DÉBORAH GONSALVES SILVA - PPGHis · nineteenth-century documentary sources such as inventories,...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO UFMA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS CCH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DÉBORAH GONSALVES SILVA ARRANJOS DE SOBREVIVÊNCIA: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí (São Raimundo Nonato, 1871-1888) São Luís 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO – UFMA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CCH

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

DÉBORAH GONSALVES SILVA

ARRANJOS DE SOBREVIVÊNCIA: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí

(São Raimundo Nonato, 1871-1888)

São Luís

2013

DÉBORAH GONSALVES SILVA

ARRANJOS DE SOBREVIVÊNCIA: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí

(São Raimundo Nonato, 1871-1888)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

História Social do Departamento de Ciências Humanas

da Universidade Federal do Maranhão para a obtenção do

título de Mestre em História.

Orientadora: Profa. Dr

a. Antonia da Silva Mota.

São Luís

2013

DÉBORAH GONSALVES SILV

Silva, Déborah Gonsalves

Arranjos de sobrevivência: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí

(São Raimundo Nonato, 1871-1888) / Déborah Gonsalves Silva. – São Luís, 2013.

112 f.

Impresso por computador (Fotocópia).

Orientador: Profa. Dr

a Antonia da Silva Mota.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-

Graduação História Social, 2013.

1.Escravos – Relações familiares – Sertão do Piauí 2. Escravidão 3. Parentesco

consanguíneo e ritual – Escravos 4. Compadrio I. Título.

CDU 326.3:316.812.1 (812.2)

ARRANJOS DE SOBREVIVÊNCIA: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí

(São Raimundo Nonato, 1871-1888)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

História Social do Departamento de Ciências Humanas

da Universidade Federal do Maranhão para a obtenção do

título de Mestre em História.

Orientadora: Profa. Dr

a. Antonia da Silva Mota.

Aprovada em: ______/______/_______

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________________________________

Profa. Dra. Antonia da Silva Mota (orientadora)

Universidade Federal do Maranhão – UFMA

_________________________________________________________

Profo. Dr. Antonio Otaviano Vieira Júnior

Universidade Federal do Pará – UFPA

_________________________________________________________

Profo. Dr. Josenildo de Jesus Pereira

Universidade Federal do Maranhão - UFMA

________________________________________________________

Profa. Dr

a. Isabel Ibarra Cabrera

Universidade Federal do Maranhão - UFMA

A Rita Gonçalves, minha mãe, que, até hoje, me

ensina a conduzir a vida com coragem e esperança.

A ela, todo o meu amor e admiração.

AGRADECIMENTOS

Durante os dois anos de mestrado, eu pude contar com o apoio de algumas pessoas que

foi fundamental para que pudesse chegar à conclusão deste trabalho. Quero, aqui, registrar o

meu agradecimento especial a elas, pois a tarefa de produzir uma dissertação não é solitária.

Agradeço a Professora Antonia da Silva Mota, pela competência como conduziu a

orientação deste trabalho, pelo carinho, incentivo e confiança.

Aos Professores Josenildo de Jesus Pereira e Isabel Ibarra Cabrera, que participaram

da banca de qualificação, pela leitura acurada do texto e pelas contribuições com vistas ao

aprimoramento da dissertação. Procurei incluir as sugestões na versão final do trabalho.

Aos professores do Mestrado em História Social, por compartilhar experiências e

conhecimento acerca do fazer historiográfico, especialmente os professores Alexandre

Navarro, João Bitencourt, Dorval do Nascimento, Lyndon de Araújo, Maria Izabel Barboza e

Regina Helena de Faria. Agradeço também aos funcionários da secretaria da pós-graduação,

Lauriana Reis e Jonathas, pela atenção e generosidade ao solucionar as minhas dúvidas e

questões burocráticas.

Meu agradecimento especial ao meu querido amigo, Professor José Carlos Aragão,

pelo carinho e incentivo depositados desde o processo inicial de seleção para o mestrado até a

conclusão da dissertação.

Ao professor Clódson dos Santos, pelas indicações e livros emprestados e pelas

correções feitas ao projeto de pesquisa no período de seleção.

Agradeço o apoio do professor Francisco Vasconcelos e sua família. Obrigada pela

amizade, confiança e valorização.

Aos amigos professora Pedrina Nunes, professor Gênesis Naum e professor Gabriel

Frechiani, pela “força” com as atividades na UESPI, durante a minha ausência. Agradeço

também pelos momentos de alegria e pelas conversas que, muitas vezes, me tranquilizavam.

A professora Nívia Paula, pela ajuda com o processo de autorização para acessar os

documentos cartoriais e paroquiais. Agradeço ainda pela gentileza em compartilhar alguns

materiais e diálogos sobre a História do Piauí, a fim de enriquecer a pesquisa.

A FAPEMA, pela concessão da bolsa de estudos. Certamente, sem esse financiamento

seria mais difícil garantir a pesquisa em outro Estado.

Agradeço ao Pe. José Cláudio Moreno, por, gentilmente, permitir o acesso às fontes

eclesiásticas (registros de batismo e casamento) da Freguesia de São Raimundo Nonato e ao

funcionário da Cúria Diocesana, Fagner Nascimento.

Agradeço aos funcionários do Cartório e do Fórum de São Raimundo Nonato,

especialmente ao Juiz da Segunda Vara da Comarca de São Raimundo Nonato, Dr. Belmiro

Meira Júnior, por autorizar o acesso e manuseio da documentação alojada no arquivo do

Fórum.

Agradeço aos funcionários do Arquivo Público do Estado do Piauí, pela agilidade em

atender aos sucessivos pedidos de documentos com tanta solicitude, e agradeço,

especialmente, a minha xará Débora Cardoso pelo apoio fundamental durante as buscas no

arquivo de Teresina. Obrigada pelo carinho.

A Carolina de Abreu, pela forma atenciosa e prestativa com que me ajudou,

compartilhando seus materiais de Paleografia, para me ajudar a desenvolver a pesquisa.

A querida Ianthe Silva, pela ajuda com o abstract. Muito obrigada!

Ao meu grande amigo, Márcio Zamboni, por se fazer sempre presente. Sou muito

grata pela paciência, pelo incentivo, pelo companheirismo.

Agradeço a minha amiga, Marcela Valls, pela amizade, pelo apoio e companheirismo.

Aos amigos em São Raimundo Nonato, Lennon Matos, Anna Borges, Gênesis, Hamilton,

Larissa Reis, Laura Carvalho, Maurício Castro, Fernanda Ribeiro e Ednaldo Damasceno, por

compartilharem momentos de alegria que serviram para recarregar as energias e voltar à

labuta.

Ao querido Anderson de Almeida, pela amizade, por acompanhar de perto esse

processo de “gestação” da dissertação, desde o período de seleção do mestrado até a

conclusão do trabalho. Sou imensamente grata pelo trabalho com a elaboração do banco de

dados, tabelas, gráficos, organogramas e mapas. Agradeço ainda pelos livros, pelas leituras,

comentários e discussões sobre o texto, até mesmo nos finais de semana. A sua participação

neste trabalho foi essencial e a minha dívida é impagável...

Agradeço imensamente a Lúcia Almeida e a toda sua família, por me acolherem como

parte da família durante o primeiro ano do mestrado em São Luís. Obrigada pela ajuda que foi

fundamental, sem o apoio de vocês seria muito mais difícil. Sou eternamente grata.

Aos amigos do mestrado, especialmente, aos queridos, Iramir Araújo, Cláudio Melo,

Mirian Reis, Daylana Cristina, Eduardo Melo, Gonçalo Mendes, muito obrigada por

compartilharem experiências, conhecimentos e momentos de alegria. A Joelma Santos, pelo

carinho.

Agradeço a minha amiga Marivânia Moura, pela amizade, pelo carinho e ajuda

fundamental durante o mestrado. Obrigada por me proporcionar momentos saudáveis de

conversas e de longas risadas, por me receber no aconchego de seu lar, por me “socorrer” nos

momentos de aperreio. Não poderia me esquecer de agradecer a Sophia Moura e a Naruna

Mello, pelo carinho e momentos de descontração.

Por fim, quero agradecer a minha família, pelo apoio incondicional, por depositar toda

confiança em mim, por compreender a minha ausência durante esses dois anos, por me

encorajar e acreditar que posso conquistar os meus sonhos. A minha mãe, agradeço,

especialmente, pelo exemplo de força e determinação, e por “segurar a barra” enquanto me

dediquei ao mestrado. Obrigada por acreditar em mim.

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo investigar as relações familiares de escravos da vila de

São Raimundo Nonato, atualmente, município homônimo localizado no sudeste do Piauí. O

recorte temporal compreende os anos de 1871 a 1888, período marcado por intensas

mudanças, no âmbito nacional, como a proibição do tráfico atlântico de escravos, o

consequente aumento do tráfico interprovincial, as transformações provocadas pela Lei do

Ventre Livre, ente outras. Partindo da leitura minuciosa das fontes documentais oitocentistas

como: inventários, cartas de alforria e registros paroquiais (batismo, casamento e óbito),

procurou-se realizar um levantamento de informações inscritas sobre o perfil da população, o

grau de legitimidade dos cativos e condição social dos pais e dos padrinhos, para, então,

compreender as estratégias tecidas pelos escravos através do parentesco consanguíneo e ritual.

Desse modo, através do cruzamento dessas fontes, buscou-se reconstituir algumas trajetórias

familiares e individuais de cativos, atentando para as vivências cotidianas, sobretudo, para os

arranjos de sobrevivência forjados por meio dos laços de compadrio estabelecidos entre

escravos, livres e libertos no sertão piauiense. As múltiplas histórias abordadas no decorrer

deste trabalho apresentam uma dinâmica familiar multifacetada, visto que os arranjos de

sobrevivência tecidos por meio das estratégias de parentesco consanguíneo e ritual ampliaram

o significado desta instituição.

Palavras-chave: Escravidão. Família. Compadrio. Sertão do Piauí.

ABSTRACT

The present study aims to investigate the family relations of slaves from São Raimundo

Nonato villa, currently a homonym county located in the southeast of Piauí. The time frame

cover the years 1871 to 1888, a period noticeable by intense changes on national level, such

as the prohibition of the Atlantic slave trade, the consequent increase in inter-provincial trade,

the transformations due to the “Lei do Ventre Livre” and etc. From rigorous reading of

nineteenth-century documentary sources such as inventories, letters of manumission and

parish records (baptism, marriage and death), we sought to conduct a survey of written

information about the population profile, the legitimacy degree of the captives and social

status of parents and godparents, and then to understand the strategies used by slaves through

consanguinity and ritual. Thus, by crossing these sources, we tried to reconstruct some family

and individual paths of captives paying attention to the daily experiences, especially the

arrangements for survival forged through crony ties established between slaves, free and freed

individuals in Piauí's back country. The multiple stories addressed in this paper present a

multifaceted family dynamics, since the survival arrangements constituted by means of

consanguinity strategies and ritual expanded the significance of this institution.

Keywords: Slavery. Family. Crony. Back country of Piauí.

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Número de mulheres distribuído por cor e condição social. Recenseamento Geral

do Império, 1872.......................................................................................................................39

Gráfico 2 – Número de pessoas do sexo masculino distribuído por cor e condição social.

Recenseamento Geral do Império, 1872....................................................................................40

Gráfico 3: Distribuição da posse escrava na Freguesia de São Raimundo Nonato-PI, entre

1840e 1886.................................................................................................................................45

Gráfico 4: Percentual de padrinhos a partir de sua condição jurídica.......................................60

Gráfico 5 – Frequência de casamentos envolvendo escravos.São Raimundo Nonato(1837-

1884).........................................................................................................................................66

Gráfico 6: Percentual da filiação de filhos de escravas batizados entre 1871 e 1888..............81

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Quadro da População Livre e Escrava de São Raimundo Nonato por sexo e cor,

1872...........................................................................................................................................38

Tabela 2 - Estrutura da posse de cativos segundo faixa de tamanho dos plantéis.....................44

Tabela 3 – Padrão de Propriedade de Escravos em Inventários de São Raimundo Nonato,

1840-1863..................................................................................................................................46

Tabela 4 – Padrão de Propriedade de Escravos em Inventários de São Raimundo Nonato,

1864-1886..................................................................................................................................47

Tabela 5 – Condição Jurídica de Padrinhos e Madrinhas. São Raimundo Nonato, 1871-

1888...........................................................................................................................................58

Tabela 6 - Frequência de Casamentos Envolvendo Escravos – 1837-1884..............................61

Tabela 7 – Frequência de casamento escravo por propriedades em São Raimundo Nonato,

1837-1884..................................................................................................................................62

Tabela 8 – Frequência das testemunhas dos casamentos de escravos. São Raimundo Nonato

(1837-1884)...............................................................................................................................64

Tabela 9 - Filiação legítima ou natural dos batizados. Paróquia de São Raimundo Nonato,

1871-1884.................................................................................................................................70

Tabela 10 – Distribuição da População Escrava por estado civil em São Raimundo Nonato,

1872...........................................................................................................................................79

Tabela 11 – Padrinhos “preferenciais” e número de afilhados. São Raimundo Nonato, Piauí.

...................................................................................................................................................97

LISTA DE FIGURAS

Figura 1– Provincia do Piauhy: Segundo projecto de nova divisão do Império. Antonio

Cãndido da Cruz Machado 1820-1905 – 1875.........................................................................16

Figura 2 – Sudeste da Capitania do Piauí. Detalhe do “Mappa geographico da capitania do

Piauhy, e parte das do Maranhão, e do Gram Pará”. Data provável de levantamento

1816...........................................................................................................................................27

Figura 3 – Sudeste da Capitania do Piauí. Detalhe da “Geographische karte der provinz von

São Iozé do Piauhý”, produzida pelo tenente Joseph Schwarzmann em 1828. Detalhamento de

algumas das fazendas localizadas às margens do Rio Piauhy...................................................32

Figura 4 – Sudeste da Província do Piauí, com detalhe da localização das principais fazendas

da região. Provincia do Piauhy: Segundo projecto de nova divisão do Império. Antonio

Cãndido da Cruz Machado 1820-1905 – 1875..........................................................................33

Figura 5 – Família dos cativos Zacarias e Maria, 1872-1879...................................................89

Figura 6 – Família da cativa Amância, 1873-1884. ................................................................92

Figura 7 – Laços de compadrio do cativo Antônio, 1872-1885................................................98

Figura 8 – Laços de Compadrio da Cativa Geralda, 1878-1882..............................................101

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................14

2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DE SÃO RAIMUNDO NONATO - PIAUÍ ...................... 24

2.1 A ocupação do Piauí ....................................................................................................... 24

2.2 A vila de São Raimundo Nonato .................................................................................... 32

2.3 A estrutura de posse escrava nos inventários ................................................................. 41

2.4. O homem escravizado tido como “bem” valioso no sertão piauiense ........................... 48

3 REDES DE PROTEÇÃO E SOLIDARIEDADE ESTABELECIDAS POR

ESCRAVOS NO SERTÃO PIAUIENSE ............................................................................. 52

3.1 Relações familiares entre escravos ................................................................................. 52

3.2 Casamento de escravos, livres pobres e libertos: redes de proteção e solidariedade ..... 56

3.3 O casamento e a questão da ilegitimidade ...................................................................... 63

4 TRAJETÓRIAS FAMILIARES: OS SIGNIFICADOS DAS REDES DE

PARENTESCO CONSANGUÍNEO E COMPADRIO....................................................... 74

4.1 Laços de compadrio: o parentesco entre as pequenas posses escravas.............................74

4.2 Experiências familiares de escravos ............................................................................... 87

4.3 Redes de solidariedade: o compadrio entre escravos ..................................................... 94

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................103

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 106

14

1 INTRODUÇÃO

No dia oito de julho de 1872, Gertrudes, cativa de Domingos Dias Soares1, moradora

na localidade Caracol, batizou o seu primeiro filho.2 Delfina, mulata, filha natural

3, nascida

em novembro de 1871, já podia ser considerada livre em virtude da Lei 2.040 de 28 de

setembro de 1871 (Ventre Livre). Foram padrinhos, Joaquim Manoel Dias, filho do

proprietário de Gertrudes, e sua esposa Ana Maria Dias. Dois anos depois, Gertrudes é

anunciada na documentação batizando o segundo filho, uma menina chamada Maria, parda,

também filha natural. Foram padrinhos, mais uma filha do proprietário de Gertrudes, Carlota

Leopoldina Dias e Leopoldino Augusto Dias Figueiredo, seu cunhado. No ano de 1877,

Constantino, mulato, foi batizado por Augusto José Soares e Joana Josefa Dias e Leandro, o

quinto filho de Gertrudes, foi batizado em 1881 teve como padrinhos João Augusto Dias

Figueiredo e Constantina Maria de Jesus. Severino e Efigênia também eram escravos de

Domingos Dias Soares e foram padrinhos de José, pardo, quarto filho de Gertrudes, batizado

em 18794.

Ao estabelecer parentesco ritual (compadrio) através do batismo de seus filhos, a

cativa Gertrudes teve preferência por pessoas de condição jurídica diferente da sua. Assim

como os demais, Josina e José foram batizados por pessoas livres em 1882 e 1885,

respectivamente. No total, entre os anos de 1872 e 1885, Gertrudes batizou sete filhos, sendo

três do sexo feminino e quatro do sexo masculino, e apenas um dos rebentos teve como

padrinhos, pessoas da mesma condição jurídica de sua mãe. O que é mais notável nesse

padrão de escolha é a posição social que esses padrinhos assumiam, na maioria das vezes,

eram pessoas que, além de possuir patentes militares, também eram proprietários de escravos

ou parentes de primeiro e segundo grau do proprietário da mãe dos rebentos batizados. Esse

1Segundo pesquisa realizada por Rômulo Negreiros (2012, p. 3-4), Domingos Dias Soares era filho do coronel

José Dias Soares, que comandou expedições para conquista do território piauiense entre os séculos XVIII e XIX,

foi o“[...] indivíduo que comandou a derrocada” dos índios da nação Pimenteira no sudeste do Piauí. 2Existe a possibilidade de que a cativa Gertrudes tenha dado à luz a outros filhos anterior a este, porém não é

possível confirmar esta hipótese, visto que, de todos os registros de batismo em que ela é mencionada como mãe,

este é o que apresenta data mais recuada. Portanto, considera-se como sendo o primeiro filho. 3 Todas as atas de batismo consultadas nesta pesquisa atribuem a condição de “filho natural” aos rebentos filhos

de mães cativas solteiras, ou mesmo àquelas que mantêm relações consensuais com o pai da criança, isto é, sem

formalizar a união através do matrimônio religioso. 4 As sete atas de batismo dos filhos de Gertrudes encontram-se no mesmo livro de registro de batismo, localizado

na Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Filhos de Escravas (1871-1888).

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esboço de parte da trajetória da família de Gertrudes revela o principal objetivo deste estudo,

que é identificar, a partir das vivências cotidianas5 dos escravos da vila de São Raimundo

Nonato, as estratégias6 e os significados das relações de parentesco (vertical e horizontal)

7,

para a manutenção e, muitas vezes, para a sobrevivência da família desses escravos

sertanejos.

Tomamos, como contexto espacial, a Vila de São Raimundo Nonato, Piauí, hoje atual

Município de mesmo nome, localizado no Sudeste do Estado do Piauí. Região de caatinga,

situada na fronteira geológica entre a planície da Depressão Periférica do São Francisco e a

Bacia Sedimentar Piauí-Maranhão, de rica biodiversidade e às margens do Rio Piauí,

ocupada, inicialmente, por povos nativos e, em seguida, pelos desbravadores do sertão do

Piauí. A figura abaixo (figura 1) representa a Província do Piauí em meados do século XIX, a

parte em destaque corresponde à área de estudo. Durante o século XIX, a região em estudo

caracterizou-se por uma produção voltada, principalmente, para o mercado interno, através da

agricultura de subsistência e da pecuária. Além disso, é necessário salientar que essas

características tornaram o modelo de produção peculiar em relação às regiões de grandes

plantéis voltadas essencialmente para o mercado externo, e refletiram diretamente no regime

escravista local, marcada por uma estrutura de posse escrava com pequeno número de cativos

por propriedade.

5 A compreensão de cotidiano utilizada nesse estudo segue o pensamento de Agnes Heller (1989, p.18), quando

expressa que a vida cotidiana é a vida de todo o homem e que, portanto, não existe homem sem cotidiano. Para a

autora “[...] o homem participa da vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua

personalidade”. Outra concepção de cotidiano é registrada por Maria Odila L. Dias (1991, p. 49), em que: “O

quotidiano, visto pelo prisma de nossa contemporaneidade enquanto espaço de mudança, de resistência ao

processo de dominação, define um campo social de múltiplas interseções que aproximam e diluem um no outro,

conceitos ideológicos estratégicos como o público e o privado, o biológico e o mental, a natureza e a cultura, a

razão e as paixões, o sujeito e o objeto – e que envolvem, todas, a dualidade das relações de gênero, tanto na

medida em que estão determinadas, como no processo em que estão se transformando e sendo transformadas.”

Em outro estudo, a autora refere-se ao cotidiano como “[...] mediações sociais continuamente improvisadas no

processo global de tensões e conflitos, que compõem a organização das relações de produção, o sistema de

dominação e de estruturação do poder” (1995, p. 15-18). 6Em A Invenção do Cotidiano. Artes de Fazer, Michel de Certeau, ao diferenciar estratégia de tática, define

estratégia como “[...] o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do

momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exercito, uma cidade, uma instituição

científica) pode ser isolado. A estratégia se postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e

ser a base de onde se pode gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças”, entendida como “[...]

um tipo específico de saber, aquele que sustenta e determina o poder de conquistar para si um lugar próprio”

(2008, p. 99-101). 7 Consideram-se laços de parentesco vertical quando é estabelecido com pessoas de condição jurídica diferente,

ou seja, livres. Já o parentesco horizontal é aquele que se estabelece com pessoas de mesma condição social.

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FIGURA 1 – Provincia do Piauhy: Segundo projecto de nova divisão do Império. Antonio

Cãndido da Cruz Machado 1820-1905 – 1875.

Fonte: Biblioteca Digital Hispânica. <http://iberoamericanadigital.net . Acesso em 19 de agosto de

2012

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O recorte temporal compreende os anos de 1871 a 1888, período marcado por fatores

que, no contexto nacional (como a Lei do Ventre Livre, a intensificação do tráfico

interprovincial) e regional (como as fortes secas que atingiram a região no início da década de

70), foram responsáveis por provocar algumas transformações na vida social e material desses

indivíduos e que, hoje, possibilitam a análise das implicações causadas pela conjuntura da

época para a vida da população dessa região. A partir da análise de um conjunto de fontes,

identificamos que a reprodução natural entre a população escrava de São Raimundo Nonato

pode ter sido utilizada como um mecanismo para a manutenção da posse escrava, visto que a

partir da proibição do tráfico atlântico ocorreu a intensificação do tráfico interprovincial e,

consequentemente, o aumento da venda de escravos das regiões de economia de subsistência

para áreas voltadas para a agricultura exportadora8.

Além disso, devido ao longo período de secas vivenciado por essa região do sertão

nordestino na década de 70, ocorreu uma queda na produção e consequente redução no

número de escravos por propriedade, que, certamente, foram vendidos para outras regiões.

Todos esses fatores refletiram em mudanças na dinâmica das relações sociais entre escravos,

livres e libertos, e é a partir desse contexto que buscamos compreender as experiências9

vividas por esses sujeitos, como também apontar as singularidades que estas apresentam em

relação a outras áreas do país durante o mesmo período. É importante salientar que o recorte

temporal utilizado nesta pesquisa não é rígido, visto que, por muitas vezes, ocorre a

necessidade de buscar informações no escopo documental para unir às peças dessa trama em

datas além do limite de recorte.

Outro fator que determinou o recorte temporal escolhido para este estudo foi a

predominância do número de batismo de filhos de escravos a partir do ano de 1871 e

registrados em livro diferenciado dos demais livros de batismo localizados na Cúria da

Catedral de São Raimundo Nonato. Dos 16 livros acondicionados no arquivo da Cúria que

contém as atas de batismo, apenas este livro com data limite de 1871 a 1888 foi reservado

8Sobre essa possibilidade ver GUTIÉRREZ, Horácio. Demografia escrava numa economia não-exportadora:

Paraná 1800-1830. Revista de Estudos Econômicos. São Paulo: 17 (2), 1987, p. 297-314. 9Em E.P. Thompson (1981, p. 182), encontra-se uma definição que é de suma importância para a compreensão

do conceito de experiência. Ao abordar as experiências coletivas de exploração dos trabalhadores ingleses,

através da vida material e das estruturas de classes, em sua narrativa, o autor cede espaço para pensar os sujeitos

“[...] como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e

interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua ‘consciência’ e sua ‘cultura’ (as

duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, ‘relativamente

autônomas’) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem,

por sua vez, sobre sua situação determinada”.

18

exclusivamente para o registro de batismo de filhos de escravos. Portanto, partimos da ideia

de que a Lei do Ventre Livre (1871) possa ter influenciado o aumento significativo dos

registros batismais de crianças geradas de ventre escravo a partir desta data e que, portanto,

esses agentes inseridos dentro e fora do contexto escravista possam ter utilizado essa

possibilidade para ampliar as suas relações sociais.

A partir das informações contidas nas atas de batismo, identificamos um expressivo

número de relações de parentesco estabelecidas através do compadrio com pessoas de

condição jurídica diferente da situação das mães cativas, o que nos leva a pensar na hipótese

do apadrinhamento de filhos de cativas por pessoas de status superior como uma estratégia de

proteção e de ampliação das relações. Quando ocorreram batismos em que escravos foram

padrinhos, estes eram apenas de filhos de outros escravos, ou seja, nenhum escravo

apadrinhou um rebento filho de pessoas com condição jurídica diferente da sua.

Desse modo, o parentesco ritual (compadrio), construído na pia batismal, pode revelar

as expectativas e os significados nutridos por esses escravos em relação à família, visto que

envolve mecanismos de escolha que o parentesco consanguíneo não possui (ROCHA, 1999).

Portanto:

A especificidade do compadrio talvez residisse exatamente no fato de

apresentar uma grande possibilidade de extensão – uma pessoa poderia

apadrinhar um número infindo de afilhados, incorporando à sua parentela

inúmeras unidades familiares – e, ao mesmo tempo, permitir que se criassem

sólidos vínculos entre pessoas das mais diferentes condições sociais que

passavam a se reconhecer como parentes (BRUGGER, 2007, p. 325).

Em relação aos núcleos familiares, a documentação revela a predominância de

famílias formadas apenas pela mãe e seus filhos, sendo classificada como família matrifocal.

Desse modo, o número de crianças consideradas ilegítimas salta aos olhos, indicando

expressivo índice de relações consensuais. Porém, o caso de não haver identificação da

paternidade na documentação não anula a possibilidade da presença do pai no convívio com

seus filhos, muito menos da existência de uma relação familiar estável. O casamento

oficializado pela igreja não foi um ritual comum entre os escravos de São Raimundo Nonato,

sendo que os registros localizados por esta pesquisa apontam para um pequeno número de

uniões formais envolvendo escravos. No entanto, o contato cotidiano entre esses sujeitos

permitiu o estabelecimento de laços de parentesco ritual (casamento e batismo) em diferentes

configurações, a saber: escravos de mesma propriedade estabeleceram compadrio ou casaram-

se; muitas vezes, escravos de diferentes propriedades construíram tais relações, e ainda há

casos de parentesco entre escravos e libertos, e com pessoas de condição livre. Esse

19

considerado grau de mobilidade espacial10

permitiu a construção e manutenção das redes de

convívio entre os diferentes segmentos sociais, garantindo, através dos vínculos parentais,

arranjos de sobrevivência e de solidariedade que, por sua vez, possibilitaram a formação de

comunidades escravas11

.

