa ver: cada título engraçado.
Marcos: Conheci o pai dela, o tipógrafo escocês. Fedia como um porco. Na época da
revolução ele costumava imprimir panfletos, sempre de madrugada. Um péssimo hábito
para aquele tempo, diga-se de passagem. Chegamos a prendê-lo, mas logo ele foi
liberado, já que abriu o bico com uma facilidade impressionante. De fato um escocês.
Foi na oficina dele que eu peguei para mim o exemplar do “A Sociedade do Sótão”. E
aqueles moleques da “Sociedade Secreta do Guarda-chuva” achando que haviam
inventado a roda.
Guilherme: Não li esse. Gosto bastante do Ernst Jünger. Você já leu alguma coisa dele?
“A revolta do herói provêm do estômago”, ele escreveu em um de seus livros. Genial.
Um dos maiores prosadores alemãs do século XX. E ainda era um homem de ação. Foi
soldado na época áurea do Hitler.
147
Azeredo: Uma paciência de filatelista, de taumaturgo, será preciso quando chegar o
momento em que o caos assumir tudo.
Magno: Todos os ex-exilados são assim como você...? Paranóicos... ou culturalmente
desconfiados de tudo, porra.
Eurídice: O sujeito era muito esquisito realmente. Ligou para fazer uma reclamação à
Souza Cruz. Falou para mim que sabia de cátedra que o cigarro é prejudicial à saúde, ih,
ih, ih, acrescentando ainda ser de seu conhecimento o fato de que a presença de alguns
produtos químicos poderiam causar diversas doenças – e eu só respondendo uhun – só
que o problema, segundo – e para – ele, era o fato de sua sogra – fumante há mais de
trinta anos – até o momento não ter desenvolvido nenhum tipo de doença relacionada ao
consumo de cigarro... ah, só pode ser trote, eu pensei, enquanto o ouvia dizer que
considerava tudo isso bastante lamentável – sim, ele usou essa palavra – já que ele
mesmo se encarregava de comprar para sua sogra – que morava com ele e sua esposa há
pelo menos dois anos – cerca de três maços de Derby por dia, e até agora nada... nossa,
ele ainda completaria dizendo que apesar de desapontado com os resultados obtidos
continuaria a comprar para ela os mesmos três maços de cigarro da marca Derby, e não
de outra, já que – como fez questão de afirmar em seguida – era contra a pirataria de
cigarros contrabandeados do Paraguai, que tanto prejudica o operário brasileiro –
segundo ele. Sinceramente, eu estava sem saber o que falar, no instante em que ele fez
sua última pergunta: você poderia me dizer qual o produto mais cancerígeno dessa
empresa? Nossa, essa foi quase a gota d’água, mas segurei o riso na boca e disse – meus
olhos até se encheram de lágrima pelo esforço – senhor, agradecemos seu contato, mas a
Souza Cruz tem por princípio se comunicar apenas com pessoas maiores de dezoito
anos, portanto, para que possamos estar lhe enviando uma resposta, é preciso que o
senhor esteja comprovando sua maioridade legal, de forma que o senhor poderia estar
148
nos enviando para o número deste fax uma cópia de seu RG e CPF...? Foi a única forma
que arranjei para me livrar dele, sabe? Afinal de contas: o gerundismo sempre confunde
as pessoas.
Marcos: Quem sabe não é? Talvez se passar no Congresso norte-americano aquela lei
que autoriza as técnicas e os métodos utilizados pela CIA para extrair confissões de
suspeitos de terrorismo, a moda não pegue por aqui também? Afinal de contas, ah, ah, o
que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil...
Azeredo: Sim, mas acontece que os dez milhões de católicos que existem na China não
representam nada, ou quase nada, isso diante de um país daqueles, de bilhões de
pessoas... e não acredito que isso tenha alguma coisa a ver com o sistema de cotas de
que falávamos, ou com as sociedades secretas, você está querendo me confundir,
Magno. No máximo, o que o Vaticano pode fazer diante de um problema desse tamanho
é cruzar os braços e rezar...
Magno: Mas como rezar de braços cruzados?
Lili: Depois, passaremos para Aleister Crowley, Blavatsky, entre outros gênios. Só
então você começará a entender, e a sentir uma espécie de ternura por estas pessoas. A
impressionante solidez das coisas que passam, que tornam a passar, que não cessam de
passar, você me entende? Tudo faz parte de um sistema de pequenas avarezas, e meu
Senhor ama todas as pequenas coisas avaras. Você vai aprender com esse amor. Espero.
Magno: Azeredo: é dando que se ganha má fama. Não vá esperar você que alguém vá
agradecê-lo por isso. Ninguém irá. A união não faz a força, faz o açúcar, entendeu a
piada? Eu não tenho pernas, e avacalho. Já quebrei duas máquinas de xerox lá na
empresa, de tanto sentar nelas para fotocopiar minha bunda, agora, pergunto: você acha
que alguém desconfiou de mim? Até hoje ninguém sabe quem foi, e eu sou a única
pessoa de quem eles nunca desconfiariam, e no entanto...
149
Guilherme: Não há vírus que se compare à inteligência. Presto referência aqui ao
pentatol de sódio, é óbvio... ao café com gosto cada vez mais metálico.
Azeredo: Cuidado, por que as câmeras de vigilância estão em todos os lugares. Hoje
somos todos suspeitos encenando nossas ações no mundo. Sociedade do espetáculo:
agora câmeras embutidas até em celulares. Um dia alguém te pega, não tem como ser
diferente. Nosso Estado hoje é o da vigilância distribuída – sociedade de controle
mediada por câmeras, senhas, cartões de fidelidade, promoção de milhas aéreas,
sistemas de segurança, portas giratórias, enfim, a paranóia reside nas sombras, e é o
destino final ao qual chegaremos depois de girarmos e girarmos e girarmos sobre os
trajetos inumeráveis que nos conduzem sempre para o mesmo lugar.
Marcos: Cheguei a ir ao enterro do pai dela. O velho era louco, tinha dupla
personalidade. Morreu atropelado, para isso bastou que se descuidassem dele por um
segundo. Ela não tinha umbigo, você lembra? O que não quer dizer que não fosse uma
pessoa egoísta. Anônfala. Acho que conversei com ele uma ou duas vezes, mas sempre
cruzava com ele na rua, sempre falando sozinho consigo mesmo. Uma vez, consegui
ouvir o que dizia, ou diziam: você pegou a pior pessoa para discutir, ele balbuciou, ou
eles, tanto faz. Incrível não?
Lili: Ou para pesar opostos sinônimos indecifráveis teríamos ainda juízo unificado,
xenotima talhada assimetricamente sem expor para outros sua invenção tentacular,
algoritmo mediando, algoritmo gerando invisível sem inferir longitude logarítmica
ulterior, como explicações sem causa única, nem tamanho.
Guilherme: Não era a prima do Egberto? A família dele também não era nada comum,
tinha cada doido... Lembro-me daquele irmão dele, aquele, que vivia bêbado, e quando
de fogo gostava de dizer que as mulheres guardavam dentro delas um demoniozinho
150
que apreciava passar um pano molhado na cabeça de nossas cacetas toda vez que, você
sabe... o sujeito era maluco, se não me engano trabalhava como motorista de ônibus e...
Eurídice: Como? A arquitetura gótica não foi aquela que se notabilizou por fazer
edifícios verticais? Esses góticos inventam cada uma, ainda por cima gostam de passear
em cemitérios. Vou ler todos esses livros de que você falou, gosto de ler, embora não
pareça. Leio Evangelhos, por exemplo. Gosto dos Evangelhos.
Azeredo: Leio bastante sim, talvez não tanto quanto o Egberto, porque sou alérgico à
poeira, mas leio o tanto quanto posso. Devo ter uns mil volumes lá embaixo, no
escritório... nossa, faz tempo que não desço lá, acho que desde que... tenho livros do
Ernst Jünger inclusive, ouviu Guilherme?
Marcos: Não era o meu xará? O Marcos? Os olhos sempre vermelhos. Parecia estar em
um contínuo jet lag. Mais desalinhado do que prateleira de boteco, as mãos de gengibre,
os dedos engelhados, mais barbado que Dom Pedro II. Uma lástima de homem.
Lili: Não, não, não, os Evangelhos são muito enfadonhos. São bons de ler quando se
está sem sono. Toda aquela linguagem empolada. Então você começa a ler, a ler, e logo,
logo – zzzzzzzzzzzzz... não foi à toa que quando os soldados romanos chegaram ao
Getsêmani para prender Cristo todos os seus apóstolos se encontravam dormindo.
Magno: Não estou brincando, o sujeito passou sufoco naquele aeroporto, o problema
todo foi a máquina de raios-X ter detectado um objeto estranho em sua mala. Quando
perguntaram para ele do que se tratava o homem ficou vermelho, esfregava as mãos de
nervoso. Perguntaram novamente, então ele sussurrou: uma bomba. Não deu outra:
levaram o sujeito para uma sala de interrogações... não, lá do aeroporto mesmo. Mas, o
que queriam que ele dissesse? A mãe dele estava do seu lado porra, eles iam viajar
juntos. Ficou com vergonha de dizer “bomba de sucção peniana” na frente da mãe.
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Estou dizendo a você: depois do onze de setembro a coisa ficou feia para quem quer
viajar.
Marcos: Não sei, parece que se apaixonou por uma paulistana, se não me engano ela
tem um poema tatuado nas costas. Não é, Sílvia? E quem em são consciência tatuaria
um poema nas costas? Isso é lá coisa que se tatue? Aliás, tatuagem é coisa de
presidiário, estes que haviam fugido recentemente para promover a baderna na cidade,
por exemplo: todos tatuados... falando nisso: onde está a Sílvia?
Guilherme: O garoto deve ter puxado ao tio, aquele irmão do Egberto... não, o que foi
assassinado. Vivia no mundo da lua, lembra...? Não, estou falando do tio, mas o filho da
Sílvia também é do mesmo jeito. Morreu de graça, e pelas mãos do próprio cunhado, na
época menor de idade. O cunhado tinha inveja dele porque o pai gostava mais do genro
do que do próprio filho. O pai, quando viajou, confiou o carro da família ao genro,
lembra, deixando ordens expressas para que ninguém o pegasse, principalmente seu
filho. Não deu outra: dois tiros no peito. O irmão do Egberto achava que aquilo era
brincadeira, ele até disse: vou tirar os sapatos então, para morrer descalço. E morreu.
Tão distraído ele era. Azeredo: O nosso falso senso de humor é a nossa maior tragédia
nacional.
Eurídice: Ah, eu sempre quis ser arqueóloga, pelo menos quando era menina. Mas não
se pode ter tudo na vida não é? Outro dia li que acharam na Alemanha o banheiro onde
o Lutero deu início àquele movimento lá, da Reforma não sei o quê. Achei engraçado,
mas depois pesquisei e descobri que realmente Lutero disse em uma entrevista que foi
de fato no banheiro que ele teve a ideia – ou a inspiração, sei lá – para argumentar que a
salvação se dá unicamente pela fé, e não pela venda ou compra de seja lá o que for.
Incrível isso não? Eu quando estou no banheiro não penso em nada, a não ser que
152
perceba que tenha acabado o papel higiênico. Aí sim: as ideias afloram... não, acho que
ele sofria de prisão de ventre. Um verdadeiro achado arqueológico, concorda?
Azeredo: E o que os Estados Unidos da América do Norte esperavam? Não acham que
são a polícia do mundo? Veja o que eles fizeram no Líbano. E ainda tem norte-
americano que acredita que o Bush vem efetuando uma ação bastante limitada na
região, já pensou? Tem gente que defende, que acredita que ele deveria agir mais... e o
que significa “agir mais” para eles? Tenho medo só de imaginar. Aquilo lá não é um
país, mas um amálgama promíscuo de paranóias... voltamos novamente ao mesmo
ponto, certo?
Lili: Prisão de ventre é um problema bem cristão realmente. Reter o prazer a ponto de
não usufruir dele, é isso o que pregam. Não entendo um deus que oferece a mesa farta
para que apenas olhemos. Não toquem na comida, é o que parece dizer. Ao contrário
dele, e talvez sobre ele, assim diz o nosso Senhor: Filho, lava as escórias com água
tridestilada. Entendeu? As escórias.
Magno: São uns putos puritanos, nisso concordamos, um país inteiro governado por
uma merda de um texano católico, quer dizer, todas aquelas ligas-da-virtude-da-puta-
que-o-pariu, isso para não falar daquelas minorias organizadas... falo dos imbecis que se
propuseram a reescrever a “Branca de Neve” dos irmãos lá, entende, para eliminar da
estória qualquer menção ofensiva aos sete anões, porra... falo da professora que exigiu a
retirada de um nu de Goya reproduzido e colado na parede de uma escola e... Sei lá por
que, acho que ela disse que aquilo a ofendia sexualmente...
Lili: E o que eles faziam? Colocavam as meninas em um convento, para controlar o
excesso da população feminina... sim, tudo comandado pela igreja. Tudo não passava de
um imenso reservatório de hímens. Cento e quarenta e quatro mil virgens reunidas ao
redor do Cristo ressuscitado. As esposas de Deus, que longe do mundo secular
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simbolizavam o ideal da castidade tão apreciado pela teologia católica romana.
Simbolizavam enquanto enlouqueciam, já que o sexo frustrado naquela época foi a
causa da epidemia de “possessões demoníacas” que se alastrou nos conventos da
França, por exemplo, nos séculos XVI e XVII... não, tudo documentado no Possessão,
de T.K. Oesterreich.
Magno: Sim, eu jogava bola muito bem, você se lembra? Falando em bola, outro dia li a
notícia de que o Maradona recebeu das mãos do próprio prefeito da cidade as chaves de
Cartagena... ah, você leu. A matéria não diz qual a razão, mas suponho que deva ter sido
pela grande contribuição dada por ele à economia da cidade... claro, à economia
informal, pelo menos.
Marcos: Achei esquisito um sujeito que sofre de joanetes trabalhar como entregador de
pianos, sabe, aqueles pianos são muito pesados, e ele quase sempre os entregava
sozinho. Pelo menos foi o que fiquei sabendo. Talvez gostasse de sofrer, não me admira
nada ter se suicidado. Como uma seita daquelas consegue atravessar o mundo e chegar
até o Brasil? Dizem que falava coisas estranhas, aparentemente sem nexo. No dia em
que foi entregar o piano lá em casa, pedi para que tirasse os sapatos antes de entrar, e
sabe o que ele me respondeu? Que isso não era problema, e que tiraria até mesmo a
roupa se fosse para protestar contra a corrida de touros em Pamplona.
Guilherme: Até onde eu sei o saudoso delegado Cintra Bueno também sofria dos
joanetes. Meu ídolo, esse arrancava confissão até em latim eclesiástico. Um gênio em
desaparecimento de corpos e perito em forjar suicídios de guerrilheiros. O Dops era
realmente o Dops na época em que comandava tudo por lá. Se não me engano fizemos
um curso com ele, não? Aliás, não foi ele o encarregado de proteger o Herbert Cukurs?
Eurídice: Além do mais: adoro cultura, informação, livros. É preciso ter um bom nível
cultural para conseguir se sair bem em um trabalho onde você lida com o público, e
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como já estou na Central há cinco anos, creio que esteja me virando bem nesse quesito.
O problema é que o Magno não gosta muito das mesmas coisas que eu, coisas culturais,
sabe? Ele diz que é tudo frescura. Lembro de uma vez apenas em que ele me levou para
ver uma exposição de artes plásticas. Nossa, faz muito tempo... ah, eu gostei de tudo,
das pessoas, dos quadros... não entendi muito de nada, não é? Mas a ideia é se divertir
não é? Sair de casa de vez em quando.
Azeredo: Acho que esse “Movimento pela Extinção Voluntária da Humanidade”... é
esse mesmo o nome? Enfim, acho que ele não vai pegar. O problema são os japoneses.
Tem uma cidade no interior do Japão... não lembro, sou péssimo para decorar nomes de
cidades. De qualquer forma, o prefeito da cidade paga cerca de um milhão de ienes...
não, não sei quanto isso dá em... Quer me deixar terminar? Então: essa quantia é paga
para todas as mulheres que decidirem ter um terceiro filho, não sei, deve ser uma
medida de combate às taxas decrescentes de natalidade que existem por lá. Estou até
pensando em aprender japonês e me mudar para Yamatsuri... sim, lembrei o nome da
cidade...
Lili: Pergunta ao teu irmão, ele visitou o quarto de hotel onde Strindberg ficou
hospedado lá em Paris. Na França existem vários alquimistas, todos disfarçados de
químicos, ou farmacêuticos. Alguns até têm diploma de médico. É uma ciência oculta,
antiga. Para o alquimista, e isto o que é fabuloso neles, não existe nada semelhante no
universo. Nada. E por isso mesmo eles acreditam que tudo pode ser misturado,
absolutamente tudo, você me entende? Está tudo documentado no “O Livro dos
Danados”. Pureza & corrupção.
Magno: É verdade, fomos a uma exposição, uma merda de uma exposição. Toda vez
que ouço a palavra “cultura” tenho vontade de sacar a minha browning, assim como
disse sei lá quando Göring, o generoso. Mas não importa, fui por causa dela. Merda. Ela
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adorou todo o passeio e etecétera e tra lá lá. Eu detestei. Mas foi divertido até certo
ponto vê-la admirar todos aqueles belíssimos quadros virados para a parede. Todos. O
problema foi que chegamos cedo demais, e ainda não tinham arrumado nada para a
exposição. Mas ela nem percebeu. Acho que até hoje acredita que as costas de uma tela
representa a nova arte moderna.
Lili: Toda a ideia de ação e reação, entendeu?
Marcos: O fato é que as acusações contra Cukurs nunca foram comprovadas. Nunca
ficou provado se ele era de fato um criminoso nazista. Já viu alguma foto dele? É difícil
imaginar que aquele senhor de rosto bondoso tenha assassinado quinze mil judeus.
Acho que o que aconteceu na verdade foi o fato da comunidade judaica do Rio de
Janeiro ter ficado com inveja do sucesso que o velho andava tendo com os negócios.
Serviço de pedalinhos, sabe, de vôos panorâmicos fretados, o velho estava fazendo
dinheiro. E você sabe muito bem como os judeus ficam quando vêem alguém fazendo
dinheiro, mas, muito dinheiro mesmo. Alguém que não seja circuncidado, obviamente.
Guilherme: Cukurs eu não sei, mas o saudoso Cintra Bueno tinha naqueles olhos... não
sei explicar bem o quê... Certo: lembrava papel alumínio amassado, isso quando
acordava de bem com a vida. Se bem que esta estória de aparência é bobagem... como é
o nome daquele criminoso de guerra nazista lá... Aquele que os judeus encontraram em
um subúrbio de Buenos Aires, acho que em 1960...? Sim, o último deles a ser pego, o...
Eichmann, certo? Então, levaram o sujeito para ser julgado em Jerusalém e, não
importava: quanto mais se inflamava a retórica da acusação, quanto maior fosse o horror
dos testemunhos durante o julgamento, tanto mais as pessoas achavam discrepante –
bela palavra não? Bem colocada – a figura do monstro protegido dentro de uma cabine
de vidro, sabe, o homem não passava de um burocrata franzino, mediano, de um
funcionário medíocre, lembrava mais um contínuo de cartório do que um genocida que
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supervisionava não sei quantos campos de extermínio, entendeu? Ainda por cima
aqueles óculos de grau da grossura de um fundo de garrafa... cara de professor, é isso.
Azeredo: O bocejo é contagioso.
Magno: Agora imagine quantos não são estalados em um museu? Os europeus
inventaram essa merda de museu no século XVIII só porque na época não existiam
garagens, entendeu? Ou garagens ou lojas de departamento, enfim, qualquer lugar onde
pudessem enfiar suas tranqueiras... coleção de obras de arte é o meu testículo esquerdo,
porra, colecionar para quê? Para quem? Para a Eurídice? Ah. Eu, particularmente, quero
que o passado se foda, e bem longe de mim.
Eurídice: O Magno exagera um pouco, não sou tão estúpida assim como ele diz, não
mesmo. Sei, por exemplo, que o ser humano pisca em média aproximadamente vinte e
cinco mil vezes por dia. Ele sabe isso por acaso? Agora, é claro, não morei em Paris,
quase nunca vou ao cinema, fui a apenas uma exposição de arte em toda a minha vida,
ou seja: é um milagre que consiga mascar chiclete e caminhar ao mesmo tempo, mas, o
que fazer, é a vida. A sorte é que sofro de insônia – mas só às vezes – e posso passar a
noite lendo o que me cair na mão. Já percebeu que de madrugada nós podemos ouvir
quase tudo? Eu por exemplo gosto de ficar em silêncio para escutar as batidas do meu
coração... o coração é o único órgão do corpo humano que funciona vinte e quatro horas
por dia, agora eu te pergunto como saberia disso se não lesse? Tudo bem, nunca li nada
do... Strindberg, não é? Mas, por enquanto... sabia que o J é a única letra que não
aparece na tabela periódica? O Magno não sabe disso...
Azeredo: A época é de paranóia mesmo. E aquele alvoroço todo naquele aeroporto na
Austrália? Tudo por causa de uma caixa que estava largada no saguão e que começou a
fazer um zumbido esquisito dentro dela. Nossa, a polícia evacuou a área e fechou o
aeroporto por uma hora, tempo necessário para que descobrissem que o que zumbia
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dentro da caixa não era nada além de um vibrador, um inofensivo vibrador movido a
pilha... bem, inofensivo no dos outros, concorda?
Lili: Não: Brignole-Sale. Era um típico cristão seiscentista que alternava a leitura das
escrituras sagradas com a leitura de pequenos livrinhos lascivos impressos
clandestinamente em Paris. Só que depois da morte da mulher, se entregou por inteiro
para a religião, tendo inclusive entrado para a famigerada Companhia de Jesus e
praticado toda a sorte de flagelações contra si mesmo. Que cristão mais modelo, não?
Os castigos que ele próprio se infligia eram tão severos que os próprios irmãos de
religião o repreendiam por conta deles. Bem, a justiça não dá consolo, o que você me
diz? O masoquismo é uma característica bastante cristã, você não acha...? Vide Lutero e
sua prisão de ventre que mudaria a face do mundo ocidental...
Magno: Também, as pessoas viajam com cada coisa hoje em dia não é? Coisas sem
registro no DETRAN, inclusive. Aliás, hoje em dia os aeroportos são o palco moderno
das cenas mais esdrúxulas possíveis. Tudo culpa daqueles árabes malucos filhos da
puta. A segurança reforçada, todos trabalhando dobrado: dois turnos, às vezes três. Até
os cães farejadores de drogas, porra. Não se poupou nem os animais, acredita? Tanto é
que aquele cão farejador lá na Suécia morreu de overdose, ou seja: um fato trágico, se
não fosse cômico.
Marcos: Acontece que o Cintra Bueno não conseguiu protegê-lo para sempre: na
primeira brecha os judeus o pegaram e abriram sua cabeça à marteladas. Depois, ainda
deixaram um bilhete ao lado do corpo, onde se lia escrito: “Aqueles que nunca
esquecem”. Tenho medo dessa memória que de repente vem à tona, entende? Que o
diga o general Taumaturgo Asclepíades... exatamente, ele é irmão daquele louco que se
suicidou em plena quarta-feira de cinzas... nossa, faz mais tempo que isso... estava
vestido com uma fantasia de tartaruga quando o encontraram no banheiro do clube
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militar. Balançava feito um pêndulo, um pêndulo engraçado, óbvio, desses de relógio de
corda que se dá para criança... exatamente: enforcado. O general ainda quis investigar,
sabe, para ter certeza de que tinha sido um suicídio realmente, e não um assassinato...
não sei, algum terrorista que quisesse atingi-lo, mas, não, pois logo acharam um bilhete
de despedida escrito pelo maluco dentro de um bolso da fantasia. O general reconheceu
a letra do irmão... sei lá, fantasias de carnaval devem ter bolsos, creio eu.