Ocorre que a diversidade de configuração das relações de parentesco e de formação

dos núcleos familiares aponta para uma dificuldade em definir o conceito de “família escrava”

dentro desse estudo. Em estudo sobre a História da vida familiar e afetiva de escravos na

Bahia do século XIX, Isabel Cristina F. dos Reis (2003) identifica relações familiares que

envolviam escravos e libertos, e em alguns casos, livres pobres. Desse modo, a autora propõe

uma ampliação do conceito de “família escrava” para “família negra”, por considerar que as

relações familiares envolviam os diferentes segmentos sociais. Porém, em se tratando das

famílias de São Raimundo Nonato, foi possível identificar vestígios de relações familiares

entre escravos, mas também composições de famílias que envolviam escravos, livres e

libertos.

Grande parte das trajetórias apresentadas nessa pesquisa corresponde a famílias

compostas por mães cativas e filhos livres, que também constituíam um tipo de estrutura

familiar (SAMARA, 1983, p. 36). Além disso, foram localizados casos de uniões familiares,

em que, pelo menos, um dos cônjuges era livre ou liberto. Outra questão vinculada à categoria

de família está na ampliação do conceito de família, que, nesse caso, é entendido para além de

um modelo familiar composto pela figura do pai, da mãe e de seus filhos, e reconhecido

apenas a partir da oficialização do matrimônio pelo casamento religioso. Nesse caso, pela

complexidade dos vínculos familiares envolvendo escravos, livres e libertos, entendemos que

as relações familiares são de todo modo multifacetadas, não cabendo o enquadramento dessas

estruturas numa única categoria.

10

O conceito de mobilidade adotado nessa pesquisa segue as referências de Hebe Mattos (1998, p. 29) quando

destaca a mobilidade como um recurso “comum a ricos e pobres, mesmo considerando-se as expressivas

diferenças que a posse de alguns escravos ou outros bens móveis podia representar nas oportunidades abertas na

reinserção social”. Essa mobilidade espacial reflete ainda na vida dos escravos através da conquista de certa

autonomia, que é dada justamente pelas relações sociais e comunitárias mantidas com escravos de outras

propriedades (Ibdi, p. 65). 11

Sheila de Castro Faria, em trabalho intitulado: Identidade e comunidade escrava: um ensaio (2007, p. 144),

destaca que “poucas regiões poderiam ter condições de criar uma singular comunidade escrava. A maioria,

entretanto, principalmente pela grande variedade de origem e de heranças de seus membros, criou comunidades

separadas, nem sempre oponentes ou inimigas, mas que estabeleciam, por meio da vida no cativeiro,

solidariedades, espírito de grupo, identidade e proteção mútua. É claro que tal possibilidade estava mais

acessível para escravos de grandes unidades produtivas, mas dela poderiam participar os de outros senhores,

inclusive dos pequenos”.

20

Considerações feitas, cabe registrar os caminhos percorridos por esta pesquisa e a sua

relação com o conjunto de fontes. Como mencionado anteriormente, o foco principal deste

estudo é examinar as relações de parentesco entre escravos, livres e libertos na vila de São

Raimundo Nonato, na segunda metade do século XIX. As fontes utilizadas para essa

investigação são registros paroquiais (casamento, batismo), localizados na Cúria Diocesana de

São Raimundo Nonato; e documentos cartoriais (inventários post-mortem, cartas de alforrias,

registros de casamento, etc.), que se encontram divididos entre o Cartório do 1o

Ofício e

Fórum da Cidade. Para o acesso a documentação, contamos com o apoio da Professora Nívia

Paula de Assis, que, através de parceria mantida por meio do Programa de Educação Tutorial

(PET) desenvolvido pela UNIVASF, garantiu apoio nas investidas para conseguirmos ter

acesso às fontes.

Após a autorização para manusearmos a documentação, deparamo-nos com um vasto

acervo documental em péssimas condições de conservação e de armazenamento. Faz-se

necessário destacar que não há um arquivo público onde esta documentação possa estar

devidamente organizada, o que exigiu, dessa pesquisa, um cuidadoso trabalho para colecionar

as inúmeras peças desse complexo mosaico da vivência escrava em São Raimundo Nonato.

Com a documentação totalmente desorganizada, inicialmente, cuidamos de classificar todos

os registros do período em estudo, para, em seguida, fotografá-los e só a partir daí inserir as

informações pertinentes à investigação em fichas. Dessas fichas, geramos um banco de dados

em arquivo de Excel, onde armazenamos todas as informações contidas nos diferentes tipos

de documentos. A partir desse banco de dados, podemos tomar uma noção quantitativa das

fontes, para que, em seguida, fosse possível traçar um perfil populacional da época, bem

como identificar o número de batismos e casamentos com a situação jurídica dos sujeitos

envolvidos nesses rituais (pais, afilhado, padrinhos, cônjuges, testemunhas, proprietários,

etc.).

Esse processo tornou-se fundamental para a interpretação das práticas de sociabilidade

entre homens e mulheres escravizados, livres e libertos, visto que não há, até então, nenhuma

pesquisa dessa natureza na região em estudo. Contamos, portanto, com um banco de dados

contendo informações sobre batismo, casamento, óbito, inventário post-mortem e cartas de

alforrias envolvendo a população livre e escrava de São Raimundo Nonato entre 1871 e 1888,

e a partir do cruzamento das informações dessas fontes, com o apoio da historiografia da

escravidão no Brasil, buscamos identificar as estratégias utilizadas por esses sujeitos

21

escravizados e livres quanto ao estabelecimento do compadrio, a fim de interpretar os

significados dessas relações para ambos os grupos.

Devido às condições físicas das fontes, muitos documentos não traziam as

informações completas ou não permitiam a leitura completa de suas informações. Como esses

documentos estavam muito comprometidos fisicamente, em alguns casos, a leitura era quase

que impossível, e quando ocorria, demandava bastante tempo e cuidado. Por não estarem

organizadas, classificadas e em estado de conservação, algumas fontes consideradas

importantes para esse estudo como testamentos, livros de compra e venda, listas de matrícula

e classificação de escravos, não puderam ser analisadas, pois seria necessário maior tempo

para realizar essa investigação.

Em busca de mais vestígios que revelassem a teia das relações entre os sujeitos da

pesquisa, realizamos visita ao Arquivo Público do Estado do Piauí, na capital Teresina, porém

só localizamos um “rastro” da existência das listas de classificação dos escravos de São

Raimundo Nonato, uma correspondência datada de 1886, comunicando o recebimento das

listas de matrícula e classificação dos escravos de São Raimundo Nonato. As informações do

Recenseamento Geral do Império de 1872 também foram relevantes para a compreensão da

formação populacional da região no período em estudo. Desse modo, todas as fontes

utilizadas nesta pesquisa assumiram papel fundamental para o entendimento das vivências

cotidianas envolvendo escravos, livres e libertos.

Dentre toda a documentação, os registros de batismo tornam-se significativas para a

análise dessas relações, especialmente porque a imposição do batizado ao recém-nascido

tornou-se prática corrente no mundo católico a partir do século XVI, como resposta ao avanço

das religiões protestantes na Europa. Em Portugal e em suas colônias, esse registro assumiu

grande importância, pois o regime do padroado, ao transformar a hierarquia eclesiástica em

burocracia do Estado, facultava aos livros paroquiais o duplo status de registro religioso e

civil. Remetendo-nos à escravidão, tal qual uma escritura pública, o batismo assegurava a

propriedade do cativo ao proprietário (LIMA e VENÂNCIO, 1991, p. 26-34). Diferentemente

da documentação alojada no Fórum da cidade, os livros contendo as atas de batismo tanto de

pessoas livres, como de escravas, encontram-se classificados e acondicionados em condições

que lhes garantam melhor conservação. No entanto, o procedimento adotado foi o mesmo, a

saber: leitura minuciosa das atas de batismo, anotações dos dados em fichas, seguido de

fotografia dos documentos. Apesar de não possuir maiores informações da época, os registros

fazem menção ao nome da criança, da mãe, do pai em poucos casos, da fazenda e do

22

proprietário dos escravos, dos padrinhos e da condição jurídica dos mesmos, as datas de

nascimento e de batismo e, na maioria dos casos, a cor da criança.

O método ligação nominativo das fontes foi utilizado como suporte metodológico para

identificar as trajetórias dos sujeitos pesquisados neste trabalho, e tentar relacionar com os

dados demográficos, comparando as informações para, então, tentar compreender as teias das

relações entre escravos no sertão piauiense. O cruzamento de informações contidas em

diversas fontes é fundamental para aprofundar para a “[...] compreensão dos sentidos que os

negros conferiam às suas próprias experiências” (REIS, 2010, p. 117). O apoio metodológico

para esta pesquisa está nas experiências de análises das relações familiares entre escravos,

livres e libertos de trabalhos renomados na historiografia da escravidão como o de Stuart

Schwartz (1988), que se dedica ao estudo da formação da família escrava através do

matrimônio e do compadrio, utilizando, como fonte principal, os documentos paroquiais e

adotando o cruzamento de informações como método de análise. Outro trabalho que servirá de

apoio é o de Manolo Florentino e José Roberto Goés (1997), que tratam da família escrava e

do parentesco entre escravos como um meio para conseguir “a paz nas senzalas”12

.

É importante ressaltar que pretendemos trilhar, neste trabalho, os caminhos apontados

pela História Social, tentando realizar uma análise da vida cotidiana através das micro-

histórias desses homens e mulheres escravizados. Desse modo, a reconstituição de trajetórias

individuais e familiares é fundamental para a compreensão das alianças de parentesco e dos

seus significados quanto ao arranjo de sobrevivência.

A estruturação do texto dá-se em três capítulos. No primeiro capítulo, apresentaremos

o contexto espacial e breve histórico da ocupação do Piauí até chegarmos ao Município de

São Raimundo Nonato, na época, vila de mesmo nome, procurando destacar aspectos da vida

material e social da época. É necessário ressaltar que a região possuía uma dinâmica

econômica marcada pelo predomínio de atividades agrícolas de subsistência e que, apesar de

ter vivido um momento de grande influência no desenvolvimento com o criatório de gado, no

final do século XIX, a pecuária atravessou forte crise econômica. Ainda neste capítulo,

realizaremos um estudo sobre a estrutura de posse escrava distribuída entre as principais

fazendas da região, para compreendermos como se constituía a hierarquia das relações entre

12

Apesar de terem desenvolvido suas pesquisas em regiões caracterizadas pela economia agroexportadora, de

grandes plantéis e de expressiva posse de escravos, os trabalhos desses autores são referência no sentido

metodológico, mas também são importantes para compreendermos as singularidades das relações escravistas

existentes nas diferentes regiões brasileiras.

23

homens livres e escravizados. Percebemos que, apesar da maior posse escrava concentrar-se

entre poucos proprietários, havia um número considerável de proprietários de terras com

posse média de dois escravos. Contudo, quando analisamos as diversas composições de

patrimônio e de atividades econômicas através dos inventários, identificamos o escravo sendo

listado juntamente com outros bens inventariados, como sendo um dos “bens” de maior valor

em uma propriedade. Essas questões são elencadas no decorrer do capítulo para que se possa

compreender o lugar social dos escravos do Sertão piauiense.

No capítulo dois, procuraremos interpretar as alianças entre escravos, livres e libertos,

na tentativa de compreender a importância dos arranjos familiares para a manutenção e

ampliação da comunidade escrava. Através do cruzamento de fontes, identificaremos diversas

formas de organização familiar existentes entre os escravos da Vila de São Raimundo Nonato,

e relações que através do matrimônio oficializado pela Igreja, se estabeleceram entre os

cônjuges e as testemunhas dos casamentos. Apresentaremos as uniões oficializadas pela igreja

e as redes de sociabilidade tecidas através das testemunhas escolhidas no ato ritual do

casamento religioso. Percebemos um padrão de testemunhas em condição jurídica livre, e ao

mesmo tempo, a predominância de algumas pessoas como testemunhas das uniões.

Abordaremos ainda, a respeito das taxas de ilegitimidade entre os filhos das mães cativas, das

redes de compadrio tecidas a fim de garantir proteção aos mesmos.

E, por último, o terceiro capítulo traz algumas trajetórias individuais e familiares de

escravos, livres e libertos que desenvolveram estratégias de parentesco dando origem a

extensas redes de proteção e solidariedade. Procuraremos compreender o compadrio no

conjunto das relações entre senhor e escravo, mas, especialmente, buscaremos identificar os

condicionantes e mecanismos das escolhas dos cativos por padrinhos de condição jurídica

livre, como também a opção por manter as alianças de parentesco com outros escravos,

muitas vezes, pertencentes a outras propriedades.

24

2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DE SÃO RAIMUNDO NONATO – PIAUÍ

2.1 A ocupação do Piauí

Durante muito tempo, a historiografia piauiense destacou que a ocupação do território

do Piauí partiu do interior para o litoral, com a justificativa do desenvolvimento da pecuária

que ocorria no interior e, portanto, distante da costa litorânea. Considerando uma ocupação

tardia em relação às demais províncias, alguns estudos apontam as primeiras manifestações de

ocupação no século XVII, como consequência das primeiras expedições militares e religiosas

na região13

.

Após inúmeras polêmicas em torno dessas afirmativas, sabe-se que a ocupação das

terras piauienses, então, correspondentes à parte do “Sertão de Dentro” (ABREU, 1969), foi

impulsionada pelo desenvolvimento da pecuária, responsável pelas instalações dos primeiros

currais na costa do território, seguindo pelos rios Piauí, Canindé e Gurguéia. Por Carta Régia

do rei de Portugal ,em 1758, o “Sertão de Dentro”, densamente povoado por inúmeras tribos

indígenas14

, passou a ser Capitania de São José do Piauí.

Foram as fazendas de gado que definiram o processo de ocupação e distribuição das

terras piauienses. Com interesse de povoar e impulsionar o comércio de exportação no sertão

do Nordeste, a Coroa Portuguesa, tão logo, incentivou a ocupação da região através da doação

de extensas áreas. Entre os séculos XVII e XVIII, as expedições de bandeirantes e sertanistas

associadas à doação de lotes de terras, através da concessão de sesmarias, impulsionaram a

ocupação do Piauí e, ao mesmo tempo, a existência predominante dos latifúndios. Domingos

Afonso Mafrense, o Domingos Sertão como ficou conhecido, foi o maior beneficiado com as

concessões de sesmarias na época, além de contribuir com a ocupação territorial do Piauí, este

também foi responsável pela introdução do trabalho escravo na sociedade em processo de

formação (LIMA, 1999).

Acompanhado de Domingos Sertão, o expedicionário Francisco Dias D’Ávila deu

início ao processo de ocupação das terras localizadas entre os rios Canindé e Gurguéia. Os

13

Ver entre outros: BRANDÃO (1999), MOTT (2010), COSTA FILHO (1988), GORENDER (1978). Estes

trabalhos clarificam a respeito da ocupação do território piauiense e, principalmente, da presença do trabalho

escravo na atividade pecuarista. 14

Alguns autores apontam quatro etnias que povoavam as terras piauienses: Jê, Caraíba, Cariri e Tupi. Ver:

Baptista (2009), Dias (1999), Machado (2002) e Oliveira (2007) distinguem quatro etnias para o Piauí: Jê,

Caraíba, Cariri e Tupi.

25

D’Ávila pertencentes à Casa da Torre da Bahia15

ocuparam estas terras com o intuito de

expandir as fazendas de criação de gado (OLIVEIRA, 2007). A partir desse momento, ocorreu

a implantação dos currais e fazendas com base na expansão pastoril para a criação do gado

vacum.

Entre os maiores sesmeiros em terras piauienses, destaca-se ainda a figura do

bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, que participou da ocupação das terras entre os

rios Canindé e Poti, e, assim como os demais, foi também responsável pelo povoamento do

Piauí, desencadeando a implantação de fazendas de gado em toda região.

Nesse período, toda essa área era ocupada por povos indígenas que se tornaram os

primeiros homens a trabalharem no regime de escravidão no Piauí. De acordo com Brandão,

desde a instalação dos primeiros currais na Província do Piauí já se utilizava mão de obra

escravizada, no caso dos indígenas:

Além de peças militares, eram os índios que praticavam a agricultura de

subsistência para o terço. Outra parcela dos índios apresados era

comercializada em outras capitanias para o trabalho na lavoura. O tráfico de

peças do sertão foi, no século XVII e XVIII, empreendimento bastante

lucrativo. As irregularidades no abastecimento e o alto preço do negro

abriam perspectivas para o tráfico de índios capturados (BRANDÃO,

1999, p. 116).

Devido à guerra travada entre devassadores do território e indígenas, no final do

século XVIII, o contingente da população nativa entrou em declínio. Segundo Ana Stela de

Negreiros Oliveira, em pouco mais de dois séculos de contato entre os povos nativos e o

colonizador, dispersou-se praticamente toda a população indígena.

Inicialmente aconteceu a ocupação daquela área, com a chegada dos

sertanistas provenientes do São Francisco, durante o final do século XVII e

início do XVIII, dispersando a sua população nativa; provavelmente os

remanescentes dos agricultores-ceramistas. Para as etnias que sobreviveram,

restou somente buscar áreas de refúgio para serem incomodadas novamente

pelo processo de ampliação da área das fazendas de gado no século XVIII ou

integrar-se ao processo colonial (OLIVEIRA, 2007, p.26).

Surgia, porém, a necessidade de continuar abastecendo a província com mão de obra,

nesse caso “o escravo continuou sendo adquirido pelos proprietários, nos núcleos de produção

15

Segundo ALVES (2003, p.58), a Casa da Torre foi fundada pela família Ávila, e tinha como principal objetivo

financiar expedições realizadas por aventureiros que desbravavam os Sertões. “Após chegar às novas terras, os

Ávila requeriam-nas através de sesmarias que normalmente abrangiam cada uma, extensões de 10 a 12 léguas

em quadro.”

26

pecuarista, competia ao escravo à construção e manutenção da infra-estrutura como casas,

aguadas, currais e roça (BRANDÃO, 1999, p. 45). Odilon Nunes (1972, p. 215) também

salienta a importância da utilização de mão de obra escrava no Piauí, “o negro ajudava o

senhor ou o vaqueiro no custeio de gado, quanto nas vaquejadas, ou em buscas das feiras;

tratava das cavalgaduras, dos arreios, dos currais, e cercados, chiqueirava as miuças, separava

os bezerros das vacas, faziam a ordenha, cuidava das bicheiras [...]”. De acordo com os dados

contidos nas Listas de Classificação de 1873 da Província do Piauí, a maioria dos

trabalhadores cativos desenvolviam atividades ligadas à agricultura e à pecuária, apesar de

existirem outras atividades “desde as mais simples como roceiro, lavrador, doméstica até as

mais especializadas como carpinteiro, ferreiro, entre outras”, a pecuária e a agricultura

predominavam no campo das atividades que mais utilizavam a força de trabalho escrava

(SILVA, 2003, p. 51).

Como mencionado anteriormente, a criação de gado tornou-se o carro-chefe da

reocupação do território e, em seguida, a principal atividade econômica da região da Província

do Piauí. Segundo Mott (1985, p.9), “trata-se de uma região onde a unidade de conquista e

povoamento foi a fazenda de gado, cristalizando-se toda a vida sócio-econômica em derredor

da pecuária extensiva, qualquer estudo sobre a história do Piauí deve iniciar-se a partir dos

currais de criatório”. De acordo com Caio Prado Júnior, as fazendas da Província do Piauí

chegaram a ser as mais importantes fornecedoras de gado da região Nordeste, estabelecendo

aquecido comércio com a Província da Bahia, principal consumidora do gado e fornecedora

de mão de obra escrava para o abastecimento das fazendas da província do Piauí (PRADO

JUNIOR, 2006, p. 66).

27

FIGURA 02 – Sudeste da Capitania do Piauí. Detalhe do “Mappa geographico da capitania do

Piauhy, e parte das do Maranhão, e do Gram Pará”. Data provável de levantamento 1816.

Fonte: Apud NEGREIROS, 2012, p. 53.

Paralelas à criação de gado, outras atividades econômicas eram desenvolvidas em toda

a província, a exemplo do cultivo de algodão, das lavouras de cana mais ao norte, do

extrativismo vegetal e também das atividades domésticas. Segundo Miridan (2005, p. 147),

[...] existiam também as tendas de carpintaria e de ferreiro com seus

equipamentos, os currais, os cercados (para a separação das reses, para a

engorda de outras, para reserva de pastos na época da seca, etc.), as lavouras

de cana, em geral nos brejos, as lavouras de’legumes’ (designação à

mandioca, feijão, abóbora, melancia, fava, melão são-caetano, nos locais

mais frescos), as lavouras ’secas’, as roças de arroz, as plantações de algodão

e mais adiante o açude.

Ainda sobre os tipos de moradias, a autora descreve uma propriedade como um

conjunto complexo que está ligado ao sistema produtivo adotado na região. Além da casa de

morada do proprietário da “fazenda”, existiam as casas menores, próprias dos agregados e

outros moradores, além da “casa de forno” ou “casa da farinhada” um pouco mais distante da

casa do proprietário. Durante a leitura dos inventários consultados para esta pesquisa, as casas

tanto do proprietário de terras como as demais moradias eram descritas como sendo muito

28

simples, algumas com “paredes de barro e madeira” e “coberta de telha”. Mais adiante,

trataremos sobre essas residências descritas no interior dos inventários.

Até o século XVIII, a criação de gado bovino atingiu o mais alto nível de produção,

além da Bahia, as boiadas eram enviadas para o Maranhão, Pará, Pernambuco e Minas Gerais

(BRANDÃO, 1999, p. 63).

O Sudeste do Piauí encontrava-se na rota dos dois pontos de irradiação da

pecuária para o interior do Brasil, a corrente baiana e a pernambucana, assim

como, dos caminhos do gado do sertão para distribuição na Bahia e Minas

Gerais (OLIVEIRA, 2007, p.26).

Ainda no início do século XVIII, com a morte de Mafrense, os jesuítas passaram a

administrar as 39 fazendas deixadas pelo bandeirante. Esse fato marcaria, então, o início do

que seria considerada uma segunda fase de povoamento vivido pelo Piauí, momento marcado

por inúmeros conflitos entre o colonizador e os grupos indígenas e pelo abandono de

inúmeras fazendas.

Durante essa fase, ocorreu o abandono de diversas fazendas pelos moradores

locais e, depois, o despovoamento da região, com a dispersão dos povos

indígenas para que ocorresse um repovoamento colonial e a construção

geográfico-social daquela área. Esta fase se prolonga até o início do século

XIX, com o controle da região pelos colonizadores e a total dispersão dos

povos indígenas (OLIVEIRA, 2007, p. 26).

De acordo com Bastos (1994), a maior importância da Companhia de Jesus no Piauí

está relacionada à atuação de padres do colégio da Bahia como testamenteiros de Domingos

Afonso Mafrense. Em 1711, esses padres foram transferidos para o Piauí, onde o Pe. Miguel

da Costa foi designado como administrador das fazendas de Mafrense.

Em testamento declarou-se senhor das terras piauienses, tendo-as ocupado

com gados, trabalhadores escravizados e o mais que fosse necessário. Em

junho de 1711, o sertanista faleceu em Salvador, Bahia, deixando as posses

para os padres inacianos. Ao patrimônio, herdado, foram acrescidas outras

fazendas, totalizando 39 unidades produtivas, todas assentadas no trabalho

escravo (LIMA, 2006, p. 434).

Durante o período em que estas fazendas estiveram sob a administração da Companhia

de Jesus no Piauí, o colégio da Bahia recebeu sustento a partir da produção de gêneros

alimentícios das fazendas. Segundo Nunes (1975, p. 36), “as duas mais importantes fundações

culturais do Brasil colonial, o colégio da Bahia e o noviciado de Jequitaia, passariam a ser

financiados pela economia piauiense”.

Após quase cinco décadas de administração destas fazendas, por meio de alvará régio

datado de três de fevereiro de 1759, a Coroa Portuguesa mandou expulsar os jesuítas de todos

29

os seus domínios, resultando no confisco das terras, do gado e dos escravos (ALENCASTRE,

2005). Com o intuito de viabilizar a administração das fazendas, a Coroa Portuguesa realizou

a divisão das propriedades em três inspeções, Nazaré, Piauí e Canindé, sendo que, para cada

uma delas, seria escolhido um administrador (LIMA, 2005, p.24).

Estas terras passaram a ser chamadas de “Fazendas do Fisco” e, segundo Solimar

Lima, “toda a estrutura produtiva estava assentada no trabalho escravo e voltada, de forma

dominante, para a produção de mercadorias, e era esse caráter da produção que determinava o

nível das contradições sociais” (Idem, 2005, p. 29).

É dentro desse mesmo contexto que surgiram o que podemos chamar de duas

categorias de escravos, a saber, aqueles pertencentes à Coroa, então denominados “escravos

do Fisco” (BRANDÃO, 1999, p. 158-159), e aqueles que seriam cativos de particulares.

Segundo Tanya Brandão, além de pertencerem a grupos diferentes, estes homens escravizados

ainda receberiam tratamentos diferenciados. Embora um expressivo grupo da historiografia

piauiense considere que havia certa diferenciação no tratamento de escravos da Nação,

Solimar Lima esclarece que, assim como cativos de propriedades particulares, os homens

escravizados nas Fazendas da Nação viviam numa atmosfera de fortes tensões sociais, onde a

violência seria o principal meio de controle destes trabalhadores (LIMA, 2006, p. 433-457).

Luiz Mott, ao tratar sobre o escravismo nos sertões pecuaristas, menciona a respeito

do tipo de tratamento dispensado aos escravos destas áreas em comparação aos grandes

plantéis do Sul do país. O autor salienta que:

Embora havendo no Piauí, aliás, como no resto do país, resistência e revolta

por parte da escravaria contra a servidão, parece que as condições e relações

de trabalho, assim como as perspectivas de alforria eram muito melhores na

zona pecuária do que nos engenhos de açúcar (MOTT, 2010, p. 85).

Alinhou-se a essa ideia de diferenciação do modo de vida dos escravos nos sertões, o

trabalho de Miridan Falci. A escravidão, no Piauí, é apresentada, na obra da autora, como

sendo peculiar, na medida em que há a coexistência do trabalho livre com o escravo. Carla

Aparecida (2003, p. 36), ao estudar a escravidão na Província do Piauí a partir das listas de

Classificação, ressalta que “os trabalhadores livres e cativos plantavam, colhiam, serviam a

mesa, cuidavam dos cavalos e tocavam música em ocasiões festivas. Portanto, as fazendas

produziam para o mercado interno, mas uma parcela dos seus trabalhadores se ocupava de sua

manutenção”.

Apesar das possibilidades de estreitamento de relações entre homens livres e escravos,

muitas vezes permitidas pelo modelo econômico característico das pequenas propriedades,

30

acredita-se que a escravidão no sertão do Piauí e, especialmente o tratamento recebido por

homens e mulheres escravizados, não foi diferenciado em relação às demais regiões do país.

A respeito da importância da mão de obra escrava nas fazendas pecuaristas, Miridan

Falci, ao realizar uma comparação do percentual de valores dos bens das Fazendas Nacionais

destaca a importância e o valor dos escravos das Fazendas da Nação em relação a outros bens,

considerados como um patrimônio financeiro, os escravos chegaram a ser “o mais valioso

bem das Fazendas Nacionais” 16

(FALCI, 1995, p. 19-20).

No final do século XVII, as 129 fazendas existentes na Capitania do Piauí

concentravam 441 pessoas “entre brancos, negros, índios, mulatos e mestiços [...]” (COUTO

apud GORENDER, 1978, p. 415), desse número 47% da população das fazendas era de

negros, constituindo a principal mão de obra dessas fazendas.

De acordo com o primeiro censo setecentista elaborado por Pe. Miguel de Carvalho

(apud FALCI, 2000, p. 264), em Descrição do Sertão do Piauí, a população escrava do Piauí

correspondia a 64,51%, distribuída entre 74,28% de negros e 22,85% de índios. No ano de

1855, a Província do Piauí contava com um total de 13.966 cativos, que constituíam

aproximadamente 7% da população total. No Recenseamento Geral do Império (1872), a

população escrava do Piauí era de aproximadamente 23.795 habitantes, sendo que, em relação

à população total, o percentual era de 11,8% somando aproximadamente 125.818 habitantes.

Devemos observar que, em grande número, os cativos que viviam em solo piauiense eram

adquiridos através do comércio interprovincial, sobretudo, com Pernambuco e Bahia:

Os escravos negros entraram no Piauí pela estrada que ligava a feira de

Capuame, na Bahia, à vila da Mocha (Oeiras). Alguns escravos também

foram trocados por bois em Minas Gerais, mas em pequeno número. O Piauí

nunca fez imigração direta da África. A maior parte veio do Maranhão,

Pernambuco e Bahia (BASTOS, 1994, p. 200).

Para Miridan Falci, os dados revelam a importância da mão-de-obra escrava para a

produção nas fazendas particulares e da Nação, o escravo: “Era o roceiro, o vaqueiro, o

fábrica, o do serviço (nos arrolamentos das fazendas de gado), mas era também o mestre-

ferreiro, o alfaiate, o ourives, o pedreiro, o oleiro, ou o tecelão nos pequenos núcleos

populacionais” (FALCI, 2000, p. 266).

16

De acordo com a autora. “Os escravos representavam entre 40 e 60% do patrimônio das fazendas... O preço de

um escravo, ou seja, entre 400 e 500 mil réis, equivalia ao preço de 100 cabeças de gado vacum ou 50 cavalos ou

6 jumentos”. (2005, p. 185).

31

Tânya Brandão (1999) também considera as diferenças de tratamento da escravaria

entre as fazendas públicas e privadas do Piauí. Em seu trabalho sobre a participação do

escravo na formação social do Piauí, a autora chega a inferir que os escravos das fazendas

públicas teriam algumas regalias em relação aos escravos de fazendas privadas, destacando

ainda o absenteísmo como uma das características marcantes das propriedades, onde a relativa

ausência dos administradores da Coroa nas “Fazendas do Fisco” resultava em relativa

autonomia dos escravos. Em se tratando da escravaria privada, esta sofria com a vigilância e

frequente violência dos seus proprietários.

Solimar Lima, em Braço Forte, salienta que as fazendas públicas do Piauí eram

marcadas por um sistema de vigilância e de controle em que os castigos e a violência

frequente garantiam a estabilidade da administração das fazendas.

A violência foi o mecanismo principal de controle dos trabalhadores

escravizados nas fazendas públicas do Piauí. A violência efetiva ou latente

garantia a dominação escravocrata, aguçava as contradições sociais e

reproduzia-se nas relações pessoais dos trabalhadores escravizados, que se

mostravam indissociáveis ao contexto escravista. O território era marcado

por permanentes tensões sociais (LIMA, 2005, p. 156).

Considerando a complexidade do sistema escravista no Brasil, é importante lembrar

que as relações entre senhores e escravos apresentavam-se como uma via de mão dupla.

Afinal, considera-se que esses homens e mulheres escravizados possuíam seus mecanismos de

resistência e de sobrevivência. A historiografia da escravidão no Brasil vem apresentando

inúmeros indícios das possibilidades da conquista de autonomia desses escravos. Nessa

pesquisa, o termo autonomia é utilizado na perspectiva do escravo como “ator social”, bem

como das estratégias utilizadas por este para escapar do domínio dos senhores. Segundo

Maria Helena Machado:

Autonomia, sem dúvida, relativa, forjada nas relações orgânicas entre

senhores e escravos, ocupando as brechas do domínio hegemônico da

camada dominante. Colocando-se a questão de outra maneira, pode-se dizer

que a autonomia do escravo é o espelho dos limites da dominação senhorial

(MACHADO, 1987, p. 20).

Neste sentido, acredita-se que esses escravos utilizavam essas “brechas” para

alcançarem as possibilidades de formar família, estabelecer as relações de parentesco e, até

mesmo, de conquistar a liberdade. Portanto, procuramos entender o escravo do sertão

piauiense, mais precisamente de São Raimundo Nonato como um protagonista dentro das

relações entre senhores e escravos sertanejos.

32

2.2 A vila de São Raimundo Nonato

Considerando esse contexto de ocupação territorial, de implantação da pecuária

associada ao uso da mão-de-obra escrava, surgiram as fazendas do Sudeste do Piauí. Nesse

período, a irregularidade das chuvas já era um agravante na região do sertão, o que provocou

a busca pelas margens dos rios para a instalação dos primeiros currais, nesse caso, instalados

às margens do Rio Piauí, a exemplo da fazenda que seria sede do distrito eclesiástico de São

Raimundo Nonato. Com efeito, observa-se no mapa, que segue (figura 2), que a localização

das principais fazendas da região de estudo encontra-se às margens do Rio Piauí.

FIGURA 3 – Sudeste da Capitania do Piauí. Detalhe da “Geographische karte der provinz von

São Iozé do Piauhý”, produzida pelo tenente Joseph Schwarzmann em 1828.

Detalhamento de algumas das fazendas localizadas às margens do Rio Piauhy.

Fonte: Apud NEGREIROS, 2012, p. 54.

O processo de ocupação da região, onde, atualmente, delimita-se o Município de São

Raimundo Nonato, assim como em toda a região Sudeste do estado, esteve fortemente

influenciado pela criação de gado, que impulsionou instalação das primeiras fazendas na

região. Caracterizadas pelas grandes extensões de terras, sem demarcações que

estabelecessem os limites de cada fazenda, “o gado era geralmente criado solto: como não

havia cercas dividindo as fazendas uma das outras, e existindo consuetudinariamente uma

33

légua de terra de uso comum entre as mesmas [...] sucedia certamente que os animais de um

proprietário se misturassem com os dos vizinhos” (MOTT, 2010, p. 67).

Nos registros de inventários post mortem, batizados e casamentos analisados no

decorrer da pesquisa, foram identificadas inúmeras fazendas distribuídas pelas terras que,

atualmente, correspondem a pelo menos 13 Municípios pertencentes ao Território Serra da

Capivara, incluindo São Raimundo Nonato. Dentre as fazendas mencionadas nas fontes

analisadas, com maior frequência, aparecem a Fazenda Jenipapo, Fazenda São Victor,

Fazenda Queimadas, Almas, Massapê, Tigre, Curral Novo e Bom Sucesso.

FIGURA 4 – Sudeste da Província do Piauí, com detalhe da localização das principais

fazendas da região. Provincia do Piauhy: Segundo projecto de nova divisão

do Império. Antonio Cãndido da Cruz Machado 1820-1905 – 1875.

34

Mais tarde, o território foi sendo ocupado por fazendas de criatório de gado, pelo

cultivo da lavoura de subsistência e pelo extrativismo, e brevemente passou a ser Freguesia

Eclesiástica. A Freguesia de São Raimundo Nonato foi criada, em 1832, por meio do Decreto

Regencial 8.832, na Região Confusões, recebendo a denominação de Freguesia Eclesiástica

de São Raimundo Nonato.

Anterior a isso, a área que correspondia à freguesia pertencia aos municípios de Jaicós

e Jerumenha17

. Em 1836, a Freguesia foi transferida para a Fazenda Jenipapo, onde, segundo

Willian Palha Dias, dentre os motivos da transferência, destaca-se a possibilidade de maior

desenvolvimento da região situada às margens do Rio Piauí, pois ali crescia um núcleo de

população vinculada à lavoura e pecuária (DIAS, 2001). Ademais,

A escolha recaiu no lugar Jenipapo, na confluência do Baixão Vereda com a

margem esquerda do rio Piauí. A escassez de água potável, por certo,

concorreu para que fosse escolhido aquele local tão sujeito a constantes

inundações, porém, mais fácil seria, então escapar-se a uma repentina

inundação que aos rigores de uma estiagem cuja duração não se poderia

prever. (DIAS, 2000, p.32).

O Distrito-Freguesia foi elevado à categoria de Vila em 1850, mantendo a mesma

denominação e localização anterior, era marcada pela escassez de chuvas e devido a essa

característica climatológica o modelo de produção agrícola era distinto das áreas litorâneas

sendo, portanto, essencialmente voltado para o abastecimento do mercado interno.

Segundo Ferreira (1959), a vila teve crescimento lento devido as secas decenais e as

dificuldades decorrentes do desconhecimento da população em armazenar a produção agrícola

excedente. Esses fatos contribuíram para que a população, ao ser atingida pelo flagelo da seca,

acabasse por migrar para regiões vizinhas como Bom Jesus e Gilbués, áreas do Sudoeste do

estado. No entanto, a região tornava-se favorável ao desenvolvimento da pecuária extensiva,

que foi, até o final do século XIX, a atividade que impulsionou a economia na época.

Em suas investigações sobre o sistema de ensino e a sociedade no Piauí em meados

dos oitocentos, Alcebíades Costa Filho (2006) ressalta a importância da pecuária na ocupação

do solo piauiense e, principalmente, para a constituição da sociedade piauiense. Para o autor,

a política de desenvolvimento pensada no Império deu-se de forma desigual entre as

17

Segundo Miranda (2004, p. 26-27), “o aldeamento Nossa Senhora das Mercês, dos Jaicós, fundado em 1714,

no lugar Cajueiro – lembrando que esses povos se rebelaram, mas foram novamente aldeados em 1731- deu

origem à cidade de Jaicós.” De acordo com OLIVEIRA (2007, 38). “[...] a vila de Jerumenha, onde teria sido o

antigo Arraial dos Ávila, com quatro moradores na sede e 692, em toda a freguesia, hoje cidade de Jerumenha.”

35

províncias, de maneira que o Piauí já sentia a crise na economia pecuarista logo no século

XVIII.

Problemas como a incapacidade da pecuária piauiense competir no mercado devido à

permanência das técnicas tradicionais de produção foram cruciais para o aumento da crise

econômica que o setor pecuarista sofria naquele momento (COSTA FILHO, 2006, p. 24-25).

Além disso, a Província do Piauí vivenciou um período marcado por inúmeras transformações

ao longo do século XIX, dentre elas ressalta-se a transferência da capital do município de

Oeiras para a Vila do Poti, que, mais tarde, receberia o nome de Teresina.

Mas qual o perfil da população que desenvolvia essas atividades econômicas e

compunha a sociedade São Raimundo Nonato na época?

De acordo com Claudete Dias (2006), estas terras que foram usurpadas dos nativos

pimenteiras, prováveis ceramistas-agricultores, foram distribuídas entre familiares e

companheiros de guerra dos sesmeiros e posseiros conquistadores. Rapidamente, a região foi

ocupada por fazendas de gado e pela lavoura de subsistência, dando origem a uma nova

atmosfera social, composta por famílias de sertanejos criadores de gado vacum e cavalar, e de

agricultores. Ainda, segundo a autora, até 1890 esta era “uma sociedade rústica”, onde:

As famílias de sertanejos viviam nas fazendas comendo o que plantava,

vestindo o que teava com o algodão que produzia, era hospitaleira,

respeitando a Deus, as leis e apego a terra. A convivência familiar ao

contrário de outras regiões era marcada pelo contato amigável (DIAS, 2006,

p. 9).

Este modelo econômico, baseado na criação de gado, durou até o final do século

XIX, quando entrou em decadência, dando lugar à economia extrativista da maniçoba18

, que

chegou a ser o impulso para o crescimento da Vila de São Raimundo Nonato entre o final do

século XIX e início do XX. De acordo com Teresinha Queiroz:

A exploração da maniçoba para a produção láctea tornou-se

economicamente viável com alta nos presos internacionais da borracha na

segunda metade do século XIX, e início do século XX, impulsionado pela

demanda de países industrializados, sobretudo a Inglaterra, constituía o

principal comprador e distribuidor dessa matéria-prima. (QUEIROZ, 2006,

p.33).

Conforme Ana Stela Oliveira (2001 p.73), “a maniçoba no Sudeste do Piauí era

comercializada em Juazeiro na Bahia, e Petrolina em Pernambuco. Estas cidades separadas

18

A maniçoba é uma árvore pertencente ao gênero botânico Manihot Glaziowii, da família euforbiácea, própria

do Nordeste brasileiro, é resistente ao período de seca, produz um látex que, no passado, era extraído durante

todo o ano para a produção de borracha.

36

pelo rio São Francisco estão localizadas a uma distância de 300 quilômetros” da região de São

Raimundo Nonato.

Retomando os passos eclesiásticos, vale ressaltar que, apesar de ter se tornado

Freguesia Eclesiástica e Vila (1832) em breve espaço de tempo, somente em 1876, a Igreja

Catedral de São Raimundo Nonato foi construída, sob a orientação do Padre José Henrique

Cavalcante. Nessa empreitada os habitantes do município colaboraram com as obras da igreja.

Anterior à construção da igreja, os párocos da época realizavam as celebrações, os casamentos

e batizados em atos de desobrigas pelas fazendas da região.

Em conformidade com Willian Palha Dias, nesse período, “os habitantes da região se

constituíam de poucos brancos, alguns mamelucos, negros e índios aldeados e um ou outro

mulato desgarrado de outras freguesias” (DIAS, 2001, p. 10). Para o referido período, não

encontramos nenhum censo populacional da região, porém, quando se analisam os dados do

recenseamento geral do Império de 1872, o número de pardos é superior ao de brancos e

negros, além disso, não se faz menção a nenhum aldeamento indígena para a região de São

Raimundo Nonato no período em questão.

Segundo o censo de 1872, o Piauí contava com uma população de 202.222 habitantes,

sendo que havia 102.276 homens e 99.955 mulheres. Em 1822, o número de escravos em todo

o Piauí era de 21.691, deste total, 1.247 encontrava-se em São Raimundo Nonato (CHAVES,

1998, p. 194-195). Já no recenseamento geral do império de 1872, 50 anos depois, a

população escrava de São Raimundo Nonato apresentava pouco mais de 500 escravos, de um

total de 5.334 habitantes, ou seja, 88% da população eram pessoas livres, em sua maioria era

proprietários de terras.

Na tabela 1 (na sequência), que apresenta a distribuição populacional de São

Raimundo Nonato a partir do recenseamento geral do império de 1872, podemos observar que

o número de habitantes da vila de São Raimundo Nonato já era bastante expressivo. Embora a

população livre seja muito superior a população escrava, o número de cativos para essa região

também era significativo se considerarmos que a produção nas fazendas da freguesia esteve

integrada em grande parte à economia de subsistência e ao mercado interno. Faz-se lembrar

que, apesar da dinâmica econômica desta região não estar diretamente vinculada ao mercado

37

externo, registra-se o uso da mão de obra, mais especificamente da força de trabalho escrava

na pecuária e nas lavouras das fazendas. 19

A tabela também apresenta a classificação da população escrava quanto à sua cor.

Tanto para homens como para mulheres, a predominância é de escravos pretos,

correspondendo a 55,4% do total de escravos. Os 44,6% restantes correspondem a escravos

classificados como pardos. A mesma tabela também apresenta a classificação da população

livre quanto a sua cor, sendo: 62% pardos, 26,6% brancos, 7,9% pretos e 3,6% do total de

livres correspondiam aos caboclos. Essa classificação por cor além de referir às “[...]

diferentes tonalidades da pele ou aos diversos graus de miscigenação” (LIBBY, 2010, p.48), é

indicativa do lugar ocupado por escravos e libertos na hierarquia social.

Ao pesquisar os significados das representações de identidade em Minas Gerais entre

os séculos XVIII e XIX, Douglas Libby (2010) apresenta algumas terminologias utilizadas

para escravos e libertos e os seus possíveis significados. Segundo o autor, o pardo além de

referir-se à tonalidade de pele também faz referência para certo grau de miscigenação, “[...] e,

portanto, quase sempre possui vínculo ancestral ao cativeiro” (p. 40); o preto normalmente

seria utilizado para referir-se a pessoas originárias da África; o caboclo designaria o mestiço

de branco com índio.

Porém, na documentação pesquisada (assentos de batismo, registros de casamento,

inventários post-mortem), encontramos outras terminologias que não aparecem nos dados do

recenseamento para São Raimundo Nonato, é caso das terminologias crioulo e cabra. Ainda

segundo os possíveis significados propostos por Douglas Libby, a primeira “constituía,

sobretudo, uma referência à ascendência africana/escrava e, ao que tudo indica, perpassou

várias gerações ao longo dos períodos Sete e Oitocentistas” (p. 49); já a segunda designaria “à

prole de pais de origens mistas: um pardo (ou, talvez mais precisamente, a um mulato) e o

outro crioulo ou africano (p. 50)”. O autor atenta para as possíveis mudanças que ocorrem em

relação à utilização desses termos ao longo do tempo e do espaço, pois, em alguns

documentos, um sujeito é classificado como pardo, negro, cabra, porém, em outro documento,

essa designação pode ser diferente ou até mesmo nem existir referência à cor. Essa questão

pode ser uma indicação de mobilidade social, pois “quando indivíduos ou até famílias inteiras

passavam de pardos para serem consistentemente referenciados sem qualificação de cor, sem

19

A partir do levantamento documental de inventários post mortem e de testamentos acondicionados no Fórum

da Comarca de São Raimundo Nonato, verificamos registros da existência de escravos entre os bens dos

inventariantes, bem como de atividades desenvolvidas por estes cativos no interior das fazendas.

38

dúvida estamos diante de exemplos de embranquecimento e, portanto, de mobilidade social

ascendente” (LIBBY, 2010, p.51-52).

TABELA 1 – Quadro da População Livre e Escrava de São Raimundo Nonato por sexo e cor,

1872.

Cor

População Livre População Escrava

Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total

Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %

Brancos 657 34,1 619 21,5 1276 26,6 0 0,0 0 0,0 0 0,0

Pardos 1016 52,8 1961 68,1 2977 62,0 132 57,9 105 34,7 237 44,6

Pretos 198 10,3 180 6,3 378 7,9 96 42,1 198 65,3 294 55,4

Caboclos 53 2,8 119 4,1 172 3,6 0 0,0 0 0,0 0 0,0

Total 1924 100 2879 100 4803 100 228 100 303 100 531 100

Fonte: Recenseamento Geral do Império, 1872.

Os dados da tabela apresentam um maior número de escravas em relação aos escravos

do sexo masculino. De fato, nota-se que 57% dos escravos da região eram do sexo feminino.

Na matrícula de 1873, dos 25.533 escravos registrados na Província, 50,7% destes eram do

sexo feminino. É importante destacarmos a disparidade existente entre os dados dos diferentes

levantamentos populacionais da época, porém essa maioria feminina ocorre em diferentes

regiões da Província. Esse percentual de mulheres, assim como a diminuição do número de

escravos, pode ser explicado a partir de razões como o fim do tráfico atlântico de escravos

que, segundo Chaves, “estancou o comércio” internacional de escravos, fazendo com que

muitos agenciadores comprassem escravos no Piauí por preços vantajosos (CHAVES, 1998,

p. 195). Conforme o autor, isso encorajou muitos proprietários a comercializarem seus

escravos, especialmente do sexo masculino. Sabe-se que, nesse mesmo período, a produção

de café no Sudeste estava em alta, provocando maior necessidade de mão de obra escrava, e

que foram as regiões de pequenos plantéis que abasteceram os grandes plantéis do Sudeste do

país com a mão de obra que necessitavam naquele momento.

39

GRÁFICO 1 – Número de mulheres distribuído por cor e condição social. Recenseamento

Geral do Império, 1872

Esses números corroboram com a afirmação da pesquisadora Miridan Falci, quando

destaca as especificidades da população piauiense em relação às demais regiões brasileiras

durante o século XIX, salientando a “contínua ampliação de mulheres em relação aos

homens” (FALCI, 2000, p. 264-265). De acordo com a autora:

As mulheres tiveram um importante papel como roceiras, trabalhando nas

roças de algodão e de fumo, nas plantações e corte de cana, nos trabalhos

domésticos como cozinheiras, costureiras, engomadeiras, parteiras e amas-

de-leite, mas ajudaram principalmente no trabalho do algodão (FALCI,

2000, p. 266).

Percebe-se, portanto, que o trabalho da mulher escrava no sertão do Piauí não se

restringia apenas às atividades domésticas, constituíam também força de trabalho nas lavouras

e no artesanato, tornando-se de grande importância na produção local. No que tange à cor,

segundo os dados do recenseamento, 65,3% dessas mulheres escravizadas eram de cor preta, e

34,7% eram pardas. Essa maioria de cor preta corresponde apenas às mulheres, pois entre os

homens escravos a maioria eram pardos, constituindo 57,9% do total de escravos.

40

GRÁFICO 2 – Número de pessoas do sexo masculino distribuído por cor e condição social.

Recenseamento Geral do Império, 1872.

Cabe ainda ressaltar que o número de pardos em relação ao de brancos também é

superior. Em 1872, os pardos livres representavam 62% da população. Entre os escravos, o

percentual de negros era de 55,4% contra 44,6% de pardos escravos. Os 38% da população

parda livre e escrava da Vila de São Raimundo Nonato leva-nos a acreditar no peso que a

miscigenação possuiu no processo de formação social da região. É preciso que se diga que a

miscigenação não é atribuída, aqui, como única explicação para tal indício, porém, de início,

esta é a primeira ideia que surge ao analisar os dados demográficos.

Como podemos perceber, a população de São Raimundo Nonato estava basicamente

composta por escravos e por pecuaristas e lavradores sertanejos que, embora não possuíssem

grandes extensões de terras associadas aos grandes plantéis, utilizavam a mão de obra escrava

em suas fazendas. Conforme informações assinaladas na documentação analisada, a

organização da posse escrava nessa região era composta por homens e mulheres escravizados

nascidos na região ou em áreas vizinhas. Ao analisar a vida escrava no sertão, Miridan Falci

(2000, p. 268-269) reforça que a escravidão em áreas sertanejas possuiu, como principal

especificidade, o nascimento e a multiplicação da população escrava em suas terras “[...] sem

grande interferência do tráfico africano”.

A documentação analisada possibilitou localizar algumas informações a respeito da

estrutura da posse escrava em São Raimundo Nonato, identificando, principalmente, o perfil

dos proprietários e a origem de grande parte dos seus escravos.

41

2.3 A estrutura de posse escrava nos inventários

Sabemos que o uso da mão de obra escrava no Brasil esteve, inicialmente, relacionado

à produção de gêneros desenvolvida em grandes propriedades (plantations) e voltada para o

abastecimento do mercado externo. Por esta razão, durante muito tempo, a literatura da

escravidão no Brasil, comungando com a literatura internacional, dedicou seus estudos às

regiões de economia exportadora e que utilizavam um expressivo número de mão de obra

escravizada, reduzindo, assim, o espaço para os estudos de regiões com pequenos plantéis e

de economia voltada para o abastecimento do mercado interno.

Apesar da predominância dessa visão tradicional a respeito das relações estabelecidas

no sistema escravista, recentemente, diversos estudos sobre escravidão, que têm como foco os

pequenos plantéis voltados para o abastecimento do mercado interno, vêm contribuindo para

ampliar o debate em torno do complexo sistema escravista brasileiro.20

Assim como as

atividades produtoras voltadas para a exportação faziam uso da mão de obra escrava, não

podemos ignorar que, apesar da dinâmica econômica diferenciada dos pequenos plantéis, a

necessidade de escravos para a produção de subsistência e para o desenvolvimento da

pecuária era significativa.

Desse modo, tais especificidades assumidas pelas atividades escravistas não

exportadoras abrem um amplo leque de investigação a respeito da diversidade do uso de mão

de obra escrava nas pequenas propriedades, bem como dos diversos tipos de relações sociais

que podiam ser estabelecidas entre pequenos proprietários e homens escravizados.

A análise que ora se desenvolve tem como objetivo identificar, a partir das

informações contidas nos inventários post-mortem, as principais características dos pequenos

plantéis que possuíam como base econômica as atividades de subsistência e a criação de gado

no sertão piauiense. Além disso, pretende-se verificar o quanto a posse de escravos estava

distribuída entre os proprietários de fazendas, sendo fundamental para compreender se a posse

cativa encontrava-se concentrada entre um grupo de proprietários ou difundida entre

diferentes estruturas de posses. Para isso, utilizamos informações da região em estudo no

período de 1840 (coincide com a transferência da Freguesia para a Fazenda Jenipapo e com o

primeiro registro de inventário encontrado nos arquivos) a 1886 (após a proibição do tráfico

transatlântico de escravos, da Lei do Ventre Livre e já inserido no contexto abolicionista).

20

Ver, entre outros, BARICKMAN (2003) para a Bahia, VERSIANI & VERGOLINO (2003) para Pernambuco.

42

Para este estudo, assim como para as demais análises, foi desenvolvido um banco de

dados em planilha do programa Excel para registro das seguintes informações (a saber, nome

do senhor, data do falecimento e do registro em inventário, localidade a que pertencia, posses

declaradas, quantidade de escravos, bem como a idade, o sexo, a cor, a condição de saúde,

ocupação e valor). Cerca de cento e setenta registros de inventários foram lidos e analisados,

porém algumas informações não constam nos inventários, é o caso da naturalidade e, em

alguns casos, da ocupação do escravo.

Outra questão envolvendo as informações contidas nos inventários diz respeito à lista

nominativa de matrícula dos escravos, que passou a ser uma exigência do Império a partir de

1872. Além do número de matrícula de cada escravo, registrava-se o “nome, sexo, estado,

aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se for conhecida” (CONRAD, 1975, p. 369).

Destarte, as listas de matrícula tornaram-se o “principal instrumento legal da propriedade

escrava” (LIMA, 2009, p. 170), e normalmente, as cópias dessas listas eram anexadas aos

inventários post-mortem, possibilitando, ao pesquisador, rastrear a formação familiar escrava

visto que as listas apresentam informações sobre filiação e situação conjugal do escravo. Mas,

infelizmente, poucos inventários possuem a lista nominativa de escravos por propriedade

anexada a eles.

A documentação localizada no Fórum de São Raimundo Nonato permitiu identificar

aspectos importantes a respeito da estrutura da posse escrava nas fazendas do sudoeste

piauiense. Para isso, utilizamos informações de 174 inventários post-mortem acondicionados

no Fórum de São Raimundo Nonato. A seleção dos inventários partiu das condições físicas

que os mesmos possuíam, uma vez que, como já mencionado anteriormente, muitos

documentos estão em péssimas condições, alguns quase que totalmente estragados, devido às

condições inadequadas de armazenamento e conservação, o que dificulta a leitura do

documento.

Após o trabalho de limpeza, classificação e separação dos inventários em condições de

leitura, restaram 174 inventários entre o período de 1840 e 1886 (mostra parcial) para serem

analisados. Deste total, 73 inventários fazem menção à posse de escravos, ou seja, 42% do

total dos documentos analisados. A soma do número de escravos localizados nos inventários é

de 280 escravos, entre homens, mulheres, crianças e idosos, sendo 138 do sexo feminino e

142 homens. Essa paridade entre os sexos é também identificada por Marcelo Matheus ao

estudar a população escrava em Alegrete (RS) para esse período. O autor considera que o fim

43

do tráfico de escravos foi responsável por essa igualdade no percentual entre homens e

mulheres e que se acentuou na década de 1870 (MATHEUS, 2012, p. 87).

Durante a leitura desses inventários post-mortem, identifica-se que, além do número

de escravos que o proprietário possuía naquele momento, são registradas algumas

informações sobre os cativos, como a naturalidade, o sexo, a cor da pele, a idade e a condição

de saúde do escravo, essas duas últimas características eram importantes no momento da

avaliação do escravo, pois isso determinava o valor de compra, venda ou aluguel do escravo.

Os inventariantes21

arrolavam as posses de terras, as casas, o gado vacum e cavalar, metais

como ouro e prata, e até mesmo utensílios domésticos. A igualdade no registro das

informações não era um padrão entre os inventários, alguns possuem todas as informações

mencionadas anteriormente, enquanto outros apresentam apenas o nome, a idade e o valor do

escravo, em poucos casos, fazem menção à profissão do cativo. Percebe-se, portanto, que:

Se havia homens verdadeiramente metódicos na anotação das características

conhecidas dos escravos (e relevantes para o mercado), havia também os que

pareciam ter pressa na execução de seu ofício. Por vezes, nem sequer

anotavam-lhes a idade, um elemento-chave na avaliação deste peculiar bem

(FLORENTINO; GÓES, 1997, p. 44).

A maioria dos inventariados22

possuía mais de uma posse de terra na região, o que nos

leva a considerar que os escravos em sua posse trabalhavam nas diferentes fazendas do seu

senhor. De acordo com Chaves (1998, p.190-194), os “negros escravos eram geralmente

ajudantes dos vaqueiros nas fazendas e sítios piauienses”. Além disso, era costume entre os

proprietários de escravos “[...] alugarem a outras pessoas os serviços deles, auferindo renda

dessa forma”.