Guilherme: O bom general Taumaturgo, como era mesmo a alcunha dele...? “Mão
branca”, exatamente isso. Um homem organizadíssimo, cumpridor de seus deveres. É
isso que ninguém entende hoje em dia: cumpríamos nosso dever, o dever de resguardar
a pátria da anarquia. E com essa deixa volto ao Eichmann, que durante todo o seu
julgamento sempre que possível afirmava que se considerava culpado perante Deus, e
não perante a lei. Consegue sentir o peso dessa afirmação? Ainda teve a oportunidade
de dizer que aquelas acusações não constituíam crimes, mas atos de Estado. Nossa,
chega me arrepiei agora... é claro, ele se baseava na tese de que nenhum outro Estado
teria jurisdição sobre as ordens de um outro Estado, que é o mesmo que afirmar um
pouco daquilo que disse o Goebbels: ficaremos na História como os maiores estadistas
de todos os tempos, ou como seus maiores criminosos... não, li em um livro daquela
filósofa judia lá... não lembro o nome dela agora, o fato é que o Eichmann apesar do
burocrata franzino que era conseguiu se arranjar bem por lá, ainda que tenha sido
condenado à morte. Não importa: o homem era bom em arranjar ótimas saídas
vernáculas.
Azeredo: O melhor é não viajar até que as coisas acalmem. Ler o Grands Voyages em
vez disso. E viajar de fato nas viagens de Staden e Léry narradas nesse ambicioso
projeto gráfico de Theodore de Bry, publicado originalmente na Antuérpia.
Magno: Vou terminar sacando a minha browning, Azeredo.
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Eurídice: Ainda por cima gosta de implicar com minhas bonecas. Mas ele não era assim
não, está assim depois de perder as pernas. Agora não deixa passar nenhuma
oportunidade de me encher o saco. Mas eu sou calma, paciente, tão diferente das minhas
outras irmãs, ou mesmo de minha mãe. Lembro-me da vez – eu ainda era bem pequena
– em que nossa mãe brigou feio com o coronel. Ela se descontrolou, e saiu na rua – era
um domingo – com uma marreta nas mãos – não me pergunte por que tínhamos uma
marreta em casa, porque não lembro, enfim, recordo que o estrago no carro que estava
estacionado na rua foi grande, o único problema foi que minha mãe errou de alvo, e
arrebentou o carro do vizinho. O velho coronel riu até doer. Não sei como minha mãe
agüentou o peso da marreta – dava quase duas vezes o seu tamanho... não, não teve mais
fôlego para quebrar o segundo.
Azeredo: Charles Lutwidge Dodgson, fotógrafo de crianças entediadas. Os dois já me
aporrinharam bastante, antes de vocês chegarem, por causa de suas fotos. Não entendem
nada de arte, talvez achem que a arte seja as costas de um quadro, assim como a
Eurídice acha. Um sujeito simples, solitário, mas que deixou sua marca no mundo
graças às fotos que tirava, sabe, excelentes fotos, e ainda era matemático, professor da
Oxford, em suma: um homem respeitável. Chegou a ser pastor anglicano, inclusive.
Além disso, era gago, feio que doía, tinha um ombro maior que o outro e uma surdez
em um dos ouvidos, mas, superou todas essas dificuldades, entende, e entrou para a
história como um dos maiores fotógrafos ingleses da era vitoriana. Alguém a quem
admiro, apenas isso.
Marcos: O Brasil não mudou muito, apesar dos nossos esforços. Ainda é o mesmo que
divertia os europeus no século XVI, naquelas famosas “festas brasileiras” que
aconteciam em Bordéus... o nome da cidade calça como uma luva a nossa alminha
brasileira, não acha? Lili: Depois que você ler os livros que vou te emprestar vai notar
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de imediato a diferença entre o que você era antes e o que você irá se tornar depois de
lê-los, afinal de contas, você não pode deixar o Magno te pisar para sempre tão assim
desse jeito. Meu Senhor colocou nas tintas de Strindberg todos os modos de
sensibilidade e de gostos acentuadamente sádicos que Ele desejava, e deseja, para as
mulheres. A figura da mulher, da mulher fatal, será finalmente o seu espelho, espere só
e verá, e verá assim como nos fala Dostoiévski através da boca do Ivan de seu
“Karamázov”: para nós prevalecem os trépanos, a vara e o chicote, tudo isso é
nacional... você entendeu? Tudo isso é um tema que se presta à psicanálise, mas isso
não quer dizer nada. A questão toda é que os papéis serão invertidos: você será a sádica,
e não o Magno, compreendeu? Está me acompanhando?
Magno: Eu não tenho pernas, portanto, não posso pisar em ninguém. Pelo menos é nisso
que acreditam os idiotas lá do meu trabalho. Qualquer dia desses me dará na veneta
baixar as calças na frente de todos para que conheçam finalmente a grande bunda
cabeluda que até então só viram através de fotocópias. Marx, o que pregava o
socialismo mas comia a empregada, falou em revolução do proletariado, só que a
verdadeira revolução é esta que estou promovendo: a do terrorismo anal, ah, ah, ah, eu
serei o novo profeta da classe assalariada, porra, quando revelar para todos os malditos
operários que todos os nossos chefes, mas todos mesmo, se parecem, e muito, com
nossas bundas cabeludas... quando mostradas ao vivo.
Lili: Heinsius, um alienista parisiense que foi tão presunçoso a ponto de afirmar que
Sócrate était affecté de la folie qu’en language technique on apelle hallucination.
Marcos: Acho que há duas semanas. Os coveiros estão cuidando bem dos dois túmulos.
Ironia do destino não? Nossos pais nunca se deram bem e agora estão um ao lado do
outro para toda a eternidade e você não vai acreditar: no dia em que fui lá visitá-los
avistei uma maluca empilhando copos de requeijão em cima da lápide de nosso pai...
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Não faço ideia, ela parecia louca realmente, os olhos vidrados, vestia um vestido
branco, transparente, e não falava coisa com coisa, os cabelos desgrenhados lembravam
uma trepadeira crescendo contra um muro e não tive alternativa a não ser a de lhe
aplicar uma surra de cinto para que corresse dali, e rápido. Ainda bem que não me
caíram as calças, você sabe, de uns meses para cá consegui emagrecer uns quatro quilos.
Lili: Uma atmosfera de pesadelo de, de intriga de...
Eurídice: Mas não entendo francês.
Lili: Nem eu, mas não é preciso, afinal de contas, trata-se de uma, ah, ah, citação.
Guilherme: Lembra-se daquele prostíbulo que, faz muito tempo, nós dois entramos para
dar uma batida surpresa, e que na verdade aquela era a nossa noite de estréia como
soldados da polícia do exército e nós dois excitadíssimos procurávamos um pouco de
ação, lembra? Salvo engano foi o mesmo puteiro no qual levamos o Augusto para trocar
o óleo... agora não lembro. O nome do bordel tinha alguma coisa a ver com os gregos,
sei lá, afinal de contas, toda e qualquer putaria foi de fato criada pelos gregos sodomitas,
enfim, só lembro-me de ter comentado com você nunca ter visto putas tão feias em toda
a minha vida, nossa, e pensar que a clientela pagava por aquilo, enfim (novamente):
revistamos alguns suspeitos, recorda, fizemos algumas perguntas... Pois é, lembra-se
daquele, acho que ele era esquizofrênico, sujeito esquisitíssimo sentado na mesa...? Não
acredito que você esqueceu, como se esquecer de uma cena daquelas: o maluco sentado
na mesa, e em cima dela um atum fresco de uns sessenta centímetros... lembrou? É o
que eu digo a você: esse mundo está cheio de doidos, lembra que ele não falava nada
que tivesse nexo...? Ah, foi você quem pediu primeiro: documentos. E ele: anotaram a
data da maratona? Lembra que o puto respondeu isso...? E não passou os documentos
coisíssima nenhuma, então eu disse: você é surdo? E ele respondeu: oi rato otário...
lembra? Nossa, foi pancada debaixo de pancada, e ele continuava a falar baboseiras: zé
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de lima rua laura mil e dez, ou: rir, o breve verbo rir... e sei lá mais o quê... não sei,
acho que ele queria nos dizer seu endereço mesmo.
Eurídice: Gatos, prefiro gatos. Não sei explicar, acho que por serem independentes – ou
nobres – e charmosos, ao contrário dos cachorros, que são uns bichos bem pagodeiros,
você não acha? Ah, não sei, o gato – por exemplo – move a cabeça quando você está
fazendo carinho nele, como se quisesse direcionar sua mão para o local exato onde ele
deseja ser coçado, percebe? Cachorros não, para os cachorros se você coçar a barriga
deles com a chinela já está de bom tamanho, são uns bestas. Além do mais, os gatos têm
aquele olhar misterioso, fixo, brilhante, como se soubessem de algo que nós ainda não
sabemos, não sei explicar... gatos olham para você como se a qualquer momento o
telefone fosse tocar, você entende? O que quase sempre termina acontecendo, mas, não
posso criar gatos em casa, não tem espaço... nem para colocar minhas pernas, assim
como diz o Magno.
Azeredo: É o que estou dizendo a você: ele era meu vizinho, morava ao lado do único
apartamento que consegui alugar de primeira lá em Paris. Descobri que conseguia ouvir
tudo o que ele falava ao telefone no instante em que instalei o meu. Linha cruzada. Na
primeira vez minha consciência me mandou desligar, e eu desliguei. Só que na segunda
a conversa me interessou e, você sabe, ninguém é de ferro. E era sempre com a mesma
mulher que ele falava e, pelo que entendi, eles não se conheciam pessoalmente, alguma
coisa a ver com classificados de jornal, não importa, o fato é que a conversa entre eles
girava sempre em torno de fantasias de estupro, sabe? Ela, de um lado, falando
manhosa, de voz arranhada, sobre como gostaria de ser estuprada, sei lá, na época eu
não entendia bem o francês, mas conseguia entender o contexto, sabe, e o contexto era
muito excitante, pois dizia que ela desejava ver uma violência bem aplicada sobre sua
carne macia, nossa, e que gostaria de chupar você sabe o quê debaixo de ordens
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imperiosas que ela gostaria de receber dele, enfim, enquanto que do outro lado da linha
meu vizinho só dizia ui, ui, ui, ui, entendeu...? Sujeito sortudo nada, quando finalmente
combinaram o grande dia meu vizinho foi ao endereço que ela passou e todas as luzes
estavam de fato apagadas, ou seja: essa era a deixa para que ele entrasse, o que fez de
pronto, se esgueirando, se esgueirando, não sei, estava escuro, escuro onde a fantasia de
ambos se realizava... Tudo bem, confesso que o segui, mas não é isso que estou
querendo falar, quero falar é do dia seguinte, quando li no jornal a notícia de que meu
vizinho havia sido preso, quer dizer: ele entrou na casa errada... acho que de nervoso
deve ter confundido algum número ao anotar o endereço.
Lili: São os ecos baudelaireanos, veja só, você e eu temos muito em comum, a única
diferença é que estou alguns livros à sua frente, mas logo tudo isso muda. Lembro-me
de duas magníficas telas que vi no Palazzo Rosso di Genova, dois retratos romantizados
de Van Dyck, onde se vêem duas belas e melancólicas deusas voluptuosas, carnudas, e
cada uma com seu gato, negro, no colo. Os gatos são animais mágicos, é o que digo,
aqueles olhos vazios que possuem. Eram os animais preferidos das bruxas ancestrais,
tanto que a igreja católica os considerava animais impuros, malignos, corruptos, assim
como os bodes, as serpentes. Inclusive, na época da inquisição, costumava-se queimá-
los junto de suas donas, como se assim conseguissem extinguir o mal de todo. Ah,
Senhor, como são idiotas... sim, Palazzo Rosso di Genova... imagine quando o Marcos
for promovido a general, que lugares mais eu conhecerei?
Magno: Ou seja: a média maior é de vinte e uma gozadas por mês. Quem goza esse
tanto corre menos risco de desenvolver câncer na próstata do que aqueles que se
enquadram na menor média, que é a de quatro ou cinco vezes por mês. Em suma: os
homens casados mais uma vez se foderam. No sentido metafórico, óbvio.
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Marcos: Foi estrangulada. Era garçonete daquele barzinho onde só dava intelectuais
metidos a besta. Uma mulher muito bonita, alta, esguia, com todos os recursos em cima.
Pneumática, como se diz. Estrangulada com a corda de um piano... não, rigorosamente o
piano é um instrumento de percussão, ou seja, suas cordas são mesmo percutidas... sim,
acho que uma oitava acima, cheia de trastos e desafinada.
Guilherme: A única garçonete que conheço que possui um biógrafo. Agora pergunto: o
que de tão importante aconteceu na vida dela que mereça ser registrado? Garçonetes não
possuem biografia, mas sucessão de equívocos. O fato é que servia e era paquerada por
todos os poetas armoriais vagabundos que freqüentavam aquele boteco de quinta. O
Ângelo Monteiro, dizem, era doido por ela, por isso decidiu escrever um livro contando
a história de sua vida, imagine só. Uma biografia de garçonete, faça-me o favor.
Eichmann sim, teve uma biografia, tanto que foi enforcado por conta dela. “Sou
inocente, no sentido da acusação”... consegue respirar o peso dessa afirmação? Um
homem que diz isso teve uma vida digna de nota, sem dúvida alguma. Ele sim, e não
uma garçonete que zanzava entre as mesas feito uma galinha degolada. Eichmann sim,
esse teve uma biografia. Trotski também, e uma que findou no México diante da ponta
afiada de um picador de gelo. Uma morte merecida, diga-se de passagem. E o que dizer
do Jünger? A maior biografia da história da literatura: de filho da pequena burguesia
abastada e culta da Alemanha de 14 a exilado nas colônias africanas e oficial do
exército germânico, onde encontrou sua verdadeira vocação ao lutar na primeira grande
guerra mundial. Um gênio, ninguém jamais escreverá um livro sobre guerra tão bom
quanto o “Em tempestades de aço”... você leu? Sabia que ele comandou uma das tropas
que ocupou a França no período áureo de Hitler? Como disse antes: gênio.
Azeredo: Naquela tarde fui a uma exposição de quadros do Frans Post, mas sem
conseguir tirar aquilo da cabeça... um pintor holandês, que veio para o Brasil em 1636
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em uma das embarcações de Maurício de Nassau. Fui para matar a saudade do meu
país, entende...? Ele ficou no Brasil por quatro anos. Criou uma verdadeira empresa de
fundação paisagística por aqui. Dezoito telas de paisagens brasileiras.
Eurídice: Então ele me disse que se me deixasse trazer um gato para casa logo eu ficaria
como aquela alemã louca – expressão dele – que criava duzentos e trinta e cinco
chiuahuas em casa – o número segundo ele é exato – sob péssimas condições de
higiene. Claro, eu disse que não, mas, com o Magno não se discute, acho que seu
respeito pela opinião de outras pessoas foi amputado junto com suas pernas. Depois
falou de vietnamitas – milhares deles – que fizeram romaria até uma praia ao sul do
Vietnã para louvar uma baleia morta... não sei, acho que acreditavam que aquilo era
sinal de boa pesca.
Azeredo: Depois de muito tempo é que fui conhecer a mulher com quem ele havia
combinado a simulação de estupro. Você nem imagina quem seja não é...? Exato, mas
isso ela só me contou depois de anos, quando nós já havíamos retornado para o Brasil.
Coincidências da vida, não? Só então fui ligando as coisas, aquele desejo dela de ter as
coxas queimadas por cigarros... Mas aí já era tarde para se ter ciúme ou raiva, você
sabe, depois de uns anos o casamento vai acabando com esses sentimentos mais fortes,
não sobra quase nada deles.
Lili: Gatos são para pessoas de personalidade, o Céline por exemplo tinha um, fugiu de
Paris com ele e a esposa no instante em que os aliados desembarcaram na Normandia.
Que homem generoso, você não acha? Lembrou-se de seu pobre gatinho no meio de
toda aquela confusão. Queria chegar até a Dinamarca com eles sãos e salvos, o
problema todo foi que em Baden-Baden – lá onde o Dostoievski perdeu até as botas –
confiscaram seus documentos, então precisou ficar à deriva, sabe, perambulando por
cidades bombardeadas com mortos apodrecendo decorando de amarelo todas as
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calçadas até chegar, a pé, imagine, em um vilarejo da Baviera onde se refugiava a
cúpula do governo pró-nazista de Vichy. Ah, Senhor, como eu queria ser aquele gatinho
de olhos curiosos, enfim, para conhecer todos aqueles heróis... não, não sei o que
aconteceu com ele depois, digo, depois que o Dr. Destouches foi preso na Dinamarca.
Magno: Não gosto de bichos porque me tratam como um lá no trabalho. Só falta a eles
me acariciarem a barriga porra, ou colocarem meu pratinho com ração no canto da
parede. Todos uns politicamente corretos de merda. Odeio isso, essa gente, ainda mais
aquele meu chefe ruim dos parafusos. Você acredita que semanas atrás ele passou um e-
mail com cópia para todo o mundo dizendo que não era proibido “fazer saliência” no
banheiro das dependências da empresa porque, segundo a última resolução da
Convenção de Genebra, o ato não constituía atentado ao pudor, desde que “a porta
esteja fechada”? Sim, usou essas palavras, alceadas assim mesmo, desse jeito que estou
te contando. Ora vá à puta que... sim, na certa citou Genebra pelo romantismo... o veado
do George Michael ia adorar trabalhar lá onde eu trabalho.
Marcos: Esta sim teve uma vida daquelas, cheia de reviravoltas. Também, com um
nome daqueles... Senão, vejamos: lésbica na Paris de 1940. Escritora fugitiva na
Bélgica, onde morou em uma água-furtada imunda na qual mal cabiam seus livros.
Estudante de estruturas de controle, em Viena. Vendedora de guarda-chuvas na Suíça.
Motorista de carro funerário em Madri e Barcelona. Fluência em espanhol e catalão. Em
Oslo: gorda demais para ser charmosa. Integrante do “Grupo de Investigações de Casas
Mal-assombradas” na Nova Iorque de 1965. Desquitada do marido na Montevidéu de
1969, época em que não cabia mais sequer nos sapatos. A conheci velhinha, já quase
para morrer, não cheguei a ler nenhum livro seu, mas enfim: aquilo não era uma vida,
mas um refrão de bolero arranhado na faixa.
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Guilherme: Aquele escritor norueguês... como é mesmo o nome dele? Enfim, teve uma
vida tão atribulada quanto, o sujeito era um bufo, um fanfarrão... o nome é esquisito
demais, não vou lembrar, só sei que mesmo depois de ficar rico continuou a andar com
os cadarços dos sapatos velhos emendados, sabe, e a escrever no verso das folhas dos
calendários, hábitos esses adquiridos quando ainda era um miserável, mais pobre que
uma meia furada... até onde eu sei ficou rico quando recebeu o Nobel de literatura, e
isso no início do século vinte e, nossa, como disse antes a você: era um fanfarrão, já que
teve presença de espírito suficiente para, no momento exato em que recebia o prêmio,
largar um beliscão na bunda da mulher encarregada de entregar o cheque a ele, já
imaginou uma cena dessas? E isso bem no meio da cerimônia pomposa de entrega, você
sabe: aquele teatro todo. Além disso, li não lembro onde que quando retornou para o
hotel onde estava hospedado ele perdeu, no elevador, o bendito cheque supracitado com
a importância do prêmio, quer dizer... Esse mesmo, com aqueles bigodões pontudos que
se nascessem na testa seriam chifres... exatamente, muito, mas muito dinheiro para a
época, sorte foi terem encontrado o cheque no dia seguinte, mais sorte ainda terem
devolvido, cheque que mesmo depois de descontado não levou seu dono a largar
determinados, digamos assim, cacoetes ridículos de pobre.
Magno: Quer dizer: todos têm filhos, empregos estáveis, cachorros, casas na praia. A
vida nem parece mais vida, mas um comercial de margarina, ou você acha que nem?
Eurídice: Abre bem o olho, assim, cisco no olho é fogo mesmo... então, a Sílvia cria uns
dez cachorros lá na chácara onde mora com o... cadê a Sissi? Dez, dez cachorros, por
isso o Magno não gosta de ir visitá-la. Eu também não gosto muito, mas são outros os
meus motivos... ela sempre foi assim, lembro que quando nós éramos adolescentes ela
dizia que nosso hímen era uma espécie de balão com gás hélio, e que se nós não o
segurássemos bem com as mãos ele voaria pelo céu até desaparecer, ih, ih, ih, então nós
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não poderíamos casar nunca, nunca... não, ela sempre foi a mais espirituosa de todas as
irmãs, gostava de contar piadas, ou de inventar brincadeiras, só deu trabalho quando
bem criança, época em que gostava de desenhar ursinhos de pelúcia enforcados, não é
mesmo Ci... Onde a Sílvia foi?
Lili: Está melhor? Saiu? Bem, crianças em geral parecem saber mais sobre os sonhos do
que os adultos, e tudo por quê? Por que ainda não perderam a paixão pelos segredos e
pelas revelações desses segredos, percebe? Consegue entender?
Azeredo: Visitei uma vez apenas, ficava no Hôtel Orfila. Paris, afinal de contas, é a
cidade dos escritores, mas gostei mesmo foi de ter cruzado na rua com a Cicciolina,
certa vez. Que sorte. Uma coisa dessas só poderia acontecer comigo mesmo, de
qualquer modo, na época ela ainda nem sonhava em se candidatar ao parlamento
italiano, o que na minha opinião seria muito acertado caso ela tivesse sido eleita, enfim,
para quem já levou ferro do John Holmes política é bobagem... o que estou dizendo meu
Deus? Acho que você é uma má influência para mim, Magno... sim, se a memória não
me falha ela estava com um produtor russo, procurando locações para um filme, você
sabe não é? O título do filme eu li dias depois em um jornal, era: “Um encanador
trabalhando”. Terrível não? E ela estava com um perfume que eu vou te contar uma
coisa, lembrava uma seda bem passada, e em uma cidade que respira literatura eu fui
cruzar na rua logo com quem...? Pensando bem, teria sido pior se cruzasse com o
Strindberg, não é?
Guilherme: Minha filha uma médica, já imaginou? Diz que vai se especializar em
ginecologia, que quer conhecer profundamente os mistérios femininos, a verdade
científica das vísceras, ou seja lá mais o quê de Semmelweis, de Jules-Émile Péan, ou
de qualquer outro nome desses que ela diz ao telefone com a naturalidade de quem pede
uma água tônica.
169
Lili: E ela é tão carinhosa com eles, acho que transferiu para os cães o carinho que
deveria ter dado aos filhos. Não que os cães não mereçam carinho, não estou dizendo
isso, aliás, meu Senhor ama esses pequenos seres ignorantes e obedientes, tanto que não
foi à toa ter colocado um, de pêlo escuro, aos pés do Dr. Johannes Faust, você me
entende? É sempre bom ter um cãozinho ao lado quando se quer sentir-se grande, assim
como Faust queria, e não apenas isso, mas a conquista do mundo, da natureza, das
mulheres e da imortalidade, era o que também almejava. E o que conseguiu, em partes,
e graças à intervenção do meu Senhor, que sempre aparece quando é invocado.