Carla Aparecida Silva (2003), ao realizar um levantamento sobre a população escrava

da Província do Piauí a partir das Listas de Classificação entre os anos de 1874 e 1877,

apresenta uma concentração de posse escrava entre os médios proprietários, que possuíam

entre cinco e dezenove escravos, totalizando 42,7% do total de cativos (ver tabela 2). A autora

conclui que, apesar do número de pequenos proprietários ser bastante superior ao de médios e

grandes proprietários, a concentração da maior posse escrava estava entre os médios

proprietários.

21

Responsáveis por declarar os bens pertencentes ao falecido para avaliação em inventário. 22

Pessoas falecidas com bens a serem arrolados em inventários.

44

TABELA 2 - Estrutura da posse de cativos segundo faixa de tamanho dos plantéis.

FTP* Proprietários (%) Escravos (%)

1 1.418 (42,5) 1.418 (11,0)

2 a 4 1.129 (33,8) 3.098 (24,0)

5 a 9 486 (14,5) 3.164 (24,5)

10 a 19 229 (6,9) 2. 926 (22,7)

20 a 39 69 (2,1) 1.869 (14,5)

40 ou mais 8 (0,2) 420 (3,3)

TOTAL 3.339 (100) 12. 891 (100)

Fonte: Lista de Classificação (1874-1977). SILVA, 2003, p. 56.

*FTP=Faixa de Tamanho dos plantéis.

Em seu estudo, a autora em discussão utiliza as Listas de Classificação das seguintes

cidades piauiense: Barras, Batalha, Jaicós, Parnaíba, Piracuruca, Pedro II, Oeiras, Teresina,

União e Valença. Apesar de não utilizar informações a respeito de São Raimundo Nonato, é

possível estabelecer certo comparativo a respeito da posse cativa entre as cidades

mencionadas e a região de estudo escolhida nesta pesquisa. Apesar das informações terem

sido recolhidas em diferentes fontes, no caso desta pesquisa não se utiliza as Listas de

Classificação, verifica-se que o número de pequenos proprietários (possui entre um e cinco

escravos) é superior ao número de médios e grandes proprietários, porém são os médios

proprietários (que possuem entre seis e dez escravos) que possuem a maior concentração de

posse cativa na região. Nesse caso, a distribuição da posse escrava entre os proprietários

sertanejos não apresenta larga diferença entre as cidades mencionadas anteriormente, vejamos

o gráfico abaixo.

45

GRÁFICO 3: Distribuição da posse escrava na Freguesia de São Raimundo Nonato-PI, entre

1840 e 1886.

Fonte: Fórum de São Raimundo Nonato. Inventários 1840-1886.

A maioria dos proprietários do sertão piauiense, de acordo com a documentação

examinada, possuía de um a cinco escravos, esse percentual varia de 57,9% a 88,89% das

propriedades mencionadas. Os dados analisados nos inventários post-mortem de São

Raimundo Nonato, entre os anos 1840 a 1886, demonstram que o maior número de escravos

encontrava-se sob posse de um menor número de proprietários, apresentando uma média de

8,53 escravos por propriedades que possuíam entre seis e dez escravos. Por outro lado,

verifica-se um número maior de proprietários que possuíam entre um e cinco escravos,

perfazendo uma média de 2,58 de escravos por proprietário. Neste sentido, percebe-se um

predomínio do número de pequenos plantéis, apesar da posse cativa ser menor.

No que tange à média de posse escrava para o Piauí, Carla Aparecida Silva (2003, p.

55) apresenta uma média de 3,9 escravos por proprietário, número muito superior a média

para Parnaíba que se apresentou em 2,5 escravos, semelhante à média para São Raimundo

Nonato e inferior a média de posse para a cidade de Teresina, que, segundo a autora, chegou a

5,2 escravos por proprietário.

Para melhor verificar a estrutura de posse escrava, dividimos as informações dentro de

dois recortes temporais, a saber, 1840 a 1863 e de 1864 a 1886, sendo que cada tabela

apresenta os dados dos inventários num espaço de cerca de dez anos. Para o primeiro recorte,

foram encontrados registros de 182 escravos. Percebe-se que, após a década de 1850 –

período em que se registra a proibição definitiva do tráfico de escravos para o Brasil -, o total

de proprietários que possuía entre um e cinco escravos registrou uma queda significativa,

passando de 72,2% para 57,9% das propriedades. O percentual de escravos para essas

46

propriedades também diminuiu, se, no período anterior a 1850, o percentual de escravos era

de 48,15%, na década seguinte, os números são de 27,72% dos escravos.

Essa diminuição do número de escravos por propriedades pode ser explicada a partir

de fatores como a proibição do tráfico atlântico de escravos. Sabemos também que essas

regiões do Nordeste passaram a comercializar mão-de-obra escravizada com as regiões do

Sudeste brasileiro, sobremaneira, pela necessidade que estas tinham de ampliar a força de

trabalho na medida em que a agricultura cafeeira estava em pleno desenvolvimento. Esse

mesmo fator pode explicar o número superior de mulheres escravas em relação ao de homens

na região em estudo.

TABELA 3 – Padrão de Propriedade de Escravos em Inventários de São Raimundo Nonato,

1840-1863

Nº Escravos

1840 - 1851 1852 - 1863

%Prop. %Escr. %Prop. %Escr.

1 a 5 72,2 48,15 57,9 27,72

6 a 10 27,8 51,85 31,6 45,54

11 a 20 - - 10,5 26,73

Total 100 100 100 100

Nº Proporcional 18 19

Nº de Escravos 81 101 Fonte: Fórum de São Raimundo Nonato-PI, inventários post-mortem de 1840-1863. Documentação

não catalogada.

Em contrapartida, é importante salientar que, a partir de 1852 até o ano de 1863,

ocorreu um aumento das propriedades com mais de dez escravos, chegando a 10% do total

das propriedades, registra-se, portanto, uma concentração da posse escrava em plantéis

maiores. A maior posse escrava para o período em estudo foi identificada no inventário de D.

Maria da Conceição, proprietária da Fazenda Sete Lagoas, datado de 1857 com 14 escravos.23

Para o segundo recorte analisado, entre o período de 1864 e 1886, os escravos listados

nos inventários totalizam 107, entre crianças, idosos e adultos. Percebe-se, em relação ao

recorte anterior, que houve, nesse período, o aumento da participação de propriedades que

possuíam entre um e cinco escravos. Por outro lado, o número de propriedades com posse

23

Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1857. Documentação não catalogada.

47

entre seis e dez escravos diminuem, passando para 11,76% entre 1876 e 1886. E a partir de

1864, não há registros de propriedades com mais de dez escravos, demonstrando um período

de desconcentração da posse escrava entre os maiores proprietários, o que confirma a hipótese

de que a participação de pequenos plantéis em São Raimundo Nonato era expressiva para esse

período.

TABELA 4 – Padrão de Propriedade de Escravos em Inventários de São Raimundo Nonato,

1864-1886.

Fonte: Fórum de São Raimundo Nonato-PI, inventários post-mortem de 1864-1886. Documentação

não catalogada.

Essas características em relação à estrutura de posse escrava não são particulares da

região em estudo, existem pesquisas a esse respeito em outras regiões do país que

demonstram configuração semelhante. Marcelo Matheus (2012), em estudo sobre a estrutura

de posse escrava em Alegrete, no século XIX, identifica um predomínio dos pequenos

plantéis em relação aos plantéis com mais de 20 escravos, porém, segundo ele, ocorre uma

concentração da posse entre os grandes proprietários. O autor aponta “que a grande maioria

dos senhores – 70,5% - detinha pequenos plantéis. Por outro lado, apenas 31% dos escravos

estavam nessas escravarias, enquanto os 29,5% de médios e grandes proprietários eram

senhores de quase 70% dos cativos” (MATHEUS, 2012, p.82).

Para São José dos Pinhais, Cacilda Machado (2008, p. 46-47) indica uma

“predominância de senhores de poucos escravos”; em 1827, o grupo de proprietários que

tinha entre um e quatro escravos representava 72% dos domicílios com escravos, enquanto

que o percentual de proprietários com cinco a nove escravos chegava a 24%.

Nº Escravos

1864 - 1875 1876 - 1886

%Prop. %Escr. %Prop. %Escr.

1 a 5 88,89 70,91 88,24 69,23

6 a 10 11,11 29,09 11,76 30,77

11 a 20 - - - -

Total 100 100 100 100

Nº Proporcional 18 17

Nº de Escravos 55 52

48

Ao estudar a organização da posse escrava no sertão do São Francisco entre 1840 e 1880,

Napoliana Santana (2012) registra um decréscimo no número de escravos durante a década de

1860. De acordo com a autora, “essa queda resulta das crises econômicas regionais, da seca e

epidemias que atingiram o sertão” (SANTANA, 2012, p. 28). Essas mudanças ocorridas em

relação à posse escrava podem também está relacionada às secas e epidemias que assolaram o

sertão nordestino, mas, principalmente, resultam das mudanças provocadas pela proibição do

tráfico de escravos e, em seguida, pela Lei do Ventre Livre.

Ainda com relação à representatividade dos pequenos plantéis, Caetano De’Carli, em

estudo sobre a família escrava no Sertão de Pernambuco, identificou que, na segunda metade

do século XIX, o número de pequenos plantéis para essa região “aumentou de 65,4% (de 1800

a 1830) e 61,8% (de 1831 a 1850), para 71,8% entre os anos de 1851 a 1870 e de 71,4% entre

os anos de 1871 a 1887”, concluindo que havia “um número considerável de proprietários de

escravos entre os sertanejos minimamente abastados” (DE’CARLI, 2007, p. 60). Não muito

diferente, verifica-se que a posse escrava no sertão do Piauí encontrava-se disseminada entre

os pequenos proprietários de terras e que a posse de cativos representava uma das riquezas

registradas nos inventários desses sertanejos.

2.4. O homem escravizado tido como “bem” valioso no sertão piauiense

Apesar da média de posse escrava em São Raimundo Nonato representar um número

pequeno se comparado à posse de cativos das plantations, os escravos do sertão estavam entre

os “bens” de maior valor constatado nos inventários. Um exemplo disso encontra-se no

inventário da D. Anna Antunes de Macedo, datado de 1873. Esposa do Capitão Manuel

Antunes de Macedo, Anna Antunes teve sete filhos, João, o mais velho com nove anos e

Maria Rosa, a mais nova dos filhos, com apenas um ano de idade. No inventário, aparece um

total de dez escravos, todos com idade inferior a 25 anos, porém o valor declarado desses

escravos estava acima do valor declarado para os demais “bens” da inventariante. A escrava

Luiza, crioula, com 17 anos de idade, foi avaliada em Rs. 600$000 (réis), e o valor do escravo

Manoel, crioulo, de 15 anos chegou a Rs. 700$000 (réis).

Sobre a valorização do preço de escravos após a proibição do tráfico atlântico, Miridan

Falci (1995, p. 192) explica que:

[...] até o início de 1875 o preço médio dos escravos masculinos, quando

vendidos, era de 556$000, e cinco anos mais tarde passou a um preço médio

49

de 933$000. Os preços das escravas mulheres sofreram também grande

alteração. Se antes valiam, em média, 337$00, agora seu preço se alterará

para 625$00.

Ainda, segundo a autora, essa crescente valorização do preço de homens e mulheres

escravos encorajou muitos senhores do sertão piauiense a venderem seus escravos para fora

da Província (FALCI, 1995, p. 192).

Tânya Brandão, ao tratar do escravo no Piauí, identifica nos inventários que a

aquisição de escravos era uma prática comum e acessível à população em geral. Destarte, ela

relaciona a posse cativa a um instrumento de status social.

Isto significa dizer que não havia uma relação direta com o interesse de

acumulação de bens, mas uma relação muito mais social na posse do

escravo, não apenas no alívio de trabalho braçal, mas uma ostentação de

posição social (BRANDÃO, 1999, p. 154).

A autora observa que “[...] a escravatura no Piauí, extrapolou a condição de uma

instituição econômica, já que a posse de escravos, além de lucrativa era também um indicador

do nível do proprietário” (Idem, p. 154).

Nos inventários analisados, foram identificados muitos casos em que a posse dos

escravos estava dividida entre os familiares do inventariante, os filhos em sua maioria. Com a

valorização do preço do escravo e o consequente aumento das vendas, encontramos, pelo

menos, três razões que justificavam a venda de parte dos escravos que se encontravam

divididos entre diferentes membros da família do inventariante: “para cobrir uma dívida”24

;

por gerar “dívidas inúteis”25

solicitam “a troca da escrava por gado novo”.26

Analisando o inventário do Capitão Carolino Gonçalves de Assis, datado de 1869,

constatamos um número de oito escravos pertencentes à família, dos quais dois homens e seis

mulheres. A média de idade para os homens era de 25 anos e para as mulheres foi calculada

uma idade média de 15 anos. O preço dos cativos variava entre 500$000 para o africano

Adeodato (40 anos); 600$000 para Maria, crioula (13 anos) e 100$00 para Damiana, cabra

(“aleijada de uma mão”). 27

No que diz respeito aos bens, o Capitão Carolino possuía partes de terras em diversas

áreas da freguesia, lavouras de milho e feijão, “burros serviçais”, gado vacum e cavalar,

24

Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1873. Documentação não catalogada. 25

Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1875. Documentação não catalogada. 26

Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1875. Documentação não catalogada. 27

Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1869. Documentação não catalogada.

50

“uma casa sem terminar”; móveis, ferramentas e metais (abrangendo ouro, cobre e prata)

compunham parte da riqueza da família do inventariante.

Voltamos ao inventário de D. Maria da Conceição, mencionado anteriormente, entre

os inventários analisados, o arrolamento de bens da inventariante apresentou a maior posse de

escravos para o período em estudo. Proprietária de diversas partes de terras, a de maior valor é

a Fazenda Sete Lagoas, avaliada em 6$000.000, era nesta fazenda que os 14 escravos (dos

quais nove homens e cinco mulheres) desenvolviam suas atividades como o trato com a terra

e com o gado e os serviços domésticos, geralmente reservados às mulheres (lavadeiras,

cozinheiras e passadeiras). Ferramentas, móveis, poldros, gado vacum e cavalar estão entre os

bens classificados no inventário.

A criação de gado e o cultivo de produtos alimentares por pequenos proprietários de

terras no sertão do Piauí não isenta a utilização de mão de obra escrava. Ao contrário, ainda

que esses proprietários dividissem a labuta do dia a dia com os seus escravos, os dados

existentes nos inventários revelam a importância da mão de obra escravizada e valor

econômico atribuído a posse desses cativos.

A respeito da proximidade das relações entre os proprietários de pequenos e médios

plantéis e seus escravos, não podemos desconsiderar que:

[...] houve uma vivência mais próxima entre senhores e escravos,

especialmente nos menores plantéis. O cotidiano da escravidão nestas

condições deixava frente a frente estes indivíduos. A interação possibilitou

formas variadas de relações pessoais desde as mais amenas até as mais

cruéis, cordialmente demarcadas por laços de amizade/ inimizade, amor/ódio

etc. (MARCONDES, 2011, p. 249).

Os dados analisados não permitem classificar todos os escravos por atividades

desenvolvidas no interior das fazendas, mas identificamos que paralelo à atividade criatória,

estes cativos também desenvolviam trabalhos artesanais, atividades extrativas, serviços

domésticos e agricultura, todas essas atividades produtivas, provavelmente, serviam como

sustentação da economia local ao lado da pecuária extensiva.

Nos termos de Falci, o escravo do Piauí:

Era o roceiro, o vaqueiro, o fábrica, o do serviço (nos arrolamentos das

fazendas de gado), mas era também o mestre-ferreiro, o alfaiate, o ourives, o

pedreiro, o oleiro, ou o tecelão nos pequenos núcleos populacionais (FALCI,

2000, p. 266).

A documentação analisada revelou uma economia baseada na pecuária extensiva

(criação de gado e outros animais) e no cultivo de gêneros agrícolas de subsistência. Além

disso, a estrutura de posse dos escravos mostrou a predominância de pequenos proprietários

51

de terras e de posses de cativos. Em relação à composição da massa escrava analisada nos

inventários, ocorre a predominância de crioulos, dos quais predominam escravos do sexo

masculino, com faixa de idade entre 20 e 30 anos. O número de crianças classificadas nos

inventários em análise também se faz expressivo, o que nos leva a acreditar que a reprodução

natural era um meio de manutenção da estrutura de posse entre os proprietários de escravos da

região.

Portanto, os resultados apresentados neste capítulo reforçam a importância da pequena

propriedade escrava na região em estudo. Apesar de identificarmos, na maioria dos

inventários, registros de um, dois e três escravos por inventariante, a posse cativa para a

região apresenta média de quatro escravos por proprietário, um indicador da elevada presença

de pequenos e médios escravistas. Tais resultados são semelhantes aos dados referentes ao

padrão de propriedade escrava em Oeiras e Teresina, que revelam um número médio de 4,4 e

5,2 escravos, respectivamente (FALCI; MARCONDES, 2001, p.12). Esses números

contrapõem a ideia, muitas vezes, defendida pela historiografia da escravidão, de que não há

compatibilidade entre o trabalho escravo e as atividades de lavoura de subsistência e de

criação extensiva de gado no sertão piauiense do século XIX.

A partir da análise das informações contidas nos inventários post-mortem (amostra

parcial), surgiram inúmeras indagações a respeito das funções atribuídas a esses escravos e,

especialmente, das relações existentes entre eles e seus proprietários, realçando, portanto, a

importância de realizar maiores pesquisas a respeito desse tema com o intuito de elucidar

questões a respeito da importância da pequena propriedade escrava no Brasil oitocentista.

52

3 REDES DE PROTEÇÃO E SOLIDARIEDADE ESTABELECIDAS POR

ESCRAVOS NO SERTÃO PIAUIENSE

3.1 Relações familiares entre escravos

Estudar as relações familiares entre escravos como um dos meios de sobrevivência e de

resistência entre negros escravizados no século XIX significa (re)pensar a história e a

historiografia brasileira que trata desse tema, além de lançar um outro olhar que privilegia as

camadas populares e suas relações com a estrutura social28

. Partindo dessas assertivas, a

proposta desse capítulo é identificar as possíveis estratégias utilizadas pelos indivíduos

escravizados do sertão piauiense como meio para estabelecerem redes de parentesco e,

possivelmente, conquistarem certa autonomia e mobilidade social.

Até meados da década de 1970, a historiografia brasileira da escravidão – com as

devidas exceções - sempre destacou a vivência escrava no Brasil a partir do desregramento

moral e da promiscuidade, ou seja, fatores como a sexualidade, a criminalidade e o

desinteresse pela formação estável da família eram atribuídos ao escravo. Por essas razões,

explicar-se-ia a ausência de uma família escrava criando, portanto, o “mito da anomia

social”.29

A obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, apresenta a família patriarcal como

modelo principal de família, da qual o negro faz parte como uma extensão, isto é, o escravo

não teria a possibilidade de constituir família visto que o mesmo foi retirado “do seu meio

social e de família, soltando-o entre gente estranha muitas vezes hostil” (FREYRE, 2002, p.

315). No entanto, a obra de Freyre abriu um leque para os estudos de escravidão,

especialmente, por apresentar a estrutura das relações sociais e escravistas no contexto

brasileiro.

As obras de autores da chamada escola paulista, representada por Florestan Fernandes,

Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, apesar de lançarem críticas à ideia de

Freyre de que havia certa harmonia na relação senhor-escravo, também apresentam o escravo

como “coisa” dentro do sistema escravista, e argumentam que a ausência de normas não

permitiria o estabelecimento de relações familiares entre eles.

Sob a influência da historiografia norte-americana, as pesquisas em torno da

escravidão no Brasil passaram a lançar um novo olhar, a partir de 1980, sobre o papel desses

28

DIAS, C. M. M. Balaios e Bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. Teresina: Dom Barreto, 2002. 29

Ver ROCHA, 1999.

53

sujeitos sociais no contexto escravista. Embora ainda se fizessem presentes alguns

estereótipos sobre as condições da escravidão, especialmente sobre a família, caracterizada

pela instabilidade e pelo desregramento, a historiografia brasileira da escravidão passou a

admitir não somente a existência da família escrava, como também as inúmeras possibilidades

de “negociação” utilizadas por esses indivíduos escravizados a fim de conquistarem certa

mobilidade social e, quiçá, sua liberdade.

Os estudos realizados por Gutman (1976), apesar de serem no contexto norte-

americano, tiveram significativa influência nos estudos sobre a escravidão no Brasil. Segundo

esse autor, os escravos eram capazes de tomar decisões e possuíam um conjunto de valores e

crenças que influenciavam o comportamento doméstico, garantindo casamentos estáveis entre

os escravos.

No Brasil, os estudos realizados por Manolo Florentino e José Roberto Goés (1997),

em A paz das senzalas, apontam para a formação de um parentesco entre escravos que

permitiria uma convivência harmoniosa no contexto escravista, ou seja, a formação familiar e

de parentesco entre escravos favorecia também à paz nos plantéis, demonstrando que, além

dos escravos, os senhores também possuíam interesses na existência e manutenção dessas

relações.

Não muito diferente desses autores, Robert Slenes (1999), também analisa, em sua

obra Na senzala, uma flor, a formação da família, das redes de parentesco e os significados

que essas relações possuíam para os cativos. Para ele, estas eram uma estratégia de

“resistência cultural” dos escravos em relação ao domínio do senhor. Apesar de não

considerar a pacificação no cativeiro como razão primeira dessas relações, o autor aponta as

relações familiares entre escravos como forma de sobrevivência e de resistência ao sistema

escravista.

Nessa perspectiva, inúmeros trabalhos sobre escravidão passam a destacar as

experiências cotidianas desses cativos, bem como as possibilidades de organização familiar e

de parentesco e os significados dessas relações em suas vidas, deixando de lado a ideia do

escravo como “peça” no sistema escravista, pois:

[...] essa caracterização da figura do escravo anula a possibilidade de

entender que os escravos eram seres que agenciavam suas vidas enquanto

escravos, resistindo e se acomodando, e que a relação senhor - escravo era

fruto dessa dinâmica, entre dois pólos, e não uma construção imposta de

cima para baixo, unicamente pela vontade senhorial (LARA, 1988, p. 353).

Sobre a importância da família nessa teia de relações, Sheila de Castro Faria (1998),

considera que a família além de exercer influência na classificação social, proporciona

54

movimentação e estabilidade aos escravos e, portanto, que as relações de parentesco

(consanguíneo e espiritual) apesar das condições impostas pelos senhores, também se

estabeleciam através das escolhas dos escravos. A autora demonstra que, através do

compadrio, os pais da criança batizada priorizavam nas suas escolhas os padrinhos livres,

libertos e escravos de senhores diferentes, o que, para ela, sugere um grau de sociabilidade

entre esses diferentes segmentos da sociedade.

Apesar do significativo número de estudos em torno da vida familiar escrava no

Brasil, a maior parte dos pesquisadores que se debruçaram sobre esse tema, privilegiam

estados da região do Sudeste, caracterizadas pelos grandes plantéis e por possuírem um

grande número de escravos. No Piauí, por exemplo, os estudos sobre as relações familiares e

de compadrio entre escravos são muito tímidos.

A historiografia piauiense, não obstante, apresenta alguns trabalhos sobre escravidão,

porém ainda existem– como é compreensível em qualquer trabalho com a história – diversas

lacunas acerca da formação e manutenção da família escrava no Piauí. Autores como Solimar

Oliveira Lima (2009), Miridan Brito Falci (2005) e Tanya Brandão (1999) debruçaram-se na

documentação piauiense sobre escravidão dedicando seus estudos a questões demográficas,

sociais e econômicas dessa temática. Nesse sentido, ressalte-se que, apesar desses autores

mencionarem a vida cotidiana dos escravos e suas intensas experiências vividas no sertão

piauiense, os aspectos relacionados à formação familiar e aos seus mecanismos de

manutenção, ao compadrio, à reprodução natural, estabilidade, autonomia, entre outros, ainda

carecem de mais pesquisas.

Em seu livro Escravos do Sertão (1995), Miridam Falci pretendia, através do seu

estudo, “determinar que o escravo no Piauí fora resultado de um modelo demográfico que

refletia a vida econômica e social da província verificando seus ritmos vitais, suas atividades e

suas relações sociais” (FALCI, 1995, p. 19-20). Com um trabalho pioneiro acerca da região, a

autora faz uma análise na Província do Piauí entre os séculos XVII e XIX, a partir dos dados

demográficos das cinco principais freguesias existentes na Província. Nessa investigação,

além de discutir questões em torno da população, economia e força de trabalho da época,

Miridan analisa os vínculos familiares existentes entre escravos, livres e libertos a partir dos

índices sobre matrimônios, batismos e legitimidade envolvendo cativos.

Solimar Oliveira Lima (2005, p.127), ao discutir a respeito do trabalho escravo nas

Fazendas da Nação do Piauí, a partir das relações econômicas que eram estabelecidas, faz

menção à formação de uma família em que existiam designações de parentesco e a um

55

cotidiano pautado por intensas relações entre trabalhadores escravizados, moradores livres e

libertos. Em conformidade com o autor,

O regime escravista nas fazendas permitiu a criação de pares e a formação de

núcleos familiares convivendo sob o mesmo teto, fora do espaço da casa-

grande. Contudo, ao mesmo tempo em que a instituição escravista

incentivou uniões e procriações, mostrou-se extremamente adversa à

estabilidade das relações afetivas familiares (LIMA, 2005, p.154).

Em Braço Forte, o autor destaca a existência de relações familiares entre escravos nas

fazendas da Província, porém deixa claro que esse fator não excluía o caráter violento do

sistema escravista, nem tão pouco dava possibilidades de estabilidade familiar entre escravos,

“em geral, nessa família escravizada não se nutriam expectativas de proteção e manutenção

das relações [...]” (LIMA, 2009, p. 155), mesmo porque não excluía deles a condição de

cativos. Embora não seja possível afirmar, existem estudos que destacam a falta de interesse

dos cativos em buscar a formação e manutenção das relações familiares e de parentesco no

cativeiro. Vale ressaltar que os autores anteriormente citados não descartam que esses sujeitos

escravizados possuíam vontades e interesses, e que o sistema escravista não era unilateral,

pelo contrário. De fato, os estudos recentes em torno dessa temática apontam para a existência

de um complexo jogo de interesses e de relações recíprocas estabelecidas entre senhores e

escravos.

Como afirma Alida Metcalf, “apesar das esmagadoras exigências impostas pelos

senhores, exigências não somente quanto ao trabalho, mas também de obediência e deferência

– os escravos conseguiam preservar algo de sua própria cultura e história” (METCALF, 1987,

p. 229-230), e a formação familiar e de parentesco seria um exemplo disso.

A presença de famílias escravas no Piauí já no século XVIII e, ainda, o interesse

dessas famílias em efetivar o batizado de seus filhos, seja pela preocupação em cumprir os

princípios cristãos, fenômeno destacado por Tanya Brandão (1999), seja pelo interesse em

estabelecer laços de proteção e solidariedade através do compadrio, evidenciam a existência

dessas expectativas.

Nesses termos, essa pesquisa segue os caminhos indicados pela história social da

escravidão e procura identificar indícios das relações sociais estabelecidas entre escravos em

solo piauiense, considerando que estes não eram sujeitos passivos e incapazes, mas indivíduos

ativos que agiam de acordo com o contexto social a que estavam inseridos. Para isso, foi

56

selecionada uma amostragem de registros de batismos e de casamentos30

envolvendo

escravos, livres e libertos, onde, através da análise das informações contidas nas fontes,

podemos identificar sinais das escolhas e das experiências vividas por esses cativos na teia

das relações durante a segunda metade do século XIX.

Os registros de batismos e de casamentos consultados na pesquisa e referentes à

Freguesia de São Raimundo Nonato possibilitaram pensar as estratégias utilizadas pelos

escravos para estabelecerem relações de parentesco e solidariedade dentro da comunidade

escrava. A documentação analisada revelou a presença da formação familiar e a possibilidade

de manutenção e estabilidade da mesma, como também das estratégias de parentesco ritual

utilizadas pelos escravos na Freguesia de São Raimundo Nonato.