Magno: A merda do isqueiro não está funcionando, e a Lazinha Brito é minha vizinha,
porra, acredita nisso...? É claro que você lembra-se dela, é a autora do clássico “Órfãos
de pais vivos”. Uma idiota... Sim, sim, fui irônico, é claro que você não se lembraria da
Lazinha, ninguém se lembra dela, a não ser a Eurídice, que nem filhos tem. O livro dela
é uma merda. A Eurídice adora. Graças a Deus a porra do livro foi esquecido. E isso me
faz lembrar que, você nem imagina, ela conseguiu cavar meses atrás uma entrevista em
um jornal, ah, inacreditável, como fui me esquecer deste detalhe? Na certa o repórter
deve ser algum amigo seu ou, o que seria bem pior, algum leitor devoto de sua única
obra publicada, hoje caída no esquecimento, enfim, como disse antes: graças ao Bom
Deus. A matéria que acompanhava a entrevista trazia um título em caixa alta que dizia:
Lazinha Brito, autora do fundamental “Órfãos de pais vivos”, comemorará seu
octogésimo aniversário saltando de pára-quedas... mas é óbvio, ela estava querendo
publicidade não é? Agora é esperar que o pára-quedas não tenha funcionado.
Marcos: Não estou dizendo a você? Ele não só conseguiu finalmente casar com seu
videogame, primeiro no civil, depois no religioso, como conseguiu, depois de uns meses
de casado, ser contratado pela Sony como seu garoto propaganda vitalício. Aliás: ele e
sua digníssima esposa, ah, ah, ambos foram contratados, e mesmo depois de tantos anos
170
ainda é possível vê-los nos comerciais da empresa que passam na TV... claro que não,
casou em uma igreja evangélica de fundo de quintal, afinal de contas, as igrejas
evangélicas andam aceitando o casamento de qualquer um.
Guilherme: É como diz o ditado: “buraco ocioso fareja ponta de vara”... será que a
escritora de que você falou... a lésbica na Paris de 1940... talvez ela tenha cruzado com
o Jünger por lá... não, ele era um oficial durante a ocupação alemã na França, já te falei
isso, e imagine: dizem que levava sempre um diário consigo, certo, para registrar suas
impressões, delimitar seu campo de reflexão, talvez para conseguir quebrar seu
isolamento, percebe, para ir contra a corrente uniformizadora das massas. Consegue
sentir a solidão deste homem? Seis, seis diários, e não um ou dois, mas, seis. Todos
publicados recentemente. Um gigante movimentando-se na cidade ocupada, um gigante
em óleo, parecia saído daquele último quadro de Goya antes do canto fúnebre de suas
pinturas negras; frio, observador, destacado das alimárias como seu mais cruel predador,
animal carnívoro e anônimo escrevendo, escrevendo e, até onde li, ele só descreve
impressões sobre pequenos movimentos, gestos, pequenas intenções desenhadas em
mínimos movimentos de face, compreende? Era como se desejasse negar a realidade da
guerra, e este é o paradoxo mais assombroso daquele homem, quer dizer, o sujeito era
uma máquina de matar, um mestre da técnica do combate, só que, ao escrever, parecia
deter sua atenção em outro foco, e mesmo quando, no “Em tempestades de aço” por
exemplo, ele narra com exatidão perfeita as cenas de guerra mais terríveis que você
possa imaginar, não sei dizer ao certo o quê, ou explicar direito, era de fato um monstro
da técnica narrativa, sabe, a violência para ele parecia nunca ser desagradável, e isso é
fascinante, um autor de mérito, sem dúvida, sem nenhum relaxamento estilístico
detectado... a guerra para Jünger, é aí aonde queria chegar, não passava de um imenso
processo de trabalho, de onde ele colhia como produto a exatidão mágica de suas
171
descrições, assim como na Paris ocupada a mesma obsessão pelo detalhe se apresenta,
mas, é como se ele descrevesse besouros, você entende? Besouros, e não seres
humanos, enfim, sua precisão descritiva era a de um zoólogo, ou... percebeu como de
repente estou falando bonito?
Azeredo: Bem, da literatura... conheci um editor (bebia como uma seringa gorda) que
havia trabalhado com Francis Picabia na Cannibale; algumas dançarinas (belíssimas) do
Cabaret Voltaire, berço do dadá em Zurique; o antigo dono do histórico café Lê Cyrano
(onde André Breton e George Bataille se conheceram) morava no mesmo prédio que eu;
alguns simpatizantes comunistas da Clarté; alguns colecionadores fanáticos da La
Révolution surréaliste; antigos freqüentadores (todos sifilíticos) da rua Blomet;
traficantes de cópias da L’anus solaire; ex-colaboradores da Minotaure; enfim, um
grande elenco de psicopatas, ah, ah, toda uma penca de perturbados, sabe, de malucos,
todos parecendo viver em outro mundo, entende? Um mundo antigo, esquecido, mundo
da Comédie Française, do Odéon, das tragédias e comédias de Corneille, Racine,
Molière, enfim, uma matilha sarnenta de tuberculosos decadentes apoiados em bengalas
fumando seus cigarros no Restaurante Véron, ou coçando suas imundas sarnas
vermelhas em gabinetes escuros de leitura, lojas de música, alfaiatarias, sapatarias,
sebos, Théâtre des Variétés; Vaudeville, cada qual um flâneur vestindo paletó cinzento a
imaginar o desenho da intersecção dos trilhos, do fascínio das salas de espera dos
cabarés, cada qual um filósofo de terceira traçando analogias entre a arquitetura barroca
das igrejas e a melancólica predisposição espiritual dos parisienses, droga, aquilo tudo
dava nos nervos da gente, entende, toda aquela fenomenologia do século 19, quer dizer,
todas aquelas galerias de compra esfumaçadas, todas aquelas prostitutas, jogadores,
colecionadores, trapeiros, atores representando o melodrama da pantomima do “O
máscara de ferro”, e nada de James Joyce, droga, e nada de Henry Miller, merda, apenas
172
os fantasmas que sobraram de todo aquele sonho, e no meio dos fantasmas nós, os
exilados, os últimos românticos de fato, ou: os de fato realmente fodidos mesmo...
Eurídice: Hímen como um balão de gás hélio... é uma metáfora não é? Pois então, a
Sílvia às vezes tinha dessas coisas. Gostava de falar bobagens como ninguém, lembro-
me de um dia ter reunido todas as irmãs para explicar a origem do, ih, ih, papel
higiênico, ou seja, ela era assim mesmo, cheia de novidades, e nos divertia com suas
descobertas: o papel higiênico foi inventado em 1371 na China e... não sei se era
verdade, se tinha lido isso em algum lugar ou inventado, mas, não importava, ela nos
divertia muito, pense bem: quem em sã consciência daria uma palestra sobre a invenção
do papel higiênico? Só ela, só ela. De outra vez disse só para mim que tinha ouvido
falar de um prefeito de uma cidade do interior que havia mandado prender quinhentos
porcos porque eles andavam soltos na rua fazendo filhotes com cadelas vira-latas, nossa,
lembro que corei na hora enquanto ela gargalhava, gargalhava, na verdade eu estava
com medo de que nossa mãe tivesse escutado e, você sabe como dona Elvira era não?
Depois, à noite, enquanto nós jantávamos, ela ficava sussurrando em meu ouvido:
filhotinhos de cães com cara de porco... não, não me deixou comer em paz por um
minuto, e assim era ela...
Marcos: Acende com o meu... bem, como eu estava dizendo: no lugar da evolução
orquestral: o silêncio das pausas para tossir. Então entram as bailarinas, todas na ponta
dos pés. E esse movimento é uma forma herdada da época em que todas eram
sonâmbulas e caminhavam no parapeito das varandas.
Azeredo: Não: muito mais. Mas só aos poucos vou recordando... além de ter visitado o
quarto onde o Strindberg se hospedou, meu único contato direto com a literatura em
Paris aconteceu quando conheci um senhor de idade que disse ter certa vez barrado a
entrada do Borges em um hotel... não, não: Borges, Jorge Luís Borges, o escritor
173
argentino e, por favor, não vá sacar sua browning... certo, o conheci por acaso, em um
café lotado, um dos tantos cafés lotados que existem na cidade das luzes. Começamos a
conversar também por acaso, e entre um café e outro e um cigarro e outro lhe contei de
minha condição de exilado, de fodido romântico, assim como sobre os poemas do
Ângelo Dantes e, quando percebi, ele já estava falando acerca do seu erro fatal, do seu
terrível erro fatal, sendo estas as palavras que usou durante todo o relato, relato em que
ele, em uma época que não soube precisar (“estou velho meu filho, me desculpe”), era o
gerente de um hotel em Genebra, hotel onde certa noite apareceu aquela figura
extravagante (“porque o Borges era uma figura de aspecto extravagante”) querendo se
hospedar (“estava acompanhado de uma mulher, se não me engano”). Acontece que ele,
e a esta altura do relato seus olhos marejaram d’água, sabia de antemão do desejo do
Borges de morrer na Suíça, desejo expresso pelo próprio autor em uma entrevista, e
achou que seria de mau agouro aquele homem morrer justamente em seu hotel, entende,
e imagine só: achou que isso espantaria os clientes (“e ele estava para morrer mesmo,
velho, muito velho, assim como estou agora”). E não adiantou de nada o Borges contra-
argumentar, aludindo a outros escritores (“como Oscar Wilde, por exemplo”) que
morreram em hotéis que depois ficaram famosos por conta disso, quer dizer, que depois
passaram a ser procurados por verdadeiras levas de turistas desejosos de conhecer algo a
respeito da vida ou da morte do escritor ali falecido (“acho tudo isso de uma morbidez
inacreditável”). Então ele inventou que o hotel estava lotado, o que era mentira, e bateu
o pé e disse não. Não, não e não, enfim, não umas três vezes, quando na quarta o Borges
agradeceu (“parecia um espantalho habitado por pássaros”), virou de costas, e foi
embora. Meses depois e morreria em um outro hotel de Genebra, cujo gerente não teria
sido tão inflexível quanto ele fora, antes compadecido pela condição de idoso do
escritor argentino. Não deu outra: o hotel em que morreu ficou famosíssimo, assim
174
como Borges profetizara. E o seu hotel, eu perguntei. Não trabalho mais lá, ele
respondeu, começando a chorar em seguida.
Lili: Você tem que ler o “Fausto”. Melhor: o “Doutor Fausto”... Não, não é preciso
entender nada, certos livros precisam apenas ser sentidos, sabe, sobretudo este do
Thomas Mann, não sei dizer, ele tem uma música sombria que toca de suas páginas, ah
Senhor, como o Senhor se compadece da tristeza de Zeitblom quando ele percebe a
queda inevitável da Alemanha durante a segunda guerra, o enterro definitivo dos
ideais... E como o Senhor aparece bem nesse livro, não? O Seu lado bom, generoso, a
implacável cobrança de Suas dívidas... Além do mais, adoro a palavra “escol”, e neste
livro ela aparece algumas dezenas de vezes... Escol, escol: tão sonora, você não acha?
Eurídice: São tantos os livros que tenho para ler, você acredita nisso? Ainda não li
metade... bem, bem menos que a metade.
Marcos: Chama-se “Leitura de objetos”. Um sujeito holandês – Dr. W.H.C. Tenhaeff –
é um dos pioneiros no assunto. É uma forma de ESP em que uma pessoa ou mais de
uma parece receber impressões sobre acontecimentos do passado através de objetos
ligados a eles. O caso das bailarinas, por exemplo...
Magno: Mas o destino desse “A lepra na pêra” será o esquecimento também, concorda
comigo...? Ninguém lê poesia neste país Mário, não sei onde você estava com a cabeça
quando... porra, o livro vai amarelar nos sebos, ao lado da Lazinha Brito e do Humberto
de Campos... ah, mas só se o poeta aparecesse de surpresa, e dissesse em entrevista que
iria saltar de pára-quedas para... Lembra-se daquelas camareiras de um hotel na
Noruega... sim, aquelas que fizeram um abaixo-assinado solicitando que o hotel onde
trabalhavam parasse de disponibilizar canais pornográficos para os hóspedes... elas
alegavam que os mais empolgados ficavam dando em cima delas... não, não tem nada
175
haver com o Dantes, só queria mudar de assunto, sei como você fica chateado quando se
fala que... você também hein, não acha nada gozado, ao contrário das camareiras do...
Marcos: O sobrenome era Brotésilas, ou algo assim, foi ele o autor deste estudo. Agora
está com oitenta e um anos, um tarado... exatamente, aquele velho suspeito de vários
estupros: é ele. Oitenta e um anos, inacreditável... não, saiu vitorioso dos tribunais
porque conseguiu provar, através de um exame médico, que já não era capaz de irrigar
tão bem assim seus corpos cavernosos... acho que os jurados e o advogado de acusação
esqueceram que hoje em dia existe o Viagra.
Azeredo: A História é costurada por uma linha injusta: a do tempo. Parece óbvio, mas
não é. A verdade é que não existe nenhuma afinidade – ou de interesse, ou de temas, ou
até mesmo de processos históricos – que justifique o esquecimento que alguns herdam
ao andarem – ou à esquerda, ou à direita, ou até mesmo paralelos – fora dessa exata
linha. Sobretudo se se caminha cagando e andando para... não, nesse caso a injustiça é
ainda maior.
Lili: O sentido de toda pergunta final é a morte. Mas só o Meu Senhor é capaz de dar
um sentido ao que se pergunta, antes do fim em que ele costumeiramente é revelado,
sabe, para o Meu Senhor, a hora final não é a curva que se fecha sobre nós e sobre si
mesma, mas a reta que se abre, alastra, expande-se. Nenhuma ufania manterá em
nenhum obtuso símbolo uma memória...
Guilherme: Mas não só o Ernst Jünger... como é o nome daquele outro escritor alemão...
O rosto lembra o de um são bernardo bêbado... Ah, os alemães são os maiores de todos:
vigorosos, repletos de sentimentos de culpa, assim como... Sou péssimo para lembrar
nomes, mas guardo fisionomias como poucos... Acho que é esse mesmo o nome... Ah, o
Jünger é o meu preferido, por isso que... Então, recentemente esse aí declarou ter se
alistado nas SS da época áurea do hitlerismo, entende? Quer dizer: eram as forças
176
militares de elite do regime nazista, e ele se alistou nelas, confessou isso, dizendo ainda
que sempre sentia o peso do fato como uma mancha da qual ele não podia sequer falar,
até que resolveu escrever sobre... sim, um livro de memórias, ou seja: coisa de velho
mesmo, velho de hálito ruim provocado por algum problema estomacal, ah, ah, e o que
estou querendo dizer com isso é que você não pode julgar a todos com base em seus
erros do passado, sobretudo se tais erros estiverem ligados a uma certa ideologia muito
comum à época, droga, não deixava de ser comum, veja bem, estamos falando da
Alemanha de 1942, jovens românticos serem convocados a integrar os corpos militares
de Hitler, quer dizer, aquilo tudo foi uma febre, uma belíssima febre de vida, percebe? E
hoje, sob o peso da sombra dos vencedores, você pode muito bem dizer que ele estava
errado, assim como ele próprio admitiu estar, mas, não naqueles dias, você entendeu? E
o mesmíssimo raciocínio pode, e deve, ser aplicado ao Jünger, enfim, aplicado até a nós
mesmos... Não, você não faz ideia do que foi aquilo, não deve ter lido muito sobre o
assunto... a nós também, e por que não? Ah, meu irmão, têm coisas que você ainda não
sabe sobre nós.
Eurídice: Acho que estão começando tudo de novo. Engraçado é que nunca se deram
bem mesmo, e isso desde que eram crianças. Depois, continuaram se estranhando na
adolescência, na idade adulta aqueles problemas todos com nosso pai... É difícil, muito
difícil... Lili, estou querendo perguntar um negócio faz tempo: quem é este “Senhor” de
que você tanto fala?
Azeredo: Outros gigantes maiores caminharam pelas ruas de Paris, bem maiores que
este escritor nazista que você tanto gosta... Tenho alguns livros dele sim, mas são outras
as razões que me levam a lê-lo. E ele está na prateleira dos reacionários, junto de
Céline, de Hamsum, e de tantos outros que agora não... Pensava em Miller quando
caminhava por lá, em Strindberg, em Ângelo Dantes que, talvez, quem sabe, também
177
não estivesse por lá assim como eu, e assim como eu exilado de seu país, entende,
entende que lia “O camponês de Paris” de Louis Aragon, que lia “Nádia” de André
Breton, e não... bem, se hoje ele está esquecido, assim como disse o Magno, não é culpa
minha, afinal de contas: fiz a minha parte. Pelo menos, e graças a mim e a alguns
colaboradores abnegados, ele teve seu livro publicado, e mesmo que eu o tenha
publicado, organizado, apenas para que ele mofasse nas prateleiras dos sebos, quer
dizer, isso definitivamente foge de minha ossada e portanto não me interessa, o que me
conforta é saber que, ao menos isso, ele nunca figurará nas prateleiras dos sebos ao lado
de um nazista como o Jünger, ou de um reacionário como o Hamsum, e isso tanto por
uma questão ideológica quanto de organização em ordem alfabética, graças a Deus.
Lili: Meu Senhor é o deus da gentileza para quem a merece e do amor nunca
desperdiçado aos ingratos; Senhor não apenas do espírito, mas da carne; não apenas do
sangue, mas da nata do leite; para quem o universo não está morto, mas ainda
indecifrado; meu Senhor é o grande Humanista presente na tinta dos maiores escritores
de todos os tempos; é o número vermelho impresso na iconografia dos grandes artistas;
Senhor de tudo aquilo que voa, mas que também rasteja; Aquele que maneja os dons,
que conhece a verdadeira face do padrasto, este é o Meu Senhor, Aquele que não tem
nome, mas que, quando dito, adocica a boca na qual nasceu novamente...
Marcos: Não vá assustar a Eurídice assim como assustou aquela nossa empregada
doméstica evangélica, lembra...? Ela era de uma igreja, ou seita, sei lá, que buscava
resgatar o cristianismo de Pedro, em tese mais próximo do judaísmo que a versão
ecumênica de Paulo. Recorda? Uma inteligência bem cristalina, digo, para uma
empregada doméstica. Magno: Tão esquecido quanto o “Órfãos de pais vivos” ou o
“Homens, mulheres e pianos” ou o “Casamentos em conflito”, ah, até mesmo quanto o
“His monkey wife”. Quem, por livre e espontânea vontade, se lembrará do “Esposa:
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manual do usuário”? E o que dizer do “As noivas do Texas” ou do “Primícias” ou do
“Esperando a ereção” ou até mesmo do “Se meu apartamento falasse”? Quem, em pleno
gozo de suas faculdades mentais, hoje em dia se lembra desses livros, ou do “As netas
da Emma” ou do “As filhas de Lady Chatterley” ou do “O dia do gafanhoto”...? É
verdade, eu estou lembrando-se de todos, mas isso não vem ao caso, o que estou
querendo dizer é que...
Marcos: “A flatulência dos dinossauros e a consequente extinção da espécie”... esse
título é realmente o mais ridículo de todos... mas, demos um jeito no autor... do livro a
História fez questão de cuidar.
Guilherme: Ele pergunta de nossa biografia, general, o que o senhor me diz disso...?
Engano seu, tenho muito orgulho dela, e acredito que o general também tenha, afinal de
contas, salvaguardamos a democracia de nosso país da ameaça comunista. E pagamos o
preço por isso, ou seja: saímos de vilões na história, enquanto que seus “companheiros”
saíram de heróis e hoje estão todos bem instalados no poder, promovendo a baderna da
democracia que todos nós assistimos diariamente na... sou a favor também... então que
se abra os arquivos da ditadura militar, vamos, não tenho nada contra, porque não tenho
nada a esconder, essa é a verdade, e isso de vocês é ressentimento por termos vencido a
guerrilha em 1973, ora, imagine só se deixaríamos nosso país se transformar em uma
imensa e depravada China vermelha... era o que vocês queriam, não? Queriam a
depravação, a sacanagem, queriam todos os brasileiros fazendo strip-tease nos funerais,
não é, assim como acontece por lá, não é isso? Ora, todos aqueles intelectuais
stalinistas, trotskistas, maoístas, enfim, todas aquelas passeatas barulhentas com fotos
do Lênin tremulando... vocês sequer imaginavam como os intelectuais eram tratados na
antiga União Soviética, não é mesmo...? Ah, posso citar vários exemplos, de vários
escritores que morreram nas prisões dos Gulags, mas, enfim, não vou gastar vela com
179
santo surdo, o fato é que... não passa de um livro tendencioso, imbecil, mas ainda assim
você disse bem: tenho orgulho de figurar nele do lado correto, do lado certo, entendeu?
Aquele cínico do Dom Paulo Evaristo, aquele cínico do James Wright, patrocinaram
toda aquela história parcial, quer dizer, as acusações de torturas eram válidas para eles,
mas não os atentados a bomba que matavam inocentes, não é mesmo? Lembra-se do
aeroporto dos Guararapes em 1966? Dois mortos e treze feridos, entre eles uma criança,
lembra-se disso...? E isso está por acaso documentado no “Brasil nunca mais”? Os
seqüestros estão documentados? Os assaltos a banco? Vocês esquecem o que é
conveniente esquecer e querem agora que todos recordem apenas do que é conveniente
para vocês recordar, não é assim? Ah não? Então abra minha cabeça porque não estou
entendendo mais nada.
Eurídice: Quer mais um pouco de vinho? Você de repente começou a falar as coisas de
um jeito... não, esses dois não param nunca, não adianta. Pior que eles só aquele sujeito
que ligou há dois dias lá na Central para dizer que seu irmão havia lhe pregado uma
baita peça e que ele precisava descontar. Sabe o que me disse? Que possuía uma
espingarda modelo Delta, calibre 45, e que gostaria de saber qual a distância segura para
dar um bom susto nele, entende, ou seja, ele queria atirar no irmão, mas, não para matar.
Acredita nisso...? Ah, eu disse que a orientação da Taurus era a de que ele não atirasse
em seu irmão, mesmo que de brincadeira. Nossa, parece mentira não é, mas tive de
dizer realmente que uma das principais regras para o bom manuseio de armas de fogo é
bastante clara: nunca, em nenhuma hipótese, apontar uma arma de fogo, carregada ou
descarregada, para qualquer pessoa ou coisa que você não deseje atingir de fato, ou
destruir... acha que fiz mal? Espero não ter acendido nenhuma ideia na cabeça dele, já
imaginou? Ia ficar me sentindo culpada depois.
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Azeredo: Mas isso graças ao “Grupo de Trabalho em Desaparecimentos Forçados ou
Involuntários”, e você sabe muito bem disso, sabe que o grupo foi criado em 1980 para
fazer frente ao número de pessoas desaparecidas durante as ditaduras militares na
América Latina, e você sabe ainda melhor e muito mais bem do que eu que o grupo já
notificou em vinte e seis anos nada mais nada menos do que cinqüenta e um mil casos
de desaparecimento aos governos de mais de noventa países, sendo que desse total,
cerca de quarenta e um mil não foram esclarecidos, ou seja... não sorria assim dessa
forma, o assunto é sério, e o pior de tudo é a angústia de não saber, de não ter certeza se
houve morte ou não, e aqui no Brasil, e você continua sabendo muito bem disso, a lei de
95 reconheceu apenas cento e trinta e seis desaparecidos políticos da ditadura militar, a
maioria participantes da guerrilha do Araguaia, o problema é que nós dois sabemos que
foram muito mais, não sabemos? O nome de Ângelo Dantes, só para citar um exemplo,
não foi incluído na lei e...