3.2 Casamentos de escravos, livres pobres e libertos: redes de proteção e solidariedade

Estudar o casamento de escravos torna-se um grande desafio quando se considera a

limitação das fontes históricas, pois o registro de casamento só ocorria quando este era

oficializado pela igreja. Nesse caso, as uniões consensuais entre cativos não eram

reconhecidas e consequentemente, não havia registro documental das mesmas.

De acordo com Antonia Mota (2012, p. 75), “os senhores faziam vista grossa para a

formação das famílias entre seus cativos, evitando formalizar os casamentos”. Segundo a

autora, os senhores de escravos viam a oficialização dos laços conjugais como um problema,

visto que a separação das famílias unidas pela igreja não seria moralmente bem aceita. Além

disso, esse desinteresse dos senhores em permitir os casamentos aumenta a partir da

existência das leis elaboradas pela igreja que impediam a separação dos casais e de seus filhos

(FARIA, 1998, p. 339).

A documentação utilizada para esta análise compreende os livros de registros de

casamento da Paróquia de São Raimundo Nonato, datados de 1837 a 1884. Faz saber que os

registros das uniões tanto de livres como de escravos eram realizados no mesmo livro, não

havendo, por exemplo, a separação de livros como ocorria para os batismos. Assim como para

os assentos de batismo, após seleção e classificação da documentação, as informações sobre

os casamentos foram organizadas em um banco de dados obedecendo às seguintes

características: nome dos nubentes, idade, cor, origem (quando ocorre), nome dos pais, local e

30

Cabe ressaltar que os registros de casamento selecionados para o período em estudo encontravam-se

espalhados entre o restante da documentação e, em alguns casos, os registros possuíam informações incompletas,

dificultando o acesso de todo o material, inicialmente, proposto para a pesquisa.

57

data do casamento, nome do senhor, nomes das testemunhas e do vigário que celebrou a

união.

Concluído o banco de dados, foram filtrados os registros em que, pelo menos, um dos

noivos é de condição escrava e/ou liberta, totalizando 175 matrimônios. A partir da leitura dos

registros, identificamos que, em muitos casos, algumas informações foram negligenciadas

pelos párocos, principalmente, o nome dos pais, a cor e a idade dos nubentes.

Aos vinte e quatro dias do mês de outubro de mil oitocentos e setenta e três,

n’esta Igreja de São Raimundo Nonato, Província do Piauhy às nove horas

da manhã tendo precedido as denunciações com palavras dos presentes e em

minha presença se receberam José Pereira Bons Olhos, dezenove anos, filho

natural de Brarida Maria de Jesus, e Clara dezessete anos escrava de José

Piauilino de Macedo morador d’esta freguesia, receberam as bênçãos da

Igreja. Foram testemunhas presentes Olímpio Francisco Campos Braga e

Antônio Martins de Sousa de que fiz este assento que assinei com as

testemunhas nomeadas a cima. Padre Sebastião Pereira Lima.31

Sheila Faria (1998, p.308), em estudo sobre os casamentos realizados pela igreja

Católica no período colonial, observa a ausência de referência aos pais dos escravos nos

registros de casamento analisados. A autora explica que o nome dos pais não era exigido para

africanos, isto é, a ausência dessa informação não se constituía como um problema para a

realização do matrimônio destes, e, segundo ela, “com certeza os párocos estenderam

preguiçosamente o costume a todos os escravos, mesmo com pais conhecidos”. No caso de

São Raimundo Nonato, em se tratando dos casamentos envolvendo pessoas de condição livre,

os registros são mais homogêneos no que se refere ao conjunto das informações dos noivos,

porém, nem todos os párocos foram cuidadosos quando registraram as informações sobre os

cônjuges escravos, o que, de certa forma, dificulta as análises. Nesse caso, o cruzamento de

informações contidas em diferentes fontes (inventários, casamento, batismo) foi essencial

para a realização desse estudo.

Sobre o número de casamentos envolvendo escravos em São Raimundo Nonato,

verificamos, para o recorte temporal estabelecido, que o índice de escravos casados

apresentava-se superior em relação aos dados do censo de 1872. Segundo o levantamento

realizado pelo Censo, o percentual de homens solteiros chegou 96,1% e de homens casados a

1,8%.

Para as mulheres, apenas 1% delas eram casadas, enquanto 98,3% eram solteiras. É

certo que as relações extraoficiais não aparecem nesses dados, porém o levantamento de

31

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento (1837-1884).

58

casamentos envolvendo escravos nos registros de casamentos revelou um número de uniões

matrimoniais maior.

Do total de 75 uniões, o período de 1870 a 1884 apresentou 29 casamentos entre

escravos que foram oficializados pela igreja (ver tabela 5). Vale ressaltar que, apesar de o

número de uniões oficializadas apresentar-se muito baixo em relação às uniões que envolvem

pessoas livres, não se pode desconsiderar que as uniões consensuais também representam a

busca por formação familiar e estabelecimento de relações de solidariedade e reciprocidade

entre escravos.

Provavelmente, além do desinteresse dos proprietários pela oficialização dos

casamentos de seus cativos, outros fatores podem ter atuado para inibir a oficialização das

uniões. Essa questão será discutida no capítulo seguinte.

TABELA 5 - Frequência de Casamentos Envolvendo Escravos – 1837-1884

Ano Nº casamentos Porcentagem (%)

1837 – 1847 19 25,33

1848 – 1858 15 20,00

1859 – 1869 12 16,00

1870 – 1884 29 38,67

Total 75 100,00 Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato – Livro de Registro de Casamentos (1837-1884).

Para o Sertão de Pernambuco, entre os anos de 1855-59 e 1872, Caetano De’Carli

(2007, p. 83) verifica que “15,3% dos escravos eram casados e 84,7% deles eram solteiros.

Entre as escravas, essa proporção era de 82,5% para as solteiras e 17,5% para as casadas”,

dados do levantamento populacional da Polícia Civil. “No censo de 1872 a amostragem era

de 12,2% de escravos casados, 2,6% de viúvos e 85,2% de solteiros. Em relação às cativas,

esses dados indicam que 10,6% delas eram casadas, 2,9% viúvas e 86,5% solteiras”. O autor

argumenta que a não oficialização das uniões para algumas escravas funcionava como “uma

estratégia de parentesco mais viável”, considerando a questão da estabilidade financeira,

segundo ele, as cativas possuíam mais possibilidade de agregar recursos materiais ao

ambiente doméstico do que os homens, nesse caso, ele sugere que algumas cativas preferiam

a vida de solteiras ao invés do casamento.

59

É certo que, em alguns casos, tal escolha poderia ocorrer entre algumas escravas,

porém não consideramos essa hipótese para São Raimundo Nonato, haja vista a existência de

fatores que implicariam muito mais em relação à oficialização dos casamentos. A respeito da

menor quantidade de uniões matrimoniais para o período em estudo, a documentação sugere

que as dificuldades em sacramentar as uniões podem estar relacionadas à posse escrava nos

pequenos plantéis, isto é, como a média de posse escrava era pequena entre as propriedades as

possibilidades de oficializar as uniões diminuíam.

Além disso, como mencionado no capítulo anterior, a desproporcionalidade entre

número de homens e de mulheres pode ter sido também um fator que dificultava o

estabelecimento desses laços. Nesse caso, comungamos com a observação de Cristiane

Jacinto (2008, p. 96) quando trata do casamento envolvendo escravos, forros e livres em São

Luís do Maranhão, na segunda metade do século XIX, “para uma mulher negra, escrava, livre

ou liberta que vivia numa sociedade marcada pelo preconceito, ser casada poderia ser um

elemento de normalidade e distinção social, da mesma forma que para o homem”.

Robert Slenes (1999), ao pesquisar sobre as relações familiares entre cativos em

Campinas, ressalta que o parentesco familiar entre escravos era uma maneira de resistir ao

sistema escravista. Ao analisar os dados do gráfico cinco, podemos considerar que a formação

familiar escrava foi também para o cativo de São Raimundo Nonato uma estratégia de

sobrevivência e de resistência. O número de uniões matrimoniais envolvendo escravos

apresentou um aumento considerável a partir de 1870, atingindo pouco mais de 38% do total

de casamentos analisados no escopo documental. Em 1869, o decreto nacional no

1.695,

proibia a separação de casais por venda, não obstante, como destaca Slenes ( 1999, p. 96), a

separação entre escravos ainda podia ocorrer. Porém, apesar desse risco, consideramos que

casar oficialmente representava para o cativo uma estabilidade familiar, sobretudo, porque,

em virtude da lei, estes eram impedidos de serem separados e, provavelmente, esse fator

tornou-se mais um aspecto que fortalecia a importância da oficialização do matrimônio.

Para Florentino e Goés (1997, p.177), o casamento foi uma maneira utilizada pelos

cativos para evitar a separação destes, bem como de seus filhos. Sheila Faria (1998, p. 304),

também considera que: “Casar-se significava buscar uma estabilidade familiar e um respeito

social, [...] estratégico, no caso de escravos, forros e mestiços”.

60

GRÁFICO 4 – Frequência de casamentos envolvendo escravos. São Raimundo Nonato.

Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento (1837-1884).

Ao analisar a estrutura de posse de cativos e o estado conjugal destes nas Listas de

Classificação de 1874 a 1877, na Província do Piauí, Carla Aparecida Silva (2003, p. 58)

chama a atenção para a concentração de escravos solteiros em todas as faixas de plantéis

sendo que, em plantéis menores, essa concentração era maior. “Mas, conforme vai

aumentando os tamanhos dos plantéis se nota uma diminuição dessa participação e

conseqüente aumento dos pais casados e viúvos e dos filhos, ou seja, as famílias estão mais

representadas em plantéis maiores”.

De fato, Slenes (1999) também indica essa dificuldade por parte dos cativos de

pequenos plantéis em estabelecer uniões matrimoniais, considerando também as dificuldades

em encontrar um parceiro, já que as possibilidades eram menores em propriedades com

pequeno número de cativos. Como uma parte considerável dos escravos do sertão piauiense

vivia em pequenos plantéis, podemos considerar que as chances de matrimônio eram bem

menores para eles.

Dos matrimônios oficializados pela igreja, localizamos, na documentação, a

predominância de algumas propriedades, onde foram realizados os rituais que sacralizaram

dos casamentos. Além de São Raimundo Nonato, onde estava localizada a igreja, muitos

casamentos foram realizados em atos de desobriga nas capelas das propriedades, sendo que a

maioria dos casamentos envolvia escravos da mesma fazenda, o que caracteriza a chamada

endogamia de plantel.

61

No que concerne ao total de matrimônios levantados na documentação, 33 envolviam

escravos de mesmo proprietário e apenas nove casamentos entre escravos de diferentes

proprietários. Destacamos um total de oito uniões mistas, ou seja, um dos noivos era escravo,

enquanto o outro era liberto. Existem sete casos de matrimônios envolvendo escravos que não

fazem menção ao nome do senhor. Mais adiante, apresentamos alguns exemplos dessa prática.

TABELA 6 – Frequência de casamento escravo por propriedades em São Raimundo Nonato.

Propriedade Nº Casamentos Porc. %

São Raimundo Nonato 32 42,67

Fazenda Umbuzeiro 6 8,00

Fazenda Sete Lagoas 4 5,33

Fazenda Pé do Morro 4 5,33

Fazenda Curral Novo 2 2,67

Fazenda Massapê 2 2,67

Fazenda Riacho Seco 2 2,67

Fazenda Tanque Novo 2 2,67

As demais 21 propriedades 1 28,00

TOTAL 75 100,00 Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento (1837-1884).

Quanto às testemunhas dos casamentos, consideramos que a escolha destas estava

vinculada a uma estratégia de aliança e de ampliação da rede de relações sociais do casal de

cativos. Para todos os matrimônios analisados, as testemunhas eram sempre homens, não se

identificou nenhuma testemunha do sexo feminino, tanto para uniões de escravos como de

livres. Ao que parece essa característica era comum nesse período, pois alguns autores

identificam esse padrão nos matrimônios, além disso, Sheila Faria (1998) chama a atenção

para a pouca importância que as testemunhas dos casamentos tinham em relação aos

padrinhos de batismo.

No caso das uniões envolvendo escravos em São Raimundo Nonato, a maioria das

testemunhas era constituída por homens livres, em grande parte proprietários de escravos. Do

total de casamentos realizados entre 1837 e 1884 (mostra parcial) envolvendo escravos,

97,3% das testemunhas eram livres. Considerando que os escravos participavam da escolha

dessas testemunhas, os dados revelam que havia uma importância dada a condição social

daqueles que, além de estarem presentes na cerimônia, confirmavam essa aliança de

parentesco através de suas assinaturas.

62

De acordo com Caetano De’Carli (2007, p. 97):

Os motivos que levaram os cativos a essa aliança podem ser compreendidos

a partir de dois pontos de vista: eles procuravam obter, dos homens livres (e

mais precisamente dos membros da família senhorial), alguma espécie de

benefício para suas vidas públicas ou privadas; ou procuravam, no caso dos

homens livres pobres, solidificar um laço de solidariedade existente entre

eles e demais membros da comunidade sertaneja.

O autor ainda salienta que havia, pelo menos, três tipos de alianças para os casamentos

envolvendo escravos sertanejos de Pernambuco. O primeiro caso refere-se à aliança com

outros cativos,

[...] esse tipo de aliança corresponde a 19,6% dos casos. Desses, 5,4%

correspondem a dois escravos do mesmo plantel dos cativos casados; 8,9%

correspondem a dois escravos e somente um do mesmo plantel dos cativos

casados; e 1,8% dos casos sendo testemunhas mistas: um livre e um

escravo”. Nas demais alianças ocorrem à predominância por testemunhas de

estatuto social livre, correspondendo a 76,8% dos casos. “Desses, 25% eram

membros da família senhorial, e 1,8% era o próprio senhor do cativo que se

colocou na posição de testemunha” (Ibdi.id.).

Para São Raimundo Nonato, outro indício diz respeito à frequência das testemunhas, é

o tipo de aliança envolvendo pessoas livres, inclusive alguns senhores que chegaram a servir

em mais de dois matrimônios como testemunha, são os exemplos de Liberato Ribeiro Soares,

Manoel Antunes de Macedo, Gonçalo Alves de Farias Pindaíba, no entanto, diferente do que

ocorre com os cativos do Sertão de Pernambuco, nenhum dos senhores serviu como

testemunha em casamentos que envolviam seus próprios escravos. (Ver tabela 7).

TABELA 7 – Frequência das testemunhas dos casamentos de escravos. São Raimundo

Nonato.

TESTEMUNHAS NÚMERO DE

CASAMENTOS

Raimundo Martins Xavier de Macedo 2

Bibiano Dias de Sousa 2

Clarismundo Pereira da Silva 3

Custódio Ribeiro Antunes 3

Joaquim Marques dos Reis 4

Manoel Antunes de Macedo 5

Gonçalo Alves de Farias Pindaíba 6

Liberato Ribeiro Soares 9

Fonte: Cúria Diocesana da Igreja Matriz de São Raimundo Nonato. Livro de Casamento (1837-1884)

63

São poucos os casos em que outros escravos serviram como testemunhas de casamento

de escravos, apenas seis cativos serviram como tal. Um caso interessante é o de Zacarias e

Maria, ambos eram escravos do Padre Sebastião Ribeiro Lima e oficializaram o matrimônio

em 30/05/1858 tendo como testemunhas os escravos Apagidio e Ludugero, pertencentes a

Jerônimo Sousa Nunes Boson. A partir dessas informações, acredita-se na importância dada

pelos escravos às testemunhas dos casamentos. Certamente, Zacarias e Maria, quando

escolheram as suas testemunhas, buscaram tecer redes de proteção ou até mesmo fortalecer os

laços de solidariedade, provavelmente, já existentes entre eles. O contato entre escravos de

diferentes senhores sugere a existência de certo grau de mobilidade espacial atribuído aos

escravos, pois se entende que a “[...] circulação com ’autonomia’ dos escravos não era

exclusivamente do mundo das cidades coloniais e imperiais”, ocorrendo também no meio

rural (LIMA e MELO, 2004, p. 130).

A respeito da circulação dos escravos pelo território das fazendas, verifica-se, nas

fontes acessadas para esta pesquisa, que, pelo menos, nove uniões matrimoniais ocorreram

entre o período de 1837 e 1884 envolvendo escravos de diferentes propriedades. Sabe-se que

a proibição do casamento entre escravos pertencentes a diferentes senhores constituía-se em

um dos principais empecilhos para a união matrimonial dos cativos. Segundo Schwartz

(1988), os senhores procuravam restringir o máximo possível o universo social do cativo.

Porém, as evidências encontradas nas fontes analisadas são de que, apesar das restrições

impostas pelos senhores, os escravos procuravam tecer estratégias de união e fortalecimento

do seu meio familiar e social para além das propriedades em que viviam. Vale ressaltar que o

estabelecimento desses laços de parentesco, através do matrimônio, partia de uma vontade de

ambos os noivos, isto é, a necessidade de constituir uma família em busca de proteção, de

sobrevivência e sociabilidade era mútua.

3.3 O casamento e a questão da ilegitimidade

A partir do levantamento de informações a respeito dos batismos de filhos de escravos

entre o período de 1871 e 1888, identificamos altas taxas de “ilegitimidade” de escravos. Essa

questão da ilegitimidade está relacionada a não oficialização dos casamentos segundo os

princípios da igreja católica. Nesse caso, a mesma não reconhece as relações consensuais de

escravos e, por esta razão, o nome do pai do rebento a ser batizado só aparece no assento de

batismo se a união entre os pais da criança for legitimada pela igreja. Na grande maioria dos

64

casos, a criança é considerada filho natural, ou seja, quando apenas a mãe é reconhecida no

ato do batismo. Esse “silenciamento” na documentação a respeito do pai da criança torna

ainda mais complexa à busca pelo entendimento dos arranjos familiares envolvendo escravo,

pois “[...] o cálculo das taxas de ilegitimidade das crianças escravas baseado nos assentos de

batismos nos diz muito pouco acerca da realidade vivida pelas famílias. Tais índices

revelariam uma ilegitimidade formal, ou seja, do ponto de vista legal, que poderia estar muito

distante da prática” (ROCHA, 1999, p. 101).

Ao analisarmos a tabela que segue (tabela 9), notamos que a ilegitimidade entre os

nascimentos de filhos de escravas em São Raimundo Nonato era expressiva. Pouco mais de

90% dos rebentos foram considerados filhos naturais, mas até que ponto o alto índice de

filhos naturais pode revelar a realidade das uniões entre escravos? Miridan Falci (1995, p. 77),

ao analisar as taxas de natalidade para o século XIX, no Piauí, identificou que, praticamente,

100% dos escravos eram ilegítimos, concluindo que essa alta taxa não se fazia por “casamento

legítimo”, porém a autora não descarta a possibilidade de permanência das uniões consensuais

envolvendo escravos.

TABELA 8 - Filiação legítima ou natural dos batizados. Paróquia de São Raimundo Nonato,

1871-1884

FILIAÇÃO NÚMEROS

ABSOLUTOS

PORCENTAGEM (%)

Legítima 23 6,6

Natural 326 93,4

Total 349 100

Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Livro de Registro de Batismo de filhos de escravos (1871-

1884).

Para a cidade de Salvador, Kátia Matoso (1988, p. 45) constatou que do total de 85

batismos de escravos realizados entre 1870 e 1874, 100% deles correspondiam a crianças

ilegítimas. No entanto, a autora faz uma ressalva ao destacar que as altas taxas de

ilegitimidade não correspondiam apenas à população escrava, segundo Matoso, 62% da

população livre de Salvador também era ilegítima. Para São Raimundo Nonato, se as taxas de

ilegitimidade entre escravos eram elevadas, para a população livre ocorre o contrário, os

números de filhos naturais eram modestos.

65

Sheila de Castro Faria (1998, p. 325) procura identificar os “lugares de ilegitimidade”

de escravos em freguesias do Rio de Janeiro durante os séculos XVII e XIX, e aponta um

índice de mais de 40% de filhos legítimos, sendo que, para algumas freguesias, mais de 83%

dos batizados eram de filhos de escravos casados oficialmente. A autora chama a atenção para

o aumento dos índices de ilegitimidade no século XIX, que estaria ligado às leis contra a

separação de casais e a entrada de africanos no Rio de Janeiro até 1850. Para Sheila Faria, se

anterior às leis que proibiam a separação das famílias, as uniões matrimoniais entre escravos

eram difíceis, após esse tipo de proibição, os senhores passaram a ter certa resistência no que

diz respeito à oficialização das uniões entre seus escravos, consequentemente as taxas de

ilegitimidade aumentaram. Porém, o casamento não é a única base para os estudos sobre

família, para além da oficialização matrimonial, a formação familiar também podia ocorrer

através de uniões consensuais, pois, em muitos casos, o fato do pai não aparecer nos registros

de batismo não significa dizer que não havia vida familiar. Além disso, a família matrifocal

(mães e filhos) e o compadrio devem ser entendidos como formas de organização e de

estabelecimento de laços familiares. Roberto Guedes enfatiza que:

[...] não se pode afirmar que não houvesse uniões sexuais entre os cativos,

mas apenas que elas surgiram fora da norma católica. Deste modo, o que se

está a afirmar aqui é que a família, entre os cativos não passava,

necessariamente, pelo reconhecimento social dos padres que fizeram os

assentos de batismo (FERREIRA, 2000, p. 146).

Desse modo, devemos considerar que essa questão da ilegitimidade é algo que deve

ser relativizada, principalmente se analisarmos algumas situações que giram em torno do

cotidiano desses sujeitos escravizados. Em primeiro lugar, podemos supor que, em alguns

casos, o rebento era filho de pais pertencentes a diferentes senhores, residindo em fazendas

diferentes, o que nos leva a “imaginar as dificuldades que podiam surgir quando este tipo de

união ocorria: residências diferentes, separação forçada, conflitos sobre tratamento humano e

direitos de propriedade” (SCHWARTZ, 1988, p. 313). Nesse caso, inúmeras questões

poderiam atuar como empecilho para a presença do pai do rebento no ato de batismo do seu

filho.

Em se tratando do número de filhos de escravas considerados naturais pela igreja no

ato do batismo, devemos atentar para a diversidade das relações envolvendo esses sujeitos. A

saber, das mães escravas que levaram seus filhos a pia batismal, certamente, boa parte delas

possuía um parceiro e mantinha relações consensuais, porém a igreja Católica não reconhecia

esse tipo de relação por não ser oficializada segundo seus dogmas. Dentro dessa teia de

66

relações, podia haver também mães cativas que assumiam sozinhas a responsabilidade pelos

filhos e, finalmente, a possibilidade de que muitos casais oficializaram a união dentro das

exigências religiosas algum tempo depois do batizado de seus filhos.

Conforme gráfico que segue, dos 349 registros de batismos realizados entre 1871 e

1888, 93% apresentam apenas o nome da mãe, sendo considerados filhos ilegítimos ou

naturais32

. Contudo, não podemos interpretar esse percentual como sendo resultado de uma

população escrava promíscua e sem interesses em estabelecer relações familiares, pelo

contrário, acreditamos que, para o cativo sertanejo, estabelecer laços de parentesco era

fundamental para a sua sobrevivência no mundo da escravidão e “[...] de nenhuma forma, os

baixos índices de uniões legítimas entre a população negra, desqualifica a sua experiência de

vida familiar” (REIS, 2010, p. 118).

GRÁFICO 5: Percentual da filiação de filhos de escravas batizados entre 1871

e 1888.

Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Registro de Batismo de Filhos de escravos

(1871-1888).

É certo que não podemos deixar de considerar a existência de outras questões que

envolvem o cotidiano do cativo sertanejo, como é o caso das particularidades do modelo

econômico da região que pode ter influenciado sobre as diferentes organizações familiares. Os

32

No entanto, é necessário esclarecer que o fato de ter filhos considerados ilegítimos ou naturais, por não haver

uma união entre o casal segundo os moldes da Igreja Católica, não significa desconsiderar a existência e

estabilidade de uma família.

67

registros de batismo analisados revelam um total de 17 uniões formais, isto é, a mãe e o pai do

rebento são mencionados no assento de batismo, com destaque para uniões matrimoniais

envolvendo casais escravos pertencentes ao mesmo proprietário.

Esse tipo de matrimônio repetiu-se por 12 vezes, o que nos faz considerar que, apesar

das possibilidades para formação de casais serem menores nos pequenos plantéis (devido a

pequena posse escrava e ao mesmo tempo a maioria de mulheres em relação a homens), os

escravos do sertão piauiense possuíram maiores possibilidades de sacramentar as uniões entre

aqueles de mesmo proprietário. Devemos lembrar ainda que a maior convivência entre os

cativos e também a preferência dos proprietários por casamentos envolvendo seus próprios

escravos podem ter sido fatores que tornaram as uniões mais viáveis.

Por outro lado, a hipótese defendida por Sheila Faria (1998, p. 310) de que as

determinações das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia sobre os casamentos de

escravos, “[...] induziram proprietários a impedir o casamento de seus escravos com os de

outros donos”, pode ser confirmada também para a região do sertão do Piauí. Nos registros de

batismo analisados, localizamos a ocorrência de apenas um matrimônio entre escravos de

diferentes propriedades, o que nos faz imaginar que os senhores, além de não incentivarem,

também proibiam esse tipo de união. Conforme Robert Slenes (1999, p. 75),

Os senhores de escravos em Campinas praticamente proibiam o casamento

formal entre escravos de donos diferentes ou entre cativos e pessoas livres.

(Na amostra da matrícula de 1872, não existem uniões matrimoniais que

cruzem a fronteira entre posses e há apenas alguns casamentos entre

escravos e libertos; além disso, nos assentos de casamento da Igreja ambos

esses tipos de união são raros.) Os senhores Campineiros não eram atípicos

nesse respeito; em outras localidades para as quais existem dados, a mesma

’proibição’ existia. Em outras palavras, e invertendo a perspectiva, o escravo

que queria casar-se pela Igreja quase sempre tinha que encontrar seu cônjuge

dentro da mesma posse.

A despeito do pequeno número de registros de uniões formais localizado na

documentação pesquisada, alguns casos chamam a atenção por algumas especificidades

envolvendo as relações entre cativos, livres e libertos no sertão piauiense. Em alguns desses

casos, ocorre o registro de uniões envolvendo casais de diferentes propriedades e até mesmo

de condição jurídica distinta, um exemplo disso são as relações consideradas mistas, ou seja,

casamentos envolvendo cônjuges de condição jurídica diferente, sendo identificadas uniões

entre livre e liberto, escravo e liberto, livre e escravo. É o caso do casal Jerônimo Alves de

França, de condição livre, e Luiza, escrava de Luís Correia Lima Júnior. Pais de Jerônimo,

68

mulato, nascido em 20/06/1872, levaram o rebento a pia batismal em 25/11/1872, formando

compadrio com Antônio, escravo de João Macedo Peixoto e Ana Clara de Farias Pindaíba33

.

O casal oficializou a união em 12/08/1872, porém tudo indica que já mantinham

relação estável anterior ao matrimônio34

. Provavelmente, o casamento oficial ocorreu pela

necessidade de batizar o filho com o reconhecimento da paternidade, visto que a igreja

Católica não reconheceria o rebento como filho legítimo já que era fruto de uma relação

consensual. Esse tipo de relação em que um dos cônjuges era livre e o outro escravo podia ser

utilizado como um meio de viabilizar a conquista da liberdade do cônjuge cativo, pois, com

um dos cônjuges sendo livre, havia maior possibilidade de conseguir recursos para a compra

da alforria do outro.

Certamente, essa estratégia efetivou-se para este casal, pois, em seis de julho de 1884,

Luiza e seu marido Jerônimo Alves de França apadrinharam Antonio, filho de Roberto e

Marta, então escravos de Virgilina Constantina Boson e Lima35

. No assento de batismo do

rebento Antonio, Luiza, agora, era indicada como liberta e com o sobrenome Alves de França.

Infelizmente, não foi possível localizar a carta de alforria da escrava Luiza, pois, através

desta, poderíamos, então, inferir a respeito da compra de sua liberdade pelo seu marido,

porém acreditamos que a mesma possa ter alcançado a liberdade nessa situação e que

possivelmente ocorreu muito tempo antes do ato de batismo de seu afilhado Antonio.

Obviamente que devemos considerar os possíveis significados que esse tipo de união

podia ter tanto para livres e libertos como para cativos, mais do que uma busca pela liberdade,

os arranjos familiares seriam também uma necessidade de garantir proteção e solidariedade no

mundo da escravidão. Isabel Cristina dos Reis (2007, p. 84) lembra que: “[...]

Independentemente do estatuto jurídico dos indivíduos, se a união matrimonial era consensual

ou legitimada, fazer parte de uma família fazia muita diferença, pois podia ser garantia de

amparo nos momentos de necessidade”. Em muitos casos, essa necessidade de garantir

proteção e ajuda também pode ser considerada como uma expectativa nutrida pelos casais de

escravos.

Seria por exemplo a trajetória do casal de cativos João (24 anos) e Margarida (26

anos), pertencentes a João José da Silva, proprietário da fazenda Oiteiro. Os escravos

33

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888. 34

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento, 1864-1875. 35

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888.

69

oficializaram a união no dia 18 de julho de 1871,36

e seis anos depois (05/08/1877), num ato

de desobriga, na mesma fazenda, batizaram o rebento de nome Tertuliano, que teve como

padrinhos Espiridião José Rodrigues, livre, e Boaventura Maria de Jesus, escrava liberta.

Livres também eram as testemunhas do casamento e diferentemente dos padrinhos de

Tertuliano, estes, possivelmente, eram parentes próximos ao proprietário, pois possuíam

mesmo sobrenome. O que dificulta o cruzamento das informações, nesse caso, é a ausência do

nome das mães dos nubentes no registro de casamento, no entanto, essa situação permite

entrever que esses cativos utilizavam o casamento e o batismo como um meio de ampliar os

espaços de sociabilidade, optando por uma verticalização do parentesco ritual.

Em sete de junho de 1871, Boaventura Maria de Jesus, escrava liberta, 32 anos, havia

oficializado a união com Tibério, 30 anos, escravo de José Raimundo da Silva, na Fazenda Pé

do Morro. 37

Serviram como testemunhas o proprietário de Tibério e José Malaquias da Silva,

que também era livre. Provavelmente, Boaventura ajudou seu marido Tibério a conquistar a

liberdade. As trajetórias dos casais Jerônimo Alves de França e Luiza, João e Margarida,

Boaventura e Tibério, são alguns exemplos de que, apesar das adversidades existentes no

mundo escravista, a união entre casais, seja de diferentes propriedades ou até mesmo de

condições jurídicas distintas, era possível de ser conquistada.

Apesar de as informações contidas no recenseamento geral do império revelarem que

mais de 90% dos escravos em São Raimundo Nonato eram solteiros em 1872, devemos

considerar que, embora seja um dos levantamentos populacionais mais completos para o

período e forneça informações sobre a população escrava, os dados apresentam

incompatibilidade com os dados levantados de outras fontes. Na tabela 5 (cinco) apresentada

no item anterior deste capítulo, que trata da frequência de casamentos envolvendo escravos a

partir dos registros de casamento, o número de escravos que oficializaram a união através do

matrimônio é superior ao número apresentado pelo censo. Porém, como para os dois

levantamentos, o número de casamentos de escravos é modesto se comparado a outras regiões

do Brasil, algumas questões podem ser levantadas a respeito dos significados do matrimônio e

da ilegitimidade.

36

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamentos, 1864-1875. 37

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamentos, 1864-1875.

70

TABELA 9 – Distribuição da População Escrava por estado civil em São Raimundo Nonato,

1872.

Freguesia de São Raimundo Nonato-PI

Estado Civil

Homens

Mulheres

Total

Abs. % Abs. % Abs. %

Casado/a 4 1,8 3 1,0 7 1,3

Solteiro/a 219 96,1 298 98,3 517 97,4

Viúvo/a 5 2,2 2 0,7 7 1,3

Fonte: Recenseamento Geral do Império, 1872.

Se o número de matrimônios envolvendo homens e mulheres de condição escrava

atingiu pouco mais de 3%, poderíamos, logo, inferir que o casamento entre escravos não

estava entre as estratégias de ampliação das redes sociais. No entanto, imaginamos três

situações que poderiam explicar esse abismo existente entre os índices anteriores.

Em primeiro lugar, as uniões consensuais certamente não estão incluídas nesses

números, sabemos que a igreja Católica não reconhecia os amancebamentos como relações

legítimas, além disso, existiam inúmeros entraves burocráticos para a oficialização do

casamento. Dentre as exigências para a oficialização do matrimônio, estavam a comprovação

por parte do casal do batizado e o processo de denunciações que era realizado durante três

domingos seguidos na freguesia onde seria realizado o casamento, bem como na localidade

onde o casal teria residido após os 14 anos, para os homens, e 12 anos, para as mulheres, com

o objetivo de evitar a bigamia (SILVA, 1998, p. 191).

Outra questão que poderia ser um agravante para as uniões entre escravos diz respeito

às leis que, a partir do século XIX, impediam a separação de casais escravos e de seus filhos.

Sheila de Castro Faria38

observa que essas leis teriam desestimulado por parte dos senhores a

permissão de tais uniões, principalmente se fosse uma união entre escravos de diferentes

propriedades. A documentação analisada assinala um aumento significativo de uniões entre

escravos legitimadas pela igreja Católica a partir de 1871. Nesse caso, como discutiremos

mais adiante, consideramos a possibilidade de que muitas dessas uniões entre escravos, livres

38

FARIA, Sheila de Castro. Op. cit. 1998. Ver especificamente o capítulo 2.

71

e libertos, que foram oficializadas a partir desse período, já existiam, porém em caráter

consensual.

E, por último, com base nos dados da tabela 1 (um), já mencionados anteriormente, a

desproporcionalidade entre o número de homens e de mulheres pode ter dificultado para que

as uniões entre escravos ocorressem. Como já mencionado em capítulo anterior (Vide:

capítulo 2), a documentação assinala que o número de mulheres era bem superior ao número

de homens em idade fértil. Porém, como narra Schwartz (1988, p. 311), devemos considerar

que “[...] a escassez de casamentos na igreja não são de modo algum, uma medida da

realidade escrava e da capacidade dos cativos de criar e manter laços de afeição, associação e

sangue que tivessem um significado real e permanente em suas vidas”. É possível que as

relações consensuais envolvendo escravos fazia-se presente em grande número no sertão do

Piauí, portanto, “dizer que um casal não era casado e que seus filhos eram ilegítimos, não

significava que eles não formavam uma unidade familiar, ainda que legalmente pudessem ser

incapacitados por certos aspectos” (SCHWARTZ, 1988, p. 310).

Além de uniões formais, isto é, oficializadas pela igreja e que evidenciam a formação de

família nuclear envolvendo escravos, nos assentos de batismo analisados, salta aos olhos a

presença de famílias matrifocais, ou seja, formadas pela mãe e seus filhos sem a presença da

paternidade. Porém, devemos considerar que apesar da documentação silenciar o nome do pai

do rebento pelo fato de não haver uma união legitimada pela igreja entre o casal,

possivelmente, em muitos casos, havia a permanência de uniões consensuais.

O cruzamento de informações contidas em diferentes fontes (inventário post-mortem,

assentos de batismo e registro de casamento) torna possível a identificação de alguns casos

que revelam a existência dessas famílias compostas apenas pela mãe e pelos filhos e que,

apesar de não indicarem o estado civil da mãe, fazem crer na possibilidade de união

consensual. Vejamos alguns exemplos de cativas que viviam nas mesmas propriedades que

outros escravos, tiveram pelo menos quatro filhos num espaço de tempo considerável e, em

razão disso, possivelmente mantiveram algum tipo de relação com outro escravo. Damiana,

escrava de Maria Honorata dos Anjos, vivia na Fazenda Curral Novo, onde, provavelmente,

deu à luz a cinco rebentos: João, nascido em oito de abril de 1872; Vitória nasceu em agosto

de 1873; Maria, em julho de 1874; Sebastião, em fevereiro de 1878 e, em setembro de 1879,

nasceu mais uma menina que também recebeu o nome de Maria.39

Dos cinco filhos, apenas

Maria, nascida em 1874, teve como padrinhos um casal de escravos, Anastácio pertencia a

39

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888.

72

Isidoro Pereira do Rego, proprietário de parte das terras na Fazenda Curral Novo, e Sabina,

era escrava de Maria da Conceição, proprietária de terras na Fazenda Sete Lagoas. As demais

crianças foram apadrinhadas por pessoas livres, dentre elas, Josefa Benta dos Anjos, irmã de

Maria Honorata dos Anjos.

Localizamos a escrava Damiana entre os “bens” arrolados no inventário de sua

proprietária40

. Havia, em seu domínio, oito escravos, sendo dois do sexo masculino,

Francisco, crioulo de 20 anos, e Adeodato, africano, 40 anos; e seis do sexo feminino, a saber:

Benedicta, 11 anos, Ludugera, 16 anos, Cosma, cinco anos de idade, duas escravas de nome

Maria e Damiana. As informações contidas nesse inventário a respeito dos escravos são muito

poucas, nesse caso, apenas a idade, cor/origem e a avaliação foi registrada para praticamente

todos os escravos, a exceção ocorre com a escrava Damiana, pois as únicas informações

fornecidas sobre a mesma são a cor, a condição de saúde e avaliação. Damiana, cabra, foi

avaliada em 100$000, valor considerado baixo se comparado ao de outras escravas da mesma

propriedade.

Contudo, a avaliação pode estar relacionada à idade (que não é mencionada no

documento), mas, especialmente, a condição de saúde de Damiana, ela era “aleijada de uma

mão”, e certamente apresentava dificuldades para desenvolver determinadas atividades no

dia-a-dia. As escravas de nome Maria, de 20 “pouco mais ou menos” e de 13 anos, foram

avaliadas em 450$00 e 500$000, respectivamente41

. Seriam estas as filhas da escrava

Damiana? O inventário não demonstra a existência de vínculo familiar entre Damiana e as

escravas de nome Maria, porém é possível que se trate de mãe e filhas.

A presença do pai também não é discriminada no inventário, fato comum já que a

situação jurídica do filho estaria vinculada a da mãe. A ausência da paternidade nos registros

de batismo e também no inventário não significa que as crianças não conheciam ou até

mesmo conviviam com seu pai, nem tampouco podemos descartar a existência de uma união

consensual duradoura entre Damiana e o pai das crianças. O entrecruzamento de um conjunto

de fontes42

permite identificar a presença em solo piauiense de famílias nucleares estáveis,

como também de unidades familiares matrifocais que, apesar da não oficialização da união

entre mães e pais escravos segundo a legislação da igreja, se faziam presentes no convívio

familiar.

40

Fórum de São Raimundo Nonato-PI. Inventários Post-Mortem de 1869-1890. Documentação não catalogada. 41

Ibidem. 42

Para este caso, utilizamos os assentos de batismo, registros de casamento e inventários post-mortem.

73

[...] Devemos ter em mente desde já que a formação de unidades conjugais e,

em última análise, de famílias, não dependia do casamento consagrado pela

Igreja, quer para os escravos, quer para os livres. Dizer que um casal não era

casado e que seus filhos eram ilegítimos não significa que eles não

formavam uma unidade familiar, ainda que legalmente pudessem ser

incapacitados sob certos aspectos (SCHWARTZ, 1988, p. 310).

Neste sentido, procuramos desvendar alguns traços do viver escravo no sertão piauiense

e que possam revelar a existência e os significados que a família escrava possuía para cativos,

libertos e livres.

74

4 TRAJETÓRIAS FAMILIARES: OS SIGNIFICADOS DAS REDES DE

PARENTESCO CONSANGUÍNEO E COMPADRIO

4.1 Laços de compadrio: o parentesco entre as pequenas posses escravas

As últimas duas décadas do século XXI têm assistido ao crescimento dos estudos

sobre redes de sociabilidade que existiam entre os escravos no século XIX. Nessa perspectiva,

diversos estudos vêm demonstrando que, ao longo dos anos, os escravos construíram redes de

solidariedade que, de acordo com as circunstâncias das diferentes conjunturas históricas,

garantiram direitos, criaram melhores condições de vida e, para alguns, trouxeram a

liberdade43

.

Fortalecendo essa ideia, Florentino e Goés entendem que, em relação aos escravos, o

sacramento do batismo foi uma oportunidade aproveitada por eles para tecer laços de proteção

e ajuda mútua. O estabelecimento e a manutenção de relações de parentesco, por exemplo,

representavam uma grande conquista para os escravos, visto que, através dessas estratégias,

esses cativos podiam conseguir estreitar relações parentais com homens livres, forros e outros

escravos, e, nesse último caso, consequentemente, mantinham vivos os laços de solidariedade

entre eles.

A esse respeito, Florentino e Goés (1997, p. 157) afirmam que:

[...] restituíam aos cativos um tanto da humanidade que sequer os seus

senhores ousaram expropriar: a capacidade de criar e viver sob normas

intrínsecas ao humano. Sabe-se hoje, que a escravidão e o parentesco não

são experiências excludentes; o cativo não abortou a família escrava [...].

É certo que, apesar das limitações impostas pelo sistema escravista, os cativos

procuravam “criar formas sociais e culturais que lhes proporcionassem consolo e apoio

naquele mundo hostil” (SCHWARTZ, 1988, p.310). No Brasil, são vários os estudos que

discutem o parentesco espiritual entre escravos, livres e libertos, como uma das estratégias

utilizadas pelos cativos para conquistar alguma proteção e até mesmo mobilidade social44

.

43

Sobre essa temática ver: SOUZA, Sonia Maria de. Terra, família e solidariedade...: estratégias de

sobrevivência camponesa no período de transição – Juiz de Fora (1870-1920). Bauru, SP: Edusc, 2007.

MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do

Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. GUDEMAN, Sthephen e SCHWARTZ, Stuart. Purgando o

pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia do século XVIII, In: REIS, João José (Org.)

Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. 44

GUDEMAN, Stephan & SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos

na Bahia no século XVIII, in: João José Reis (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro

no Brasil, São Paulo: Brasiliense, Brasília CNPq, 1988. FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal família e

75

Ao analisarmos os registros de batismo - principal fonte de consulta sobre essa

temática -, surgem inúmeras inquietações em torno do compadrio, e sobre este já são

apontados alguns padrões quando o assunto é o batismo de escravos no Brasil.

O batismo cristão, além de significar a inserção do pagão na atmosfera da igreja

Católica, representou uma forte instituição na sociedade brasileira, pois, na ausência do

registro civil, o “registro da vida das pessoas passava pelo domínio do catolicismo” (FARIA,

1998, p. 307). Desse modo, os registros de casamento, batizado e óbito sob a responsabilidade

da igreja assumem também um caráter civil no conjunto das relações. Os laços estabelecidos

entre os cativos e seus padrinhos extrapolavam as barreiras do mundo cristão, atingindo uma

dimensão social, podendo ser utilizados para garantir relações aproximadas com pessoas de

condição social diferente ou mesmo para fortalecer os laços de parentesco já existentes.

De acordo com Stuart Schwartz (1988, p. 330):

[...] Seguramente a ‘família’ estendia-se muito além dos limites de qualquer

unidade residencial. É sempre muito difícil recapturar tais laços, mas no ato

ritual do batismo e no parentesco religiosamente sancionado do compadrio,

que acompanha esse sacramento, temos uma oportunidade de ver a definição

mais ampla de parentesco no contexto dessa sociedade católica escravocrata

e testemunhar as estratégias de escravos e senhores dentro das fronteiras

culturais determinadas por esse relacionamento espiritual.

Como apresenta Stuart Schwartz, a relação de compadrio gerada pelo batismo

produzia um “parentesco espiritual” entre os afilhados e seus padrinhos, bem como entre os

padrinhos e os pais da criança. Os padrinhos eram considerados pais substitutos de seus

afilhados e, portanto, frequentemente, os escravos procuravam “[...] pessoas de consideração

para apadrinharem os seus filhos [...]” (1988, p. 130-131). Partindo desse pressuposto, a

ampliação da família escrava podia acontecer através da relação de compadrio estabelecida

pelo sacramento do batismo.

A partir do levantamento de dados, através dos registros de batismo acondicionados na

Cúria Diocesana da Igreja Catedral de São Raimundo Nonato-PI, buscamos compreender qual

a importância do batismo para homens livres e escravos, e principalmente qual o significado

para as mães escravas dos laços de parentesco estabelecidos através do apadrinhamento de

seus filhos durante esse período. Como já ressaltado em momento anterior, o recorte temporal

utilizado para este estudo compreende os anos de 1871 a 1888, período que foi marcado por

compadrio entre escravos na freguesia de São José do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Niterói:

Universidade Federal Fluminense, 2000.

76

um conjunto de intensas mudanças na atmosfera social do país. Dentre elas, a aprovação da

Lei do Ventre Livre, em que, a partir da mesma, os filhos nascidos de ventre escravo seriam

considerados livres.

O foco de estudo está em torno desta Lei, porque objetiva, especialmente, identificar

se ocorreu algum tipo de mudança no quadro de relações entre senhores e escravos, mais

especificamente, na prática de batismos de filhos de escravos dentro desse contexto.

Conforme as informações eram recolhidas, de antemão, percebemos que o número de

registros de batismo de filhos de mães escravas aumentou em relação aos anos anteriores, do

mesmo modo que os batismos passaram a ser registrados em livros específicos, isto é, um

livro foi reservado apenas para registrar batismos de filhos de ventre escravo.

Acredita-se que as informações a respeito do batismo dos rebentos não eram

registradas no momento do batismo, pois, em muitos casos, os registros não aparecem em

ordem cronológica de tempo e, além disso, muitas informações como a cor, a condição do

batizando, a condição jurídica dos padrinhos, não aparecem em muitos registros. Em geral, os

registros de batismo presentes na documentação analisada eram da seguinte maneira:

Aos oito dias do mês de julho do ano de mil oitocentos e setenta e dois, em

desobriga, na Fazenda Caracol, d’esta Freguesia de São Raimundo Nonato,

Província do Piauhy, Bispado do Maranhão, batizei solenemente e dei os

santos óleos à Silvano, crioulo, filho natural de Iphigenia, escrava de Dona

Maria Joaquina Dias, nascido aos dezenove d’outubro do mês passado, livre

em conseqüência da Lei dois mil e quarenta de vinte e oito de setembro de

mil oitocentos e setenta e um, foram padrinhos Belarminio Dias e Maria do

Patrocínio de Jesus. E para constar fiz e assinei este termo. Cônego

Sebastião Ribeiro Lima. 45

O registro de batismo mencionado é um exemplo de um documento pesquisado com o

maior número de informações a respeito do batizando. Apesar das poucas informações

contidas nos textos que correspondem a esses registros – nome da mãe, nome da fazenda e do

proprietário a que pertence; nome do pai quando ocorre, nome da criança, cor, data de

nascimento e de batismo; nome dos padrinhos, entre outros -, questões como a maior

frequência de registros de batismo nesse período, provocaram-nos algumas inquietações no

que diz respeito ao campo de ação dos escravos através do parentesco espiritual.

Compreender, portanto, se existe alguma relação entre a Lei do Ventre Livre e a

frequência de batismo nesse período, pode ajudar-nos a entender também se nas escolhas dos

padrinhos destas crianças encontra-se imbricado algum tipo de estratégia de sobrevivência,

45

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos (1871-

1888).

77

resistência, proteção, manutenção ou mesmo de ampliação das relações sociais entre senhores

e escravos. Assim, a utilização desses percentuais sobre o número de batismos, a condição

jurídica dos padrinhos, entre outros dados, além de fornecer informações sobre a população de

São Raimundo Nonato, permitirá pensar a respeito das estratégicas tecidas por escravos, livres

e libertos no contexto escravista do sertão piauiense.

A respeito das práticas de parentesco, especialmente o parentesco espiritual, Miridan

Falci (1995) concluiu que entre o total de 5.273 escravos no Piauí, cerca de 70% dos

padrinhos eram homens livres, sendo livres também em sua maioria as madrinhas, com raras

exceções entre padrinhos e madrinhas de grupo social distinto.

Essa preferência por pessoas livres para apadrinharem as crianças escravas também é

apontada por Stuart Schwartz (2001, p. 223-5). As pesquisas coordenadas pelo autor, nos

registros de batismo da paróquia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais (Curitiba), apontam

como um padrão nos séculos XVIII e XIX, o apadrinhamento de crianças escravas por

pessoas livres ou libertas. Segundo o autor, 70% dos batismos tiveram padrinhos livres, o que

revela que, talvez, houvesse reconhecimento da importância social do padrinho livre. Quando

havia apadrinhamento por outro escravo, o autor percebeu que a preferência era por escravos

de outras propriedades e, em sua maioria, o padrinho era livre e a madrinha escrava, o que

demonstra a possibilidade de redes de parentesco para além dos limites das propriedades.

O contrário é identificado por Ana Lugão Rios (1990, p. 56), em sua pesquisa sobre a

família negra na Paraíba do Sul. Destacando que a preferência era por padrinhos da mesma

condição, sendo que, do total de registros de batismo levantados, 57% dos padrinhos eram

escravos, 40% de pessoas livres e uma minoria de cerca de 3% eram de escravos libertos. Para

a autora, a preferência por padrinhos escravos é parte das intenções de ampliação e

manutenção da comunidade escrava através desta rede de parentesco construída por meio do

compadrio. Ela acrescenta ainda que apenas em pequenas escravarias a escolha de padrinhos

livres superava a de escravos.

As pesquisas desenvolvidas por Schwartz (1989) e Rios (1990) foram em regiões que

possuíam grandes propriedades e, consequentemente, grandes escravarias. Porém, apesar das

diferenças que estas regiões apresentam em relação ao sertão piauiense, os resultados e as

interpretações dos mesmos tornam-se muito importantes para a compreensão da dinâmica das

relações do sistema escravista. Apesar da heterogeneidade presente nas relações sociais do

sistema escravista, cada uma delas carregava os anseios de homens e mulheres escravizados

que puderam ser vivenciados através do parentesco consanguíneo e ritual.

78

E no caso de São Raimundo Nonato, quem os escravos escolhiam para apadrinharem

os seus filhos? Assim como os escravos das grandes propriedades de Curitiba durante os

séculos XVIII e XIX, os cativos sertanejos optaram, em grande maioria, por estabelecer o

parentesco ritual com pessoas livres. A partir dos dados da tabela quatro, percebemos que, dos

349 batizados de filhos de escravas entre 1871 e 1888, 86,4% dos padrinhos são pessoas de

condição livre e apenas 10,5% dos padrinhos possuíam a mesma condição social das mães

cativas, isto é, eram escravos. Essa informação levou-nos a pensar em algumas questões a

respeito das estratégias tecidas na pia batismal. Quais as razões que levaram um número

considerável de crianças a serem apadrinhadas por homens livres? Seria uma estratégia das

mães escravas para garantir a proteção dos seus filhos? Ou um mecanismo utilizado pelos

senhores para manter essas crianças em suas propriedades?

As informações contidas nos registros e analisadas durante a pesquisa evidenciam as

tentativas dos pais das crianças batizadas em estabelecerem uma aliança de parentesco

vertical, na medida em que o número de padrinhos livres é muito superior ao de padrinhos de

mesma condição social dos pais. Pessoas livres foram as que mais apadrinharam crianças

consideradas ilegítimas, isto é, filhos que, em sua maioria, são fruto de uniões consensuais e,

portanto, não reconhecidas pela igreja como legítimas. Esse padrão também é identificado por

Sílvia Brügger em Minas Gerais.46

Ela pondera que os filhos de mães cativas, considerados

ilegítimos pela igreja, foram mais apadrinhados por pessoas livres do que as crianças

legítimas. Esse padrão de escolha é entendido pela autora como uma tática que se constituía

numa espécie de aliança “para cima”, desse modo ao escolher padrinhos de status superior, as

mães procuravam garantir alguns benefícios para si e para os seus filhos (2007, p.289).

Outra característica dessas escolhas associa-se ao “lugar social” ocupado por alguns

padrinhos, que, além de livres, eram diferenciados dos demais através de distintivos que

representavam algum prestígio social, a saber: sacerdote, coronel, comendador, entre outras

patentes. Em geral, esse mesmo grupo era frequentemente escolhido para apadrinhar os filhos

de mães cativas, possivelmente porque “o compadrio tendia a ligar a família do batizando a

pessoas situadas num patamar equivalente ou superior da hierarquia social” (BRUGGER,

2007, p. 293), e, nesse caso, as mães procuraram tecer redes de parentesco ritual que

garantissem benefícios aos afilhados, como o de proteção. Sobre essas questões, o capítulo

46

Ver principalmente o capítulo 5 (cinco), dedicado especialmente ao estudo do parentesco ritual em diferentes

segmentos sociais.

79

três deste trabalho tem a intenção de aprofundá-las a partir de alguns casos que representam

os laços de parentesco vivenciados por estes sujeitos.

TABELA 10 – Condição Jurídica de Padrinhos e Madrinhas. São Raimundo Nonato, 1871

1888.

Condição

Jurídica

Padrinhos Madrinhas Padrinhos +

Madrinhas

Abs. % Abs. % Abs. %

Livres 315 90,3 288 82,5 603 86,4

Escravos 28 8,0 45 12,9 73 10,5

Libertos 0 0,0 1 0,3 1 0,1

Santos 0 0,0 7 2,0 7 1,0

N/C 6 2,0 8 2,3 14 2,0

Total 349 100 349 100 698 100 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Livro de Registros de batismo

1871-1888. N/C = Não consta.

Sabemos que, após a Lei do Ventre Livre47

, toda criança nascida de mãe escrava seria

considerada livre, porém ficaria sob tutela do Estado se caso o proprietário da mãe optasse por

não a manter até atingir os oito anos de idade. Certamente que a “maioria dos proprietários

mantiveram os filhos dos escravos em vez de entregá-los ao Estado” (COSTA, 2008, p. 57),

consequência disso, entre os períodos de 1879 e 1880, “apenas 52 ingênuos haviam sido

entregues ao Estado em todo o império” (JACINTO, 2008, p. 152). Possivelmente, muitos dos

filhos de escravas continuaram sob o poder dos proprietários de suas mães, sendo tratados

também como escravos.

Neste sentido, podemos considerar que a preferência por padrinhos livres pode ter sido

utilizada pelas mães escravas como um meio de garantir a sua proteção e a dos seus filhos,

pois, seguindo os preceitos católicos do parentesco espiritual, dificilmente o padrinho de uma

criança iria submetê-lo ao trabalho exaustivo e aos castigos físicos. Nesse contexto, para essas

mães escravas, “o batismo e o compadrio poderiam significar um passo em direção à

liberdade ou mesmo formas de minimizar as agruras do cativeiro e a sobrevivência”

(ROCHA, 2009, p. 259).

Ao analisarmos os registros de batizados de filhos de escravas, identificamos a

predominância dos filhos e das esposas de proprietários de escravos apadrinhando os filhos

47

A Lei no 2.040, de 28 de setembro de 1871, considera livre toda criança nascida de ventre escravo a partir dessa

data. Sobre o tema ver: COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8a Ed. São Paulo: UNESP, 2008.

80

dessas cativas. Stuart Schwartz (1988, p. 132), quando analisa as relações de compadrio na

sociedade da Bahia colonial, destaca alguns padrões nesse tipo de prática e compreende o

compadrio como um tipo de relação que vai além da dimensão religiosa, atingindo também o

campo social. Segundo esse autor, dificilmente os senhores apadrinhavam seus próprios

escravos, sendo que, na maioria das vezes, essa tarefa estava condicionada aos seus filhos ou

parentes mais próximos. O apadrinhamento desses rebentos, considerados livres em

decorrência da lei, pelos familiares do senhor de sua mãe pode ser considerada mais uma

estratégia utilizada pelo senhor no sentido de garantir a permanência do batizando em sua

propriedade.