Lili: Meu Senhor tem muitos nomes, muitos rostos... Shelley O enxergou no quadro da
Medusa, e Seu belo nome era fascínio da corrupção... Goethe descreveu o Seu mais
antigo pormenor naquela pequena jovem da noite do Sabah... Novalis descobriu a raiz
comum do Seu amor através de Suas três principais ramificações: volúpia, religião e
crueldade... Musset O identificou no desespero. Gide, o parcial: na dor. Keats O
pressentiu ao vislumbrar um de Seus rostos na melancolia. François Bonal na volúpia
do sofrimento. Barbey D’Aurevilly no amor que sentiu Réginald por uma tísica.
Baudelaire no senso de beleza presente também no horrível. Gouncourt na corrupção da
bondade... No “Gerusalemme liberata”, Torquato Tasso equivocou-se ao descrevê-Lo
ainda nos moldes de Sua antiga e horripilante máscara medieval. E assim como ele,
Marino. Ah, mas tão diferente deles foi Lorenzo Lolto, que O representou fielmente,
fielmente, como a criatura bela que de fato É. E Blake então, que disse ser de Seu
181
partido sem sabê-lo... mas foi Byron, ah Byron, o mais generoso, ao identificá-Lo com a
rebeldia, com a revolução, elevando assim à perfeição aquilo que Milton iniciara... E
ainda mais generoso por ter enxergado em si próprio o sinal do Seu destino, de Sua
predestinação, sinal este timbrado no poeta como uma marca distintiva entre ele e os
demais homens: seu pé manco. Percebe? Percebe que dessa forma, enxergando o poeta
inglês nesse seu defeito a própria razão da fatalidade do Meu Senhor, ele...
Magno: “Os sete minutos”, “A convidada de honra”, “Mulheres boazinhas não
enriquecem”, “Vaginas: manual da proprietária”, “Peste a bordo”, “No labirinto”,
“Plantão da noite”, “Casais trocados”, “Um espião para amar”, “Vencidas pelo desejo”,
“A divorciada disse sim”, “Aconteceu no verão”, “A herança envenenada”, “Enganada
pelo cheque”, “Entrevista com o amor”, “A esposa comprada”, “Não me diga adeus”,
“Necessitada de marido”, “Bebê à vista”...
Guilherme: Guerrilheiros? Faça-me o favor. Vocês não passavam de ratinhos nas mãos
do Pavlov Vermelho e...
Marcos: Tudo na vida é uma questão teatral. O Durvatério Margarido, por exemplo:
hoje em dia todos nós sabemos que aqueles ataques de estrela que tinha durante seus
concertos era tudo combinado previamente, e ensaiado, veja só... já ouviu falar daquele
caso da velhinha com um leque...? Também, mas não somente esse, mas... deu gosto
interrogá-lo na época, lembra? Foi ele quem deu a ideia ao Caetano do Gil gritar o nome
de Marighela naquela música lá... exatamente: “Alfômega”. E pensou que nós não
perceberíamos.
Guilherme: Tudo uma grande safadeza da esquerda brasileira. Um grande ajuste. Hoje
em dia é um grande negócio o sujeito vir a público e dizer que foi torturado. Sim,
derrame lágrimas se preciso, canalha. E mesmo que não apresente nenhuma prova, é
bem provável que receba algum tipo de idenização. Os canalhas vermelhos estão
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querendo mesmo mamar nas tetas do... ah, não? E o Heitor Cony, o que fez? E quanto a
Bete Mendes, em 1985? Aquilo foi uma palhaçada, um teatro de quinta... sim, tão
bonzinhos vocês eram. E o que me diz da “União das Repúblicas Socialistas Latino-
americanas” que vocês pretendiam implantar...? Não? Iriam sim instaurar o terror, ou
não iriam...? Vai dizer agora que... e os meios que vocês utilizaram? Assassinatos,
atentados a bomba, seqüestros, assaltos a quartéis, a bancos, a carros-fortes... aquilo foi
uma guerra meu irmão, e repito: guerra vencida pelas forças de segurança nacional, daí
o... tudo necessário para a volta da democracia no país, é isso, e antes de pedir que nós
nos expliquemos, você deveria pedir aos seus amigos, todos aqueles seus amiguinhos
pau-mandados de Castro, que expliquem a alta traição à pátria que praticaram quando
tentaram de todas as formas implantar uma ditadura comunista no Brasil... não, é claro
que não, uma ditadura nos moldes cubanos, era isso o que vocês queriam, era isso o que
queria a hidra vermelha que hoje está no poder e veja bem o que ela anda fazendo...
Eurídice: O avô do Egberto, acho que ele era da mesma religião que você. Mas não
passava de um espanhol safado, que conheci na época em que a Sissi e o Berto ainda
namoravam. O velho fingia que estava cego para tocar nas coxas de qualquer mulher
que sentasse ao seu lado... sim, na minha tocou várias vezes, e nem falava o português
direito. Mas era um homem bonito, alto, dizem que chegou a trabalhar de figurante em
vários filmes do Bunuel... Cumbres Borrascosas, La vida criminal de Archibaldo de La
Cruz, Los olvidados, Las Hurdes... falo bem o espanhol, não falo? Também, recebi
tantos elogios às minhas coxas e, além do mais, o espanhol é uma língua romântica, não
é?
Azeredo: Você distorce tudo, senão, vejamos: o que me diz do governo ter recorrido da
decisão de quebra do sigilo das operações militares feitas no Araguaia, hein? Até hoje
as indicações dos locais de sepultamento dos corpos não foram fornecidas, e isso quer
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dizer que nenhum corpo pode ser de fato identificado, bem, salvo engano apenas um o
foi, e um apenas, e isso desde 1980. O que você me diz disso? Todas as fontes de
pesquisa são sonegadas pelo governo que sob pressão do exército não cede e agora você
quer me dizer o quê? Que estamos nos favorecendo? Em que sentido? Só a vocês o
silêncio favorece, essa é a verdade dos fatos, dos fatos que vocês não querem que
venham à tona, isto sim... como?
Magno: E como se não bastasse ainda temos o problema dos chineses amarelos-
bebedores-de-água-quente e colecionadores de virgindades. E se decidem de repente
também escrever livros? Porra, os filhos da puta são muitos, muitos, tanto que na época
da guerra fria, ah, quando todo o mundo se pelava de medo do (sempre) iminente perigo
de um holocausto nuclear, os chinas sequer se preocupavam com isso. Ora, a pachorra
era tanta que o Mao chegou a declarar que, no caso de uma guerra nuclear, restariam
ainda (pelo menos) uns três milhões de amarelos sob a face da terra, número que
segundo ele seria o bastante para a raça humana manter seu rela-rela, o que em outras
palavras...
Lili: Agora, para os cristãos, Meu Senhor é sempre descrito daquela mesma, e
monótona e sem criatividade alguma, forma, através de suas ladainhas sonolentas de
sempre: primeiro, a serpente que tentou seduzir Adão; depois, a que teve melhor sorte
com Eva. Acontece que, por exemplo, a tentativa de seduzir Adão foi suprimida do
Gênesis, ah, ah, ah, cabendo assim apenas à mulher a culpa pelo pecado original. Lindo
isso não? Tudo tão enfadonho e sem criatividade. Tudo tão parcial. Senão, observe:
nada do que Meu Senhor de fato sussurra é pronunciado corretamente na bíblia.
Tentaram deturpar as Suas doces e ternas palavras. Na verdade, o que Ele queria e disse
querer era apenas que o Homem adquirisse vontade própria, você entende, o que não
aconteceria enquanto sua decência descansasse sobre aquela falsa noção de segurança
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toda. Sim, porque o paraíso nada mais é do que isso: uma falsa noção de segurança. E
todo o drama cristão da salvação da alma posterior ao Gênesis baseia-se nessa falsa
noção, que ao longo dos séculos nada mais fez senão empobrecer o espírito do Homem,
espírito este que Meu Senhor desejava rico e luxuoso e...
Magno: “Apaixonada pelo chefe” (esse deve ser bom), “O filho secreto do magnata”
(subtítulo: “não usou camisinha porque não quis”), “O milionário e a camareira”
(lençóis sujos de porra logo nas primeiras páginas), “Sua por lei” (verbo ou pronome
possessivo?), “Presa no natal”, “Voltar a apaixonar-se”, “Só uma questão de negócios”
(mas se passar a cabeça entra tudo), “Sedutoramente tua” (o advérbio a serviço da
putaria), “Sem anéis” (não há períneo, como diz o coronel), “O sonho da inocência”
(ou: “sem amor só com cuspe”, ou, melhor ainda: “caralho não tem ombro, logo, não
tem cabeça”)...
Marcos: Engraçado... gosto de ler também livros sobre a época da Inquisição, como um
que acabei de ler há pouco tempo, enfim, não recordo do título, não tenho uma memória
tão boa assim como você, mas o livro tratava dos casos mais inusitados daquela época,
sabe, como o de um cavalo que foi condenado a morrer na fogueira em 1639, por crime
de homicídio e...
Guilherme: Essa era a nossa motivação ideológica, e não a do partido comunista
brasileiro... Luís Carlos Prestes e Olga Benário, ora faça-me o favor... O que o PCB
fazia não passava de justiçamentos, além disso, todas aquelas ligas camponesas, aquela
anarquia toda... e quanto aquelas sete bombas simultâneas no Guararapes...? Marighela,
o ideólogo do terror, recrutava apenas jovens imbecis o bastante para ir na conversa
fiada dele, o próprio Movimento Armado Revolucionário, enfim, tudo o que vocês hoje
criticam no governo militar foi aparelhado para que nós nos armássemos contra o terror
iniciado por vocês, e não o contrário, ou seja, primeiro o embaixador americano, depois
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o cônsul do Japão, logo em seguida o embaixador da Alemanha... é fácil criticar, mas,
para combater o terrorismo precisávamos de leis especiais... Movimento de Libertação
Popular é o cacete.
Magno: Acho que estou precisando de um bom bibliocausto lá em casa. Queimaremos
primeiro os livros, depois, os homens, ah, não é isso?
Eurídice: O mesmo disco arranhado de sempre... como se diz: é como se
caminhássemos sempre em círculo, sempre, esperando que algum fator novo surja da
casualidade... assim como aquele helicóptero que nas olimpíadas de Creta seguia a
tocha olímpica e acabou achando uma plantação de maconha, sabe? Nossa, eles já
discutiram tanto esse assunto que eu até já decorei cada fala do que dizem.
Azeredo: Se estavam tão convictos assim de seus atos porque incineraram os arquivos
do Deops? Porque não nos deixaram consultar? E tudo na calada da noite, em surdina, e
logo depois do engodo da anistia. E isso para não falar daqueles que morreram no
exílio, portanto, longe de seu país, de seus familiares, assim como talvez tenha
acontecido ao poeta Ângelo Dantes, enfim, a ele e a tantos outros... próximo ano
provavelmente o Dantes receberá a “Medalha Chico Mendes de Resistência”, sabia? Eu
estou cuidando pessoalmente disso. Estou pesquisando no “Instituto de Estudos sobre a
Violência do Estado” e acredito estar próximo da ficha dele. Já consegui coletar vários
atestados de “paradeiro ignorado” e de “morte presumida” e agora basta apenas cruzar
as informações, quer dizer: logo, logo, você terá uma grata surpresa.
Lili: Infelizmente não conheci o avô do Egberto, mas sei que na Espanha somos bem
numerosos, assim como na Suécia, Áustria, Noruega, França... imperium, como
gostavam de dizer os antigos. Na extinta URSS também éramos muitos, mas, nossos
adeptos hoje se espalham, na verdade, por todo o mundo, ainda que o número dos tolos
seja infinito. Mas somos numerosos sobretudo na Espanha, assim como na Hungria,
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terra natal de Elizabeth, a doce deusa que pronunciava o nome do Meu Senhor em latim,
húngaro e alemão. Ah, como eu gostaria de ter sido seu Ficzko, sua Helena Jo, sua
Dorothea Szentos, quem sabe até a sua impassível e fria Klara Bathory, a belíssima
louca que queimava os pêlos pubianos e que costumava, para se divertir, jogar suas
pobres criadas nuas na neve e...
Magno: Lynne Graham, e seus romances insossos de bolso; Susan Stephens, a genial
autora de prefácios fabulosos; Robyn Donald, que como se não bastasse ainda tinha
pedra nos rins; Cristina Hamilton, a docemente diabética; Penny Jordan, que se gozasse
uma vez na vida não escreveria o que escreveu; Helen Brooks, que fez sexo com seu
médico apenas para aliviar as dores pélvicas; e isso para não falar de Miranda Lee, de
Margaret Mayo, de Sara Craven, de Rebecca Daniels, de Emma Darcy e etecétera, e
etecétera, e etecétera...
Marcos: Robyn Donald é bom, vai... escreveu um ótimo romance como resultado de
uma bolsa da Universidade de Toto, cidade onde morou por dois anos, bem ao lado da
pista de pouso para extraterrestres que o prefeito mandou construir na cidade, você se
lembra...? Ah, li isso no “As...
Guilherme: Um homem consciente de sua responsabilidade você, não é mesmo? Seu
único problema é essa sua mania de apontar o dedo no defeito do nariz dos outros,
sejam eles militares ou escritores que você julga fascistas. Acontece que você não tem a
mínima percepção do fenômeno do relativismo histórico, ou seja, quer julgar tudo e
todos com o padrão moral de hoje, enfim, erros cometidos por homens que viveram na
época do guaraná de rolha, portanto, época em que o padrão moral era outro. Esta é a
principal diferença entre nós dois: eu procuro sempre não julgar ninguém... Não da
forma como você julga, pelo menos, ou você por acaso se lembra de alguma vez em que
eu tenha falado mal do livro do Ângelo Dantes só pelo fato de ele ter sido um
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guerrilheiro comunistazinho de merda? Pelo contrário, você recorda? Elogiei o livro,
caso você não se lembre, e de fato o livro é muito bom, elogiei inclusive o seu trabalho
de pesquisa meu irmão, quer dizer, lembro-me de ter falado bem até mesmo dos
poemas, que me impressionaram muito na época, de fato, poemas realmente muito bons,
sonoros, sombrios, de um desespero beirando o metafísico. Nossa, estou ficando que
estou, não estou? Mas o que quero dizer com isso é o seguinte: eu consigo separar o
homem da obra, ou separar o homem que se seja hoje do homem que se precisou ser no
passado, de qualquer modo... Você está me entendendo agora? Jünger, o generosíssimo,
comandava um batalhão inteiro na Paris ocupada, oficial brioso, de gabarito,
condecorado por duas vezes no círculo restrito dos generais nazistas, mas, o que importa
tudo isso diante da compreensão do que representa a sua obra? Para mim, importa que
escreveu com mão de ferro o “Abelhas de vidro”. Belíssimo nome não? E o escreveu
em 1957, e esse é o único dado biográfico que verdadeiramente importa. Importa para
mim a tessitura densa do “Nos recifes de mármore”, ou a agonia gelada do “A
mobilização total”, em suma, para mim importa o velho Ernst ter escrito assim certa vez
em um de seus diários: é preciso conceber a Deus de novo... Consegue entender isso?
Quem, além de Jünger, descreveria assim “restam só vogais, as consoantes se queimam”
o fuzilamento de um soldado? Consegue sentir o peso frio dessa frase? Consegue ver as
consoantes se queimando como papel carbono, carta, cromado, como plástico ou
pássaros crédulos consumidos dentro de pequenos arcos de fogo cuspidos de turbinas de
aviões da época da segunda grande guerra mundial...? Estou ficando poético, não estou?
Não sei o que está acontecendo comigo de repente.
Lili: Otto Hahn, que descobriu a fissão nuclear em 1939... Alan Turing, Niels Bohr, e
tantos outros. Todos alquimistas, todos concentrados em uma elite intelectual
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homogênea, a dos cientistas, quer dizer, elite intocável e, portanto, completamente livre
de investigações.
Eurídice: Mas o Augusto sempre foi o mais deslocado. Sempre tão emocionalmente
disponível, o pobrezinho. Ofendia-se por qualquer coisa, tão frágil e tão tímido – como
um guarda-chuva fechado – e talvez por isso mesmo era sempre o que mais era
infernizado pelos dois. Será que isso acontece com todos os caçulas? Tão inocente, até o
ponto em que a inocência nele se tornou uma arma, sabe, então estudou psicologia na
faculdade, se formou, em seguida pedindo um dinheiro emprestado para papai e indo
embora para Portugal... Não, só no início. A gente se falava por telefone praticamente
todos os dias. Ah, no começo ele estava bastante animado com tudo, não é, em outras
palavras: para ele aquilo tudo era uma grande novidade, uma festa, a viagem, enfim, a
mudança de clima e de país, a liberdade que experimentou quando percebeu que poderia
namorar quem quisesse sem precisar prestar satisfação a seu ninguém, nossa, agora
lembrando parece que o estou ouvindo falar tudo de novo: do poeta que conheceu
enquanto caminhava pelas ruas úmidas de Lisboa, poeta – olhe só você como as coisas
são – que semanas depois já estaria namorando, nossa, e que lhe apresentou em seguida
a outros tantos poetas lusitanos, quer dizer, em Portugal os poetas abundam, ih, ih, povo
melancólico esse, não...? Um tal de Herberto Helder, e não sei mais quantos foram
apresentados a ele, que depois falava de suas viagens pela Europa, dos trens, da baixa
lisboeta de Leandro Pessoa, do inverno, da revolução dos cravos e... É verdade, ele
estava lá na época, mandou uma foto para nós na qual posava com um cravo vermelho
atravessado nos dentes, nossa mãe adorou a foto, a pregando em seguida na parede,
depois, é claro, de mandar ampliá-la e emoldurá-la, e... Depois? Bem, depois tudo foi
deixando de ser novidade para ele, não é? Então foi ficando cada vez mais melancólico,
cada vez menos falante, passando a telefonar com menos frequência, porra – desculpe –
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e nós nem sequer desconfiávamos que naquela época ele já sabia que estava doente,
droga, ele já sabia do resultado do exame e só não tinha tido ainda a coragem suficiente
para nos contar, sabe, uma droga isso, isso de ele ir se apagando, apagando, diminuindo
tanto dessa forma, e diminuindo em uma constante, e cada vez mais, cada vez mais, até
que...
Azeredo: Pouco tempo depois de minha chegada a Paris... Os livros do Jünger que tenho
guardados na minha biblioteca foram todos dados por ela. Não sei por que ela os havia
lido, talvez para descobrir, você entende, um lado bom dele que ela – naquela época –
talvez julgasse ter existido, percebe, existido naquele homem frio que tanto a maltratou
durante a ocupação alemã. O problema foi que não descobriu nenhum, por isso me deu
os livros, e é apenas por isso que os guardo comigo até hoje, para que me recorde dela, e
não... li, é claro que li, capa miolo e contracapa, acontece que o que enxerguei naquelas
páginas foi o mesmo homem frio e cruel que... Sim, uma carreira brilhante, fez o que
precisava ser feito e blá blá blá, e etecetera e tal, e “seguinte é cu de calango”, acontece
que se você o tivesse conhecido pessoalmente assim como ela o conheceu talvez não...
Goethe, cite Goethe, sua memória para nomes melhorou de uma hora para outra, não
é...? Mas também não quis conhecê-lo, aquele sujeito que trabalhava com ele no
laboratório de neurofisiologia chegou a me convidar para a festa para a qual também o
tinha convidado, quer dizer, naquela época fazia dois ou três anos que ele havia
publicado o “Um homem que dorme” e eu tinha acabado de ler o livro, merda, livro que
adorei, diga-se de passagem, o problema todo foi que... “todos os integrantes do Oulipo
estarão lá”, ele disse, “apareça”, ele completou, nossa, aquilo me deu um frio na barriga,
sabe, pensar em Raymond Queneau, em François Le Lionnais, em Ítalo Calvino,
imagine por um segundo se... Só que não fui, e não fui porque declinei do convite, e
declinei porque fiquei receoso em conhecer pessoalmente todos aqueles escritores que
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admirava, enfim, e receoso porque fiquei com medo de que fossem pessoas horríveis,
você me entende? Meu medo era o de que depois de conhecê-los não conseguisse mais
ler os seus livros, merda, será que você consegue entender isso...? Não, não consigo
separar o homem da obra assim tão bem quanto você, e naquele momento preferi a
companhia dos livros em detrimento da companhia de seus autores, de modo que
durante aqueles anos todos que passei em Paris só conheci a literatura desse jeito, assim:
de rebaba, como se diz... Não: como se diz e como é para ser de fato.
Lili: Estou dizendo a você querida: eles estão por aí, e são pessoas comuns, tão comuns
quanto eu ou você. A diferença é que são discretos, silenciosos, assim como diz a
música, e que se utilizam sempre do silêncio e da discrição máxima que o trabalho que
realizam exige. Bem, alguns andam pelas ruas com imensos catálogos debaixo do braço,
mas é só, e é raro. E foi através deles que tomei contato pela primeira vez com a
Religião. Na época, metade dos anos sessenta, eu trabalhava na filial de uma grande
empresa farmacêutica alemã aqui no Brasil e, me diga, que lugar melhor para se
conhecê-los do que uma grande empresa farmacêutica? Alemã, ainda por cima...? Não,
não apenas farmacêuticos, mas médicos, físicos nucleares, astrônomos, políticos,
advogados, mas sobretudo farmacêuticos, já que a farmacologia representa o ofício que
mais se aproxima de suas funções originais, você me entende? Bem, o fato é que os
conheci no trabalho, e demorou um tempo até que se afeiçoassem a mim, e da afeição
adquirida passamos para uma relação de amizade e confiança, em suma: fui escolhida.
Que homens inteligentes, seis homens versados em tudo, sobretudo na investigação
química mineral, então me falaram de fornos, crisóis, símbolos, serpente devorando a
própria cauda e balanças, e mercúrio, e cobra crucificada e o massacre dos inocentes,
além de pureza & corrupção, pedra filosofal, Livro de Ostanes, espectroscopia, O
Tratado do Ouro de Hermes Trismegistus, enfim: seus olhos se acendiam quando
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discursavam, eram possessos, luminosos, queimavam por dentro uma chama negra,
límpida, Meu Senhor, obrigada pelo privilégio de... Não, não, em 1966 todos nós fomos
fazer um curso de atualização em Londres, e lá fui apresentada a vários outros irmãos,
ou que se diziam irmãos, de qualquer forma... Alguns não eram da Religião, mas todos
igualmente possessos e sapientíssimos. Dava gosto conversar com homens como
aqueles. No último dia do curso saímos para uma festa e, você lembra como foram
aqueles anos, tomei uma pastilha de ácido que demorou a derreter debaixo da minha
língua, mas que quando derreteu... Não lembro como cheguei lá, mas não estava
viajando quando vi os quatro fabulosos bem na minha frente, rodeados por, acho que,
cinco gurus indianos, com Mason e Polanski ao centro dançando sobre o tapete felpudo
do estúdio onde a banda gravava, salvo engano, o Sargent Peppers. Ah, nos divertimos
muito, e conversamos sobre tudo: Spengler, Atlântida, nazismo, Era de Horus,
mecanismos de controle transitorial, Eliphas Lévi, projeções mediúnicas, alquimia,
drogas, sexo, 777, reencarnação, Área 51, obscurantismo universal, telepatia, O
Equinócio, revolução, enfim, uma conversa típica daqueles anos e tudo o mais de
Thomas Pynchon, mas isso até o momento em que o Mason, acompanhado de um de
meus amigos, digamos assim, farmacêuticos, levantou-se para iniciar o ritual... Como?
Eu ia chegar lá, no ponto em que Meu Mestre se materializou, finalmente, bem diante
dos meus olhos.
Guilherme: A História não passa de um pano de fundo para o esquecimento...
Magno: Um romance ridículo, imbecil, a estória toda gira em torno de uma bandeira
que na época áurea tremulava orgulhosamente nos mastros do Reichstag, mas que logo
depois da derrota alemã passou a cumprir seu papel cívico hasteada em frente a um
bordel. Porra, nada contra bordéis, ou nazistas, ou contra a divisão das diversões dos
campos de concentração, sinceramente, a merda é que: isso lá é estória que se conte em
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um livro? Tudo bem, talvez o escritor estivesse querendo homenagear a sua mãe, mas,
porra... Notou como estou ficando culto de repente?
Marcos: Todos hoje em dia querem dar uma de Orson Welles, lembra-se do esposo da
Evelise? Colocou todo mundo em Nova Iorque para correr quando afirmou que a ilha de
Manhattan afundaria, sujeito maluco. E os norte-americanos, que não são nem um
pouco paranoicos... Não, inspirado no “A Guerra dos Mundos”.
Guilherme: Devemos continuar nessa direção de ataque, é claro, ou você já se esqueceu
de Peter Handke, que recentemente foi devorado pelos plantonistas de sempre da
moral...? Defendo até a morte a ideia de que ele tem esse direito, o direito de
homenagear quem ele bem entender, a cena foi até bonita: ele colocando flores sobre o
caixão do Milosevic; ele discursando (que olhos aquele homem tem) para uma plateia
de vinte mil pessoas, quer dizer, os olhos fixos como frascos de vidro com formol
dentro, aqueles gestos demorados no ar feito fosse um maestro prestes a finalizar uma
orquestra, enquanto dizia: “não conheço a verdade, mas a ouço, a sinto e a olho”...
Exatamente, ele chegou a visitar o ex-ditador (para usar as suas palavras, sempre
redutoras) na prisão em Haia, e que mal há nisso...? Escreveu o “Justiça à Sérvia” e tudo
o mais, e daí? Então você acha que isso é motivo suficiente para que aqueles ressentidos
do caralho do Conselho de Düsseldorf tenham impedido que o “Prêmio Heirinch Heine”
fosse entregue a ele? Afinal de contas, o que estava em julgamento ali: o homem ou a
sua obra...? Não interessa, a censura foi política, e não era você aquele estudante
universitário que sempre foi contra qualquer tipo de... Na França, diversas companhias
de teatro cancelaram peças suas que entrariam em cartaz, quer dizer, a intenção foi a de
massacrá-lo realmente, e tudo por quê? Por que homenageou um homem que defendia
seu povo...? A palavra “genocida” não poderia também ser aplicada a Fidel Castro...?
Ah, tenho certeza de que você colocaria flores no túmulo do desgraçado caso ele... Tudo
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um enorme equívoco, Guevara teve a morte que mereceu e foi agraciado com um
poema ridículo de imagens idiotas (helicópteros comparados a máquinas de lavar é
absolutamente pueril) feito por um baba-ovo comuna que hoje não passa de uma velha
decrépita e conservadora que na lordose da menopausa segue vomitando seus últimos
estertores no jornal e... Ah, a questão da liberdade não se adequa então ao fato do
Handke... Gottfried Benn, Heidegger, o próprio Jünger, e Céline, e Hansum, e Ezra
Pound, Eliot, H.G. Wells, Pirandello, Malaparte e tantos outros que eu teria que passar a
noite inteira aqui falando seus nomes e não chegaria a sequer a metade de... Não sei o
que está acontecendo com minha memória mas por favor não me interrompa quando
eu...
Magno: Porra, estou com uma sensação constante de dèja-vu, uma impressão de que
uma segunda memória está correndo paralela à nossa. Ah, ah, é como se uma lanterna
mágica projetasse em mim uma imagem fixa, sabe?
Eurídice: Você está falando de um jeito diferente, até mesmo eu, acho... Às vezes tenho
a impressão de que seu rosto muda, se transforma, conforme aquilo que você fala – com
tanta paixão. Estou ficando até com um pouco de medo – mas só um pouco. De repente,
palavras em que nunca pensei antes surgem de dentro de meus pensamentos, palavras
como: sonata, variações, interlúdio, nona sinfonia... é como se outra memória estivesse
se introduzindo dentro de meu cérebro... e aos poucos... feito uma mão cavando lençóis
macios... estou ficando com mais medo... vamos voltar a falar de gatos?
Magno: Por outro lado: enquanto houver natal estaremos aqui. Não tenho como correr
mesmo.
Azeredo: O Dodgson é diferente, aquilo são fotos artísticas, não pornográficas, ou de
pedofilia. Além do mais: não ouço ruídos nem tenho comichões na orelha como você
disse, estou com a consciência tranquila. Sei o que é arte, o que não é arte, o que é um
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lingote de alumínio e uma língua-de-sogra, e talvez por isso mesmo saiba ser impossível
separar o homem de sua obra. Não leio Jünger mais, nem Handke, nem qualquer outro
fascista desses... nunca li nem nunca lerei o livro de correspondência de Miss Stein, e
abomino o Goethe e o Bethoveen napoleônicos... mas é isso, não vou mudar de
opinião... Joseph Conrad é a voz da civilização genocida, Pound morreu em um asilo –
carcomido pela loucura – e Nabokov não gostava de criancinhas, isso é estória sua e dos
biógrafos do autor russo, todos desprovidos de imaginação... que é isso? Está até
citando em latim agora? O que está acontecendo com você, conosco?
Lili: O anticristo é um doce na boca do léxico cristão meu bem, não precisa ter medo
por isso. Meu Senhor não é o anticristo, essa ideia não passa de mais uma lenda contada
pela bíblia... fantasia, recalque, o número 666 não é nada além do valor numérico do
nome “Caio César” em grego antigo. Tudo isso não passa de um conflito de classe entre
os cristãos e os romanos, você entende, todos aqueles símbolos bíblicos mentirosos... o
anticristo é um judeu que reside fora de Israel e puxa por uma perna. Ele já está entre
nós e não é o Meu Senhor, posso te garantir isso, e se você aceitá-Lo de coração
perceberá que não há o que... não: Davi conquistou Jerusalém e lá Salomão construiu o
seu primeiro templo, mas foi Nabucodonosor quem destruiu Jerusalém e templo ao
mesmo tempo, expulsando em seguida as tribos de Judá para a Babilônia. Depois, veio
Ciro, e Ciro conquistou a Babilônia, percebe, permitindo que os judeus retornassem a
Jerusalém, ou seja: a história se move em ciclos, querida, portanto, não há o que temer,
e além disso, é como disse a você antes, citando Nietzsche:...
Magno: Parece que ninguém está se entendendo mais, não é? Falei do padre, e ele tinha
quarenta e três anos na época, e falei, e acabei de falar da porra da freira, que contava
vinte e seis primaveras quando juntos decidiram obedecer à palavra de Deus, que dizia:
amai-vos uns sobre os outros, ah, ah, ah, estou falando para as paredes, não estou? O
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padre e a freira: dois súcubos que geraram um lobisomem. Posso falar então da minha
tara de beijar pés e chupar dedões? Talvez porque não os tenha mais, diabo, Peter
Frampton está processando uma fábrica de biquínis por ter lançado uma linha de
modelos onde se lê escrita a frase: baby, i love yours waves, o que quer dizer, ah, foda-
se a tradução, o importante mesmo é o estudo que fizeram na Inglaterra, estudo que
descobriu que as galinhas preferem homens bonitos supervisionando os galinheiros,
droga, e eu que pensava que as galinhas preferissem sujeitos com carro...
Marcos: O meu enterro será na lua, já está tudo acertado. A pompa militar será
grandiosa, todos vestindo roupas de astronauta rajadas. Afinal de contas: logo serei
general. Não terei o mesmo fim, ah, ah, que aquele japonês encontrado morto em seu
apartamento vestindo quimono, quer dizer, o seu esqueleto vestia quimono, já que só o
acharam vinte anos depois de ter dado o nó na faixa e expirado. Não, não, e não, a
Celestis Incorporeted já está cuidando de tudo.
Guilherme: De repente tudo ficou tão claro para mim, não sei ao certo como, mas, claro
como água, entende, como a certeza que tenho de que no oitavo centenário de Francesco
Petrarca eu já estarei morto há muitas décadas. Morto. Até porque acredito que até lá
não haverá mais centenários a serem comemorados, e tudo porque não existirá mais
mundo, ou vida, ou cartazes pregados em muros onde se lê a data exata em que
acontecerá a comemoração dos centenários, droga... Sim, talvez apenas restem os
muros, percebe, mas estes ficarão lá erguidos para sempre, e para sempre sisudos e
silenciosos, quer dizer, nada mais restará ao redor deles e, merda, antes que os últimos
muros sejam erguidos para sempre vou te contar uma coisa que você, meu irmão, ainda
não sabe sobre nós... Não, muito maior que isso, quer dizer, tudo de repente tão claro
para mim, claro como água, sabe, como as palavras do Ernst Jünger, do Günter Grass...
Grass, você percebeu? Incrível, lembrei o nome dele: Günter Grass. Estranho, mas a
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memória tem dessas coisas estranhas, com as quais constrói aos poucos a História, não é
mesmo? Sim, agora estou me sentindo exatamente como um daqueles desesperados do
Círculo de Viena, certo, um daqueles vampiros que, diante da iminência da eclosão da
segunda grande guerra mundial, decidiram nunca mais dormir, sabe, já ouviu falar
deles? Eles formaram uma espécie de corte insone da vigília da, do pensamento, do,
quero dizer do pensamento, porra, você é capaz de imaginar uma cena como essa?
Todos eles sentados taciturnos naqueles bares escuros e úmidos e esfumaçados
discutindo filosofia e política e literatura e ética e moral e, enfim, eles varavam a noite
dentro de discussões acirradíssimas, pareciam possuídos por algum tipo de corrupção,
de conhecimento da morte, e tudo porque criam não haver mais tempo a perder e...
Exatamente, estou me sentindo como um deles agora. Doloroso. Herman Broch
escreveu um romance sobre eles, o “Sonâmbulos”, você entende? Percebeu como foi
fácil para eu dizer há pouco “Herman Broch”, ou “Sonâmbulos”, ou... e não apenas
Ernst Jünger ou... acordando aos poucos, é assim que me sinto neste exato instante, um
tipo de fantasma, de sonâmbulo que, finalmente, depois de não dormir por meses de
repente dormisse e acordasse... tudo tão claro como água, vidro, resina, saliva, e antes
que os muros... ah, general, o que ele não sabe sobre nós? Muitas coisas, mas a principal
delas é que nós, quer dizer, eu e o general ali, o salvamos... não, você não entendeu
nada, Azedinho: nós dois, eu e o Marcos, salvamos da morte o seu poeta, enfim... morte
que ele bem merecia, que fique registrado aqui.
Eurídice: Era sempre à noite que eles chegavam para levá-lo embora. Parecia um filme
do Charles Chaplin, só que com desaparecidos. Aquilo tudo era muito triste para nós,
você me entende? Minha mágoa de Deus vem desde essa época e – nossa – só as
crianças sabem bem o jeito certo de guardar uma mágoa para sempre, você não acha? E
minha mágoa maior está no fato de que quando ele morreu... desculpe, para mim ainda é
197
difícil falar sobre isso, o problema todo... sabe, e quando ele se foi de fato para sempre
eu não senti tanto quanto... todas aquelas prisões, droga, não sei se me faço... cada vez
que ele ia embora de casa com aquela sua mala sempre pronta era como se morresse
várias e várias vezes, você me entendeu agora? Mas, nunca completamente, nunca.
Acontece que quando ele realmente morreu... acho que aos poucos fui aprendendo a me
despedir dele, quer dizer, na época eu era muito nova, muito criança, para entender as
razões de tudo aquilo, droga, e depois que a porta se fechava, aquele silêncio todo na
casa... Merda – desculpe – do que me lembro de mais são de suas sobrancelhas, até
desenhei um par parecido – grossas, negras, em formato de V quando erguidas – em um
dos bonecos que comprei para a coleção da... Não sei se foi certo ou errado o que
fizeram, mas... Sei apenas que o matava por dentro, e aos poucos – apenas isso. Vamos
morrer todos um dia, não vamos? Pelo menos, tento ocupar meu tempo até lá, e entre o
Magno e minhas bonecas e meu trabalho lá na Central e todos aqueles livros de péssimo
título que compro e que até hoje não os li espero não ter um segundo de sobra que seja
para pensar sobre mim, porque... Se penso em mim, já viu não é, de repente fico desse
jeito, assim, ó...
Azeredo: Acontece que para manter-se bem informado um indivíduo precisa ler pelo
menos dois jornais por dia e, se possível, mais duas revistas semanais, ou seja: como
você pode ter tanta certeza assim de que era ele? Como é possível ter certeza de uma
coisa como essa? Pesquiso, e você sabe muito bem disso, há mais de vinte anos a vida e
a obra do Ângelo Dantes e até hoje não tenho certeza de nada, de absolutamente nada, e
agora vem você me dizer que... Ah, não sei se você sabe, mas, há vinte anos não havia
as facilidades de hoje, quer dizer, todos estes softwares especialmente desenvolvidos
para realizar análises lexicométricas de textos anônimos, porra, o trabalho antigamente
era na base da intuição, do desejo, da garra mesmo, e outra: os poemas estavam escritos
198
em paredes, e como você acha que, o Lexico3, por exemplo... Concordo, e também sei
que o Ângelo Monteiro citou esse fato na biografia daquela garçonete, o problema é que
ele não tem provas, assim como você. Isso o que mais tem feito com que ele hoje em dia
mastigue os cabelos, e que os meus estejam todos embranquecendo, percebe que... A
falta de provas, provas materiais sobretudo, e a falta de concordância em tudo o que se
refere ao Dantes, ou... É como se patinássemos o tempo todo no gelo, entende,
pisássemos em ovos, tudo tão incerto e ao mesmo tempo tão fascinante que... Samuel
Rawet, Rosário Fusco, João Antônio, só para citar alguns... José Agrippino de Paula,
Raduam Nassar, Augusto dos Anjos, enfim, nossa história literária é a história de uma
longa noite de... Até disseram que o motorista do carro funerário que transportou o
cadáver – e ele gostaria que assim o chamassem – de Campos de Carvalho chamava-se
Cristo... Sim, uma tremenda ironia, mas, não se sabe muito além disso, merda, e este é o
ponto aonde quero chegar, você entende? Todos os escritores, enfim, têm um pouco de
Mathias Pascal, sabe, alguns em maior, outros em menor grau, o que significa dizer que
todos terminam desaparecendo em um determinado momento de suas biografias, assim
como todos os mortais, é claro, o agravante é que os escritores nos deixam palavras,
porra, e as palavras são seu único testamento, agora, some-se a isso o fato de que um ou
outro às vezes desaparece antes mesmo de construir uma biografia, e então? O que
fazemos? Qual o parâmetro que devemos utilizar? Quer dizer: Thomas Pynchon
escreveu de fato aquelas cartas? Wanda Tinasky? E quem com o cu na lua se importa
com isso? Garimpamos no silêncio um mundo que já se perdeu, ou seja, o mundo em
que o Ângelo Dantes viveu (será que ainda vive?) não existe mais. Foi apagado do
tempo todo o seu vestígio, sobrando para nós apenas sua nostalgia e remorso... Falo do
mundo das esperanças, da possibilidade real da construção do sonho, do sonho de um
novo mundo, mais justo e mais belo, droga, em outras palavras... Curioso é que o auge
199
material deste mundo atingiu seu ápice justamente neste tempo em que vivemos, e
conversamos, eu e você, porra, trata-se de um paradoxo. O mundo de Dantes foi extinto,
tudo bem, ele não existe mais, acontece que é refletido constantemente nos dias de hoje,
mas, apenas como o reflexo de uma sombra sem sentido, vazia, reflexo com data certa
para apagar-se... Um vírus, além do mais, a indefinição real da autoria do “A lepra na
pera” é o que mais me enlouquece, sabe, angustia, e mesmo depois de tanto tempo não
consigo lidar com isso, com o meu fracasso em... Tudo bem, você diz que o conheceu, e
que o salvou, mas, onde estão as provas...? É claro, óbvio, no caso dos poemas do
Dantes temos a nosso favor a comparação do tamanho das frases, das palavras, além do
levantamento das ocorrências de determinados segmentos repetidos, ou seja, com que
frequência, por exemplo, se dá a aparição de uma determinada metáfora dentro de
vários poemas comparados, merda, o problema é que tudo isso é muito relativo, e...
Nunca havia pensado nisso, mas, e se nós estivéssemos errados esse tempo todo?
Lili: Bébert... Obrigado, mas, não espirrei... Bébert era o nome do gato de estimação do
Céline. Todos os grandes homens e mulheres tiveram gatos. Guimarães Rosa, que
conhecia Meu Senhor como ninguém, e seus persas antigos; Paul Klee e seu Bimbo;
Herman Hesse, Patricia Highsmith, Lênin... Burroughs morreu uma semana depois do
seu pequeno Fletcher... E o pequeno Bébert lá, dentro de uma mochila, atravessando
junto com seu dono e esposa uma Europa devastada pelas bombas, sim, vamos falar de
gatos então. Falar de Céline, o furioso autor de panfletos antissemitas e de romances
escatológicos, tudo bem, ele não gostava muito de judeus, mas devotava um amor tão
imenso por seu gato que Meu Senhor o amou violentamente, e na mesma medida do seu
ódio. O que quero dizer com isso é que não importa o tamanho do seu ódio... Mas isso
só se você finalmente entender que na verdade o espírito humano é uma balança em que
200
ódio e amor possuem o mesmo peso e a mesma medida se ambos forem puros, entende,
puros e honestos como o ouro, assim: imaculados (teso lago vela cu).
Magno: Outro dia conversei com um filósofo que me explicou várias coisas como esta.
Participei de uma palestra que ele conferiu na empresa. Depois, o encontrei por acaso no
corredor, e ele me ajudou com a cadeira de rodas. Porra, bom conversar com um sujeito
como aquele, é sim, e pela primeira vez em muitos anos não fiquei com a impressão de
ter conversado com um calendário, ou com um relógio de ponto, merda, porque é nisso
que as pessoas se transformam hoje em dia: calendários, relógios de ponto, máquinas de
calcular, celulares, cada qual querendo exibir o preço mais alto do seu código de barras,
ah, ah, ah, mas a merda do sujeito não... Exatamente, a palavra que eu estava buscando
é justamente essa: anacrônico, e anacrônico porque parecia representar um mundo
esquecido que (ironia, não?) nas dependências da empresa figura apenas nas fotos de
“Funcionário do mês”, droga, dá para entender? E figura de uma maneira distorcida,
porra, anacrônico é a justa palavra que... Mundo racional do espírito, do espírito de um
tempo, os alemães têm uma palavra para isso, não é, Guilherme? Quer dizer, os alemães
têm uma palavra para tudo, uma solução vernácula para cada... Incrível como estou
diferente, não? Parece que descobri um novo mundo através da palavra “anacrônico”
ou, como é mesmo o sub... Anacronismo, sequência de quartos em um corredor de hotel
cujos números não têm importância, ah: informes com erro de data, com uma de suas
páginas apontando em direção de outro sentido, ah, ah, ah, o filósofo lá plantava uvas
no teto de sua casa, consegue pensar nisso em uma época escrota como a nossa?
Colecionava velharias também, como chaves enferrujadas, fichários, vinis, máquinas de
escrever, pedaços de vidro, assentos de rodas-gigantes, sapatos de palhaço, bolsas de
plástico, relógios de corrente e toda a sorte de quinquilharias que...
201
Marcos: A memória é estranha não é, Azedinho? Aquela senhora, lembra, que de uma
hora para outra começou a falar russo, como se explica isso? Ela acreditava já ter vivido
na Rússia do início do governo Stálin, quer dizer, falava do frio com uma propriedade,
do frio e da neve e sobre parapeitos de janelas cobertos de gelo e ursos e Sibéria, ah, e
sempre com aquele tradutor ao seu lado servindo de intérprete. Que loucura aquilo não?
Acontece que ela nunca saiu do Brasil, e isso ficou comprovado, então, como explicar
as suas lembranças tão nítidas e tão reais, isso para não falar do seu conhecimento
perfeito do idioma russo, do “A jogada turca”, porra, é quase a mesma coisa que
perguntar: em que ano estamos? Então, alguém diz: 1969. E você responde: por que
não?
Guilherme: Mas foi o que eu acabei de dizer ao Azedinho: “apenas para ouvir a
música”, foi o que ele respondeu quando perguntamos o que ele pretendia com aquilo.
Quero dizer: ele escrevia um poema na parede – com as unhas – quando entramos na
cela, eu e o general aqui, para levá-lo de lá e, como se dizia naquela época... Não, não
sabíamos quem era, ou o seu nome verdadeiro, quer dizer, naquele tempo não
passávamos de orelhas, ninguém nunca nos dizia nada, além do mais: não saber a
identidade do preso político poderia significar também – naquele momento histórico –
que se tratava de um peixe grande, você entendeu? E as ordens eram claras: Danúbio
Azul... Exatamente, um belíssimo eufemismo para a morte, não? E morte por
afogamento, desaparecimento limpo e sem deixar vestígios; homens lançados ao mar
com blocos de mármore amarrados nos pés, como âncoras. Acontece que lemos o
poema – por curiosidade – antes de levá-lo, eu e o Marcos e, não sei dizer como nem
por que, mas, aquelas palavras nos sensibilizaram, merda, de alguma maneira elas nos
tocaram como, droga Uma flor clara de sangue, gemendo no canteiro das costelas
Dentro de nós, a floração de outro mundo, um mundo interno e esquecido, uma coisa
202
cega Percebeu? Até hoje o sei de cabeça... Não lhe contei antes porque não tive... Sim,
agora estou me sentindo um pouco diferente, e agora que o disse... Sinto como se um
peso fosse retirado de meus ombros. Um sonâmbulo, tão leve quanto um balão de gás
hélio quando recordo que, naquele helicóptero de voo não registrado, nós olhamos para
aquele homem – magro, assustado, com a pele coberta de manchas roxas e escuras – e o
salvamos, percebe agora...? Quero dizer que as chances de ele ter sobrevivido foram
bem maiores, já que o Marcos não amarrou o bloco de mármore em seu pé, e apenas o
lançou ao mar... Primeiro ele, depois o bloco. Como será que foi hein? Não sei. Sei
apenas que nunca vou esquecer a expressão que se desenhou em seu rosto, era como se
estivesse nos agradecendo, você entende? Como se quisesse dizer que se Judas tivesse
concedido os mesmos dez minutinhos de vantagem para Cristo antes de chegar ao
Getsêmani com... Mas, não disse nada, apenas aquela expressão no rosto, ou seja, na
certa ele sabia nadar muito bem, quem sabe, não é? Não encontrou as palavras certas na
hora, apenas isso. As palavras? Ele as deixou nas paredes das celas, para que a História
– com a sua devida ajuda, meu irmão – tratasse delas como quisesse... Não, talvez você
tenha idealizado demais o mito do poeta desaparecido, quer dizer, quem sabe se a
imagem de Ângelo Dantes – hoje – não seja uma extensão monstruosa do seu próprio
ego? Já parou para pensar nisso? Quer dizer: nós o salvamos, e agora vem você e nos
diz que nós não temos certeza de que era ele? Isso sim é que é matéria-prima para um
romance, você não acha?