No caso dos escravos de São Raimundo Nonato, verificamos que a escolha por

padrinhos de condição jurídica livre foi predominante. Desse modo, podemos considerar a

existência de, pelo menos duas, possibilidades em torno desse padrão. A primeira delas diz

respeito ao reconhecimento pelos cativos da importância social que os padrinhos livres

possuíam. Se considerarmos a importância atribuída ao ritual do batismo, bem como as

responsabilidades atribuídas aos padrinhos em torno de seu afilhado, - pois assumiriam a

responsabilidade de “pais espirituais” - de certa forma, compreenderemos o conjunto de

expectativas que envolviam as escolhas desses padrinhos pelos pais escravos. Além disso,

percebemos, na documentação analisada, certa importância atribuída ao ritual católico para

todos os segmentos sociais da época, inclusive para os escravos, se considerarmos o aumento

do número de batismo de filhos de escravos no período analisado.

Para a igreja Católica, os padrinhos e madrinhas “seriam os protetores de seus

afilhados, uma espécie de pais espirituais, com vínculo superior ao dos pais carnais, e, com

esse sacramento, o batizando adquiria igualdade como cristão e passaria a ter acesso às

cerimônias da Igreja” (VASCONCELLOS, 2002, p. 147), provavelmente esse aspecto

religioso passou a ser levado em consideração pelos pais escravos.

A segunda possibilidade associa-se à dimensão social atribuída ao batismo, revelada a

partir das preferências desses escravos ao estabelecerem parentesco vertical, isto é, com

pessoas de status superior (livres e libertas). Segundo Ellen Woortmann (1995, p. 294), “o

compadrio vertical, que implica relações com pessoas de status superior, caracteriza relações

de patronagem, ou pelo menos uma ideologia de patronagem”. Ainda segundo a autora, esse

tipo de compadrio, caracterizado por ampliar as redes de relações de solidariedade entre os

compadres, foi bastante comum nas regiões de campesinato brasileiro.

81

Nos termos de Stuart Schwartz, tanto escravos como pessoas livres tinham tendência a

escolher pessoas de condição jurídica igual ou superior a do batizando, no caso dos escravos,

acreditamos que estes desejavam conseguir, através do compadrio, algum tipo de proteção,

solidariedade e até mesmo a possibilidade de liberdade.

Analisando o gráfico 1 (um), constatamos que o número de padrinhos livres era

superior ao de madrinhas livres. O contrário ocorre entre padrinhos escravos, isto é, as

madrinhas escravas são maioria em relação aos padrinhos de mesma condição jurídica.

Possivelmente, esses pais, ao escolherem madrinhas escravas para apadrinharem os seus

filhos, utilizaram a possibilidade de ampliar laços de solidariedade entre a comunidade

escrava, mas, sobretudo, acreditavam que, em caso de morte da mãe, por exemplo, a madrinha

assumiria a responsabilidade de criar o seu afilhado.

GRÁFICO 6: Percentual de padrinhos a partir de sua condição jurídica

Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Livro de Registro de batismo 1871-1888.

N/C = Não consta

Outra característica dessas relações de parentesco com pessoas livres vincula-se ao

número expressivo de padrinhos e madrinhas que possuíam ligação familiar com o

proprietário desses escravos. Do total de 86,4% de padrinhos livres, pouco mais de 48% deles

possuíam alguma ligação familiar com o senhor de escravos, entre eles destacam-se filhos,

irmãos e sobrinhos. Essa predominância de padrinhos que possuíam ligações familiares com

os senhores leva-nos a considerar que, embora o senhor não apadrinhasse um rebento de

82

ventre escravo, os seus familiares estabeleciam essas relações. Nesse caso, podemos

considerar que, para esses pais escravos, esses laços verticais com compadres e comadres de

condição livre representavam uma tentativa de ampliar o campo social das alianças de

parentesco, bem como de ascensão social, o que nos demonstra claramente a existência dessas

relações.

Poderíamos considerar, para o caso de São Raimundo Nonato, a afirmação de Goés

(1993, p. 79) de que o número de escravos por propriedade poderia influenciar nas escolhas

dos padrinhos. Isto é, quanto maior a posse de escravos por propriedade, maior a

possibilidade de escolhas de compadres entre os próprios escravos. Nesse caso, o pequeno

número de escravos por propriedade em São Raimundo Nonato pode ter influenciado na

escolha por padrinhos livres.

Apesar da possibilidade de buscar padrinhos fora do grupo escravizado, uma

característica recorrente na documentação é a repetição dos mesmos compadres para mais de

uma criança batizada. É o caso de Agostinho, que estabeleceu compadrio com a escrava

Florência pelo menos três vezes. Verificamos que essa repetição de compadres foi comum

entre padrinhos escravos, mas também entre padrinhos livres, o senhor Manoel Antunes de

Macedo foi o que mais apadrinhou filhos de escravas no período em estudo, chegando a servir

de padrinho em oito batizados.

No que concerne ao apadrinhamento do rebento escravo pelo senhor, apesar de muitos

autores afirmarem que essa não era uma prática comum, a documentação analisada sinaliza o

estabelecimento de compadrio entre escravos e seus senhores em, pelo menos, sete registros

de batismo. Em um caso específico, encontramos Matias, filho legítimo de Romão e Maria,

escravos de Manoel Martins dos Santos, que apadrinhou o filho do casal em ato de desobriga

na capela da Fazenda Santa Maria. A madrinha também era livre, Maria Mateus de Jesus,

infelizmente não encontramos nenhum registro que demonstre se havia algum grau de

parentesco entre os padrinhos. No entanto, o que fica evidente é a tentativa desses pais

escravos de estabelecer laços verticais ascendentes, nesse caso, com o próprio senhor.

Evidencia-se aqui, a partir das fontes consultadas, que ao contrário do que prevalecia

na historiografia sobre a escravidão no Brasil, os pais escravos procuravam e obtinham

sucesso ao tentar estabelecer laços verticais ascendentes com seus senhores a partir do

batismo, no sertão piauiense, mais especificamente, na região de São Raimundo Nonato.

Quem também procurou estabelecer o compadrio com o seu senhor foi o casal Roberto

e Marta, escravos de Virgilina Constantina Boson e Lima, que batizaram o menino Antonio

83

em 06/07/1884 em São Raimundo Nonato, e tiveram como compadre Jerônimo Alves de

França e como comadre a senhora Virgilina, então proprietária do casal.

Para melhor compreendermos como se davam essas relações, buscamos interpretar as

estratégias utilizadas pelos cativos ao estabelecerem o compadrio com outros escravos,

pessoas livres e, em muitos casos, com familiares do seu próprio senhor.

Cecília (crioula) nasceu em 20/11/1871 e foi batizada quase dois anos depois, em

09/08/1873; Inias (negra) nasceu em 20/10/1873, batizada dez meses depois. Filhos do

mesmo casal, José e Eduvirges, escravos de Avelino Ribeiro Antunes, tiveram padrinhos de

condições sociais distintas. A primeira foi apadrinhada por pessoas livres, Manoel Sabino

Ribeiro Antunes e Vitalina Maria Ribeiro, provavelmente parentes do senhor. Já a menina

Inias, teve como padrinho um homem livre, Francisco José Quitarra e como madrinha a

escrava Severina, pertencente a Jezuína Clementina de Carvalho, que, provavelmente, seria de

outra fazenda48

.

Partindo desse caso, podemos destacar algumas questões a respeito das estratégias

tecidas por esses escravos para estabelecerem vínculos de parentesco. Considerando que os

cativos tinham a possibilidade de escolha de padrinhos e, portanto, teriam opções de

estabelecer relações de parentesco mais amplas, o que fez com que os pais de Inias elegessem

uma escrava para apadrinhar a sua filha? Apesar da maioria das escolhas serem por padrinhos

livres, segundo Stuart Schwartz (apud Machado, 2006. p.52), “uma estratégia paralela e

prática consistia em levar em conta a possibilidade de, em caso de morte da mãe, a madrinha

escrava assumir a responsabilidade pela criação do afilhado”.

Acreditamos que a escolha de uma madrinha escrava, pertencente a um proprietário

diferente, representa a clara tentativa de estabelecer relações de solidariedade ou até mesmo

de estreitar e/ou consolidar os laços já existentes entre esses escravos. No caso da escolha de

José e Eduvirgens por pessoas livres para apadrinharem a menina Cecília, torna latente o

interesse em conseguir proteção, mobilidade e certos privilégios. As alianças de parentesco

para esse casal ocorreram em universos distintos, o que demonstra as inúmeras possibilidades

de estabelecerem uma gama de relações entre os diferentes segmentos da sociedade.

Clara, escrava pertencente a José Antunes Piauilino de Macedo deu a luz a menina

Valentina em 14 de fevereiro 1877 e que foi batizada um ano após o seu nascimento, na

Fazenda Casa Nova. Casada com José Manoel Pereira, provavelmente um homem livre, pois

48

Os registros de Batismo de Cecília e Gertrudes encontram-se, respectivamente, nas páginas 5 e 7, do Livro de

Um de Batismo contendo apenas registros de filhos de cativos, entre os anos de 1872 e 1888, armazenado na

Cúria da Catedral de São Raimundo Nonato-PI

84

não há menção de que seus pais foram escravos ou forros, nem da sua condição social no

registro de batismo, Clara escolheu para padrinhos de Valentina duas pessoas livres, José

Newton de Carvalho e Josefina Camará.

No primeiro caso, a escolha por padrinhos livres revela, mais uma vez, que esses

escravos possuíam expectativas em relação ao parentesco espiritual e que, em muitos casos, a

escolha estaria associada à esperança de que os mesmos pudessem conquistar a liberdade.

Para Schwartz (1985, p. 333), além disso, prevaleciam, na escolha dos padrinhos,

“considerações de cor e condição social”. Porém, no tocante aos rebentos filhos destas mães

cativas, a liberdade não seria o maior dos anseios, visto que os mesmos seriam livres em

decorrência da Lei. Nesse caso, quais seriam, então, as expectativas de futuro para os rebentos

quando as mães escolhiam padrinhos livres para estabelecer o compadrio? Que esperanças

eram nutridas a partir do parentesco ritual? Segundo Alida Metcalf (1987, p. 240), os laços de

parentesco de escravos com pessoas livres “[...] representavam mobilidade social e

familiaridade com uma sociedade mais ampla”. Considerando que as crianças nascidas a

partir de 1871 eram livres, a escolha dos padrinhos de diferente condição jurídica e social,

visto que muitos são proprietários de terras, revela o desejo de conseguir proteção e melhores

condições de vida para as crianças.

Entretanto, os benefícios vislumbrados com o parentesco espiritual não faziam parte

apenas do mundo dos escravos, o proprietário e também os padrinhos possuíam interesses e

utilizavam suas estratégias para garanti-los. Um exemplo disso é o compadrio estabelecido

entre Maria, mãe de Claudina, parda, nascida em 1879, com o proprietário de terras Amadeu

Ruben de Macedo.49

Apesar das informações serem muito fragmentadas, o que não permite

confirmação, é possível que o senhor da cativa tenha utilizado o parentesco espiritual para

beneficiar-se, visto que Amadeu Ruben de Macedo possuía parentesco consanguíneo com

Manoel José Ruben de Macedo. E essa estratégia estendia-se para as outras três cativas do

proprietário, que também estabeleceram compadrio com Amadeu Ruben de Macedo. Esses

benefícios estariam ligados às garantias de manter o afilhado vinculado ao proprietário de sua

mãe. Portanto, “[...] o compadrio estabelecia um vínculo de mão dupla. Tanto os padrinhos

podiam se beneficiar dos trabalhos, dos préstimos e da fidelidade dos afilhados, quanto estes

esperavam contar com o cuidado, a proteção e o reconhecimento daqueles” (BRUGGER,

2007, p. 325).

49

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo (Filhos de escravas), 1871-1888.

Documentação não catalogada.

85

Ainda em se tratando dos padrinhos, é interessante atentar para a interpretação de

Miridan Falci que compreende os apadrinhamentos como uma escolha do escravo e também

do senhor: “

quem sabe se o apadrinhamento não teria sido um prêmio para aquela criança,

filha de uma escrava, que merecesse aquela consideração, uma amostra, significação de sua

importância para o grupo dos senhores?”(FALCI, 1995, p. 104). Concordamos que, apesar das

hierarquias presentes nessas relações, os escravos tinham as possibilidades de escolhas dos

seus compadres e comadres, e faziam uso desses mecanismos a fim de alcançarem alguma

vantagem nessa rede de relações.

O segundo filho do casal (Clara e Manoel), recebeu o mesmo nome do pai, Manoel,

nascido em 13/12/1880, foi apadrinhado em 01/03/1881, tendo como padrinhos, José Antunes

de Macedo e Nossa Senhora da Conceição.50

O menino Manuel, foi um filho de cativos que

teve como padrinho o senhor de sua mãe, situação considerada, como já mencionamos, pouco

comum no estabelecimento das relações de compadrio no contexto escravista. Com efeito,

para alguns historiadores da escravidão, eram raras as vezes em que senhores apadrinhavam

os filhos de seus escravos, confirmando a hipótese de que o parentesco espiritual era

incompatível com a propriedade escrava (GUDEMAN e SCHWARTZ, 1988). É certo que

essa relação de proximidade entre esses sujeitos através do compadrio não é tão comum para

o período em estudo, porém os poucos casos em que senhores tornam-se compadres de seus

escravos evidenciam a existência de possibilidades que poderiam garantir algum benefício

tanto para os escravos como para os senhores. Em estudo sobre o compadrio na Bahia, Stuart

Schwartz e Stephen Gudman (1988) identificam que poucos senhores apadrinharam os filhos

de suas escravas, porém destacam a preferência dos pais escravos por pessoas livres para

apadrinharem os seus filhos.

No que se refere à madrinha de Manoel, a sua proteção foi atribuída a Nossa Senhora

da Conceição. Segundo Miridan Falci (1995), esse tipo de apadrinhamento ligado à

espiritualidade não se caracterizou como uma prática comum. Em se tratando das fontes

analisadas nesta pesquisa, apenas sete casos (2%) de batizados estão relacionados ao

apadrinhamento espiritual, sendo que todos eles foram atribuídos a Nossa Senhora da

Conceição. A escolha por uma madrinha espiritual pode estar relacionada a uma

demonstração de religiosidade, ao pagamento de uma promessa feita pelos pais do rebento ou

50

Os registros de Batismo de Valentina e Manoel encontram-se, respectivamente, nas páginas 26 e 30 do Livro

de Batismo contendo apenas registros de filhos de cativos, entre os anos de 1872 e 1888, armazenado na Cúria

da Catedral de São Raimundo Nonato-PI

86

mesmo a possibilidade de proteção espiritual que a criança poderia receber. Além disso,

“Nossa Senhora aparecer como protetora, [...] é um demonstrativo de que eles estavam mais

interessados em uma proteção espiritual que material para os seus filhos” (SOUZA, 2007, p.

294).

Ao escolher como padrinho uma pessoa de status superior, Clara, ao que tudo indica

levou em consideração a possibilidade de que o padrinho livre pudesse proporcionar algum

tipo de amparo e de proteção para os filhos. Ao contrário de Clara, o casal José e Eduvirges,

ao que parece, possuía expectativas diferentes, pois procuraram reforçar os laços de

parentesco com membros da comunidade escrava e garantir a proteção do rebento, caso os

pais viessem a falecer.

De fato, a complexidade dessas relações parentais está imbricada em cada um dos

casos analisados, pois se as famílias cativas nutriam possibilidades de proteção, mobilidade e

de liberdade ao estabelecerem o compadrio com pessoas livres ou libertas, ao mesmo tempo

teciam como estratégia a possibilidade de fortalecer os laços de solidariedade já existentes

entre os escravos da mesma comunidade, quando escolhiam uma madrinha escrava para

apadrinhar os seus filhos.

No contexto da vivência entre escravos e demais grupos sociais, as relações eram

complexas e diversificadas. Para Josenildo Pereira, “entre os senhores e os escravos existiam,

particularmente, relações pessoais de dominação, de conflito, mas também de alianças e

convivência pacífica” (2001, p. 49), que podem ser identificadas nas estratégias de

estabelecimento de parentesco utilizadas por senhores e escravos. A despeito disso, acredita-

se que os senhores também possuíam seus interesses quando consentiam com o

estabelecimento de relações parentais envolvendo membros de sua família, pessoas livres ou

escravas de outras fazendas com seus escravos.

Exemplos como os expostos são muito comuns na documentação acessada.

Certamente, esses sujeitos escravizados, libertos, livres pobres, conviviam cotidianamente no

interior dessas propriedades dividindo as atividades de labuta com o gado, da lida com as

roças e atividades domésticas, e, consequentemente, estreitando laços de amizade e de

solidariedade. O resultado dessa convivência diária e a busca pela manutenção dessas relações

de solidariedade pode ser identificado nas atas de batismo. Vejamos algumas trajetórias que

podem revelar os significados dessas relações envolvendo esses sujeitos sociais.

87

4.2 Experiências familiares de escravos

Sabemos que o compadrio não se constituía como única possibilidade de ampliação

das redes de parentesco e, portanto, existiam outras relações que eram estabelecidas pelos

cativos e que demonstram as estratégias dos mesmos no tocante às alianças de parentesco e à

convivência entre estes e os senhores. Neste sentido, a família escrava pode dizer muito a

respeito das redes de sociabilidade que envolviam escravos, libertos e livres no contexto

escravista. Por esta razão, pretendemos, neste capítulo, compreender o estabelecimento desses

laços parentais de maneira mais aprofundada, tratando de alguns casos que mais chamaram a

atenção durante o desenvolvimento desta pesquisa.

Ao tratar do trabalho escravo e dos sacramentos batismais e matrimoniais na Província

do Piauí, Miridan Falci (1995) observou a formação de três tipos de família escrava: nuclear,

matrifocal e solitária51

entre os escravos do sertão do Piauí. Mas que tipo de família

predominava entre os escravizados de São Raimundo Nonato? Atualmente, já não se discute

sobre a existência ou não da família escrava, principalmente porque estudos recentes têm

mostrado que a estruturação familiar de escravos foi uma realidade no contexto escravista.

Compreender o seu significado para cativos e senhores tem sido a grande questão nos estudos

da escravidão. Entender quais as estratégias utilizadas pelos cativos quanto às alianças de

parentesco e, especialmente, qual o significado da família para cativos e senhores faz parte do

conjunto de questões pertinentes a essa temática.

A partir do cruzamento de informações contidas nos assentos de batismo, registros de

casamento e inventários post-mortem, procuramos compreender o significado de cada “peça”

existente nesse complexo quebra-cabeça que são as redes de parentesco envolvendo escravos.

Como mencionado na introdução deste trabalho, a pesquisa com as fontes primárias que

poderiam ser utilizadas para o cruzamento de informações sobre a trajetória de vida desses

sujeitos ficaram limitadas nos três tipos de fontes citadas Os testamentos, as listas de

matrícula e de classificação não puderam ser exploradas por essa pesquisa devido às

condições físicas e a não classificação e catalogação das mesmas, portanto, este trabalho

demandaria um tempo de estudos que ultrapassaria o limite do prazo para a conclusão de um

mestrado acadêmico. Entretanto, a utilização das fontes disponíveis para o levantamento

documental permitiu a elaboração de organogramas que pudessem representar as redes de

51

As famílias nucleares são entendidas como as que são formadas pelo casal e um ou mais filhos. Em seguida,

aquelas formadas apenas pelo casal, são as famílias solitárias. As famílias matrifocais, apresentam apenas a mãe

e seus filhos. (MOTA, 2012, p. 81).

88

relações existentes entre cativos, libertos e livres tanto pelo casamento, como pelo ritual do

batismo. O objetivo, aqui, é apresentar algumas das inúmeras teias de relações existentes e

que, em muitos casos, demonstram as possibilidades de formação e manutenção da família

escrava em São Raimundo Nonato.

O organograma em continuidade (figura 1) destaca a formação de uma família nuclear,

isto é, composta pelos pais e seus filhos. O casal Maria e Zacarias pertencia ao Pe. Sebastião

Ribeiro Lima, mesmo padre que celebrou o ritual de batismo dos quatro filhos deste casal. A

trajetória desta família pode ser acompanhada pelos assentos de batismo dos filhos e pelo

registro de casamento de Maria e Zacarias. Inicialmente, verifica-se um intervalo de quatorze

anos entre a oficialização da união, através do casamento, até o nascimento e batismo do

primeiro filho52

.

Esse fato não anula a possibilidade do casal ter outros filhos com datas de nascimento

durante esse intervalo de tempo, porém prefere-se utilizar a data de batismo do primeiro filho

como ponto referencial, visto que não foram encontrados registros de batismo de algum filho

do casal com data anterior. É certo que esses vinte e um anos entre a data do casamento e o

batismo do último filho53

, podem representar a possibilidade de existência de uma família

cativa estável no sertão piauiense, porém não é possível afirmar que essas famílias não se

encontravam vulneráveis à constante ameaça de separação. É o que Eric Foner (1988, p.17)

pondera quando afirma que “está claro que fortes laços familiares existiram durante a

escravidão, mas sempre foram vulneráveis às rupturas”. Desse modo, é possível que o casal

tenha tido outros filhos anteriores à oficialização do matrimônio ou mesmo após esse ritual e

que podem ter sido separados de seus pais por inúmeras circunstâncias, talvez por esse motivo

ocorra a ausência de outros filhos nos registros.

Dos assentos de batismo em que o casal é mencionado como pais do rebento, foram

localizados quatro registros entre 1872 e 1879. A partir do apadrinhamento dos rebentos é

possível verificar também as estratégias de parentesco ritual estabelecidas pelo casal,

especialmente pela escolha dos padrinhos, na maioria das vezes, pessoas de condição jurídica

diferente e que, muitas vezes, residiam em outras propriedades.

O primeiro filho do casal foi Raimunda, nascida em dezesseis de fevereiro de 1872, foi

levada a pia batismal em vinte e um de março do mesmo ano. Raimunda teve como padrinhos

52

Além de utilizar o nome como referencial de busca e cruzamento de informações, utiliza-se também, como

referência de início das relações, a data de nascimento do primeiro filho do casal. 53

Pode ser que outros filhos vieram após 1879, porém não foram localizados outros registros de batismo que

confirmassem essa possibilidade.

89

um casal de condição jurídica livre, Jerônimo de Sousa Nogueira Boson e Lima e Francisca

Adelino Lopes de Sousa Lima, ambos possivelmente parentes do proprietário do casal, pois

ocorre repetição de sobrenomes em três casos de apadrinhamento. Pouco mais de um ano

depois, nasceu Joaquina, a segunda filha do casal que foi batizada em maio de 1873 por

pessoas de condição livre, Licurgo de Paiva e Maria Constantina Boson e Lima (ver

organograma na sequência).

FIGURA 5 – Família do casal de cativos Zacarias e Maria.

As duas últimas filhas do casal receberam o nome de Maria. A primeira nasceu em

dezembro de 1876 e foi batizada em fevereiro de 1877, tendo como padrinho o proprietário de

escravos Luís Correia Lima e, como madrinha, a escrava Laurinda, cativa de Luís Correia

Lima. Essas informações revelam que havia possibilidade de estabelecer relações de

parentesco com pessoas livres ou escravas de diferentes propriedades e, sobretudo, que a

escolha de compadres e comadres partia de uma rede de relações e de interesses bem mais

complexas, visto que para a mesma família, por exemplo, ocorrem relações de parentesco

entre pessoas de condições jurídicas diferentes e, em alguns casos, envolvendo o senhor do

próprio escravo. A quarta filha do casal, que também recebeu o nome de Maria, nasceu em

abril de 1879 e foi batizada dois meses depois pelo casal Constatino de Souza Nogueira

90

Boson e Lima e Guilhermina Constantina Boson e Lima, ambos eram pessoas livres e

proprietários de escravos.

Consideramos que havia o interesse por parte do casal Zacarias e Maria de estabelecer

laços com pessoas de condição jurídica diferente, nesse caso, a rede de parentesco com

pessoas livres esteve praticamente concentrada na família Boson e Lima. Não é possível

afirmar sobre as razões destas escolhas, mas certamente havia um jogo de interesses tanto por

parte dos cativos como pelo seu proprietário ou ainda pelos padrinhos, o que se nota é que os

Boson e Lima possuíam relações de parentesco com o Pe. Sebastião Ribeiro Lima, e que isso

pode ter influenciado o casal de escravos na escolha dos padrinhos de seus filhos.

Possivelmente, entre os interesses contidos no estabelecimento de relações de

compadrio com pessoas livres, estava o de proteção, pois “[...] a possibilidade da separação de

familiares através da venda, na segunda metade do século XIX, existia e amedrontava

principalmente os escravos que viviam em pequenas propriedades” (ROCHA, 1999, p. 127).

Tecer essas redes de parentesco tanto com outros escravos, como pessoas livres,

proporcionava ampliar o raio de proteção e solidariedade.

No que concerne à única madrinha com a mesma condição jurídica do casal,

observamos a estratégia de garantir a manutenção das relações existentes entre os mesmos e,

ao mesmo tempo, a possibilidade de que seus filhos pudessem ser ajudados pela comadre

Laurinda, caso precisassem. Essa tentativa pode ser percebida também na escolha das

testemunhas do casamento do casal, ambas eram escravos e pertencentes a outros

proprietários de diferentes propriedades, ocorrendo, portanto, uma tentativa de ampliação das

redes de solidariedade entre a comunidade escrava nos dois casos.

A cativa Maria, por exemplo, também apadrinhou três rebentos, filhos de escravas que

pertenciam a diferentes proprietários e que viviam em outras propriedades, o que demonstra a

possibilidade que o cativo tinha de ultrapassar as barreiras da propriedade em que vivia e

estabelecer relações com outros cativos para além dos limites da fazenda. Como destacam

Florentino e Goés (1997, p. 90) “[...] na verdade, o que se buscava era aumentar o raio social

das alianças políticas e, assim, de solidariedade e proteção, para o que se contava inclusive

com ex-escravos, escravos pertencentes a outros senhores e, em casos eventuais, com alguns

proprietários”.

Outro caso de formação familiar e estabelecimento de parentesco é o da cativa

Amância, escrava de Jorge Ferreira de Oliveira, proprietário da Fazenda Tigre. Além de

Amância, foram encontrados registros de mais quartro cativas pertencentes a Jorge Ferreira de

91

Oliveira e todas elas possuíam, em média, cinco filhos cada uma. Amância batizou seis filhos

entre 1873 e 1884, sendo que dois destes eram do sexo masculino e os demais do sexo

feminino.

Nesse caso, a família de Amância seria considerada matrifocal, pois a formação desta

está em torno apenas da figura da mãe e dos filhos, em razão da ausência da paternidade dos

rebentos nos assentos de batismo. Porém, é necessário ressaltar, mais uma vez, que a ausência

do pai nos registros de batismo está relacionada principalmente ao não reconhecimento pela

igreja das relações consensuais existentes entre os pais das crianças, o que não significa que a

cativa Amância não possuía um companheiro. Tarcísio Botelho chama a atenção para essa

questão salientando que:

[...] a possível ausência do pai escravo deve ser posta em dúvida, já que pode

estar sendo influenciada pela documentação utilizada. Apenas os laços

conjugais legalmente sancionados eram levados em consideração. Assim

muitos núcleos familiares que apareciam constituídos apenas de mãe e filhos

poderiam na verdade contar com a presença de um parceiro masculino fixo,

que também dividiria atribuições e encargos (BOTELHO, 1994, p. 127).

Em segundo lugar, detaca-se a frequência, pelo menos em tese, de relações consensuais

entre casais que residiam em diferentes propriedades, principalmente para aqueles que

pretenciam ao mesmo proprietário, mas que desenvolviam suas atividades em propriedades

diferentes. E, no caso de Amância, a quantidade de filhos nascidos em curtos intervalos de

tempo, entre um e outro, leva a crer que havia um relacionamento estável.

Entretanto, outras questões podem explicar a ausência da paternidade nos registros.

Uma delas diz respeito a separação do casal principalmente por venda, este assunto já foi

mencionado em capítulo anterior em que se destaca, para esse período, a possibilidade de

venda de cativos do sexo masculino em grande número para outras regiões do país,

principalmente para a região Sudeste. Destarte, ocorre a impossibilidade de afirmar a presença

da parternidade, visto que não foi possível localizar o registro de casamento de Amância, pois

pode ser que a mesma não tenha oficializado a união com o pai das crianças, se for

considerado o fato de que muitos proprietários de escravos não apoiavam o casamento a fim

de não enfrentarem problemas com a lei, caso desejassem, futuramente, vender um dos

cônjuges.