Eurídice: Disse que nasceu em Barcelona, em 1947. E que por isso não falava muito
bem o português, apesar de ter estudado em várias universidades europeias que – em
tese – o habilitariam para tanto mais. Disse que ensinou filosofia em Madri, Nova
Iorque, México, São Paulo e Recife, onde atualmente reside. Publicou vários ensaios, os
quais poderia me mostrar quando eu quisesse, e combinasse. Era uma cantada...? O
203
problema é que as conversas são gravadas, o que significa dizer que não poderia ser
grossa com ele, ainda que estivesse nervosa e sem jeito com todos aqueles rodeios, os
quais conseguia entender apenas o superficial. El alma y la muerte, ele disse, como se
do outro lado babasse no telefone, mas, aí tudo bem, já que entendo bem o espanhol
graças ao... O problema era quando misturava tudo, droga, sua cabeça às vezes parecia
se perder em algum fuso-horário equivocado, enfim, retornamos ao início então... Não,
não falava com você, mas com... De qualquer forma, me valeram aquelas aulas que
tomei com o avô do Egberto, porque sempre há algo que se aproveite na conversa
quando um maluco desses te liga lá na Central. Utopía e subversión, la ilustración
insuficiente. Acho que ele estava precisando mesmo de uma boa ouvinte. E isso é tudo o
que sou. Falou até de marxismo, dá para acreditar? Utopia libidinal, foi o que entendi
que disse quando... Freud, Hegel, e outros palavrões... Desdobramento do desejo, morte,
solidão, e eu dizendo: señor, señor...
Azeredo: Você está parcialmente certo. A verdade é que nos dias de hoje toda a
literatura está fadada ao esquecimento, ao oblívio, tanto que, pensando melhor, pouco
importa que o Dantes – se é que se tratava dele de fato – tenha sobrevivido à queda,
conseguido nadar até uma praia qualquer, enfim, não quero nem pensar no assunto para
não alimentar falsas esperanças. Em Paris, todos os rostos se pareciam com o rosto de
Ângelo Dantes, quer dizer, com a imagem do rosto que imaginei como sendo o rosto do
poeta. A escuridão nunca é luz bastante para o leitor. E todos os rostos o lembravam,
todos. Bastava um... Não sei explicar bem o quê, droga, um homem anotando qualquer
coisa em um guardanapo, ou aparando as unhas sentado em uma das mesas dos cafés
da... Certa vez, um sujeito estranho lia um livro, outra vez, um homem tentando apanhar
seu guarda-chuva solto no vento, enfim, o fato é que nada daquilo fazia algum sentido,
não agora, pelo menos, depois de tantos anos, depois de tantas falsas esperanças
204
alimentadas, quer dizer, esta distância só o tempo nos dá, não é mesmo? Logo não
existirá mais literatura, e esta é a triste verdade do nosso tempo. A extinção das palavras
já começou, e sua raiz enferma nasceu do consenso de que tudo se resolverá se
mergulharmos cada vez mais e mais na busca pela expansão material da vida. O
problema é que essa expansão já atingiu seu clímax, seu clímax letárgico, ao menos para
uma minoria: sim. Para o restante, sobrou o discurso publicitário de que é possível
chegarmos todos lá, mas, onde e quando chegaremos? O escravo não é escravo do
senhor, mas da vida, não é assim que disse o... O que estou querendo dizer é que o
conflito foi substituído pelo consenso, pela possibilidade da satisfação rápida e
garantida, pela ideia anêmica da manutenção de uma ordem necessária para que todos
possamos chegar lá, entende? LÁ. E como a literatura não apresenta caminhos, mas
labirintos, o mais provável que aconteça é que ela comece a ser considerada supérflua,
entendeu, até que desapareça por completo. Já começou, basta olhar ao seu redor para
notar todo o processo iniciado em larga expansão... Sim, começa assim, com a
enxurrada desses livros pseudoliterários, cada qual com uma resposta pronta, pré-
fabricada, um caminho apresentado como atalho, um atalho para se chegar LÁ,
entendeu? Nossa, é pavoroso, pavoroso um leitor buscar a satisfação dos seus desejos
através de um livro, enfim, eis o primeiro sintoma da morte do espírito, nisso o que deu
o avanço da razão iluminista, de todos os paradigmas lógicos, de todo o funcionamento
dos sistemas peritos, ou seja, o conforto material nos extraiu a ideia da morte, do
conhecimento do fim, e esta ilusão é o nosso principal carrasco invisível. Tudo é muito
funcional hoje em dia, todos nós tão bem articulados sobre todo e qualquer assunto,
mas, vazios de sentido, sabe? Tudo muito específico, tudo muito rapidamente embalado
e pronto para o consumo. Em Paris, certa vez, vi um quadro em uma exposição de
pintura romântica. “Monge junto ao mar”... Caspar David Friedrich, um pintor alemão
205
do século dezenove. O quadro data de 1810, e retrata em cores oníricas um oceano
boreal, metálico e imenso e terrivelmente silencioso, sabe, dava a impressão de que a
natureza clamava o tempo todo pelo infinito. Uma impressão apenas, que ficou em meu
cérebro até agora, fixada. E é este clamor invisível, porra, que representa o mundo que a
literatura reflete, entende, mundo que constantemente vem sendo enterrado pelas
prateleiras dos supermercados, será que você me entende agora? Enfim: pensando bem,
pouco importa que o Ângelo Dantes tenha sobrevivido, já que o mundo o qual um dia
retratou e fez parte, em breve, merda, não existirá mais.
Lili: Conhecemos-nos logo depois de eu ter voltado da Inglaterra, devidamente
especializada e convertida. Participei de algumas aulas ministradas para cadetes recém-
formados da AMAN e da Escola das Américas. Um curso de uma semana sobre o uso
adequado do pentatol de sódio; curso no qual tive os meus quinze minutinhos de fama, e
advinha só quem estava na plateia sem conseguir tirar os olhos de mim? Ah, general. Na
semana seguinte estávamos namorando. Três meses depois, o casamento. Mas consegui
converter o general antes disso, e hoje, veja só você, estamos colhendo as benesses da
nossa fé... Ah, foi tão bonito, ele disse que se apaixonou por mim graças à frieza com
que eu injetava o soro nas cobaias, mendigos colhidos nas ruas em sua maioria, durante
as aulas... Não, aquele era o espírito do tempo, o que pedia a época, e nós não podemos,
nem devemos, ir contra o relógio da nossa era.
Magno: Estamos todos diferentes, não é? Onde estou com a cabeça que ainda não
saquei a minha browning? E deveria começar atirando em mim, que acabei de falar na
ruína do nosso tempo, ruína como símbolo da queda de uma ordem metafísica para o
universo. Que merda é essa? Que estória é essa de “a tradição está desaparecendo”?
Deve ser influência da lembrança de minha conversa com o filósofo. Parece que alguém
206
está colocando palavras na minha boca. E é apenas isso que é o mundo, não? Palavras
que estão morrendo... Porra: não disse? Todos diferentes, à exceção da...
Marcos: Onde está a Sílvia?
Lili: Mas, voltando àquele assunto: como era mesmo aquela equação do Einstein,
coronel?
Guilherme: Entropia.
(...).
Então deram dez horas da noite (dez o número perfeito, a divindade, o retorno ao um); e
não apenas aqui, mas na sala de arquitraves invisíveis onde pai e filho acabaram de se
despedir, as paredes empenadas deformando-se como figuras de papelão; sim; as
mesmas dez horas da noite soaram na cela, espectral, costurada de efeitos ilusionistas
através dos relógios imaginários, fixos em água nas paredes; a mesma exatidão dos
ponteiros desenhados no mostrador arbitrário de cromo atécnico sobre o qual Mário
lança seu olhar indecifrável, espantado como quem atende um telefonema no meio da
madrugada, e recorda; mesmo tempo em que Ana se debruça sobre os múltiplos nomes
da morte ao girar hipnotizada o tambor do revólver, sim, exatamente como se ouvisse
aquela música negra, compacta, do coro dos lêmures feridos por uma articulação
horizontal de luzes; as mesmas horas, enfim, deslizando sobre o zinco magnético-óptico
do tempo onde a outra Ana veste um vestido vermelho com a delicadeza gótica tardia de
quem descola um rótulo de cerveja, tempo em que se arruma para ele, para o homem
que a sustenta, que para tanto vendeu o carro na intenção de manter a imagem de
executivo rico pela qual ela se apaixonou, ela que logo chegará minutos depois de o
filho bater a porta da sala e ir embora, dentro de um cilindro negro onde sopra um
desespero, sim: o tempo é uma corda repleta de nós, não uma reta, ou um círculo, mas
207
uma corda, um fenômeno completo cujos elementos estão todos interligados, uma
cadeia de acontecimentos feito nós de marinheiro, cada nó um acontecimento
multiplicado infinitamente através do reflexo físico de vários espelhos (todos
cristalográficos), e ainda que o relógio alemão da sala da casa – cujos corredores ainda
exalam o cheiro cítrico das cinzas da cidade de Olinda incendiada em 1630 pelos
invasores da Companhia das Índias Ocidentais – não houvesse anunciado a décima
hora cheia, sim, eram dez horas, e ainda que por alguma razão o relógio alemão não
houvesse badalado, assim como se de molas estranguladas, repentinamente surdas
dentro de suas meninges, talvez engolido de súbito o relógio na baixa frequência de sua
emissão e velocidade inicial, o mostrador com os ponteiros fixos, congelados, imóveis
entre nove e quarenta e cinco e nove e quarenta e seis (hora da forca), deram dez horas,
e deram porque o tempo, este sim, não parou, continuando sua marcha inexorável apesar
da surdez do mover adáctilo dos seus registradores, dos seus compassos, dez horas
foram o que deu, em sua sintaxe metálica, inoxidável, abrindo caminho entre as frestas
fendidas sobre o trilátero do alumínio através do qual era possível notar o seu avanço,
avanço com o qual todos contavam, Noga sobretudo, que na cozinha mantinha-se em
uma espécie de antena, de esponja (a condutora das consciências), na medida em que
recordava o quanto demorou em perceber que não estava louca, esquizofrênica, e que
esta sua aptidão especial para ouvir pensamentos deveria servir para ajudar os outros
(assim como disseram os instrutores), embora achasse que agora não estivesse lhe
servindo muito este estigma, mas, não importa, deram dez horas, em seu silencioso
movimento, silêncio quebrado pelo ruído de carro lá fora, são eles, pensou Noga:
Tereza, Leandro, Erinéia, Ednaldo e as meninas. E de fato eram eles, que com sua
chegada completariam o número dez dos convidados, já que minha mãe fora de súbito
apartada do número simbólico representado, apartada pela força de sua pureza, ou
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loucura, tanto ela quanto as meninas que acabaram de chegar, ambas inocentes, quando
o dono da casa correu para atendê-los na porta – Tereza à frente de todos, trazendo nas
mãos Marta e Fátima, suas duas inócuas filhas retardadas; Leandro, seu marido, logo
atrás dela, como sempre atrás dela, como se guiado para sempre pelo cincerro oculto
entre as dobras do pescoço gorduroso da esposa, obediente e estancado na órbita de sua
mulher, um homem de braços peludos, longos, um sefardim descendente dos primeiros
israelitas de Portugal, aqueles que foram expulsos em 1492, ele: os cabelos cheios,
ensebados e ondulados, os óculos de grau com lentes grossas, o nariz longo e achatado a
lhe bifurcar o semblante idiota, de borracha queimada; e Erinéia na sequência, a mais
velha das irmãs, a pele oleosa, o cabelo também ensebado de gel fedendo à banha, o
pescoço grosso, o corpo grosso, a gordura enfim, cumprimentando a todos com o
pigarro que lhe era peculiar lhe entrecortando as frases quando, finalmente, Ednaldo:
magro, ossudo, careca, os olhos tristes, as sobrancelhas grossas e negras, os dentes
tortos, espécie de Lazarus à porta do mau rico, trazendo nas mãos erguidas garrafas de
vinho e uma maleta, maleta a qual, quando viu, o dono da casa logo perguntou...
Azeredo: O que você tem nessa maleta Ednaldo? Deixe que a guarde.
E todos na sala gargalharam um coro de balões esvaziando, sala que há horas começava
a vacilar, nela nada mais sólido ou estável em sua ideia falsa de equilíbrio e simetria; e
os que chegavam ficaram sem entender a graça de tudo, rindo apenas as duas retardadas,
embora elas não contem, já que nunca precisaram de muitos motivos para rir – riam
apenas, ruidosas e imprevistas, babando – motivos ou entendimento sobre qualquer
coisa, qualquer coisa que as fizesse rir ou não, Ednaldo e seu pomo de adão espetado
entregando a maleta e as garrafas para o dono da casa, na medida em que os que
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chegaram cumprimentavam os que já estavam, as mãos lentas, na sala, os beijos secos,
os abraços intimidados, alguns grosseiros até, enquanto que na cozinha Noga perdia a fé
em querer ajudar, visto não saber mais o que fazer com tanta informação, tendo ela
mesma ficado confusa com tantas memórias, com tantas lembranças: se fosse em um
livro, ela pensando, poderia sublinhar as frases, ou marcar as páginas dobrando uma de
suas extremidades, mas, na vida, não há como. (Ainda nenhuma generosidade em
levemente ouvir deles algo nalgum tempo eterno; sonhar é toda a descida em um sono
atípico: rostos, máscaras, e nenhuma testemunha ouvida).
Azeredo: Tudo bem no caminho até aqui?
Leandro: Tudo, por quê?
Magno: Os ataques na cidade...
Erinéia: Esqueceu sua boia no carro Ednaldo? Vou buscá-la.
E saiu (o perfil de sifão indicando lordose) e novas gargalhadas irromperam
altissonantes na sala, reverberadas, todas um mal necessário, e até mesmo o dono da
casa, sempre tão melancólico e egoísta, riu, e com ele todos agora, e não só os dois
pequenos anjos alheios, os dois pequenos tumores de seda, mas, todos, todos menos
Ednaldo, o que precisava da boia, o de verruga no queixo, peluda, tão peluda quanto a
de Valentino – fundador da seita gnóstica sístase. Uma boia (de isopor) não para nadar
em uma piscina (não havia piscinas na casa), mas para sentar-se, para aquietar-se em um
canto e ficar, o pomo de adão um ponteiro de bússola apontando para frente:
Marcos: Pensei que você ia entrar rebolando.
Magno: Já fez a operação Ednaldo?
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Ednaldo: Há três dias.
Guilherme: Foi bom para você?
E novas gargalhadas estalaram, gargalhadas que se acentuaram quando a esposa do
tenente-coronel (reformado) com hemorroidas trouxe a boia de isopor na qual sentaria o
esposo, certo, uma dessas boias redondas feito tampas de vaso sanitário, onde o estranho
e taciturno homem seria acomodado sem correr o risco de romper os pontos da cirurgia:
Tereza: Acho que os ataques cessaram...
Marcos: Menos na TV.
Magno: E como você está fazendo para cagar, Ednaldo?
Eurídice: Magno.
Mas até ela mesma riu, talvez devido à infâmia da pergunta, talvez, as duas retardadas já
no tapete chafurdando feito leitõezinhos na lama. Valentino chamava este sistema de
sístase, afirmando que tal sistema formava uma vasta cadeia de dominação que mantém
a centelha do espírito humano submetida ao controle de autoridades externas que
derivam seu poder do Demiurgo. Tome-se como exemplo os trabalhadores que, no
século XV, morreram de exaustão durante a reforma e a decoração da capela de Sisto
IV, o implacável.
Ednaldo: Tenho uma sacola plástica que protege e segura tudo que cair de um furo que
fizeram no meu intestino... quer ver?
Magno: Não obrigado, dispenso.
Leandro: Nunca confie no que diz os canais de televisão.
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Azeredo: Ednaldo, o que tem nessa maleta?
Guilherme: Lá vamos nós novamente...
Ednaldo: Nada demais, documentos.
Marcos: Documentos? Que documentos?
Erinéia: Senta Ednaldo.
E estendeu a boia sobre uma cadeira, o dono da casa colocando a maleta debaixo da
mesma, suspirava aliviado...
Guilherme: Não vai colocar a maleta dele trancada a sete chaves também seu Azeredo?
Azeredo: Não precisa.
Marcos: Como não?
Azeredo: São só documentos.
Guilherme: E como você sabe?
Azeredo: O Ednaldo disse.
Marcos: E você confia nele? Não vai conferir?
Azeredo: Não é preciso, confio nele.
Guilherme: E em nós, você confiaria?
Azeredo: Acho que sim.
Marcos: Então deveríamos ter dito que era só documentos também não é Guilherme?
Guilherme: Ele não confiaria em nós porra nenhuma...
Lili: Porque essa mala com documentos Ednaldo?
Erinéia: Ah minha filha, sem essa mala ele não sai de casa.
Marcos: A mala não está pesada Azedinho?
Guilherme: Não chama ele de Azedinho não...
212
Azeredo: Está.
Marcos: E então?
Azeredo: Papéis são pesados.
Guilherme: Essa é boa, muito boa, ótima desculpa.
Erinéia: Gente, vamos parar com isso... alguém tem notícias do Augusto? Ele vem?
Azeredo: Disse que vinha, mas não sei não...
Guilherme: Se vier, já calcei minhas luvas...
Tereza: Que é isso Guilherme?
Azeredo: Por isso acho melhor que ele nem venha.
Leandro: Para quê essas luvas?
Azeredo: Ora para quê, você não faz ideia?
Guilherme: Olha só quem fala... e você que não confia nos próprios irmãos de sangue,
mas em um maluco como o Ednaldo...
Erinéia: Ele não é maluco...
Marcos: Para o exército brasileiro ele é.
Ednaldo: Então acho que sou maluco mesmo.
Guilherme: Vê só Mário? Ele mesmo falou. Não vai conferir a maleta dele agora mais
não?
Azeredo: Não.
Marcos: Nota dez para você.
Tereza: E como anda o jantar? Estou com fome.
Azeredo: A Noga está cuidando de tudo.
Lili: Há quanto tempo?
Erinéia: Se você diz que ele é maluco então nosso pai era maluco também...
Eurídice: Gente: tudo de novo não.
213
Azeredo: Não entra na conversa deles Erinéia, que esses aí gostam de distorcer tudo.
Guilherme: Então somos nós que gostamos de distorcer as coisas? E ela, o que acabou
de fazer agora, quando falou do nosso pai?
Leandro: Pessoal... vamos pôr uma música aí?
Magno: Eu estava louco para dançar mesmo, desde que cheguei aqui.
Eurídice: Você não tem jeito mesmo não é Magno?
Magno: E de que me valeria ser aleijado se não pudesse fazer uma piadinha com isso,
ainda que comigo mesmo?
Lili: Isso é verdade, Meu Senhor...
Ednaldo: Pois não acho graça nenhuma.
Magno: Ednaldo meu amigo: vá peidar, se puder.
Eurídice: Magno.
Magno: Mas o que foi? Ah, você não pode peidar não é?
Marcos: Essa foi boa.
Ednaldo: Posso sim, pelo mesmo buraquinho por onde cago...
Lili: Que nojo.
Apartada da nova confusão instaurada, da nova falsa construção erguida, minha mãe
brincava no tapete com suas sobrinhas retardadas, alheias as três, todas de máscaras
nuas, as três longe do movimento artificial da sala, da sala repleta de serpentes, do
símbolo do mal introjetado, pulsando regulares dentro da mesma placenta que as
protegia da enfermaria cancerígena em que novamente se tornou a sala de visitas sendo
derruída. E brincavam silenciosas, rítmicas, alegres, no mesmo nível de entendimento,
as três movendo as mãos no ar de vidro estilhaçado – a desenhar o círculo e a cruz na
forma grega, e uma estrela de cinco pontas e um quadrado e um trio de linhas onduladas
214
– como se no interior de pequenas bolhas de ar comprimido, de espuma, lentas e
pacíficas como baleias nadando no índico, preguiçosas, negligentes, serenas, sem se
deixarem afetar pelo tumulto, graciosas e arejadas feito janelas abertas, livres,
extraordinariamente livres, ainda que como se movimentadas por fios acrílicos e
invisíveis, mas fios que não as prendiam, que antes as deixavam mais leves, mais
gestuais, como se o mundo prescindisse delas, do seu entendimento, de sua própria
existência de seda, estando elas ali, encenando em um palco suas coreografias de balão
de gás hélio, melífluas feito um sono bom, quente, ignorado, imerso no Cinquecento de
um mundo vivenciado como uma totalidade segura de fronteiras definidas, mundo
rafaelesco, digno de representação artística.
Magno: Olha ali, largou dos filhos e agora está lá, brincando com as sobrinhas
mongoloides, onde já se viu?
Tereza: Não fale assim de minhas filhas Magno.
Leandro: Deixa ele Teca, esse aí é um amargurado...
Magno: E como devo chamá-las então, senhor Glostora?
Eurídice: Magno, você só me envergonha.
Magno: Mas olhem só como elas se dão bem, não é de se admirar?
Eurídice: Porra Magno... desculpem.
Tereza: Não vale a pena Eurídice...
Magno: Exatamente.
Ednaldo: Ele nunca muda não é?
Magno: Mudar para quê? Nunca irei a lugar nenhum mesmo, pelo menos não sem as
pernas.
Erinéia: Não seja tão cruel com você mesmo Magno...
215
Magno: E a Tiana, como vai? Ainda vomitando muito?
Ednaldo: Não fale assim de minha filha.
Erinéia: Deixa para lá filho...
Magno: Filho? E agora o quê? Pariu ele? Com que idade?
Marcos: Veja lá Magno, não passe dos limites...
Magno: Está me ameaçando?
Lili: Que é isso Magno? Pelo amor de...
Guilherme: Deus?
Lili: Ato falho.
Marcos: E o que é Deus além de um ato falho?
Leandro: Boa.
Tereza: Como vocês podem? A mamãe era católica, nós fomos criados em um lar
católico...
Azeredo: E veja só no que nos transformamos...
Marcos: Não vou discutir minha religião com vocês, fé é fé, não importa fé em quê, não
é mesmo?
Tereza: Não, não é.
Magno: A Tiana é católica?
Eurídice: Magno, que merda... desculpem.
Magno: Ela vomita a hóstia também, quando comunga?
Erinéia: Isso é uma doença Magno, você não deveria brincar com isso.
Magno: Anorexia para mim é frescura.
Ednaldo: Como você é maldoso Magno...
Magno: Doença para mim é isso aí ó...
216
E apontou com o queixo bipartido na direção do tapete onde minha mãe brincava com
suas sobrinhas, as três agora rindo e batendo palmas, deitadas sobre ele, sobre seu
felpudo bem costurado, um tapete francês, comprado em alguma loja situada em Paris,
macio como um são bernardo morto...
Magno: Elas sempre babam assim mesmo pela tia?
Tereza: Elas conhecem as pessoas que têm boa índole...
Magno: Ou que são iguais a elas não é?
Leandro: Magno, Magno...
Eurídice: Esse tem um nervo inflamado como eu nunca vi.
Magno: Um espírito agudo, eu diria.
Marcos: E você Ednaldo, como anda tudo, sempre tão calado não é?
Erinéia: Agora deu para conversar com as plantas...
Magno: Não disse – louco.