Além da formação familiar, o parentesco ritual estabelecido através do batismo pode ser

investigado no sentido de identificar a utilização do mesmo como uma estratégia de

sobrevivência, mobilidade social e proteção. A documentação evidencia a predominância de

pessoas livres para apadrinharem os filhos das cativas, sendo que poucos são os registros em

92

que libertos apadrinham filhos de escravos e nenhum caso (do escopo documental utilizado

por esta pesquisa) em que um escravo serve como padrinho de filhos de libertos ou livres.

Ocorre, no último caso, a nítida presença na sociedade escravocrata da relação

hierárquica “para as atitudes, para as ações”, pois nenhum escravo chegou a ser padrinho ou

madrinha de uma pessoa livre, porém a maioria dos padrinhos de filhos de escravos eram

livres. “[...] Mas, nem por isto cativos deixaram de se relacionar com livres e liberto, [...]

embora resguardando hierarquia de valor nestas nelações.” (FARIA, 1998, p. 292). Para o

recorte temporal estudado em São Raimundo Nonato, grande parte das cativas preferia

pessoas livres ou libertas para apadrinharem os seus filhos, como foi o caso da escrava

Amância (figura 6) 54

.

FIGURA 6 – Família da Cativa Amância.

Essa maioria de padrinhos e madrinhas livres é evidente no caso da cativa Amância.

Mas, quais foram as estratégias utilizadas por Amância quanto ao parentesco ritual

estabelecido pelo batismo? Dos seis filhos batizados, apenas dois tiveram, pelo menos, um

dos padrinhos na condição de escravo. João, cabra, nascido em março de 1875, foi batizado,

em junho de 1877, pelo escravo Manoel da Cruz e por Savina Maria de Jesus, de condição

livre. Manoel da Cruz era cativo de Antonio da Costa Passos, proprietário da Fazenda

Caldeirão e casado desde outubro de 1852 com Savina Maria. Percebemos, nesse caso, uma

54

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registros de Batismo de Filhos de Escravos (1871-

1888).

93

aliança de parentesco através do compadrio que envolvia escravos e livres e acreditamos que,

ao escolher o casal de padrinhos de João, a mãe do rebento procurou ampliar o raio de

relações existentes entre eles e, principalmente, garantir a proteção do filho, caso necessitasse.

Boaventura, parda, nascida em 1882, foi batizada em outubro do mesmo ano e teve

como padrinho Manoel de Araújo, de condição jurídica livre, e, como madrinha, a escrava

Emília. O interessante em relação às escolhas dos padrinhos, é que mesmo os padrinhos

escravos pertenciam a outras propriedades e, portanto, eram cativos de outros senhores.

Amância não estabeleceu o compadrio com nenhuma das quatro cativas que também viviam

na mesma propriedade, ou seja, seus filhos não foram apadrinhados pelas outras cativas da

propriedade e Amância também não serviu como madrinha de nenhuma das crianças que

eram filhas das demais escravas. Pode ser que todas as escravas, inclusive Amância,

preferiram estabelecer alianças de parentesco fora da propriedade onde viviam, fortalecendo

os vínculos com pessoas de mesma condição social e, portanto, com interesse em garantir os

laços de solidariedade entre os mesmos.

E no caso dos padrinhos livres? O que Amância esperava ao estabelecer o compadrio

com pessoas de condição jurídica diferente? Maria, a primeira filha de Amância, nasceu em

1873 e também teve como padrinhos um casal de condição jurídica livre, Antônio José dos

Passos e Ana Maria do Espírito Santo, no registro de casamento dos mesmos, Antônio é

citado como proprietário55

.

O casal Nicolau Carlos da Mota e Idalina Maria da Conceição, ambos livres, foram os

padrinhos do rebento Agostinho e levaram o afilhado a pia batismal em junho de 1877.

Evarista, nascida em 1884, teve como padrinhos um casal de livres, Gervásio Vicente de

Oliveira e Emília Maria de Oliveira. Em agosto de 1880, Maria, a quarta filha da cativa

Amância, foi apadrinhada por pessoas livres, Vitoriano Pereira de Araújo e Maria das Neves,

costureira56

.

Apesar das limitações das fontes, que dificultam acompanhar a trajetória dos padrinhos,

em alguns casos, o estado civil e a profissão são mencionados nos registros. Essas

informações podem ajudar a compreender que tipo de expectativas essas mães cativas

possuíam em relação à escolha de compadres e comadres. É possível que um dos significados

dessas estratégias para estabelecer relações de parentesco esteja relacionada à posição social

55

Cartório 2o

Ofício de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento, 1889-1892. Documentação

não catalogada. 56

Cartório do 2o

Ofício de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento, 1889-1892.

Documentação não catalogada.

94

que os padrinhos ocupavam naquele momento, pois, além de serem livres, estes possuíam

alguma profissão ou mesmo eram proprietários de terras.

A possibilidade de estabelecer redes de parentesco com pessoas de status jurídico

diferente pode ter sido também uma medida de proteção. Mesmo que as crianças fossem

livres em consequência da Lei de 1871, havia os riscos de serem separadas de suas mães que

ainda eram escravizadas pelos seus senhores. Nesse caso, os padrinhos, que pelas normas da

igreja seriam os “pais espirituais” da criança, poderiam atuar nessa rede de proteção e

solidariedade, caso fosse necessário. Obviamente, que além da desejada proteção de sua

família, a cativa Amância possuía anseios em relação à conquista de algumas vantagens,

como sua liberdade ou uma possível mobilidade social, visto que “[...] para os cativos, possuir

um padrinho ou compadre livre nas imediações significava vatagens que podiam sobrepujar

as associações internas ou desejo por laços familiares mais amplos” (SCHWARTZ, 1998, p.

332). Casos como o do casal Zacarias e Maria e da família de Amância saltam aos olhos na

documentação, revelando a existência e manutenção das famílias e de suas redes de

sociabilidade no sertão piauiense do século XIX.

4.3 Redes de solidariedade: o compadrio entre escravos

Além de pensar a respeito da família e das estratégias utilizadas pelos cativos

sertanejos, é importante refletir sobre os significados que as redes de compadrio estabelecidas

entre escravos possuíam para os mesmos. A documentação utilizada nesta pesquisa demonstra

a preferência das mães cativas por pessoas livres para apadrinharem seus filhos. Considerando

esses escravos como sujeitos históricos possuidores de vontades e interesses, não há dúvida de

que a predominância de padrinhos livres partiu também das escolhas destas cativas. Porém,

muitos escravos escolheram outros cativos para serem padrinhos de seus filhos. O compadrio,

nesse caso, poderia estar vinculado à estratégia de manter as relações de amizade entre

compadres, reforçando os laços no interior da comunidade escrava, como também em garantir

a proteção do rebento.

Ao tratarem do compadrio no Recôncavo Baiano, durante o século XVIII, Stuart

Schwartz e Stephen Gudeman (1988, p. 37) ressaltam que, apesar do vínculo estabelecido

entre os padrinhos e o afilhado ter sido produzido dentro das normas eclesiásticas através do

batizado, o parentesco ritual ultrapassa o contexto religioso, sendo fortemente influenciado

pelo contexto social a que ambos os sujeitos presentes no ritual do batismo estavam inseridos.

Os autores destacam que cerca de 70% dos padrinhos escolhidos pelos escravos para

95

batizarem as crianças cativas eram de condição jurídica livre, evidenciando que, ao

escolherem padrinhos livres para estabelecerem o compadrio, os escravos da Bahia do século

XVIII possuíam o interesse de garantir um protetor dentro de uma esfera social diferente da

sua (Idem, p. 47-48).

Robert Slenes (1997, p. 271) também salienta a importância do compadrio para o

estabelecimento das relações entre livres, libertos e escravos. Para o pesquisador, a escolha

dos padrinhos pelas famílias cativas era de grande importância para a ampliação das alianças

sociais tanto no cativeiro, como fora dele. Em seu estudo sobre estas relações no Oeste

Paulista do século XIX, ele também identifica uma preferência por padrinhos livres. Porém,

quando os cativos escolhiam pessoas de mesma condição jurídica para apadrinharem seus

filhos, havia preferência por escravos domésticos ou que possuíam alguma profissão.

Ao descrever as relações de compadrio na Freguesia de São José dos Pinhais (PR),

Cacilda Machado (2006, p. 53) indicou uma predominância de pessoas livres apadrinhando

crianças escravas, sendo que poucos eram os padrinhos forros ou cativos que batizavam filhos

de mães escravas. Segundo a autora, embora “[...] o estabelecimento de relações de

compadrio com pessoas de status superior pudesse funcionar bem na busca de proteção social

e mesmo como mecanismo de manutenção e de ampliação de uma comunidade de negros e

pardos [...]”, o compadrio também fortaleceu a dominação e a submissão na teia das relações.

No entanto, apesar de atentar para a complexidade das redes de parentesco, a autora afirma

que o compadrio também “[...] promovia o estreitamento das relações entre escravos e

proprietários, entre livres e cativos, entre negros, pardos e brancos” (MACHADO, 2006, p.

74).

O estudo realizado por Cacilda Machado (2006) sobre as relações políticas e sociais

existentes entre negros, pardos e livres, tem como lócus uma região que apresenta algumas

semelhanças com São Raimundo Nonato (PI), especificamente no que diz respeito à

demografia e à economia. Trata-se de uma Freguesia que, na passagem do século XVIII para

o XIX, caracterizava-se por apresentar pequenas escravarias, onde o número de escravos era

bem inferior se comparado a outras regiões brasileiras. Desse modo, a autora atenta para a

existência de diferenças no âmbito das relações sociais entre regiões de pequenos plantéis e

aquelas que possuíam plantations e, portanto, uma escravaria maior (Idem, p. 82).

Carlos Engemann (2006, p. 212), apesar de estudar as relações escravistas nos grandes

plantéis do sudeste brasileiro, também aponta uma frequência de pessoas livres como

padrinhos de crianças cativas. O autor chama a atenção para essa predominância de padrinhos

96

livres para destacar duas modalidades de ligação entre as comunidades escrava e livre através

do ato ritual do batismo. Segundo ele, essa “simbiose” entre as duas comunidades poderia

ocorrer de duas maneiras, a primeira seria incidental, ou seja, o padrinho aparece na

documentação batizando apenas um escravo. E devido a isso, esses casos tornam-se mais

complexos para analisar as possíveis intenções dos sujeitos, pois, conforme o autor, seria mais

difícil verificar se havia estratégias por parte dos padrinhos e dos pais da criança de tecer

redes de sociabilidade e de proteção, por exemplo.

Uma segunda forma de associar as duas comunidades seria através dos “padrinhos

preferenciais”, isto é, aqueles que aparecem apadrinhando mais de dois filhos de cativas do

mesmo proprietário. Nesse caso, os padrinhos “preferenciais” “[...] parecem ter investido seu

potencial em um único senhor, isto é, mesmo tendo batizado um número considerável de

cativos, por opção ou condição, o fizeram de um mesmo senhor” (Ibdem, p. 213). Desse

modo, os padrinhos utilizavam o compadrio com escravos do mesmo proprietário como tática

para estreitar as relações com o senhor. Não desconsiderando as possibilidades de escolha dos

padrinhos por parte das famílias cativas, o autor também atenta para a existência de interesses

destes cativos ao estabelecer redes de parentesco com pessoas livres.

As relações de compadrio no sertão piauiense envolveram as comunidades escrava e

livre permitindo que homens e mulheres produzissem laços de parentesco e de solidariedade

dentro do contexto escravista. Como a maioria dos padrinhos eram pessoas livres, em muitos

casos, estes chegavam a apadrinhar pelo menos dois filhos de mães cativas pertencentes ao

mesmo proprietário. Seguindo a análise do compadrio realizada por Engemann (2006, p. 213),

situações como esta, em que a mesma pessoa surge apadrinhando filhos de escravos com

maior frequência, podem ser consideradas como uma estratégia tomada pelo padrinho. De

acordo com Engemann, dentro das inúmeras possibilidades de favorecimento, ao escolher

apadrinhar filhos de escravas pertencentes ao mesmo proprietário, o padrinho estaria

construindo ou mesmo fortalecendo as suas alianças sociais com o senhor de seus compadres.

Os classificados como padrinhos “preferenciais” podem ter utilizado essa tática para assegurar

os seus interesses, alguns chegaram a apadrinhar até seis filhos de escravas pertencentes ao

mesmo senhor (ver tabela 11):

97

TABELA 11 – Padrinhos “preferenciais” e número de afilhados. São Raimundo Nonato,

Piauí.

PROPRIETÁRIO PADRINHO AFILHADOS

Daniel José de Souza Bernardo Campos Ramalho 2

Jorge Ferreira de Oliveira Felipe Rodrigues dos Santos 2

Domingos Dias Soares João Augusto Dias Figueiredo 3

Gonçalo Hilário de Farias Jerônimo Maurício dos Santos

Pindaíba

3

José Antunes Piauilino de Macedo Agostinho Dias de Sousa 4

Manoel Antunes de Macedo Raimundo Martins Xavier de

Macedo

4

Luís Correia Lima Júnior João Antunes de Macedo 6

Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo (1871-1888).

Entre os padrinhos “preferenciais”, os que apadrinharam até duas crianças filhas de

escravos do mesmo senhor assumem maioria significativa. Outra característica dessas práticas

de parentesco é a predominância de padrinhos que possuíam parentesco consanguíneo ou

ritual com o proprietário dos escravos. A família Antunes de Macedo, por exemplo, foi a que

mais apadrinhou filhos de cativos e, normalmente, os filhos das escravas pertencentes aos

membros dessa família eram batizados entre eles mesmos. Sheila Faria (1998, p.213) também

identificou essa “sobreposição de relações consanguíneas e rituais”, destacando que “em

todos os grupos, parentes próximos foram chamados com frequência para apadrinhar

crianças”. Desse modo, era possível formar uma ampla rede de parentesco ritual, abrangendo

as comunidades livre e escrava, fortalecendo também o campo de atuação dos proprietários de

escravos.

As relações construídas através do parentesco consanguíneo e ritual foram

fundamentais para a ampliação, o fortalecimento e a manutenção da comunidade escrava,

assim como foram importantes para livres e libertos. No que tange ao parentesco ritual, não

somente pessoas livres assumindo o papel de padrinhos e madrinhas faziam parte dessas redes

de relações. Muitos escravos conseguiram estabelecer alianças de parentesco ritual com

outros escravos, alguns de diferentes propriedades, mas também com pessoas livres. As atas

de batismo registram situações em que um cativo chegou a apadrinhar pelo menos duas

pessoas de uma mesma propriedade, mas também evidenciam uma extensão do raio de

relações sociais destes cativos. Ao examinar os laços de compadrio estabelecidos entre

98

escravos, alguns exemplos chamaram a atenção pela frequência com que alguns cativos

apadrinhavam os filhos de outros escravos.

O escravo Antônio, pertencente a Rita Maria de Jesus, moradora na localidade Lagoa

do Mato, batizou, no período entre 1872 e 1885, quatro filhos de escravas pertencentes a

outros proprietários.57

O primeiro afilhado foi Jerônimo, mulato, classificado como filho

legítimo, pois é filho do casal Jerônimo Alves de França, livre, e de Luíza, escrava de Luís

Correia Lima Júnior, batizado em 1872. A madrinha de Jerônimo foi Ana Clara de Farias

Pindaíba, livre e provavelmente possuía algum tipo de relação com o proprietário da escrava

Luíza. Nesse caso, Antônio teve uma comadre cativa, mas residente em outra propriedade,

além disso, ele estendeu a sua rede de parentesco para além da comunidade escrava, visto que

o seu compadre era livre.

FIGURA 7 – Laços de compadrio do cativo Antônio (1872-1885).

57

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravas (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato.

99

Em 1876, foi a vez de Antônio levar a pia batismal o rebento Tertuliano, pardo, filho

de Marinha, cativa de José Antunes Piauilino de Macedo58

. Dessa vez, a rede de parentesco

envolveu três cativos pertencentes a diferentes proprietários, pois, além da mãe do rebento e

do padrinho, a madrinha Tomásia também era escrava. Infelizmente, não foi possível localizar

a quem ela pertencia, porém, a partir do que foi possível identificar na documentação, temos

que a cativa Tomásia era parda, 21 anos, vivia na localidade São Lourenço. Esse caso de

apadrinhamento revela que os escravos de diferentes propriedades relacionavam-se entre si,

confirmando que possuíam certa mobilidade espacial e que, muitas vezes, chegavam a

percorrer longas distâncias entre uma fazenda e outra para participar de uma cerimônia de

batismo.

No ano de 1882, Raimunda, cativa de Domingos Dias Soares, batizou sua filha Ana,

na localidade de Lagoa do Mato. A mãe escolheu para padrinhos o cativo Antônio e a

proprietária Rita Maria de Jesus59

. O mais interessante, nesse caso, é que a madrinha da

menina Ana, é também a proprietária do escravo Antônio, o que reforça mais uma vez a

intensidade das relações existentes entre pessoas escravizadas e livres. Depois deste batismo,

Antônio apadrinhou mais um rebento, filho de escravos. José, filho de Vitoriana, escrava de

Daniel José de Souza, moradora na localidade Julião, foi batizado no ano de 1885, sendo seus

padrinhos Antônio e Fulgência Maria de Jesus, livre60

.

O compadrio estabelecido entre Antônio e os pais de seus afilhados ultrapassou os

limites das propriedades onde os mesmos viviam, demonstrando que havia uma rede de

convívio entre escravos de diferentes propriedades. Em conformidade com Manolo Florentino

e Roberto Goés (2005, p. 215-216), em regiões de pequenos plantéis, as chances dos escravos

serem padrinhos dos escravos que viviam em propriedades diferentes era muito maior, visto

que as opções de escolha eram bem menores nas propriedades com pequena posse de escravo.

Portanto: “Nos plantéis menores, a maior parte dos padrinhos escravos pertencia a outro

senhor; nos maiores se dava o inverso, isto é, os escravos aí reunidos buscavam padrinhos

entre eles mesmos”.

Dos quatro rituais de batismo em que o cativo Antônio participou como padrinho,

apenas um deles menciona o nome do pai do batizando, nos demais, a documentação silencia

58

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravas (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 59

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 60

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato.

100

a paternidade. Infelizmente, é impossível afirmar se as três mães cativas que aparecem

batizando os seus filhos, listados na ata de batismo como ilegítimos, mantinham uma relação

estável com o pai da criança. Talvez estas mães consideradas pela igreja como solteiras,

viviam com um parceiro numa relação consensual e, possivelmente, algumas delas

oficializaram a união anos depois. Um exemplo disso é o da cativa Marinha, mãe de

Tertuliano, batizado pelo escravo Antônio em 1876. Quatro anos antes, Marinha levou a pia

batismal, Firmino, mulato, com um ano e quatro meses de nascido61

. Os padrinhos escolhidos

foram Alexandre José da Silveira, livre, e Liberata Irias, escrava. Em 1885, Marinha é citada

na ata de batismo de Manoel, seu terceiro filho, como escrava liberta e casada com Joaquim,

então escravo de José Piauilino de Macedo.62

Possivelmente, Joaquim e Marinha já

mantinham uma relação estável quando batizaram Firmino e Tertuliano, porém a oficialização

da união só ocorreu anos depois, contudo, não se pode afirmar quando o casamento

aconteceu, nem mesmo se Marinha já era liberta quando formalizou a união com Joaquim,

devido à limitação de tempo e das fontes.

Possivelmente, a cativa Vitoriana também mantinha uma relação estável com o pai dos

seus filhos. Ela teve cinco filhos no intervalo entre os anos de 1871 e 1883.63

Considerando o

nascimento do primeiro filho como tempo inicial da união do casal, possivelmente mãe e

filhos contavam com a participação do pai no convívio familiar. É também possível que eles

não tenham oficializado a união, pois o registro de casamento ou outro documento que

sinalize para este fato não foi localizado. Quanto às relações de parentesco ritual estabelecidas

por Vitoriana, todos os padrinhos dos seus cinco filhos são de outras propriedades, ela não

estabeleceu compadrio com nenhum escravo que vivia na mesma propriedade. As atitudes de

Vitoriana, assim como as de muitas mães cativas, revelam a existência de “brechas” dentro do

sistema escravista que permitiam aos escravos do sertão piauiense estabelecer suas relações

de parentesco e de amizade. O parentesco ritual “[...] revela-nos elementos relativos às

expectativas dos cativos diante da família, que não são percebidos através do parentesco

consangüíneo. Isso porque envolve os mecanismos de escolha que este não possui” (ROCHA,

1999, p. 121).

61

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 62

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 63

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato.

101

Analisando os registros de batismo em que a escrava Geralda aparece como madrinha,

verificamos um padrão muito interessante quanto às relações de compadrio. As três crianças

que ela apadrinhou eram filhas de cativas pertencentes à mesma família, porém todas elas

moravam em diferentes propriedades.

FIGURA 8 – Laços de compadrio da cativa Geralda (1878-1882)

No ano de 1878, Geralda, cativa de Raimundo Xavier de Macedo, foi madrinha de

Maria, cabra, filha natural de Romana, moradora na localidade São Vitor e escrava de José

Antunes Piauilino de Macedo.64

Eugência, parda, filha natural de Maria, escrava de Maria

Antunes de Macedo, foi a segunda afilhada de Geralda, sendo batizada no ano de 1881, na

localidade de Tanque. 65

E, por fim, Isabel, escrava de Manoel Antunes de Macedo, escolheu

os escravos Geralda para madrinha e Vitalino para padrinho de seu filho, chamado Lourenço.

66 Dentre as inúmeras motivações para a escolha da madrinha, percebemos claramente a

preferência por estabelecer laços de parentesco entre escravos pertencentes à mesma família

de senhores, para assegurar proteção ou algum outro tipo de vantagem.

64

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 65

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 66

Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-

1888). Freguesia de São Raimundo Nonato.

102

Acreditamos que esse padrão nas relações de compadrio pode ser uma escolha tanto

dos escravos, como dos seus senhores. Para os primeiros, manter relações de amizade e

parentesco entre escravos constituía-se num meio de estender os laços de solidariedade dentro

da comunidade escrava. No que concerne aos interesses dos senhores, manter os laços de

parentesco consanguíneo ou ritual entre seus escravos, seguramente, representava uma

medida de controle. Desse modo, “[...] o predomínio de pequenos proprietários de escravos

tornou o compadrio estratégico também na busca de proteção social, por parte dos escravos, e

instrumento de controle senhorial” (MACHADO, 2006, p. 49).

A partir das informações contidas na documentação utilizada para esta pesquisa e da

reconstituição de trajetórias familiares abrangendo escravos, podemos inferir que o ritual do

batismo transcendeu o seu significado religioso, assumindo, sobretudo, a qualidade de ato

social. Os laços de compadrio estabelecidos entre os cativos de São Raimundo Nonato (PI),

durante o século XIX, constituíam um mecanismo para ampliar e manter uma comunidade de

negros, pardos, caboclos e de alguns brancos. Como destacado, esses homens e mulheres

escravizados procuraram forjar laços de parentesco consanguíneo e ritual que garantissem

determinada mobilidade e espaço de autonomia na vida cotidiana do sertão piauiense.

103

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos últimos meses de elaboração deste trabalho, uma frase foi mencionada com

frequência: “Uma hora é preciso parar de ler e de analisar fontes, pois o tempo acaba”. E

realmente é preciso fechar este ciclo, pois a cada nova leitura, a cada fonte localizada em

meio as tantas peças desse quebra-cabeça, surgem novos questionamentos, novos caminhos e

possibilidades de interpretação.

No decorrer deste trabalho, procuramos examinar aspectos da vida cotidiana no sertão

piauiense na segunda metade do século XIX. O objetivo central foi compreender as maneiras

como os escravos, livres e libertos da região teciam suas estratégias de sobrevivência. Para

isso, os registros paroquiais, as cartas de alforria e os inventários post-mortem foram preciosas

fontes de investigação. Foi nas entrelinhas destas fontes que se pôde identificar e destacar

algumas especificidades das relações escravistas presentes naquele período. Dentre as

características do período em estudo que tornaram a Vila de São Raimundo Nonato uma

região específica, destacou-se a estrutura da posse escrava. As informações contidas nos

inventários revelaram a predominância de pequenas propriedades e, com elas, um número

pequeno de posse escrava. Além disso, a documentação não revelou a presença de senzalas e

de feitores nas propriedades, o que evidencia que, muitas vezes, senhores e escravos dividiam

a lida cotidiana e compartilhavam os mesmos espaços.

Para compreender os significados das relações de parentesco, tornou-se fundamental

conhecer o perfil populacional e o universo material dos habitantes dessa região. Vimos que a

maioria de mulheres em relação aos homens, as consideráveis taxas de natalidade, a

predominância de pequenas propriedades atreladas à agricultura de subsistência e à pecuária,

entre outros fatores, influenciaram diretamente na dinâmica das relações sociais entre

escravos, livres e libertos.

A partir do cruzamento de informações contidas nos diferentes documentos, foi

possível observar que os escravos estavam fortemente ligados por redes de parentesco

consanguíneo e ritual. Apesar do casamento formal pela igreja não ter predominado entre os

cativos dessa região, pelo menos no período em estudo, a cada busca por informações sobre a

trajetória destes sujeitos, uma “peça” encaixava-se no grande quebra-cabeça. Muitas famílias

constituíram-se nucleares, o casal e seus filhos mantiveram estabilidade familiar por gerações.

Outros casais preferiram a união consensual, mas não deixaram de manter os laços familiares

104

e de buscar meios para garantir a sua sobrevivência. E ainda, um número expressivo de mães

cativas que se mantiveram solteiras, porém tecendo alianças de parentesco para proporcionar

aos seus filhos proteção e melhores condições de sobrevivência. A formação dos núcleos

familiares no sertão piauiense ocorreu de forma diversificada, aconteceram uniões entre

escravos e libertos, livres e escravos e, principalmente, casamentos envolvendo cativos de

diferentes propriedades.

Dos assentos de batismo, brotaram arranjos familiares e de compadrio fundamentais

para garantir a sobrevivência dessas famílias. A predominância de escolha por padrinhos

livres revela os interesses destes escravos em forjar vínculos parentais com pessoas em

melhor situação dentro da hierarquia social da época e, assim, poder assegurar as vantagens

desejadas, que não raro eram conquistadas. Mas, não se pode generalizar, pois foram

identificados alguns casos em que o compadrio foi estabelecido entre escravos, sendo que

alguns dos padrinhos escolhidos viviam em outras propriedades. Nesse caso, percebemos que

as alianças de parentesco visavam também à proteção e ao fortalecimento da comunidade

escrava.

Outra questão revelada é a mobilidade dos escravos entre os espaços, de modo que,

para escolherem padrinhos residentes em outras propriedades, os mesmos já circulavam por

esses espaços e mantinham relacionamentos com os demais cativos. Alguns desses micro-

casos foram utilizados neste trabalho para demonstrar os diversos tipos de práticas adotadas

através do compadrio, inclusive, alguns mecanismos empregados pelos proprietários de

escravos para manter o controle sobre eles.

Apesar de algumas limitações, as fontes utilizadas nesta pesquisa afloraram relações

de amizade, sociabilidade, respeito e solidariedade entre homens escravizados, livres e

libertos, demonstrando as experiências cotidianas e os significados dessas relações para esses

sujeitos. Desse modo, esperamos ter conseguido demonstrar a diversidade e as peculiaridades

do viver escravo no sertão piauiense, bem como destacar os arranjos tecidos através da família

escrava e do estabelecimento de relações de compadrio que permitiram a esses homens

garantir laços de afetividade e de sobrevivência no sertão piauiense.

Contudo, apesar do crescente número de estudos sobre a escravidão no Brasil, ainda

existe um vasto campo de pesquisa a ser explorado, sobretudo no aspecto regional que

propicie conhecer as especificidades da vida material e das relações sociais envolvendo

escravos. No Piauí, por exemplo, a documentação das igrejas, dos fóruns, dos arquivos em

105

geral ainda aguarda por pesquisadores que possam narrar as muitas histórias de homens e

mulheres sertanejos.

106

REFERÊNCIAS

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