Ednaldo: Conversar com as plantas é bem melhor que conversar com certos tipos de
indivíduos...
Guilherme: Nossa, ele sabe se defender.
Marcos: Cuidado que a maleta dele está bem embaixo da cadeira dele...
Guilherme: E a nossa está trancada, graças ao nosso querido anfitrião...
Azeredo: Eu não acredito que vocês ainda estão insistindo nessa estória, que droga de
Natal viu?
Tereza: Não fala assim Mário, respeite o aniversário de Cristo.
Leandro: Calma Tereza...
Marcos: Até tinha me esquecido desse detalhe.
Eurídice: Que...
217
Marcos: Do detalhe do Natal.
Tereza: Façamos pela nossa mãe pelo menos, respeitemos ao menos a memória dela,
aliás, vocês todos...
Eurídice: E a memória de nosso pai também...
Erinéia: Exatamente.
Ednaldo: O grande coronel Guilherme...
Marcos: Tenente-coronel...
Ednaldo: É verdade, não teve como ele fazer carreira no exército, não se sujeitou ao
servicinho sujo assim como vocês...
Guilherme: Servicinho sujo é o caralho.
Eurídice: Tudo de novo, e para sempre mil vezes novamente...
Tereza: Olha a boca Guilherme, olha as crianças.
Magno: E elas entendem por acaso o que estamos falando?
Leandro: Magno, estou te avisando...
Erinéia: Gente, demorou tanto tempo para a gente se encontrar, vamos fazer um
esforço, por favor...
Leandro: Então fala para esse aleijado...
Magno: Opa, agora sim, deixou o bom-mocismo de lado...
Tereza: Leandro...
Azeredo: Acho que não tem jeito.
Eurídice: O que não tem jeito?
Azeredo: Nós.
Guilherme: O problema é que o Ednaldo é muito ressentido com tudo, meu amigo, a
revolução já acabou há mais de vinte anos...
Marcos: Para quê ficar remoendo isso?
218
Ednaldo: E como esquecer?
Azeredo: Nisso eu concordo com o Ednaldo...
Guilherme: Ainda?
Ednaldo: Tenho amigos que ficaram loucos...
Magno: Assim como você?
Eurídice: Magno, quer calar a boca?
Magno: Não me mande calar a boca na frente dos outros, ou você pensa que sou o
Leandro?
Leandro: Olha seu, seu...
Tereza: Leandro...
Magno: Não disse?
Lili: Gente, vocês mal chegaram e já estão brigando.
Ednaldo: Tenho uma amiga que se suicidou recentemente...
Erinéia: É verdade...
Ednaldo: Não suportou os traumas... vocês a pegaram... a suspenderam por uma corda
amarrada aos cabelos... o couro cabeludo não suportou o peso e rasgou... nunca mais
cresceu cabelo nela...
Guilherme: Não lembro de ter feito isso com ninguém.
Marcos: Nem eu.
Ednaldo: Falo vocês porque, ah, vocês sabem muito bem do que estou falando, falo
vocês de vocês militares...
Guilherme: E você o que é?
Ednaldo: Você sabe muito bem o que eu sou, um militar da estirpe do seu Guilherme,
eu nunca...
219
Marcos: Sei, sei, você nunca torturaria ninguém, não é? Já estou cansado de ouvir essa
ladainha.
Eurídice: Eu também.
Azeredo: E vocês acharam que quem apanhou ia esquecer?
Guilherme: Mas era para ter esquecido, senão, para que merda serviu a lei da anistia?
Ednaldo: Serviu para que assassinos como vocês ficassem livres, recebendo medalhas...
Marcos: E quanto a vocês? E ao nosso irmão aqui, que tramou aquele sequestro ao
embaixador norte-americano? Se nós não libertássemos aqueles presos políticos o que
vocês fariam com ele, hein? Matariam a sangue frio ou não?
Azeredo: Se fosse preciso nós faríamos sim...
Guilherme: E esse raciocínio pode muito bem ser aplicado a nós, nós também fizemos o
que foi preciso...
Ednaldo: Essa minha amiga... foi estuprada por todo o quartel... a obrigaram a manter
relações sexuais até com os cachorros treinados...
Guilherme: Será que foi bom para ela?
Erinéia: Como você pode brincar com uma coisa dessas?
Azeredo: Também me fiz essa mesma pergunta.
Mais comida para o pensamento: recordo meu tio Marcos relatando com frieza e
orgulho e vontade de dizer sobre como ministrava na época da revolução suas aulas
sobre tortura, lembro-me de ele falar dos slides que exibia – eles achando que eu estava
dormindo, deitado no sofá, no colo sempre macio de minha mãe – dos mendigos que
eles faziam de cobaias, os quais tinham os testículos eletrocutados, a pele queimada por
cigarros, ou da aula sobre afogamento que ministrava para elementos das forças
armadas, aula a qual dizia ter preferência, enquanto meu outro tio assassino, meu tio
220
Guilherme, falava orgulhoso da época em que comandava a briosa polícia do exército, e
de como certa feita espancou uma mulher inteiramente despida, com um médico militar
a assistindo, confirmando que ela ainda duraria a mais algumas seções – recordo deles
sempre assim, em pesadelo, discursando sobre inquéritos que não existiram, enclaves
independentes onde estudantes de tortura aprendiam seus ofícios, ambos orgulhosos ao
afirmarem que o Brasil na época chegou a exportar Know-how a respeito de métodos de
tortura, ou sobre o famigerado pau de arara, preferido por todos, que consistia em uma
barra de ferro ou de alumínio atravessada em seta entre os punhos amarrados e jarretes
dos joelhos – e na medida em que vou recordando disso lembro também do que reza o
Artigo Quinto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada pelo Brasil:
ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano, ou
degradante, sim senhor, penso nisso enquanto recordo deles falando friamente sobre
esses assuntos, frieza derivada da certeza da impunidade, sobre como certa vez
perfuraram o cu de um prisioneiro com um cassetete de borracha grosso, ou sobre o
eletrochoque, que era dado por um telefone de campanha do exército que possuía dois
fios longos ligados ao corpo da vítima, de preferência ligados nas partes sexuais, ou
ouvidos, ou dentes, ou língua, ou dedos, e sobre como mandavam o infeliz prisioneiro
tomar banho antes disso, antes de receber choques através de um magneto cujo terminal
se amarrou, neste caso em específico, nos testículos do preso, o banho uma forma de
aumentar a condutividade do corpo – o afogamento é complementar ao pau de arara,
eles diziam – quando introduzida em suas narinas e boca uma mangueira de água
corrente na qual era obrigado a respirar cada vez que recebia uma descarga dessas, eles
o sufocavam, sim, relatavam todas essas crueldades sem nem sequer pestanejarem,
discursando sobre a cadeira do dragão, sobre a geladeira, a geladeira onde colocavam
preferencialmente mulheres, elas também presas sem acusação, despidas em um
221
ambiente frio e úmido, hidráulico, dentro do qual reverberavam sons estridentes saídos
de uma caixa de som fixa no teto para explodir seus tímpanos, seus nervos óticos,
fechadas em um ambiente escuro, cujas paredes internas eram revestidas de Eucatex
negro, muitas das vezes essas mulheres enlouquecendo nesse cubículo quando em
companhia de uma jiboia que eles colocavam lá, não importando sequer se as
prisioneiras estivessem grávidas ou não, aliás, assim gestantes as preferiam seus
torturadores, meus tios, que injetavam soro de pentatol em suas vítimas, que jogavam
ácido em suas faces, que espancavam seus interrogados com cassetetes de alumínio nas
nádegas, nas pernas, costas, os obrigando a se manterem em pé e descalços sobre latas
de leite condensado abertas, e que para o caso de perderem o equilíbrio traziam sempre
condutores de choque elétrico nas mãos para conduzi-los de volta à posição desejada
(trapézio), ou quando arrastavam um acusado qualquer de subversão até um local onde
fosse pendurado para cima amarrado pelos testículos, ou quando versaram sobre a
palmatória de madeira com a qual batiam nas nádegas dos presos políticos, uma
palmatória revestida de borracha grossa de sola de pneu de carro, sustentada por um
cabo de ferro, próprio para arrebentar vasos sanguíneos, e isso para não falar dos
telefones que sangravam os ouvidos, das ameaças que faziam de cortar com uma tesoura
cega os seios túmidos de medo das prisioneiras, e isso para não falar dos estupros, de
uma mulher despida que contaram serviu a pelotões inteiros dentro de um quartel
escuro, ou de outra que foi estuprada na frente do marido, dos filhos, da sodomia
praticada como regra no interrogatório, ah, não sei, da tortura enfim, que havia sido
institucionalizada em nosso país, em nosso país, e agora minha mãe ali, deitada sobre o
tapete enquanto brinca com suas sobrinhas, parece tão inocente, tão pura, tão sem culpa
alguma de nada diante de tudo o que seus irmãos fizeram que eu, talvez, esteja
222
começando a achar que tudo o que ela fez conosco fez porque não fosse má, mas louca,
sim, louca, minha mãe é louca...
Magno: Olha lá a Sílvia, ainda brincando com suas sobrinhas, parece até que é louca,
não acham?
Leandro: Por que você se incomoda tanto com isso hein Magno?
Eurídice: Ele é que é o louco...
Magno: Ah, não me incomoda não, é só que, não sei, ao ver a Sílvia assim com as duas
retardadazinhas, dou graças a Deus a Eurídice não poder ter filhos...
Leandro: Magno, olha, ah...
E se levanta sem completar a frase, mesmo sem ouvir o cincerro da esposa, dirigindo-se
com seus galápagos roçando no chão para uma das janelas fechadas da sala, para abri-
las...
Eurídice: Magno, você não tem vergonha não?
Tereza: Isso mesmo, você deveria se envergonhar disso.
Azeredo: Ainda bem que nossos pais estão mortos, só assim não verão no que a família
que construíram se transformou.
Guilherme: E no que foi que nós nos transformamos?
Azeredo: Não está vendo?
Ednaldo: Dou graças a Deus, mais ainda pelo seu Guilherme...
Marcos: É verdade, se ele visse a democracia em que nosso país está metida, talvez
estivesse amargurado, ou arrependido...
Azeredo: Amargurado? Talvez. Mas arrependido? Nunca.
223
Ednaldo: Seu Guilherme era um homem de fibra...
Tereza: Papai era fogo mesmo...
Azeredo: E vocês sempre o repreenderam não foi?
Tereza: Nós?
Azeredo: E nossa mãe também, vocês queriam que ele fosse como o Marcos, ou como o
Guilherme Filho...
Ednaldo: Se tivesse sido, hoje em dia na certa estaria aposentado como general... Seria
um assassino condecorado.
Guilherme: Olha lá como fala.
Azeredo: E não reformado como um louco, como foi feito...
Marcos: Vocês não sabem do que estão falando.
Azeredo: E ainda tiveram a cara-de-pau de mandar aqueles soldadinhos lá no enterro,
para darem aquelas três salvas de canhão...
Ednaldo: Quanta hipocrisia, sordidez.
Marcos: Vocês não sabem o que dizem.
Guilherme: Deixa eles Marcos, eles com sua democraciazinha para poucos.
Azeredo: Pelo menos podemos falar o que quisermos...
Marcos: Por isso achei bem feito quando aquele Collor de merda meteu a mão no
dinheiro de vocês...
Guilherme: O primeiro presidente civil depois de tanto tempo, eleito pelo voto direto e
popular e todas essas besteiras que você bradavam nas ruas e...
Marcos: E deu no que deu.
Ednaldo: A corrupção é herança da ditadura...
Guilherme: Não me venha com essa... era para meter a mão no dinheiro público que
vocês tanto queriam a democracia não era? Todos querendo uma fatia maior do bolo.
224
Azeredo: Vocês que não me venham com essa.
Guilherme: Fizemos até uma reunião... lembra Marcos?
Marcos: Claro que lembro.
Guilherme: Só o alto escalão, depois que aquele facínora foi deposto...
Ednaldo: Reunião para quê?
Marcos: Para decidirmos se tomávamos ou não as rédeas do país novamente...
Azeredo: Deus me livre...
Tereza: Não podemos conversar sobre outra coisa?
Eurídice: Estou com a Tereza.
Erinéia: Mas esses quando se juntam, é só para falar de política.
Azeredo: E o que ficou decidido nessa reunião?
Marcos: Ah, você deve saber, nós dissemos – os civis não queriam o governo? Então
deixemos que eles se fodam.
Ednaldo: Foi isso?
Guilherme: Com estas exatas palavras...
Marcos: Agora, deem só uma relembrada nos civis que vocês meteram no poder através
do voto e me digam, vamos, digam se nosso pai estaria satisfeito?
Guilherme: Bando de corruptos, de canalhas egoístas, de ladrões, vamos lá, falem,
todos, sem exceção, uma raça de animais que governam o país em causa própria...
Azeredo: Pelo menos podemos falar o que quisermos...
Marcos: E quê mais? Vai ficar repetindo isso quantas vezes durante a noite?
Lili: Ainda é noite? Quantas?
Azeredo: Quantas vezes eu quiser, a casa é minha.
Lili: Não, eu quis dizer...
Guilherme: Ouviram bem isso? A casa é dele, dele.
225
Marcos: Veja esse governo atual, toda essa corrupção, essa bandalheira do cacete...
Ednaldo: A mesma coisa que vocês faziam, só que naquela época a imprensa não podia
noticiar nada.
Azeredo: Exatamente.
Marcos: E agora o que noticia ninguém pode confiar.
Leandro: Mentiras mais mentiras, em todos os volumes.
Guilherme: É, mentira: nós nunca assaltamos os cofres públicos.
Ednaldo: Não me venham com essa.
Guilherme: Diga o nome de um só militar que tenha ficado rico depois de governar essa
merda de país?
Marcos: Um marajá corrupto como qualquer um desses deputados filhos da puta, com
uma aposentadoria ao menos parecida com a que ganham depois de trabalhar, entre
aspas, por oito anos.
Guilherme: Isso para não falar no dinheiro dos cofres públicos circulando nas Bahamas,
na Suíça, no caralho a quatro.
Marcos: Ah, mas eles têm liberdade.
Guilherme: Liberdade para serem roubados, fodidos.
Azeredo: Ainda assim a democracia é o melhor regime, só precisa ser aprimorado, já
que perdemos vinte anos sendo comandados por ditadores.
Marcos: A culpa sempre será nossa não é? Não importa o que se diga aqui.
Ednaldo: E queriam o quê?
Lili: Gente, por favor...
Azeredo: Nosso pai sentiria vergonha das estrelas de general que logo mais você irá
ostentar Marcos.
Marcos: Vergonha ele teve foi do filho veado.
226
Guilherme: Aidético.
Azeredo: Não fala aidético Guilherme.
Guilherme: Azedinho, quer saber de uma coisa?
Erinéia: É Natal meninos, parem com isso.
Tereza: Obedeçam a sua irmã mais velha droga.
Magno: Deixa eles se matarem.
Eurídice: Magno, se você abrir a boca mais uma vez eu te coloco lá fora junto do
Cortázar, te tiro da cadeira e te deixo por lá.
Magno: Pois experimente, te dou um chute nas costelas...
Lili: Esse Magno.
Erinéia: Mas será possível que nós nunca vamos poder nos reunir em paz, nem que no
Natal, mas que droga...
Magno: Acho que dona Elvira tinha o ventre doente...
Guilherme: Não fale assim de nossa mãe, seu aleijado do caralho.
Eurídice: Guilherme, por favor...
Magno: Está me ameaçando senhor coronel?
Guilherme: Entenda como quiser.
Azeredo: Olha, acho que não vai dar certo...
Erinéia: O que não vai dar certo?
Azeredo: Vou ligar para o Augusto, dizer para ele não vir...
Guilherme: Vai poupar o veadinho?
Tereza: Guilherme.
Ednaldo: Acho melhor você ligar mesmo, melhor que ele não venha.
227
Então o dono da casa se levanta e sai, no instante em que as cortinas voltam a tremular e
são bandeiras dançando a favor do vento das janelas recém-abertas, dançam como
tivessem dedos, e com os dedos tocassem uma vidraçaria invisível, um espelho
enganoso a refletir nenhuma luz, um movimento fantasmagórico deslizando na planura
fria do ar, gesticulando no silêncio mais uma vez aberto na sala, cada um em si
mastigando seus rancores, seu quingentésimo rancor, engolindo frases ainda mais
ácidas, ainda mais monstruosas do que aquelas que disseram desde que chegaram, que
proferiram feito uma vertigem senhora de si, cuspidas dos lábios sua violência evidente.
A vida como paródia da vida, um imenso desfile de animais monstruosos durante o
Pentecostes em Tarascon, um funeral antecipado a prever o nosso fim. No tapete,
alheias a tudo isso, brincam aquelas almas voluntariosas, ursulinas, inocentes, sorrindo
azuis como se nada daquilo lhes atingisse, lhes fizesse mal...
Erinéia: Você não deveria falar assim do Augusto, Guilherme.
Guilherme: Ah não, e você acha que ele se preocupou com a família quando foi para
Portugal viver sua vidinha sórdida?
Tereza: A questão não é essa...
Guilherme: Foi para lá, pegou essa doença vergonhosa, e agora volta querendo que
todos o aceitem como se nada...
Eurídice: Ele não pediu nada disso, e você acha que foi escolha dele contrair o vírus da
AIDS? Você sabe por acaso o que ele deve estar passando?
Tereza: Ninguém sabe.
Magno: Alguma de vocês foi visitá-lo desde que ele chegou?
Erinéia: Olha...
Lili: Quando ele chegou?
228
Magno: Não, me falem, porque se lembro bem a Eurídice nunca foi, nem mesmo no dia
em que ele ligou lá em casa dizendo que estava passando mal...
Eurídice: Magno...
Magno: Vocês podem chamar o coronel de tudo, menos de hipócrita.
Guilherme: Exatamente.
Magno: É o único que trouxe as luvas... e vocês? Quantas vezes correrão para o
banheiro lavar as mãos cada vez que tocarem nele?
Tereza: Nós nunca faríamos isso.
Guilherme: Sei, então porque não foram lá ainda visitá-lo?
Erinéia: Nós iremos...
Marcos: Quando?
Tereza: Como vocês são maldosos.
Eurídice: Ficaremos aqui por quanto tempo mais?
Guilherme: O Azedinho não gosta quando a gente fala que nosso pai tinha vergonha do
filho veado.
Marcos: Ele endeusa nosso pai.
Guilherme: E nos demoniza.
Ednaldo: E ele precisa?
Marcos: Ednaldo, não vou mais discutir isso com você, se não quer nos respeitar como
seus cunhados, nos respeite como seus superiores.
Erinéia: Meninos, meninos...
Guilherme: É exatamente isso, vamos deixar as patentes bem claras por aqui.
Ednaldo: Vocês não me intimidam mais.
Marcos: E você nunca nos intimidou.
Leandro: Não ficou melhor com as janelas abertas?
229
Lili: Eu estou com frio.
Marcos: Vem cá que o teu general te esquenta.
Erinéia: Será que o Mário conseguiu falar com o Augusto Paulo?
Marcos: Espero que sim.
Guilherme: Se nosso pai tivesse nos dado carta branca, a gente teria ajeitado ele, não só
ele, mas toda a família.
Eurídice: Como carta branca?
Marcos: Carta branca.
Tereza: E você acha que o homossexualismo precisa ser corrigido? Ainda mais com
pancadas?
Erinéia: E o que você quer dizer com toda família?
Guilherme: Deixa para lá.
Magno: Vamos diga, agora fiquei curioso.
Guilherme: Vocês todos são uns perdedores.
Magno: Nós? Essa é boa coronel.
Marcos: Se dependesse da gente nossas irmãs não estariam casadas assim, uma com um
banana, outra com um maluco, outra com um ladrão, e a última, veja só, largou do
primeiro marido pra ficar com um médico espancador de mulheres...
Leandro: O banana sou eu?
Tereza: Vocês não têm o direito de falar isso.
Magno: Eu sou o ladrão?
Guilherme: Sonegador de impostos é o quê?
Eurídice: Ora, gente, por favor...
Ednaldo: Eu sou louco então? Essa é boa.
Tereza: Olha lá, o Mário está voltando do telefone...
230
Tudo teatro: gázua vesperal onde protagonistas e antagonistas se agarram aos seus
papéis como podem, porque seus papéis são a vida, a única que conhecem. Todos uns
vagans libertinos cantando e recitando em direção à morte, verdadeiros cadáveres
ambulantes feitos para divertir o burguês citadino, sim: recordo a velha caricatura de
homem em que meu pai se transformou depois da separação litigiosa com minha mãe,
lembro de sempre ir visitá-lo aos domingos e vê-lo: a toalha amarrada na cintura um
bambolê sujo, sentado no sofá imundo de seu apartamento não menos sujo, as cortinas
ensebadas e imundas da sala, pornográficas de tão sujas, os olhos sempre chorosos,
tristes, aveludados por uma membrana doente, abandonado por todos, as costelas
magras pontiagudas voando de trapézio sobre seu dorso ossudo, sempre bêbado, sempre
com uma garrafa de aguardente próxima de seus dedos intimidados, trêmulos, a voz não
menos trêmula saindo feito pedisse licença, permissão, sim, assim o recordo, os pés
inchados, gotosos, uma sombra derruída em um desespero de folhetim, envelhecido,
mórbido, desengonçado, me causando pena e outros sentimentos menos nobres, enfiado
em sua toalha embolorada e úmida sem no entanto girá-la em torno do corpo ou poder
sentar direito por causa do ataque de hemorroidas, ou da hedrocele, um cigarro aceso
sempre enfiado na boca, no meio do bigode espesso e amarelo a bifurcá-lo, isso
enquanto fumou, enquanto colocava aqueles vinis antigos para tocar em uma vitrola
enferrujada, a agulha gemendo seus mortos, um fantasma preso ao passado (onde coça
uma cascarria) foi no que se transformou, mas, não, não é isso o que quero recordar
agora, quero falar da foto que meu pai guardava, sim, daquela foto em que meu avô
possesso e fardado bradava em cima de um engradado de cerveja falando a uma plateia
de jovens estudantes, meu pai ao seu lado ainda novo, ainda namorado de minha mãe,
ainda um estudante imberbe e sem hemorroidas de engenharia mecânica, enquanto meu
231
avô lá, vigoroso e em preto & branco, discursando como o grande general que era e que
nunca o deixaram ser, porque discursando contra a ditadura, porque bradando contra os
assassinos, os torturadores, os olhos costurados em fúria como se na mão direita
trouxesse erguido um santelmo luminoso; na garganta, congelada para sempre, uma veia
saudável pulsando sangue quente, sim, nenhum homem nunca será maior que meu avô
naquela foto, por isso quando comparado a ele, meu pai se transforma nessa anemia que
descrevi: os olhos sempre chorosos, tristes, abandonado por todos, as costelas magras
voando de trapézio sobre seu dorso ossudo, sempre bêbado, sempre com uma garrafa de
aguardente próxima de seus dedos intimidados, trêmulos, a voz não menos trêmula
saindo feito pedisse licença, permissão, os pés inchados, gotosos, uma sombra derruída
em um desespero de folhetim, envelhecido, mórbido, desengonçado, embora eu ainda o
ame, e embora amá-lo não signifique ser condescendente com ele, com ele nem com
ninguém, nem mesmo com esse meu tio débil que agora retorna do telefone, a feição
preocupada no rosto...
Tereza: Então Mário, conseguiu falar com ele?
Azeredo: Ninguém atende.
Eurídice: Ele não deve estar em casa.
Magno: Que grande conclusão Eurídice.
Tereza: Talvez esteja vindo para cá.
Guilherme: Espero que não, profundamente.
Azeredo: Não sei, estou com um mal pressentimento.
Erinéia: Vamos esperar um pouco, vai ver já deve estar chegando logo mais por aqui,
você vai ver.
Marcos: Espero que não me apareça aqui com nenhum namoradinho...
232
Guilherme: E quem vai querer namorar uma bicha velha e aidética?
Azeredo: Vocês...
Erinéia: Parem os dois com isso...
Noga: Ele não vai vir, ninguém mais virá para cá Estamos aqui sozinhos e aqui
ficaremos para sempre: sozinhos
Tereza: E o Tiago, Marcos? Não vai vir?
Lili: Está em casa, meio adoentado.
Azeredo: Também, depois de ter sua alma vendida ao Diabo.
Tereza: Que estória é essa?
Marcos: Deixa para lá Teca.
Lili: Cada um educa os filhos do jeito que achar melhor.
Leandro: Mas as crianças precisam ser educadas dentro da igreja...
Tereza: E católica.
Magno: Conversa.
Eurídice: Magno...
Tereza: Você já teve filhos por acaso? Para saber como se deve educá-los bem?
Magno: Não tive porque sua irmã não pode ter filhos...
Ednaldo: Você é um grosso.
Magno: E você tem hemorroidas.
Guilherme: Nosso querido Augusto foi educado na igreja católica, e veja bem a merda
que ele ficou.
Azeredo: Não fale assim Guilherme.
Marcos: Talvez a culpa tenha sido de nossa mãe, que misturava tudo...
233
Guilherme: Aquele altar que ela tinha repleto de santinhos, terços, e fotos do Augusto
Paulo.
Azeredo: Não digam isso.
Marcos: E por que não?
Guilherme: Vocês não acham que foi por isso que ela se matou?
Eurídice: Nossa mãe não se matou coisíssima nenhuma.
Marcos: Ah não? Há quanto tempo ela tomava aquele remédio para o coração hein?
Como você acha que ela iria errar a dose?
Tereza: Vocês não têm certeza disso, não deviam estar falando essas coisas sem ter
certeza.
Guilherme: Ela o superprotegia, e por causa dessa superproteção ele se tornou o que se
tornou, falei isso para o pai na época...
Marcos: Depois, quando ela ficou sabendo que ele tinha ficado aidético, pronto, errou a
dose dias depois.
Tereza: Vocês não podem ter certeza, não deveriam...
Guilherme: Ela amava o Augusto de um jeito especial... deu no que deu.
Erinéia: O que você quer dizer com especial?
Magno: Incestuosa...
Guilherme: Não disse isso seu aleijado, acho melhor você ficar na sua.
Magno: Ai que medo.
Marcos: Não abuse da sorte Magno.
Erinéia: Por favor gente...
Leandro: Não tem jeito, essa família não tem jeito...
Erinéia: E os filhos da Sílvia? Não vêm?
Magno: Isso, mude de assunto para evitar o pior.
234
Ao ver minha mãe ali, ainda no tapete felpudo estendido na sala, portanto distante do
ramerrão doentio enquanto brinca com minhas primas translúcidas, alheias, ela
despojada de qualquer raciocínio, improvisando seus gestos, suas atitudes, desprendida,
penso em moinhos decepando pássaros, em navalhas quadrúpedes caminhando sobre o
cal, um espelho tocando uma sonata de vidro, uma gramática sem vírgulas ardendo
dentro de uma garrafa, penso nisso ou em qualquer outra imagem louca como essas –
um aquário para notas musicais, uma régua de medir fraturas, um incêndio sobre o
meridional de um mapa – e penso porque também meu pensamento, também ele, é
subitamente tomado por essa loucura doce, hercotectônica, inocente – elas brincam
protegidas por uma membrana de sonho, longe da infecção dos discursos das tireoides
transbordando fel – pacífica, em que as três ali, existindo, não pedem nada umas as
outras, apenas flanam, flanam, como se flanar fosse possível, minhas primas enfiadas
em um vestido azul gêmeo um do outro são rosas recortadas por um fuso-horário de
acrílico, minha mãe, exaltada e fluente feita da mesma rosa que elas, da exata mesma
pétala, rompe a ficção de sua imobilidade traçando no ar gestos delicados de uma
bailarina, como se desenhasse no nada uma paisagem insuperável e imaginada, assim
como faço agora, descrevendo a leveza louca das três, uma paisagem tão terna que
esqueço meus tios lá, estes sórdidos e envoltos em enxofre, na cena congelada da sala,
na página da sala, os esquecendo como se fossem personagens realmente, porque tão
cruéis e sujos que parecem inventados, mas não inventados como inventei minha mãe, e
com ela essas minhas duas primas inocentes, macias e suínas, santas, em contraposição
à pintura que faço da laia que restou, meus tios e tias, dos quais só me recordo quando
minha cabeça adoece no mundo, quando lembro que o mundo está repleto de homens e
mulheres como eles, apodrecendo com isso, em pandarecos com eles dentro, uma
235
memória tão negra quanto nóxia e particular, tanto que repetirei agora o que disseram,
para mantê-los no contexto mórbido em que se encontram:
Erinéia: E os filhos da Sílvia? Não vêm?
Magno: Isso, mude de assunto para evitar o pior.
Azeredo: Não consegui falar com eles, perdemos contato depois que a mãe os largou
para ficar com o Leandro.
Magno: Que grande mãe não? Agora está lá, no tapete, parece uma doida, não parece?
Eurídice: Não fale assim de minha irmã.
Ednaldo: A Sissi é uma pessoa boa...
Marcos: Louca, mas boa.
Tereza: Marcos.
Leandro: Mas é verdade o que o Marcos disse. Lembra que antes de ela fazer aquela
loucura com o filho, implorou para que ficássemos com ele?
Tereza: Mas isso não quer dizer que ela seja louca.
Magno: No mínimo uma desnaturada.
Azeredo: E o Tadeu passou quanto tempo com vocês?
Leandro: Pouco, não se deu muito bem lá em casa.
Tereza: Um menino estranho, ficava calado por horas, olhando fixo para uma parede,
com um pente balançando na mão... dizia que seu nome era Stephen não sei o quê.
Leandro: Quando não, lendo.
Tereza: É mesmo, lendo, ele lia muito.
Leandro: Mas não deu certo, e não por causa dele, nossa, ele era tão calado que às vezes
a gente esquecia que ele estava por lá.
Lili: E porque não deu certo?
236
Tereza: Por que notamos que aquilo dele era tristeza.
Leandro: Então falamos para a Sílvia levá-lo de volta.
Tereza: Uma judiação o que ela fez depois disso.
Leandro: Mas como a gente ia imaginar não é?
Erinéia: Todos eles hoje em dia devem ser cheios de problemas não é?
Guilherme: O Mário falou até que o Tadeu era escritor...
Magno: E escritor é tudo problemático...
Ednaldo: É verdade, imagine a melancolia necessária para se escrever um livro, a
paciência, a abnegação...
Magno: Devem ser uns chatos, todos eles, sem exceção.
Tereza: E a Cynara, ainda está casada?
Azeredo: Está, mãe de dois filhos.
Erinéia: Ela era muito amiga da minha Tiana.
Lili: Casou nova não foi?
Azeredo: Talvez o único jeito de fugir de casa não é? Do pai dela, da mulher dele, da
mãe dela, do puto covarde do esposo da mãe dela.
Leandro: E vocês conhecem o marido dela?
Azeredo: É músico, um cara ciumento, a tranca em casa e tudo...
Marcos: Saiu de uma prisão para cair em outra.
Guilherme: Coitada.
Eurídice: E a mais nova? A Cristina?
Azeredo: Essa não casou, mas se formou em economia, parece que tudo certo com ela.
Tereza: Menos mal não é? Ao menos uma.
237
Lembro minha irmã, que casando deixou-se corromper por medo, e corrompida porque
trocou seu corpo pelo julgamento que fariam dela, e nisso até reduzi-lo a uma moeda de
escambo enferrujada, até carcomê-lo, dizimá-lo, arrastá-lo para o fosso, o fosso negro
onde recordo minha mãe dizendo que a filha não passava de uma promíscua, sim, ela
dizia isso, mas será que soube que era a filha quem resistia às investidas do médico
demoníaco, tirano, não sei ao certo, sei apenas de nossa mãe querendo culpá-la pela
excitação dele, pelo desejo incestuoso e doente de ele querer possuí-la, como se nossa
mãe quisesse punir a filha por ser jovem e bonita, assim como ela foi um dia, nossa mãe
também, de fato, jovem e bonita um dia, no instante em que lembro minha irmã dizendo
que o melhor seria casar-se com outro, sim, para dessa maneira impor o selo do
matrimônio sobre seu corpo, tornando-o respeitável com isso, respeitável perante os
olhos de Deus e da sociedade, e que assim ninguém ousaria mais propor o desfrute dele,
mas, não, não deveria ter feito isso, assim terminou agindo como eles, acabou trocando
pela mesma moeda corrupta sua beleza intacta, exatamente como eles queriam, tendo
apenas pulado de um algoz para outro, de uma tortura para outra, sendo seu carrasco
recente um músico feio e ciumento, um homem de nariz grande, possessivo, e que ama
não a ela, mas a possibilidade dela trai-lo com outro, e esse é o pavor que o alimenta,
que o deixa vivo, que preenche seu corpo com melancolia e violência: desespero –
engordando suas noites insones com o sal da dúvida, da dúvida que o tortura,
corroendo-o por dentro para se anunciar, matando-o aos poucos como um câncer não
diagnosticado, um relógio escondido com navalhas no lugar dos pêndulos, espargindo
veneno em vez de horas, arruinando-o desde o cerne, desde a carne, dos ossos até a
borda do espírito já negro, negro como o espírito destes meus tios, que continuam a
falar, e a falar, e a falar, e a...
238
Erinéia: Nossa família daria um bom caso para um desses programas novos que passam
na TV não é?
Eurídice: É verdade.
Marcos: Mas do quê vocês estão falando?
Lili: Acho que já vi algo parecido também...
Tereza: Sei, acho que naquele canal...
Marcos: Mas que merda de programa é esse?
Magno: A Eurídice adora, Marcos, é um desses programas de TV comandado por um
apresentador pseudopsicólogo que leva os pobres para frente das câmeras e os incitam a
contar as intimidades mais desgraçadas...
Eurídice: Não são só pobres.
Lili: São sim, dá para notar pelo português errado que eles falam, em como eles contam
os seus pobremas...
Magno: Programas feitos para a ralé, entendeu? O cara vai lá, não sabe nem falar
direito, cheio de problemas de toda ordem, sei lá, econômico, sexual, familiar, o cacete,
quer dizer...
Guilherme: Entendi, daí o apresentador apresenta um monte de soluções idiotas que não
resolverão em nada a vida do miserável que foi lá, e ainda por cima obriga o cara a falar
tudo para segurar o ibope...
Leandro: Porque é isso que dá ibope: desgraça.
Marcos: Essa é a democracia.
Azeredo: Porque você insiste em levar sempre tudo para esse lado hein Marcos?
Guilherme: Mas ele está errado? O Estado democrático falido dá nessas coisas...
Marcos: Nesse bando de desvalidos procurando uma ajuda que caberia ao Estado
promover.
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Guilherme: Fosse no nosso tempo...
Ednaldo: Tá bom...
Magno: Nisso vou ter que concordar com vocês.
Guilherme: E essa sua ideia era a de que nós fôssemos lá, nos lamber em público feito
um bando de cachorros...
Erinéia: É incrível não é? Falei isso para ver se mudava um pouco de assunto, se
aliviava um pouco o clima pesado que grassa por aqui, mas não tem jeito não é?
Guilherme: Grassa é ótimo.
Tereza: Sabe do quê? Eu estou morrendo de fome.
Eurídice: Não vamos esperar o Augusto?
Marcos: Acho que ele não vem mais.
Guilherme: Graças a Deus.
Azeredo: Estou preocupado com ele.
Guilherme: Então se despreocupe, e vai lá ver se a tua empregada já fez a porra da ceia.
Azeredo: Guilherme...
Guilherme: Nossa.
Azeredo: O que foi?
Guilherme: Não sei... uma sensação de deja-vu, acho.
Magno: Com essas frescuras agora coronel?
Azeredo: Bom, vou indo até a cozinha então.
Então meu tio, o dono da casa, levanta-se e sai.
Noga: Está tudo pronto seu Mário, mas não adianta, nós nunca mais sairemos daqui,
nunca mais, nunca
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Recordo esta casa onde agora na sala impera um novo silêncio, rigoroso, constrangedor,
nesta página em que todos se calaram, as janelas abertas gemendo ruídos baixinhos de
fantasmas arrastando correntes, agonizados, balançando as cortinas para lá e para cá,
uma dança circular de tecidos nus, lembro da casa e seus corredores solenes, sua escada
em espiral, recordo de cada quarto uma memória intacta de suas mobílias, em um deles
eu fui profundissimamente feliz quando criança, uma felicidade curta, apagada, que era
a em que meu avô vivo me chamava pelo nome, sim, meu nome estalava em seus lábios
severos e era uma ordem, e eu descia até ele ouvindo o pulsar das minhas veias, e meu
avô terno estava lá, o rosto sereno enquanto amassava bananas para mim, em um prato
de porcelana a banana amassada para o meu café, Sente-se, ele dizia, e como me fazia
bem aquela ordem, como suas palavras eram largas dentro de mim, estendidas, aquela
impressão ligeira de felicidade que deixavam no ar, Coma tudo, ele dizia, sempre e em
todas as manhãs até o dia em que foi embora, aquele homem severo e bondoso que eu
amava, suando pelos cotovelos, o sinal de carne que tinha debaixo do braço levantado
para apanhar o leite, o leite que derramaria sobre a banana já amassada, Coma tudo, ele
disse, a voz sem nenhum rancor, nenhuma raiva, mesmo depois de ter passado tudo o
que passou, por exemplo, nunca o vi reprovando os filhos, ou jogando-lhes na cara tudo
o que fizeram com ele na época da revolução, as prisões, nunca o vi se queixar disso, a
sabedoria louca que só atinge quem chega na idade em que chegou, meu avô, que
quando veio a falecer deixou para trás uma família arruinada, esta que está na sala, e em
silêncio, ele que com sua calma, sua bondade e paciência, era o único pilar que ainda a
sustentava, e que quando morreu, morreu para a família o seu norte, o seu sustento, a
sua sanidade, tendo a família inteira sido lançada a partir de então, em um poço de
rancor e de desgraça, de sordidez, de ódio, de loucura, de morte anunciada:
241
Gosto de contrariar o mundo, desorientar o andamento de tudo,
mas sou tímido.
Já no ventre materno, contrariava os espaços, o médico
achou minha cabeça grande demais. Um ovo médio preso
ao osso de um tronco. Eu respirava sangue.
Nasci, contrariei a vontade de minha irmã mais velha,
que queria bonecas.
E não aquela asma que eu era, pequeno sapo macio e sem
vértebras. Ela atentou contra mim, a minha vida. Me enfian-
do algodões nas narinas. Um afogamento azul e limpo. Mas
vinguei, mesmo sem ar nos pulmões. Havia sangue.
A infância foi mansa e sem brinquedos. Eu tinha livros,
fome, e ideias fixas. Ideias fixas do que eu seria hoje,
do que hoje ainda sou: um idiota. Nada de pipas ou pião,
mas dois casos de loucura na família. E eu amava minha
fome me fazendo sentir-me vivo. Saciado, eu só queria dormir.
Minha mãe e minha avó eram loucas.
Mas contrariei a todos eles, e me mantive são. Intacto.
Fui abençoado pelo incesto. Eu amava as noites por sa-
ber que ela estaria lá. Amava a sua língua e o seu chico-
te. O gosto da minha própria carne em sua boca. Mas era
242
tímido.
Cresci como crescem todos os animais: temendo a voz
de Deus na boca de minha mãe. Contrariado, me apaixo-
nei pela Palavra Dele, embora também amasse a conjuração
noturna do demônio que minha mãe,
ás vezes via, debaixo de sua cama.
Mas amei mais ainda meu avô, e a
História dos mortos que habitavam
o seu sangue. Quando ele morreu,
eles disseram: enterrem o mais fundo
que der, mas enterrem descalço, que
esses sapatos são o meu número.
Contrariando a tudo novamente, todos
eles morreram, e foram comidos pela
música dos vermes. Estavam calçados.
E eu caminhei, conheci cidades, novas
línguas e chicotes, novos livros, mas
sempre, sempre, a mesma ideia fixa:
ser um idiota, um poeta de papel em
branco, queimando a alimentar uma
fogueira na praia. Era a mesma fome.
243
Azeredo: Noga?
Noga: O jantar está pronto seu Mário, quando quiser que sirva é só falar.
Azeredo: Você escutou tudo?
Noga: Escutei até o momento em que desisti, então não escutei mais nada, não valia a
pena.
Azeredo: Não adiantou muita coisa não foi?
Noga: Não, há coisas na vida que teremos que recordar diariamente, não há como fugir
delas.
Azeredo: Entendo.
Noga: O Augusto não vem, o senhor sabe não sabe?
Azeredo: Já desconfiava.
Noga: Vai ser melhor para ele.
Azeredo: É, acho que sim.
Noga: Então, sirvo o jantar agora?
Azeredo: Quando quiser... tanto faz não é? Isso não vai fazer a menor diferença, a
menor diferença...
Noga: Tudo bem... sinto muito não ter podido ajudar.
Azeredo: Não tem importância.
E ficaram lá, na cozinha. Noga sentou-se em uma cadeira, acendeu um cigarro e,
enquanto fumava, começou a ouvir, ainda que baixinho, o primeiro canto de Fiasco. Até
que enfim, ela pensou. Demorou muito para esse canário aprender a cantar, pensou o
irmão de minha mãe, o dono da casa. É verdade, ela concluiu.
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O relógio alemão na parede da sala, como se para contrariar a expectativa, quebrou seu
silêncio recente e ressonou uma última e derradeira nota: vertebral, perene, agonizada,
musicalíssima, essa última nota tocada como um estertor atrasado, um esforço último de
suas molas cheias, feito quisessem provar que o tempo não se esvaiu no anúncio das
sombras que se manifestaram aos poucos no silêncio do relógio, as cortinas voltando a
balançar como varas calcinadas em movimento. Então era o tempo novamente, notado
ainda que em sua aparente imobilidade, avizinhando-se em círculos, calmo e inevitável,
estreitando-se junto a todos os convidados presentes. Na cozinha da casa, Noga e Mário
Azeredo em silêncio, conversavam. Na sala, todos impacientes e nervosos, talvez pela
fome, ou por alguma outra coisa que não sabiam do que se tratava, ainda, começavam a
resmungar:
Guilherme: Cadê o Azedinho que não chega?
Marcos: Calma, ele acabou de sair.
Guilherme: Mesmo? Tive a impressão de que foi a uma eternidade.
Lili: Então porque você não vai lá na cozinha chamá-lo, se está tão apressado?
Eurídice: Mas nós podemos sair daqui?
Leandro: Daqui da onde?
Tereza: Ela está falando: daqui da sala.
Magno: Pergunta mais sem cabimento, e por que não poderíamos?
Eurídice: Não sei, a casa é dele não é?
Erinéia: E só porque é dele quer dizer que não podemos nos mexer sem que ele
permita? Nunca vi nada parecido.
Ednaldo: Talvez...
Magno: Como assim talvez?
245
Ednaldo: Veja o meu exemplo: eu nunca tive hemorroidas, e, no entanto, aqui estou eu,
recém-operado delas.
Magno: Ednaldo?
Ednaldo: Quê?
Magno: Você é louco mesmo, louco de pedra.
Eurídice: Magno, deixa ele em paz.
Tereza: Talvez ele esteja ligando para o Augusto de novo...
Guilherme: Mas o Augusto não vai vir, veja, vou até tirar as luvas...
Lili: E porque ninguém vai lá conferir isso?
Leandro: Isso o quê?
Lili: Se ele está ligando ou não, ou que outra merda ele pode estar fazendo...
Marcos: Não podemos Lili, vamos esperar.
Lili: Mas que droga deu em vocês de repente?
Tereza: Talvez ele esteja ligando para os filhos da Sissi.
Eurídice: É... Sílvia, seus filhos vão vir?
Grita a irmã de minha mãe. Sem sair do tapete, onde brinca com suas sobrinhas, ela
responde:
Sílvia: Eles não vêm não.
Tereza: Você tem contato com eles ainda?
Sílvia: Às vezes... hoje eles me ligaram, por exemplo, para desejar feliz natal, mas isso é
raro...
Magno: Até o Tadeu ligou?
Sílvia: Até ele.
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Guilherme: É escritor, imagine só, que família.
Sílvia: E é mesmo, ele me contou por telefone que estava escrevendo um livro.
Marcos: Um livro?
Sílvia: Um romance.
Guilherme: Era só o que faltava, um sobrinho vagabundo... se pelo menos for tão bom
quanto os alemães... do que se trata o livro, você sabe?
Sílvia: Ah, não entendo muito dessas coisas, mas sei... parece que é sobre um poeta que
desapareceu na época da ditadura.
Marcos: Revolução Sílvia, revolução...
Sílvia: Que seja.
Ednaldo: E que poeta é esse? Você sabe?
Sílvia: Ângelo, Ângelo... Ângelo alguma coisa.
Guilherme: Ângelo? Ângelo o quê?
Sílvia: Ah, disse também que nós estaríamos no livro.
Tereza: Como assim nós estaríamos?
Sílvia: Seremos personagens nele, eu acho.
Guilherme: Era só o que faltava.
Sílvia: Disse também que não iria nem trocar os nossos nomes, que nossas personagens
terão os mesmos nomes que nós.
Marcos: Mas ele não vai... o que ele vai escrever nesse romance Sílvia?
Sílvia: Não sei, sei apenas que escreverá em homenagem ao avô dele...
Eurídice: Nosso pai?
Sílvia: Exatamente.
Tereza: Esse nosso sobrinho... sempre tão calado e observador... Stephen Dedalus.
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E repetiu: sempre tão calado e observador.
Ednaldo: Bom, vou indo ali no banheiro então.
Eurídice: E você tem permissão para isso?
Ednaldo: Acho que sim, já que estou indo.
Magno: Ednaldo?
Ednaldo: Já sei, eu sou louco não é?
Magno: Isso.
E levanta-se, pegando a maleta que estava debaixo de sua cadeira.
Guilherme: Para quê vai levar a maleta Ednaldo?
Ednaldo: Gosto de ler enquanto estou, você sabe.
Marcos: Mas você não está... digo: como?
Ednaldo: Vou fazer pelo buraco que os médicos abriram no meu intestino, no saquinho
entenderam?
Guilherme: E por que não faz aqui então, se está tudo pronto?
Ednaldo: Vocês querem ver? É horrível...
Erinéia: Não, pelo amor de Deus, pelo amor de...
Marcos: Mas deixa a maleta aí.
Ednaldo: Prefiro levar.
E saiu.
Tereza: Sissi: como é o nome do romance que ele está escrevendo?
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Sílvia: Quem?
Tereza: Seu filho.
Sílvia: Não lembro bem... ah, acho que ele disse: “As borboletas”.
Marcos: As borboletas?
Sílvia: Sim, acho que sim...
Acho que sim, disse minha mãe, enquanto repetia para si mesma: As borboletas,
romance onde ele nos extinguirá a todos.
(Caem as cortinas. Alguém está rindo)
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